O Que É o Ato de Criação
O Que É o Ato de Criação
O Que É o Ato de Criação
Giorgio Agamben
Deleuze não define o que significa “resistir”, e parece dar ao termo o significado
corrente de “opor-se a uma força ou a uma ameaça externa”. Na conversação sobre a
palavra “resistência” presente no Abecedário, ele acrescenta, a propósito da obra de
arte, que resistir significa sempre liberar uma potência de vida que estava aprisionada ou
ameaçada; ainda aqui, contudo, falta uma verdadeira definição do ato de criação como
ato de resistência.
Por isso prefiro falar antes em ato poético, e, se continuarei por comodidade a
servir-me do termo criação, gostaria que ele fosse entendido sem nenhuma ênfase, no
simples sentido de poiein, produzir.
Penso, todavia, que a potência que o ato de criação libera deva ser uma potência
interna ao mesmo ato, como interno a esse deve ser também o ato de resistência.
Somente desse modo a relação entre resistência e criação, e aquela entre criação e
potência tornam-se compreensíveis.
O conceito de potência possui, na filosofia ocidental, uma longa história que
podemos fazer começar com Aristóteles. Aristóteles opõe – e, conjuntamente, liga – a
potência (dýnamis) ao ato (enérgeia) e essa oposição, que marca tanto a sua metafísica
quanto a sua física, foi por ele transmitida em herança primeiro à filosofia e depois à
ciência medieval e moderna. É através dessa oposição que Aristóteles explica aquilo
que denominamos atos de criação, que para ele coincidem mais comedidamente com o
exercício das tekhnai (artes, no sentido mais geral da palavra). Os exemplos aos quais
ele recorre para ilustrar a passagem da potência ao ato são, nesse sentido, significativos:
o arquiteto (oikodomos), o tocador de cítara, o escultor, mas também o gramático e, em
geral, quem quer que possua um saber ou uma técnica. A potência de que Aristóteles
fala no Livro IX da Metafísica e no Livro II do De anima não é, a saber, a potência
genérica, segundo a qual uma criança pode tornar-se arquiteto ou escultor, mas aquela
que compete àquele que já adquiriu a arte ou o saber correspondente. Aristóteles chama
essa potência de héxis, de ékho, “ter”; o hábito, ou seja, a posse de uma capacidade ou
habilidade.
Aquele que possui – ou tem o hábito de – uma potência pode tanto pô-la quanto
não pô-la em ato. A potência – esta é a tese genial, ainda que pareça óbvia, de
Aristóteles – é definida essencialmente pela possibilidade do seu não exercício. O
arquiteto é potente enquanto pode não construir, a potência é uma suspensão do ato (Em
política isso é bem conhecido, e existe ainda uma figura, chamada “provocador”, que
possui precisamente a tarefa de obrigar quem possui o poder a exercê-lo, a pô-lo em
ato). É dessa forma que Aristóteles responde, na Metafísica, à tese dos Megáricos, que
afirmavam, mas não sem boas razões, que a potência existe apenas no ato (energeí
mòno dýnastai, ótan mè energeí où dýnastai, Met. 1046b, 29-30). Se isso fosse verdade,
objeta Aristóteles, não poderíamos considerar arquiteto o arquiteto quando não estivesse
construindo, nem denominar médico o médico no momento em que não está exercendo
a sua arte. Em questão está, assim, o modo de ser da potência, que existe na forma da
héxis, do apoderar-se de uma privação. Esta é uma forma, uma presença de algo que não
está em ato, e essa presença privativa é a potência. Como Aristóteles afirma em um
passo extraordinário da sua Física: “A stéresis, a privação, é como uma forma (eidos ti,
Phys., 193b, 19-20).
Conforme lhe é característico, Aristóteles leva ao extremo essa tese, ao ponto em
que essa parece quase transformar-se em uma aporia. Do fato de que a potência seja
definida pela possibilidade do seu não exercício, ele tira a consequência de um
constitutivo copertencimento de potência e impotência. “A impotência (adynamía)”,
escreve (Metafísica 1046a, 29-32) “é uma privação contrária à potência (dýnamis).
Toda potência é impotência do mesmo em relação ao mesmo (toû autoû kaì katà to auto
pâsa dýnamis adynamía)”. Adynamía, impotência, não significa aqui ausência de toda
potência, mas potência-de-não (passar ao ato), dýnamis me energeîn. A tese define,
assim, a ambivalência específica de toda potência humana, que, na sua estrutura
originária, mantém-se em relação com a própria privação e é sempre – e acerca da
mesma coisa – potência de ser e de não ser, de fazer e de não fazer. É essa relação que
constitui, para Aristóteles, a essência da potência. O vivente, que existe no modo da
potência, pode a própria impotência, e só desse modo possui a própria potência. Ele
pode ser e fazer, porque se mantém em relação com o próprio não ser e não fazer. Na
potência, a sensação é constitutivamente anestesia, o pensamento não-pensamento, a
obra inoperosidade.
Se retornarmos à nossa pergunta sobre o ato de criação, isso significa que ele
não pode ser de modo algum compreendido, segundo a representação corrente, como
uma simples passagem da potência ao ato. O artista não é aquele que possui uma
potência de criar, que decide, a uma certa altura, não se sabe como nem porque, realizar
e por em ato.
Se isso é verdade, devemos agora ver o ato de criação como um campo de forças
tensionado entre potência e impotência, poder e poder-não agir e resistir. O homem
pode se assenhorar de sua potência e ter acesso a ela somente através da sua impotência:
mas – exatamente por isso –, não se assenhora sobre a potência e ser poeta significa:
estar à mercê da própria impotência.
O verso de Dante é, nesse sentido, uma profecia que anuncia a pintura tardia de
Ticiano, que se mostra, por exemplo, na Anunciação de São Salvador. Quem observou
essa tela extraordinária não pode não ser atingido pelo modo no qual, não só nas nuvens
que pairam sobre as duas figuras, mas mesmo sobre as asas do anjo, a cor se funde em
redemoinhos e, ao mesmo tempo, se cava naquilo que foi com razão definido como um
magma crepitante, onde “as carnes tremem” e “as luzes lutam com as sombras”. Não
surpreende que Ticiano tenha assinado essa obra com uma formulação incomum,
Titianus fecit fecit: “ele a fez e refez” – isto é, quase a desfez. O fato de que as
radiografias tenham revelado sob esse escrito a fórmula usual faciebat não significa
necessariamente que se trate de um adendo posterior. É possível, ao contrário, que
Ticiano a tenha anulado propriamente para sublinhar a peculiaridade da sua obra que,
como sugeriu Ridolfi, talvez remetendo a uma tradição oral que poderia provir do
próprio Ticiano, os comitentes haviam julgado “non ridotta a perfettione”.
Por isso a sua mão treme, mas esse tremor é a suprema maestria. Isso que treme
e quase dança na forma é a potência: ignis ardens non comburens.
Por outro, a extraordinária Josefina, a cantora de ‘o povo dos ratos’, que não
sabe cantar e dificilmente consegue assoviar como todos os seus semelhantes , e, no
entanto, deste modo “alcança efeitos que um artista do canto busca em vão com a gente,
e que, na verdade apenas são concedidos aos seus meios insuficientes “
Talvez jamais como nesta figura a concessão corrente da arte como um saber ou
hábito está posta em questão tão radicalmente: Josefina canta com a sua impotência de
cantar, como o grande nadador nada com a sua incapacidade de nadar.
A potência de não, não é uma outra potência vizinha a potência de: e a sua
operosidade, aquilo que resulta da desativação do esquema potência / ato. Isto é, não
tem nenhum traço essencial entre potência de não e inoperosidade. Como Josephina,
através da sua incapacidade cantar, não faz mais que exibir um assovio que todos os
ratos sabem fazer, mas que assim, são” liberados dos laços da vida cotidiana” E
exibidos na sua “verdadeira essência”, assim a potência de não, suspendendo a
passagem ao ato, torna inoperosa a potência e a exibe como tal. O poder de não cantar é,
acima de tudo, uma suspensão e exibição da potência de cantar que não passa
simplesmente no ato, mas atende a si própria. Não há uma potência de não cantar que
precede a potência de cantar e deve, portanto, anular-se para que a potência possa se
realizar no canto: a potência de não é uma resistência interna a potência, que impede
que esta potência se exaura simplesmente no ato e a impulsiona a transformar-se em si
mesma, a fazer –se potentia potentiae, a poder a própria impotência.
Se pensa, mas pensar algo diferente deste padrão, a sua essência não será ato do
pensamento (noésis, o pensamento pensante) , mas a potência e não será então a melhor
coisa [...] Se isso não é pensamento pensante, mas potência, então a continuidade do ato
de pensar lhe será cansativa.
A aporia se resolve se lembrarmos que ir no de ânimo é o filósofo tinha escrito
que o nous , quando devem em ato cada um dos inteligíveis, “permanece de todo modo
em potência [...] pode então pensar em si mesmo” (de an, 429b, 9-10) . Enquanto, na
metafísica, o pensamento pensa si mesmo (se tem, isto é, um ato puro) no De Anima
tem, por outro lado, uma potência que, enquanto pode não passar ao ato, permanece
livre, e inoperosa , e pode, assim, pensar se a si mesma: isto é, algo como uma pura
potência.
Meu ocorre que o termo inoperosidade não para de voltar nesta reflexão sobre o
ato de criação. Seria talvez oportuno, neste ponto, que eu tente delinear pelo menos os
elementos de alguma coisa que gostaria de definir como uma “poética — ou uma
política — da inoperosidade” acrescentei o termo “ política “ porque a tentativa de
pensar de outra forma a poiesis, o fazer dos homens, Não pode não colocar em questão
também o modo como concebemos a política.
Em uma passagem da ética Nicomaco (1097, 22ss,) estou até ele se coloco
problema de qual seja a obra do homem que sugere por um momento a hipótese que que
falte ao homem uma obra própria, ou seja um ser essencialmente inoperoso:
Pois, assim como para um flautista, um escultor ou um pintor, e em geral para
todas as coisas que têm uma função ou atividade, considera-se que o bem e o "bem
feito" residem na função, o mesmo ocorreria com o homem se ele tivesse uma função.