CHIESA, Gustavo Ruiz. Gregory Bateson e Tim Ingold PDF
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resumo palavras-chave
No presente artigo pretende-se introduzir algumas das principais noções e Ingold, Bateson,
conceituações elaboradas por dois influentes antropólogos britânicos: Gregory sagrado, ecologia,
Bateson (1904-1980) e Tim Ingold (1948- ). Ao longo do texto, articulando cibernética.
uma reflexão ao redor de certas categorias desenvolvidas por esses autores,
proporemos a ideia de uma percepção sagrada atenta às relações que
atravessam e constituem todos os seres e coisas que habitam o mundo. Uma
maneira de perceber, conhecer e se engajar no ambiente que, sem abrir mão
dos sonhos e da imaginação, concebe outras formas possíveis de viver a vida e se
corresponder com tudo aquilo que nos envolve.
introdução
Quando o barco se desvia do seu curso prefixado – digamos, para a direita – o ti-
moneiro avalia o desvio e então esterça no sentido contrário, movendo, para isso,
o leme para a esquerda. Isso reduz o desvio do barco, talvez até mesmo a ponto
de o barco continuar em sua guinada e ultrapassar a posição correta, desvian-
do-se para a esquerda. Em algum instante durante esse movimento, o timo-
neiro esterça novamente para neutralizar o desvio do barco, esterça no sentido
contrário, esterça novamente para contrabalançar o desvio, e assim por diante.
Desse modo, ele conta com uma realimentação contínua para manter o barco em
sua rota, sendo que a sua trajetória real oscila em torno da direção prefixada. A
habilidade de guiar um barco consiste em manter essas oscilações as mais suaves
possíveis (Capra, 1996: 58).
Num ecossistema, por exemplo, cada espécie tem potencial para experimentar
O objeto coloca-se diante de nós como um fato consumado, oferecendo para nos-
sa inspeção suas superfícies externas e congeladas. Ele é definido por sua própria
contrastividade com relação à situação na qual ele se encontra (Heidegger 1971:
167). A coisa, por sua vez, é um “acontecer”, ou melhor, um lugar onde vários
aconteceres se entrelaçam. Observar uma coisa não é ser trancado do lado de
fora, mas ser convidado para a reunião (2012b: 29).
As coisas não são ou estão fechadas e acabadas, prontas para serem consumi-
das2. Um prédio não está fixado, repousando sobre a superfície terrena, como 2 Ingold (2011: 26) chama
a atenção para o fato desses
parece conceber o arquiteto em seu projeto, esperando apenas o momento em estudiosos da cultura material
que será ocupado por seus moradores. Um prédio ou uma casa “real” está viva, se estarem preocupados com
os processos de consumo e
transformando, se decompondo, sendo habitada por seres que não percebemos. não com a produção, o que
Assim, nesse sentido, ela nunca está pronta, mas sim envolvida em um perma- revelaria o interesse de tais
pesquisadores por objetos em
nente processo de transformação, o que exige de seus moradores um enorme alguma medida já cristalizados
esforço para a sua manutenção. A casa, assim como a árvore, “é uma reunião de e separados dos fluxos de
materiais e suas transformações
vidas, e habitá-la é se juntar à reunião – ou, nos termos de Heidegger, participar (cristalizações ou estabilizações
com a coisa na sua coisificação” (Ingold, 2012b: 30). Logo, somos parte e partici- que são sempre, vale
lembrar, provisórias).
pamos do processo de transformação das coisas, ajudando a confeccionar o mundo
que habitamos. Habitar o mundo é, nesse sentido, participar de seu processo de
formação e transformação.
As coisas, além disso, não podem ser pensadas fora de seus ambientes. Fazer
isso implica tirar-lhes a vida, cortar seus movimentos. Um pássaro não pode
ser entendido isolado do ar que o possibilita voar. O mesmo vale para o peixe
caso seja retirado da água. Pois “o pássaro é o seu voar; o peixe, o seu nadar”
manência e continuidade de toda a vida. “Elas não são, em si, linhas de interação.
Se essas linhas são relações, então elas são relações não entre, mas ao longo de”.
Assim, a teia da vida (bem como a da aranha) é formada por múltiplas linhas de
crescimento que estão “enredadas em um centro mas deixando inúmeras ‘pontas
soltas’ nas periferias”. Independentemente da imagem ou metáfora escolhida, a
ênfase deve estar “no caráter fluido do processo vital, onde os limites são susten-
tados graças ao fluxo de materiais através deles” (Ingold, 2011: 85-86).
A ideia de processo vital também serve de base para a crítica que Ingold
(2001; 2008) realiza aos propagadores da tese da complementaridade3. Estes, 3 Sem mencionar nomes
específicos, Ingold (2008)
em seu entendimento, não são capazes de oferecer uma explicação coe- direciona sua crítica aos
rente que leve em conta o processo de desenvolvimento ontogenético que propositores e praticantes das
assim chamadas “biologia
perpassa qualquer organismo vivo. Ao contrário, tal argumento sugere que evolucionista”, “ciência
os seres humanos são em parte pré-constituídos geneticamente, em parte cognitiva” e “teoria cultural”.
Concebendo o humano como um ser que ocupa dois lugares distintos, a tese da
complementaridade advoga que todo ser humano é uma pessoa social e um orga-
nismo natural. Ao contrário, na abordagem da obviação o ser humano é tratado
como um todo pessoa-organismo que habita um ambiente cercado por outros
seres, humanos e não-humanos. Logo, nós não formamos ou participamos de
um universo social separado de um “reino natural”, mas habitamos um mesmo
ambiente constituído por um complexo sistema de relações, sendo atravessado
por inúmeras linhas ou forças, que nos conectam e nos afetam. Tal ambiente, e
a maneira como nos relacionamos e interagimos com ele, é o que torna possível
o desenvolvimento de nossa percepção, nossa memória e nosso aprendizado
(Ingold, 2008).
Assim, em última instância, as formas e as capacidades humanas (e de ou-
tros organismos não-humanos) não são atributos, por exemplo, de uma herança
genética, e sim das potencialidades criativas do sistema em desenvolvimento, ou seja,
do sistema inteiro de relações constituído pela presença da “pessoa-organismo”
em seu ambiente concreto. Desse modo, não existe algo como uma natureza
humana, ou uma essência pré-programada e separada da realização de nossas
atividades no tempo e no espaço real, justamente porque nossas habilidades
e potencialidades não estão dadas ou fixadas em um passado anterior, mas,
ao contrário, continuam evoluindo e sendo criadas no decurso de nossas vidas
diárias. Em resumo, trata-se das habilidades práticas incorporadas e apreendidas no
decorrer de nossa vida, isto é, do nosso processo de desenvolvimento enquanto
organismos vivos envoltos em um ambiente de relações com outros organismos
humanos e não-humanos.
O que teoricamente serviria de base conceitual e filosófica para ambos os
modelos analíticos questionados – tanto o da cultura material como o da tese da
complementaridade – seriam as já mencionadas distinções e/ou polarizações
entre natureza e cultura, corpo e mente, forma e substância, matéria e espírito,
ser e ambiente, indivíduo e coletivo, e assim por diante (Ingold, 2008, 2012b).
Tais teorias percebem o ambiente de maneira indireta, ou seja, as pessoas não
acessam o mundo diretamente tendo que construi-lo através da matéria-prima
adquirida a partir dos sentidos. Fazendo isso, aponta Ingold, tais modelos pos-
a unidade sagrada
Gregory Bateson, assim como Ingold, também parece estar à procura da vida.
Mais exatamente, ele está em busca do “padrão que liga todas as criaturas vivas”. 4 Harmonia, nesse caso,
refere-se muito mais a um
O padrão que liga, outro título possível para o seu livro Mente e Natureza, afirma: sentido musical (ou estético)
“Que padrão relaciona o caranguejo à lagosta, a orquídea à prímula e todos os atribuído à palavra – isto é,
à combinação de elementos
quatro a mim? E eu a você? E nós seis à ameba em uma direção e ao esquizofrê- ou sons que produzem uma
nico retraído em outra?” (Bateson, 1986: 16). Perceber tal padrão demandaria determinada relação ou
sensação estética – do que a
uma sensibilidade estética e uma compreensão para a natureza harmônica4 das uma ideia que pressuponha
coisas vivas, ou seja, uma atenção para as formas, os contornos, as repetições, as qualquer ausência de
conflito ou tensão. Dito de
relações entre as partes que compõem e caracterizam as coisas vivas. A anato- outra forma, tanto uma
mia do corpo humano, bem como de todos os seres vivos, é rítmica e repetitiva. relação de cooperação
quanto de competição pode
“O úmero no antebraço corresponde ao fêmur na coxa, o rádio-cúbito correspon- ser caracterizada como
de à tíbia-perônio; os ossos no pulso correspondem aos do tarso no pé; os dedos “harmônica” visto que a ênfase,
segundo esse entendimento,
da mão correspondem aos dedos do pé” (Bateson, 1986: 16-17). Tais conexões, estará centrada na sensibilidade
comparações e repetições são denominadas pelos biólogos de homologia seriada estética proporcionada por um
olhar atento à relação entre as
e a necessidade de produzir uma reflexão e uma consequente generalização so- coisas e não às coisas em si.
bre tais relações e conexões é o que permitirá alcançar (e pensar sobre) o padrão
formam uma necessária unidade, de modo que inexistiria, tal como pressupõe o
dualismo cartesiano, uma mente separada de um corpo ou mesmo um Deus se-
parado (transcendente) de sua criação. Trata-se da ideia de um “mundo integra-
do”, bastante presente, inclusive, na filosofia romântica alemã dos séculos XVIII
e XIX (Gusdorf, 1984). Tal ideia, no entanto, foi aos poucos abandonada pela
explicação científica racionalista, culminando na total separação entre mente e
matéria e na ausência de qualquer formulação que levasse em conta as possíveis
relações entre ambas. O ápice dessa percepção foi no século XIX, especialmente
a partir da publicação de A origem das espécies (1859), de Charles Darwin, quando
tentou-se excluir definitivamente a mente como um “princípio explanatório” da
história natural. Contudo, Bateson (1986) lembra que, 50 anos antes, Jean-Bap-
tiste de Lamarck, em sua Philosophie Zoologique (1809), fazia um interessante uso
da ideia de mente como explicação para o processo de transformação e evolução
dos seres vivos. Invertendo a “grande cadeia da existência” apregoada por Santo
Agostinho, na qual a “Mente Suprema” estaria no topo da escala (sendo sucedida
pelos anjos, homens, macacos e demais seres), Lamarck sugere que a mente é
imanente (e não transcendente) às criaturas vivas, podendo determinar suas
transformações. Desse modo, segue argumentando Bateson, ele
Todavia, o interesse de Lamarck pela mente será deixado de lado pelas teorias
biológicas desenvolvidas nas décadas seguintes para ser retomado somente
após a Segunda Guerra Mundial, com o advento da cibernética e da teoria dos
sistemas e da informação (Bateson, 1976). Tais teorias, além de terem deslocado
a grande e persistente dicotomia cartesiana, contribuíram para oferecer outro
entendimento do mundo a partir de suas ligações ou conexões com seus aspec-
tos mentais.
De maneira concomitante, na tentativa de estabelecer uma epistemologia
e uma linguagem mais adequada para pensar o mundo que as proposições
cartesianas, Bateson recupera as ideias de Pleroma e Creatura trazidas, do gnos-
ticismo, por Carl Jung em seu Septem Sermones ad Mortuos. O primeiro termo
consistiria no mundo da matéria inanimada, não-vivente, descrito pelas leis da
física e da química, cujo os acontecimentos são causados por forças e impactos,
mas que em si mesmo não contém ou fornece distinções ou descrições sobre
o mundo. Nos termos de Bateson, trata-se de um mundo no qual não existem
diferenças, ideias, informações ou qualquer caraterística predeterminada. “A
pedra é afetada por ‘forças’ ou ‘impactos’, mas não por diferenças. Eu posso des-
crever a pedra, mas a pedra não pode descrever nada. (...) A pedra não usa nem
contém nenhuma informação” (Bateson e Bateson, 1987: 30). A Creatura, por sua
vez, seria o mundo da explicação e representação de fenômenos governados
por diferenças, distinções e informações. Trata-se do mundo da linguagem e
das diferenças que permitem descrever ou traduzir as regularidades imanen-
tes ao Pleroma. Este, porém, apesar de existente, continua sendo em si mesmo
inacessível. Nesse sentido, o conhecimento (virtual) sobre o Pleroma só seria
possível de se realizar (ou de se atualizar) por meio da Creatura. Em que pese a
aparente dualidade existente no modo como tais categorias são apresentadas,
Bateson afirma que não podemos tratar o Pleroma e a Creatura como dois níveis
ou dimensões separadas, mas sim combinadas, visto que tudo o que pertence
à Creatura existe dentro do Pleroma, e este último depende daquela para ser de
alguma maneira acessado. Assim,
nos tem levado a tratar o meio ambiente natural – a teia da vida – como se ele
consistisse em partes separadas, a serem exploradas comercialmente, em bene-
fício próprio, por diferentes grupos. Além disso, estendemos essa visão fragmen-
tada à nossa sociedade humana, dividindo-a em outras tantas nações, raças,
grupos religiosos e políticos. A crença segundo a qual todos esses fragmentos
– em nós mesmos, no nosso meio ambiente e na nossa sociedade – são realmente
separados alienou-nos da natureza e de nossos companheiros humanos, e, dessa
maneira, nos diminuiu. Para recuperar nossa plena humanidade, temos de recu-
perar nossa experiência de conexidade com toda a teia da vida. Essa reconexão,
ou religação, religio em latim, é a própria essência do alicerçamento espiritual
da ecologia profunda (1996: 217).
Assim, contra essa lógica fragmentária e potencialmente destrutiva8, Bateson 8 Algo que, num certo
sentido, corresponde à
propõe uma nova forma de pensar, uma outra epistemologia, envolvida em mais diferenciação que Ingold
humildade e sabedoria e, porque não, menos consciente e propositiva; uma episte- (2012c) estabelece entre ex-
habitantes e in-habitantes, isto
mologia em que a “mão esquerda” nem sempre saiba o que a “mão direita” anda é, entre aqueles que ideológica
fazendo9. Agir com sabedoria significa estar atento ao sistema interativo como um e ontologicamente se
consideram fora ou separados
todo, atento a suas relações e transformações, reconhecendo a dimensão sistê- do ambiente que habitam, o
mica dos organismos, da vida e do mundo (Bateson, 1976: 296). Tais dimensões que supostamente lhes daria o
direito de explorá-lo, utilizá-lo,
ou forças sistêmicas podem ser chamadas de mente ou, simplesmente, Deus. fragmentá-lo e até destruí-lo,
Agir com mais humildade e menos arrogância, afirma Bateson, é perceber que e aqueles que, por outro lado,
se percebem enquanto partes
nós fazemos parte desse sistema maior, que nós somos parte de Deus, e que não inerentes ou inseparáveis do
podemos controlá-lo. “Não vivemos em um universo que permite um simples mundo da vida, que estão (e
são) organicamente dentro do
controle linear. A vida não é assim” (1976: 299). E mesmo dentro do ser humano mundo.
individual o controle é limitado. Podemos aprender uma série de coisas abstra-
tas, “mas de nenhuma maneira somos os capitães de nossa alma” (1976: 300). 9 Tal argumento, inspirado
numa passagem bíblica, foi
Trata-se, nesse sentido, de uma perspectiva que seja capaz de perceber a uni- desenvolvido por Bateson
dade das coisas, o indivíduo em sua totalidade, o ser em seu ambiente, tal como (1987) em um dos capítulos
do livro Angels Fear: Towards
fazem, na visão de Bateson, a arte e a religião. Tanto uma como a outra perce- an Epistemology of the Sacred,
bem o mundo de uma maneira unificada ou holística, e não dualista, referem-se quando sugeriu que o processo
de tornar consciente, de
ao todo, e não às partes (2006:378). Ambas, a estética e a sacralidade, estão mais controlar ou de comunicar
atentas às relações que às coisas e seus atributos. Tanto a arte como a religião (propositadamente) uma
determinada ideia nem sempre
dão grande valor aos silêncios, às pausas, à contemplação, à não-verbalização e se faz necessário se o que
à inconsciência, pois sabem que comunicar uma ideia a alguém implica inevita- está em jogo é, sobretudo,
o desenvolvimento de
velmente transformar a natureza daquela ideia (e daquele alguém). Finalmente, experiências baseadas numa
as duas, de diferentes maneiras, potencializam experiências criativas nas quais a percepção sistêmica ou sagrada da
vida e do ambiente.
consciência desempenha um papel apenas secundário.
Bateson compreende a religião ou, mais exatamente, o sagrado como uma
síntese fantástica, uma ponte, que conecta todas as coisas, produzindo um
modo de dar um sentido à vida. Em seu entendimento, tal dimensão tem sido
cada vez mais maltratada pela sociedade ocidental que tem feito uso dessa
ponte sagrada com o único propósito de “vender coisas”, perdendo assim o
sentido de unidade estética e sagrada do mundo (2006: 340). Trata-se de um
engano epistemológico que ainda pode ser corrigido, pois “ainda existe pelo menos
um impulso no coração humano no sentido de unir e dessa forma santificar o
completo mundo natural a que pertencemos” (1986: 26).
Um modo de conhecimento que atribui um caráter sagrado à organização
do mundo biológico pode ser mais preciso e mais apropriado para tomar deci-
sões que um modo de pensar baseado exclusivamente em propósitos conscien-
tes. E apesar de relacioná-lo com a parte do cérebro ligada à poesia, aos sonhos e
às emoções, Bateson (1987: 9) sugere que, na verdade, o sagrado é a união e não o
produto da divisão de duas dimensões ou de dois modos de conhecimento, um
A autorregulação que caracteriza esse mundo vivo foi algo notado não só por
Bateson e Ingold, mas também por outros pensadores sistêmicos, antes mesmo
da cibernética. Baruch Spinoza (2007 [1677]), com a ideia de conatus, talvez tenha
sido um dos primeiros a perceber a capacidade ou o impulso natural dos organis-
mos para persistirem em seus próprios seres. Os organismos são, portanto, sistemas de
autorrealização. Os genes, nesse mesmo sentido, são sistemas automantenedo-
res; os ecossistemas são autorregulados; o universo é considerado um sistema
autorrealizado. Tal autorrealização das coisas é também um ato de autotrans-
formação (Milton, 2002: 85), algo que certamente se aproxima das ideias ingol-
A partir do que foi exposto até agora, e inspirado em tais autores, diríamos que
perceber o universo, as coisas, os seres e a si mesmo de uma maneira sagrada
significa estar atento às continuidades, às conexões, aos fluxos que percorrem,
unificam e atravessam todo o ambiente. Significa estabelecer conexões ou (re)
ligações entre diferentes planos ou dimensões e entre os próprios seres hu-
manos (e não-humanos). Pensar com sagrado ou sagradamente significa (re)
ver ou (re)ler o ambiente de uma forma mais atenta, traçando continuidades
simétricas entre todas as coisas encontradas no mundo vivido e, ao mesmo
tempo, percebendo suas diferenças e variações. Dito de outra maneira, per-
ceber o ambiente, as coisas ou as situações da vida cotidiana de uma forma
sagrada, implica um modo específico de ver e agir sobre o mundo. Nesse sen-
tido, o sagrado refere-se mais a um modo singular de ver (ou ler) as coisas que
propriamente às coisas em si; refere-se, enfim, a um modo de ver que procura
ir além do que comumente se vê.
A ideia de ler ou reler o ambiente de uma maneira específica, mais atenta, se
relaciona a um dos possíveis sentidos etimológicos presentes na palavra religião
(cf. Azevedo, 2010). De raiz latina, o substantivo religio seria originalmente deriva-
do do verbo relegere que significaria ler novamente, com cuidado, mais devagar,
procurando perceber aquilo que não fora percebido numa primeira leitura, num
primeiro olhar desatento. Significaria, nesse sentido, ler com uma atenção voltada
para a relação entre coisas, entre as palavras, entre as linhas, e não às coisas em si. E será
essa ênfase à atenção e à relação que possivelmente dará margem a uma outra
interpretação para origem do mesmo vocábulo. Trata-se de religare, definido
como religar, unir, juntar algo que havia sido perdido ou esquecido (no caso, o vínculo
que liga a humanidade à divindade). Assim, tanto num caso, quanto noutro, o
que está em jogo é uma espécie de atenção à relação entre seres, coisas, palavras,
dimensões e etc., ou seja, uma educação do olhar que estimula uma outra forma
de perceber (ou “reler”) essas ligações que existem, mas que por alguma razão (ou
por algum “propósito”) foram esquecidas ou negligenciadas numa primeira leitura.
Aliás, o contrário da religião ou do relegere, lembra Ingold, “não é o ateísmo,
não é a falta de crença, e, sim, a negligência, negligere, não prestar atenção ao
mundo, não ser aconselhado pelo mundo, não estar preparado para aprender
com as coisas que estão à nossa volta” (ênfases minhas, apud Bonet et al, 2014:
307). Assim, acrescenta o autor, a religião ou o sagrado envolveria, em última
instância, uma questão de “comprometimento ontológico”, um modo diferencia-
do de ser, perceber, conhecer e se relacionar com tudo aquilo que nos cerca.
Em um sentido epistemológico ou “epistemontológico” (visto que, para tais
autores, ser e conhecer correspondem a um único processo), a ideia de uma per-
cepção sagrada do ambiente, tal como imaginamos, apostaria na potencialidade
do conceito de sagrado desenvolvido por Bateson – ou seja, no sagrado pensado
palavras finais
nós nunca tenhamos sido). Na Idade Média, lembra Ingold, as coisas eram bem
diferentes; a imaginação não ocupava um domínio separado da vida real; dragões
(e outros seres “mais-que-humanos”) existiam e nos aterrorizavam não como um
elemento pertencente ao mundo natural, mas sim como um fenômeno da expe-
riência humana que é tão real quanto a expressão de quem sofre ou sente medo
(Ingold, 2012d: 19). Ver esses seres e ouvir o que eles têm a dizer para nós, huma-
nos, envolve uma outra maneira de perceber e imaginar o mundo; envolve, portanto,
uma outra maneira de ser e saber. Um saber que depende do ver, um saber ver. Assim,
por exemplo, um monge beneditino, atormentado por dúvidas e inseguranças em
relação ao caminho que deveria seguir, só foi capaz de ver o dragão que há tempos
o acompanhava quando deixou de olhar com os sentidos físicos e adotou uma
outra percepção, uma outra maneira de ver (além). Para ele, e também para os povos
“não-modernos”, o dragão e todos os seres que habitam o universo não são recur-
sos analógicos ou metáforas que representam alguma coisa, mas sim interlocutores
vitais. Trata-se de um universo poliglota: “um híbrido de vozes pelas quais diversos
seres, em suas línguas diferentes, enunciam sua presença, são sentidos e fazem seu
efeito”. E para sobreviver, ou melhor, para saber viver, devemos aprender a nos “sin-
tonizar com essas vozes, ouvir e reagir ao que elas lhe dizem” (Ingold, 2012d: 21).
Tal sintonia envolve uma forma de aprendizado, uma educação da atenção (Ingold,
2000, 2015), que implica o estabelecimento de uma relação de comunhão, afeto e
empatia com esses outros seres. Implica, portanto, um movimento de abertura de si
em direção ao ambiente.
Na Idade Média, especialmente nos contextos religiosos, o ato de ler pressu-
punha necessariamente uma leitura em voz alta, atenta às linhas, ou mais exa-
tamente, às entrelinhas, isto é, ao conjunto do que é dito e ao sentido implícito
contido no texto. Tratava-se de estar atento às “vozes das páginas”, procurando
ouvir, imaginar e se aconselhar com os diferentes personagens ou as diferentes
criaturas encontradas no decorrer da leitura. Ler, no sentido medieval, era com-
parado ao trabalho de um caçador que, em sua caminhada, ouvia as “vozes da
natureza” para tentar encontrar aquilo buscava. O exercício da leitura, nesse sen-
tido, também envolveria uma caminhada, um movimento em direção a algum
lugar ou a alguma experiência (nesse caso, uma experiência sagrada). No entan-
to, aponta Ingold, a reforma protestante e, posteriormente, o pensamento cien-
tífico (apoiado, em termos gerais, na ideia de propósito consciente e na distinção
entre fato e imaginação) silenciaram o texto no intuito de encontrar o sentido
literal ou a verdade que ele supostamente carregava. Mais que isso, a ciência
moderna, no seu gigantesco projeto de classificação ou taxonomização da
realidade, acabou por silenciar a própria natureza, transformada agora em um
objeto não só de sua atenção, mas principalmente de seu controle. Preocupada
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abstract keywords
In this article we intend to introduce some of the main notions and conceptua- Ingold, Bateson,
lizations elaborated by two influential British anthropologists: Gregory Bateson Sacred, Ecology,
(1904-1980) and Tim Ingold (1948-). Throughout the text, articulating a reflec- Cybernetics.
tion around certain categories developed by these authors, we will propose the
idea of a sacred perception attentive to the relations that cross and constitute all
the beings and things that inhabit the world. A way of perceiving, knowing and
engaging with the environment that does not give up dreams and imagination
to conceive other possible ways of living the life and to correspond with every-
thing that surrounds us.