Psicoterapia Infantil - Uma Abordagem Junguiana

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Psicoterapia Infantil: urna abordagem Jungulana*

JOSÉ HÉRCULES GOLFETO**

Neste trabalho, o autor comenta a importância das técnicas em psicoterapia


infantil, da relação analista-analisando, da relação transferencial e con~­
transferencial e, ainda, outro fator decisivo na psicoterapia, que é a relação
ego-self. Resume os pripcipais conceitos junguianos (self, inconsciente pessoal
e coletivo, consciente, ego, integração, reintegração, deintegração, arquétipos,
anima, animus, sombra, participação mística). Descreve, ainda, as principais
diferenças entre as técnicas psicoterápicas infantis junguianas. llustra esse
trabalho, através de sua experiência clínica, no relato de um caso, tentando
demonstrar sua técnica de trabalho sob o ponto de vista junguiano, usando a
forma de terapia não-interpretativa, através de desenhos e sand-play.

Existe uma verdade básica acerca das técnicas psicoterápicas: "A técnica correta
nas mãos de pessoa errada não funcionará, ao passo que a técnica errada nas mãos
da pessoa certa funcionará" (HalI).
Nenhuma técnica é inteiramente adequada, pois a equação pessoal analista/ana-
lisando é mais importante. É dentro desta relação que se deve realizar todo o tra-
balho. A relação terapêutica é onde ocorre o processo de transformação ou cura.
Esta relação deve ser hennética e a dois, caso contrário não será uma relação te-
rapêutica.
No trabalho em psicoterapia com crianças considera-se as relações transferên-
cias. É importante estar atento às sutilezas psicológicas envolvidas no encontro te-
rapêutico e, especialmente, àquelas que ocorrem no relacionamento íntimo entre o
terapeuta e a criança. Como afmna Michael Fordhan (1969): "O interesse clínico
deve estar voltado para a observação da transferência e contratransferência". Esta
relação terapeuta-criança deve ser entendida o máximo possível. Durante as
sessões, esse fenômeno transferencial não é necessariamente interpretado, mas sim
vivenciado, num nível de compreensão pré-verbal, semelhante àquele estado de
compreensão mãe-criança durante o primeiro ano de vida. São esses vínculos
emocionais, que surgem de forma particularmente projetiva entre paciente e tera-
peuta e vice-versa, fundamentais ao processo de transformação da criança.
Além dessa relação, outro fator decisivo naj>sicoterapia, segundo Kalff (1980),
é a relação ego-self. O que é esta relação ego-s.elf? O self, na teoria junguiana, re-
presenta a totalidade da psique. O self é também denominado "si-mesmo". Ele

* Trabalho realizado no Departamento de Neuropaiquiatria e Psicologia Médica da Faculdade de Medicina


de Ribeirão Preto - USP. (Apresentado à Redação em 29.4.88.)
** Professor livre-docente da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP. Departamento de Neuropai-
quiatria e Psicologia Médici! • (Endereço do autor: Rua Paulo Tinoco Cabral, 433 - 14.100- Ribeirão Preto,
SP.) .

Arq. bras. Psic., Rio de Janeiro, 41(3)79-94, 3!! trim. ago. 1989
constitui a soma de todas as particularidades do consciente e do inconsciente. O
"si mesmo" dirige o processo de desenvolvimento psíquico. É representado na
psique por imagens; por exemplo, quando se fala em fé, está se expressando uni
sentimento acerca do "si-mesmo", a imagem pode ser uma cruz ou altar. O self
representa. um conceito cuja essência só pode constituir-se teoricamente a partir de
dados empmcos.
Por outro lado, o ego é mais acessível a uma verificação direta, sendo sua prin-
cipal característica a reorganização dos fatos, atividade essa que se dá na cons-
ciência. A princípio, o ego desempenha um papel rudimentar na vida da criança e
vai paulatinamente desenvolvendo-se; é capaz de perceber acontecimentos inter-
nos e externos. O ego surge do self. As suas aparições indicam freqüentemente
uma necessidade de estabilização do ego, dado que tende a existir uma relação
recíproca entre a estabilidade do ego e a manifestação do "si-mesmo" numa forma
estável. Se o ego está confuso, em desordem, é mais provável que o "si-mesmo"
se apresente numa forma ordenada, como uma mandala. Ele é o centro ordena-
dor-organizador da psique como um todo e muito relacionado com o ego, que é o
centro da consciência. Os mecanismos de defesa provêm do self. Por exemplo,
quando o ego de um indivíduo está desorganizado devido a uma situação de vida
qualquer, ele pode sonhar com a voz de Deus, uma voz que vem de todas as par-
tes lhe dizendo: "Você está no caminho errado"; esta voz é uma manifestação do
"si-mesmo". Essa relação é chamada de eixo ego-self. É a relação contínua entre
ego e self. O self é o centro da psique que se relaciona com o ego, que é o centro
da consciência. Admite-se que essa relação dinâmica constitui a característica
fundamental do self. Assim, o ego vai crescendo sobre a base desse processo.
No crescimento do ego, a diferenciação desses sistemas e a inter-relação dos
mesmos - ou seja, ego e self - se acha em conexão com o desenvolvimento da
imagem corporal. Neste processo, desempenham um papel de máxima importância
as zonas erogenas e a libido cutâneo-muscular. As relações objetais das partes do
corpo no lactente proporcionam núcleos de crescimento em virtude da interação
ego- "si-mesmo".
A primeira adaptação da criança no seu desenvolvimento é o controle oral e,
depois, o controle anal. A relação entre as zonas er6genas oral e anal é facilitada,
não somente pela percepção de que a mãe se comporta frente às necessidades da
criança entre estas duas fases, como também pela percepção dessa interdependên-
cia por parte do lactente. A reação da mãe frente às atividades libidinosas e agres-
sivas do lactente, na ingestão de alimentos e nos processos excret6rios, e como ela
acolhe nos braços a criança são de grande importância para a formação de uma
imagem corporal completa. Tudo isso é fundamentaI para as representações sélfi-
cas em relação ao meio ambiente. O controle dos processos excret6rios proporcio-
na à criança uma sensação de domínio sobre o seu corpo, sobre o meio ambiente e
mundo interno. Ao vivenciar a superfície do corpo no processo de inter-relação
com a mãe, quando esta toma-o em seu colo e o acaricia, vai adquirindo a sen-
sação de ser um "si-mesmo" distinto dos outros (Erich Neumann, 1973).
A relação da mãe frente às necessidades da criança é fundamental para o tipo e
forma em que o recém-nascido experimenta o "si-mesmo" em relação ao mundo
externo. Erich Neumann (1973) chamou esta fase de unidade mãe-filho, na qual a
criança deve sentir uma segurança natural através do amor, proteção e outros cui-
dados maternais.
É após o primeiro ano de vida que o self da criança - ou o centro da personali-
dade - se separa da mãe. Inicia-se, então, o segundo ano de vida, a criança está se

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separando da unidade original e vai experimentando cada vez mais um relaciona-
mento com a mãe. A segurança que brota deste relacionamento é a base para a ter-
ceira fase de vida da criança que se inicia por volta do final do segundo e início
do terceiro ano de vida. Durante esta fase, o self se estabiliza no inconsciente da
criança e começa a se manifestar através de símbolos de totalidade. Assim, a
criança então brinca, desenha, pinta, comporta-se e fala na antiga linguagem
simb6lica, com a qual o ser humano tem expressado, quer consciente ou incons-
cientemente, através de todos os estratos de cultura, esta totalidade, o "si-mesmo"
ou self. A manifestação do "si-mesmo" é o momento mais importante do desen-
volvimento da personalidade. Esses símbolos são, por exemplo, figuras humanas,
figuras de contelfdos divinos, como as figuras de Cristo, Buda, etc., ou são de na-
tureza geométrica ou numérica tal como o círculo, o quadrado e o quatro. Acei-
tamos a validade destes símbolos da totalidade da psique humana porque ocorrem
em todos os locais sem exceção, desde os primórdios da humanidade e em todas as
culturas.
Os súnbolos são especialmente o círculo e o quadrado. O círculo, notadamente
na qualidade de "um símbolo da totalidade e do ser perfeito". O quadrado aparece
com mais freqüência quando a totalidade está se desenvolvendo. Jung demonstrou
e discutiu o símbolo da mandala, ou seja, o círculo e o quadrado. De acordo com
Jung, uma mandala é um envolt6rio mágico, são paredes protetoras, elas previnem
um rompimento e uma desintegração psíquicas. Isto é concebido como um perigo
para a alma. As mandalas aparecem quando um novo elemento está para ser inte-
grado à consciência. Os contelfdos de uma mandala completamente desenvolvida
são variáveis e são organizados em tomo de um centro. O espaço do centro e a
circunferência são divididos de várias formas. O mimero mais freqüente e estável
das divisões é quatro ou um mlfltiplo de quatro. Segundo Jung (1976), em seu tra-
balho Tipos psicológicos, eles representam a estrutura de quatro partes - quaterná-
rias - da psique. Para Kalff (1980), a entidade "quatro" aparece antes do símbolo
do círculo ou ligado ao círculo. Fordhan (1969) relata que um menino de um ano
fazia garatujas nas paredes de seu quarto. Depois, ele passou a desenhar movi-
mentos circulares com os quais ele se preocupou, excluindo todo o resto, e gra-
dualmente emergiram inlfmeros círculos mais ou menos perfeitos. Por algumas se-
manas isso continou e então um dia, como por revelação, ele descobriu a palavra
"eu". Aí ele parou de desenhar. A relação temporal entre a descoberta do círculo
e a do "eu" sugere que o círculo representava a imagem da matriz básica do self
da qual o ego surgiu. Parece então que a criança pequena identifica a palavra
"eu" com o círculo. Não precisamos aceitar que signifique um "eu" no sentido de
um ego organizado, mas uma conscientização de si-mesmo como um todo, como
um círculo. É um estado de totalidade de integração que, de acordo com seu ponto
de vista, indica que o ego e o self existem juntos como um eixo self-ego.
Kalff (1980) relata que estudou, durante muitos anos, milhares de pinturas que
foram feitas por crianças entre dois e quatro anos de idade. Um enorme nlfmero
destes quadros mostra estes bem conhecidos símbolos de totalidade. Tais símbolos
as crianças também os usam para expressar-se, comunicar-se. O círculo não é ape-
nas uma forma geométrica é também um símbolo.
Kalff (1980) revela que a manifestação do self, essa ordem interna, esse centro
da personalidade, é a mais importante "no desenvolvimento da personalidade, por-
que é o centro regulador da psique.
Tem-se elaborado teorias do selfna criança e desenvolvido técnicas de psicote-
rapia infantil I?aseados na relação ego-self.

Psicoterapia infantil 81
A identidade primitiva ou a participação mística (expressão cunhada pelo an-
tropólogo Lévy-Bruhl, denotando uma conexão psicológica primitiva com objetos
ou entre pessoas, resultando um forte vínculo inconsciente), segundo Hall (1983),
deriva essencialmente da notória inconsciência da criança pequena. O inconscIen-
te significa não-diferenciado. Não há, ainda, uma clara diferenciação do ego. A
idéia de identidade primitiva é significante por uma particular razão; "o conceito
pode ser usado para defmir como o inconsciente dos pais in filtra-se através da
psique da criança e a força a viver ou agir através dos problemas de seus pais; as-
sim a criança sonha os sonhos dos pais, fantasia as fantasias dos pais. É diferente
das identificações posteriores das crianças, aqui os limites, ou seja, a relação
mãe-criança, estão definidos e claramente marcados."
O ego cresce do self. A princípio existem fragmentos de consciência do ego - é
um estado pré-consciente - que se unem para formar um centro egóico. É o self
que integra estes fragmentos e produz o centro da consciência, que é o ego. É ine-
vitável que ego e self fiquem numa relação estreita. Assim, através do desenvol-
vimento do ego, ocorre a integração da consciência.
O "si-mesmo", divide-se espontaneamente. É uma propriedade dele. Surge um
desejo da totalidade de tomar-se consciente; esta divisão do "si-mesmo" é chama-
da de deintegração. Os deintegrados do selfrepresentam uma prontidão para agir ins-
tintivamente. Isso difere da desintegração, que é uma condição do ego com despe-
daçamento em numerosos fragmentos. O termo ··desintegração" é uma condição
em que o ego integrado regride muitas vezes e isso nem sempre é necessariamen-
te catastrófico. A criança inicia sua vida extra-uterina com um ego rudimentar. São
os impulsos libidinosos e agressivos que colocam o recém-nascido em relação com
os objetos externos, sendo o mais importante o seio da mãe. A criança e o seio
não estão diferenciados entre si. A vivência é de fusão ou de identidade primitiva,
como já dissemos. Os impulsos libidinosos e agressivos levam à desintegração da
identidade primitiva e só ocorre a reintegração quando os mesmos são satisfeitos.
Admite-se que essa seqüência dinâmica de integração-desintegração e reinte-
gração constitua uma característica fundamental do self. Este processo, com a ma-
turação da criança, vai se expressando de uma forma mais complexa, que pode até
levar à cisão do ego, ocorrendo com isso um estado patológico e impedindo a
reintegração. Por exemplo: quando se separa a criança da mãe antes que a criança
possa fazer isso por si SÓ, ocorre a mesma ansiedade de separação. Quando essa
situação não é manipulada de forma que a base essencial de conscientização seja
desenvolvida, o ego da criança separa-se do self. A reintegração é necessária, para
a saúde mental da criança. Ela pode ocorrer espontaneamente ou com tratamento.
Durante a psicoterapia, a criança regride a situações precoces até a época em que
as fantasias não se diferenciam da realidade - o estado de identidade primitiva. A
regressão conduz a uma situação mais clara das diferenças entre o passado e o
presente, entre a fantasia e a realidade, isso é revivenciado na relação transferen-
cial com o terapeuta. Se a reintegração não ocorrer, a criança fica num nível de fi-
xação e regressão que serviria de base para futuras psicopatologias.
Quando ocorre a regressão, o paciente se comporta como um lactente e experi-
menta sentimentos próprios da lactância, podendo reconhecer, através da re-
gressão, que não é apenas um lactente mas também uma criança maior.
Assim o ego vai crescendo sobre a base do processo de integração-desinte-
gração. A partir deste processo, surgem os arquétipos. O que são eles? Os arqué-
tipos são imagens ou símbolos coletivos, são conteúdos do inconsciente coletivo,
que é o paralelo do instinto. Têm sua origem no self, emanam dele. Surgem pelos

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efeitos desintegradores dos instintos. Seus efeitos J;JUlDifestam-se na consciência
com imagens ou idéias arquetípicas. São padrões ou motivos universais que pro-
manam do inconsciente coletivo. As camadas pessoais da psique se assentam, em
fundação arquetípica, na psique objetiva ou inconsciente coletivo. A esferapes-
soal, tanto consciente como inconsciente, desenvolve-se a partir do inconsciente
coletivo. Em termos estruturais, cada complexo na esfera pessoal é formado a par-
tir de uma matriz básica arquetípica do inconsciente coletivo.
No âmago de qualquer complexo está o arquétipo, isto é, o complexo é um gru-
po de idéias ou imagens carregados de emoção. No centro de cada complexo está
uma imagem arquetípica. Por exemplo, por trás do complexo matemo pessoal está
o arquétipo da grande mãe. Cada complexo da psique pessoal se assenta em base
arquetípica na psique objetiva. Por exemplo, se o ego está pronto a experimentar
sua conexão com o "si-mesmo", forma-se o eixo ego-self e, daí em diante, o ego
terá uma percepção mais duradoura de sua relação com o próprio nucleo da psi-
que. Mas se o ego for fraco, ou não desenvolvido, e tiver uma experiência de vi-
da, poderá ser assimilado e ocorre dessa forma a arrogância psíquica e perda de
um claro ponto de apoio na consciência ou até psicose.
Jung desenvolveu uma teoria segundo a qual o inconsciente coletivo tem for-
mas arquetípicas características, já que no inconsciente pessoal se encontram os
desejos, emoções recalcadas e percepções subliminares de natureza pessoal.
Durante anos de desenvolvimento a criança vai adquirindo, introduzindo na
corrente de sua vida, o coletivo. A vida em sociedade atua no menino de forma
indireta através de seus pais; mais tarde também deixa-se influenciar por outros
meninos e professores.
Como cada criança vai lidar com essas influências externas vai depender de sua
própria maturação e da capacidade de assimilar a experiência e deste modo desen-
volver a sua personalidade e a imagem de "si-mesmo". Da mesma forma desen-
volve sua vida interna: suas fantasias e seu mundo simbólico; estes vão se desen-
volvendo de tal modo que a possibilita colocar sua vida pessoal em relação ao so-
cial.
A teoria junguiana, que situa as estruturas arquetípicas universalmente válidas
dentro do "si-mesmo", é de grande valor para o estudo tanto da infância como da
vida adulta.•No lactente e na criança pequena os arquétipos se manifestam como
figuras corporais que formam a parte da vida cotidiana. No começo essas imagehs
procedem daquelas partes do corpo que o adulto conhece, por exemplo, o peito, o
rosto, os braços, as pernas, etc. Tais representações desenvolvem-se paulatina-
mente, fundindo-se entre si. As representações de pessoas completas aparecem
mais tarde, posteriormente às representações dos objetos parciais.
Fordhan (1969) relata que as imagens arquetípicas mais claras e definidas p0-
dem ser encontradas na infância, tais como a ânima, ' o animus,2 a sombra, 3 mas
as imagens arquetípicas são interpretadas à luz da psicologia dos pais. Que tais
fenômenos ocorram não há dt1vida e resultam na identidade entre pais e criança.

t Anima: o lado feminino do inconsciente da personalidade do homem - é personificado no sonho por ima-
gem de mu1her. é o eros do homem. Por exemplo: estado de espírito, humor, efeminação.
2 ArWnus: lado masculino inconsciente da mu1her - é o logos da mulher e o homem interior. Pode-se mani-
festar allavés da mulher rígida, questiOlllldora.
S Sombra: uma parte incoDsciente da personalidade. é caracterizada por atitudes positivas ou negativas que
o ego COIIIIciente tende a rejeitar. O ego não quer ver essas potencialidades. A assimilação consciente da pro..
pria sombra resulla usua1mente em um aumento de energia psíquica.

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o aspecto cultural da teoria arquetípica nos permite deduzir conclusões singu-
larmente importantes, como o conceito bem fundado de que os transtornos psi-
cológicos e o desenvolvimento da criança não se acham deteniünados unicamente
pelo ambiente, mas também pela própria criança.
As imagens arquetípicas surgem a partir de influências externas. Por exemplo,
na época precoce, na vida de uma criança o peito matemo pode ser tanto alucina-
do como percebido enquanto objeto. Estes dois aspectos - ambiente e a própria
criança - têm sido de fundamental importância para a psicoterapia de crianças.
No trabalho psicoterapêutico infantil se considera as relações transferenciais e,
por outro lado, a manifestação do self é uma precondição necessária ao desen-
volvimento do ego sadio. No entanto, no caso de um desenvolvimento de um ego
fraco ou neurótico é suposto que a manifestação do self deixou de ocorrer. Isto pode
ocorrer devido ao fato de a proteção materna não ter sido possível ou carregada de
ansiedade ou porque a automanifestação foi destruída por influências externas, tal
como doença ou falta de compreensão por parte do meio ambiente na época do de-
senvolvimento mais remoto. Portanto, na terapia, deve-se criar oportunidade para
o self da criança se manifestar. E, através de transferência, protegê-lo e estabilizar
o relacionamento entre' o self e o ego (segundo Kalff, 1980). Isto porque acredita-
se que dentro de um relacionamento psicoterapêutico ocorre uma tendência natural
da psique de se organizar no momento em que se crie um local livre e seguro.
Neste local seguro, a criança expressa suas idéias, suas emoções e afetos, muitos
dos quais não são conscientes para ela. Esta é a razão pelo qual o terapeuta de
crianças utiliza um espaço para a terapia especialmente equipado com: água, fogo,
barro, mesa, material para desenho e pinturas, jogos, livros para se ler (história in-
fantil, ou conto de fada). Estes materiais devem estar facilmente ao alcance da
criança; sempre que ela desejar poderá apanhá-los, usá-los e de novo guardá-los.
A criança pode trazer brinquedos de sua casa, se assim desejar. Isto deve ter um
significado; um sentido para a criança de que os jogos que ela utiliza lhe perten-
cem e quando é o analista que oferece a ela o material lúdico deve sentir como as-
pectos parciais do analista.
Por outro lado, o terapeuta deve aceitar totalmente o paciente, de modo que ele,
como pessoa, torne-se parte de tudo que está ocorrendo na sala. Quando a criança
sente que não está sozinha, qualquer que seja a experiência pela qual estiver pas-
sando, ela deve se sentir livre, mas, ainda assim, protegida em todas as suas ex-
pressões. O tratamento da criança deve ser sentido pelo terapeuta também como
um presente, e muitos pacientes são, mesmo para nós terapeutas, verdadeiros pre-
sentes do céu. Através de um relacionamento de confiança e amor mútuo pode
ocorrer uma "participação mística", que cria a situação da primeira fase da vida
da criança, aquela da unidade mãe e filho. Esta situação psíquica estabelece uma
paz interior que contém o potencial para o desenvolvimento da personalidade to-
tal. Para a criança, o terapeuta é ao mesmo tempo, o espaço, a liberdade e os limi-
tes, segundo Kalff (1980).
Por essas razões de poder oferecer ao "si-mesmo" da criança, durante o trata-
mento, a possibilidade de organizar-se e manifestar-se, é, ao mesmo tempo, nos es-
forçarmos para protegê-Io na situação transferencial, e permitirmos a consolidação
crescente da relação entre o "si-mesmo" e o ego. Isto é possível porque forma
parte das tendências naturais do psiquismo a organizar o "si-mesmo" no momento
em que concede um bom relacionamento e um espaço protegido dentro da relação
terapêutica. Um ego sadio só pode se formar sob uma base de segurança. Em pre-
sença de um ego fraco não tem lugar a manifestação do "si-mesmo", o qual nor-

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maImente se observa pela primeira vez na idade de dois ou três anos. Surpreen-
dentemente verifica-se também na maioria dos casos que é possível recuperar em
qualquer fase da vida, independente da idade do paciente, a constelação do "si-
mesmo" que foi impossível na infância (Kalff, 1980).
"A manifestação do self ocorre quando os símbolos voltados para a totalidade
sejam corretamente compreen~idos pelo terapeuta. Tais símbolos constituem um
meio auxiliar que permite eliminar as dissociações neur6ticas, que devolvem a
consciência àquele ânimo e aquela atitude que a humanidade tem reconhecido co-
mo tendo efeitos curativos. Trata-se de 'representações coletivas', que desde os
tempos mais remotos tem possibilitado facilitai a necessária união do consciente e
inconsciente. Esta união não pode realizar-se intelectualmente pois a esfera instin-
tiva se rebela; isto ocorreria com a razão e a moralidade, ocorrendo então a re-
sistência. Toda dissociação que se enquadrar na categoria de neurose psicogênica
é devida a um conflito e o conflito só pode ser solucionado através de símbolos" ,
como descreveu Jung (1982).
Em grande parte, o símbolo incorpora um conteddo inconsciente que leva à
transcendência, ou seja, que transcende o sujeito para fora dele, que transcende os
limites da experiência possível, e o eterno alicerce que nos foi dado pela natureza.
Nós falamos dos conceitos fundamentais que orientam o trabalho do psicotera-
peuta de crianças. Na literatura, encontramos divergências quanto aos aspectos
transferenciais e interpretativos da relação criança-terapeuta. Estas divergências se
resumem aos seguintes aspectos: na terapia, para se ajudar no desenvolvimento
sadio da criança, em especial para o adequado crescimento do ego, são necessárias
relações interpessoais, ou seja, criança-terapeuta; aí deve-se considerar a relação
de transferência como meio mais importante da influência terapêutica, segundo
Fordhan (1969). Este autor considera o campo transferencial como o mais fecundo
para a investigação.
Para a psicoterapia infantil acredita-se que por meio do jogo a criança expressa
suas idéias, .emoções, muitas das quais não são conscientes para ela. Segundo
Fordhan (1969), utiliza-Se um pequeno ndmero de jogos essenciais. A utilização
dos jogos provoca um sentimento de onipotência na criança e este pode ser refor-
çado se se coloca à disposição da criança grande ndmero de jogos. Outra analista
infantil junguiana, Dora Kalff, preconiza exatamente o contrário, baseada na cha-
mada ..técnica do mundo". Fordhan (1969) acredita que o grande ndmero de jogos
pode estimular interessantes fantasias, mas dificulta e, inclusi ve, evita o surgimen-
to da transferência.
A interpretação durante os jogos com crianças tem-se mostrado outro importan-
te instrumento de que se dispõe para a terapia de crianças. Alguns autores analíti-
cos divergem quanto à técnica interpretativa. Acreditam que a criança não tem a
compreensão do adulto. Esta objeção nasce da idéia que se tem das interpretações
que se dá à criança e da dificuldade em si que tem a criança em entender e tirar
proveito da ajuda que o analista oferece mediante a compreensão da relação te-
rapêutica. Fordhan (1969) relata que, em sua experiência, as crianças não se bene-
ficiam com a interpretação. A segunda objeção ao processo interpretativo se refere
à idéia de que as simples liberação e objetivação da fantasia bastam para se ter
êxito terapêutico. Este método é justificado em grande parte pela sua afetividade
ou amor, e se baseia na idéia de que os arquétipos são objetivos por natureza e,
portanto, a interpretação de seus conteddos, no sentido transferencial pessoal e ar-
quetípico, diminuirá seu valor.
O sand-play é uma forma de terapia não-verbal e não-racional que atinge um

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profundo nível não-verbal da psique. Nesta modalidade psicoterapêutica, os pa-
cientes criam cenários tridimensionais, quadros, ou desenhos abstratos numa caixa
de areia, usando água e um grande mimero de miniaturas bem realistas.
Contrariamente à prática de análise verbal, as interpretações não são dadas
quando a criança executa uma atividade criativa com as miniaturas na areia. O te-
rapeuta é receptivo, mas faz apenas o mínimo de comentários, para não desviar o
que o paciente está fantasiando ou sentindo.
A psique tem uma tendência a curar a si mesma. A tarefa do terapeuta é procu-
rar o caminho para esta tendência, esse caminho pode ser encontrado no sand-
play.
No sand-play, a areia pode ser seca ou ámida. Se a areia for ámida, ela pode
ser moldada para fazer uma paisagem ou topografia. Coloca-se à disposição da
criança centenas de figuras de todo tipo possível para elaboração dos cenários. O
cenário representa um aspecto psíquico tridimensional. Assim o conflito
transpõe-se do mundo interior para o mundo exterior, e torna-se visível.
Nenhuma instrução é dada ao paciente. O que se faz é simplesmente encorajá-
lo a criar aquilo que desejar no sand-play. O paciente está livre para colocar as
suas fantasias, externar e tornar concreto o seu mundo interior numa representação
tridimensional.
O terapeuta acompanha a elaboração da criança na qual os símbolos emergentes
são compreendidos pelo analista. A compreensão, por parte do terapeuta, do con-
flito que aparece na representação reproduz a "participation mystique" , a unidade
original mãe-filho, o que por si s6 tem uma influência terapêutica. Este efeito te-
rapêutico aparece mesmo quando o insight do analista não é comunicado à criança
por palavras. Outras vezes, sob certas circunstâncias, as interpretações são dirigi-
das à criança de uma maneira facilmente compreensível, que está ligada a sua si-
tulliião de vida; i~to, compreendido, provoca um desenvolvimento.
E freqüente o quadro inicial fornecer informações sobre o problema e dar uma
indicação da maneira que ocorrerá a terapia, ou seja, a experiência do self. Nesse
processo, novas energias que levam à formação de um ego forte são liberadas.
Kalff (1980) diz que sua experiência em sand-play observa uma coincidência
com a teoria de Neumann das etapas do desenvolvimento do ego. Na primeira eta-
pa, o ego se expressa principalmente em quadros onde predominam os animais e a
vegetação. Os cenários feitos na segunda etapa representam batalhas. A esta altu-
ra, a criança se sente tão fortalecida que luta com as influências externas da nossa
cultura. Na terceira etapa ela é capaz de enfrentar e ser .enfrentada por forças ex-
ternas até que haja uma compreensão - de modo que ela seja facilmente aceita no
ambiente e se torne um membro coletivo.
Um bloqueio no desenvolvimento psíquico de uma criança pode ser libertado
de modo que ela possa crescer normalmente. Freqüentemente, não ajuda em nada
tratar a psique com o uso da razão. Temos que tentar entender a linguagem simbó-
lica com a qual a psique se expressa em imagens e sonhos. Assim, podemos esti-
mular a psique para efetuar uma transformação no relacionamento que a criança
tem com a vida. Os cenários na areia representam figuras e paisagens do mundo
interior e exterior e, aparentemente, se situam entre estes dois e os ligam.
Weinrib (1983) diz: "A terapia de caixa de areia fornece as condições para um
período incubat6rio, tipo uterino, onde seja possível verificar o conceito de uma
imagem materna danificada que, por sua vez, permite a constelação e a ativação
do self e a subseqüente cura do ego ferido e a recuperação da criança interna".
Weinrib (1983) relata que o sand-play tem uma característica evolutiva. Fala

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que os precUI"SOIés mais antigos dos praticantes de terapia em areia eram tribos
primitivas que, ao dar início ao processo terapêutico, traçavam círculos mágicos na.
teIra. Relata que, na tribo Navajo, era costume formar quadros rituais na areia
usados na cerimônia de cura e exorcismo. As figuras que representavam divinda-
des mitológicas em forma humana ou animal, além de símbolos naturais ou geomé-
tricos, eram dispostas em quadrantes em torno de um centro, o que é bem sugesti-
vo da forma de uma mandala, e que tinha uma abertura para permitir que entrasse
o bem e saísse o mal. Eles consideravam que a areia tinha propriedades curativas:
o paciente absorvia o bem da areia e a areia absorvia o mal do paciente.
O primeiro junguiano a se envolver com a areia foi o próprio Jung, que descre-
veu, na sua autobiografia (1963), como se defrontou com um jogo do tipo curativo
na areia. Ap6s seu rompimento com Freud, Jung descreveu que se encontrava num
penoso estado de confusão interna que não cedia nem à análise dos seus sonhos
nem a um exame de sua vida. Decidiu então submeter-se aos impulsos inconscien-
tes, fazer o que lhe aprouvesse. Lembrou que quando era menino construía caste-
los de areia e usava também pedras." Voltou a essa atividade infantil. Este, segun-
do ele, foi o ponto de virada no seu destino. Achou.a experiência penosa e humi-
lhante. Brincou regularmente dias ap6s dias seriamente. Descreve que, no trans-
curso dessa ~vidade, suas idéias se tornaram claras e ele foi capaz de entender as
fantasias e daí a certeza que estava no caminho do seu pr6prio mito (Weinrib).
A brincadeira com areia, água e pedras, liberou uma torrente de fantasias que
levou à sua consideração de fantasia como sendo "a mãe de todas as possibilida-
des" onde, assim como os opostos psicológicos, os mundos interno e externo
são unificados numa simbiose viva. Dando forma concreta às suas próprias fanta-
sias e observação de seus pacientes, chegou à descoberta do processo de indivi-
dualização, a função transcendente e a técnica de imaginação ativa.
O sand-play originou-se na Inglaterra através de Margaret Lowenfeld, que pu-
blicou, 1935, um livro sobre o assunto intitulado World techniques: play in chil-
dhood. O método foi logo chamado de técnicas mundiais. A Ora. Lowenfeld era
uma freudiana que trabalhava no Instituto de Psicologia Infantil, em Londres.
Em 1956, Dora Kalff, analistajunguiana, ficou impressionada com os trabalhos
da Ora. Lowenfeld; foi para Londres estudar com ela a "técnica. mundial: brinca-
deiras na infância." Retomando à Suíça, Kalff iniciou sua prática com crianças,
usando a simbologia junguiana e desenvólveu sua própria técnica que denominou
de sand-play: A psychoterapeutic approach to tbe psyche. (1980".
Assim, Kalff começou a aplicar a técnica de sand-play em adultos e descobriu
que ocorria o mesmo processo de desenvolvimento psicológico da primeira infân-
cia descrito por Erich Neumann, e este, que nunca tinha clinicado com crianças,
desenvolveu seus conceitos de uma forma puramente te6rica. Kalff concluiu que o
sand-play opera num mvel bem primitivo do inconsciente. Em sua prática em adiar
a interpretação, ele viu um paralelo com a prática zen, pela qual o discípulo, aque-
le que procura a sabedoria, não recebe uma resposta direta à sua pergunta mas é,
em vez disso, jogado de volta a sua imaginação.
A fmalidade do sand-play é realmente oferecer um jogo livre, destituído de re-
gras em circunstâncias seguras. Oferece ao paciente a oportunidade de ser ou fa-
zer sem impedimentos. Pressionar por associações seria encorajar atividade cere-
bral, o que não é desejável aqui. No entanto, são feitas algumas exceções a esta
prática, como, por exemplo, quando um paciente está com ansiedade aguda e pre-
cisa de segurança e de compreensão cognitiva.
Tira-se slide do cenário depois de o paciente ter saído. Ap6s uma série de sli-

Psicoterapia infantil 87
des, quando o ego se tomou suficientemente forte para integrar adequadamente o
material, o terapeuta os projeta para a criança. Neste ponto, explicações, amplifi-
cações e interpretações são dadas ao paciente e perguntas são respond!das; o pa-
ciente vê, assim, o seu próprio processo de desenvolvimento. .
No sand-play, nenhuma interpretação é dada até que o processo esteja termina-
do, porque o terapeuta usa insights acumulados dos quadros de areia nas sessões
analíticas, assim como as idéias obtidas analiticamente lançam luz sobre o signifi-
cado dos quadros. O valor da exibição retrospectiva de slides é mtíltiplo: ajuda a
tomar a experiência inconsciente em consciente e reitera o estímulo à mudança e o
impacto sobre o paciente para provocar mais mudanças.
Nas apresentações dos slides, o terapeuta pode ajudar a criança a fazer ligações
entre imagens visuais e os acontecimentos da sua vida interior e exterior. A exi-
bição do slide é uma ocasião para reforçar o ego do paciente. De uma maneira ge-
ral, a quantidade de informações interpretativas, amplificações oferecidas aos pa-
cientes na exibição de slides, assim como a interpretação de sonhos no processo
analítico, depende da prontidão do ego em absorvê-las e do interesse e capacidade
do paciente em compreendê-las. Portanto, é importante que o terapeuta escolha
suas palavras com cuidado, reconhecendo que uma intervenção prematura de sua
parte no processo pode perturbar o processo de cura.
A técnica de sand-play, pelo fato de se desenvolver a partir de um processo
autônomo não-verbal e não-racional, com pouca possibilidade de influências indi-
viduais por parte do terapeuta, restabelece de forma simbólica a unidade mãe-fi-
lho, a constelação do self como pre-requisito do surgimento do verdadeiro ego, le-
vando o paciente a maior maturidade.
O sand-play oferece acesso direto ao mundo interior pessoal dos impulsos e
sentimentos. Fornece acesso ao mundo ltídico criativo da criança, bem como uma
entrada razoavelmente segura no mundo arquetípico mais profundo. Age como
ponte ou mediador para o mundo exterior. Ainda produz uma ativação da capaci-
dade natural; autocurativa, da psique. Recanaliza ou traIÍsforma a energia blo-
queada. É uma oportunidade para a experiência criativa.
Após muitos anos de um gratificante trabalho em psiquiatria infantil, venho
adequando minha técnica às técnicas de psicologia analítica. Minha sala de traba-
lho com crianças e adolescentes consta de quatro ambientes: o primeiro ambiente
contém uma estante com vários jogos, massa de modelar, argila, gesso, tintas,
pincéis, lápis coloridos e papéis. Contém uma mesa e quatro cadeiras e ainda uma
casinha de bonecas.
O segundo ambiente contém uma pia, lousa, fogo, fogão, alimentos, e uma me-
sa baixa e pequena com duas cadeiras correspondentes a essa mesinha. O terceiro
ambiente é um espaço aberto com um canteiro com terra e uma árvore. O quarto
ambiente contém uma caixa de areia e prateleiras com in1hneras miniaturas.
Passo agora a ilustrar esse trabalho, mostrando minha experiência pessoal no
tratamento com crianças. O relato do caso clfnico não é completo, vou omitir in-
formações para a devida proteção deste paciente. Como relata Von Franz (1980),
em seu livro Alquimia: introdução ao simbolismo e à psicologia: "um caso, quan-
do está dando certo, não se leva para a supervisão ou mesmo não se publica". Não
se deve contaminar a relação terapeuta-paciente; esta é a única regra em psicote-
rapia, pois caso contrário pode deixar de ocorrer a participação mística. Trata-se
de um menino de nove anos e oito meses de idade, quando iniciou o tratamento,
ou seja, há um ano e oito meses. Esta criança veio até o meu consultório, condu-
zida pela sua mãe.

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o motivo principal da consulta deveu-se ao fato de a criança ser muito impulsi-
va e esta impulsividade a levou a fraturar-se várias vezes num período de oito me-
ses, sendo que a dltima fratura, por atropelamento, necessitou de cirurgia ortopé-
dica. A criança não tinha bom comportamento na classe, devido a sua falta de sos-
sego, e corria o risco de expulsão da escola. Além disso, não apresentava um bom
rendimento na aprendizagem escolar, tinha péssima caligrafia. Já havia sido re-
provada duas vezes no primeiro ano. As queixas de agressividade no relaciona-
mento interpessoal eram comuns. Além disso, apresentava enurese noturna primá-
ria. Esse paciente passou a fazer duas sessões de psicoterapia por semana. A
princípio, mostrou-se desinteressado quando era oferecido qualquer tipo de ativi-
dade lddica. Passava de um brinquedo para outro desmotivadamente. Quando lhe
eram oferecidos lápis coloridos e papel para fazer desenhos, dizia que não sabia,
ou até esboçava um desenho mas não chegava a terminá-lo, dizendo estar cansado,
ou que desenhar era "chato". Quando perdia noS jogos competitivos, desanimava
ou então inventava suas pr6prias regras. Eu podia observar que, no relacionamen-
to comigo, o paciente mostrava 4tsegurança interna. E o fato de não se ligar em
nenhuma atividade psicoterápica me levou a pensar que esta criança possuía difi-
culdades de identificação. Então eu procurava deixá-la bem à vontade e dizia que
na sala de brinquedos ela podia brincar como bem quisesse. Nas primeiras semanas
de psicoterapia, a criança explorou os brinquedos da sala e isso me fazia entender
que ela estava tentanto encontrar algo de si mesmo, de seu interior, nessa explo-
ração no locallddico.
Depois de algumas semanas de terapia, lhe propus montar um cenário na caixa
de areia. Passou então a brincar com areia e água, uma boa parte do tempo da
sessão. Durante o período de tempo em que fazia isto, pude observar que demons-
trava certo prazer nessa atividade e que também me parecia mais tranqüila. Dra.
Weinrib (1983) também relata estes fatos quando descreve a capacidade curativa
da areia. Depois de algum tempo nessa atividade, meu paciente espontaneamente
construiu seu primeiro cenário na caixa de areia. Tratava-se de uma cidade, com um
cemitério. Construiu dois tdmulos que eram de dois herois. Comentou que a cida-
de estava parada (que eu entendi que era como se estivesse morta) porque era fe-
riado. Colocou no cenário caminhões que fonnavam um círculo proximo aos td-
mulos que me deu a impressão de movimento. Portanto, ele formou um círculo,
que é o símbolo da mandala, um símbolo sélfico protetor e, ainda, embaixo, no
canto inferior direito da caixa de areia, formou um outro c!rculo protetor.
O paciente relatou que os caminhões estavam parados porque estavam sem mo-
toristas. Entendi que os caminhões eram os agentes externos ameaçadores destru-
tivos, representando os aspectos destrutivos da totalidade. O fato de os caminhões
estarem sem motoristas me fez pensar que isso se referia a seus impulsos agressi-
vos, cujo controle não dependia do ego. A cidade parada, morta, postes caídos, os
tdmulos, as cores escuras representavam o componente depressivo.
Os limites dos impulsos que emanavam do self estavam fura do ego; portanto,
a criança não tinha consciência destes impulsos. Eles ameaçavam desintegrar o
ego. O círculo de caminhões, que dava a sensação de movimento, representava
um perigo para o ego.
A princípio, pensei que estava tratando de um caso grave. Tomava-se impera-
tivo para mim furnecer à criança as condições de segurança de que necessitava
para enfrentar as dificuldades da vida. Via a manifestação sélfica, estava presen-
te o arquétipo da morte.
Ap6s oito semanas de jogos competitivos, fez um desenho de uma igreja, nela

Psicoterapia infantil 89
zada significava a fertilidade da "mãe-Terra", a mãe boa. Em muitas culturas, a
árvore representava a vida e o paciente mostrava-se "agarrando-se à vida" agar-
rando-se à mãe simbólica que lhe nutria e dava energia. A cerca representava o
elemento protetor e o limite. Foi através da ligação terapêutica que houve uma li-
gação positiva com os instintos que vêm do inconsciente, do "si-mesmo". Após
cinco semanas de jogos competitivos, fiquei contente quando meu paciente dese-
nhou um her6i (figura 3). No início da terapia, ele se mostrava sem identificações
patriarcais. Naquela ocasião, tinha uma vivência do mundo arquetípico materno
ruim e uma estruturação do arquétipo da morte. Agora, iniciava-se a estruturação
do arquétipo da vida. Notava-se no desenho a identificação com o her6i que era
uma figura forte e ereta que parecia caminhar para o centro da folha de desenho,
ou seja, caminhar para o aqui e agora, representando um movimento de centrali-
zação e equilíbrio. Os detalhes de armadura do her6i levaram-me a pensar que seu
ego estava fortalecido. Já tinha armazenado as energias dos frutos colhidos. O pa-
ciente já mostrava-se seguro e alegre nas sessões. Contou-me que já fazia uns dias
que não fazia xixi na cama, o que relacionei ao controle do impulso representado
na árvore desenhada com a copa fechada. A criança estava organizando a dispo-
sição her6ica para caminhar na vida. Antes o her6i patriarcal estava morto, o que
predomin~a era a mãe negativa.

Agora o ego identifica-se com o herói patriarcal. Passaram-se várias sessões de


terapia, quando na caixa de areia o paciente dramatizou uma luta entre os her6is
do bem e os do mal, luta essa que representava seus conflitos internos. Nessa
dramatização os her6is do bem venceram os do mal. Os her6is do mal foram enter-
rados. Observou-se novamente a formação de um círculo na areia, no local em
que os her6is do mal foram sepultados, surgindo mais uma vez a mandala que é o
símbolo estruturante e protetor. Como relata Michael Fordhan (1969): "As crian-
ças mais velhas reconhecem a relação de um círculo como protetor dos perigos in-
ternos e podem colocar vários objetos dentro de suas figuras de círculo de forma a
controlar os contel1dos psíquicos que estão causando ansiedade".
No início da terapia, o paciente desenhou um círculo formado pelos caminhões,
em relação a situação de perigo - o arquétipo da morte - e como houve um bom

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la. A busca da mãe simbólica pode ser encontrada na relação transferencial e no
ambiente terapêutico seguro e protegido.
A terapia continuava e passaram-se 18 semanas quando o paciente desenhou
um novo quadro. Nele observei como a terapia estava sendo eficaz. O paciente
desenhou uma árvore forte, com frutas e um moço abraçando a árvore e ainda
desenhou uma cerca e um sol. A criança comentou: "o moço abraça a árvore
porque é dia da árvore. O sol está brilhando, é dia de muita alegria" (figura 2).

Os frutos da árvore representavam o aliffiento, a nutrição psicoterapêutica. Os


frutos simbolizam energia. O moço estava abraçado na árvore, atitude essa que
para mim representava a ligação terapêutica, alguém cuidando dele. As linhas de
seu traçado eram fortes, ao contrário das que apareciam nos desenhos anterio-
res, que se apresentavam leves e inde<;isas. Entendi que ele já se sentia confiante
e seguro. As cores alegres do desenho mostravam seu afeto, sem a presença do
tema depressivo, porque o afeto já estava voltado para ele. O símbolo sélfico - o
sol - trazia a alegria, o sentimento de segurança e autoconfiança. No tronco da
árvore, que representava as emoções, um buraco preto representava sua furida
emocional. As raízes bem fixas representavam os instintos. Desenhou a copa da
árvore fechada, indicando que o ego já tinha capacidade de controlar os impul-
sos destrutivos da totalidade. Esse desenho me levou a pensar que ocorrera uma
mudança no seu mundo interno. Estava estabelecida para mim uma ligação
ego-self. O processo de cura estava se processando. O self, que até então tinha se
manifestado com imagenS destrutivas, manifestava-se agora de forma construtiva.
A árvore representava também a mãe boa e nutriente. A árvore que cresce repre-
sentava o crescimento do paciente na psicoterapia. A árvore profundamente enrai-

Psicoterapia infantil 91
contendo um caixão preto. O paciente comentou: "o padre benze o caixão do de-
funto. As pessoas dentro da igreja choram a morte da pessoa que morreu". Em
frente da igreja, desenhou uma ponte com linhas curvas, rica em detalhes den-
teados (figura 1).

Apesar de aparecer de novo o tema "morte" e a idéia depressiva, fiquei oti-


mista, pois para mim a ponte representava a ligação do consciente com o incons-
ciente e também significava a ligação com o terapeuta. A ligação que surgia con-
tinha o gérmen dos potenciais psíquicos, que levam à estruturação do ego e o de-
senvolvimento da personalidade. Como afirma Jung (1982), "o conflito 56 pode
ser solucionado através de súnbolos". A igreja, o súnbolo da mãe - a Santa Ma-
dre Igreja -, me tez pensar que essa criança estava à procura de uma mãe simb6-
lica, uma proteção teminina materna para preencher o vazio interno. Parecia
que este desenho rico em detalhes externos era para compensar o seu vazio inter-
no. Ele falava da morte do herói - que representava o pai ausente - relacionada
a hist6ria de vida em que ele nunca se sentiu seguro com a mãe, uma mãe me-
drosa e ansiosa, que não desejou a gravidez da criança e até pensou em abortá-

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vínculo terapêutico, os cfrculos protetores passaram a representar o arquétipo da
vida. Essas reflexões estão de acordo com as afinnaçóes de Fordhan (1969),
quando salienta que a mandala representa uma mágica delimitadora ou protetora
para evitar perigos reais ou imaginários. O paciente mostrou nessa dramatização
que é capaz de lutar contra as forças internas e externas.
No canto direito da caixa de areia, a criança colocou uma fera montada por ou-
tro her6i e comentou: "Agora a fera está domesticada, o herói domina a fera". O
animal representa a vida instintiva: a agressividade. Ficou claro para mim nesse
momento que suas condutas agressivas estavam agora sob o controle do ego.
Mostrava agora uma maturidade eg6ica, não verificada no início da terapia. Nessa
ocasião seu comportamento escolar já era satisfat6rio.
Depois de algum tempo fez um novo cenário na areia, que chamou de garimpo.
Em tomo da borda da caixa de areia colocou pequenas pedras coloridas que cha-
mou de pedras preciosas; por cima destas colocou pedras maiores e chamou este
conjunto de pedras maiores de montanhas. Em toda extensão da metade da caixa
colocou pedrinhas azuis e disse que esse conjunto de pedras azuis era um rio. Co-
locou quatro garimpeiros e disse: "Estamos garimpando, vamos colher pedras pre-
ciosas para fazer anéis e j6ias e com isso ganharmos dinheiro."
Neste cenário, sentia que a energia psíquica do paciente se canalizava para a
criatividade. O dinheiro representava potencial energético. Nesse período os pais
já haviam infonnado que seu rendimento escolar normalizava-se.
A melhora do rendimento escolar - seu intelecto - representava a presença do
mundo do pai no seu dia-a-dia, antes ausente e representado pelos heróis mortos.
Esse quadro indicava, a meu ver, o considerável potencial da criança. A água
do rio representava seu inconsciente e é do rio que o paciente colhia as pedras
preciosas - as novas forças energéticas.
Os dados recolhidos nesse estudo de caso estão de acordo com as afinnações de
Dora Kalff (1980): "quando se cria um ambiente seguro e protegido, o paciente
adquire confiança em si. Através de um relacionamento de confiança e amor md-
tuos, pode ocorrer uma participação mística, que cria a situação da primeira fase
da vida da criança, aquela da unidade mãe e filho. Esta situação psíquica restabe-
lece aquela paz interior que contém o potencial para o desenvolvimento da perso-
nalidade. Para a criança, o terapeuta é ao mesmo tempo o espaço, a liberdade e os
limites". Nessa relação terapêutica os símbolos estruturantes surgiram a partir do
vínculo terapêu~co. Quando surgiu o herói também surgiu a relação terapêutica e
nela o paciente pôde vivenciar a mãe boa e estruturar o herói patriarcal que foi re-
presentado na melhora escolar. O processo terapêutico ocorreu dentro de wna re-
lação transferencial, onde os conteddos simbólicos foram vivenciados e compre-
endidos, mas não veIbalizados.

Abstract

In this paper the author comments upon the importance of techniques in child psy-
chotherapy, the importance of the analyst-patient relationship, the importance of
the transferential and contra-transferential relationsbip, besides another decisive
. factor in psychotherapy, wbich is the egoself relationsbip. He summarizes the
main Jungian concepts (self, personal and collective unconscioos, conscious, inte-
gration, re-integration, de-integration, archetypes, anima, animus, shadow, mysti-
cal participation). He also descrihes the main differences between Jungian psycho-
therapeutic techniques for children. He illostrates this paper, through bis clinical

Psicoterapia infantil 93
experience, in reporting one case where he tries do demonstrate to working tech-
nique from the Jungian standpoint by using the non-interpretative therapy through
drawings and sand-play.

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