Sarah Tolcser - 01 A Canção Das Águas (Oficial) PDF
Sarah Tolcser - 01 A Canção Das Águas (Oficial) PDF
Tolcser, Sarah
A canção das águas [livro eletrônico] / Sarah Tolcser; tradução Edmundo Barreiros. - São Paulo:
Plataforma21, 2017. - (Jornada das águas; 1)
7 Mb; ePUB
Título original: Song of the current.
ISBN 978-85-92783-52-5
1. Ficção juvenil I. Título. II. Série.
18-12215 CDD-028.5
Meu pai diz que um barqueiro não segue homem nenhum, apenas o rio. Um
barqueiro é livre.
Quando saí para a varanda da sala do mestre da baía, sabia que não era
verdade. O pergaminho que eu tinha em mãos me dizia isso. Ele me
subjugava com seu peso.
– Vou escoltá-la até as docas, é claro – disse o comandante. Ele não
parecia desejar me escoltar mais do que eu desejava ser escoltada por ele.
Acho que ele estava se coçando para partir o quanto antes com sua
companhia e se dirigir aos deveres importantes em Akhaia.
– Eu provavelmente não vou chegar longe, mesmo que parta agora. O
vento estava praticamente morto quando entramos em Pontal de Hespera.
Ele franziu o cenho.
– Estava?
Uma brisa fresca do leste esfriou o suor em minha testa.
– Engraçado – eu disse. – O vento mudou. O vento está soprando do leste,
do mar.
Por um instante, achei poder sentir o cheiro de sal no ar. Mas não era
possível. Pontal de Hespera ficava bem no interior.
Ergui a cabeça para olhar bem nos olhos do comandante.
– Eu não vou partir sem me despedir.
Eu tinha certeza de que ele ia me negar isso, mas não negou.
– Seu pai está na cela. Espero que você volte em cinco minutos.
Encontrei Fee do lado de fora da detenção, agachada, com os dedos
membranosos estendidos na grama. Seus olhos brilhavam suavemente no
escuro, duas orbes vidradas.
– Eu vou a Valonikos. – Eu mesma mal conseguia acreditar nas palavras. –
Você vem comigo? Por favor? – O acordo dela era com meu pai, não comigo.
Honestamente, eu não saberia o que fazer se ela dissesse não. Barcas podem
ser navegadas por apenas uma pessoa, mas são projetadas para uma
tripulação de pelo menos dois.
Ela se levantou num pulo e me cutucou com o ombro, tocando-me logo
acima do cotovelo. Os homens-sapos não são pessoas altas.
– Ajudo – disse ela.
– Obrigada, Fee – respondi. – Não consigo fazer isso sem você.
A cadeia era um barraco úmido de teto baixo. Eu quase bati a cabeça no
candeeiro pendurado na viga. O lugar fedia a suor e mofo, e duvidei que a
palha que cobria o chão estivesse limpa. Barras enferrujadas dividiam o lado
direito do aposento em duas celas. A primeira estava vazia. Meu pai estava
sentado em um banco de três pernas, na segunda cela, com o casaco
desabotoado caindo às suas costas.
Ao som da porta se fechando, ele ergueu os olhos. Um olho estava
vermelho, mas, fora isso, ele parecia perfeitamente tranquilo. Fiquei aliviada.
Corri e me ajoelhei ao lado de sua cela, sem me importar que a palha úmida e
podre sujasse minha calça.
– Pai, não fique com raiva de mim. – As palavras saíam abruptamente. –
Eu disse ao comandante que eu vou fazer.
Seus dedos agarraram as barras.
– Carô, não. Não.
Lágrimas queimaram meus olhos e minha garganta.
– Eles iam mandá-lo para um navio prisão. E tomar a Cormorant… –
expliquei o que tinha acontecido. Quando terminei, minha voz se calou no
silêncio da sala escura.
Meu pai esfregou o queixo com o rosto inusitadamente imóvel. Eu me
preparei para uma repreensão. Eu tinha sido inconsequente. Estava apostando
nossas vidas, e a Cormorant. Mas ele não disse nada.
– Você não acha que eu estou pronta? – ousei sussurrar minha dúvida em
voz alta. – Você disse que, quando meu destino surgisse à minha frente, eu
saberia. – Empinei o nariz. – E se for isso?
Ele trocou um olhar com Fee.
– Ah, Carô, é claro que você está pronta. – Ele olhou para as próprias
mãos. – Talvez eu é quem não esteja pronto.
– Aquele cúter não conhece as terras dos rios. Mas eu, sim – funguei. – Eu
as conheço quase tão bem quanto você. Sei que você estava tentando me
proteger quando disse a ele que não iria levar a carga. – Toquei o bolso onde
eu tinha guardado a carta de corso. – Mas eu posso fazer isso.
– Não é exatamente a viagem mais fácil – suspirou meu pai. – Não é o que
eu teria escolhido para ser sua primeira entrega solo. Acho que agora é tarde
demais. Você já assinou o contrato?
Fiz que sim.
– Espero que você o tenha lido de cabo a rabo.
Eu revirei os olhos.
– Pai.
O comandante bateu bruscamente na porta. Meus cinco minutos estavam
quase no fim. Esfreguei os olhos com o suéter para que o homem não visse
que eu tinha chorado.
Meu pai olhou fixamente para a porta.
– Ayah, deixe que ele entre! Eu gostaria de dizer a ele o que eu penso,
gostaria, sim. – Seu olhar dardejou até Fee, em seguida retornou a mim. –
Carô, escute. O que você precisa saber sobre os deuses é que eles podem ser
traiçoeiros. Não tenha pressa para chegar a seu destino. Ele pode não ser o
que você espera, é só.
– O que você quer dizer com isso?
– Um deus faz o que… – ele hesitou. – O que ele quer. Um deus não pode
ser forçado nem apressado. – Ele parecia querer dizer mais, mas apenas
sacudiu a cabeça. – Bom, o que está feito, está feito.
Eu não sabia ao certo como interpretar suas palavras.
– Chega de lágrimas, garota. Você é uma Oresteia. – Meu pai pegou minha
mão através da grade e a segurou. A sensação de aperto em meu peito se
aliviou. – Entregue esse caixote. Pegue a rota do rio para o norte, passando
por Doukas. Não mexa com Iantiporos nem com o canal. Essa parte da costa
é cheia de piratas. E não se demore em nenhuma cidade. Se precisar de
ajuda… – acrescentou ele, com relutância. – Chame o povo de sua mãe.
Eu ergui as sobrancelhas. Meu pai nem sempre se dava bem com eles.
– Bom, pelo menos como último recurso – disse ele. – Escute, essa carta
de corso? Você não deve usá-la a menos que seja uma emergência. Chame a
menor atenção possível sobre si mesma. Mostrar essa carta por aí não vai
fazer nada além de levá-la à morte, não importa o que diga esse comandante.
Eu não parava de assentir com a cabeça, embora suas palavras escorressem
por mim como chuva. Doukas. Esconder a carta. Nenhuma cidade.
Sobrepujada pelo choque daquela noite, eu mal conseguia absorver aquilo.
– Você pode fazer isso, Carô – disse com firmeza meu pai. – Preste
atenção nisso: eu preferia ter a Cormorant em suas mãos do que nas de
qualquer outro barqueiro da Nós e Bortalós.
– Até nas do capitão Krantor?
– Ayah, até nas dele. Ele não é um Oresteia. Você é.
Uma memória nadou até a superfície. Eu tinha sete anos de idade e estava
ouvindo meu pai contar histórias enquanto minhas pernas balançavam do
assento do cockpit. Eu podia sentir o cabelo esticado em dois pequenos
coques dos dois lados da cabeça. Nós estávamos indo para o Lago Nemertes,
e o vento do mar soprava forte contra meu rosto.
Havia uma gaivota empoleirada na amurada ao meu lado, com as penas
arrepiadas. Ela me encarava com um olho negro e reluzente.
– Sua bisavó uma vez contrabandeou quatro barris de rum pelo jardim dos
fundos do mestre da baía de Siscema – meu pai disse isso com a mão apoiada
frouxamente sobre a cana do leme. – Porque ela era muito corajosa. Meu pai
enfrentou uma gangue de bandidos do rio com nada além de uma faca e uma
frigideira, e viveu para contar a história, sabe como? – ele apontou para mim.
– Ele era muito corajoso. Durante a guerra, eram pessoas como os Oresteias e
os Krantors que levavam seus barcos até além dos bloqueios. E você sabe por
quê?
Eu tinha ouvido essa história muitas vezes.
– Porque os Oresteias eram muito corajosos.
Ele me cutucou e me fez rir.
– Ayah, você tem razão.
Fechei os meus olhos com essa lembrança, e com o mundo girando a
minha volta. Eu sabia como ler uma carta de profundidade, como rizar e
guardar as velas. Eu tinha as habilidades, mas nunca navegara a Cormorant
sem meu pai. Será que eu era corajosa o bastante?
– O vento mudou – disse meu pai, trazendo-me de volta à realidade.
Não perguntei como ele sabia, encerrado na cela diminuta cuja única
janela estava fechada. O deus no fundo do rio dizia coisas assim a ele.
Meu pai relaxou encostado na parede e fechou os olhos.
– É o momento – sussurrou ele. – Não posso impedi-la.
Antes que eu tivesse tempo de perguntar o que ele queria dizer, o
comandante Keros assomou à porta.
– Hora de ir.
Saí cambaleante na noite enfumaçada, com Fee caminhando junto, à
minha esquerda. Sua presença era como a calmaria depois de uma tempestade
forte. Pelo menos, eu não estava completamente sozinha.
Diante da Nós e Bortalós, vi as silhuetas de vários barqueiros reunidos na
rua. Alguém havia acendido um cachimbo, suas cinzas eram uma mancha
solitária de luz, enquanto outros homens conversavam com vozes abafadas.
Por um momento, eu me permiti imaginar que o capitão Krantor ou a capitã
Brixton pudessem intervir. Todos tínhamos pistolas, e éramos em maior
número. Podíamos atacar a cela. Resgatar meu pai.
Senti a carta enfiada no bolso e soube que era uma esperança vã. Os
barqueiros tinham seus próprios problemas. Em relação a mim, eu tinha
assinado um contrato. Eu iria para Valonikos.
O inspetor das docas tinha carregado o caixote em um barco a remo, junto
com um cesto de provisões.
– Minha mulher assou esse pão fresquinho esta manhã. Tem café, também,
e o pouco de manteiga que consegui obter. – Ele se afastou do pilar do cais e
apontou o barco em direção à Cormorant. O comandante estava sentado no
assento de trás, aparentando tédio.
No caminho de volta a nosso bote, Fee e eu estávamos em silêncio. Ela, na
verdade, nunca dizia muito, e eu estava ocupada demais revirando todas as
preocupações e perguntas em minha cabeça. O barco a remo do inspetor das
docas já estava à espera, boiando preguiçosamente na sombra projetada pela
Cormorant, quando nos aproximamos, remando. Ignorei-o enquanto
observava a posição dos cabos e do equipamento no convés e desci para
inspecionar tanto a cabine como o compartimento de carga. Nada parecia fora
de ordem. Ainda assim, a ideia de que alguém tinha remexido nossa barca
sem nossa permissão me incomodava.
Os homens apertaram cordas em torno do caixote e o ergueram sobre o
convés. Não parecia nada especial. Era simplesmente um caixote de carga
grosseiro de madeira coberto por um encerado de lona.
Fingi esbarrar o quadril contra a borda da caixa. Ela não se mexeu. O que
quer que houvesse dentro dela, era pesado.
Talvez fosse ouro. Um caixote cheio de tesouros, sem dúvida, era
suficiente para atrair os Cães Negros. Mas eu me lembrei do que Thisbe
Brixton dissera: Eles nem levaram nada. Então não era ouro.
– Você não deve abri-lo – disse com seriedade o comandante. – Na
verdade, vai ser melhor para você se jamais tocá-lo. Você entende?
– Então, eu nunca vou vir a saber o que estou levando?
– Senhorita Oresteia, você assinou um contrato.
Isso estava no contrato? Achei que devia ter lido com mais atenção, mas
naquele momento era tarde demais para discutir isso. O comandante fez um
breve gesto de despedida e desceu para o barco a remo sem dizer mais uma
palavra. O inspetor das docas, porém, parou no alto da escada de cordas.
Ele segurou meu pulso em uma pegada forte. Eu me assustei.
– Diric Melanos é um assassino… – disse ele em um sussurro baixo e
urgente. – E um traidor. Fique atenta. O Victorianos, de Iantiporos. Ele tem
velas brancas e é pintado de azul. Ele só estava usando uma vela principal e
uma de estai quando eu o vi. – Ele me soltou. – Que a corrente vos leve.
CAPÍTULO
QUATRO
Acordei na manhã seguinte muito aliviada por não ter sido assassinada pelos
Cães Negros enquanto dormia. Lançando um olhar em direção à cortina
fechada da cabine de meu pai, prendi o cabelo com um lenço vermelho
estampado e saí descalça no convés.
Neblina pairava sobre as terras dos rios. Uma libélula esvoaçava no ar com
as asas brilhando verdes em meio às tifas trêmulas. Fee estava empoleirada
na proa da Cormorant com um olhar distante no rosto. Será que ela estava
falando com o deus no rio? Como seus descendentes, todos os homens-sapo
tinham uma conexão com o deus. Eu não sabia se era a mesma língua das
pequenas coisas falada pelos barqueiros, ou algo muito mais antigo e
estranho. Senti uma pontada de inveja.
Estreitei os olhos, mirei o topo do mastro e examinei o estrago da noite
anterior. A verga da vela grande da Cormorant ainda estava emaranhada nos
galhos, e seu convés estava coberto de galhos e folhas. Meu pai não aprovaria
a forma como deixamos a vela amontoada. Juntas, Fee e eu limpamos o
convés e conduzimos a barca para fora do canal e para o interior da Lagoa
das Garças, onde ancoramos perto da margem.
Fee subiu do compartimento de carga e colocou um balde no convés.
– Pinte. – Ela pôs um pincel em minha mão.
Com relutância, olhei para o nome Cormorant escrito em cima da porta da
cabine em letras azul-claro com floreios vermelhos.
– Odeio estragar isso.
Ela deu de ombros.
– Ou morrer.
– Eu sei, eu sei. – Passei o pincel molhado sobre o C e o apaguei.
Quando eu dava os toques finais na pintura, Tarquin emergiu, piscando
para o sol da manhã. Ele olhou para o lago com surpresa. Na noite anterior,
estava escuro demais para ver qualquer coisa.
– Eu não sabia que havia outros barcos aqui. – Ele se envolveu com a
túnica bordada.
Uma embarcação estava ancorada na outra extremidade do Lago das
Garças, e uma coluna de fumaça erguia-se de seu telhado. Eu não consegui
identificá-lo – uma casa flutuante, talvez? Havia também uma barca, a Bela
Manhã. A mulher do barqueiro estava sentada no convés em uma cadeira de
balanço, fumando um cachimbo comprido. Ela e a filha olharam fixamente
para nós. Eu não as conhecia, mas sabia que elas estavam se perguntando por
que ainda não as havíamos cumprimentado. E que tipo de idiota nós éramos
para prender nossa vela na árvore?
Eu baixei o balde de tinta.
– Isso é tudo o que vestem os mensageiros do emparca?
– É uma túnica – ele viu minha expressão perplexa. – Roupa de dormir.
– Ah. – Meu rosto ardeu de vergonha. Bom, na verdade, por que alguém
desperdiçaria um traje tão elegante para dormir?
Ele esfregou o tecido entre os dedos.
– Não tive tempo de me trocar antes de ser forçado a fugir…
– Fugir? – Mais uma vez, suas palavras dispararam um sino de alarme no
fundo da minha cabeça. Algo não estava certo nessa história.
– Eu estava apressado para pegar a estrada – explicou correndo. Ele pôs as
mãos nos bolsos e olhou para a terra plana enquanto a brisa agitava seus
cachos.
As únicas velas brancas pertenciam a uma escuna de dois mastros que
estava muito longe, do outro lado do pântano marrom-amarelado. Isso,
porém, não significava nada, já que o Rio Melro tinha muitas curvas e locais
onde fileiras de árvores bloqueavam o horizonte. O Victorianos estava lá fora
à espreita em algum lugar.
O caixote de carga ainda estava no convés com a tampa desencaixada. Eu
o joguei para fora da barca, e ela fez um barulho de lama.
Tarquin me seguiu.
– O que você está fazendo?
– Os Cães Negros estão à procura de uma barca que está carregando esta
caixa – eu disse, olhando para trás. – Eu vou afundá-la. E você vai me ajudar.
Joguei a escada de cordas pela beira do convés e desci. No último degrau,
pulei, aterrissando com água até as coxas. Lama esguichava entre meus dedos
dos pés.
Ele deu um suspiro.
– Você espera que eu pule nessa imundície? Pode haver sanguessugas. Ou
cobras.
Pus as mãos nos quadris e olhei para ele com os olhos estreitos. O caixote
boiava na água ao meu lado.
– Claro que há sanguessugas. E provavelmente cobras, também.
Ele passou tempo demais removendo as botas e arregaçando as pernas da
calça, enquanto eu procurava pedras grandes ao longo da margem. Quando
ele desceu pela escada, eu tinha empilhado uma coleção.
– Vou me livrar de tudo o que possa fazer com que esta barca chame
atenção – eu disse. – Começando por este caixote. E você.
– Bom, você não pode se livrar de mim. – Ele caminhou pela água até a
margem com a lama sugando seus pés descalços.
– Mas eu posso fazer com que você se pareça mais com um barqueiro. –
Essa era a parte da qual ele não iria gostar. – Tire a túnica e a calça e ponha
na caixa.
Suas narinas se dilataram, e ele caminhou em direção a mim espalhando
água.
– Agora, veja aqui…
– Ah, honestamente. Não vou olhar. – Eu o estudei. – O que você devia
fazer é cortar o cabelo. E tirar esse brinco.
– Não.
– Com o que você se preocupa mais, sua vaidade ou sua sobrevivência? –
retruquei. – Ninguém nas terras dos rios se veste assim. Essas roupas têm que
sumir.
Seu olhar se dirigiu para mim.
– Seu lenço é incomum para a filha de um barqueiro. Feito em Ndanna,
imagino, pela estampa, e de seda especialmente fina. Suponho que não vamos
enterrar isso na lama.
Toquei o lenço amarrado em volta de meu cabelo. Ele tinha sido presente
de minha prima Kenté, o que não era da conta dele.
– Não é a mim que os Cães Negros estão tentando matar.
Tarquin fez todo tipo de ruído de raiva enquanto tirava a calça. Pelo canto
do olho, eu o vi balançar a perna como uma garça. Ao vislumbrar o calção
branco que usava por baixo, meu rosto esquentou.
– Agora que eu tinha acabado de tirar toda a maldita palha da túnica –
murmurou. Ele jogou a trouxa de roupa no caixote e ergueu as sobrancelhas.
– Tudo certo?
Sua carta do consulado não estava na calça nem na túnica. Ele a devia ter
escondido na cabine do meu pai. Arquivei essa informação para usar depois.
Empilhei minhas pedras dentro da caixa e observei bolhas subirem pela
água enquanto ela afundava. Quando ficou completamente submersa,
caminhamos pela água de volta até a Cormorant. Mantive os olhos
educadamente virados para baixo. As coisas entre mim e Tarquin já estavam
bem estranhas sem que eu o visse em roupas íntimas.
– Ugh! Tem uma sanguessuga em meu tornozelo. – Ele pegou uma
extremidade com a ponta de dois dedos e começou a puxar. Seu corpo negro
e escorregadio se esticou e ficou mais comprido, mas não se soltou de onde
estava grudado.
– Esfregue, não puxe. – Eu revirei meu pé e encontrei uma das criaturas
grudada em meu dedão. – Assim. – Com a unha, a removi e a joguei na água.
Em vez de agradecer, ele soltou um suspiro alto.
– Não vou ter mais nenhuma conversa com você enquanto estiver sem
calça. É ridículo.
Fee e eu trocamos olhares enquanto ele subia no convés e deixava pegadas
molhadas. Ele poderia ser bem mais suportável se não fosse tão obcecado
com a própria dignidade.
Procurei no compartimento de carga até encontrar uma placa pintada em
cores com o nome Octavia. Letras menores embaixo davam a cidade de
Doukas como nosso porto de origem. Eu a pendurei acima da porta da cabine,
onde ela quase cobriu a tinta fresca. Alguém que nos examinasse de perto iria
perceber, mas imaginei que, se algum dos Cães Negros chegasse tão perto, já
estaríamos mortos.
Tarquin subiu a escada da cabine.
– Pronto. Eu pareço um barqueiro, agora? – Ele disse a palavra como se
fosse um palavrão.
A verdade era que não, especialmente não com aquele olhar de escárnio no
rosto. Seus antebraços eram completamente brancos. Eu não conseguia ver as
palmas de suas mãos, mas sabia que elas seriam tão macias quanto as minhas
eram duras. Ele parecia desconfortável nas roupas de meu pai, e, além disso,
suas botas eram completamente erradas. Elas iam até o joelho e eram feitas
de couro macio cor de creme, e os botões de metal eram decorados com
leões. Eu me arrependi de não tê-las afundado também, mas nós não
tínhamos nenhuma outra que coubesse nele.
– O que vamos fazer em relação a esses piratas? – perguntou ele.
– Há muitos esconderijos por essas partes – eu disse. – Canais, pequenos
lagos, coisas assim. Lugares que só um barqueiro conheceria. – Ou um
contrabandista, mas isso eu não disse em voz alta. – Mesmo que eles
conheçam, acho que seu cúter não cabe. Seu calado é muito mais fundo.
– Você não pode falar de maneira simples?
– O calado. Um barco como esse deve ter pelo menos nove pés. – Ele
ainda parecia confuso. – A profundidade dele. Nossa quilha tem apenas
quatro pés de profundidade.
– Deve ser bom – disse ele. – Aposto que eles podem ficar de pé na cabine
deles.
Eu ignorei a provocação.
– Com alguma sorte, vamos ver os Cães Negros antes que eles nos vejam.
Não sou mais rápida que eles, mas sei onde me esconder. E depois de
entregarmos a madeira…
– Do que você está falando? Que madeira?
– Você não é minha única carga. – Eu me esforcei para que a irritação não
transparecesse em minha voz. – No compartimento de carga, tem um
carregamento de madeira destinado a Siscema.
– Isso não pode esperar? Minha missão é muito mais importante que seus
troncos.
Eu olhei para ele.
– Depois de descarregar as toras, vamos navegar muito mais rápido.
Ele pareceu aceitar isso e virou-se para examinar a tinta fresca na parede
da cabine da Cormorant.
– Por que você tem uma placa com o nome de outro barco?
– Contrabando – eu disse. Não era como se ele pudesse me entregar a um
inspetor de docas. Ele precisava de mim. – Às vezes, um disfarce é útil.
Claro, qualquer um que a conheça bem o bastante não vai ser enganado.
Tarquin olhou para trás, para a Bela Manhã, que tinha erguido sua grande
vela negra, depois outra vez para a Cormorant.
– Elas parecem exatamente iguais para mim.
Eu ri.
– Ayah, para você.
A mulher na outra barca nos deu um olhar cortante quando passaram
deslizando por nós. Sem dúvida, eles tinham escutado os disparos na noite
anterior e me visto pintar o nome da Cormorant, e decidiram que éramos
marginais do pior tipo.
Tarquin apontou para o barco na outra extremidade do lago.
– Aquilo é uma barca, também?
Fee se agachou sobre o telhado da cabine com os dedos dos pés abertos.
– Homem dos porcos – disse ela.
Eu ergui os olhos rapidamente.
Alguns diziam que o homem dos porcos era um deus. Se você o pegasse
em um dia de sorte, ele dizia seu destino. Nos dias de azar, ele se sentava no
fogão no teto de sua casa flutuante e defumava carne de porco até descolar
das costelas. Ele subia e descia o rio lentamente vendendo-a, assim como
bacon e porco salgado, porque até barqueiros se cansam de peixe. Meu pai
tinha comprado provisões dele muitas vezes, aparentemente sempre em dias
de azar, porque ele nunca dissera nem fizera nada remotamente semelhante a
um deus. Ele era apenas velho. E estranho.
Provavelmente tudo aquilo era uma história mentirosa, mas se eu alguma
vez precisei que alguém dissesse meu destino, esse era o dia. E mesmo que
não fosse meu dia de sorte, o porco era delicioso.
Eu desci para o bote da Cormorant e remei até lá.
O homem dos porcos estava sentado ao lado de seu defumador, com o
rosto oculto por um chapéu de aba mole. Era impossível dizer se ele tinha
pele marrom como a família de minha mãe ou se era bronzeado daquela cor
simplesmente de ficar sentado ao sol por toda a sua longa vida. Eu desconfiei
do primeiro, porque seu cabelo cor de aço era tão encaracolado quanto o meu.
– Como está você esta manhã? – chamou o homem dos porcos enquanto
eu amarrava o bote.
– Estou a caminho de Valonikos – eu disse com o coração pulando
nervosamente. – Para levar uma carga.
– Garota tola. É seu destino que a está puxando por esse rio. – Ele olhou
para mim. – O seu destino… e o daquele rapaz.
Eu levei a mão ao cabo da faca.
– O que o senhor sabe sobre… – eu me detive. Sem dúvida não era sábio
dizer seu nome. – Quero dizer, o que o senhor sabe sobre meu destino?
– Porco salgado, hoje? Tenho uma boa partida de porco salgado defumado
para vender. – Ele piscou. – Estou pensando que seu destino está muito longe
daqui, capitã Oresteia.
Eu desejei que ele parasse de ser misterioso.
– Não sou uma capitã – eu disse, entregando a ele um punhado de moedas.
– A Cormorant é o barco de meu pai. O senhor sabe disso tão bem quanto eu.
– Você não pode lutar contra isso. – Ele sorriu, mostrando todos os dentes
brancos. – Por que toda alma acha que pode lutar contra seu destino? Um
peixe nada rio acima, contra a maré?
Eu não era homem nem peixe, e estava começando a me cansar de seu
olhar astuto.
– Ele provavelmente tenta – eu disse a ele. – Porco salgado, por favor –
hesitei. – É verdade o que eles dizem? Que o senhor é um deus? O senhor
pode falar com o deus no rio?
Ele apenas sorriu e se abaixou para retirar a porção de carne de porco do
seu barril.
Eu contive um suspiro de irritação e olhei para trás, para a Cormorant,
desconfortavelmente consciente de como ela parecia vulnerável e deteriorada.
Ela não era páreo para os Cães Negros. Mas não podíamos simplesmente
ficar ali escondidos para sempre. De algum modo, eu tinha de chegar a
Valonikos, ou meu pai continuaria preso e, que os deuses não permitissem, eu
seria presa com Tarquin.
Olhei para os juncos turvos na beira da água. Se houvesse mesmo um deus
no fundo, eu poderia usar sua ajuda nesse momento.
O homem dos porcos me observou com olhos negros e penetrantes. Tive a
sensação estranha de que ele sabia exatamente o que eu estava pensando.
– Ela é uma deusa maior, mais profunda. A que conduz você. – Ele cuspiu
pela lateral do barco. – Ele não vai lutar contra ela.
– Eu mesma me conduzo. – A ideia dos deuses me movendo de um lado
para outro por aí, como uma peça em um jogo de tabuleiro, não caía bem
comigo.
Ele virou o bacon na frigideira e riu.
– Todos dizem isso, também.
Tentei manter a dignidade enquanto embarcava no bote.
– Bom dia, senhor.
– Que a corrente vos leve, capitã – gritou ele para mim, parecendo outra
vez igual a qualquer outro velho do rio. Era como se nossa conversa
misteriosa nunca tivesse acontecido.
Enquanto eu remava de volta para a Cormorant, tentei não pensar sobre as
palavras perturbadoras do homem dos porcos. Eu era uma Oresteia. Nós
pertencíamos ao rio. A ideia de outra deusa se metendo em meus assuntos
não me descia.
Tarquin me deu a mão para me ajudar a sair do bote. Enquanto eu subia
pela popa, percebi que estava errada sobre suas mãos. Elas eram brancas,
verdade, as mãos de um homem que nunca trabalhara por muitas horas ao sol.
Mas ele tinha calos grosseiros no alto das palmas, e era forte.
Talvez ele não fosse completamente inútil, afinal de contas.
Enquanto eu içava a vela, percebi que ele estava me observando.
– O que você está olhando? – perguntei, congelando com a adriça na mão.
Ele se encolheu e tirou os olhos de minhas pernas.
– Em Akhaia, as mulheres usam saias.
– Ora, bom para elas. – Minha face e minhas orelhas ficaram quentes de
repente.
– Eu não estava dizendo que era uma coisa ruim. – Ele tamborilou sobre
os próprios joelhos de um jeito que me fez pensar que estava embaraçado.
– Isso porque você está olhando para minhas pernas. – Eu me abaixei para
soltar o cabo, resistindo à vontade de puxar para baixo a barra de minha calça
cortada, que tinha subido. Ele agia como se nunca tivesse visto um joelho de
garota na vida. Não era nada. Nada para ser observado.
Nós partimos, com água borbulhando sob a proa da Cormorant. Eu a
conduzi pelo canal e para o rio, arrastando o bote atrás de nós como um
patinho nadando atrás da mãe. Muito tempo depois da fumaça do barco do
homem dos porcos ter desaparecido às nossas costas, eu me sentei e comecei
a ruminar.
– Viajar de barca é muito lento – reclamou Tarquin do assento à minha
frente. Ele esfregou o dedo na faixa do acabamento em madeira que
bordejava o convés. Eu desejei que ele não fizesse isso, pois estavam saindo
lascas de tinta. – Estou entediado. Deixe-me conduzir o barco, um pouco.
Ele mal tinha viajado em uma barca por meia hora. Era uma pena que eu
tivesse jogado a caixa na água, pois talvez eu enfiasse lá dentro outra vez.
– De que direção está vindo o vento? – perguntei.
– De lá. – Ele apontou a mão, erroneamente, para estibordo.
– Não, você não pode conduzir o barco.
– O que eu disse de errado?
– Estamos com vento de popa. – Ele olhou para mim com uma expressão
inalterada. – A popa fica atrás – eu disse. Uma criança de cinco anos sabia
mais que ele. – Por que você acha que a retranca está tão projetada para fora?
A retranca sendo esse grande pedaço de madeira preso à vela.
– Qual deles? – Ele deve ter visto a expressão rude que fiz, porque
acrescentou: – Eu preciso saber essas coisas, não é? Para me misturar.
– O de baixo. O outro é a verga. A questão é que um barco não pode
velejar na direção de onde vem o vento. O vento tem de empurrar o barco. Dê
a volta.
A brisa agitou seus cachos quando ele protegeu os olhos para examinar a
vela.
– Viu? É de onde está vindo o vento.
Tarquin pareceu absorver isso com uma expressão pensativa. Para meu
alívio, ele não pediu outra vez para velejar. Em vez disso, virou-se para Fee,
que estava sentada com as pernas nodosas de sapo penduradas pela lateral, e
a estudou.
– É verdade que homens-sapo podem respirar embaixo d’água? – Ele
dirigiu a pergunta a mim.
Eu contive a irritação.
– Sabe, pode perguntar a ela. Ela entende você muito bem.
– Oh. – Ele se aprumou e, dessa vez, dirigiu-se a Fee. – Desculpe se a
ofendi, senhorita…? – Ele fez uma pausa formal.
– Fee – interrompi. – É apenas Fee.
Os olhos de Fee se franziram nas bordas, e sua língua comprida projetou-
se para pegar um inseto. Tarquin deu um pulo para trás, assustado, e eu
contive uma risada.
O rio era estreito ali, e elevações arredondadas cobertas de capim do
pântano nos pressionavam dos dois lados. Os únicos sons eram o assovio
baixo e triste do vento através dos juncos e o zunido dos insetos. Rio abaixo
de onde estávamos, as velas de outras barcas flutuavam como triângulos
negros acima dos campos. O cúter não estava em nenhum lugar à vista.
Um peixe saltou a bombordo, e o sol reluziu em suas escamas prateadas.
Marolas lambiam a margem, e, em algum lugar, uma abelha zumbia.
Pequenas coisas. Eu desejei saber que mensagens secretas meu pai ouvia
nelas. Não importava o quanto eu escutasse com atenção, eu não conseguia
decifrar nada.
– No que você está pensando? – perguntou Tarquin.
– No homem dos porcos – menti. – Dizem que ele é um deus.
Ele deu um suspiro.
– Pergunte a si mesma o que é mais provável. Que um velho que vende
carne em uma casa flutuante seja um deus, ou que ele seja um velho que
vende carne em uma casa flutuante?
Eu também não estava convencida de que o homem dos porcos fosse um
deus, mas, sem dúvida, não ia ficar ali sentada deixando que Tarquin
zombasse dele.
– Bom, mas ele sabia sobre… – eu hesitei. – Olhe, é só uma coisa que as
pessoas comentam em voz baixa. A coisa sobre os deuses é que…
Ele revirou os olhos.
– Ah, sim. Uma garota que vive em uma barca vai me contar a coisa sobre
os deuses. Estou cheio de expectativas.
– A coisa sobre os deuses é que – eu disse, ignorando-o explicitamente –
eles gostam de ser um pouco sigilosos em relação a seus assuntos. E, para sua
informação, barqueiros conhecem muito bem os deuses. Há um no fundo do
rio. Todo mundo sabe disso.Todos os capitães em minha família são
favorecidos pelo deus do rio.
Menos eu. Eu apertei a cana do leme e torci ardorosamente para que ele
não perguntasse detalhes. Senti o olhar penetrante de Fee sobre mim, mas ela
não disse nada.
– Você não acha que um deus de verdade tem coisas melhores a fazer do
que se esconder no fundo de um rio como um crocodilo? – persistiu ele. –
Ou, por falar nisso, fritar bacon?
– Não surpreende que o consulado o tenha feito viajar em uma caixa –
respondi. – Você não é muito bom em diplomacia, é? Duvido que você tenha
uma carreira longa como mensageiro. Se você conseguir voltar.
Ele cerrou os punhos.
– Isso é uma ameaça?
– É uma observação.
– Bom, sabe-se em Akhaia que os deuses que antigamente caminhavam
entre nós há muito tempo voltaram para seus salões no céu e sob a terra. – Ele
pousou uma bota no assento do cockpit e olhou para a terra plana que
passava. – As únicas pessoas que podem falar com eles agora são os oráculos.
– Em palavras, talvez – escarneci.
Eu tinha visto templos imponentes em Akhaia, decorados com cabeças de
ferozes leões feitas de ouro sólido. Eu desconfiava que o deus akhaiano não
tivesse nada a ver com o deus do rio.
– Como mais você falaria a não ser com palavras? – perguntou Tarquin.
– O deus no fundo do rio fala conosco na língua das pequenas coisas.
Ele fungou alto para me mostrar o que pensava disso.
O homem dos porcos dissera que meu destino estava longe dali. Eu torci
para que ele não fosse mesmo um deus, porque isso não fazia sentido. Eu era
a imediata do meu pai na Cormorant, e um dia, quando ele se aposentasse, eu
iria me tornar sua capitã. Talvez, quando o homem dos porcos dissera “você”,
ele estivesse se referindo a Tarquin. O seu destino… e o daquele rapaz. Essas
foram suas palavras exatas.
Ou, talvez, o homem dos porcos não fosse nenhum deus, mas um velho
tolo e excêntrico que ficava sentado em uma casa flutuante e defumava
porco.
E, ainda assim, eu não conseguia parar de pensar sobre o que eu ficara
nervosa demais para dizer a Tarquin.
Ele sabia sobre você.
CAPÍTULO
OITO
Como filha de barqueiro, eu não devia admitir isto, mas acho pescar a coisa
mais chata do mundo. Foi o que me vi fazendo na manhã seguinte. E eu não
estava feliz com isso.
Como outras coisas desagradáveis que recentemente haviam se abatido
sobre mim, era culpa de Tarquin. Quando ele saiu do beliche, Fee e eu já
estávamos velejando havia horas. Ele ficou nas almofadas do banco, com os
restos de sua refeição matinal espalhados ao redor. Havia uma pilha irregular
de pratos rasos e grudentos sobre a toalha de mesa, e uma trilha de gotas
gordurosas pelo chão da cabine.
– Espero que você não ache que eu vou limpar sua sujeira. – Eu não
conhecia ninguém capaz de fazer tamanha sujeira. Eu olhei para a bancada
lateral. – Onde está o resto do porco? Eu o deixei bem aqui.
– Oh, eu… comi de café da manhã.
– Tudo? – Olhei para ele horrorizada. – Isso devia durar dias.
– Besteira – disse ele. – Mal foi suficiente para o café da manhã.
– Ele não deve ser a refeição inteira. É um petisco. Um luxo.
Ele escarneceu.
– Estava bom, mas não tão bom.
Eu subi de volta para o convés com passos pesados.
– Graças a você, o almoço é peixe. O jantar também é peixe. Espero que
você não seja burro o suficiente para perguntar o que tem para o café amanhã.
– Abri a cesta de material de pesca e prendi um anzol em uma linha. – Mas
como eu desconfio que você seja, é peixe.
Ele me seguiu.
– Olhe, eu não sabia. Não podemos parar e comprar mais provisões?
– Olhe ao seu redor – eu disse. – Não há nada pelas próximas vinte milhas.
Capim alto se estendia por todos os lados. Pouco menos de um quilômetro
à frente, havia uma ruína corcunda coberta de musgo verde, uma velha
mansão rural, talvez os restos de uma ponte. Nós tínhamos passado a última
noite escondidos atrás de outra ruína parecida, com o mastro da Cormorant
abaixado e as cortinas fechadas para esconder nossa lanterna.
– Não há outro barco de porco ou algo parecido? – perguntou ele.
Eu joguei a linha pela popa.
– E você ainda zombou do homem dos porcos. Esse é seu destino
alcançando você, é isso.
Tarquin debruçou para fora para ver a pilha de pedras arredondadas.
– Eu me pergunto se essa ruína é dos tempos em que Kynthessa ainda era
parte da emparquia.
– Acho que sim. – Eu agitei a vara de pesca. – Foi aqui que os patriotas
mantiveram sua linha de resistência, para impedir que o exército do emparca
saqueasse Siscema durante a Guerra dos Trinta Anos.
Naqueles tempos, os Oresteias desafiavam o bloqueio para os patriotas.
Tentei imaginar esses pântanos vazios cheios de galeras akhaianas e fumaça
de acampamentos, as terras dos rios mergulhadas em guerra.
– Patriotas – escarneceu Tarquin. – Traidores de um grande império, você
quer dizer.
– Ayah, Akhaia deve ser um império maravilhoso – eu disse. – Acho que é
por isso que sempre há partes dele se separando para se tornar independentes.
Ele apertou os lábios em uma linha fina.
– O margrave teve tanta culpa pela guerra quanto Akhaia.
– Eu soube que o atual emparca exilou cinquenta homens e mulheres só
por participar de encontros políticos – devolvi. – Isso só no ano passado, por
isso você não pode pôr a culpa em pessoas que morreram há muito tempo.
– Antidoros Peregrine e seus revolucionários foram um incômodo para o
emparca por anos. – Depois de uma pausa, ele explicou: – Mas não foram as
reuniões que fizeram com que o emparca finalmente perdesse a paciência. Foi
o panfleto que ele publicou, cheio de ideias radicais sobre os direitos das
pessoas comuns.
– Você o leu? – perguntei, irritada com seu desdém. Eu era uma das
pessoas comuns.
– Claro que não. – Ele acenou com a mão. – O emparca não queria que ele
provocasse uma insurreição, por isso ordenou que fosse queimado. Mas lorde
Peregrine costumava jantar conosco quando eu era criança – lembrou ele. –
Antes de publicar seus escritos loucos. Eu gostaria de saber o que aconteceu
com ele.
Eu podia ter lhe contado. Lorde Peregrine estava escondido em Kynthessa.
Ele e seus amigos eram, na verdade, os mesmos rebeldes cujos mosquetes o
mestre da baía confiscara em Pontal de Hespera. Eu sem dúvida não ia
revelar esse segredo, pois desconfiava que iria irritar meu passageiro saber
que estávamos transportando armas para pessoas que ele considerava
traidores.
– Seu pai é um lorde, também? – perguntei em vez disso. – Ou ele foi
eleito?
– Ninguém é eleito em Akhaia – disse ele, como se fosse um palavrão. –
Isso demonstraria fraqueza. Ele foi nomeado para o conselho pelo emparca, a
única maneira apropriada.
Acho, então, que ele achava nossa margravina fraca. Seu título era
herdado, passado desde o margrave original que liderara a rebelião contra
Akhaia todos esses anos atrás, mas ela era mais uma figura decorativa,
atualmente. Ela presidia o senado, que era eleito entre o povo. A cidade livre
de Valonikos tinha ido ainda mais longe ao se separar de Akhaia,
abandonando todos os títulos hereditários. Se Tarquin planejava continuar a
falar assim depois de chegar lá, iria ofender todo mundo. Eu me perguntei se
deveria alertá-lo.
– Prontos? – chamou-me Fee. Eu dei um pulo e abandonei a vara de
pescar.
Ela puxou a cana do leme com força, nós viramos de bordo, e a retranca
passou por cima. Eu cacei o cabo da escota quando a vela se encheu
bruscamente. Nós começamos a adernar para estibordo. A Cormorant correu
pelo rio, nossa esteira borbulhava às nossas costas.
Tarquin agarrou com força a borda do cockpit.
– O que está acontecendo? Eu não gosto disso.
– Viramos de bordo – eu disse. – Mudamos a vela para outro lado.
– Na próxima vez, me avise – disse ele com rigidez.
– Fee disse “prontos”. – Eu sabia que ele não tinha ideia do que ela queria
dizer, mas eu estava cansada de sua atitude superior.
Eu não via como uma pessoa podia não gostar de velejar em um dia bonito
como aquele, quando as nuvens corriam soltas como caudas de cavalos no
céu de safira. Será que ele não conseguia sentir como a Cormorant se movia,
como se o vento a desafiasse para uma corrida? Acho que ele não apreciava
tempo bom da mesma forma que as pessoas que dependem dele para seu
trabalho.
Nós não vimos sinal de Diric Melanos e dos Cães Negros desde a noite em
que eles nos perseguiram. Era como se o cúter tivesse desaparecido no ar.
Com o passar dos dias, as únicas pessoas por quem passamos foram uma
dupla de pescadores em um bote a remo que flutuava em meio aos juncos.
O sol mergulhou fundo, e as árvores se ergueram dos dois lados do rio.
Nós deslizamos por um túnel de galhos pendentes. Eu não conseguia afastar o
desconforto crescente que formigava em minha nuca. Estávamos navegando
às cegas, agora. Se os Cães Negros estivessem perto, nós não iríamos vê-los
até que estivéssemos praticamente em cima deles.
Baixei a mão na popa para tocar a água fria e aguardei esperançosa.
Nada aconteceu. O deus no rio fala conosco na língua das pequenas coisas.
É o que os barqueiros dizem, mas o que isso significava exatamente? Eu ouvi
o zumbido de inseto e o mergulho de sapos e senti a pressão delicada da água
sobre minha pele. Isso era tudo.
Meu pai dizia que, no dia em que meu destino chegasse, eu saberia. Uma
irritação se agitou dentro de mim. Ele podia ter sido um pouco mais
específico.
Olhei para cima e captei um lampejo de movimento atrás das árvores. Um
brilho branco fantasmagórico. Algo alto.
Havia um navio subindo o Rio Melro.
– Mudar o curso! – engasguei em seco enquanto me colocava de pé.
Fee empurrou a cana do leme para estibordo até o fim e fez com que
virássemos de bordo de maneira descontrolada. A Cormorant adernou, água
correu pelo convés, e a vela se agitou de um lado para outro.
Tarquin quase caiu do assento.
– Eu disse a vocês que me avisassem!
– Cale a boca! – Freneticamente, examinei a margem do rio procurando
por algum lugar, qualquer lugar, grande o suficiente para esconder uma
barca. – Ali! – Eu apontei para um grupo de salgueiros, com folhas que caíam
até a água como uma saia de mulher.
Enquanto Fee conduzia a Cormorant em direção às árvores, eu corri até o
mastro. O mastro de uma barca pode ser baixado por um sistema de
cabrestantes, pesos e polias, geralmente para passar sob pontes baixas. Mas
nosso tempo era escasso e precioso.
– Tarquin – sussurrei. Ele não respondeu. – Tarquin! – chiei mais alto, até
que seus ombros se ergueram. – Preciso de sua ajuda. – Gesticulei para o
alto: – Segure o mastro quando ele descer. Em silêncio.
Para meu grande alívio, ele saltou de pé instantaneamente e fez o que eu
lhe ordenei. O mastro desceu chacoalhando, pesado com o contrapeso de
chumbo em sua base. Sem experiência, Tarquin deixou que parte da vela
caísse na água. Eu não podia me preocupar com isso no momento.
Sem a vela, a Cormorant perdeu velocidade, abrindo caminho pela água
metro a metro, depois centímetro a centímetro. Sua proa desapareceu,
engolida pelas árvores. Galhos passavam por seu convés como cabelos
compridos.
A proa ainda estava para fora, visível para qualquer um no rio. Sem
pensar, saltei na água, e meus pés se afundaram na lama macia. A
profundidade da água chegava a pouco mais que o ombro. Apoiada com
vigor no casco da Cormorant, eu empurrei com toda a força.
Devagar, devagar, ela se moveu para baixo do véu de árvores, ajudada
pelo fim de sua inércia. Eu olhei loucamente para o rio. A Cormorant tinha
um perfil baixo e pintura escura, mas seriam as sombras suficientes para nos
esconder?
O navio que se aproximava ainda estava em sua maior parte escondido
pelas árvores, mas eu podia ouvir os rangidos e batidas de seu cordame e o
ruído da água passando por seu casco. A qualquer momento, ele iria fazer a
curva. Senti um aperto no peito. Eu me abaixei na água como um sapo, só
com a parte superior da cabeça acima da superfície. O cheiro de lama e capim
em meu nariz era forte.
O navio passou, e senti sua esteira me encobrir. De onde eu estava, era
baixo demais para ver muito dele, além de um vislumbre de pintura azul.
Dez minutos passaram de forma agoniante antes que o rosto de Fee
surgisse por cima da borda do convés. Sem dizer uma palavra, ela jogou uma
escada de cordas.
– Eram…? – Eu procurei o degrau de baixo.
– Eles.
Eu me ergui. Água escorria de minhas roupas e se empoçava aos meus
pés.
– Isso é intolerável. – Tarquin estava sentado no cockpit com os punhos
cerrados. – Eles quase nos pegaram. – Eu percebi que ele estava tremendo. –
É preciso haver outro meio.
Eu, de repente, me senti aborrecida.
– Esse é o único caminho para Valonikos.
– Você não entende! Não é você quem está em perigo!
– Não sou? – Eu levei a mão sobre o ferimento provocado pelo tiro. – Eu
fui baleada por sua causa, mas acho que você não se lembra disso. – Percebi
que seus olhos estavam baixos, no chão do cockpit, e perguntei: – Por que
você não olha para mim quando estou falando?
– Porque – disse ele com rigidez – sua camisa está molhada e posso ver
através dela. Embora eu ache que boas maneiras não sejam apreciadas nesta
banheira de madeira.
Levei rapidamente os braços ao peito e desci a escada para a cabine.
– Banheira de madeira – murmurei. Como ele me acusava de não ter
maneiras quando tudo o que ele tinha feito o dia inteiro fora me insultar?
Puxei e abri bruscamente a porta de meu armário e peguei uma toalha.
E congelei com o olhar atraído pela cortina que separava a cabine de meu
pai da minha. Olhei para trás, para os degraus do cockpit. Tarquin achava que
eu estava me trocando.
Essa podia ser minha única chance.
Abri as gavetas da escrivaninha de meu pai e revirei os papéis. Nada,
apenas contratos velhos e mapas enrolados. Ergui o tapete de palha e tateei as
ripas do piso por baixo. Ele não havia escondido a carta ali. Eu esperava ser
capaz de ouvir a chegada de Tarquin acima da pulsação em meus ouvidos.
Então, girei em um círculo e examinei o resto da pequena cabine à procura de
algum lugar onde ele pudesse ter escondido a mensagem.
Mas a carta não estava escondida no beliche de meu pai. Onde ela poderia
estar? As roupas não tinham bolsos internos para esconder algo assim, e eu
conhecia cada centímetro da cabine principal da Cormorant – ela não estava
ali. A menos que não houvesse carta nenhuma.
Mais cedo, quando eu disse seu nome, Tarquin não respondeu, quase como
se… Fui tomada por um calafrio gélido. Quase como se seu nome não fosse
Tarquin.
Um mensageiro real em uma caixa encantada. Isso parecia um conto de
fadas, porque era. Uma centelha de raiva ganhou vida em meu interior. Eu
odiava ser enganada. Quem quer que Tarquin Meridios fosse, ele tinha feito
com que eu parecesse uma idiota.
Um rangido nos degraus me alertou. Puxei os lençóis de volta sobre a
cama e fechei delicadamente as gavetas da escrivaninha. Com o coração
batendo forte, tirei a camisa molhada e me enrolei na toalha. Eu me virei e vi
Tarquin abaixar a cabeça para entrar na cabine.
Ele esbarrou em mim, e quase deixei a toalha cair.
– Por que você está espionando meu quarto? – Ele se erguia acima de
mim.
– Não é seu quarto. – Eu apertei bem a toalha, extremamente consciente
dos ombros nus. Água gotejava de minha calça encharcada no chão. – Eu só
estava… procurando uma toalha.
Tarquin passou os dedos pela atadura em meu braço.
– Eu… – ele limpou a garganta. Eu vi, nisso, hesitação. – Eu não quis
minimizar seu ferimento.
Algo me atravessou como um raio. Meu rosto queimou.
Ele desceu a mão pela toalha. Eu inspirei, imobilizada pelo choque de seu
toque. Então, ele se aproximou, e eu percebi que ele ia me beijar.
Eu lhe dei um tapa na cara.
A mão dele voou para o rosto avermelhado como se não pudesse acreditar
no que eu tinha feito. Esse segundo de hesitação e dúvida foi tudo de que eu
precisei.
Eu girei, saquei a faca da bainha e saí de seu alcance. Quando ele se
recuperou o suficiente para reagir, eu estava atrás dele. Segurei sua camisa
com uma das mãos e a torci para mantê-lo no lugar.
E apertei a ponta de minha faca contra suas costas.
Ficamos congelados em um impasse silencioso e tenso. Senti o movimento
errático de sobe e desce enquanto ele tentava controlar a respiração. Torci
para que minha faca não estivesse tremendo. Rapidamente, compreendi o
risco de minha situação. Ele parecia protegido e mimado, mas até onde eu
sabia, isso era um personagem. Se estava mentindo sobre ser um mensageiro,
ele podia ser qualquer um.
– Você percebe que sou muito mais forte que você. – Sua voz estava
firme. – E treinado em combate pessoal. Posso quebrar seu braço antes que
você entenda o que está acontecendo. Se eu resolver fazer isso.
– Você percebe que isso é uma faca – retruquei com o coração acelerado
diante de sua ameaça. – Posso estripá-lo antes que você quebre meu braço. Se
eu resolver fazer isso.
– Você não faria.
– Já arranquei a pele de quase mil peixes – eu disse. – Vou arrancar a sua.
Eu não conseguia me imaginar fazendo nada do gênero, mas nunca antes
um rapaz tinha tentado me beijar desse jeito, como se fosse seu direito.
– Você está blefando – disse ele.
Claro que eu estava, mas e ele? Eu o estudei, e meu olhar permaneceu em
seus braços. No dia anterior, quando ele me erguera do bote, eu percebi sua
força surpreendente. Ele podia estar dizendo a verdade sobre ter treinamento
em combate. Já se ele tinha participado de alguma luta de verdade… Eu era
mais cética em relação a isso.
Será que eu devia confrontá-lo? Acusá-lo de mentir? Sozinha ali com ele
na cabine, eu de repente não me senti segura. Quase me ressenti mais com ele
por isso que por mentir para mim. A Cormorant era minha casa.
– Por que você fez isso? – Eu empurrei a ponta da faca.
– Ai! Eu achei que você quisesse. Foi você que entrou no meu quarto. Sem
camisa. E aí olhou para mim como… Eu tive a impressão… Bom, todo
mundo sabe que as garotas das terras dos rios… – ele parou.
– Todo mundo sabe que as garotas das terras dos rios o quê? – Eu apertei a
lâmina com mais força, na esperança de que minha voz parecesse perigosa.
– Não importa – murmurou ele. – Isso não foi educado.
Ele estava certo, não foi nada educado.
Eu estava começando a repensar minha posição. Enquanto era verdade que
eu o tinha em desvantagem, eu estava apertada contra suas costas. Podia
sentir seu cheiro e o calor úmido emanando da pele de seu pescoço.
– Não acredito que você achou que eu iria… Ugh! – Eu o soltei e recuei
pela cabine.
– Ouvi dizer que as garotas das terras dos rios são mais… experientes que
em Akhaia. – Ele enfiou os dedos por baixo da camisa e os esfregou juntos,
para confirmar que eu não o havia cortado. – Eu acho que não.
– Eu já beijei um garoto antes, se é isso o que você quer dizer. – Assim
que as palavras saíram da minha boca, eu me arrependi delas. Eu não tinha de
dar explicações a ele.
– Então, por que você ficou tão ofendida?
Eu segurei a toalha junto ao peito.
– Só porque eu beijei outra pessoa não significa que estou interessada em
você!
Pelo modo como ele me olhava fixamente, eu podia dizer que essa ideia
não tinha passado pela cabeça dele.
– Dizer “não” é uma opção perfeitamente aceitável – disse ele com
desprezo. – Uma bem diferente de enfiar uma faca em alguém.
– Eu o estou levando a Valonikos porque não tenho escolha – eu disse. –
Não porque gosto de você. – Ele tinha me chamado de comum, insultado a
Cormorant e, além de tudo isso, agora eu estava certa de que sua história era
mentira.
– Eu não quero que você me leve para Valonikos! – O lábio dele se
retorcia furiosamente. – Eu não tenho falado isso para você?
Eu vi um brilho de culpa em seu olho.
– Por que realmente você tentou me beijar? – perguntei.
– O quê? – Ele rompeu o contato visual.
– Você achou que se você… Se você me seduzisse, eu o levaria para
Casteria, não é? – ele não disse nada. – Não é?
– Está bem! Quero dizer, isso não… – Ele deu um suspiro. – A ideia
passou pela minha cabeça, sim. Quando garotas acham estar apaixonadas,
elas…
– Elas o quê? – Eu brandi a faca.
– Elas ficam dispostas a fazer coisas que normalmente não fariam.
Sacudi a cabeça sem acreditar. Ele era nojento.
– Eu… Isso… As garotas que você conhece são mesmo assim tão
ingênuas? – esbravejei.
Ele olhou para minha calça úmida.
– As garotas que eu conheço são garotas.
As palavras caíram entre nós, e até ele pareceu perceber ter exagerado. Ele
enfiou a mão no cabelo despenteado.
Eu dei a volta e saí da cabine. Ao ver a expressão assassina em meu rosto,
Fee saiu do meu caminho. Atordoada e furiosa, eu andava de um lado para
outro em meio às folhas caídas de salgueiro espalhadas pelo convés. Eu não
conseguia imaginar como Tarquin pôde entender tudo tão errado. Como se eu
estivesse pensando naquilo.
As garotas são garotas. Isso incomodava porque ele não sabia nada sobre
mim. Quando visitei a família de minha mãe em Siscema, eu penteei o cabelo
para cima e usei vestidos. Fui a festas e fogueiras, fofoquei com minhas
primas. E no último verão, eu flertei com um garoto marinheiro, Akemé. Eu
não era ingênua o suficiente para achar que tinha sido um grande caso de
amor nem nada, mas tinha sido divertido. Pelo menos, ele antes se assegurou
bem de que eu queria beijá-lo.
Isso não poderia ser mais diferente. Eu não confiava em Tarquin, e,
mesmo que confiasse, ele não era nada o meu tipo. Ele era um esnobe,
preocupado demais com a própria honra. E ele não sabia como fazer nada.
Não havia nada atraente em um homem que era praticamente indefeso.
Eu estava mergulhada tão fundo em meus pensamentos que, primeiro, ouvi
o Victorianos antes de vê-lo. Sua retranca chacoalhou quando ele fez a curva,
e seus cabos gemeram e rangeram. Vozes masculinas ecoavam acima da água
imóvel. Sem ousar me mexer, observei em silêncio através da cortina de
folhas de salgueiro.
Então, eles estavam andando pelo rio de cima a baixo à nossa procura.
Minha cabeça ficou zonza e estranhamente leve. Diric Melanos podia ser um
patife, mas era um capitão habilidoso. Devia ser difícil manobrar um cúter
rápido como aquele por todas aquelas curvas. Muito depois de o cúter ter
passado rio abaixo, o ritmo de meu coração ainda estava acelerado.
– A bênção das pequenas coisas – sussurrei, desejando que o deus do rio
dissesse algo em resposta.
Joguei um balde no rio e lavei a sujeira do convés. Folhas de salgueiro
caíram na água em uma cascata satisfatória. Eu parei e me concentrei no
balde em minhas mãos.
Eu tive uma ideia.
Depois de tornar a enchê-lo, caminhei de volta até o cockpit.
– Tarquin – chamei, debruçando-me pela escotilha. – Venha cá. Tenho
uma coisa para você.
Ele se aproximou com cautela.
– Espero que sejam desculpas – disse ele com desdém.
Eu virei o balde.
Xingando e cuspindo água, ele se moveu ruidosamente pela poça. Ele
cuspiu cabelo molhado da boca e olhou para mim com uma raiva silenciosa.
Havia uma alga grudenta e pegajosa pendurada em sua orelha. Suas belas
botas de couro estavam encharcadas, e a camisa de meu pai estava grudada
em seus ombros.
Bom. Isso devia esfriá-lo.
CAPÍTULO
NOVE
– Carô? Por que você pintou o nome da Cormorant? – foi a primeira coisa
que ela quis saber. – Seu pai está com problemas por contrabandear outra
vez?
Meu pai diz que a melhor mentira é a mais próxima da verdade, por isso
eu aproveitei a oportunidade que ela me ofereceu.
– Ayah – eu disse. – Quando ele não está? Ele achou que devia se manter
discreto por um tempo. Somos só eu e Fee. Estou a caminho de Valonikos
para buscá-lo.
Eu percebi que ela estava olhando fixamente para minha mão, onde eu
ainda apertava a pistola. Eu a enfiei despreocupadamente no cinto.
– Havia um homem por aqui, antes – eu disse como explicação, com a
nuca arrepiada pelo nervosismo. – Não gostei da aparência dele.
– Você vem de Pontal de Hespera? – Minha mãe se apoiou em uma
pilastra da doca. – Temos ouvido rumores estranhos. De problemas em
Akhaia e… outras coisas. Não sabemos como interpretá-los.
Admirei a fileira de brincos que percorriam todo o lobo de sua orelha. Ela
também usava um brinco cintilante do lado esquerdo do nariz. Eu não duvidei
que fossem de ouro verdadeiro.
– Não – eu disse, fria como uma barriga de truta. – Quero dizer, nós
estivemos em Pontal de Hespera. Mas faz alguns dias. Soube que piratas a
queimaram. O homem no barco do pedágio na ponte de Gallos disse isso,
mas eu achei que ele estivesse me provocando.
Minha mãe pareceu preocupada.
– Acho que não – ela disse.
– Algum problema? – Agradeci por ter guardado a carta de corso. Não
havia maneira fácil de explicar isso para minha mãe.
– Não sei dizer ao certo. – Ela deixou as preocupações de lado. – Mas
claro que você vai à minha casa jantar.
– Eu… uh… preciso pegar a maré para Doukas – menti. Eu não ia para o
norte, passando por Doukas, mas para o sul, pelo Lago Nemertes.
– Você, agora, está evitando sua mãe?
Esforcei-me para não me contorcer como um besouro cutucado com uma
vara.
– É minha primeira viagem sozinha. Eu queria ser rápida.
– Você pode pegar a maré da manhã e chegar lá ao meio-dia, Carô. Como
você bem sabe. – Ela saltou para o convés da Cormorant e acenou com a mão
para dispensar seus acompanhantes. – Agora, solte as amarras e vá para a
terceira doca. Temos uma vaga aberta. Você não vai ter de pagar as tarifas de
porto.
E, desse jeito, eu me vi presa.
Enquanto guiávamos a barca até a doca dos Bollards, minha mãe cruzou as
pernas e reclinou-se no assento do cockpit. Fee olhou para mim com
apreensão, mas não disse nada. Eu mesma tentei evitar olhar para a escotilha
da cabine. Torci para que Markos tivesse tido o bom senso de obedecer
minhas instruções e se esconder, mas, com o olho de águia de minha mãe
sobre mim, eu não ousei verificar. Depois que terminamos de descarregar
tudo, juntei-me a minha mãe nas docas e deixei Fee de vigia.
Minha mãe ficou bem perto ao meu lado enquanto caminhávamos pela rua
movimentada. Eu sabia que não havia como evitá-la. Ela era mais afiada que
uma faca – e, naquele momento, mais perigosa. Os Bollards comandavam um
vasto império comercial, isso era verdade. Mas, como eu dissera a Markos,
havia dedos seus em muitos negócios.
– Não gosto da ideia de Nick deixar você viajar sozinha – disse minha
mãe, esquivando-se de uma carroça cheia de barris.
– Mãe, tenho dezessete anos. Um dia ela vai ser minha barca.
Ela apertou os lábios para mostrar o que pensava disso.
– Sim, bem. Nada está decidido. Você ainda é nova. Qual foi o problema?
Eu hesitei.
– Acho que esse não é o tipo de coisa que ele gostaria que você soubesse.
– Isso era verdade. Em termos. – Sem ofensa, é claro – acrescentei, ao
perceber a sorte de ela não saber que meu pai estava contrabandeando
mosquetes para os rebeldes de lorde Peregrine. Ela teria ficado furiosa.
Ela escarneceu.
– É claro.
Porém, ela pareceu mais irritada com meu pai que comigo, o que servia
muito bem a meus propósitos.
– Como vão os negócios? – perguntei, como tática para dispersar.
Funcionou.
– Na verdade, a Companhia Bollard entrou recentemente em inúmeros
negócios lucrativos… – E iniciou uma explicação longa e maçante sobre
contratos de carga.
Os Bollards adoram falar de si mesmos. Eles acham que são a melhor
coisa que já existiu. Era por isso que eles não entendiam meu pai. Eles não
conseguiam ver por que um homem podia querer trabalhar no rio como um
barqueiro independente quando podia, em vez disso, se aliar a uma poderosa
casa comercial. Os Bollards possuíam e administravam muitos barcos, tanto
no mar como nos rios, mas eles contratavam outras pessoas para navegá-los.
Eles se achavam acima de meros barqueiros.
Talvez fossem. Foi um Bollard quem descobriu a rota marítima para
Ndanna, e o primeiro a circum-navegar esse grande continente. Tornar-se útil
para a família não era uma escolha – era esperado. Minha mãe achava que eu
devia estar na escola, aprendendo retórica, navegação ou alguma outra coisa.
Gentilmente, todo verão, desde que eu consigo lembrar, meu pai enchia
uma mochila e me deixava nas docas de Siscema para passar duas semanas
com minha mãe. Mas, ela, invariavelmente, se via ocupada com negócios da
família, portanto, em vez disso, eu apenas acabava aprontando com minhas
primas. Havia duas com mais ou menos a minha idade: Kenté e Jacarandá.
Esse era um dos motivos pelos quais eu queria evitar ir à casa dos Bollards.
Eu ficaria extremamente tentada a contar tudo a minhas primas, mas não
podia.
A imponente residência dos Bollards na cidade ficava em uma fileira de
casas de quatro andares idênticas e conectadas. As pessoas na cidade a
chamavam de a Casa do Capitão, pois ela tinha pertencido ao próprio Jacari
Bollard. Ela era maior no interior do que aparentava de fora. Estendia-se
interminavelmente e acabava em um jardim, em uma cavalariça e em uma
adega com a própria plataforma de carga. Acima da porta da frente, havia o
emblema da família: um barril de vinho com três estrelas em arco sobre ele.
No vestíbulo, imperando sobre os visitantes com sua fronte sisuda e
chapéu alto, havia uma pintura do grande explorador Jacari Bollard. Ele
olhava de cima para mim enquanto eu limpava as botas enlameadas no tapete,
sem dúvida se perguntando como uma de suas descendentes tinha acabado
por capitanear uma barca inferior. Ele parecia excessivamente aprumado e
nobre – nada de contrabando para o capitão Bollard, não senhor.
Embaixo do retrato, havia um mostruário polido cheio de objetos curiosos.
O contrato original da Companhia Bollard era mantido ali, sob um vidro,
junto com um sextante e vários mapas no estilo clássico com monstros e
serpentes desenhados nas bordas.
Um velho alerta de perigo. Aqui há drakons.
Minha mãe sinalizou para que uma criada pegasse minha capa de chuva.
– É claro que você vai querer um banho quente. Vou mandar uma criada
subir.
Isso era meu destino rindo de mim. A capitã de uma barca não espera ser
mandada para o banho como uma criança malcriada, não depois de ser
alvejada por piratas e incendiar uma taverna. Torci para que Markos não
tivesse a ideia de fazer alguma coisa idiota enquanto eu estivesse fora.
Depois que a criada saiu, puxei o cabelo para o alto da cabeça para que ele
não se molhasse e afundei na banheira de cobre fumegante. Enquanto
esculpia torres inclinadas com punhados de espuma, eu quase conseguia
fingir que tudo estava como deveria estar. Eu me perguntei se meus
ancestrais infames – os Oresteias, que desafiaram o bloqueio ou o intrépido
capitão Bollard – alguma vez pararam no meio de suas aventuras para um
banho demorado. Provavelmente, não.
Mas minha vida de repente tinha virado uma confusão maldita. Apoiei a
cabeça na borda da banheira e tentei não pensar em meu pai, em Markos nem
nos Cães Negros. Não consegui.
O vestido trazido pelas criadas era feito de brocado azul rígido com um
painel engomado na frente. Ele tinha decote baixo e era encimado por uma
jaqueta de um azul mais claro amarrada por um cinto na cintura, bufante
acima das saias. As mangas da jaqueta estavam presas por laços de fita e
cadarços no punho. Eu teria gostado de encontrar algum lugar naquele mar de
tecido para esconder minha pistola, mas as criadas irritantemente se
recusavam a dar as costas por mais que alguns segundos. Eu fui forçada a
deixá-la para trás.
Foi assim que eu me vi conduzida para o jantar. A sala de jantar dos
Bollards era um salão com painéis de madeira e muitas mesas. Minha mãe e
os membros mais velhos da família sentavam-se à mesa principal,
posicionada sobre uma plataforma. O ambiente estava repleto de vinho,
azeitonas e conversa alta. Cortinas de seda se entrelaçavam nas vigas, criando
um teto ondulado.
Todas as pinturas eram de navios, cada uma delas com uma placa de
identificação na base da moldura. Havia o Magistros, nossa nau capitânia do
século passado, um navio de três mastros. O Nikanor, perdido no mar na
região das Ilhas do Chá muito tempo atrás, e, na moldura mais ornamentada
de todas, o Astarta, que fora o navio do próprio capitão Bollard.
Toda essa história olhando para mim, e quem era eu? Apenas uma
barqueira com um monte de problemas.
Os olhos de minha mãe examinaram meu vestido citadino e se demoraram
em meu cabelo, que estava confinado por uma rede de renda negra.
– Muito melhor – disse ela. O que pareceu ridículo da parte dela, em
minha opinião, porque ela não tinha se dado ao trabalho de vestir saias. Ainda
usava o mesmo gibão com turbante que estava vestindo nas docas.
Meu tio Bolaji estava sentado ao lado dela. Ele era o mais alto oficial da
Companhia Bollard, um homem largo de face marrom-avermelhada que
usava a barba negra em três pontas, com uma conta em cada uma de suas
extremidades.
– Os Cães Negros não são uma tripulação respeitável. Não gosto de
negociar com esses homens – resmungou ele. Em seguida, ele me viu. – Olá,
Caroline. Espero que seu pai esteja bem.
Eu enrijeci ao ouvir suas palavras.
– Ele… está, obrigada – consegui balbuciar. Cães Negros, na casa dos
Bollards?
– E, ainda assim, dizem que um homem sábio tira mais proveito de seus
inimigos do que um tolo de seus amigos. – Minha mãe ergueu as
sobrancelhas para o tio Bolaji e bebeu o resto de seu vinho.
Ele deu um suspiro.
– Você estava certa em não dispensá-los. Também se diz que um
marinheiro deve conhecer a direção do vento antes de içar suas velas. – Eles
trocaram olhares plenos de significado. – Se os rumores que ouvimos são
verdade, o vento mudou. Descubra o que puder.
Minha mãe se levantou.
– Tenho certeza de que você vai querer ficar com suas primas, Carô. Eu
tenho negócios.
Quando pequena, sempre me ressenti dessas palavras. Aquela noite,
enquanto eu observava minha mãe deixar a sala de jantar, elas despertaram
uma curiosidade poderosa. Que negócio ela teria com os Cães Negros? Será
que o Victorianos estava agora mesmo parado na baía? Os homens do capitão
Melanos podiam estar revirando as docas.
Eu segui para as mesas mais baixas, fazendo um caminho sinuoso entre os
criados carregando coisas. Ao ver minhas primas Kenté e Jacarandá, parei e
abri um sorriso.
Elas estavam debruçadas sobre uma bandeja de pão, húmus e tâmaras,
com as cabeças próximas. Jacky era um ano mais velha que eu, e Kenté, um
ano mais nova. Eu tinha passado muitas semanas com elas na casa dos
Bollards durante os verões. Jacky era filha de uma prima de minha mãe. Na
verdade, eu não sabia ao certo qual o parentesco entre mim e Kenté, mas
todos os Bollards chamavam uns aos outros de “primos”. Quando crianças,
eu e elas subíamos em caixotes de carga nos armazéns da família e
passávamos horas nos balançando nos pilares das docas, criando histórias
sobre os barcos de velas cheias que subiam e desciam lentamente o rio.
Embora meus sentimentos em relação a ser uma Bollard fossem complicados,
eu amava minhas primas.
– Que a corrente vos leve – disse Kenté quando me juntei a elas. O brinco
de ouro em seu nariz brilhava à luz das velas. – Achei que você não fosse
aparecer antes do verão!
Kenté estava usando o cabelo repartido em quatro seções e preso em
tranças. Trajava um vestido verde com listras douradas muito bonito. Ele era
ainda mais chamativo que o meu, o que já dizia muita coisa, mas aquilo era
Siscema. Eles faziam as coisas de um jeito diferente na cidade.
– Que a corrente vos leve. – Parecia fazer dias desde que eu sorrira pela
última vez, mas, com minhas primas, era impossível não sorrir. A sensação
agourenta de perigo que tinha ficado zumbindo constantemente em mim se
aliviou um pouco.
– Não estou vendo seu pai – disse Jacky.
– Estou sozinha. – Eu me sentei em uma cadeira. – Estou fazendo minha
primeira viagem sozinha até Valonikos. – Decidi parar por aí, antes que elas
começassem a achar que eu estava escondendo algo.
– Está mesmo? Muito bom, Carô! – Kenté serviu um copo de vinho quase
até a borda e o empurrou sobre a mesa.
– Ah, espere até Akemé descobrir que não encontrou você. – Jacky me
cutucou no ombro. Um sorriso malicioso se abriu em seu rosto, que era de
tom mais claro, devido à presença de sangue akhaiano em seu ramo da
família.
Eu peguei uma tâmara, na esperança de que não me percebessem corar.
– Ele não está aqui?
Akemé era o jovem marinheiro com quem eu dormira no verão passado,
no que tinha sido minha primeira e, até então, única experiência do tipo.
Minhas primas sabiam de todos os detalhes do encontro – bem, a maior parte
deles –, e estavam determinadas a nunca me permitir esquecer isso.
– Está como aprendiz em Iantiporos. Com o pai. – Ela piscou para mim. –
Vou dizer a ele que você mandou um beijo.
– Jacarandá Bollard, você não faria uma coisa dessas! – exclamou Kenté,
fazendo com que vinho transbordasse de seu copo.
– Ah, ela faria, sim – eu disse. – Escutem, garotas, vocês sabem alguma
coisa sobre esses Cães Negros?
Kenté sempre sabia das fofocas boas. Como eu esperava, ela aproveitou
minha pergunta e estreitou os olhos.
– Sei que eles chegaram à cidade há uma hora, na chalupa Alektor.
Desceram o rio desde Doukas. Sua mãe deixou seu capitão à espera no salão
azul.
Uma hora. Enquanto eu estava aproveitando o luxo da sensação de água
quente em minha pele. Como eu podia ter sido tão estúpida? E quantos
navios os Cães Negros tinham à nossa procura? Eu nunca tinha ouvido falar
em uma chalupa chamada Alektor. Eu precisava voltar às docas e alertar Fee
e Markos.
– Ouvi dizer que Diric Melanos é o fora da lei mais bonito em alto-mar –
disse Jacky.
Eu quase escarneci. Como as lendas são exageradas.
– Ele não está aqui, está?
– Não, infelizmente.
– O que eles querem? – perguntei a Kenté, com o coração batendo
descontroladamente. Eu rasguei um naco de pão e o passei pelo prato para
pegar húmus com azeite.
– Negociar. – Ela deu de ombros.
Minha mãe era a principal negociadora do clã dos Bollards. Isso não me
disse muito.
– Sabe sobre o quê? – perguntei com a boca cheia, tentando dar a
impressão de que isso não tinha a menor importância para mim.
– Estão procurando alguém em uma barca.
– Oh, ayah? Os Bollards agora viraram caçadores de recompensa? –
perguntei com mais brusquidão do que era minha intenção.
– Tem alguma coisa a ver com carga roubada.
Meus dedos se cravaram na mesa. Mentirosos nojentos.
– Como você sempre sabe de tudo? – perguntou a ela Jacky.
Por um breve instante, o rosto de Kenté assumiu um brilho estranho.
– Essa é a minha sorte – disse ela. A luz da vela dançava sobre sua pele
marrom e seus olhos âmbar. – As sombras me favorecem. – Ela riu, e eu
percebi que ela estava apenas brincando.
Eu me debrucei para mais perto.
– Você soube de alguma coisa sobre um cúter chamado Victorianos, de
Iantiporos?
– Nada. Por quê?
Eu mastiguei em silêncio. O salão azul era a segunda melhor sala de estar
dos Bollards. Eu precisava dar um jeito de conseguir ir até lá e descobrir o
que estava acontecendo.
– Dizem que o capitão Melanos capturou cem navios, sabia? – disse
Kenté. – Nos conflitos de 88, quando ele era um corsário de Akhaia.
Jacky riu.
– Eles também dizem que o Nikanor foi afundado por um grande drakon
do mar, não dizem? – Ela apontou com a cabeça para a pintura na parede. –
Mas isso é só uma invenção.
Kenté lançou um olhar penetrante para ela.
– Como você sabe?
– Por que não existem coisas como drakons, é claro.
Um calafrio incontrolável subiu por minha nuca. Todo mundo que já leu
uma história sabe que não há melhor maneira de garantir que você seja
engolido por um drakon no último capítulo do que dizer que “não existem
coisas como drakons”.
Eu sabia que Kenté estava pensando a mesma coisa, mas ela não disse. Em
vez disso, ela baixou a voz.
– Sei de uma história com um drakon. Ela começa assim: Há muito tempo
atrás, em uma época esquecida, havia uma menina que amava segredos. Para
sua sorte, ela vivia em uma grande casa antiga que tinha muitos deles. Tarde
da noite ela costumava circular como um fantasma pelas passagens dos
criados. Aconteceu que, em uma determinada passagem, havia um furo perto
de uma lareira. Quando ela levou os olhos e ouvidos a esse furo, ela pôde ver
e escutar tudo o que se passava na saleta do outro lado. E, uma noite…
Jackie revirou os olhos.
– Não acredito que haja algum drakon nessa história. Você está só
inventando coisas.
Kenté botou a língua para fora, mas seus olhos se franziram ao cruzar com
os meus. Fui tomada por um frisson, pois eu entendi que aquilo não era
nenhuma história, suas palavras eram para mim.
Empurrei a cadeira para trás.
– Vou ao banheiro, meninas.
Kenté bateu na lateral do nariz com o dedo.
Há muitos segredos na casa dos Bollards. Para minha sorte, Kenté
conhecia a maioria deles. Ela estava certa sobre a passagem dos criados. Eu
entreabri a porta e entrei por ela. O corredor estreito tinha paredes caiadas de
branco e vigas baixas, um reflexo triste de seu companheiro mais elegante
que corria paralelamente ao longo da frente da casa. Caixotes e barris
empilhados cobriam a parede, todos com a marca do barril com as estrelas
dos Bollards. Essa extremidade da passagem estava deserta, pois a maioria
dos criados estava ocupada com o jantar.
Assim, consegui levar o olho ao buraco perto da lareira e espionar a
reunião de minha mãe com o homem dos Cães Negros.
Provavelmente, aquele era o mesmo Philemon que o capitão Melanos
tinha mencionado. Ele não me pareceu grande coisa. Sua barba era
emaranhada e malcuidada, e ele sempre parava para limpar o suor da testa
com um lenço listrado.
– Soubemos do massacre em Pontal de Hespera. – Minha mãe empurrou
um copo de vinho até o outro lado da mesa.
O homem deu um sorriso malicioso.
– Só duas pessoas foram mortas, portanto, isso não pode exatamente ser
considerado um massacre. – Fiquei louca de vontade de socar sua cara feia.
Os Singers eram pessoas reais, pessoas boas, e ele achava a coisa toda uma
piada.
Minha mãe esperou com as mãos entrelaçadas.
– Soube que os Cães Negros foram responsáveis.
– Diric Melanos fez um contrato com a família dos Theucinianos para
localizar e recuperar certa caixa de produtos roubados. Por qualquer meio
necessário, querida. – Ele deu um gole de vinho e grunhiu. – É bom.
Uma expressão de desdém, rapidamente escondida, passou pelo rosto de
minha mãe. Ela provavelmente estava achando que esse homem era um
desperdício de belo vinho antigo. Os Bollards se preocupavam muito com o
vinho.
– Por que você não me conta o que estão procurando? – Minha mãe serviu
um copo para si mesma.
– Nosso problema é com uma barca. Chamada Cormorant.
Eu quase caí para trás.
Minha mãe não reagiu. Sequer piscou. Eu sacudi a cabeça, estupefata. Eu
estava vendo porque ela era a melhor negociadora dos Bollards. Então, o
homem no barco de pedágio estava certo. Os Cães Negros sabiam o nome da
Cormorant – não só o Victorianos, mas essa outra embarcação, a Alektor. E,
naquele momento, minha mãe também sabia que eles estavam à nossa
procura.
– Há trinta barcas amarradas nas docas – disse minha mãe. – Você planeja
incendiar todas elas também? Porque posso lhe dizer que, se fizer isso, nunca
vai ter a ajuda dos Bollards. – Ela se encostou na cadeira. Para alguém que
não estivesse realmente prestando atenção, ela podia parecer relaxada, mas
era como uma gata estudando a maneira certa de atacar. – Philemon, não é?
Você se importa se falarmos abertamente?
– Adoro conversas abertas – disse ele com um olhar malicioso. Eu quase
senti pena dele.
– Algumas das barcas que você incendiou em Pontal de Hespera eram
embarcações dos Bollards.
– Bem, não fui eu quem fez isso. Foi Melanos. Ele é jovem e exagera as
coisas.
– Mesmo assim. – Minha mãe se debruçou para mais perto do homem.
Philemon sorriu, achando que ela estivesse flertando, mas eu sabia que ela
estava se movendo para matar.
– Se nós o ajudarmos a localizar essa barca, essa Cormorant – disse ela –,
naturalmente, qualquer valor pago a nós seria uma adição à restituição que os
Cães Negros já vão pagar à Companhia Bollard pela destruição de sua
propriedade. Acredito que foram quatro barcas afundadas, o que leva a
quantia que vocês devem a 250 mil. – Ela sorriu e passou o dedo pela linha
curva do decanter. – Mas isso depende de um cálculo do avaliador, é claro. E
quanto, além dessa soma, vocês estão dispostos a nos pagar por nosso
auxílio? – Ela inclinou a garrafa na direção dele. – Mais vinho?
Philemon piscou.
Eu me afastei do buraco com a cabeça zunindo de pensamentos. Então,
algumas das barcas afundadas pertenciam aos Bollards. Bom, se alguém
podia tirar dinheiro dos Cães Negros, era minha mãe. Ela podia arrancar
dinheiro de pedra.
Eu desconfiei que ela estivesse apenas retardando Philemon. Ela não tinha
nenhuma intenção de auxiliá-lo nessa busca, não quando ela sabia que a
Cormorant estava bem ali. Assim que minha mãe saísse dessa reunião, eu
poderia esperar uma surra. Ou, pelo menos, um interrogatório muito firme.
Fechei cuidadosamente a porta da passagem dos criados, atenta ao clique
baixo do trinco. Eu não ousava ficar nem mais um minuto na casa dos
Bollards. Eu não poderia resistir às perguntas de minha mãe. Ela iria
descobrir tudo. Eu tinha de subir às escondidas, tornar a vestir minha roupa e
fugir imediatamente.
Quase cheguei até a escada antes que a voz de meu tio no vestíbulo me
detivesse. Eu fiz a curva rapidamente e me achatei contra a parede.
Outro visitante tinha chegado tarde à casa dos Bollards. Um que eu
conhecia bem demais.
CAPÍTULO
QUATORZE
Markos estava usando um casaco que eu nunca tinha visto antes. Azul-escuro
com adornos dourados, ele se estreitava na cintura e caía em um conjunto de
caudas longas até seus joelhos. Uma fileira de fivelas reluzentes subia por seu
peito.
– Que a corrente vos leve nesta bela noite, senhor. – Ele bateu os
calcanhares e fez uma mesura.
Com um pequeno aceno para dispensar o mordomo, o tio Bolaji recuou
para o interior do vestíbulo para permitir a entrada de Markos.
– Sim, sim. Eu lhe dou as boas-vindas à casa dos Bollards.
– Meu nome é Tarquin Meridios. – Ele saiu da garoa enevoada, aprumou-
se em toda sua altura e removeu o chapéu impermeável de meu pai. O cabelo
dele caía para trás em ondas pronunciadas a partir da testa. – Eu tenho a
honra de ser mensageiro do consulado akhaiano. Soube que esta era a casa
aonde vir. Pois, o senhor sabe, necessito de um barco com urgência.
– Na verdade, posso conseguir passagem para o senhor em um de nossos
navios – disse meu tio. – Mas por que não procurou nossos escritórios?
Temos instalações na Rua Larga, muito mais perto das docas.
– Infelizmente, devido a minha situação, cheguei tarde a Siscema. Por
isso, peço desculpas, assim como por minha aparência.
Markos gesticulou para suas roupas. Eu desdenhei da sugestão de que
houvesse alguma coisa errada com o jeito como ele estava vestido. Ele ainda
estava usando a calça e camisa de meu pai, mas aquela jaqueta era mais
elegante do que qualquer coisa que tínhamos a bordo do Cormorant. Vi o tio
Bolaji olhar para ela e nitidamente avaliar sua qualidade.
– Eu devia levar alguns documentos para meus colegas na cidade de
Valonikos – disse Markos. – Mas, após uma série de infortúnios, que
incluíram, entre outras coisas, o roubo de um belo cavalo por um grupo de
bandidos, fui forçado a negociar minha passagem em uma barca local. Mas,
agora, tenho necessidade de grande velocidade.
Seus lábios se retorceram quando ele chegou à parte dos bandidos. Ele
estava gostando daquilo. Ele estaria se divertindo muito menos se soubesse
que um dos Cães Negros estava sentado do outro lado da porta, a pouco mais
de cinco metros de distância.
– Sua chegada a esta hora é uma pena, pois nossa representante está
atualmente em reunião com outro cliente. Na verdade, eu estava prestes a me
juntar a eles. – O tio Bolaji coçou a cabeça. – O senhor se importaria de
esperar no corredor até terminarmos com os outros assuntos?
– Isso seria mais que adequado – disse Markos. – O senhor tem minha
gratidão.
Eu me maravilhei com a rapidez com que ele voltara à fala formal.
Quando nos conhecemos, eu o achei rígido demais. Mas, naquele momento,
eu percebi que suas maneiras eram como uma fantasia que ele podia vestir ou
tirar – uma habilidade que certamente tinha suas vantagens.
– A menos… – Meu tio fez uma pausa. – O senhor gostaria de se juntar à
família no jantar?
Eu não podia deixar que ele ficasse ali, onde Philemon poderia vê-lo. Fiz a
curva de volta, lentamente.
– Isso não vai ser necessário, eu já… – Markos levantou os olhos e me viu.
Sacudi a cabeça vigorosamente, e ele se calou com uma tosse estranha. – Isto
é…
Eu entrei com as saias farfalhando em torno das pernas.
– Eu vou levá-lo para a sala de jantar, tio, se o senhor quiser ir lá com
minha mãe.
Eu peguei o braço de Markos. Ele imediatamente o ergueu, como homens
da cidade fazem quando acompanham uma dama. Eu pus a outra mão na
manga de sua jaqueta e fiz um grande esforço para dar um sorriso para ele.
Acho que não consegui, porque ele engoliu uma risada e olhou fixamente
para as tábuas do piso.
– Carô. – Meu tio ergueu as sobrancelhas. – Achei que você estivesse
jantando.
– Precisei pegar uma coisa – menti. – De qualquer modo, acho que ele vai
preferir se sentar com pessoas de sua idade. Não é mesmo?
Markos alternava o olhar entre mim e ele.
– Só até eu voltar. – O tio Bolaji olhou para a porta do salão azul. – Pois
eu gostaria de lhe pedir notícias de Akhaia. Se não se importar, meu jovem.
Nós só ouvimos rumores.
– Posso lhe contar o que sei – disse Markos. – Embora não seja muito,
infelizmente. Não volto a Akhaia há semanas. Mas eu também tenho notícias
graves.
– Bom, então. Você deve se juntar a mim à mesa quando eu voltar. Por
ora, vou deixá-lo aos cuidados das garotas, enquanto sigo meu caminho – ele
sorriu. – Tenho certeza de que nenhum jovem vai se importar com isso,
certo? – Ele desapareceu no salão azul, deixando-nos sozinhos no corredor.
Eu arrastei Markos pela porta mais próxima. Era um armário de casacos. O
ambiente cheirava a cedro e cânfora, e mal era grande o suficiente para nós
dois de pé, espremidos como estávamos entre fileiras de casacos.
– O que você está fazendo aqui? – perguntei.
– Ai! Solte minha manga. – Ele puxou o braço. – Achei que você estivesse
com problemas quando não voltou. Quando você ia me contar?
– Sobre o quê?
– Você sabe o quê. – Quando eu não disse nada, ele insistiu. – Esta casa?
Sua mãe? Você ficou com muita raiva de mim por esconder minha
identidade, mas nunca disse uma palavra sequer sobre nada disso. Eu tive de
saber por Fee.
Eu falei entre dentes cerrados.
– Minha identidade não vai fazer com que sejamos mortos.
– Sua identidade poderia nos salvar. Essas pessoas têm navios…
– Markos, você não pode estar aqui – interrompi. – Você não devia ter
deixado o barco.
– Fee está lá. Ele vai ficar em segurança.
– Estou dizendo que você não vai estar em segurança. Os Cães Negros
estão aqui! Seu capitão está nesta casa neste momento. No fim do corredor,
na sala de estar.
– Como assim com os Cães Negros? Aquele cúter não está em nenhum
lugar à vista.
– Philemon – eu disse, e observei seus olhos se arregalarem com o
reconhecimento. – Há outro barco. Uma chalupa.
– O que é uma chalupa? – perguntou ele. Segurei a língua para não dizer
nada rude. Ele prosseguiu, em um sussurro. – Pode ser um barco negro com
duas velas, uma normal e uma na frente? Tem um assim perto da gente. O
Alektor. Ele chegou ao porto depois que escureceu.
– Ayah? Ora, veja quem sabe tudo! Você sabia que ele pertencia aos Cães
Negros?
– Tem certeza?
– Certeza absoluta – eu disse. – É como disse o homem do barco do
pedágio. Eles viram o nome da Cormorant naquela noite, mas não sabem
diferenciar uma barca de outra. Por isso, estavam pedindo a ajuda dos
Bollards. Escute. Precisamos sair da cidade, agora. Minha mãe sabe. Ela sabe
que eles estão procurando a Cormorant.
Um vinco surgiu entre seus olhos.
– Ela não disse a eles que você estava aqui?
– Não.
– Então, estamos em segurança, pelo menos por enquanto.
– Não tenho certeza disso – eu disse. – Minha mãe não iria deixar que eles
me fizessem mal. Mas não posso deixar que ela descubra sobre você.
Infelizmente, acho que o dinheiro vai ser bom demais.
– Pelas bolas de Xanto – praguejou ele. – Quem são essas pessoas?
– São uma grande casa comercial. Eles não viraram uma grande casa
comercial provocando a raiva dos emparcas de países poderosos.
– Prefiro ser queimado que ouvir você chamar aquele impostor de
emparca! – Sua voz subiu dois ou três tons.
– Você quer calar a boca? – chiei.
– Acho que foi uma boa coisa para mim você ter assumido o lugar do seu
pai. – Ele beliscou a ponte do nariz, apoiado no cabide de casacos. – O que
nós vamos fazer?
Eu entreabri a porta para espiar por ela.
– Você vai ter de sair escondido.
– Pelo deus leão – disse ele. – Eu queria ter sabido disso antes de vir até
aqui.
– Minha mãe me pegou de surpresa – admiti. – Eu não consegui escapar.
Eu estava prestes a fugir.
– Você ia fugir então, hein? – Seus olhos me estudaram rapidamente de
alto a baixo. – Não antes de tomar um banho, botar um belo vestido e comer
um jantar perfeitamente luxuoso. Pelo menos, eu imagino que seja luxuoso,
nesta casa. Enquanto eu ficava esmagado dentro de um armário de
contrabando, naturalmente.
Eu me senti levemente culpada por isso.
– Você comeu alguma coisa?
– Fui reduzido a comer comida de rua comum.
Eu revirei os olhos. Minha simpatia estava evaporando. Eu gostava de
comida de rua.
– Onde está seu cabelo? – Ele me encarou no facho de luz que entrava pela
fresta na porta.
Meu cabelo estava envolto em uma rede negra e preso por uma fita de
veludo. Eu achava muito bonito, mas Markos estava olhando para mim como
se tivesse crescido uma segunda cabeça em mim.
– Eu o prendi. Deixe isso para lá. – Eu peguei o tecido rígido de sua
jaqueta. – Onde você conseguiu isso?
– Comprei em uma loja – disse ele, a palavra envolta em desdém. – Mas
ele veste bastante bem, apesar das origens humildes.
Eu me perguntei onde alguém compraria roupas se não em uma loja. Eu
me aprumei e perguntei:
– Quanto você gastou?
A soma que ele disse, embora menos do que eu temia, era muito mais do
que meu pai teria permitido que eu gastasse em um único artigo de vestuário.
Meus olhos foram atraídos pelas belas listas de fita branca e pela renda
dourada que forravam as lapelas, e para as fivelas de latão espalhadas por
todo ele. Eu teria gostado de um casaco desses. Era um casaco de homem,
mas apropriado, afinal de contas, para uma capitã de barca.
Sacudi a cabeça. Eu não entendi o que tinha me dado – me considerar uma
capitã. Eu era a imediata de meu pai. Se tivéssemos sucesso em nos livrar
dessa encrenca, ele provavelmente iria velejar até os setenta anos, como o pai
dele e o pai do pai dele tinham feito antes.
Uma pontada de dor me atingiu no coração. Melhor assim. O máximo a
que eu podia aspirar era ser uma capitã de barca medíocre, agora que eu tinha
certeza de que o deus do rio não me queria.
Espiei pela porta.
– A costa está limpa. Volte direto pelo caminho por onde você veio.
Depressa.
– E você? – perguntou Markos enquanto saíamos para o vestíbulo.
Eu não ia deixar a pistola de meu pai para trás de jeito nenhum.
– Preciso pegar minhas coisas. Vou logo depois de você.
A porta da sala de estar se abriu, e delas saíram vozes. Antes que
tivéssemos tempo de nos esconder, minha mãe, o tio Bolaji e o cão negro
Philemon estavam sobre nós.
Quando Philemon bateu o olho em Markos, uma nota ameaçadora cruzou
o rosto do homem, como um lobo que apruma os ouvidos ao notar a
possibilidade de uma presa.
– Quem é ele? – Philemon perguntou ao tio Bolaji, retardando o
movimento de colocar o chapéu na cabeça.
– Ah, aquele rapaz. Mensageiro do consulado akhaiano.
Philemon pareceu muito interessado em permanecer ali, mas o mordomo
já tinha posto o casaco em suas mãos. Ele deu um último olhar duro para trás,
em seguida vestiu o sobretudo e saiu na neblina.
O tio Bolaji me olhou de cenho franzido.
– Achei que você ia levá-lo para a sala de jantar.
– Ah, bom… – Tentei escolher uma desculpa entre as muitas que giravam
em minha cabeça.
– Isso foi culpa minha, senhor – falou Markos às minhas costas. – Sabe,
tenho interesse por mapas antigos. – Ele gesticulou para o mostruário de
vidro com objetos exóticos. – Eu disse à senhorita Bollard que desejava
examinar sua coleção. É uma beleza.
Inspirei profundamente. Eu sabia por que ele tinha me chamado de
senhorita Bollard. Era algo que se encaixava com o fingimento de que não
nos conhecíamos, e, ainda assim, uma coisa no fundo do meu ser se rebelava
contra isso.
– Esses são originais. – O tio Bolaji acariciou a barba com orgulho. – Este
é o mapa no qual Jacari Bollard traçou a rota comercial para Ndanna. – Ele
apontou para baixo do vidro. – E aquele é o baú que ele usou para trazer as
folhas de chá que presenteou ao emparca.
– É mesmo? O senhor tem muitos outros artefatos do Astarta? – A
Passagem Sudoeste era uma conquista significativa na exploração naval, mas
surpreendeu-me que Markos soubesse o nome do navio do capitão Bollard.
Ultimamente, eu estava me surpreendendo muito.
Permaneci em silêncio enquanto voltávamos para o jantar. Quando tive a
chance de olhar em direção a minha mãe, seus olhos me perfuravam. Ela
sacudiu a cabeça, e eu soube que era apenas por causa do tio Bolaji que ela
não estava me interrogando naquele instante.
Markos recuou. Sob o clamor da sala de jantar, ele sussurrou:
– Aquele era ele? – Ele moveu a cabeça na direção da porta da frente. – O
homem que acabou de partir?
– Você nunca o viu antes? – perguntei.
– Claro que não. Eu deveria?
Eu sussurrei:
– Então por que ele pareceu reconhecer você?
– Você está vendo monstros por toda parte, Carô. Ele é akhaiano. Eu sou
akhaiano. Provavelmente, foi só isso.
Eu achava que não. Eu nunca conheci a margravina, mas meu pai tinha
uma miniatura sua na escrivaninha, uma lembrança de seu jubileu de prata.
Um homem de Akhaia saberia qual a aparência de seu emparca, e Markos já
tinha me dito ser parecido com o pai.
O tio Bolaji se virou. Ao perceber que a cabeça de Markos estava
inclinada muito perto da minha, eu me afastei.
– Vá com meu tio – eu disse em voz baixa.
– Como nós vamos sair daqui?
– Estou trabalhando nisso – murmurei.
Talvez Markos tivesse razão. Eu estava vendo monstros, piratas e drakons
por toda parte. Eu os ouvi no som de um violino quando um homem o tirou
de um estojo de veludo e começou a afiná-lo. O pânico formou um nó em
minha garganta. A agradável sensação de calor e segurança na sala de jantar
era uma ilusão. Do lado de fora, o perigo arranhava nas janelas da casa.
A mesa de minhas primas estava deserta, coberta de copos vazios. Vi
Jacarandá dançando com um rapaz, mas Kenté não estava em lugar nenhum
que eu pudesse ver. À mesa principal, o tio Bolaji estava em uma conversa
profunda com Markos. Eu podia dizer que minha mãe estava ouvindo, mas
ela girava a haste de sua taça de metal nas mãos e não falava. Eu peguei um
copo de porto da bandeja de um criado e me encaminhei para mais perto, sob
o pretexto de observar os dançarinos.
Markos se inclinou e se dirigiu ao meu tio.
– Eu gostaria muito de ter o privilégio de dançar com sua filha.
O tio Bolaji riu.
– Ela é um pouco velha para um jovem da sua idade, não é? – O que era
verdade. Sua filha tinha mais de trinta.
– Ah. Eu estava dizendo a moça que conheci na porta.
– Ah, está falando de Carô? Ela é uma filha desta casa – disse o tio Bolaji.
– Porém, não é minha filha. – Ele apontou com a cabeça para mim. – Sinta-se
à vontade de perguntar a ela.
Foi inteligente de Markos confundir minha identidade de propósito. Nunca
ocorreu a meu tio que tínhamos nos conhecido antes daquela noite. Ele tirou
o copo de minha mão, fez uma reverência educada e me conduziu para a pista
de dança.
Pus uma das mãos sobre o ombro de seu casaco novo. Ele, provavelmente,
era o rapaz mais alto com quem eu já havia dançado. Quando curvou a mão
em torno de minha cintura, acima de onde minhas saias ondulavam para fora,
minha respiração começou a ficar ofegante. Lembrei a mim mesma que era
apenas uma dança. Perfeitamente respeitável. Markos esperou, contando as
batidas, então nos girou com habilidade, no mesmo padrão dos casais que ali
dançavam.
– Eu queria que você mesma tivesse me dito. – Os dedos dele se apertaram
em torno dos meus, mas não de um jeito romântico. De um jeito irritado. –
Você me deixou acreditar que fosse a filha comum de um barqueiro, quando
na verdade pertence a uma grande família de mercadores.
– Eu sou a filha de um barqueiro comum – devolvi as palavras com
sarcasmo, irritada com o jeito com que ele as tinha pronunciado, como se eu
pertencesse aos Bollards.
– Devo supor, agora, que o cabelo ruivo é de seu pai. – Ele gesticulou em
direção a minha cabeça. – E o temperamento audacioso. Você não herdou
isso desta casa.
– Sabe, eles não gostam de meu pai – eu disse em voz baixa. – Eles não
gostam de mim.
– Não é o que eu vejo. Não mesmo.
– Eles gostam de quem querem que eu seja. Gostam da filha de minha mãe
– retruquei. – Não de mim.
– É a mesma coisa.
– É mesmo? – eu disse entre os dentes.
– Nosso nome de família é quem somos. – O ombro dele ficou rígido sob
minha mão. Ele engoliu em seco. – Ele significa tudo.
Acho que ele tinha revisado sua opinião sobre mim, agora que eu
descendia de alguém famoso. Bom para ele. Mas nada em mim tinha
mudado. Nenhuma maldita coisa.
– Gosto muito do nome do meu pai – eu disse. – Vivo com ele porque esse
foi o acordo que eles fizeram.
Isso era mais fácil que admitir que minha mãe se interessava mais por
contratos de frete que por garotinhas. De vez em quando, meu pai visitava a
casa dos Bollards, mas nunca ficava por muito tempo. Você só precisava
conhecer meus pais por cinco minutos para saber que havia uma chama forte
entre os dois. Eles só não conseguiam viver juntos em uma barca muito
pequena.
– Que homem permite que sua mulher deixe o lar para trabalhar com
comércio?
– Esta casa foi construída em cima do comércio – lembrei a ele. Como
reagir de qualquer outra maneira faria com que as pessoas olhassem, apertei
seus dedos até ele fazer uma careta. – Enfim, o que faz você pensar que eles
são casados?
– Ah. – Seu rosto enrubesceu.
– Por oito gerações, os Oresteias exerceram seu ofício nesses rios –
respondi, com raiva e orgulho fervendo dentro de mim. – Eles trabalham com
barcas desde muito antes de qualquer um ter sequer ouvido falar de Jacari
Bollard. Então, você me responda isto: Qual nome é mais importante?
– Eu irritei você. Mas Caroline – disse ele, revirando o r com seu sotaque
–, não quis insultar a família de seu pai, e você acabou de praticamente
arrancar minha cabeça. Você não acha que, talvez, seja possível que você
tenha encarado as cosas assim devido a alguns sentimentos não resolvidos de
sua parte?
– Pare com isso. – Soltei sua mão e recuei, tomada por emoções
conflituosas. Estava acontecendo outra vez, como sempre. A casa dos
Bollards distorcia as coisas. – Eu não concordei em ser despedaçada como
um inseto sob um copo. Não por gente como você.
Bisavó Oresteia, que uma vez contrabandeou rum direto pelo jardim do
mestre da baía, não teria deixado que ele a irritasse assim. Mas as coisas
estavam muito confusas, agora. Markos não percebeu que suas palavras
tinham provocado todas as minhas dúvidas, trazendo-as à tona para flutuar ao
meu redor, como fantasmas dando risada. Eu nunca tinha me sentido menos
uma Oresteia.
Do outro lado da sala, o tio Bolaji e minha mãe estavam absortos em uma
conversa com outras pessoas a sua mesa. Eles não estavam olhando em
direção a nós.
– Venha. – Puxei Markos pela manga. – Estamos indo.
No corredor silencioso, os candeeiros reluziam em seus suportes nas
paredes. Uma criada de quarto solitária carregando uma cesta de trapos
atravessou apressada a passagem acarpetada. Ela mal olhou para nós.
Peguei o chapéu de Markos no cabide e o enfiei em suas mãos.
– Siga o contorno da casa pela esquerda até chegar a um beco. No fim
dele, vai encontrar um jardim. Esconda-se ali. – Eu o empurrei para fora pela
porta da frente. – Encontro você assim que puder pegar minhas coisas e dar o
fora.
Quando a porta se fechou atrás dele, meu distinto ancestral olhava para
mim com reprovação, do alto de seu retrato com moldura dourada. A luz de
candeeiros reluzia na pincelada de óleo negro que formava a curva de suas
suíças.
– Ah, cale a boca – rosnei, olhando para trás.
CAPÍTULO
QUINZE
Passos com botas ecoaram no chão encerado. Era minha mãe, na companhia
do tio Bolaji. Eles estavam muito envolvidos em uma conversa sussurrada,
com expressões sérias. Eu me espremi contra o mostruário de vidro de
objetos curiosos para deixá-los passar.
Minha mãe mal olhou para mim, mas chiou pelo canto da boca.
– Cama. Agora. E não ouse botar nem a ponta do pé para fora daquele
quarto. Eu já vou subir.
O tio Bolaji fez uma pausa.
– Onde está aquele jovem mensageiro?
– O mensageiro vindo das docas teve de partir imediatamente – eu disse,
sem hesitação. Mentir é muito fácil depois que você se acostuma.
– Ah. É uma pena. Acabei de pensar em outra coisa que eu queria
perguntar a ele. Mas não importa. – Ele passou por mim. – Nós devíamos
discutir enviar um emissário imediatamente, embora me embrulhe o
estômago bajular assassinos de crianças. A filha do emparca tinha oito anos.
– Nós podemos insistir em uma revisão do Acordo de 86 – disse minha
mãe. – Só a economia do pedágio… – Suas vozes desapareceram pelo
corredor.
Subi a escada até os aposentos no quarto andar, onde dormiam as garotas,
sob os beirais com tetos inclinados. Eu arranhei a porta de Kenté, então entrei
sem esperar.
– Você descobriu o que queria? – Ela estava sentada em um banco de
veludo, girando a cabeça de um lado para o outro. Seus olhos se encontraram
com os meus no espelho.
– Descobri – eu disse.
– Nós vamos sair. – Jackie pôs um último grampo no penteado trançado de
Kenté e examinou seu trabalho. – É claro que você vem com a gente.
– Aonde vocês vão?
– A uma festa. Você pode usar um vestido meu emprestado se apertar bem
o espartilho. – Ela olhou para mim, calculando o tamanho de minha cintura.
Eu não estava usando corpete, e ela sabia disso.
– Não posso ir – eu disse. – Preciso estar no rio antes das cinco. Vou para
o Lago Nemertes, e vocês sabem que as marés não esperam.
– É verdade – disse Kenté. – As correntes levam a todos nós. Mas achei
que você tinha dito que estava a caminho da cidade livre.
Toquei a lateral do nariz com um dedo.
– E isso é um segredo para vocês. Então estamos quites.
Ela fez bico.
– Mas não é muito divertido, não é? Você acabou de chegar aqui.
Cada momento que eu ficava, eu corria o risco de ser pega por minha mãe.
E Markos estava à espera. Eu me despedi e desci pelo corredor tomada pelo
remorso. Minhas primas supuseram alegremente que eu iria voltar no verão.
Elas não tinham como saber que, a essa altura, eu poderia estar morta nas
mãos dos Cães Negros.
Eu me virei.
– Adeus – sussurrei para a porta fechada.
De volta ao meu quarto, tive de me contorcer para alcançar as amarras
daquele vestido rígido, mas não ousei tocar a campainha para chamar a
criada. Ela iria querer passar óleo no meu cabelo e trançá-lo, ajudar a me
lavar e todo tipo de bobagem para as quais eu não tinha tempo.
Um rangido no alto da escada me alertou para a aproximação da minha
mãe.
A criada deixara algo sobre a cama que parecia um rolo de renda, após ter
entrado em uma briga com outro rolo de renda e perder. Com a boca torcida
para um lado em aversão, puxei o vestido pela cabeça quando ouvi passos
diante da porta. Apaguei a vela e entrei embaixo das cobertas.
A porta se abriu com uma batida forte.
– Está bem, Carô, qual é esse negócio com… – A voz de minha mãe se
calou.
Era impossível que ela não conseguisse ouvir minha respiração difícil e o
martelar do meu coração. Deixei que meus lábios se entreabrissem e relaxei
os dedos onde estavam enroscados no travesseiro.
Ela ficou ali parada por tanto tempo que, depois de alguns instantes, achei
que talvez fosse minha imaginação. Com certeza, ela tinha saído em silêncio
do quarto e ido embora. Acalmei a respiração, desejando que meus músculos
relaxassem. Finalmente, ouvi a sola de suas botas roçarem o tapete, seguidas
pelo murmúrio das dobradiças da porta.
Qual era o significado daquilo, e por que ela não me sacudira e me
acordara para gritar comigo? Com meu pai, eu sabia como eram as coisas.
Mas ela era… diferente. A mente de minha mãe estava sempre em
funcionamento, à procura de ângulos, pontos positivos e maneiras de os
Bollards obter vantagem. Para ela, a revolução em Akhaia significava
oportunidades de negócio.
Uma coisa era certa. Eu não podia confiar nela com esse segredo.
Uma mudança nas sombras fez com que meus olhos se abrissem
bruscamente. Eu me sentei ereta na cama, e minha mão tateou a cômoda à
procura da pistola.
Markos estava agachado no beiral da janela, bloqueando o luar. Seu
casaco comprido pendia às suas costas.
Eu chutei os lençóis.
– Como você entrou aqui?
Ele pulou delicadamente para o chão.
– Vi você passar diante da janela antes de a luz se apagar. Por isso, subi
pela treliça. – Eu percebi que ele estava muito satisfeito consigo mesmo,
apesar da mancha de grama em seu casaco. – O que você está vestindo?
Eu tinha me esquecido da monstruosidade daquela camisola.
– Não importa – resmunguei, cruzando os braços à minha frente. – Pensei
ter dito a você que me esperasse no jardim.
– Você disse que vinha logo depois de mim. Isso foi há meia hora. Fiquei
preocupado.
– Estou bem, mas precisamos deixar Siscema imediatamente. Vire-se. –
Olhei pelo chão à procura de minhas roupas. – Droga. A criada levou minha
camisa. E minhas roupas de baixo. – Levei a mão a uma pilha de tecido
amontoado. – Espere. Ela deixou a calça. A bênção nas pequenas coisas.
A camisola ridícula pendia de meus ombros com sua pala rendada à minha
frente. Segurei a barra e a torci em um bolo grosso que enfiei na parte de trás
da calça. Em seguida, peguei a pistola na cômoda e vesti minha capa de
chuva.
– Tudo bem, você pode virar – eu disse. – Mas saiba que se você rir, não
vou hesitar em atirar em você e dar seu corpo para os Cães Negros.
O perfil de Markos estava delineado pela luz suave que vinha da janela.
– Carô, tem certeza de que estamos fazendo a coisa certa? Os Bollards são
uma casa rica e poderosa. Eles podem nos ajudar. Por que estamos fugindo?
– Os Bollards só pensam em lucro. – Ergui as sobrancelhas. – Eu gostaria
de saber quanto um emparca vale para eles.
O tio Bolaji parecia desaprovar o golpe sangrento dos Theucinianos, mas
minha mãe agira como a mesma pessoa pragmática de sempre. Eu não achava
que os Bollards se importassem com quem ficaria com o trono de Akhaia,
desde que o emparca fosse favorável ao comércio.
– Você não confia na própria mãe? – perguntou ele.
– Ela é, primeiro, uma Bollard e, depois, uma mãe. – Me equilibrei na
beira da cama e enfiei o pé direito na bota.
– Isso não é uma coisa muito simpática de se dizer.
Eu sorri no escuro.
– Ela não concordaria.
As tábuas do piso rangeram quando ele caminhou até a janela.
– Você acha que podemos passar pelo consulado akhaiano a caminho das
docas? Eu tive uma ideia.
Eu olhei para a treliça abaixo da janela. Ela tinha aguentado o peso de
Markos, por isso achei que fosse resistente o bastante. Eu odiaria escapar dos
Cães Negros para despencar para a morte de uma janela no quarto andar.
– É melhor ser alguma coisa útil.
A luz do candeeiro no portão fez com que os olhos dele brilhassem.
– Pistolas e espadas são úteis?
Eu não sabia o que pensar desse Markos. Ele parecia estar saboreando
aquela aventura. E, o que era mais surpreendente, ele não estava se saindo
mal.
Quando joguei minha perna pelo batente da janela, eu disse algo que nem
em mil anos eu teria imaginado:
– Vá na frente.
Uma névoa úmida ainda pairava baixa sobre a cidade. O consulado
akhaiano estava escuro, exceto por uma luz em uma janela no andar superior.
Sob o cume do telhado, projetava-se uma cabeça de gato gigante de pedra.
Uma luz de candeeiro recaía sobre suas presas esculpidas, para lançar
sombras horrendas na parede.
– Você vai ser Tarquin Meridios outra vez? – sussurrei.
– Não, é claro que não. Qualquer um que realmente trabalhe aqui vai me
reconhecer imediatamente. – Markos olhou para a cabeça do gato, em
seguida baixou os olhos. Ele parecia estar medindo algo. – Todo consulado
tem de ter uma casa segura. Deve haver uma porta secreta em algum lugar.
Com o selo do emparca sobre ela.
Apontei com a cabeça para a entrada principal. Havia um guarda postado
ali, com um mosquete preso às suas costas.
– Cuidado.
Markos se agachou no beco estreito. Ele examinou a pedra angular e
passou a mão por sua superfície. Tateando a parede, seguimos em silêncio em
direção aos fundos do prédio.
Ele parou.
– É aqui.
Achei que ele estivesse arranhando um tijolo. Mas ele empurrou, e a
parede desceu para dentro com o rangido de engrenagens enferrujadas. Eu
prendi a respiração, na esperança de que o guarda não fizesse a volta para
investigar o barulho.
Markos tateou no interior da abertura.
– Ah, excelente – disse ele. Ouvi o barulho de algo se quebrando e o
cheiro de enxofre; uma combinação alquímica. Ele segurou no alto uma
lanterna de vela e me indicou que eu entrasse.
Engoli em seco ao ver aquela escada que levava a uma boca de escuridão,
mas desci atrás dele. A luz tremeluzente iluminou um pequeno aposento
redondo.
Espadas e machados pendiam de ganchos nas paredes, junto com uma
arma curva de aparência maligna que eu não consegui identificar. Havia
várias caixas menores em cima de mesas em torno das bordas da sala. Pelo
menos uma delas estava cheia de moedas. Havia mais armas espalhadas pelas
mesas, e montes de tecidos, também. Uma camada fantasmagórica e cinza de
poeira cobria tudo.
Markos foi direto para um par de espadas curtas.
– Um esconderijo de armas e outras coisas úteis – explicou ele, sacando
uma das espadas da bainha para examiná-la. Aparentemente satisfeito, ele
pendurou a bainha em um cinturão de couro largo. – Colocadas aqui só para
esta contingência. – Ele afivelou a outra espada do lado esquerdo do cinto. –
Parece que nada disso é tocado em cem anos.
Eu girei e observei a riqueza a nossa volta.
– É maravilhoso.
– Vê alguma coisa que você queira?
– Vou ficar com a pistola de meu pai, obrigada. Eu sei como usá-la.
– Acho que você deveria pegar uma espada – disse ele. – Só por garantia.
– Eu prefiro um punhal. Eu sei arremessar uma faca. Meu pai fez com que
eu treinasse.
Ele girou um punhal nas mãos.
– Você é boa mesmo? – perguntou ele e o jogou para mim. – Você poderia
matar um homem com uma faca?
Eu o peguei. A bainha tinha um padrão bonito de folhas e arabescos.
– Nunca tentei.
Será que eu conseguiria? Eu me orgulhava de minha precisão com uma
faca, mas nunca houvera uma pessoa de carne e osso do outro lado. Saquei a
arma alguns centímetros e tracei os entalhes do cabo. Eu não ousaria lançar
algo tão belo se não pudesse recuperar. Prendi a faca a meu cinto, mas sabia
que jamais iria usá-la, exceto como último recurso.
Markos jogou três moedas em minha mão com um sorriso enviesado.
– Para seu pai. Para pagar a ele pelo casaco.
Ele remexeu em um baú pequeno e pegou um cachecol. Ele o envolveu
nos ombros no estilo antigo e o prendeu com um broche de ouro em forma de
coroa de flores.
Olhei para aquilo desconfiada.
– Isso não vai atrapalhar se nos metermos em uma briga?
Ele olhou para si mesmo e apertou os lábios.
– Você tem razão. – Ele o desenrolou.
– Espere, o que é isso? – Um detalhe de ouro refletiu a luz. Empurrei o
resto das roupas para o lado. No fundo do baú, havia um conjunto de pistolas
douradas com cabos de osso entalhado. Elas estavam aninhadas em um estojo
de veludo, uma apontada para a esquerda; e a outra, para a direita.
Toquei o cano de uma das pistolas. O trabalho em metal era requintado.
Eu podia ver flores e arabescos e um leão-da-montanha deitado, com a cauda
curva em torno do cabo. O felino estava disposto em um círculo com palavras
escritas no exterior em uma letra que eu não conseguia ler. Seus olhos eram
pequenas pedras preciosas.
– Esse é o brasão real de Akhaia – disse Markos.
Desejei que ele não tivesse me contado. Não parecia certo levar um par de
pistolas daquele.
– Elas não foram feitas para mim.
E, ainda assim, havia nelas algo familiar. Algo que eu já tinha visto antes.
Tomada por um choque, eu me lembrei de meu sonho – de caminhar no
convés do Victorianos enquanto ele deslizava pelas ondas. Minhas mãos
percorreram a amurada, a madeira lisa sob meus dedos. Gaivotas voavam em
círculos e mergulhavam ao meu redor. Na cabeça, eu usava um chapéu de
três pontas e, na cintura, um par de pistolas douradas iguais.
Exatamente como aquelas.
Cambaleei para trás com a respiração tensa no peito.
Markos, ocupado examinando as pistolas, não percebeu.
– Bom? Você não vai levá-las? – Ele olhava para mim com expectativa. –
Você atira muito melhor que eu.
– Não é… Não é certo. – Umedeci os lábios. – Elas são muito mais
elegantes que suas espadas.
Coincidência. Era apenas isso. Apenas oráculos tinham sonhos reais. Eu
estava pensando nos Cães Negros quando peguei no sono duas noites atrás.
Em cartas de corso. Em corsários. Tudo de algum modo se misturara em
meus sonhos. Com certeza, muitas pessoas tinham pistolas douradas. Bom,
pelo menos, muitas pessoas ricas.
– Carô – ele inclinou a cabeça –, eu sou o emparca. Todas essas coisas
pertencem a mim. Eu as estou dando a você.
Outro compartimento no baú continha correias de couro trançadas, feitas
para usar por baixo do casaco de um homem. Ao prendê-lo, ajustei as fivelas
no menor buraco, em seguida ergui as pistolas da caixa, ainda me sentindo
estranha em relação àquilo.
Alheio a minha hesitação, Markos seguiu em frente. Ele esfregou a poeira
de um espelho na parede e se inclinou para perto.
– Este é o primeiro espelho decente que eu vejo em muito tempo – disse
ele. – Meu cabelo está uma bagunça horrorosa. Não sei como as pessoas
vivem sem valete. – Ele deu um suspiro. – Você vai zombar de mim por isso,
não vai?
– Vou.
Não havia nada de errado com o cabelo dele. Estava exatamente como
sempre. De repente, meus dedos estremeceram estranhamente, como se
fossem se erguer e tocá-lo.
Eu me afastei.
– Seu cabelo está bom. – Eu peguei uma fieira de contas e fingi admirá-la.
– Não tente pescar elogios. Não vou fazer isso.
– Um homem que dependesse de pescar elogios seus ficaria com o cesto
vazio e sem jantar – resmungou ele.
Eu bati palmas.
– Markos! Você está falando como um barqueiro.
– Ah, cale a boca. – Eu o vi tentar esconder o sorriso.
Eu me virei para o lado para ver minha imagem no espelho, admirando a
maneira como a luz do candeeiro brilhava em minhas pistolas novas. Livre da
rede, meu cabelo caía sobre meus ombros, uma massa de cachos densos
castanho-avermelhados. Eu me aproximei para examinar meu rosto.
Markos percebeu.
– Sabe, as garotas de Akhaia botam suco de flor de laranjeira nas sardas
para escondê-las.
Era típico dele pegar a única coisa de que eu me envergonhava. Algumas
garotas tinham umas sardas pequenas, mas as minhas eram grandes e
espalhadas.
– Ayah? Elas também usam belos chapéus e passam o dia inteiro ao abrigo
do sol? – Eu revirei os olhos. – Eu trabalho em uma barca. No sol. Flor de
laranjeira não vai adiantar nada.
– Não estou dizendo que você não é bonita – murmurou ele.
Uma sombra bloqueou a porta em arco.
Um homem de roupa de marinheiro estava parado na escada. Ele sorriu,
revelando um dente podre. Luz da lanterna tremeluzente brilhou sobre sua
espada comprida e curva. Ele, sem dúvida, não parecia trabalhar no
consulado akhaiano.
– Então é você. Philemon estava achando que era. – Arras-
tando pesadamente as botas, ele desceu. – Vocês têm os Andelas por trás de
vocês, podem ter certeza.
O rosto de Markos congelou.
– Não sei o que você poderia saber sobre isso – retrucou ele com desprezo,
sacando as duas espadas em um movimento amplo.
O homem riu. O comentário esnobe de Markos apenas confirmou que ele
era exatamente quem os Cães Negros desconfiavam que fosse. Ele às vezes
era mesmo um idiota.
Minhas pistolas novas não estavam carregadas. Eu levei a mão lenta e
discretamente em torno do cinto para pegar o punhal.
O homem gesticulou com a espada.
– Tente isso e eu vou estripá-la como uma truta.
O tempo pareceu desacelerar enquanto eu calculava – o tamanho de sua
espada, o número de passos para cruzar o pequeno aposento, quanto tempo se
levava para estripar uma truta.
Tudo aconteceu ao mesmo tempo. O homem avançou, e luz refletiu sobre
aço. Os detalhes dourados e rendados da cauda do casaco de Markos
lançaram-se à frente no escuro como o bote de duas serpentes gêmeas. Ele
pulou entre mim e o pirata. Antes que eu tivesse tempo de ter medo por ele, o
homem estava no chão com as mãos na garganta.
Sangue jorrava de seu pescoço e se empoçava em um círculo cada vez
maior sobre as pedras. Sua mão esquerda melada se retorceu e tombou,
imóvel. Eu não sabia para onde olhar. Era repugnante demais.
Markos se aprumou, segurando uma espada com uma mancha escura em
cada mão. Um cheiro ferroso encheu o local.
– Sabe... – eu disse. Minha voz soou aguda e desconexa. – Prefiro muito
mais as pistolas.
O barulho em meus ouvidos ficou mais alto, e eu cambaleei. O chão deu
um solavanco alarmante em minha direção. Algo caiu ruidosamente sobre as
pedras.
Uma mão quente e dolorosa envolveu meu braço. Markos me puxou para
cima com tanta força que meu casaco prendeu embaixo do braço.
– Ai – eu disse vagamente, do que pareceram quinze quilômetros de
distância. Meus ouvidos roncavam.
– Você ia desmaiar. – Os dedos dele se fecharam em torno do meu braço.
– Por que não me disse que não aguenta ver sangue?
– Como eu podia saber disso? Eu nunca vi tanto sangue na vida. – Engoli
em seco e permiti que meus olhos perdessem o foco para não ter de ver os
borrifos de sangue em sua camisa. O zunido quente em minha cabeça
começou a se esvair.
– Melhor? – Ele afrouxou a pegada.
Eu me soltei e ajeitei o casaco.
– Acho que você poderia tê-lo matado de um jeito menos repulsivo.
Eu me recusei a olhar para o homem morto quando passei por cima de sua
perna. Eu me apoiei na parede da escada e inspirei o ar fresco do rio. Eu não
estava me sentindo tonta. Eu não estava. Esse tipo de coisa só acontecia com
garotas da cidade. Às minhas costas, ouvi um som de algo deslizando.
Markos, limpando as espadas nas roupas do pirata morto.
– Eu não esperava que você fosse desmaiar – disse ele. – Você não tem
medo de nada.
– Eu não desmaiei. – Meu rosto estava afogueado. – Eu não estou com
medo.
– Muitos homens passam mal depois de matar pela primeira vez – disse
ele. – Muitos guerreiros.
– Você passou?
– Eu nunca tinha matado ninguém – sua voz vacilou. – Até agora. – O
tecido de seu casaco se moveu. Eu soube que ele estava olhando para trás,
para o homem morto.
– Eu não precisava saber disso – murmurei.
Markos esfregou os punhos da camisa de meu pai, o que apenas espalhou
as manchas de sangue.
– Eu não me sinto mal – disse ele, com uma expressão de aversão
passando por seu rosto. – Só… sujo.
O medo para o qual eu não tivera tempo antes chegou com força, fazendo
meu coração palpitar.
– O que nós vamos fazer com o… Com ele?
Ele inspirou e deu as costas para o homem morto.
– Deixá-lo aqui, imagino. Com a porta fechada, provavelmente nunca vão
encontrá-lo.
Na próxima vez em que alguém abrisse a sala secreta, talvez houvesse
apenas um esqueleto empoeirado. Estremeci, e não por causa do ar da noite.
Parecia um destino horrendo.
No caminho de volta para a barca, nós nos mantivemos nas sombras. Se
Philemon tinha pensado em mandar alguém ao consulado, ele provavelmente
tinha homens à nossa procura por toda a cidade. O cheiro do rio era potente à
noite e, de algum modo, ainda selvagem, apesar do entorno urbano. Nós o
seguimos até a baía, e finalmente fizemos a curva no último armazém.
Com a garganta quase fechada pelo pânico, procurei freneticamente a
Cormorant. Ela descansava nas docas dos Bollards, e a curva familiar de seu
casco erguia-se da água escura, exatamente onde eu a deixara. Uma lanterna
brilhava alta em seus estais.
Soltei o ar, aliviada.
– Fee! – chamei com delicadeza quando embarcamos.
No escuro, soltamos e içamos a vela principal. Markos ajudou, com Fee
dando tapinhas em suas mãos para lhe dar instruções silenciosas. A Alektor
estava a cerca de quinze metros de distância. Eu estava com medo demais
para respirar.
– Carô!
Minha mãe vinha correndo pelas docas, seguida por seus dois guarda-
costas. Era por isso que ela não tinha me acordado, porque ela mesma
pretendia revistar a Cormorant, pelas minhas costas? Tudo o que eu sabia era
que eu não podia deixá-la nos deter. Eu soltei a última amarra.
– Carô, o que é essa história de carga roubada? Como você se meteu com
os Cães Negros? Espere!
Nós nos soltamos, e a Cormorant afastou-se das docas, movendo-se muito
devagar.
Minha mãe caminhava pelo cais em suas botas altas enquanto nos
acompanhava. Ela ergueu a cabeça, e seus olhos dirigiram-se para Markos.
– Quem é você, na verdade? – perguntou ela.
Eu sabia que ele achava que eu estava cometendo um erro. Ainda assim,
ele ficou quieto e não disse nada, deixando deliberadamente a escolha para
mim. Por um momento desesperado, eu hesitei. Não era tarde demais para
jogar um cabo para ela. Para voltar. Os Bollards tinham escunas, navios de
três mastros e brigues – grandes navios oceânicos armados com canhões de
nove libras. Eu só tinha uma barca.
– Não posso lhe contar – eu disse. Mas havia uma coisa que ela podia
fazer. – Mande um navio até o mestre da baía em Pontal de Hespera. Meu pai
está preso lá acusado de contrabando. Ele vai explicar tudo.
– Pontal de Hespera? Você disse que ele estava em Valonikos. Dê a volta,
Carô! – Ela parou. Não havia mais cais.
– Desculpe, mãe – eu disse, do outro lado da crescente distância. Eu não
ousava dizer mais. Atrás dela, espreitava a Alektor, escura e silenciosa nas
docas.
– Ei! – gritou um homem. – Quem vai lá?
– Um vigia. Nas docas – sussurrou Markos de olhos arregalados. A
distância entre a Alektor e a Cormorant crescia, mas não rápido o bastante.
– Maldição! – Minha mão suada agarrou a cana do leme.
– Alarme! Alarme! – O homem se levantou e tentou pegar o mosquete. –
Uma barca deixou as docas!
Empurrei Markos com força.
– Abaixe-se.
Ele se jogou no piso do cockpit. Meu coração batia em ritmo frenético.
Nós ainda estávamos ao alcance deles. Eu abaixei a cabeça e me agarrei ao
leme, me preparando.
Esperando o tiro.
À noite, os sons são levados acima da água imóvel mesmo a grandes
distâncias. Eu ouvi o atrito inconfundível da lâmina de uma faca contra a
bainha, seguido por um grito gorgolejante e pelo barulho de algo pesado
caindo na água.
Ouvi a voz de minha mãe.
– Anjay, Thessos! Depressa, agora. Livrem-se desse corpo.
CAPÍTULO
DEZESSEIS
– Para trás – alertou Markos. Ele segurou meu pulso e me puxou à força para
trás dele. – Ela pode não ser o que parece.
– Me largue. – Eu tentei me soltar de sua mão, mas ele segurou firme.
– Só um tipo de criatura pode se esconder completamente assim. – Ele não
tirava os olhos de Kenté. – Carô, é um homem das sombras.
– Não seja idiota. Não é nenhum homem das sombras. – A ideia era tão
ridícula que me deu vontade de rir. – Essa é minha prima Kenté.
– É mesmo? Então como ela chegou aqui?
Kenté descruzou as pernas e se levantou enquanto alisava as saias. Ela
estava usando o mesmo vestido listrado verde e dourado do jantar da véspera.
– Isso é muito fácil – disse ela. – Talvez eu quisesse saber o motivo
secreto pelo qual minha prima estava com tanta pressa de escapar de
Siscema. – Ela estudou Markos. – Parece que eu encontrei você.
Ele avançou sobre ela, brandindo a espada.
– Eu reconheço uma ilusão quando vejo uma. Se você é Cleandros, vou
estripá-lo agora mesmo, traidor.
Ela engoliu em seco sem tirar os olhos da espada.
– Eu preferiria muito que você não me estripasse. – Ela ergueu as mãos. –
Carô? Uma ajudinha, aqui?
Senti a boca seca como se tivesse mastigado cordas. Será que um homem
das sombras poderia mesmo imitar minha prima, até o cabelo trançado e o
nariz arrebitado? Ele não tinha como saber qual a aparência dela. Eu
estremeci, com uma imagem horrenda me agarrando como dedos congelados.
Minhas primas, rindo, enquanto seguiam inocentemente pela rua escura de
pedras a caminho da festa… Enquanto o homem das sombras espreitava e as
observava.
Empurrei meu punhal akhaiano contra a garganta de Kenté – ou do homem
das sombras.
– Onde está ela? O que você fez com ela?
Seus olhos âmbar se arregalaram.
– Isso – ela disse – são armas demais. Eu sou Kenté, eu juro! – Ela
apontou com a cabeça para Markos. – Mas ele está certo. Eu também sou um
homem das sombras.
– O que você quer dizer com você é um homem das sombras? – perguntei.
– A deusa da noite pôs o dedo em mim quando eu era uma garotinha –
disse ela. – Como você acha que eu sei tantos segredos?
Eu quase acreditei nela. Kenté era mesmo esquiva e, além disso, se aquele
fosse Cleandros disfarçado, vindo para matar Markos, porque ele já não tinha
feito isso? Ele podia ter enfiado uma faca nas costas dele a qualquer
momento, naquele dia.
– Quando falamos pela última vez – eu disse – você me contou uma
história. Sobre que tipo de criatura era a história?
– Isso é fácil. Um drakon. Embora eu nunca tenha chegado a essa parte.
Satisfeita, eu afastei o punhal.
– É Kenté. – Ergui as sobrancelhas. – O que você está fazendo aqui?
– Eu farejo encrenca. – Ela afastou a espada de Markos do rosto. – E vocês
dois parecem estar com o barco cheio disso. Em relação a como subi a bordo,
como eu disse, isso foi bem fácil. Eu me envolvi em uma ilusão e segui vocês
até as docas. Então, eu me escondi no compartimento de carga. – Ela
esfregou o vestido. – Que, por falar nisso, está muito cheio de serragem.
– Nós devíamos deixá-la em terra – eu disse a ela.
Ela fez uma expressão amuada.
– Vocês dois parecem estar vivendo peripécias. Eu quero participar. – Ela
agitou um dedo para mim. – Eu vim pela diversão. Mas vocês vão ficar
comigo porque eu posso ajudá-los.
Infelizmente, ela estava certa.
– Como você fez isso? – perguntei. – A ilusão. Se você é um homem das
sombras, você não devia ser capaz de exercer sua magia apenas à noite?
– É simples. Se você cria a ilusão à noite, ela permanece durante o dia. A
menos que eu termine com ela, como acabei de fazer.
Percebi Markos olhando fixamente para Kenté. Minha prima não era mais
bonita que eu, embora seu vestido exibisse um decote muito maior.
Eu dei um tapa no braço dele.
– Você pode manter os olhos aqui em cima.
– Eu não estava… – Seu rosto enrubesceu.
– Você estava.
– Talvez um pouco – murmurou ele.
– Mas como você descobriu ter magia das sombras? – perguntei a Kenté,
ignorando a maneira penetrante com que seus olhos dardejavam entre Markos
e mim.
– Algo dentro de nós está sempre chamando pelo mundo. – Ela deu de
ombros. – Magia é isso: quando alguma coisa no mundo chama em resposta.
Não era uma resposta, mas as palavras misteriosas de Kenté provocaram
reconhecimento em mim. Chamar o mundo era exatamente o que eu estava
fazendo, só que o rio não estava dizendo nada em resposta.
Ela prosseguiu.
– Sou capaz de fazer truques desde que consigo me lembrar. Eu costumava
achar que era apenas boa em me esconder, até que… – Um tom estranho
surgiu em sua voz. – Três anos atrás, eu ouvi o deus da noite chamar meu
nome. Desde então, eu só fiquei mais forte. Posso fazer com que as sombras
venham ou partam. Posso ver trechos dos sonhos de Jacarandá quando ela
dorme. Tenho certeza de que poderia fazer muito mais com o treinamento
adequado, mas… – Ela deu um suspiro. – Eu não quero decepcionar meus
pais.
– Existe uma… Uma escola para homens das sombras, ou algo assim?
– A Academia – disse Markos, esfregando distraidamente o brinco.
Desconfiei que ele não tinha nem percebido estar fazendo isso. – Em
Trikkaia.
Entendi o que Kenté deixou sem dizer. Os Bollards não conseguiam
imaginar um motivo para que alguém não quisesse ser membro de uma
companhia mercante. Esperava-se que minha prima fizesse um casamento
vantajoso e entrasse para os escritórios da família. Se ela revelasse seu talento
para a magia, seus pais poderiam fingir aprovação, mas, em segredo, não
iriam gostar. Eu sabia como isso funcionava.
– Agora… – Ela sorriu. – Vocês precisam me dizer como se envolveram
com os Cães Negros.
Imediatamente, Fee saltou de pé e largou a cana do leme. Seus lábios
elásticos se esticaram em uma expressão de desprezo. Ela me lembrou um
animal com as penas do pescoço eriçadas.
Eu mergulhei em direção à cana do leme e firmei a Cormorant antes que
ela se dirigisse para a lama.
– O que foi?
Ela se agachou no convés e espiou pelo lado contrário ao vento, onde a
sombra da Cormorant deixava a água escura. A mão de Markos voou para o
cabo da espada, enquanto Kenté apenas observava com um interesse
perplexo. Meu pulso palpitava quente em meus ouvidos. Suor umedecia
minha testa. Fee jamais largaria a cana do leme assim. Não a menos que
houvesse alguma coisa errada. Eu olhei para o rio, mas estava turvo demais.
Fee sibilou para a água.
– Monstro – sussurrou ela.
Sem tirar a mão da cana do leme, eu me debrucei para fora. Nada se mexia
embaixo da água.
– Ela – Fee abraçou a si mesma com força. – Ela.
– Não tem nada lá embaixo. – Eu estendi a mão para tocar seu ombro.
Os olhos dela brilharam.
– Não está certo. – Ela se encolheu, como se meus dedos fossem fogo. –
Aqui, não.
– O que não está certo? – perguntei, consciente dos olhares de Markos e
Kenté fixos com curiosidade sobre mim. Aparentemente, Fee estava com
medo de mim.
Mais uma vez, olhei para as marolas escuras. Não vi nada, mas senti um
calafrio mesmo assim.
– Você não se pergunta o que tem lá embaixo? – Markos segurou um estai
e se debruçou para fora para observar a água. Desejei que ele não fizesse isso.
O comportamento estranho de Fee me deixara nervosa. Monstro. Eu não
consegui evitar visualizar um grande tentáculo se projetando repentinamente
do rio para agarrá-lo.
– Não tem nada aí – repeti.
Imagens saltaram em minha cabeça. Algo enorme se movendo nas
profundezas. Peixes entrando e saindo velozes de uma ruína encrustada de
cracas. O cabelo de uma mulher loura flutuando. Engoli em seco e concentrei
os olhos no rio à frente.
– Há muitos mistérios no mundo – disse Markos, pensativo. – Por
exemplo: O que na verdade sabemos sobre os deuses? – Ele apontou com a
cabeça em direção à água. – Por que o seu fala com vocês, enquanto os dos
akhaianos permanecem em silêncio? Ele deve ser mesmo um deus poderoso.
O que quer que estivesse lá em baixo, não era o deus do rio. Fee não tinha
medo dele.
– O que faz você dizer isso? – Minha boca estava seca.
– Bom, olhe para toda essa sorte que nós temos tido.
Eu devia ter admitido a verdade para ele, que nossa sorte nada tinha a ver
comigo. Mas disse a mim mesma que meu orgulho não podia acusar o golpe.
Isso era mentira. Uma pessoa pode viver sem orgulho. Isso só não é
confortável, é tudo.
Passamos a noite ancorados na margem do Rio Hanu, onde os alagadiços
reluzentes e o mar de capim do pântano tinham dado lugar a colinas
ondulantes pontilhadas de rochas. Nós tínhamos feito um tempo excelente
naquele dia, com o vento bom, e não havíamos visto sinal dos Cães Negros.
Enquanto navegávamos, eu recontei a Kenté a história de nossa viagem,
terminando com a fuga da casa dos Bollards. Era difícil acreditar que tinha
sido apenas na noite anterior. Parecia uma lembrança distante. Se o tempo
permanecesse bom, em dois dias chegaríamos ao Pescoço. De lá, era apenas
meio dia de navegação até Casteria.
Eu fechei a janela da cabine e puxei as cortinas.
– Bom, não tivemos nenhum avistamento do Victorianos.
– Isso é uma boa coisa. – Kenté viu meu rosto. – Você não acha que isso é
uma boa coisa?
Eu me joguei sobre o banco acolchoado.
– Nós sabemos que ele subiu o Kars. Eu estou preocupada é com a
Alektor.
– O que preocupa você?
Desenrolei o mapa de meu pai e o abri sobre a mesa.
– Onde está ela? Será que Philemon foi nos procurar em Iantiporos? – Eu
passei o dedo pelo mapa. – Achando que nós pretendemos nos esconder lá,
ou pedir a ajuda da margravina? – Sacudi a cabeça. – Eu não gosto disso.
– Os piratas que estão querendo matá-la desapareceram sem deixar traço –
disse ela, divertida. – E você não gosta disso?
Eu dei de ombros.
– Eu simplesmente não gosto.
Markos sentou-se de costas para a parede, remexendo o cabo da espada.
Ele olhava fixamente para frente com uma expressão melancólica e se
recusava a participar da conversa.
Kenté estalou os dedos.
– Acabei de lembrar! Eu trouxe uma coisa. Está no compartimento de
carga.
Markos a observou subir a escada. Ele baixou a voz e disse:
– Ainda me parece coincidência demais. Você tem certeza de que confia
nela?
– Como se fosse minha própria irmã – eu disse, imediatamente
arrependida pela escolha de palavras.
Ele apertou os lábios em uma linha branca, mas não disse nada.
Kenté voltou, arrastando uma sacola brocada a tiracolo. Ela remexeu em
seu interior.
– Cortesia da adega dos Bollards. – Com um floreio, ela produziu uma
garrafa de vidro âmbar. – E, agora, nós bebemos.
– Ah, muito bom! – Kenté sempre tinha sido muito boa em surrupiar
bebidas. Agora, eu sabia o porquê. Eu sorri e peguei a garrafa.
– Vida longa aos Bollards!
Eu reparti as canecas e servi descuidadamente três dedos de rum em cada
uma. Fee enfiou um dedo comprido na dela, em seguida o enfiou na boca.
Markos ainda estava meditativo no banco em frente. Empurrei uma caneca
sobre a toalha de mesa xadrez em direção a ele.
Ele tomou um gole, em seguida, tossiu.
– O que é essa lavagem? – ele disse, cuspindo.
– Rum. Bebida de marinheiros.
– Imagino que algumas pessoas chamem isso de rum – disse ele. – Mas o
gosto é de algo destilado em um barril imundo com um sapato velho no
fundo. É horrível.
Era, um pouco. Mas eu não ousei admitir que concordava.
– O que acontece quando nós chegarmos a Casteria? – perguntou Kenté.
Pelo canto do olho, eu vi Markos se remexer, provavelmente irritado com
a palavra “nós”. Talvez eu estivesse pedindo demais dele. Só depois de dias e
de várias situações em que escapamos por pouco ele passou a confiar em
mim. Ele não conhecia Kenté como eu.
Depois de muito hesitar, ele disse:
– Minha família tem uma propriedade em Casteria que meu avô
costumava manter para pescar. Desde sua época, a casa caiu em desuso. Meu
pai… – Ele fez uma pausa, com um tremor na voz. – Meu pai não tinha
nenhum interesse por esportes. Entretanto, ainda possuímos a propriedade,
que é mantida por uma pequena criadagem. Foi para lá que enviaram minha
irmã, Daria. As instruções especificam que a caixa só pode ser aberta pelo
emparca ou por um representante seu.
Percebi o modo como ele se demorou no nome da irmã. Pelo bem dele,
torci desesperadamente para que ela tivesse chegado a Casteria – e que os
criados de lá, ao contrário de Cleandros, fossem de confiança.
– Pelo menos, temos alguns recursos. – Ele os enumerou com os dedos. –
A magia de Kenté, a visão extraordinária de Fee, minha habilidade com uma
espada e o… bem, o conhecimento geral de Carô sobre comportamentos que
fogem à lei.
– Além de três pistolas – acrescentei. – E você tem suas espadas.
– E o que eu tenho? – disse Kenté, em um tom falsamente ressentido.
– Sombras.
Ela fez uma careta para mim e se virou para Markos.
– O que você vai fazer depois de resgatar sua irmã?
– Ainda não ousei pensar muito à frente. – Ele bebeu o rum. – O gosto é
melhor se você não sente o cheiro. – Ele girou a caneca lentamente sobre a
mesa. – Tenho esperança de que alguns conselheiros de meu pai também
tenham escapado. Todos eles sabiam que nós deveríamos nos encontrar em
Valonikos caso… Bom, caso algo como isso um dia acontecesse.
– A cidade livre é linda – eu disse a ele. – Ela se ergue sobre uma grande
colina. As casas são de tijolos caiados. Há varandas com flores cor-de-rosa se
derramando sobre elas, e telhados com jardins. E templos com cúpulas
vermelhas.
– A cidade livre – repetiu Markos. – Meu pai odiava quando as pessoas a
chamavam assim.
– Em minha opinião, Valonikos está se saindo perfeitamente bem sem um
emparca. Você sabia que seu archon é eleito pelo povo? – Mesmo ali, em
Kynthessa, as cidades eram governadas por archons nomeados pela
margravina. Embora o senado tomasse a maior parte das decisões, ela ainda
detinha uma quantidade significativa de poder.
– Que bom para eles – desdenhou Markos. Torci para que ele não estivesse
prestes a ficar todo enfezado outra vez. – Akhaia é trezentas vezes maior que
a cidade livre. Ela exige a estabilidade que vem com uma classe dominante
forte. Se déssemos as costas e entregássemos todo esse poder para o povo,
como Antidoros Peregrine quer fazer, isso poderia ter consequências
desastrosas.
Ele ia ficar todo enfezado. Eu revirei os olhos.
– Você parece estar repetindo as palavras de um livro. O que você acha?
Não os seus tutores. Você. Markos.
– Eu posso pensar por mim mesmo, sabia? – disse, com azedume.
– É mesmo? – provoquei.
– Um brinde a Valolikos, então – anunciou ele. – Só para que Carô pare de
me perturbar com isso. – Ele ergueu o copo e terminou o seu rum. Seus olhos
se franziram nos cantos. – Sabem, eu não me sinto leve assim em dias. Na
verdade, eu sinto que vamos conseguir.
– Isso é porque você está bêbado.
– Eu não estou bêbado.
– Você está, sim – sorriu Kenté. – Você disse “Valolikos”. Eu ouvi.
– Eu, não. Valonikl… Valol… Droga.
Todos caímos na gargalhada.
– Vocês são má influência sobre mim, sabia? – Eu olhei para a garrafa
pela metade. – Vocês dois.
Kenté agitou as sobrancelhas e gesticulou furtivamente em direção a
Markos por baixo da mesa. Eu dei uma cotovelada nela com força.
– Bom, eu vou para cama – anunciou ela, descendo do compartimento. –
Venha, Fee. Monte uma rede para mim.
Que os deuses nos protejam de primas intrometidas.
Imediatamente, Markos e eu pulamos de pé.
– Eu só vou… – Ele pegou a garrafa de rum.
– Certo – balbuciei. Meu rosto corou quando eu me abaixei para recolher
os pratos. Kenté tocou o lado do nariz com o dedo antes de se abaixar para
passar pela cortina e entrar na cabine seguinte.
Markos a observou ir.
– Você é diferente com ela.
Parecia ridículo que eu nunca tivesse percebido que combinação
extremamente bela eram olhos azuis com cabelo negro. Meu coração estava
batendo em ritmo frenético. Eu não sabia para onde olhar.
– Ela é minha prima. – Fingi arrumar os pratos sujos.
– Meu primo tentou me assassinar, então… – ele deu de ombros.
– Ayah. Sua vida está bem caótica, não é?
– Está. Está mesmo. – Ele fez uma pausa. – Carô, eu tenho pensado sobre
o que vai acontecer quando chegarmos a Casteria.
Eu senti vergonha por ter rido apenas alguns minutos atrás. E por pensar…
Bem, o que quer que eu estivesse pensando.
– Se… – ele respirou fundo. – A magia do homem sombra… Ela só é
desfeita quando alguém abre a caixa. Se todo mundo que conhecer Daria por
lá estiver morto… – Ele pôs a mão sobre minha manga, e fagulhas
percorreram meu corpo. – Carô, se alguma coisa me acontecer, e eu não
conseguir, você tem de tirá-la de lá. Prometa.
– Você vai conseguir.
Ele não soltava meu braço.
– Prometa.
Eu não vi como eu iria conseguir escapar viva se ele não conseguisse. Nós
estávamos no mesmo barco. Provavelmente, iríamos sobreviver ou morrer
juntos.
– Certo, eu prometo.
– Escute. Em Valonikos há uma casa – ele falou apressado. – Na Rua
Iphis. Vá a essa casa e pergunte por Tychon Hypatos. Sua família é prima
nossa. Ele é um homem muito rico. Ele pode ajudar Daria.
– Markos, pare – sussurrei. Ele estava falando como se já estivesse morto.
– Você precisa saber. Caso seja necessário. – Suas mãos envolveram meu
braço calidamente. – Agora, qual é o nome dele?
– Tychon Hypatos. Rua Iphis. Eu não vou precisar disso.
– Espero que não.
Ele me soltou. Eu esperei que ele recuasse, mas, em vez disso, inclinou o
ouvido em direção a mim.
Estávamos afastados apenas alguns centímetros. Teria sido fácil encostar
meu corpo no dele. Fácil despentear seu cabelo e apertar meus lábios sobre
aquele triângulo de pele macia na base de seu pescoço. Imagens saltavam
espontaneamente em minha mente: Markos, empurrando-me contra o armário
e me beijando sem parar até ficarmos os dois sem fôlego. Mãos por baixo de
roupas.
O rum e minha vergonha fizeram com que meu rosto queimasse. Como
você pode saber ao certo quando uma pessoa está pensando a mesma coisa
que você? Eu ouvi sua respiração irregular e vi a maneira nervosa como ele
afastou os olhos de mim, e eu soube imediatamente que ele estava.
– Eu vou para o convés – disparei, e o afastei do caminho para escapar da
cabine quente e apertada.
Eu precisava de ar. Ar fresco para acalmar a onda do rum em minha
cabeça. E em outras partes de meu maldito corpo.
Talvez eu não fosse a garota certa para esse tipo de aventura. Nas
histórias, a heroína é uma dama trancada em um castelo. Ou uma garota
comum com sonhos de ser especial. Ou uma criada que conhece um rapaz
bonito que vai levá-la embora de tudo isso.
Uma heroína é sempre alguém que quer escapar.
Bem, eu não queria. Eu queria meu pai de volta. Queria, um dia, herdar a
Cormorant. Sim, eu não tinha o favor do deus do rio. E daí? Eu ainda podia
ser uma barqueira. Aquele barco estava vivo embaixo de minhas botas, era
um amigo e um lar. Eu já tinha a vida que eu queria.
Eu não queria ser arrebatada por algum emparca, ver todas as outras coisas
em minha vida parecer menores e mais vazias, em comparação. No fim
daquilo, eu iria entregar Markos em Valonikos. Ou todos seríamos
destroçados pelos Cães Negros. De qualquer forma, eu nunca mais tornaria a
vê-lo. Dentro de sessenta anos, eu provavelmente seria uma velha tricotando
em sua cadeira e contando a história da única coisa excitante que tinha
acontecido em sua vida.
De repente, eu não queria nenhuma das duas coisas.
Que a corrente vos leve, dizia o povo das terras dos rios. Isso é muitas
coisas. Uma saudação. Uma bênção. Um reconhecimento de que o rio
continua a fluir a nossa volta, não importa o que aconteça.
Para mim, naquela noite, isso pareceu um alerta.
CAPÍTULO
DEZOITO
– Você sabe que isso é uma armadilha, não sabe? – Observei Markos andar
de um lado para outro da cabine. – É uma armadilha para você, e sua irmã é a
isca.
Seus dedos se flexionaram sobre os cabos das espadas. Eu sabia pela
rigidez de seu rosto que ele mal estava conseguindo conter as emoções.
– Não me importa. Eu preciso tirá-la de lá. – Ele deu um soco no armário.
– Droga.
– Eu entendo, mas…
– Ah, desculpe. – Ele sacudiu a mão. Havia uma marca vermelha sobre os
nós dos dedos. – Eu não sabia que toda sua família tinha sido assassinada
recentemente. Não ouse me dizer que você entende – disse ele com aspereza.
– Ela é tudo o que me resta.
– Bom, eu não sabia que você tinha perdido o bom senso recentemente –
retruquei. – Se é que você já teve algum. O que exatamente você planeja
fazer?
– Cleandros é um traidor. – Ele ergueu o queixo para olhar adiante. Minha
raiva costumava fervilhar, mas a dele era fria como gelo.
– Eu vou desafiá-lo para um combate individual.
Eu desconfiava que seria algo nobre e estúpido como isso. Eu me segurei
para não fazer um comentário sarcástico.
Diante de meu silêncio, ele estreitou os olhos.
– O quê?
– Eu não disse nada.
– Você estava pensando – disse ele. – Muito alto, devo acrescentar.
– É só que… – hesitei. – Se você acha que o homem das sombras ou os
Cães Negros vão lutar limpo…
Ele girou, e o casaco com detalhes dourados balançou em torno de suas
pernas.
– Você acha que eu sou ingênuo. – Seu rosto enrubesceu. – Tolo.
– Olhe, se fizermos as coisas como você quer, você vai ser morto! – Senti
de repente uma dor na garganta. – E eu não quero que você seja morto. Ou eu
não tenho permissão de dizer isso?
Quando ele tornou a falar, sua voz estava firme e baixa.
– Eu preciso ir. Se não quiser vir comigo, eu entendo. Obri-
gado por tudo. – Ele estendeu a mão. – Espero que possamos nos despedir
como amigos.
Eu dei um suspiro.
– Como se eu fosse simplesmente deixar você.
– E por que você não faria isso? – Ele engoliu em seco. – Eu não trouxe
nada além de problemas para você e sua família.
Fiz uma pausa e pensei em suas palavras. Eu prometera levá-lo a Casteria,
e ali estávamos nós. Por que eu não deveria zarpar e voltar com a
Cormorant? Akhaia não era meu país. Essa não tinha de ser minha luta. Mas,
enquanto eu olhava para ele, tudo o que tinha acontecido desde que nos
conhecemos voltou em flashback, começando com a abertura da caixa e
terminando com suas palavras no Lago Nemertes. Nós somos mais fortes
juntos que separados. Você não acha?
Eu não podia deixá-lo para que enfrentasse sozinho os Cães Negros.
Eu dei de ombros e disse:
– Como você quiser. Fee, vamos preparar as velas. Kenté, solte as
amarras.
A voz de Markos vacilou.
– Sério?
– Não, não é sério. – Dei um tapa em sua mão estendida. – Você às vezes
pode ser lento. Você acha que eu ia simplesmente apertar sua mão e deixá-lo
ir lá para cima sozinho? E ser morto, muito provavelmente – acrescentei.
Kenté olhou pela janela, onde entravam raios âmbar do sol de fim de tarde
que se projetavam baixos sobre a cidade.
– Se vamos fazer isso, é melhor agir agora.
Eu amarrei um lenço no cabelo.
– Nós estamos fazendo isso.
– Qual é o plano? – ela perguntou.
– Não acabarmos mortos. – O resto, nós podíamos descobrir no caminho.
Enquanto corríamos pelas docas, examinei o cúter com o canto do olho.
Ele parecia deserto, o que me deixou nervosa. Olhei para a Cormorant, e meu
amor por ela perfurava meu coração. Eu odiava deixá-la desacompanhada.
Talvez Fee devesse ficar para trás… Mas, não. Se houvesse encrenca,
precisaríamos de toda ajuda que pudéssemos conseguir.
– Conte-me tudo que eu preciso saber sobre a magia do homem das
sombras Cleandros – ordenei a Kenté quando deixávamos as docas. A rua
movimentada estava pontilhada de barracas de feira e baldes de peixe fresco.
– Ainda é de tarde. Precisamos chegar à irmã de Markos antes que o sol se
ponha.
– O que acontece depois? Ah… – Entendi o que ela queria dizer. – Você
está dizendo que, se escurecer, ele vai saber quando abrirmos a caixa. Você
pode dizer se ele já a abriu?
– Não é assim. – Ela franziu os lábios. – Não é minha mágica. Para ele, é
como… Como uma bolha estourando no fundo da cabeça. Markos, por
exemplo. Ele deve ter percebido no segundo em que Markos despertou. – Ela
olhou para ele. – Você deveria estar grato. Carô provavelmente salvou sua
vida quando abriu a caixa. Depois que a magia foi desfeita, ele não conseguiu
mais senti-lo. Ele não sabia onde você estava.
– Você pode sentir toda magia que já fez? – perguntou ele.
– Eu diria que, se tentar, sim. Eu a deixei por toda parte. Há uma agora
mesmo no canto da melhor sala de estar da casa dos Bollards. Eu a ponho ali
para encobrir os cacos de um vaso que deixei cair na semana passada. Eu
posso sentir isso quando estou forte o suficiente.
– Forte o suficiente? – perguntou Markos.
– Quando é noite. À noite, eu posso sentir as coisas ao meu redor. As
sombras. Pessoas dormindo. Seus sonhos e medos. Meus poderes começam a
ganhar vida ao pôr do sol, mas, quanto mais escurece, mais tudo… entra em
foco.
– Por que você está fazendo todas essas perguntas? – indaguei a Markos. –
Achei que você soubesse tudo sobre homens das sombras, sendo de Akhaia.
– Pouquíssimas pessoas sabem tudo sobre os homens das sombras. Eles
basicamente guardam seus próprios segredos.
– Seu pai tinha um homem das sombras na corte – observei.
– Não sei o que Cleandros fazia para meu pai. – Seu rosto assumiu uma
expressão reservada. – Comecei a desconfiar que ele fosse especialmente
talentoso em fazer magia de sono. Veja, por exemplo, o que ele fez com as
caixas. Mas era mais que isso. Depois que fiz dezoito anos, meu pai permitiu
que eu me sentasse em suas reuniões do conselho. Eu vi coisas acontecerem
que achei… estranhas. Um homem expressava oposição forte a algo que meu
pai sugeria, mas aí ele, de repente, não sei… Cedia.
Olhei horrorizada.
– Você acha que Cleandros controlava suas mentes?
– Não exatamente controlava. Um homem cansado fica confuso.
Esquecido. Suscetível a sugestões. Não digo que sei tudo sobre a magia das
sombras, mas sei que, acima de tudo, ela envolve trapaça.
Eu me voltei para Kenté.
– Você alguma vez já fez isso?
Ela deu um sorriso malicioso, e a luz do crepúsculo se refletiu no brinco
em seu nariz.
– Você já fez isso alguma vez comigo?
Ela ignorou a pergunta.
– O que Markos diz é essencialmente correto. Um homem das sombras
não consegue atear fogo a um homem. Mas ele pode manipular seus sonhos
para fazê-lo acreditar estar pegando fogo. Explique-me isto: O que é mais
perigoso?
– Para mim, parece uma magia inútil – eu disse. – Se você não consegue
nem fazê-la em plena luz do dia.
– Eu com certeza me escondi com muita facilidade em seu barco. – Ela
apertou os lábios, e eu vi a linha fina de suor acima deles. – Ele vai começar
fraco, mas, à medida que escurecer, seus poderes vão crescer. Até a meia-
noite, quando estão em seu ponto mais forte. Nós temos de nos apressar.
– Mas você é um homem das sombras também. Você pode enfrentá-lo. –
Pelo menos, eu esperava que ela pudesse.
– Não esqueça que eu não tive treinamento.
– Cada vez pior – murmurei.
Enquanto seguíamos através das ruas de Casteria, eu me sentia nua. Um
pressentimento desceu por meu pescoço e fez com que meu coração batesse
mais rápido. Nós não tínhamos visto nada dos Cães Negros, mas eles podiam
estar em qualquer lugar nos observando.
As propriedades mais antigas da cidade eram construídas na encosta de um
morro, em frente ao qual as ruas corriam alinhadas. De vez em quando, uma
escada descia por entre as casas aglomeradas até um pequeno cais ou praia
particular. As casas mais bonitas ficavam localizadas bem ao lado de
barracos, a única diferença era que tinham um portão de pedra ou um jardim
com árvores esculpidas. Markos parou em frente a uma casa cor de pêssego e
acenou para as cabeças de leão-da-montanha no portão.
– O lugar é este.
Ele pisou na calçada da frente, mas eu segurei seu casaco e o puxei para
trás.
– Você ia simplesmente entrar pela porta?
– Certo. – Ele fez uma careta e pareceu um pouco encabulado. – Vamos
fazer as coisas do seu jeito.
– Não pare de andar. Nem mesmo olhe para a casa – sussurrei sem mover
os lábios. A rua estava vazia, mas eu não sabia quem nos observava de trás
das cortinas daquelas casas. – Deve haver uma porta nos fundos, para criados
e comerciantes.
Nós margeamos a lateral do jardim e entramos no beco seguinte. Ali,
como eu desconfiava, encontramos a entrada dos fundos, uma discreta porta
de madeira.
Tentei a maçaneta. Destrancada.
A porta abriu para dentro e revelou uma cozinha com um fogão de tijolos
enorme. O fogo não tinha sido aceso. Enquanto meus olhos se ajustavam ao
escuro, vi que o papel de parede estava descascando. Sujeira de muitas botas
enlameadas havia secado no chão, e um cheiro bolorento pairava no local.
Markos me olhou nos olhos e fechou a porta cautelosamente às nossas costas.
Eu não achava que isso importasse.
– Markos, ninguém vive aqui há dias. – Eu apontei com a cabeça para um
queijo mofado na mesa. – Veja a comida.
– Eu estou lhe dizendo, ela devia estar aqui! – Com a espada na mão, ele
seguiu pelo corredor, espiando pelas portas. Finalmente, ele sacudiu a cabeça.
– Devia haver criados, toda uma casa em funcionamento. Minha família é
a dona desta casa. E eles ousam simplesmente ir embora?
Eu estava desconfiada da confusão nas prateleiras. Havia pratos de
porcelana estilhaçados por toda parte. Aquele lugar tinha sido revirado.
Passei cuidadosamente os dedos pelos cacos de uma garrafa de vinho
quebrada e os esfreguei juntos.
– Eu não gosto disso – murmurei. – Não gosto nada disso.
Markos deu um tapa na parede.
– Estes deviam ser homens leais. Imagino que este seja o resultado de
contratar criados khyntessianos… – Ele olhou para mim. – Desculpe.
– Talvez eles tenham ouvido as notícias sobre o emparca. – Kenté estudou
a bagunça. – E fugiram com medo.
– Precisamos revistar a casa. – Ele se aprumou. – Procurar por um baú.
Grande o suficiente para uma criança.
Não demorou muito. As outras portas levavam a uma pequena biblioteca,
a uma suíte e a uma despensa, no porão, que estava completamente escura,
exceto pelo brilho mortiço de uma única janela suja. Não encontramos
nenhum cão negro escondido nos armários, para meu alívio.
– Não é uma casa muito grande – eu disse. – Para um emparca. – Eu
esperava algo mais grandioso. A casa dos Bollards era facilmente vinte vezes
maior.
– É só um refúgio de pesca. – Markos esfregou a ponte do nariz. – O que
fazemos agora? Se os criados a levaram com eles, como vou encontrá-la?
Maldição, eu queria que tivéssemos escolhido qualquer outra maneira de
fugir. Qualquer coisa menos essas malditas caixas. – Eu pus a mão em sua
manga, mas ele a afastou. – Não posso… – Sua voz vacilou. – Não posso
suportar não saber o que aconteceu com ela.
Fee assoviou da cozinha.
Eu entrei apressada pela porta.
– O que…
Ela apontou com a cabeça para um baú de madeira, no canto dos fundos,
perto de uma saca de batatas. Nós o deixáramos passar na primeira vez.
Alguém jogara panos de prato sujos em cima dele, quase o escondendo de
vista.
Markos jogou os panos no chão, sacou a espada e golpeou as correias de
couro que prendiam o baú fechado. A primeira correia cedeu e se partiu. Ele
cortou facilmente a segunda, e se abaixou para segurar a tampa do baú.
Para além da janela, o céu acima dos telhados de Casteria reluzia laranja
com o crepúsculo. Um último raio de luz pairava no horizonte. Enquanto eu o
observava, ele se apagou.
– Markos, espere!
Ele abriu a caixa.
Encolhida em seu interior, havia uma garotinha. Por um momento
suspenso e horrível, eu achei que ela estivesse morta. Então, seu ombro
magro se mexeu, e ela se esticou.
Seus olhos se arregalaram.
– Markos!
Eu engoli a emoção repentina que me tomou com o jeito como o sorriso
dele iluminou seu rosto. Ele ergueu a irmã do caixote e a abraçou com força
junto ao peito. Ela usava uma camisola fina salpicada de estrelas e tinha o
mesmo cabelo negro de Markos, exceto pelo fato de ser totalmente liso. A
coitada tinha hematomas pelos dois braços inteiros.
Ela olhou para ele enquanto ele limpava palha de sua camisola.
– Eu tive sonhos horríveis.
Os olhos de Markos encontraram os meus acima da cabeça dela. Ele sabia
o que tinha feito.
– Sinto muito – disse ele com voz rouca.
Kenté olhou fixamente para Daria como se ela fosse a morte chegando
para nos levar.
– Ele soube disso instantaneamente. Precisamos ir.
Markos ergueu a irmã, tirou-a da caixa e a pôs sobre a mesa.
– Daria, esta é Caroline. Você deve fazer tudo o que ela disser. Se ela
mandá-la correr, corra. Se disser que se esconda, encontre um lugarzinho e se
enfie dentro dele. Você entendeu? Se ela mandar se abaixar…
– Eu me abaixo. – A menina revirou os olhos. – E eu sou pequena, não
burra.
– Daria. Isto é sério.
– Ela não pode correr vestindo isso. – Gesticulei apontando para a
camisola, que ia até o chão. – Ela vai tropeçar.
Markos fez uma careta. Sem dúvida, ele queria desesperadamente fazer
um comentário sobre como eu estava sempre estragando coisas boas, mas ele
pegou a faca que ofereci e cortou a camisola de Daria na altura dos joelhos.
Tentei lembrar a mim mesma que minha parte nessa aventura era ser a
pessoa com conhecimento de pistolas, facas e comportamento fora da lei em
geral. Mas era difícil quando meu coração queria derreter com o jeito todo
doce com que ele tratava a irmã.
A dobradiça de uma porta rangeu. Minha respiração se prendeu na
garganta. Eu disparei para o corredor.
Diric Melanos apoiou o braço diante da porta da frente e a bloqueou. Ele
vestia um casaco azul-marinho, coberto de cintos de pistolas. Eu não
duvidava que ele carregasse consigo pelo menos dez armas.
– Você deve ser a garota da barca – disse ele, com um sorriso se abrindo
em seu rosto marcado por cicatrizes. – De quem eu sempre escuto tanta coisa.
– Com o som de botas pesadas no chão, ele se afastou da soleira.
Cleandros, o homem das sombras, entrou, arrastando sua túnica negra com
listras douradas. Eu só tinha ouvido sua voz, mas o reconheci imediatamente.
Ele não era tão velho quanto soava – havia apenas pequenos tufos grisalhos
em seu cabelo castanho e sem brilho. No todo, ele parecia tedioso e de
maneiras brandas, como um professor ou um escriturário. Vários pingentes
pendiam de seu pescoço em correntes compridas.
O resto dos Cães Negros entrou atrás dele. Cinco, dez, quinze homens,
armados com adagas e pistolas.
Todo meu corpo vibrou com o perigo. Nós estávamos como os
caranguejos nas armadilhas flutuantes na baía.
Presos.
CAPÍTULO
VINTE
Há uma sensação de liberdade impulsiva quando você deixa para trás tudo o
que conhece. Enquanto eu corria pelas docas arrastando Daria às minhas
costas, sentia a excitação disso nas veias.
Markos estava morto. Não havia mais Cormorant. Mas eu estava viva. Eu
era uma Oresteia e eu era ousada. Meu cérebro se aguçou, e meu sangue
fervilhou.
Eu sabia o que fazer.
Um cúter não leva uma tripulação grande. Só um homem foi deixado de
guarda perto do Victorianos. Ele estava sentado em um pilar das docas, com
as botas balançando. Seu mosquete estava apoiado contra uma pilha de barris,
longe demais para ser de qualquer serventia para ele.
Ele nem nos viu chegar.
Eu saquei minha faca e a arremessei no guarda. Ouvi um impacto molhado
e um grunhido, mas eu já estava subindo a prancha de embarque, correndo.
– Kenté, puxe-a para dentro! – arfei. Madeira se arrastou sobre madeira
quando ela me obedeceu.
O cúter tinha um convés aberto com duas escotilhas que levavam à
coberta. Ele era guiado por uma cana do leme muito maior que a da
Cormorant.
– Volte aqui – ordenei a Daria, e avisei: – Não toque em nada.
Eu não conseguia pensar em Markos. Nem no homem que eu podia ter
matado. Nem na Cormorant.
Para qualquer um que cresça cercado de barcos, é um sacrilégio cortar boa
corda, mas eu não hesitei. Corri ao longo da amurada de bombordo do cúter
cortando todas as amarras. O Victorianos começou a se mover.
Passei desesperadamente a erguer a vela principal. Era pesada demais,
mas, quando achei que pudesse irromper em lágrimas de frustração, senti Fee
a meu lado. A verga da vela subiu até o topo. Com mãos trêmulas, enrolei a
adriça em torno do cunho de madeira.
– Vela de traquete? – arquejou Kenté sem fôlego.
– Sim, suba – eu disse.
Os cães negros tinham visto as velas do cúter se erguerem. Eles
começaram a correr, empurrando barqueiros e trabalhadores das docas de seu
caminho. Eu saltei de cima da cobertura da escotilha para a proa. Nós só
tínhamos alguns momentos antes que eles sacassem seus mosquetes.
A garotinha estava parada onde eu a deixara, ao lado da cana do leme.
– Saia daí – eu disse bruscamente, já arrependida de meu tom de voz.
Ela se afastou depressa, bem a tempo de eu agarrar a cana do leme e a
empurrar com força para um lado, exatamente onde ela estava parada
segundos antes. O cúter, ainda apontado para o vento, flutuava para trás.
Cerrei os dentes e me apoiei na cana do leme. Eu a puxei para mim e
empurrei com força mais uma vez.
Um dos cães negros correu pela doca. Kenté tinha removido a prancha de
embarque, mas ele se preparou para saltar. Nós não tínhamos nos afastado o
suficiente. Ele talvez conseguisse.
Fee esticou os lábios em um sorriso feroz e saltou sobre a amurada. Ela
ficou ali equilibrada com a faca na mão.
As pernas e braços do homem se agitaram, e seu corpo se ergueu no ar.
Nesse momento, Fee se virou e olhou para mim.
Eu larguei a cana do leme.
– Não faça isso!
Ela saltou.
Eles colidiram em pleno ar, se emaranharam e caíram. Houve um barulho
de água, e nela uma agitação esbranquiçada. Em seguida, não vi nada além de
ondas delicadas.
– Fee! – gritei com voz vacilante. – Fee!
Mas nem ela nem o pirata voltaram à superfície.
Muito devagar, o Victorianos começou a virar. No alto, a borda de sua
vela tremulou. Kenté subiu na cobertura da escotilha e se inclinou sobre a
retranca, empurrando-a para estibordo. Dei mais uma bombada na cana do
leme, e dessa vez a vela estremeceu. O vento a pegou e, com um belo ruído
de tremular, ela se enfunou. Eu senti a pressão no leme quando o navio
ganhou velocidade e a vela se tensionou.
Olhei para trás, frenética.
– Temos de esperar por Fee.
– Carô, ela se foi. – Odiei a simpatia na voz de Kenté.
Borbulhas subiram atrás de nosso leme e cresceram em uma esteira
agitada. Kenté chegou rápido à escota da vela mestra. Os Bollards podem não
ser uma família de barqueiros, mas eles sabem alguma coisa sobre barcos.
Nós partimos e pegamos nosso rumo pelo Pescoço. Às nossas costas,
disparos reverberavam sobre a água, embora estivéssemos bem fora de
alcance.
– Abaixe a cabeça – eu disse a Daria só por garantia. – Melhor ainda,
deite-se toda no chão.
Ela caiu como uma pedra, obedecendo imediatamente. Ela ouvia melhor
que Markos, eu tinha de reconhecer isso.
Markos. Havia um espaço negro e vazio onde ele costumava estar. Eu
queria gritar de frustração, me desfazer em pedaços, mas não podia. Não se
quisesse viver.
Eu estava com medo até de pensar em Fee. Era algo muito novo. Muito
fresco. Lágrimas dolorosas encheram meus olhos. Meu pai, a Cormorant e
Fee – esses eram os retalhos que formavam minha vida. Eu podia suportar se
faltasse uma peça. Naquele momento, tudo estava cheio de buracos, e seus
farrapos rasgados esvoaçavam ao vento.
Que tinha aumentado.
Bem atrás, a Alektor se afastou das docas. Mas, dessa vez, eu não
precisava de nevoeiros estranhos. Eu sabia que ela não conseguiria nos pegar,
pois o Victorianos simplesmente voava. Ele rasgava a água, e sua proa
levantava uma esteira branca. Era esse o tipo de navegação para o qual ele
tinha sido construído.
Kenté apertou os olhos e olhou para trás.
– Não acho que eles estejam se aproximando.
– Não vou abrir mais velas – eu disse. – Não, a menos que seja necessário.
Este navio é muito mais do que estou acostumada.
– Cleandros não devia ter sido capaz de desaparecer assim. Não momentos
após o pôr do sol. – Kenté sacudiu a cabeça. – Ele deveria estar muito fraco,
como eu estava. Você viu aquela coisa em volta do pescoço dele?
– Você está falando do pingente?
– Deve ser algum tipo de… de caixa de sombras ou algo assim. Ele
desapareceu no momento em que o abriu. Isso é muito engenhoso. – Ela
balançou para frente e apoiou a testa nas mãos. – E eu sou muito estúpida.
Por que eu nunca pensei em fazer isso? Há escuridão na caixa mesmo que
haja luz em seu exterior.
– Você está sendo estúpida agora – eu disse. – Como você podia saber? É
como eu dizer a Daria que suba no mastro e rize aquela vela e esperar que ela
saiba como fazer isso. Ele era o homem das sombras pessoal de um emparca.
– Fui uma tola em achar que poderia ajudá-la. – Ela remexeu em uma
unha. – Fee e Markos lutaram contra eles. Morreram lutando contra eles. –
Uma lágrima correu por seu rosto, misturando-se com os borrifos do mar. –
Eu não fiz nada.
Eu tinha outra coisa com que me preocupar. Chuva começou a cair no
convés, gotas grandes e raivosas. Seria uma tempestade.
– Vai ventar muito. Leve Daria para a cabine. Não quero que ela pegue um
resfriado.
– Quero ficar aqui! – Daria estava de olhos arregalados e com o cabelo
grudado à sua testa, como se fossem várias cobras molhadas. Markos odiava
quando a Cormorant navegava com qualquer inclinação, mas sua irmã
parecia eufórica com a maneira com que o cúter se inclinava para o lado,
enfrentando as ondas.
– Não vou pegar nenhum resfriado.
Na excitação de nossa fuga, ela tinha parado de chorar. Eu desconfiava
que ela ainda não tivesse compreendido a morte do irmão em toda sua
extensão.
– Procure nos armários – eu disse a Kenté. – Nós vamos precisar de capas
de chuva. Equipamento para clima frio.
– Você podia rizar a vela – sugeriu Kenté olhando para a vela. Uma onda
quebrou em nossa proa, jogando baldes de oceano sobre o convés em nossa
direção. Não dei importância a isso. Minhas botas já estavam encharcadas.
– Ainda não. – Eu estava com medo de parar.
– Este é o caminho para Iantiporos? – Daria ficou de pé, examinando os
penhascos enevoados. – Minha mãe está em Iantiporos.
Horrorizada, ergui os olhos para encontrar os de Kenté.
– Não posso – articulei as palavras sem emitir som. Era demais. Eu mal
estava conseguindo me segurar.
Kenté descruzou as pernas e estendeu a mão para Daria.
– Vamos descer para explorar, hein? Podemos escolher um beliche.
Agradeci pelo vento e as ondas estarem barulhentos. Se ela chorou quando
Kenté lhe contou, eu não ouvi.
Verdade seja dita: fiquei aliviada por Daria estar na coberta e fora de
minha vista. Eu não conseguia imaginar como seria descobrir que você era o
último membro sobrevivente de toda sua família. Ela iria querer alguém para
abraçá-la, fazer chocolate quente e lhe dizer que tudo ficaria bem.
Bom, eu não podia fazer isso. Não quando ela era a razão de Markos e Fee
estarem mortos. Talvez fosse egoísmo, mas eu tinha perdido tudo por ela, e
ela nem sabia disso. Senti uma forte pontada de dor em meu peito. As coisas
nunca mais ficariam bem.
Oh, Markos.
A emparquia de Akhaia era herdada pela linhagem masculina. Como
primo, a reivindicação de Konto Theuciniano ao trono não era legítima antes,
mas, a partir de então, era. O que Markos fizera ao trocar a própria vida pela
da irmã fora um gesto nobre – e idiota –, de enfurecer.
Minha garganta doeu, mas pareceu mais doença que pesar, como se eu
devesse estar na cama com o pescoço enrolado em flanela e besuntado de
linimento. Eu queria tossir, desmaiar e vomitar, tudo ao mesmo tempo.
O tempo não ajudava em nada. O Victorianos abria caminho pelas ondas
encapeladas, muito inclinado para estibordo. Navegar o Victorianos não era
como navegar a Cormorant. Ele lutava comigo pelo controle, enquanto eu me
esforçava com a cana do leme, tentando nos manter no curso. Eu quase
imaginei que ele estivesse sendo exigente por não acreditar que alguém tão
pequena e insignificante quanto eu tinha sido ousada o suficiente para roubá-
lo.
– Tudo bem, Vic – eu disse em voz alta, porque “Victorianos” era muito
grande. Parecia formal demais para um navio fora da lei como aquele. – Você
não vai me derrotar. Você precisa se acostumar com esse fato agora. Eu vou
levá-lo pelo Pescoço para o mar. E você não pode me impedir.
As nuvens se abriram e exibiram estrelas pálidas, como se o céu estivesse
piscando para mim. Nesse momento, juro que senti o mar ficar mais calmo, e
o vento amainar. Mas era apenas o meu desejo.
As duas horas seguintes provaram isso. Uma parede de nuvens escuras se
aproximou, e o vento aumentou. A chuva açoitava o convés, e minha mão
estava dormente na cana do leme. As capas de chuva dos armários do cúter
eram feitas para homens crescidos, portanto, eram grandes demais para mim.
Água escorria pela gola larga e entrava nas mangas, grudando minha roupa
ao corpo na parte de cima.
Depois de algum tempo, passamos pelo farol na extremidade do Pescoço.
Estávamos em mar aberto. Eu virei o navio pela última vez e afrouxei as
velas. Nesse ângulo, eu não precisava lutar tanto contra o vento e a água.
Finalmente, a inclinação do convés diminuiu, e pareceu que o Vic não estava
mais brigando comigo.
Olhar para o mar e tentar entendê-lo é como tentar conhecer o insondável.
Não dá. Observando a vastidão do oceano, senti um buraco no fundo de meu
coração. E, mesmo assim, achei que o mar entendia isso. Ele conhecia o
vazio. Conhecia o desespero. Ele ecoava o meu, e o devolvia para mim com o
barulho das águas. Tudo estava acelerado, agitado e cinza, cinza, cinza.
Eu me sentia cinza. Estava tremendo e encharcada. Fee estava morta,
Markos estava morto, e a Cormorant estava perdida. Desejei que meu pai
estivesse ali, mas eu tinha estragado isso também – os soldados da
margravina iriam trancafiá-lo na escuridão e na imundície de um navio
prisão, e era tudo minha culpa. O borrifo salgado em meu rosto se misturava
com minhas lágrimas, apagando-as como se nunca tivessem estado ali.
Eu recebera uma tarefa simples: entregar o caixote idiota em Valonikos.
Agora, o verdadeiro emparca de Akhaia estava morto, e eu estava envolvida
nisso. Eles deviam ter mandado alguém com quem os deuses realmente se
preocupassem. Qualquer barqueiro teria sido melhor que eu.
Eu gritei na noite. O mar engoliu meu grito e levou para si minha fúria e
meu pesar. Gritei com tanta força que minha voz falhou, e meus olhos
pareceram poder explodir.
Então eu ouvi. Um ronco vindo das profundezas.
Nós não estávamos sozinhos. Havia alguma coisa lá fora.
Uma cabeça enorme surgiu em meio às ondas agitadas, borrifando muitos
litros de água. Ela era coberta pelo que pareciam penas molhadas, e montes
de cracas se prendiam a seu pescoço comprido e escamoso. Com ela, veio um
cheiro forte e reptiliano.
Meu choque foi tamanho que larguei a cana do leme.
Era um drakon. Pelo menos, eu achei que fosse. Eu nunca tinha visto uma
imagem de um, pois as pessoas que escrevem os livros de história natural
dizem que eles são apenas lendas. Mas ele não podia ser nenhuma outra
coisa.
As velas do Vic tremularam e gemeram em alerta. Eu corrigi rapidamente
nosso curso, com o pulso acelerado.
O drakon abriu a boca gigante e rugiu para mim. Escorria água de sua
cabeça, e seus dentes pareciam espadas. Fiquei hipnotizada pelo brilho roxo
de suas escamas. Ele sacudiu sua juba espinhosa e jogou espuma e respingos
para todo lado. Havia nele algo selvagem e belo.
De repente, não me importei se o enfurecesse. Não me importei se ele me
devorasse, se ele enrolasse sua cauda grande em torno de nós e nos arrastasse
para o fundo do mar, como ocorreu com o navio Nikanor.
Que ele viesse.
Eu gritei de volta, um urro de desafio para responder ao do drakon.
– Carô! – Kenté saltou à minha frente, apontando uma pistola para ele.
Eu segurei seu braço.
– Espere! Não!
– Você perdeu a cabeça? – perguntou ela. – Isso é um drakon.
Ela lutou comigo, mas eu era mais forte. Eu a segurei.
– Você vai enfrentá-lo com uma pistola?
Pelo canto do olho, eu observava enquanto o monstro acompanhava a
velocidade do Vic. Eu não conseguia lembrar se devia ou não fazer contato
visual com um drakon. Muito atrás, eu conseguia ver indistintamente três
elevações que pareciam ilhas – as curvas de sua cauda se projetando da água.
– Ele vai se enrolar em nós e nos afundar. – Kenté ergueu a voz. – Ele
quer nos devorar.
– Não – eu disse, surpreendendo a mim mesma. Eu não sabia como sabia.
– Ele não vai nos incomodar. A última coisa que devemos fazer é provocá-lo.
Se não dermos atenção, talvez ele vá embora.
– Tudo bem – ela disse, desconfiada, baixando a pistola.
O drakon deu um rugido triste e mergulhou de cabeça nas ondas. Seu
corpo comprido sibilou por baixo d’água, levantando borbulhas. Eu não sabia
dizer por que impedira Kenté de atirar nele, só que parecera importante fazê-
lo.
Eu tinha encarado de frente um drakon do mar e sobrevivera. Quantas
pessoas já tinham visto um drakon? Não só em uma história mentirosa
contada por algum velho barqueiro sobre o primo da tia de seu irmão. Tinha
realmente visto um. Eu me perguntei o que isso significava – o fato de o
drakon ter escolhido emergir para mim. Será que aquela criatura tinha
inteligência, ou era apenas um animal selvagem, como um peixe, uma cobra
ou uma combinação ímpia dos dois?
– Acho que devemos nos revezar – disse Kenté, desconfortável, acima da
amurada. – Vou dormir um pouco agora e, mais tarde, venho aliviar você. –
Ela afastou os olhos do mar e estremeceu. – Embora eu não saiba dizer se
vou conseguir dormir. Não com essa coisa aí fora.
– Acho que ele se foi – menti.
Depois que Kenté desapareceu na coberta, as horas se confundiram. Eu
não consegui mais ver o drakon, mas sentia que ele ainda estava ali,
ondulando logo abaixo da superfície. Parecia quase como se ele estivesse me
fazendo companhia. Eu sabia pelas constelações a direção do norte, mas era
enervante seguir às cegas por um céu negro e um mar negro.
– Tychon Hypatos – sussurrei com os dentes batendo. – Rua Iphis.
Valonikos.
Uma luz surgiu a bombordo. Era um pequeno ponto amarelo que piscava.
Apertei os olhos e me esforcei para vê-lo. Não havia nada ali. Eu estava tão
cansada e com tanto frio que começara a ter uma alucinação com um brilho
de lampião na escuridão da noite.
A luz parou de tremeluzir, então eu lembrei que havia um navio-farol
ancorado ao largo dos baixios da ilha de Enantios.
Eu não estava louca. Era luz de verdade, em um navio de verdade, com um
homem de verdade em seu interior que provavelmente estava bebendo gim
quente ao lado de seu fogão. A luz acendeu algo em meu interior que não era
exatamente esperança. Bem depois de passarmos pelo navio, continuei a
olhar para trás por cima do ombro esquerdo para ele, um lembrete piscante de
que algumas coisas no mundo ainda eram constantes.
Kenté saiu pela escotilha carregando uma lanterna.
– Acho que aquele é o navio-farol de Enantios – eu disse com o nariz
congestionado. Esfreguei-o na manga pela centésima vez, e a pele esfolada
ardeu. – Vou consultar um mapa para garantir. Mas devemos estar a um terço
do caminho para Iantiporos.
– Você precisa dormir um pouco. – Ela fechou os olhos. Quando tornou a
abri-los, o facho de luz projetado pela lanterna tinha dobrado de tamanho.
– Eu não sabia que você podia fazer isso.
– Não é muito bom. – Ela a envolveu com as mãos em concha. – Ela não
tem nenhum calor. É mais como ausência de sombra em torno da lanterna
que luz de verdade. Você leva a mão ao interior do escuro, torce, e o afasta
para o lado… – Ela sacudiu a cabeça. – Você não tem ideia do que estou
dizendo.
– Não. – Eu estava muito cansada para dizer mais.
– Vá para a cama, Carô.
Eu soltei os dedos rígidos da cana do leme e os flexionei ao sentir uma dor
repentina e pronunciada.
– Você já velejou alguma vez sozinha, antes?
– Eu cresci em Siscema. Claro que já. – Olhei fixamente para ela até que
admitiu. – Em um bote. Mas não há ninguém aqui fora além de nós, e posso
dizer que sei ler uma bússola tão bem quanto você. – Ela deixou a lanterna de
lado e pegou a cana do leme.
Eu olhei para as águas escuras. O drakon parecia ter desaparecido. Sem
dúvida, havia algum significado oculto por trás daquilo, um sinal de algum
tipo. Se era bom ou mau, eu não sabia.
No alto da escada, eu parei.
– Kenté? Obrigada. Por tudo.
Cambaleei até a cabine, fazendo uma pausa para me assegurar de que
Daria estava bem. Enroscada e dormindo em um dos beliches, ela parecia
comoventemente pequena. Tirei minhas roupas molhadas e encontrei um
cobertor para enrolar à minha volta. Ele fazia coçar e fedia com suor
masculino velho, mas era quente.
Atônita demais para dormir, olhava para o nada, esperando que as
lágrimas surgissem. Mas elas não surgiram. Talvez estivessem esgotadas.
Apesar de tudo, pontos marrons e quentes começaram a tomar as bordas
de minha visão. Minha cabeça caiu sobre o queixo. Eu tombei de lado no
beliche mais próximo e me entreguei ao sono.
Quando acordei, a primeira coisa que vi foi um homem agachado do outro
lado do beliche me observando.
CAPÍTULO
VINTE E DOIS
– Eu a sssssssaúdo, irmã.
Algo escorregadio, porém sólido, se ergueu por baixo de mim. Eu
emaranhei os dedos de minha mão boa no tufo que percorria as costas de algo
que parecia penas, mas tinha a sensação de algas marinhas. Seu pescoço era
pontilhado de amontoados de cracas. Com o resto de minha força, apertei os
joelhos em torno de seu corpo.
Ele saltou das ondas como uma explosão. Ele era lindo.
Espuma foi borrifada por entre os dentes do drakon quando ele girou a
cabeça. No convés do Vic, um barqueiro cambaleou para trás, gritando. O
cheiro de sal e cobra umedeceu o ar. Com água correndo em meus olhos, eu
lutei para me segurar.
– Mostre-me seu inimigo! – ele sibilou.
Eu apertei os olhos e visualizei Cleandros, me concentrando bem em suas
túnicas com detalhes dourados e seu rosto comum. Tremendo
descontroladamente e sentindo o gosto de sangue na boca, eu esperava, de
algum modo, que ele pudesse me entender.
– Ah, eu sinto seu cheiro – declarou o drakon. – O arranhar de areia do
sono. O doce sabor da escuridão. Eu já comi um de vocês antes.
Cleandros se virou para encará-lo, então foi como se todo o mundo
enegrecesse. O homem das sombras desapareceu, assim como tudo mais – o
céu, as ondas em movimento e o Vic.
Eu ouvi o drakon rir.
– Tolo. O mar não teme a escuridão.
O drakon saltou fazendo um arco fora da água como um arco-íris, e eu me
agarrei às suas costas enquanto ele deslizava sob mim. Ele arrancou o homem
das sombras do gurupés com um ruído de trituração de abalar os ossos. Senti
as laterais do corpo dele passarem por baixo de minhas pernas quando o
drakon o engoliu. Sua cabeça atingiu as ondas com muito barulho do outro
lado da proa do Victorianos.
O mundo mergulhou novamente no crepúsculo bem a tempo de eu ver o
oceano correr em direção a mim. Senti um nó no estômago, e inspirei
freneticamente uma última vez.
Eu afundei.
E afundei.
Eu não conhecia nada.
Depois de muito tempo, percebi que eu não estava morta. Notei que eu
estava respirando, ou, pelo menos, estavam saindo bolhas do meu nariz.
Tentei manter a conta dos segundos à medida que ia para baixo, mas era
como tentar agarrar o vento com a mão.
Eu desisti e me deixei flutuar.
Fachos de luz penetravam a água turva, emprestando a ela uma cor
turquesa. Eu não conseguia ver exatamente a fonte da luz. Talvez ela
estivesse a toda minha volta.
Como eu tinha chegado até ali? Eu não conseguia me lembrar.
Alguma coisa roçou minha perna. Eu me debati em pânico, até que vi o
corpo listrado de amarelo e preto de um peixe nadando em direção à
escuridão. Um segundo peixe veio investigar e nadou ao meu redor.
Eu empurrei a camisa inflada, tentando ver onde eu tinha sido atingida. A
bala rasgara um pedaço irregular de minha carne. Hesitantemente, toquei a
pele pálida e pegajosa em torno do buraco, temerosa demais para enfiar meu
dedo ali. Não havia rastro de sangue se espalhando pela água.
Talvez eu estivesse morta. As cores do mar e do peixe me lembraram de
meu sonho sobre a sra. Singer, a esposa do barqueiro afogada. Talvez tivesse
sido um sonho verdadeiro, uma antevisão de meu próprio destino.
Fechei os olhos e, quando tornei a abri-los, estava em uma cidade.
Eu estava parada no alto de uma grande torre, as ruínas de prédios antigos
espalhadas à minha frente. Envoltas em algas e salpicadas com cracas,
algumas estruturas tinham tombado, as vigas de madeira que antes formavam
seu esqueleto estavam apodrecidas. A pedra branca resistia, arredondada e
alisada pelo tempo e pela água. Peixes nadavam para dentro e para fora das
janelas, e um grande bloco de coral crescia no meio do que antes tinha sido
uma rua.
Toda uma cidade, no fundo do oceano.
Ao meu lado, havia uma garça. Eu pisquei, surpresa. A garça não parecia
mais preocupada que eu em respirar. Ela estava no alto da torre, sobre uma
perna fina e comprida, com a outra escondida entre as penas. Seus olhos
vítreos mantinham-se fixos em mim.
– Eu estou imaginando coisas – eu disse a ela.
A garça falou com voz de mulher.
– Por que você acha isso?
– Porque eu levei um tiro no coração. Ou estou sonhando por causa da
febre, ou estou morta.
– Risadas. Seu coração não fica aí.
– Como você poderia saber? Você não é humana.
– Não sou? – perguntou ela. O que me irritou, porque obviamente ela era
uma garça.
– Você não sabe o que é? – eu perguntei, soltando bolhas pela boca.
– Qual minha aparência para você?
– Uma garça – eu disse.
– Que estranho. Risadas.
– Por que você faz isso… Diz “risadas”? Por que simplesmente não ri?
– Já me disseram que meu riso deixa os humanos nervosos. – A garça
girou sobre a perna e começou a saltar em direção a mim.
– Qual o som que ela faz?
– Como o vento de um furacão. Como uma centena de facas. – Sua voz
transformou-se em um sussurro sibilante. – Como os sonhos de um afogado.
Os sonhos de um afogado. Eu tornei a pensar nos sonhos que tivera desde
a noite em que conhecera Markos. Com a falecida sra. Singer da Jenny
deitada em um leito de coral, e todos aqueles peixes estranhos e coloridos. Os
peixes eram iguais a esses.
– Sei quem você é – eu disse.
– Nós duas somos quem deveríamos ser.
Aquela que vive nas profundezas, foi como Nereus a chamara. Suas
gaivotas tinham me observado, seguindo-me com olhos negros e redondos,
desde que eu era criança. Ela havia criado um nevoeiro através do qual
apenas eu conseguia ver. Seu drakon me protegia.
E eu pertencia a ela.
– Por que você me mandou sonhos sobre uma mulher morta? – perguntei.
– Eu lhe enviei sonhos sobre este lugar. A mulher morta está na sua
cabeça.
– A garça está na minha cabeça também? Por que você disse que era
estranho? – Enquanto o mar erguia e agitava meu cabelo, esclareci: – Eu ver
uma garça.
– Uma ave ao mesmo tempo do mar e das terras dos rios – disse ela. –
Talvez não seja tão estranho, afinal de contas.
– Por que eu nunca a vi antes de hoje?
– Eu podia lhe fazer a mesma pergunta. – A água se agitou a minha volta
em uma carícia delicada. – Nunca houve um dia de sua vida em que eu não
estivesse perto.
Eu olhei além dos telhados desmoronados.
– O que é esta cidade?
– Os humanos dizem que ela foi perdida – disse a garça. – Mas eles estão
errados. Ela está onde sempre esteve, uma prova de que aqueles que eu
reclamo pertencem a mim. Arisbe Andela. Nemros, o Saqueador. – Sua voz
se transformou em um chiado. – Caroline Oresteia.
Eu estremeci ao me lembrar de como Nereus dissera que o mar guarda as
coisas que toma.
A garça olhou para a cidade.
– Foi o mundo que mudou. – Havia certa melancolia em sua voz. Ela
trocou de pernas e, com elas, de assunto. – Quem é ele, aquele com quem
você viaja?
– Nereus?
A garça fez um som de escárnio.
– Esse eu conheço. Ele é meu. Faz parte de mim tanto quanto os recifes, as
águas e os peixes que nadam. Estou falando do outro.
– Markos. Ele é o verdadeiro emparca de Akhaia. – Se ela já não sabia
sobre ele, eu estava relutante em lhe contar demais. Nereus me alertara que
ela era traiçoeira.
– Risadas. Eu devia saber. Senti nele o fedor de ar da montanha. – Achei
que ela teria torcido o nariz, se tivesse um. – E, ainda assim, há alguma
coisa… Bom. Ele não me interessa. Enquanto aquele que jaz sob a montanha
ainda dormir, como tem feito pelos últimos seiscentos anos.
– Por que o deus de Akhaia dorme? – perguntei. – Por que ele não fala
com ninguém além dos oráculos?
Eu não vi seu sorriso, mas o senti. Era um sorriso que sugeria dentes,
embora eu não pudesse dizer por que nem como. Garças não têm dentes.
– Porque ele cometeu o erro de entrar em guerra comigo. E perdeu.
– Todo deus tem um país?
– Alguns têm muitas cidades e muitos países. Todas as cidades junto do
mar são minhas. Valonikos. Iantiporos. Brizos. – Ela entrou em um silêncio
meditativo. – Valonikos nunca pertenceu a ele.
– É por isso que Akhaia não para de perder partes de seu império? – Um
peixe estava tentando nadar por dentro de meu cabelo. Eu resisti à vontade de
espantá-lo. – Porque seu deus está adormecido?
– Akhaia já foi forte – concordou ela. – Ela é menor, agora. Ele cuida de
suas feridas e não fala com ninguém. Ele não escolhe guerreiros. Ele não
pode protegê-la.
– Ele precisa de seiscentos anos para cuidar de suas feridas?
– Isso não passa de um momento para ele.
– E você? – Eu percebi que minha pergunta não fazia sentido e
acrescentei: – Escolhe guerreiros?
– Risadas – foi tudo o que disse a garça. Eu achei que ela piscou, mas
podia ser alguma partícula flutuando pela água turva.
Eu me perguntei se ela iria me propor fazer alguma barganha, como com
Nemros, o Saqueador. Eu não sabia ao certo se confiava nela, nem em suas
barganhas.
– Confiança. – Ela inclinou a cabeça emplumada. – Isso não importa.
Você vai me servir mesmo assim.
– Você não tem o direito de ouvir as coisas em minha cabeça – eu disse. –
Os pensamentos em minha cabeça são meus.
– Eles são meus, porque você me pertence – disse ela.
Os pensamentos em minha cabeça não estavam particularmente lisonjeiros
naquele instante.
– Risadas. Os humanos sempre acham que podem lutar contra ele. Você
não pode. – Suas palavras eram assustadoramente iguais às do homem dos
porcos. – Ele vem por você, deslizando pelas profundezas, como meu drakon.
Ele sempre vem por você.
– O quê?
– Seu destino.
O tempo parou. Ou mudou. A garça desapareceu. A cidade desapareceu.
Eu flutuava sozinha. Minutos se passaram, ou anos, enquanto eu boiava em
um infinito vazio azul.
Alguma coisa surgiu acima de mim. Um padrão do qual eu quase
lembrava, embora eu o tivesse visto muito tempo atrás, em uma época
esquecida.
A luz do sol se movia e tremeluzia na superfície da água. Curvei as mãos e
dei um impulso em direção a ela. Meus pulmões queimavam. Bolhas
passaram por mim. Os instintos estavam tomando conta. Todo o meu corpo
se esforçava para subir, subir, subir…
Minha cabeça irrompeu na superfície.
Para meu grande alívio, a primeira coisa que vi foi uma praia. O sol
brilhava sobre uma linha de ondas que quebravam em cima de seixos
arredondados e coloridos, e ali, no horizonte distante, havia uma cidade de
telhados vermelhos. Eu entendia, agora, como Jacari Bollard devia ter se
sentido quando pôs os olhos em Ndanna.
A cidade era Valonikos.
Eu caminhei até a praia com a calça grudada às minhas pernas, e a camisa
tinha uma mancha rosa-clara onde eu fora baleada. Meu pé esquerdo pisava
dentro de uma bota cheia de areia. A outra bota havia desaparecido. Eu tinha
certeza de que eu parecia o marinheiro de pior reputação a dar na praia de
Valonikos.
Eu olhei com azedume para o mar.
– Você podia ter me deixado um pouco mais perto da civilização. E com
os dois sapatos.
Com areia sugando meu pé descalço, caminhei mancando em direção à
cidade distante. Eu tinha caminhado uns dez metros quando uma onda se
ergueu e quebrou na praia, com uma mancha marrom visível na espuma
revolta. A onda recuou e cuspiu minha bota direita.
Eu olhei fixamente para ela.
O repuxo arrastou a bota, que caiu de lado e começou a deslizar areia
abaixo.
Aparentemente, aquele era o tipo de coisa que iria acontecer agora que a
deusa estava interferindo em minha vida. Eu dei um grito de alegria e
persegui a bota pela praia.
CAPÍTULO
VINTE E NOVE
O Vic parecia belo amarrado às docas, mas não era o mesmo que virar a curva
e ver a Cormorant. Eu não o amava daquele jeito como descrevera para
Markos – ele não era minha casa. Mesmo ali parado mansamente na baía com
as velas amarradas, ele era intimidador. Eu ainda não havia me esquecido de
todas as vezes que sua visão me assustara até os ossos.
Era engraçado, suas letras pintadas ainda diziam “Victorianos”, como
sempre, mas eu agora só pensava nele como Vic.
Subi pela prancha e passei a mão por sua amurada lustrada.
– Está bem, Vic – sussurrei. – Aqui estamos nós.
Uma escotilha se fechou com uma batida. Eu estava desarmada, mas
minhas mãos voaram para minha cintura por instinto.
Era Markos.
Ele estava parado sozinho sobre o convés com a mão apoiada no cabo da
espada. Quando me viu, ele congelou. Seus olhos estavam fundos e
avermelhados.
– Quem é você? – ele disse, sem rodeios. – Você não é ela. Eu não
acredito nisso.
– Eu não me importo. Eu desci, e minhas botas surradas se esfregaram nas
bolhas esfoladas em meus calcanhares. – Eu estou andando há quilômetros, e
estou queimada de sol. Tenho areia em todos os lugares possíveis em que
uma pessoa pode ter areia em seu corpo e, sim, eu estou dizendo todos os
lugares. E estou faminta.
Ele me bloqueou.
– O que Carô fez na primeira vez em que eu tentei beijá-la?
– Você sabe o que eu fiz. Estávamos os dois lá! – Exclamei, desesperada.
– Ah, entendi. Isto é um teste. – Revirei os olhos. – Eu dei um tapa em você.
E joguei um balde de água fria em você.
Ele tocou minha camisa endurecida de sal. Eu odiei o aspecto de seus
olhos assombrados.
– Você foi baleada. Caiu na água. O drakon claramente engoliu você.
– Ele nunca me comeria.
– Então você se afogou.
Eu sussurrei:
– Ela jamais deixaria que eu me afogasse.
Ele empurrou bruscamente para o lado o decote de minha camisa. Com
dedos estendidos, ele tateou minha pele.
– O que você está…? – Aí percebi. Eu segurei sua mão na minha e a desci
alguns centímetros, até o buraco rasgado do lado direito da minha camisa,
embaixo de minha clavícula. O mar lavara o sangue seco.
Enfiei o dedo através do furo no tecido e o agitei.
– Tudo bem?
Ele soltou uma respiração irregular.
– Carô. Eu nem mesmo… Tem uma cicatriz. Mas está curada. – O olhar
que ele me lançou foi tão intenso que me pegou de surpresa.
Eu arregacei a manga.
– E foi aqui que os Cães Negros atiraram em mim. Na mesma noite em
que nos conhecemos. Como você deve se lembrar. – Eu o afastei e passei por
ele. – Agora, se você terminou de me tratar desse jeito rude, posso subir a
bordo de meu próprio barco? Preciso mencionar que fui baleada
recentemente?
Eu ajeitei a camisa, perguntando-me se ele podia ouvir a velocidade com
que meu coração batia. Minhas orelhas ardiam. Eu precisava botar espaço
entre ele e mim, para restaurar as coisas a seu estado normal. Eu passei pela
escotilha e peguei a escada.
– Achei que você pudesse ser um homem das sombras. Um assassino dos
Theucinianos. – Ele me cobriu de perguntas. – Onde você esteve? Por que
não foi devorada pelo drakon? E como chegou a Valonikos?
Eu saltei os últimos dois degraus. Havia os restos de uma refeição
dispostos sobre a mesa.
– Não sei. – Peguei um pedaço de queijo e o devorei. Eu nunca tinha
sentido tanta fome. – Foi aqui que eu saí andando do mar – eu disse com a
boca cheia de queijo. – Logo ao sul da cidade.
Markos olhava fixamente para mim, atônito. Ou talvez ele estivesse
apenas horrorizado com minhas maneiras à mesa.
– O que você quer dizer com saiu andando do mar? Por que não de baixo
dele?
– Markos, eu estou bem. Ela jamais deixaria que nenhum mal me
acontecesse. – Eu engoli. Parecia estranho falar de coisas tão mágicas e
pessoais. Nós podíamos muito bem estar falando sobre o tempo.
– Você falou com ela.
Eu peguei um pedaço de pão.
– Eu não quero falar sobre isso.
– Você falou mesmo com uma deusa.
– Markos.
– Você, agora, está viva ou morta? – Ele olhou para mim como se eu não
fosse exatamente humana.
– Eu me sinto viva. Eu prefiro não pensar mais muito sobre isso. Onde está
todo mundo? – Eu inspirei profundamente. – Nereus ainda está aqui, não
está? – Ocorreu-me o pensamento terrível de que talvez sua tarefa tivesse
terminado, e a deusa do mar o houvesse levado de volta. Eu não conseguira
me despedir.
– Onde mais ele estaria? – Eu tinha me esquecido de que Markos não sabia
tudo sobre Nereus. – Ele levou Daria para ver o mercado de peixes. Os
Bollards têm quartos acima de seus escritórios, aqui. É onde seus pais estão
ficando. E Kenté.
Deixei a faca de manteiga cair, fazendo barulho.
– Markos, você é burro? Não devia estar aqui sozinho!
– Eu queria ficar sozinho. A esposa de meu primo insiste em me mimar
sem parar. Eu vim aqui atrás de silêncio. Para pensar.
– Sobre o quê?
Ele ergueu as sobrancelhas.
– O que você acha? – O silêncio que se seguiu foi ao mesmo tempo
significativo e estranho. Ele o quebrou limpando a garganta. – Você quer
cerveja?
– Acho que não. Preciso de água, e muita. – Minha garganta e minha pele
pareciam esticadas e ressequidas.
Ele estendeu o braço sobre a mesa para tornar a encher meu copo de lata.
Eu sorri. Era engraçado vê-lo pegar o jarro e me servir – algo que ele nunca
teria feito quando nos conhecemos. Fiquei maravilhada com o quanto era
agradável estar comendo com ele.
– O que aconteceu na ilha? Eu não entendi como Kenté o escondeu do
homem das sombras. Isso são tortas de carne?
Ele empurrou a bandeja em direção a mim. As tortas estavam frias, mas eu
pouco me importei.
– Na verdade, ela não fez isso. Nós estávamos atrás daquela pilha de barris
no convés. Quando Nereus gritou, isso me acordou o suficiente apenas para
me lembrar de que estávamos em perigo. Eu agarrei Daria e mergulhamos
para trás dos barris. – Seu rosto enrubesceu. – Bem, na verdade foi mais ela
quem me agarrou. Eu acho que ele estava se concentrando em mim, sabe? Foi
uma coisa muito estranha. Eu fiquei muito confuso.
– Eu sei. Também senti isso.
Ele prosseguiu.
– Só quando Cleandros começou a gritar com Kenté eu percebi que ele
não tinha visto quando nos escondemos. Quando não reaparecemos, ele
achou que isso significava que ela era mais poderosa que ele. Foi quando ele
ficou com raiva e atirou em você.
Enquanto eu comia e bebia, ele me contou o que tinha acontecido com
nossos aliados. Cinco dias tinham se passado desde que eu caíra no mar.
Nereus levara o Vic até Iantiporos, onde Kenté visitou os escritórios da
Companhia Bollard. Os Bollards mandaram navios para resgatar a tripulação
do Antílope e transportar os Cães Negros para as autoridades apropriadas.
Meu pai e minha mãe decidiram se assegurar de que Markos e Daria
chegassem a Valonikos em segurança. Minha mãe quase mandou Kenté de
volta para Siscema, só que Daria deu um ataque e se recusou a navegar sem
ela. Enquanto isso, os barqueiros se despediram deles e deram início a sua
viagem de volta para Pontal de Hespera na Conthar.
– Vocês ainda têm as minhas coisas? – perguntei.
– Na cabine da capitã. – Ele empurrou sua cadeira para trás. – Eu vou…
Eu também me levantei. Meu coração batia forte.
– Não, eu pego.
A cabine tinha sido limpa; e a cama, arrumada com lençóis e cobertores
limpos. Encontrei meu cinto em uma prateleira. Tirei uma das pistolas do
coldre e passei o dedo pelo leão-da-montanha. Aí, toquei a aba de meu
chapéu tricorne, que estava na prateleira ao seu lado. Eles pareciam os
mesmos. Mas tudo estava mudado.
Alguma coisa bloqueava a luz da lanterna. Eu girei e vi Markos apoiado na
porta. Meus olhos desceram para seu casaco. Era o que ele tinha comprado
em Siscema, embora o resto de suas roupas fosse novo. Desejei passar o dedo
por aqueles detalhes dourados. Era um casaco muito atraente, especialmente
nele.
– Ainda o estou usando. – Ele se esticou como os leões em minhas pistolas
de duelo akhaianas e deu um sorriso. – Você gostaria que eu fosse outra vez
Tarquin Meridios?
– Por que eu gostaria?
– Admita, você o achava bonito.
Por todos os deuses, ele estava flertando comigo, pouco mais de meia hora
depois do meu retorno dos mortos.
– Havia coisas que eu queria dizer a você – disparei. – Não para Tarquin
Meridios. Você. – Meu rosto esquentou. – Mas você estava morto.
– Eu senti algo parecido – disse ele. – Mas aí, era você quem estava morta.
Prossiga, por favor.
De repente, fiquei tímida.
– Você primeiro.
Um lado de sua boca se curvou para cima.
– Muito bem. – Ele desviou os olhos de mim e disse: – Eu finalmente
percebi por que não teria funcionado na primeira vez que tentei beijar você.
Eu cruzei os braços.
– Porque eu não sou o tipo de garota que beija garotos desconhecidos?
– Não. Bom, sim. Isso também. – Sua voz estava firme e séria. – Toda a
minha vida, esperei que as pessoas me respeitassem porque eu era o filho do
emparca. Mas você não fez isso. No início, isso me deixou com raiva. Na
verdade, me enfureceu. Você não tem ideia.
Eu tinha alguma ideia.
– Mas, agora, eu a conheço melhor. – Hesitantemente, ele enrolou um de
meus cachos em seu dedo. Eu não o detive. Encorajado, ele passou a mão por
meu cabelo. Fez cócegas, mas pequenos fogos de artifício se acenderam por
todo meu corpo.
– Agora, eu entendo. – Ele baixou a voz. – Você respeita pessoas que
cuidam de outras pessoas. Pessoas ousadas. E corajosas. No início, eu não
conseguia entender isso. Por que você tinha o mais comum dos barqueiros em
mais alta conta que a mim. Você respeita as pessoas por causa das coisas que
elas fazem. Você era diferente de todo mundo que eu conhecia. Você sabia o
que eu não sabia, que são as coisas que fazemos que nos tornam quem somos.
Eu sabia o que queria dizer, mas também sabia o que aconteceria se
dissesse.
– Markos.
Ele se apoiou na porta, tentando com tanto esforço parecer natural que até
eu quase fui enganada.
– Eu acho que você é a pessoa mais corajosa que conheço. – Eu dei alguns
passos para trás na cabine.
– Você vai para a cama. É claro. Você passou por muita coisa. – Ele
enfiou os dedos no cabelo. – Quero dizer, você estava morta. Eu só vou…
Eu pousei a mão em sua camisa e afastei bem os dedos. O calor sólido que
emanava dele fez com que eu me sentisse ousada.
– Quando você me beijou em Casteria, eu não sabia se aquilo significava
alguma coisa – eu disse.
Seu peito arquejou sob meus dedos.
– Como se eu fosse beijar alguém daquele jeito sem significar nada.
– Ah, você não faria isso?
– Não – disse ele, limpando a garganta. – Desse jeito.
– Talvez você quisesse apenas beijar uma garota antes de morrer.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Talvez eu não quisesse morrer sem beijar você.
– Foi isso o que eu acabei de dizer.
– Você sabe que não. Não mesmo. – Ele sussurrou: – Posso, por favor,
ficar? Juro que não vou fazer nada.
Ele recuou e colocou toda a extensão da cabine entre nós, para provar suas
intenções. Mas a cabine era pequenina, e ele era alto demais para ela. Eu senti
sua presença, algo quente e físico, tomar todo o aposento.
– Por que você disse isso desse jeito? – perguntei. – Você não vai fazer
nada. Se e quando formos fazer alguma coisa, e não estou dizendo que
vamos, seríamos nós dois fazendo. – Eu umedeci os lábios. – Tipo, talvez eu
possa querer fazer coisas. Mas, aí, você fala como se dependesse de você e
me tira completamente disso.
– Des… Você quer?
Ao perceber que tinha ido longe demais, eu me preparei para mudar de
rumo.
– Não sei. Talvez.
– Nós estamos falando sobre… Eu só queria ter certeza de que estamos
nos referindo ao mesmo tipo de… coisas aqui. – A tensão se estendeu entre
nós. Ele se aproximou, como se houvesse um cordão que o conectasse a mim,
e eu simplesmente o tivesse puxado.
– Há outro tipo de coisa que acontece entre uma garota e um garoto?
Ele me deu um sorriso malicioso.
– Você está perguntando?
Eu o empurrei pelo ombro.
– Cale a boca.
Ele me beijou.
Uma garota que, aos dezessete anos, é capitã de um cúter pirata que ela
tomou como presa não devia deixar que sua cabeça fosse virada por beijos,
mesmo que fossem dados por um garoto que era o emparca de direito de todo
um país. Particularmente não se a garota soubesse fatos embaraçosos sobre o
dito emparca que deviam torná-lo completamente sem atrativos. Como, por
exemplo, ele não saber carregar uma pistola nem dobrar uma vela
adequadamente, ou, na verdade, não fazer qualquer coisa útil exceto parecer
bem com duas espadas na mão ao mesmo tempo.
Eu não liguei. Tudo deixou minha cabeça, exceto o quanto eu estava ávida
por seus lábios e sua língua, mesmo que eu precisasse ficar na ponta dos pés
para alcançá-los. Seu cheiro, toque e sabor eram de Markos. Eu simplesmente
não podia estar beijando mais ninguém.
Era tudo ele. A maciez de seu cabelo, quando finalmente enrolei meus
dedos nele. O calor de seu hálito, quando ele desceu arrastando os lábios pelo
meu pescoço. Nós nos envolvemos um no outro até não haver espaço entre os
dois. Até que eu não consegui mais dizer qual coração pulsante eu sentia.
Ele riu com delicadeza em meu ombro.
– Não posso acreditar que isto está acontecendo.
– Está tudo bem – eu disse. – Amanhã podemos voltar a não gostar um do
outro.
– Você acha que não gostamos um do outro?
– Acho que considero você enlouquecedor. – Cerrei o punho em torno de
sua camisa.
– Bom. Isso é diferente.
Sua voz estava irritantemente presunçosa, de modo que eu o beijei um
pouco mais para calá-lo.
– É muito provavelmente porque – ele disse; seu hálito fazia cócegas em
meu pescoço – nós passamos muito tempo juntos naquele maldito barco. É só
isso. Uma… Uhm… Coisa natural – concluiu ele distraidamente, como se
não pudesse se dar ao trabalho de pensar na palavra. – Uma reação – ele disse
vários minutos mais tarde, beijando-me até chegar ao ouvido. Tão tarde, na
verdade, que eu mal conseguia me lembrar do que ele estava falando.
– Concordo – eu disse. – Sem dúvida, não é nada. – Eu tentei escalá-lo,
envolvendo as pernas em torno de sua cintura. Suas costas bateram contra a
parede, fazendo alguma coisa na prateleira se mexer e cair.
Por fim, encontramos a cama, o que não foi difícil nem no escuro, porque
a cabine era muito pequena.
– Markos – hesitei, sem saber ao certo o que ele iria pensar. Mas era
preciso que aquilo fosse dito. – Esta não é… minha primeira vez. Se é que
isso importa. O que não deveria. É só que… eu achei que você devia saber.
Caso…
– Carô. Você está falando demais.
O alívio relaxou a tensão em meus ombros.
– Eu quase esperava que você fizesse uma observação grosseira sobre as
garotas das terras dos rios.
Eu o senti congelar.
– Eu fui um babaca empolado quando disse isso.
Eu não ia discordar daquilo.
– O que você quer fazer? – sussurrei.
Meu coração palpitava com um medo silencioso. Eu tinha medo que ele
voltasse a pensar com sensatez outra vez e lembrasse que isso era uma ideia
terrível. Que nós dois juntos éramos algo parecido com o que acontece
quando uma pederneira atinge aço.
– Tire mais de suas roupas – disse ele com voz rouca, e isso acabou com
minhas preocupações.
Seu casaco estava pendurado no braço esquerdo, onde havia ficado preso,
e nós dois tínhamos nos esquecido disso. De minha parte, minhas mãos
estavam dentro de sua camisa aberta. Eu sempre admirara ombros
masculinos, e os dele eram especialmente bonitos, com toda aquela esgrima.
Eu envolvi a perna em torno da dele. Meus dedos descalços dos pés fizeram
uma trilha pelo músculo de sua panturrilha. Eu nunca imaginara que seu peso
fazendo pressão sobre meu corpo fosse uma sensação tão boa.
– Eu quis dizer, além disso.
– Eu não tinha pensado além disso. – Ele puxou de leve um de meus
cachos e o observou se encolher outra vez em um saca-rolha. – Amo seu
cabelo. – Com os olhos baixos, ele engoliu em seco. – Carô… Você sabe que
eu não posso lhe prometer nada. Eu… simplesmente não posso.
– O que… O que você quer dizer com… “prometer”? – gaguejei.
– Você sabe, casamento. Um noivado. Esse tipo de… – Sua voz se calou.
Eu vi seus olhos morrerem um pouco, preparando-se para minha reação.
Eu o empurrei para trás e me ergui apoiada sobre os cotovelos.
– Como se eu fosse querer isso! Eu tenho dezessete anos. Tenho coisas
mais importantes a fazer.
Ele olhou para mim com um meio sorriso estranho.
– Você não é parecida com ninguém, hein?
– E você é um mentiroso, Markos. Você disse que não tinha pensado além
disso. Você pensou o suficiente para vir com esse discursinho, não foi? – Eu
me joguei no travesseiro. – Casamento. Eu vou ser uma capitã e uma
corsária. Eu vou ser o terror dos mares. Quem quer que se case com você, vai
ter de usar vestidos bonitos, ir a festas e aprender o nome de uma centena de
políticos chatos.
– Ah, vestidos bonitos, isso parece uma tortura – sussurrou ele. – Você
está mesmo à vontade com isso?
Mas eu estava. A ideia de qualquer outra mudança era demais para
suportar. Só daquela vez, eu queria fazer aquilo que desejava e deixar que o
destino se explodisse.
– Por que você está sorrindo? – perguntei.
– Porque – ele disse – nós finalmente estamos fazendo alguma coisa que
eu sei como fazer. – Ele tocou a camisa fina de linho que eu usava por baixo.
– Sim?
– Sim – eu disse com impaciência junto de seu cabelo, tentando
desemaranhar seu casaco do pulso esquerdo. Os botões tinham ficado presos.
Ele se atrapalhou com os laços em minha cintura.
– Sim? – Seu hálito quente fez cócegas em meu ouvido.
Eu me apertei contra ele, que grunhiu:
– Sim.
E chutei minha roupa íntima para o pé da cama.
Ele tirou a própria roupa com dificuldade, e eu lembrei que o havia visto
praticamente nu naquela vez no Lago das Garças. Eu não me dera ao trabalho
de olhar com muita atenção para ele, para ser honesta, pois não esperava nada
impressionante.
Bom. Isso tinha sido um erro. Mas não foi apenas seu corpo nu que me
surpreendeu. Ele estava coberto de hematomas roxos e tinha uma atadura
apertada em torno das costelas.
– Quieta. – Ele se aproximou para beijar meus lábios. – Os médicos dizem
que estou bem. Só está dolorido. – Nós estávamos apertados pele contra pele.
Eu o senti tremer; sua respiração era um adejar irregular no peito. – Carô?
Sim? – Ele prendeu o lábio inferior entre os dentes e esperou uma resposta.
– Por que você não para de me perguntar?
– Porque… – Uma ruga se formou entre seus olhos. Os músculos de seus
braços estavam tensos. – Eu cometi um erro da outra vez. Não quero fazer
isso de novo.
– Ah. – Eu o beijei, mas novamente ele recuou. Seus lábios deslizaram dos
meus, ainda teimosamente à espera. – Sim para tudo – eu disse.
A expressão séria em seu rosto quase me matou. Eu não conseguia
descobrir quando ele se tornara tão importante em minha vida. Era como
tentar identificar o momento em que você aprendeu a respirar. Eu tentei me
forçar a deixar o nervosismo, mas, afinal de contas, eu gostava muito mais
dele do que tinha gostado de Akemé. Então, não era a mesma coisa.
Eu o senti por toda minha pele, mesmo nos lugares em que ele não estava
tocando. Curvei as mãos sobre a pele descascando de sol em seus ombros e
achei que meu coração fosse explodir do meu peito. Quente, sua pele era
muito quente. E sólida e real.
Uma pontada estranha e ardente em meu coração fez com que eu o
puxasse para perto.
– Eu não achava que fosse tornar a ver você – sussurrei.
– Eu não achava que fosse tornar a ver você. – Ele enterrou o rosto em
meu pescoço e inspirou. – Você não devia ter voltado por mim. Foi perigoso
e estúpido.
– Essa sou eu. Perigosa e estúpida. – Eu sorri, e isso eliminou a
possibilidade de lágrimas.
O que ele fez em seguida as eliminou ainda mais.
CAPÍTULO
TRINTA
Três dias depois, Tychon Hypatos e sua esposa dariam uma grande festa para
Markos em sua residência. Felizmente, meu vestido novo ficou pronto
naquela manhã daquele mesmo dia. Passado e embalado em papel, ele foi
levado até o Vic por uma vendedora que olhou de olhos esbugalhados as
tatuagens de Nereus.
A festa não foi como nada que eu já tinha visto antes, nem na casa dos
Bollards. O pátio estava decorado com lanternas flutuantes de papel. Pilhas
de uvas e queijos se derramavam no meio de mesas compridas. Havia até
esculturas feitas de comida, o que me pareceu uma grande tolice.
Eu não sabia se a tia de Markos – ou prima, ou qualquer que fosse seu
vínculo com ele – não tinha gostado de mim. Enquanto me olhava fixamente
na fila de cumprimentos, eu tive a nítida sensação de que ela sabia
exatamente o que estávamos fazendo quando ele escapou para o Vic naquela
noite.
Como se isso fosse da conta dela.
Ela acenou a cabeça educadamente quando recebeu Nereus, Kenté e a
mim, embora eu soubesse que ela nos considerava um bando de vagabundos
grosseiros. Eu encontrei Daria em um vestido formal rosa, carrancuda, junto
da mesa de sobremesas. Não havia ninguém de sua idade na festa, e Markos a
abandonara para discutir política. Kenté a levou para dar uma volta na pista
de dança para animá-la, enquanto Nereus e eu nos escondemos em um canto
obscuro atrás de uma torre feita de frutas.
– Nereus… – eu hesitei. – Agora que terminou de me ajudar, o que
acontece com você?
– Ah, duvido que isso tenha acabado para mim. – Mangas compridas
cobriam suas tatuagens, mas seu sorriso com um dente faltando ainda fazia
com que ele parecesse ter má reputação. – Porque você ainda não acabou.
Não está nem perto.
– Eu perguntaria o que você quer dizer com isso, mas você não vai me
contar mesmo.
– Você está aprendendo. – Ele piscou e terminou o primeiro copo de
vinho. Ele tinha quatro, dois nas mãos e dois na mesa.
– Você navegaria comigo? – Torci para que ele dissesse sim. – Como
imediato do Vic? Na verdade, você deveria ser o capitão. Nenhum homem vai
querer navegar sob meu comando.
– Ayah? Eu não sei nada disso. – Ele pegou um pedaço amassado de papel
de seu bolso.
Era um folheto impresso. Uma história, altamente exagerada, de uma
garota que roubara um navio pirata, a quem as pessoas estavam chamando de
Rosa da Costa. Eu desejei ter feito metade das coisas que a história dizia que
eu tinha feito. O caricaturista me desenhara com uma grande pena no chapéu.
Eu decidi obter uma imediatamente.
– Mas isso é basicamente mentira. – Eu baixei o papel. – Eu não pareço
com uma rosa de jeito nenhum.
– Seu cabelo é avermelhado.
– Essa é a coisa mais idiota que eu já vi. – Eu joguei o panfleto sobre a
mesa. Ele o alisou e tornou a guardar no bolso.
Eu podia tê-lo interrogado mais, se Tychon Hypatos e outro homem não
tivessem escolhido esse momento para invadir nosso canto.
– Ahá! Senhorita Oresteia. Eu tinha praticamente aberto mão de toda a
esperança de encontrá-la. – Hypatos gesticulou com um floreio. – Este é
Basil Maki, o cônsul kynthessano. Representante da margravina.
O homem fez uma mesura.
– Que a corrente vos leve, como seu povo costuma dizer.
– Bom – eu disse. – É com o senhor que devo conversar sobre os dez
talentos de prata que me foram prometidos?
– A senhorita não desperdiça palavras, senhorita Oresteia.
– Capitã Oresteia – corrigi. – Meu contrato dizia que eu devia entregar a
caixa e seu conteúdo em Valonikos.
– O conteúdo, entendo – disse ele com um sorriso. – Você o apresentou ao
inspetor das docas?
– Isso me parece uma resposta de advogado.
– Infelizmente, sou advogado. – Ele fez outra mesura. – Ou era, antes de a
margravina me elevar a minha posição.
– Imagino que Markos possa se apresentar ao inspetor das docas – eu
disse. – Se, com isso, puder me conseguir dez talentos.
Suas sobrancelhas ergueram-se praticamente até a linha de seu cabelo,
acho que por eu ter falado com tamanha intimidade do verdadeiro emparca de
Akhaia.
– Eu devo informá-la que os Cães Negros fizeram uma petição para a
devolução de sua propriedade – disse ele. – Claro, é agora uma questão de
jurisdição, pois o navio em questão está fora dos limites de Kynthessa.
Eu não entendi metade de suas palavras.
– Eu era uma corsária. Uma carta de corso me dá o direito de tomar uma
presa. Eu conheço meus direitos.
Ele inclinou o cálice em minha direção.
– Ainda assim, os Cães Negros estão alegando que você roubou um cúter
deles.
Eu sorri.
– Eu roubei.
– Pelo que eu soube, a margravina não está necessariamente, digamos... o
que se poderia dizer satisfeita com a maneira como as coisas foram
resolvidas.
– Então ela não devia ter dado a mim esse tipo de poder.
– Senhorita Oresteia, você deveria saber que o excesso de confiança nem
sempre me impressiona nos muito jovens. E você é apenas uma garota de
dezessete anos. – Maki acariciou a barba rala. – Mesmo assim, sua
reivindicação legal ao navio é perfeitamente válida. Não estou nada inclinado
a conceder uma audiência aos Cães Negros. Mas isso pode não importar.
– Como assim?
– O capitão Diric Melanos, homem que fez a petição, desapareceu da
custódia da lei.
Minha mão congelou com o copo a meio caminho dos lábios.
– O senhor quer dizer que ele escapou?
– Duvido, considerando que ele deixou para trás uma poça do próprio
sangue.
Eu estava prestes a lhe fazer mais perguntas, quando Markos se juntou a
nós.
– E tenho a honra de ser Markos Andela – disse ele, estendendo a mão. Eu
olhei fixamente, pois nunca o havia visto se apresentar por esse nome, apenas
pelo título. Eu desconfiava que fosse influência de Peregrine.
Ele parecia… Bem, ele parecia maravilhoso. Não havia como negar,
embora eu não ousasse dizer isso em voz alta. Ele já se tinha em demasiada
alta conta. Estava usando um casaco formal com cauda, rendas elegantes
caíam de sua gola e de seus punhos, e sua echarpe de seda azul tinha o padrão
de leões-da-montanha. Será que tinha ficado mais alto? Ele sempre parecera
alto. Devia ser a forma como estava se portando naquela noite. Ele parecia
um emparca dos pés à cabeça.
– Esse vestido é muito elegante – disse Markos depois que o cônsul pediu
licença –, embora eu não entenda seu cabelo. – Ele o examinou desconfiado,
como se fosse um ninho de cobras enroscadas. O que, na verdade, era o que
ele parecia.
– Foi Kenté quem fez.
– Está bonito. Mas, na verdade, não é você. Gosto de seu cabelo quando
está… grande. E encaracolado. E vermelho.
– Ele é sempre vermelho! – devolvi. Nenhuma das outras coisas parecia
um elogio.
– Muito irritadiça, gosto disso. – Seus lábios roçaram meu ouvido. –
Sempre saiba de uma coisa – sussurrou. – Gosto de uma centena de coisas em
você, e só uma delas é sua aparência de vestido.
Ele sem dúvida provou isso mais tarde naquela noite, quando me arrastou
para a biblioteca vazia.
Seus lábios se grudaram nos meus, e ele me apertou contra uma estante.
Passei a mão por baixo de sua gola para sentir sua pele quente. Com a outra,
eu o puxei para mais perto.
– Sinto sua falta – disse ele com voz rouca enquanto beijava meu pescoço.
– Você me deixa louco. Sinto sua falta.
– E então? Qual dos dois?
Ele riu. Nossos lábios tornaram a se encontrar, devagar dessa vez, e nossas
línguas se emaranharam. Algo dentro de meu peito se contorceu. Ele me fez
desejar coisas. E me deixou com medo de desejá-las. Eu ajeitei
delicadamente um cacho de cabelo para trás de sua orelha.
Ele segurou minha mão.
– Não faça…
Era a orelha que tinha perdido o lobo. A nova pele cicatrizada estava
reluzente e vermelha.
– Ah, honestamente – eu disse. – Eu a vi quando estava com um aspecto
bem pior que esse.
– Está feio. – Ele se virou. – Odeio isso.
– Markos, você tem usado o cabelo em cima da orelha desde que estamos
em Valonikos? Para que ninguém veja? Você é o mais vaidoso, o mais… –
eu parei, reconhecendo a expressão tempestuosa em seu rosto. Seu corpo
tinha ficado rígido.
Eu pus a mão em seu rosto e virei-o para trás.
– Eu já lhe disse, acho que você é o… – Eu ia dizer “garoto mais
corajoso”, mas senti que, de algum modo, isso não estava certo naquele
momento. – O homem mais corajoso que eu conheço. – Eu o beijei. – Eu
gosto de uma centena de coisas em você, e pode ter certeza de que nenhuma
delas é aquela metade de sua orelha esquerda.
Isso finalmente fez com que ele risse. Nosso beijo seguinte foi tão
profundo que fez doer, e não apenas nos lugares de sempre.
– Carô, este vestido tem botões demais.
Eu tirei seus dedos de minhas costas.
– Eu sei. Por isso eu vou continuar vestida. Enfim, acho que estou de
partida. Não vou aguentar mais quatro horas nesta festa.
Ele bateu a testa contra a estante e deu um gemido.
– Fique.
– Fique você. – Eu me sacudi para sair de seus braços. – Todas essas
pessoas vieram aqui para vê-lo. – Eu o beijei com delicadeza. – Eu não me
importo. Sério.
– Na verdade, Peregrine provavelmente está vasculhando a festa à minha
procura neste exato momento – admitiu ele.
– Até logo. – Eu apertei sua mão antes de ir.
Eu tinha mais uma coisa a fazer antes de buscar minha cama na cabine do
capitão do Vic.
Minha prima estava sentada em uma poça de seda vermelha, de costas
para o mastro do Vic. Seu cabelo estava trançado em fileiras e preso em um
nó intricado no alto da cabeça. Eu mal conseguira uma chance para conversar
com Kenté em Valonikos. Eu desconfiava que os Bollards a estavam
mantendo sob rédea curta, levando-se em conta sua cena de desaparecimento.
Havia uma paz em torno da baía à noite. Eu me sentei no convés e apoiei
os cotovelos nos joelhos. Distraidamente, espalmei a mão sobre a madeira,
como costumava fazer na Cormorant. O calor do dia armazenado ali irradiou
para minha mão.
– Meus pais estão chegando amanhã, em um paquete de Siscema – Kenté
apoiou a cabeça no mastro e fechou os olhos. – Eu não sei o que fazer.
– Sabe, sim – eu disse. Ela abriu um dos olhos para olhar para mim. –
Claro que sabe. Em minha opinião, você pode voltar para Siscema com seus
pais. Ou… – Apontei com a cabeça para o navio atracado à nossa frente. –
Esse é o Olivos. Ele vai partir para subir o Kars com a maré da manhã. Para
Doukas e outros portos mais à frente. Até Trikkaia.
Ela não disse nada.
Eu saquei uma bolsinha do bolso e a pus no convés com um tilintar.
– Eu não preciso do seu dinheiro.
– Ayah, talvez não sob circunstâncias normais. Mas talvez precise – eu
disse com delicadeza – para isso.
– Não posso. – Ela pegou o saco e o girou repetidas vezes nas mãos.
– Uma coisa é não saber seu destino – eu disse. – Mas você tem se
escondido do seu, e eu acho que sei por quê. Você me disse uma vez que
estamos todos chamando pelo mundo, e a magia é o mundo respondendo. –
Meus olhos arderam. Eu não sabia se por ela ou por mim. – Bom, o mundo
está chamando você.
– Tenho medo de nunca ir para a Academia. E tenho medo de ir. Estou
cansada de ter medo de tudo. – Ela delineou o barril e as estrelas em relevo
em seu broche. – Mas eu não sei me despedir.
– Então, não se despida. Simplesmente vá! E, se tudo o que aconteceu com
Markos, com meu pai e comigo… – Minha voz vacilou. – E se isso fosse meu
destino? E se isso, tudo isso, estivesse relacionado a apenas uma coisa? Me
trazer a este lugar neste momento? Kenté, talvez você devesse estar bem aqui.
Nestas docas. – Eu apontei: – Em frente àquele barco. Esta noite. E se este for
seu destino e você deixá-lo passar? Você precisa…
Eu me virei. A lua ainda brilhava sobre as docas de Valonikos, cobrindo
seus cantos de sombras. O Olivos ainda rangia baixo, ancorado.
Mas Kenté havia desaparecido.
– Boa sorte – sussurrei.
Na manhã seguinte, eu saí cedo, pois tinha tarefas a cumprir. Primeiro,
visitei o distrito comercial, onde os prédios tinham sido recentemente caiados
e tinham vasos com flores cor-de-rosa à sua frente. Em seguida, balançando
as moedas no bolso, eu caminhei em direção às docas.
– Carô! – Markos correu para me alcançar.
Eu esperei.
– Achei que você fosse passar o dia com seus admiradores.
– Eu precisava escapar. Nereus disse que você tinha saído. – Ele olhou
para mim e riu.
– O que é tão engraçado?
– Seu casaco. – Ele tocou os detalhes dourados. – É igual ao meu.
Eu fingi ficar ofendida.
– Não é. Ele é verde-garrafa. O seu é azul.
Ele se posicionou ao meu lado, e caminhamos em um silêncio amigável.
Eu lançava olhares de soslaio em sua direção. Ele usava uma camisa nova
branca como neve, mas deixara a echarpe pendurada. Eu não achava que o
velho Markos teria aparecido em público com uma aparência tão
desmazelada.
– Carô, eu gosto desta cidade – disse ele com as mãos nos bolsos,
enquanto seguíamos através da movimentação do mercado. Um homem
esbarrou em seu ombro, mas ele não reagiu nem exigiu desculpas. Quase.
Talvez ele tivesse empurrado um pouco de volta. – Gosto de toda a energia.
Todos os navios. Acho que ela tem orgulho de ser livre.
– Markos… – eu hesitei, sem vontade de estragar sua diversão. – Você
devia caminhar pelas docas assim? Não é provável que seu primo Konto
mande mais mercenários? Ou assassinos?
– Vou contratar guarda-costas. – Ele deu de ombros. – Mas, por enquanto,
estou gostando de circular por conta própria. Eu nunca fiz isso antes.
Eu sacudi a cabeça. Era a cara dele se excitar com algo tão bobo quanto
aquilo. Eu avistei uma barraca de comida e o puxei pela manga.
– Vamos comprar peixe embalado no cone.
– Embalado no quê?
– No cone. Tem um lugar nesta rua que vende o melhor peixe no cone de
todo o Rio Kars.
Ele olhou para mim com expressão vazia.
Eu tinha esquecido que precisava explicar até as coisas mais simples para
ele.
– Frito com farinha de rosca e servido em um cone de papel.
Ele pareceu extremamente cético, mas isso passou dez minutos depois.
Nós subimos a rua com a boca cheia de lascas de peixe quente.
Markos lambeu a gordura dos dedos.
– Você devia ter feito isso assim na barca.
– Não tinha como. Eles o fritam em um caldeirão de gordura fervente.
Ele fez uma careta.
– Desculpe por perguntar.
Eu parei ao perceber uma loja na esquina e esfreguei a mão na calça. A
placa dizia Argyrus & Filhos, e embaixo, em letras menores, Valonikos-
Siscema.
Uma campainha tocou quando eu empurrei a porta para abri-la. A garota
na recepção ergueu os olhos de sua papelada.
– Aqui é a Argyrus e Filhos? – perguntei. – A empresa de salvação de
navios?
– Nós somos o que diz a placa – concordou. Ela usava uma blusa listrada
de azul e branco enfiada por dentro da calça. Seu rosto e seus braços estavam
dourados de sol; e seu cabelo castanho, preso em um coque frouxo na nuca.
Eu gostei de sua aparência, uma garota trabalhadora como eu.
– Finion Argyrus está?
– Ele está em um trabalho em Pontal de Hespera – disse ela rapidamente. –
Eu sou Docia Argyrus. A filha. Como posso ajudá-los?
– Que a corrente vos leve – eu disse. – Eu não sabia que havia uma filha.
Ela estreitou os olhos e cruzou os braços.
– Não cabia na tabuleta.
– Eu sou Caroline Oresteia. – Comecei a tirar um saco de moedas do
bolso.
– A garota pirata. – Ela me examinou dos pés à cabeça. – Não pensava que
fosse conhecê-la. Interessante.
– Corsária – corrigi. – Tomei uma presa recentemente. O cúter
Victorianos.
– Eu o conheço.
– Em seu compartimento de carga, ele tinha um baú de talentos de prata. –
Eu larguei a bolsa na mesa. – Entendo que sua firma está cuidando do resgate
da Fabulosa e das outras barcas perdidas em Pontal de Hespera. Eu desejo
pagar.
Ela olhou para Markos. Se ela sabia quem era ele, não disse.
– Além disso – eu disse, quando ela pegou uma pena para anotar minhas
instruções –, você pode incluir na carta que, no caso desses quatro homens –
eu soletrei os nomes dos barqueiros que tinham morrido no forte dos Cães
Negros –, eu desejo pagar dez talentos às mulheres ou aos herdeiros de cada
um deles.
– Além dos outros custos?
– Ayah.
Sua pena parou.
– Isso é muito dinheiro.
– Basil Maki está me representando neste assunto. Ele é o cônsul
kyntessano. Então, se precisar de mais dinheiro, por favor, procure-o.
Depois de deixarmos a loja, Markos se recusou a falar comigo por três
quadras inteiras.
– Eu disse a você que queria fazer isso – ele disse, com um rosnado.
– Você não tem o dinheiro. Eu tenho. – Agarrei seu braço e o forcei a
parar. – Eu não teria o Vic se não fosse por você. Portanto, de certa forma, é
seu dinheiro, também.
– Não é – ele disse com azedume. – Enquanto você roubava esse navio e
resgatava minha irmã, eu estava inconsciente e amarrado.
– Ayah, bem, nem todo mundo pode ser bom em todas as coisas. – Eu
sorri. – Você sabe o que estou dizendo. Se eu não o tivesse conhecido, nada
disso teria acontecido.
– Eu mesmo tenho pensado nisso – admitiu ele. – Sobre o quanto sou
agradecido por estar predestinado a encontrá-la.
– Foi sorte. – Mesmo dizendo isso, eu sabia ser mentira.
– Você ainda não acredita, depois de tudo isso? Pense em todo mundo que
ajudou a salvar a mim e Daria. Em todas as pessoas que encontramos pelo
caminho. Os barqueiros, os Bollards, até Nereus. Todos eles têm uma coisa
em comum.
Eu.
Todo aquele tempo eu estava achando estar na história de Markos, mas
talvez eu tivesse entendido ao contrário. Talvez ele estivesse na minha. Eu
ouvi o sussurro malicioso em minha cabeça. Risadas.
– Carô... – Markos pegou minha mão. – Eu quero que você fique. Comigo.
Em pânico, eu puxei a mão. Meus pensamentos corriam confusos
enquanto eu olhava para outro lugar, para todos os lugares – para qualquer
lugar, menos para ele.
– Não desse jeito. – Ele me soltou. – Espere. Isso não saiu direito.
– É melhor que você não tenha tido a intenção de querer dizer isso.
Eu saí andando pelo calçamento de pedra. Minhas emoções borbulhavam e
fervilhavam de um jeito que eu achei especialmente desagradável.
– Bem, eu não tive. Você quer parar? – Ele me perseguiu pela rua. – Carô.
Eu não quis dizer isso. Mesmo porque, se eu tivesse dito, você provavelmente
ia me dar um tapa. De novo. – Ele respirou fundo. – Deixe-me terminar
– Você disse, quando nós… – Eu estava embaraçada demais para
continuar. – Você disse que não haveria nada dessa conversa.
– Eu sei – disse ele, em voz baixa. – Mas é preciso dizer algumas coisas.
Eu parei para encará-lo.
– Eu não quero que você mude minha vida.
Ele apertou os olhos e me encarou sob a luz do sol de meio-dia.
– É um pouco tarde demais para isso, não é?
Eu me lembrei do que meu pai tinha dito. Às vezes, devemos deixar o
passado para trás antes de poder ver nosso futuro bem ali, sentado à nossa
frente.
O mundo tinha mudado. Nós não podíamos voltar.
– Mas tenho pensado que um cúter rápido poderia ser de muita utilidade
para mim. Quero dizer, nós. Quero dizer… – Markos organizou o
pensamento. – O que quero dizer é que, como você não vai voltar para o rio,
eu gostaria que você navegasse a partir de Valonikos. Você pode ser uma
corsária. Para mim. Sei que não tenho exército nem frota. – Ele deu de
ombros. – Mas preciso começar de algum lugar.
Ele estendeu a mão, como trabalhadores fazem para selar um acordo.
Eu a apertei. Seus dedos estavam quentes em minha mão. Baixei a voz
para que ninguém mais na rua escutasse e disse:
– Markos Andela, emparca de Akhaia. Senhor de et cetera, et cetera. Eu
sempre serei sua amiga. Eu navegarei para você. – Eu ergui a mão livre em
um alerta. – Não por Akhaia. Por você.
Ele não me beijou, optando por permanecer à distância de um aperto de
mão. Eu podia dizer que ele sentia isso, também – o momento exigia certa
solenidade.
– Bom – ele limpou a garganta –, então, está combinado.
Ficamos ali parados na rua por muito tempo, sorrindo estupidamente um
para o outro e com o vento fresco do mar agitando nossas roupas. Eu tirei
minha mão da dele e comecei a caminhar ao longo do passeio de madeira que
conduzia além dos armazéns até o labirinto das docas. Markos caminhava ao
meu lado, perto o bastante para sua manga roçar na minha.
– Então, você tem alguma ideia sobre o que podemos fazer com um cúter?
Nós fizemos a curva no armazém.
– Eu, não…
Eu parei no meio da frase. De repente, eu não conseguia respirar. Foi
como levar um tiro de pistola de pederneira novamente. Era como ser
golpeada no coração.
– O quê? – Markos disse, ao longe. Mas eu mal o escutei.
Tudo tinha parado. Eu estava hipnotizada pelas bordas bem delineadas de
suas velas enroladas, paradas contra o céu azul. Sua madeira e sua pintura
brilhavam. Seu cordame e seus estais eram delicados e graciosos. A curva de
seu casco, a forma de suas tábuas superpostas, pareciam perfeitas para mim.
Mas era algo mais que isso. Eu sentia sua essência.
Fui tomada por uma onda de uma música empolgante. E sorri.
Porque foi quando eu vi o Vic.
Agradecimentos
Quando comecei a escrever esta história, sentia que ela era especial. Eu
estava certa, embora tenha sido uma jornada de quatro anos desde o primeiro
rascunho. Um superobrigada à minha agente, Susan Hawk, por ser tão
entusiasta deste projeto. Obrigada a meu editor, Cat Onder, que leu o
manuscrito inteiro três dias depois que eu o apresentei. Gosto de pensar que
tive sorte em encontrar a pessoa certa logo de cara. E também um imenso
obrigada pa-
ra as pessoas incríveis da Bloomsbury a da Bent Agency.
Agradeço aos meus amigos e à minha família, que foram submetidos a
longos monólogos sobre edição que provavelmente eram bem pouco
interessantes – e um agradecimento extra àqueles que leram as primeiras
versões deste livro. Um grande viva à galera do grupo NBA Twitter, cuja
empolgação constante na época em que eu tinha um blog me deixou mais
confiante para seguir em frente. Talvez tudo isso soe estranho, mas o fato é
que existe uma conexão legítima entre jovens leitores e fãs de basquete!
Obrigada meus amigos do NBA Twitter, os primeiros leitores deste livro!
Agradeço especialmente à Laura Walker e a Sarah Moon, as membras-
fundadoras do time “Livro no Mundo”. Sem o encorajamento de Laura como
minha primeira “leitora beta”, não sei se teria chegado sequer ao segundo
rascunho. Meus queridos, vejam! Este é um livro! E ele agora está no mundo!
É engraçado a forma como as coisas vão se concretizando. Acabei de
perceber que preciso agradecer a Chris Paul. Se você não tivesse deixado
Nova Orleans, eu provavelmente nunca teria parado de escrever no blog. De
um jeito bizarro, este livro existe por sua causa.
Obrigada ao meu pai, que me inspirou amor pela fantasia desde a infância,
quando lia O Hobbit para mim. (Um dia, pai, vou escrever um romance de
capa e espada!). Para minha mãe, que enquanto este livro era avaliado, me
incentivou a visualizá-lo pronto e dizer: “As coisas sempre dão certo para
mim”. Elas realmente dão certo! E para meu irmão, Bryan, por descobrir
todas as referências à cultura geek presentes no livro.
Obrigada Michael, meu querido, especialmente por todas as semanas em
que estive louca revisando este livro e ignorei você completamente. De algum
jeito, a casa não foi submersa por um mar de louça suja e tralhas, e todos os
gatos sobreviveram. Tenho certeza que esse mérito não é meu. Amo você!
Este livro é dedicado à memória da minha avó, Barbara Proops, que nunca
riu quando uma versão minha de apenas oito anos dizia a ela que se tornaria
escritora. Sou grata por ter conseguido contar à minha avó que uma editora
aceitou publicar meu livro. Infelizmente, ela nunca poderá lê-lo.
E, finalmente, este livro não existiria sem a obra clássica para crianças de
Arthur Ransome. E sem a música de Stan Roger. Para ir em frente, às vezes
você precisa olhar para trás. Me voltei às canções tradicionais e às aventuras
de navegação que eu amava, aquelas que inspiraram uma garota sonhadora a
se tornar pirata. A garota cresceu e os sonhos se transformaram neste livro.
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Skylark não é mais uma menina, mas os outros personagens dessa história
não estão prestando atenção nesse fato. Gully, o irmão mais novo de Sky, tem
dez anos e está obcecado por investigar uma tentativa de assalto; sua mãe foi
embora para o Japão numa busca insana pela vida artística; seu pai, Bill,
parece satisfeito em beber enquanto permanece imerso na loja de vinis e no
passado; do alto do terraço, Nancy, a amiga mais velha e experiente, fuma
um cigarro e diz que Sky deve se divertir mais; uma garota é encontrada
morta e há cartazes com seu rosto estampado por todo o bairro; há uma
estranha ligação entre a garota dos cartazes e Luke, o novo funcionário de seu
pai. Nessa história, cada acontecimento tem sua própria melodia. E essa é a
história de como Sky encontra seu lugar no mundo. Um lugar em que não
existem garotas perfeitas. É também a história de uma garota louca e de uma
garota fantasma; de um garoto que não sabia de nada e de um garoto que
achava que sabia de tudo. E é sobre vida, morte, luto e romance. Só coisa
boa. Destaques do livro "Divertida e dona de um olhar mordaz sobre as
imperfeições do mundo (e sobre ela mesma), Sky é autêntica." – Kirkus
Reviews
Último capítulo da saga traz um final avassalador! Tom Raines e seus amigos
estão ansiosos para voltar à Agulha Pentagonal e continuar seu treinamento
nas Forças Intrassolares. Ainda que este seja um momento em que as coisas
não pareçam estar tão bem. Tom não se intimida e persiste em lutar. O que
começar como um ajuste de contas intrigante entre Tom e seu pai logo se
transforma em uma mudança perigosa, pois há agente suspeitos em posições
de poder, bem como revelações sobre um novo controle militar. Isso
significa, talvez, que Tom tenha que manter segredos inclusive se seus
aliados. Em seguida, uma figura misteriosa, outro fantasma na máquina,
inicia uma luta contra as corporações, mas os métodos adotados por Tom
para combate-lo são chocantes. Neste terceiro volume, vemos Tom e seus
jovens amigos, os cadetes, diante de um futuro impossível, o qual eles nunca
poderiam prever. Em Catalisador, S. J. Kincaid nos presenteia com um final
eletrizante, concluindo uma jornada heroica e fantástica de tirar o fôlego.
"Um final perfeito para esta série e um questionamento aos leitores: como
lidar com as grandes ideias?" Kirkus Reviews
"Você não vai conseguir parar de ler." - Veronica Roth, autora de Divergente,
best-seller do New York Times. É a Terceira Guerra Mundial. O inimigo está
vencendo. E se a arma para virar o jogo fosse você? Mais do que qualquer
outra coisa, Tom Raines quer ser alguém importante. Aos 14 anos, com uma
aparência pouco digna de atenção e uma vida cheia de incertezas, ele está
bem longe de realizar o seu desejo. Exceto por sua habilidade com games,
Tom não tem muito com o que contribuir. Um zero à esquerda. Durante anos,
o garoto perambulou de cassino em cassino com seu pai, um jogador
completamente sem sorte e que fazia de seu vício um meio de sobrevivência.
A cada dia, iniciava-se uma nova jornada em busca de um "lar", mesmo que
isso significasse um quarto qualquer pago com o pouco dinheiro ganho em
apostas. Mas, certo dia, o que parecia ser uma existência fadada ao fracasso,
muda radicalmente. Da noite para o dia, Tom é convidado para integrar a
elite do Exército e utilizar seu talento como jogador para ajudar seu país a
vencer a Terceira Guerra Mundial. Tom, então, tem a oportunidade de se
tornar alguém importante: uma supermáquina de guerra com habilidades
tecnológicas jamais imaginadas. E de quebra, ganha a chance de conquistar
tudo aquilo que parecia reservado aos outros: sucesso, amigos, um amor de
verdade. Mas o acesso a tudo isso tem um custo. Será que vai valer a pena?
Com personagens fascinantes e um enredo de tirar o fôlego, Insígnia faz uma
eletrizante viagem ao futuro e revela um mundo onde as fronteiras entre
humanos e máquinas não podem mais ser distinguidas.
Sybella nunca soube ao certo o que era amor. Não sem segunda intenções.
Desde sua infância, ela teve de confiar em si mesma para conseguir
sobreviver.