Corpo No Cinema Moçambicano PDF

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O corpo no cinema moçambicano: uma

análise da experiência do HIV/AIDS


a partir das obras cinematográficas de
Isabel Noronha e Orlando Mesquita
Esmael Alves de Oliveira

Doutorando em Antropologia Social – PPGAS/UFSC, bolsista CNPq

Resumo

O presente artigo pretende analisar, a partir de alguns documentários moçambicanos contemporâneos, o modo como o
corpo traspassado pela experiência do HIV/AIDS passa a ser constituído e significado. Tendo como norte o cruzamento
entre antropologia, cinema e literatura, proponho o desafio de pensar a compreensão do corpo para além de determinantes
dualistas e essencialistas. Nesse sentido, a proposta é a de compreender e perceber outras possibilidades de interpretação
do corpo como constructo social, e que estão para além de uma abordagem medicalizante.
Palavras-chave: Corpo; Antropologia; Cinema; Moçambique.

Abstract

This article analyzes how the body marked by the experience of HIV / AIDS is constituted and meant in some Mo-
zambican contemporary movies. By taking as a guideline the intersection among anthropology, cinema and literature,
my purpose is to comprehend the body beyond dualistic and essentialist determinants, looking for new possibilities for
interpreting the body as a social construct, other than the medicalising approach.
Keywords: Body Anthropology; Cinema; Mozambique.
O corpo no cinema moçambicano: uma análise da experiência… | PROA – revista de antropologia e arte

Corpo e antropologia

Nos filmes sobre os quais me debruço neste artigo1, é possível observar que há uma cen-
tralidade marcante do corpo na narrativa. Metaforicamente poderíamos até dizer que neles o
corpo “fala”. São imagens que remetem a ausências, presenças, adornos, saúde, doença, gestos,
tabus, regras, transgressões, enfim, uma infinidade de aspectos que marcam um ethos corporal,
ou, no dizer de Mauss, um habitus. Na tradição antropológica, diversos autores se dedicaram a
pensar o corpo e sua relação com o mundo da cultura. Seja nas reflexões mais clássicas, em que
era entendido como produto das representações sociais (MAUSS, 2003), seja nas abordagens
mais contemporâneas, em que é compreendido numa relação de agência – como constituído e
constituinte de significados (CSORDAS, 1999) –, o corpo ganhou, ao longo do tempo, um es-
paço privilegiado no pensamento antropológico. Assim, para pensar o corpo no cinema moçam-
bicano proponho-me primeiramente o desafio de localizar, ainda que sucintamente, a discussão
sobre o corpo no campo antropológico – campo no qual me localizo.

Na história da antropologia, há uma vasta discussão acerca do corpo e sua relação com a cul-
tura. Miguel Vale de Almeida (2004) afirma que o corpo se apresenta como um paradigma im-
portante da contemporaneidade que deve ser analisado e problematizado. Sônia Maluf (2001)
traça um panorama apontando como a questão do corpo foi se desenvolvendo nas ciências so-
ciais, e na antropologia de um modo particular, ao mesmo tempo que aos poucos se vislumbrava,
sobretudo através de contatos com contextos ameríndios e melanésios, a noção de pessoa.

Toda essa discussão que vem ocorrendo nas ciências sociais e na antropologia sobre a ques-
tão do corpo nos ajuda a refletir justamente sobre quais as lógicas sociais que operam no nível
de compreensão e significação desse “produto cultural”. Assim, não é difícil compreender a as-
sertiva de que nas relações sociais o corpo é permanentemente negociado e agenciado. Bourdieu
(2008), a partir do conceito de habitus – noção já presente nas reflexões de Marcel Mauss –,
nos chama a atenção para a dimensão estruturada dos comportamentos. Pensando os gostos a
partir da sociedade francesa, o autor ressalta as disposições corporais. Em outras palavras, não
haveria nada de natural nos comportamentos tidos como socialmente naturais. Pelo contrário, os
comportamentos, gostos, gestos estariam inseridos numa dinâmica de disposições incorporadas
e interiorizadas. Essas disposições seriam, portanto, produto de interações sociais e de contextos
históricos específicos. Dito de outro modo, Bourdieu aponta que o modo de se vestir, de pen-
tear, de ir a um evento cultural, constitui habitus, práticas socialmente percebidas, classificáveis,
reproduzidas e apropriadas. À semelhança do habitus, que se apresenta como uma estrutura
estruturada e estruturante, para Bourdieu essas disposições se colocam como ordenadores da
estrutura social, dado que classificam e diferenciam os sujeitos sociais dentro de uma ordem de
valores hierárquicos. Nesse sentido, pelas práticas corporais, exprime-se ou traduz-se a posição
dos sujeitos nas classificações sociais objetivas. Assim sendo, o corpo, antes de ser algo puramen-
te natural, constitui-se na relação social. E é assim que ele, posto em relação, gera certos acordos
que expressam distinções sociais explicitadas em distintos capitais econômicos, simbólicos e cul-
turais. Tal dimensão social do habitus já havia sido exposta por Marcel Mauss em 1934, quando
falava sobre as técnicas corporais.

No referido texto, Mauss destacava, sobretudo, as técnicas de aprendizagem/educação cor-


porais. Tendo em vista sua oposição a um modelo psicologizante dos comportamentos, o autor
defendia a ideia de que cada sociedade tem hábitos que lhe são próprios. Tais hábitos, segundo
Esmael Alves de Oliveira | artigo | vol. 01 nº 04

Mauss, não possuem nenhum caráter natural ou psicológico inerente; antes, são entendidos e
analisados como dotados de uma identidade social (habitus). Dito de outro modo, andar, correr,
sentar, comer, reproduzir, indica modos culturais adquiridos (e não naturais) e que são formados
graças a técnicas eficazes de educação.

Vê-se, portanto, que corpos, sujeitos e discursos estão profundamente implicados em rela-
ções de poder, próprio das relações sociais. Michel Foucault (2007a, 2007b, 2008) nos ajuda a
compreender essa “biopolítica” ao apontar os diferentes mecanismos de controle ao longo da his-
tória do Ocidente e os mecanismos/intrumentos pelos quais o poder sobre os corpos foi sendo
permanentemente exercido – Igreja, escola, prisões, manicômios, hospitais etc. Na perspectiva
do autor, o que estaria em jogo com a criação de categorias, grupos, espécies, discursos, práticas,
conhecimentos, especialistas e especialidades, entre outras táticas, seria a docilização dos corpos.

Esse aspecto é importante com relação aos filmes que analiso neste artigo, pois ajuda a
compreender o jogo discursivo que engendra a tessitura da narrativa cinematográfica moçam-
bicana. Vale lembrar que o objeto de representação nos filmes em questão é o HIV/AIDS e
que esse fenômeno não está deslocado de sentidos historicamente constituídos. Em cena, coa-
bitam múltiplas perspectivas discursivas, seja como “senso comum”, seja como “conhecimento
científico”. No contexto ocidental, como num pêndulo, a compreensão da AIDS oscilava entre
dois extremos. De um lado, como uma doença de “depravados”, “pecadores”, “imorais” – termos
próprios do “senso comum”. De outro, como algo particular dos chamados “grupos de risco”
(homossexuais, bissexuais, usuários de drogas injetáveis, hemofílicos e grupos de determinadas
nacionalidades – haitianos, por exemplo), lembrando o discurso médico dos anos 1980.

Onde a AIDS justamente será localizada? Nos corpos – seja como “objeto” (lócus no qual
o vírus se desenvolve e que será alvo do discurso médico), seja como “produto”/”resultado” de
práticas sociais (lembrando os tais “comportamentos de risco”, sobre os quais se voltará a teia
discursiva do senso comum). É no corpo, portanto, que a doença será “lida”, “detectada”, “com-
preendida”, “combatida” etc. Poderíamos dizer, parafraseando Foucault (2007b), que o corpo é
um dos alvos privilegiados das relações de saber e poder. É assim que, por exemplo, Foucault
(2008) busca entender as condições de possibilidade do aparecimento, no início do século XIX,
da figura moderna da medicina: a anatomoclínica. A doença deixa, então, de ser essência, espécie
natural, para ser considerada uma realidade localizada no espaço concreto, individual, do orga-
nismo doente. Essa atenção do médico para o singular, para o que é próprio de cada um, pode ser
entendida como a tentativa, por parte do “saber científico”, de controlar os corpos dos sujeitos.

A perspectiva de corpos traspassados por relações de poder não exclui a dimensão agencia-
dora desses corpos. O corpo, então, pode não só ser visto como um objeto sobre o qual a cultura
opera, mas também como o local das percepções a partir das quais a cultura “vem a ser”. Assim,
o corpo adquire não apenas uma dimensão constitutiva, mas também constituinte; ele não é
uma tábula rasa, um recipiente, mas uma espécie de superfície refratável (CSORDAS, 1999). É,
portanto, levando em conta esses aspectos que compõem a dinâmica de constituição e significa-
ção do corpo, entendido como um produto histórico, político e cultural, que pretendo analisar a
produção cinematográfica de Isabel Noronha e Orlando Mesquita e apontar algumas questões
sobre as quais essa produção nos intima a pensar.
O corpo no cinema moçambicano: uma análise da experiência… | PROA – revista de antropologia e arte

A mise-en-scène em questão

As obras fílmicas sobre as quais reflito neste artigo são três. A primeira consiste no docu-
mentário Trilogia das novas famílias (2007), de autoria da cineasta moçambicana Isabel Noronha.
A segunda, também de autoria de Isabel, em parceria com a cineasta brasileira Vivian Altman,
intitula-se Mãe dos netos (2008). E a terceira, A bola (2001), pertence ao cineasta moçambicano
Orlando Mesquita. Minha intenção é tomar de empréstimo algumas imagens que nos aju-
dem a pensar o corpo para além dos significados dados pelos cineastas em suas obras – tendo
em mente que as imagens são produtos e produtoras de significados, sentidos e interpelações
(BARTHES, 1964, 1984). Nas obras em questão, é apresentada uma série de imagens em que
o corpo ocupa um espaço privilegiado. Nesse sentido, tenho a intenção de destacar a dimensão
simbólico-cultural da imagem do corpo traspassado pela experiência do HIV/AIDS ao longo
de algumas obras cinematográficas, utilizando-me tanto da reflexão antropológica quanto lite-
rária. Este trabalho que apresento aqui faz parte das reflexões que venho realizando em minha
pesquisa de doutorado sobre as representações do HIV/AIDS no cinema moçambicano e que
está em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade
Federal de Santa Catarina.

Isabel Noronha é uma cineasta moçambicana que vem produzindo muitos documentários
acerca de algumas questões que envolvem o cenário político-cultural moçambicano, destacan-
do-se não somente pela qualidade de suas produções, mas também por ser uma das poucas
cineastas mulheres no cenário do cinema nacional moçambicano. Psicóloga de formação, atuou
no Instituto Nacional de Cinema (INC), órgão que, desde seus primórdios, desempenhou um
papel importante durante a guerra civil deflagrada em Moçambique logo após a independência,
atuando principalmente na produção do semanário Kuxa Kanema2. A formação de Isabel No-
ronha em cinema ao longo dos anos não se restringiu aos domínios nacionais, tendo a cineasta
participado de cursos tanto em Portugal (RTP) quanto em Paris (ateliê Varan). Com vários tra-
balhos premiados em Moçambique e no exterior, destaca-se pela versatilidade de suas temáticas
e pela sua preocupação ética com os personagens de seus documentários.

Orlando Mesquita tem uma longa trajetória que engloba uma vasta produção cinemato-
gráfica, seja como editor, realizador ou colaborador. Moçambicano, ao longo de sua carreira
trabalhou tanto em projetos próprios, quanto em projetos de outros cineastas – destaque para
os trabalhos com Isabel Noronha, Camilo de Sousa, Gabriel Mondlane e Licínio Azevedo.
Sua formação na área de cinema ocorreu em Cuba – onde se especializou em fotografia e em
produção cinematográfica. Apesar de ter manifestado interesse pelo cinema desde a infância –
influenciado pelo pai que era videoamador –, sua inserção profissional nesse campo se deu em
1983, quando entrou para a Kanemo, uma empresa responsável pela realização de filmes em
Moçambique. Cofundador da COOPIMAGEM (cooperativa de cineastas moçambicanos vol-
tada para a produção gráfica e cinematográfica), atualmente seu trabalho se dá principalmente
na edição de filmes.

Optei por abordar as três obras cinematográficas apontadas acima porque nelas é possível
verificar, de modo privilegiado, a forma como o corpo traspassado pela experiência do HIV pas-
sa a ser compreendido, vivido e significado.

Inicio fazendo referência ao projeto fílmico Trilogia das novas famílias (2007), conduzido
por Isabel Noronha. Esse trabalho foi uma produção que contou com o apoio institucional e
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financeiro da ONG FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade), liderada pela


ex-primeira-dama moçambicana Graça Machel, e que se propôs pensar os impactos do HIV/
AIDS na dinâmica dos núcleos familiares locais. A obra é composta de três filmes documentá-
rios (Caminhos do ser; Delfina-Mulher-Menina e Ali-Aleluia). A narrativa traz como personagens
centrais crianças e adolescentes moçambicanos que, a partir da perda de seus genitores, oca-
sionada pelo HIV/AIDS, tiveram que formar novos arranjos familiares em que os mais velhos
assumem a responsabilidade pela educação e sobrevivência dos mais novos.

No primeiro filme, Caminhos do ser, é possível acompanhar a história de quatro irmãos,


todos rapazes, que, tendo ficado órfãos de pai e mãe, são rejeitados pela comunidade, que associa
a morte dos pais a um caso de feitiçaria. Vivendo sós a maior parte do tempo, fazendo o papel
de pai e mãe uns dos outros, tentam superar as dificuldades. A memória dos ensinamentos ma-
ternos é o grande elo de ligação com os pais e, ao mesmo tempo, possibilita que deem prossegui-
mento às suas atividades cotidianas (atividades domésticas, escola, machamba3).

No segundo filme, Delfina-Mulher-Menina, temos a história de uma menina que, aos treze
anos, teve de assumir o papel de chefe de família, cuidando de quatro irmãos. Diante dos pro-
blemas que enfrenta com o desrespeito dos irmãos, da forte presença da mãe falecida nos sonhos
e do desejo que carrega de ser médica, Delfina tenta encontrar forças para a superação das difi-
culdades e dos conflitos. Para isso conta com o apoio de uma ONG local.

O terceiro e último filme da série, Ali-Aleluia, conta a história de um menino de onze anos,
chamado Ali, que contraiu o HIV por transmissão vertical da mãe, que, tal como o pai, faleceu
quando ele tinha oito anos. Ali vive sozinho na casa que era dos pais, sendo cuidado por uma
ativista local e sua filha. Irei me ater, aqui, somente à narrativa de Ali-Aleluia – na qual a questão
do corpo se põe em grande evidência.

Ali-Aleluia: um corpo em “mutação”

“Era uma vez Ali Aleluia, que vivia com seus pais e irmãos numa casa bonita e antiga, no
centro da cidade de Inhambane. Um dia, Ali acordou e estranhou estar deitado na sala sobre
uma esteira em vez de estar no seu quarto junto com os irmãos. O som dos pássaros lá fora, eco-
ando por entre os móveis destruídos, e o sol entrando pelas janelas teimavam em dizer que ele
não estava a sonhar. Ali Aleluia ainda não sabia, mas esse era o primeiro dia de sua nova vida.”
Eis a narrativa inicial da história de Ali Aleluia – protagonista da trama.

O filme retrata o cotidiano de Ali Hassane Aníbal Aleluia, que diante da ausência dos pais,
vítimas do HIV/AIDS, se vê diante do dilema de cuidar de si mesmo. Ali Aleluia mora sozinho
em uma casa simples e precária, única herança deixada pelos pais, e que um dia também per-
tencera aos seus avós. Sozinho, órfão, o menino tem como companhia, além das lembranças que
guarda da relação com os pais, uma vizinha que se torna sua grande mentora.

Ali-Aleluia inicia com a imagem do menino deitado numa pequena esteira de bambus, com
sua bola de basquete ao lado da cabeça. Em seguida o menino acorda e, numa atitude que parece
mostrar sua rotina cotidiana, levanta-se e segue rumo a uma pequena gaveta onde se encontram
várias embalagens de comprimidos – coquetéis antirretrovirais –, para logo depois ingeri-los,
num ritual quase mecânico. Menino franzino, com um corpo que parece querer manifestar sua
fragilidade, Ali recorda que perdeu seus pais quando tinha apenas oito anos de idade e que agora,
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com onze anos, se vê cuidado pelos outros (que chama de primos). Conforme a história avança,
Ali narra suas dificuldades iniciais para adaptar-se a sua nova realidade (além de ser órfão, tam-
bém vive com HIV/AIDS), seu cotidiano, sonhos e esperanças.

Imagens do filme Trilogia das novas famílias (2007), de Isabel Noronha.


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A vida de Ali pode ser compreendida como um entrelugar. Envolvido numa liminaridade
própria de sua condição, sua história é perpassada por um antes e um depois (VAN GENNEP,
2011). O menino conta que, após a morte dos pais, teve dificuldades para ir à escola, ficou muito
doente e que essa situação foi superada apenas quando passou a tomar os medicamentos. É Nely,
uma enfermeira, que, em depoimento, expressa um pouco das condições difíceis pelas quais
passou o menino no início: “Recebi esse menino como meu paciente no ano de 2005. Quem
o trouxe ao hospital foi a nossa ativista Celina Pedro. A criança estava muito mal, tinha febres
altas, diarreia, estava cheia de feridas em quase todo o corpo. Fez-se um teste, e acusou que era
seropositivo. Recebemos a criança e entreguei-a à mesma ativista que o trouxe ao hospital, para
tomar conta dela” (transcrição de trecho do documentário Ali-Aleluia, Isabel Noronha, 2007).

Ao depoimento da enfermeira somam-se outros – os de tia Celina (a ativista citada na fala


de Nely) e sua filha Dininha (pela qual Ali nutre uma pequena paixão). O cotidiano de Ali é
cercado de atividades comuns aos meninos de sua idade (rotina de estudos, por exemplo) e de
desafios próprios do fato de morar “sozinho” (trabalhos domésticos). Ambas as personagens re-
velam os dilemas e dificuldades que cercaram e cercam o menino: o preconceito social que por
vezes fazia-o chorar, o isolamento social, o esquecimento em tomar os medicamentos. “Adotado”
por essa nova “família” (tia Celina e sua filha Dininha), aos poucos ele vai vencendo as dificul-
dades que o envolvem. Destituído de uma narrativa pessimista sobre Ali, o documentário de
Isabel Noronha aponta antes para seu poder de superação face aos dilemas a que foi submetido.
Ao final do documentário, aponta a cineasta: “...e, um dos muitos atos de coragem de Ali foi
contar-nos a sua história, para que todos saibam que também podem ser heróis de si mesmos...”
(transcrição de trecho do documentário Ali-Aleluia, Isabel Noronha, 2007). Seja recordando o
heroísmo do pai, seja socializando-se com outras crianças nos momentos de lazer, o corpo físico
e social de Ali Aleluia aos poucos passa por uma metamorfose: da fragilidade à força, do aniqui-
lamento à reestruturação de si mesmo.

Mãe dos netos: “corpos fantasmas”

No pequeno curta intitulado Mãe dos netos (2008), Isabel Noronha e Vivian Altman, utili-
zando-se do recurso da animação, narram a história de uma avó que, por causa da morte do filho
e das noras, se vê na obrigação de cuidar de quatorze netos órfãos da AIDS.

O filme se passa numa aldeia do sul de Moçambique e sugere a existência de outros lugares
situados na mesma região, com as mesmas condições de sobrevivência e onde se enfrentam pro-
blemas similares. Utilizando-se do recurso de montagem, em que mesclam filme documentário
com sequências de animação, Isabel e Vivian contam a história de Elisa Mabesso e sua rede de
parentesco. O filme inicia mostrando uma senhora sentada sobre um tapete de bambus no meio
de uma aldeia, sob a sombra de uma árvore frondosa, exercendo atividades que parecem ser de
seu cotidiano e, ao mesmo tempo, relatando a história e os dramas de sua família. A própria
configuração do lugar/espaço onde se desenrola a trama (ordenamento do espaço e das casas,
paisagem com grande concentração de árvores e mata nativa, ausência de elementos que reme-
tam a um ambiente urbano) permite inferir que se trata de uma comunidade rural tradicional,
dissonante do espaço físico de uma grande cidade4.

Há toda uma menção ao sistema de parentesco, o que desde o início ressalta a importância
da tradição como aspecto relevante na composição social do grupo retratado, remetendo para
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uma questão de ordem identitária: “Nasci na família Muianga.”

A personagem diz que, após seu casamento, veio morar na aldeia Hókwé5 da família Mu-
changa, o que nos dá a ideia da existência de um sistema de parentesco como mecanismo or-
ganizador do grupo. Após seu casamento, teve um primogênito: Francisco. Crescido, relata a
senhora Mabesso, Francisco foi para a África do Sul, voltando depois para se casar6. Dentro
de um sistema social em que é permitida a poligamia, Francisco contraiu casamento com oito
mulheres, o que resultou em um grande numero de filhos7. E continua o relato da velha senhora:
“Elisa, a primeira esposa de Francisco, teve um filho – o Armando. Depois Francisco foi buscar
a segunda esposa na família Mbanze, desse segundo casamento teve mais dois filhos: a Paulina
e o Gustavo.” O que parece no primeiro momento ser a rotina de um grupo étnico africano com
seu sistema de parentesco extenso, aos poucos vai dando espaço para os dilemas vividos pela
família diante da perda gradativa de seus membros devido à infecção por HIV/AIDS. “O meu
filho adoeceu de Sida”, diz a senhora. “E depois morreu. Tal como a primeira esposa, a Argentina
também morreu. A Paulina e o Gustavo também vieram ficar comigo.”

A cada falecimento, uma ausência. Esta é significativamente marcada no recurso cinema-


tográfico utilizado por Isabel e Vivian. Na animação, toda vez que a narrativa de Elisa Mabesso
aponta a morte de alguma de suas noras, automaticamente as personagens que estavam cobertas
por uma capulana8 desaparecem como um fantasma, deixando apenas o vazio manifestado por
ausência no interior daquele pano. É como se literalmente os corpos fossem fantasmas. De pre-
sença concreta, passam a ser memória. Memória que, do mesmo modo que a capulana que fica,
não deixa de ser presença – ainda que ausente. Os espaços vazios – mas não necessariamente
desocupados – destacam a liminaridade do corpo vitimado pela AIDS.

Imagem do filme Mãe dos netos (2008), de Isabel Noronha e Viviam Altman
Esmael Alves de Oliveira | artigo | vol. 01 nº 04

O relato, porém, não para aí. France, Emídio e Mistéria, filhos da terceira esposa de Fran-
cisco (Almerinda, que também faleceu), juntaram-se ao grupo dos netos adotados de Elisa. Ale-
gria, a quarta esposa de Francisco, também, ao morrer, deixou sua única filha (Vastinha) para a
avó. Elisa sintetiza o que acabou ocorrendo com quase todas as esposas do filho: “Todas as outras
esposas de Francisco morreram.” Tristeza, a última esposa de Francisco, e que ainda não tinha
filhos, abandonou a família Muchanga após a morte do marido, deixando a sogra sozinha com
quatorze netos. Em cena, mostram-se aspectos dramáticos da situação do núcleo familiar: um
grande número de crianças pequenas, a idade avançada da avó, sua impossibilidade de ir para a
machamba (roça) e de cuidar de todos os netos. Tudo isso expresso na preocupação da debilitada
avó: “Como é que eles vão crescer?”

Imagem do filme Mãe dos netos (2008), de Isabel Noronha e Viviam Altman.

Ao final, o que parecia ser apenas uma “estória” de desenho animado transforma-se em “re-
alidade”, em história de vida. Todas as personagens retratadas na trama em forma de animação
são visualizadas em “carne e osso”. A estratégia de Isabel Noronha e Vivian Altman se elucida
no final do filme, com as mensagens de conclusão: “Todas as semelhanças entre esta estória e
a história da família Muchanga são pura realidade. Qualquer semelhança entre esta estória e a
tua própria história é uma possibilidade. Pára e pensa.” Ali as noções de “ficção” e “realidade” são
reconfiguradas, num jogo dialético de justaposição de imagens que mimetizam e metaforizam
realidades sociais complexas. Corpos presentes e não presentes, mas nunca ausentes.

A bola e os corpos lúdicos

Sobre o caráter subversivo dos corpos, não apenas o trabalho cinematográfico de Isabel
Noronha é ilustrativo. O curta produzido por Orlando Mesquita, A bola (2001), vai na mesma
direção ao mostrar o modo como a camisinha é utilizada, distinto daquele preconizado nas cam-
panhas oficiais de saúde e prevenção.
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O filme inicia com a imagem de uma idosa estendendo uma roupa infantil de lã no varal.
A essa primeira imagem, sobrepõe-se outra, de crianças muito animadas jogando bola em um
grande campo de futebol de barro batido. Com gritos e muita disposição, correm atrás de uma
bola. Logo a cena será interrompida pela entrada de um adulto no campo. Com aspecto de
quem está muito irritado, corre atrás da bola. Para o espectador, a sensação é a de que a nova
personagem vai participar da brincadeira. Contudo, aos poucos, percebe-se o equívoco. O que
aquele adulto faz ali? Freneticamente correndo atrás da bola, ele não apenas a captura como leva
consigo um dos meninos que estava no campo de futebol. À semelhança de um pai exigente
e muito irritado com as peraltices do filho, tira a criança da cena, levando-a embora com um
puxão de orelha. A irritação só é compreendida através do diálogo que se estabelece entre o
aparente pai e o “pequeno”: “Você está tentando me incomodar? Você rasgou minha camisinha.
Espertinho!”9 Diante do imponderável, o que farão os demais meninos? Será que o jogo acabou?
Afinal, falta-lhes o principal: a bola. Segue-se um diálogo entre duas personagens: “Como é que
vamos jogar agora?”, pergunta a primeira. “Eu tenho dinheiro”, responde a outra. A conversa
encerra-se então com um imperativo: “Vá buscá-la!” Muito entusiasmadas, as duas personagens
seguem para uma pequena mercearia e compram dois preservativos.

E agora? O que irão fazer? Onde está a senhora idosa que abriu o filme? Tudo é elucidado
quando os meninos novamente reunidos começam a encher os preservativos como se fossem
balões. Depois, envolvem-nos em várias camadas de barbante e papel. Como, a certa altura, o
material de “acabamento” chega ao fim, olham em volta do local onde se encontram, e a roupa de
bebê estendida no varal terá finalmente uma função. Um dos meninos pega um dos fios soltos da
roupa, e todos vão correndo terminar de envolver a camisinha. Em poucos minutos o que era um
preservativo transforma-se em uma bola de futebol. Trabalho concluído, todos voltam animada-
mente a jogar, apesar de a diversão durar pouco, já que, após um chute forte, a bola acaba caindo
no colo da velha senhora proprietária da lã – a mesma que havia estendido a roupa de bebê no
varal. Aos poucos a lã volta ao seu estado anterior (roupa de bebê). O que resta? Apenas a velha
e tradicional camisinha, que se tornou apenas um surrado “balão” cheio de ar. Ao final do filme,
há uma informação que para alguns pode soar estarrecedora:
Anualmente cerca de 20 milhões de preservativos são distribuídos em Moçambique. Considerando
que 4 milhões de homens moçambicanos são sexualmente ativos, cada um pode estar usando somen-
te cinco preservativos por ano. No entanto um grande número de preservativos é usado ​​por crianças
para fazer bolas de futebol. (Transcrição de um dos trechos do curta A bola, Orlando Mesquita, 2001,
tradução minha).
Esmael Alves de Oliveira | artigo | vol. 01 nº 04

Imagens do filme A bola (2001), de Orlando Mesquita.

Imagens sobreviventes ou “imagens-corpos”?

Nos filmes, diferentes contextos e personagens ajudam a “compor” imagens corporais. Em


cena, apresentam-se múltiplos sentidos, recorrências, ou, nas palavras de Georges Didi-Huber-
man (2011), “sobrevivências”. Se, por um lado, a contextualização dos filmes (motivações ins-
titucionais, apoios financeiros, conjuntura política) sublinha a necessidade de evitarmos algum
anacronismo, por outro, o corpo mostrado através das lentes da câmera tem o poder de nos
conduzir a uma série de associações com outras imagens, contextos e sentidos, apontando para
uma dimensão metafórica do corpo filmografado. São “imagens-corpos”, imagens que revelam
e narram sentidos denotativos, mas também conotativos.

José Emilio Burucúa (2003), ao se debruçar sobre a obra de Warburg – historiador de arte
alemão –, salienta que uma das grandes contribuições do autor foi a de chamar a atenção para a
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dimensão metassimbólica das imagens através do conceito de “engrama”. Em outras palavras, há


que pensar as imagens também em sua dimensão subjetiva, ou seja, não apenas seus significados
explícitos, mas também os implícitos. Para além de sua dimensão meramente formal, elas evo-
cam múltiplos sentidos. Portadoras de uma dimensão simbólica que lhes é inerente, as imagens
são compostas de vestígios, marcas, pegadas, enfim “engramas”, capazes de despertar em seus
espectadores uma carga emotiva produtora de sentidos, significados, sensações (pathosformel).
Apresento o desafio de pensar, por essa perspectiva, os corpos no cinema moçambicano contem-
porâneo a partir das obras de Isabel Noronha e de Orlando Mesquita. Em ambos, a dimensão
figurativa das imagens mostra-se preponderante.

Na narrativa cinematográfica de Isabel Noronha e de Orlando Mesquita, conforme apon-


tado anteriormente, em vários momentos vemos a imagem de corpos: cuidados, precários, sau-
dáveis, doentes, presentes, ausentes, lúdicos. Assim, novos significados são constituídos e consti-
tuintes de novos sentidos. Chamo esses corpos, mostrados através das lentes desses cineastas, de
“imagens-corpos”, para destacar a dimensão simbólica dessas imagens. Símbolos que escapam
ao próprio sentido veiculado pelos cineastas em suas obras.

Algumas das “imagens-corpos” apresentadas por Isabel Noronha em seus filmes remetem-
-nos a esse aspecto apontado por Warburg. Como a imagem da cobra entre os índios Pueblo
– analisada por Warburg (2005) –, que encontra ressonância em outros contextos, civilizações e
imagens, as imagens de corpos apresentadas por Isabel Noronha nos despertam para seus senti-
dos múltiplos. Em outras palavras, uma imagem é carregada de sentido(s).

Seguindo o projeto desconstrucionista de Jacques Derrida (2007, 2012), acredito que o


conceito de corpo se apresenta como uma possibilidade em aberto. Se, por um lado, nossas
concepções de corpo e corporalidade indicam uma tentativa de englobamento de sentidos e sig-
nificados, por outro, novas experiências estéticas e corporais chamam a atenção para os limites
de constructos fechados e ortodoxos. Em outros termos, pensar numa perspectiva desconstru-
cionista significa abrir mão de categorias totalizadoras, tendo em vista o caráter mutável, transi-
tório, contextual e precário das realidades humanas.

Nesse sentido, pensar o corpo estaria na ordem não de uma totalidade globalizante, mas de
uma perspectiva composta de vestígios, marcas, pegadas, capazes de despertar em seus observa-
dores uma carga emotiva produtora de sentidos, significados, sensações, fragmentações (MO-
RAES, 2002).

Ao observarmos algumas das “imagens-corpos” apresentadas por Isabel Noronha em seus


filmes, podemos compreender um dos aspectos apontados nas obras de Bataille: tudo é jogo,
tudo é dispêndio, excesso (BATAILLE, 1975). As “imagens-corpos” ali tornadas visíveis con-
duzem a novas imagens, que não estão ali, que escapam ao sentido proposto pela cineasta, que
nos afetam de algum modo, dando a ver sua dimensão criativa. Como em um jogo de esconde-
-esconde, ou de figura e fundo, elas se intercalam, se mostram e se ocultam, num infinito jogo
de indefinição. A “verdade” nelas apresentada tem estrutura de ficção, um delírio compartilhado,
cujo sentido não pode ser uma adequação entre uma palavra e uma coisa.

Desse modo, podemos entender imagem como cruzamento, como jogo de confronto
e continuidade (justaposição). As imagens dos corpos nos filmes de Isabel nos falam de ou-
tros corpos e nos fazem ver outros corpos. Como não evocar as sobrevivências de Warburg?
Esmael Alves de Oliveira | artigo | vol. 01 nº 04

O fenômeno das pessoas convivendo com HIV é significativo nesses processos evocativos de
significação de uma imagem. Como não pensar, por exemplo, nos corpos dissecados na mesa
de Lautréamont? Como não recordar a trágica história de Prometeu, cuja precariedade de uma
parte de corpo era símbolo da punição divina por sua astúcia? Ou o corpo de Isaac “sacrificado”
pelo próprio pai (Abraão) no livro do Gênesis, no Antigo Testamento? Ou os corpos pintados e
imortalizados pelos pintores renascentistas nos afrescos das grandes catedrais e/ou nas pinturas?
Ou até mesmo a clássica imagem do “homem vitruviano” idealizada por Leonardo da Vinci,
símbolo da “perfeita” proporção? Enfim, são imagens infinitas que nos acorrem à mente a partir
de imagens aparentemente deslocadas no tempo e no espaço.

Nesse sentido, a noção de soberania do corpo é fundamental (BATAILLE, 1975). É


necessário resgatar “imagens-corpos” sob uma perspectiva batailliana. Como capacidade de se
entregar à totalidade das possibilidades da existência. Uma imagem assim entendida relativiza os
sentidos restritivos e determinados da compreensão que temos dos fenômenos sociais. No caso
das crianças que brincavam descompromissadamente com a camisinha transformada em bola de
futebol, ou da precariedade de um corpo que convive com o HIV (no caso de Ali), ou de corpos
que sobrevivem no espaço evocativo da memória tradicional (como em Mãe dos netos), somos
convocados a pensar o corpo em sua relação com um universo infinito de experiências existen-
ciais. A refletir, portanto, sobre as margens, os bastidores, as fronteiras, os interstícios, para além
do que é imediato, ou pelo menos não nos restringindo a ele.

Uma imagem corporal imersa num tempo batailliano é carregada de agoras – que não são
totais nem homogêneos. Um agora que nunca é apreendido como totalidade, mas que ocorre em
lampejos, em momentos tênues, em instantes fragmentários e precários. Portanto, um desafio se
impõe: um olhar surrealista. Que põe em suspensão a continuidade historicizante. Que rompe
radicalmente com as convenções dogmáticas. Assim, considerar as “imagens-corpos” do cinema
moçambicano sob esse ponto de vista é estar aberto para a impossibilidade do sentido único,
“verdadeiro”, universal.

Em Bataille somos desafiados a pensar a capacidade dionisíaca do universo humano toma-


do como um ser de vontade que beira sempre a revolta, o fracasso, o limite. Do mesmo modo,
podemos estabelecer uma conexão entre as imagens veiculadas por Isabel Noronha e Orlando
Mesquita nos seus filmes e uma noção de transgressão batailliana. As “imagens-corpos” nos
filmes desses cineastas, evocando justamente a dimensão figurativa das imagens, nos falam tam-
bém de uma “desconstrução” de sujeitos, de seus corpos. Trata-se, talvez, de uma destruição não
no sentido puramente literal, mas num sentido que nos permite analisar as rupturas, as descon-
tinuidades, os hiatos das práticas sociais vivenciadas em “situações-limite” – seja nos processos
de escolhas individuais, seja nos de imposição sociocultural (coletividade).

Tanto o Ali de Isabel, à mercê de uma madrinha institucional – onde estão o Estado, suas
instituições e seus papéis? –, quanto a bola de futebol feita de preservativos – qual o sentido do
preservativo no seio de uma comunidade tradicional, com seus valores e suas concepções de vida
e de morte? – ajudam a examinar as arbitrariedades das lógicas institucionais, que muitas vezes
operam em contraposição às lógicas locais.

Contudo, essa “desconstrução” não pode ser vista sob um ponto de vista pessimista, fatalis-
ta. Evoca, antes, uma aura de desejo, de ruptura com o estabelecido, de relativização da ordem
O corpo no cinema moçambicano: uma análise da experiência… | PROA – revista de antropologia e arte

moral. Nesses corpos e comportamentos que coabitam com o HIV, abre-se espaço para a ex-
trema contestação do corpo natural, da ordem convencional. Há o esquecimento que precisa
ser lembrado (Ali-Aleluia) – o tomar cotidianamente os medicamentos –, a ausência que não é
esquecida (Mãe dos netos) – o filho e as noras que já não estão presentes fisicamente, mas que são
evocados na memória da velha avó –, e o duelo entre as diferentes lembranças (A bola) – afinal
de contas, qual o papel de uma camisinha num contexto tradicional, seus possíveis usos e apro-
priações?

Os corpos das diferentes personagens retratadas nos filmes, de algum modo, em sua contin-
gência, relutância, imanência, ludicidade, contestam ou problematizam o status social dos corpos
e sujeitos. Representam um ultimato aos paradigmas essencialistas, utilitaristas, racionalistas.
Trata-se sempre de uma transgressão que abre espaço para a dimensão criativa da existência
humana, ou, no dizer batailliano, do “jogo”. Espaço que está além da dimensão do útil. Essas
“imagens-corpos” dizem, portanto: É necessário, se não transgredir, ao menos pensar as mar-
gens, as fronteiras, as exceções de uma determinada regra. E talvez seja pela “fragmentação” dos
corpos, decorrente das múltiplas formas de agenciamento do seu próprio corpo e do corpo dos
outros – pelos sujeitos e pelas contingências a que estão submetidos –, que podemos ser com-
pelidos a analisar as novas experiências que escapam aos modelos normativos do plano social,
cultural e político-institucional, ou que a eles se contrapõem.

As imagens do cinema produzido pelos cineastas moçambicanos apontam fatos, fenômenos,


realidades que não são traduzíveis pelas lógicas de um discurso taxonômico – ou que pelo menos
não se restringem a eles. Esses fatos, fenômenos, realidades, põem em evidência a precariedade
dos sistemas analíticos, a relatividade e fragilidade das regras sociais. Portanto, eventos e realida-
des tidos como “liminares”, “subversivos”, “caóticos”, “problemáticos”, não devem ser percebidos
como algo que precisa ser ordenado, descrito, compreendido, explicado. Ao contrário, devem ser
tomados como eventos e realidades que são da ordem do humano, portanto do possível e do im-
provável. É isso que as imagens dos filmes de Isabel Noronha e de Orlando Mesquita nos pro-
vocam a pensar quando consideramos a noção de “imagem-corpo” – apresentada em suas obras
cinematográficas elencadas como mutante, fantasma e lúdica – de um ponto de vista batailliano.

Meu contato com a realidade moçambicana, no trabalho de campo iniciado em Maputo/


Moçambique em 1º de fevereiro de 2012 e finalizado em 1º de maio daquele mesmo ano, indica
a possibilidade de compreensão de um corpo precário e de práticas subversivas. Subversão esta
“corporificada” de diferentes modos. Operando numa espécie de duplo movimento, as práticas
sociais dos sujeitos tanto relativizam as políticas oficias de combate e enfrentamento da epide-
mia – recusa à utilização do preservativo –, como põem em evidência outras formas de agencia-
mento do corpo, em consonância com práticas “não oficiais” – utilização de métodos tradicionais
no tratamento da doença.

Diante dos números oficiais do Instituto Nacional de Estatística (INE/Moçambique), se-


gundo os quais o índice de prevalência das infecções por HIV em nível nacional gira em torno
dos 14% desde 2008, e do posicionamento oficial do Ministério da Saúde (MISAU), de que
apesar dos investimentos na área da informação os índices de infecção pelo HIV continuam
altos, somos incitados a refletir sobre o poder de agenciamento dos próprios sujeitos moçambi-
canos. Diante das políticas oficiais de saúde, colocam seus corpos e desejos como símbolos que
interrogam, questionam e põem em relevo as arbitrariedades, limites e contradições das políticas
Esmael Alves de Oliveira | artigo | vol. 01 nº 04

institucionais de saúde.

Aspectos de múltiplas ordens salientam a dimensão fugidia das práticas sociais desses su-
jeitos – seja “burlando” o convencional, seja tentando dar-lhe o devido termo. Com relação a
tais práticas, fica a perplexidade dos órgãos oficiais de saúde, que não sabem como lidar com a
questão. No noticiário local do dia 27 de fevereiro (no jornal da TVM) uma funcionária do alto
escalão do MISAU – uma médica responsável pelos programas relacionados ao HIV/AIDS no
Ministério – declarou que as estatísticas nacionais apontam que 18% das pessoas que iniciam o
tratamento com os antirretrovirais abandonam a terapia. Diante desse fato, o Estado e alguns
setores da sociedade moçambicana – sobretudo os ligados às ONGs – permanecem perplexos,
sem conseguir atuar eficazmente nas políticas de combate ao HIV/AIDS e muito menos expli-
car a “ineficácia” dos seus investimentos.

Talvez tal situação se deva a um choque entre visões de mundo, a limitações de ordem es-
trutural ou até mesmo à resistência dos sujeitos face a uma postura impositiva e arbitrária das
instituições estatais. Recordo-me de uma conversa informal que tive, na Universidade Eduardo
Mondlane, com um médico que atua em uma organização humanitária de combate ao HIV. Ele
apontava a dificuldade que ainda existe no acesso aos tratamentos convencionais (por exemplo,
falta de recurso financeiro para o deslocamento da população a determinadas unidades de saúde
– muitas vezes em zonas distantes de onde se encontram) e a necessidade de uma linguagem
mais próxima da realidade das populações, e que leve em conta suas visões de mundo10.

Nesse contexto, o que seria pensar uma “imagem-corpo” a partir da obra desses cineastas
moçambicanos? A proposta de apresentar o corpo como imagem nos coloca o desafio de vê-
-lo para além do imediato, de uma lógica meramente cartesiana e pragmática. Significa estar
aberto para os múltiplos significados de uma imagem – seja ela fílmica, fotográfica, literária,
discursiva. As “imagens-corpos” presentes nos filmes de Isabel Noronha e de Orlando Mesquita
narram um corpo que não é dado previamente, mas que é permanentemente (res)significado e
(re)constituído. Fazem parte de uma narrativa que não ignora os significados historicamente
construídos, mas que ao mesmo tempo aponta para as aporias de um reducionismo histórico.
Essas “imagens-corpos”, portanto, destacam uma compreensão de corpo marcado pelas múlti-
plas possibilidades de um presente nunca completamente constituído ou predeterminado. Uma
concepção que não perde de vista a dimensão criativa e precária do presente e dos seus significa-
dos (sejam eles quais forem). Um corpo imagético que se abre para as tramas do presente, para as
possibilidades de sentido, para a precariedade do (in)determinável, para os limites de discursos
ortodoxos.

Assim, ao propor o corpo como uma imagem, nada mais faço do que salientar a dimensão
subversiva e contestatória inerente ao processo de relação com uma imagem (seja como recurso,
seja como mero objeto de curiosidade/observação ou mesmo reflexão), que pode ser enrique-
cedora no processo de experienciação do mundo. Mais do que uma racionalidade restrita, é
necessária uma nova sensibilidade que nos arranque de uma postura iconoclasta e nos permita
ter uma experiência com as imagens para além das obviedades do cotidiano. Uma vivência e
sensibilidade conectadas com as novas possibilidades simbólicas de produção e significação do
próprio corpo. Este, como eterna imagem, se constitui numa “autonomia” criativa que subverte
toda a lógica essencializada de sentidos monofônicos e coloca as experiências “fronteiriças” em
relevo. Talvez nesse sentido, ou seja, nas múltiplas possibilidades de sentido fornecidas pelas
O corpo no cinema moçambicano: uma análise da experiência… | PROA – revista de antropologia e arte

imagens é que esteja a possibilidade de novos corpos imagéticos. E nesse horizonte as imagens
do cinema moçambicano têm muito a nos provocar (OLIVEIRA 2012a, 2012b).
Esmael Alves de Oliveira | artigo | vol. 01 nº 04

Notas
1. Trilogia das novas famílias (Isabel Noronha, 47 min, 2007); Mãe dos netos (Isabel Noronha e Vivian Altman, 7
min, 2008); A bola (Orlando Mesquita, 5 min, 2001).

2. Com a independência do país, ocorrida em 1975, a centralidade que o cinema tinha no cenário colonial acentua-
-se ainda mais. É nesse contexto que podemos compreender a inauguração do Instituto Nacional de Cinema
- INC, em 1976, e a criação do semanário informativo Kuxa Kanema, em 1978. Através do Kuxa Kanema –
uma espécie de noticiário semanal com duração de 10 minutos, em que Samora Machel (primeiro presidente
do país) apresentava interna e externamente o desenrolar da guerra civil e as ações de seu governo de caráter
socialista –, aos poucos moldava-se a imagem de uma nação “unificada”, de uma cultura “homogênea” e uma
identidade “moçambicana”. Nesse cenário, tanto Isabel Noronha quanto outros cineastas (Camilo de Sousa,
Gabriel Mondlane, entre outros) tiveram uma atuação preponderante como responsáveis por sua produção.

3. Em linguagem local, machamba quer dizer roça, plantação.

4. Vale ressaltar a grande diferença existente entre o contexto urbano e o rural em Moçambique. Essas diferenças,
imersas em grandes complexidades, impõem desafios diversos para as políticas de combate e controle da epi-
demia. Nesse sentido, o filme destaca as formas “tradicionais” do universo rural e suas questões específicas no
que diz respeito à forma de lidar com o HIV/AIDS.

5. Sigo a legenda oficial do filme. É provável que Hókwé seja o distrito de Chokwe, na província de Gaza.

6. A África do Sul ainda hoje representa o lugar onde os moçambicanos têm esperança de encontrar uma vida me-
lhor. Há uma grande migração de homens moçambicanos para trabalhar nas minas da África do Sul.

7. O filme remete especificamente ao contexto da região sul de Moçambique, onde o sistema é patrilinear, e a po-
ligamia, uma prática social comum.

8. Pano tradicional moçambicano largamente utilizado pelas mulheres moçambicanas, e que está inserido em toda
a dinâmica da vida cotidiana. Para além da dimensão estética, as capulanas são importantes nas diferentes ati-
vidades desempenhadas pelas mulheres: vestimentas, carregar crianças, apoiar os cestos nas cabeças etc.

9. Os diálogos, em língua local, são seguidos de legendas em inglês. Essa versão em português é uma tradução
minha.

10. Aspectos já apontados por diferentes autores que se dedicaram a pensar a temática do HIV/AIDS no contexto
moçambicano e que têm assinalado os dilemas e contrastes entre diferentes sistemas de pensamento, o que
se corporifica na tensão entre “tradição” e “modernidade” (MATSINHE, 2006; THOMAZ e PASSADOR,
2006; PASSADOR, 2009, 2010).
O corpo no cinema moçambicano: uma análise da experiência… | PROA – revista de antropologia e arte

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Filmografia utilizada

A bola (The ball). Orlando Mesquita. Maputo: Iris Imaginações, 2001, 5 min.

Mãe dos netos. Isabel Noronha; Vivian Altman. Maputo: Ébano Multimídia, 2008, 7 min.

Trilogia das novas famílias (Caminhos do Ser; Delfina-Mulher-Menina; Ali-Aleluia). Isabel


Noronha. Maputo: Ébano Multimídia, 2007, 47 min.

Recebido para publicação 17 de Setembro de 2012

Aprovado para publicação em 03 de Dezembro de 2012

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