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Sarah Tolcser - 01 A Canção Das Águas (Oficial) PDF

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© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
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Table of Contents

1. A canção das águas


2. Folha de rosto
3. Créditos
4. Dedicatória
5. MAPA
6. CAPÍTULO 1
7. CAPÍTULO 2
8. CAPÍTULO 3
9. CAPÍTULO 4
10. CAPÍTULO 5
11. CAPÍTULO 6
12. CAPÍTULO 7
13. CAPÍTULO 8
14. CAPÍTULO 9
15. CAPÍTULO 10
16. CAPÍTULO 11
17. CAPÍTULO 12
18. CAPÍTULO 13
19. CAPÍTULO 14
20. CAPÍTULO 15
21. CAPÍTULO 16
22. CAPÍTULO 17
23. CAPÍTULO 18
24. CAPÍTULO 19
25. CAPÍTULO 20
26. CAPÍTULO 21
27. CAPÍTULO 22
28. CAPÍTULO 23
29. CAPÍTULO 24
30. CAPÍTULO 25
31. CAPÍTULO 26
32. CAPÍTULO 27
33. CAPÍTULO 28
34. CAPÍTULO 29
35. CAPÍTULO 30
36. CAPÍTULO 31
37. Agradecimentos
38. Sua opinião é muito importante
Landmarks
1. Cover
TÍTULO ORIGINAL Song of the Current
© 2017 by Sarah Tolcser. Publicado mediante acordo com Lennart Sane Agency AB.
© 2017 Vergara & Riba Editoras S.A.

Plataforma21 é o selo jovem da V&R Editoras

EDIÇÃO Fabrício Valério e Flavia Lago


EDITORA-ASSISTENTE Thaíse Costa Macêdo
PREPARAÇÃO Boris Fatigati
REVISÃO Raquel Nakasone e Olga Fernandez
DIREÇÃO DE ARTE Ana Solt
DIAGRAMAÇÃO E EPUB Pamella Destefi
CAPA Jessie Gang
ILUSTRAÇÕES DE CAPA oceano e céu noturno © Manuel Ploetz/Shutterstock.com; lua e seu reflexo
© Petrov Stanislav/Shutterstock.com; borda decorativa © 2017 por Si Scott e Brianna Ailie
MAPA © Virginia Allyn

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Tolcser, Sarah
A canção das águas [livro eletrônico] / Sarah Tolcser; tradução Edmundo Barreiros. - São Paulo:
Plataforma21, 2017. - (Jornada das águas; 1)
7 Mb; ePUB
Título original: Song of the current.
ISBN 978-85-92783-52-5
1. Ficção juvenil I. Título. II. Série.
18-12215 CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:


1. Ficção: Literatura juvenil 028.5

Todos os direitos desta edição reservados à


VERGARA & RIBA EDITORAS S.A.
Rua Cel. Lisboa, 989 | Vila Mariana
CEP 04020-041 | São Paulo | SP
Tel.| Fax: (+55 11) 2703-1987
plataforma21.com.br | plataforma21@vreditoras.com.br
À vovó Barbara
(in memoriam)
CAPÍTULO
UM

Existe um deus no fundo do rio.


Algumas pessoas podem lhe dizer que isso é só uma história. Mas nós,
povo das barcas, sabemos que não é bem assim. Quando os juncos ao longo
das margens sussurram que há uma ventania correndo pelas zonas alagadiças,
nós ouvimos. Quando a maré se ergue do mar e enche o rio com água
marrom barrenta, nós sabemos que é preciso prestar atenção.
O deus no rio fala conosco na língua das pequenas coisas.
Foi assim que, antes mesmo de fazermos a curva em Pontal de Hespera,
meu pai soube que havia algo errado.
– Carô, pegue o leme. – Meu pai se debruçou sobre a popa para colocar a
mão no rio.
Nossa barca estava carregada de toras para o mercado madeireiro em
Siscema. A embarcação estava bem fundo na água, de modo que ele não teve
trabalho para alcançar a superfície do rio. Um pequeno rastro redemoinhou
em volta de seus dedos, formando uma linha agitada de bolhas. O sol tinha
desaparecido por trás das árvores cobertas de musgo, e o rio ficava mais
quieto a cada instante.
Ele puxou bruscamente a mão como se ela tivesse sido picada.
Eu me sentei, ereta.
– O que foi?
– Não sei muito bem. – Ele parecia querer dizer mais, mas apenas
acrescentou: – Ele está inquieto esta noite.
Ele estava falando do deus no rio. Todo mundo sabe que pode trazer má
sorte – até mesmo ser perigoso – referir-se ao deus pelo nome. Os barqueiros
normalmente o chamam de O Velho.
– Fogo – sussurrou Fee. Os homens-sapo não são um povo de muitas
palavras.
Meu pai virou-se para ela.
– Você também sente?
Fee empoleirou-se no telhado da cabine da Cormorant com os dedos dos
pés, que eram unidos por membranas, estendidos sobre as tábuas. Sua pele
era do verde-amarronzado escorregadio de um sapo-boi de rio. Com olhos
amarelos que se projetavam de uma testa nodosa, ela olhava sem piscar para a
água. A barra de seu vestido de linho estava em farrapos, e fios soltos
esvoaçavam na parte de trás.
Conta-se que, há muitos milhares de anos, em tempos imemoriais, o deus
no rio apaixonou-se pela filha de um barqueiro. Os homens-sapo são os filhos
que resultaram dessa união. Os habitantes da terra torcem o nariz e os
chamam de sujos, mas os interioranos são ignorantes em relação a muitas
dessas coisas.
Eu funguei.
– Não sinto nenhum cheiro de fumaça.
Enquanto eu falava, o vento mudou, e um cheiro cáustico envenenou o ar.
A qualquer momento, iríamos avistar Pontal de Hespera, a primeira cidade ao
sul da fronteira akhaiana. Apertei a cana do leme com tanta força que os nós
dos meus dedos ficaram brancos.
A vela rígida e negra da Cormorant girou parcialmente para fora a
estibordo. O calor do dia ainda aquecia suas tábuas, embora o sol tivesse
desaparecido. Estendi sobre o convés os dedos da mão que estava livre, como
se a paz pudesse de algum modo emanar dele para mim.
O deus no rio não fala comigo como faz com meu pai. Ainda não.
– Quando chegar o dia de seu destino, você vai saber – sempre me dizia
meu pai. – Do mesmo jeito que eu soube quando ele veio a mim.
Bom, na minha opinião, o destino poderia se apressar um pouco. Meu pai
tinha quinze anos quando o deus no rio sussurrou seu nome pela primeira
vez. Sou dois anos mais velha e ainda não ouvi nada. Mas mantenho os
ouvidos abertos, porque um dia eu vou herdar a Cormorant. Oito gerações de
capitães Oresteias trilharam seu ofício nestes rios. Todos eles eram
favorecidos pelo deus.
Seguimos adiante pela água sombria. As árvores foram desaparecendo
gradualmente, e o porto de Pontal de Hespera surgiu à nossa frente. Ou
deveria ter surgido.
– Pelas bolas de Xanto! – praguejei, com os olhos ardendo. Peguei a
manga de meu suéter e a ergui sobre o rosto.
Fumaça subia dos telhados dos armazéns. Os mastros de barcas afundados
projetavam-se como troncos de árvores mortas, no pântano mais feio e
desolado que já devia ter existido. Essa parte do rio não era profunda, então
algumas barcas estavam afundadas até o topo de suas cabines. Uma estava
pronta para navegar – a verga e a retranca da vela principal flutuavam, e a
vela se agitava entre elas, submersa. Parecia o vestido de uma mulher
afogada. Brasas produziam um brilho cor de laranja nas estacas enegrecidas,
e partículas de cinza pairavam no ar. As docas haviam desaparecido.
– Aquelas barcas… – Fui tomada por uma tosse seca. Tornei a cobrir a
boca com o suéter e inalei um pouco de ar abençoadamente limpo, embora
com gosto de fios. Por mais que eu apertasse os olhos em direção aos
naufrágios, eu não conseguia identificar o nome de nenhuma daquelas barcas.
– Pai, essas barcas não pertencem a ninguém que nós conhecemos,
pertencem?
A vela da Cormorant deu uma tremulada raivosa, o que me assustou. Em
meu sobressalto, acabei afrouxando a pegada na cana do leme, então afastei
os olhos dos destroços e ajustei com pressa o curso.
Meu pai nem percebeu meu lapso no leme, o que não era nada
característico dele.
– Vamos ancorar longe das docas. – Ele apertou meu ombro. – Nós não
queremos bater em nenhum destroço. Encontre um lugar na margem, o mais
perto possível da estrada, e se posicione a contravento.
– Nós vamos ancorar? – Minha mente saltou para nossa segunda carga, a
caixa de mosquetes amarrada ao convés e coberta discretamente por uma
lona. Nós nunca parávamos em cidades quando estávamos fazendo
contrabando. – Achei que estivéssemos indo para o Lago das Garças.
Meu pai esfregou o queixo, com a barba por fazer, enquanto examinava as
ruínas.
– Um barqueiro sempre ajuda um barqueiro em necessidade.
A visão daqueles naufrágios abandonados me causou um arrepio. Aonde
tinham ido todas aquelas pessoas? Eu não precisava do deus no rio para saber
que havia alguma coisa muito errada.
Meu pai e Fee dirigiram-se até a parte dianteira da barca para baixar a
vela. Empurrando a cana do leme, conduzi a Cormorant em um arco lento,
até que sua proa achatada e pintada de branco ficou apontada para o vento.
Ela seguiu lentamente pela água e, aos poucos, foi parando. Meu pai baixou o
cabo da âncora, e fomos cuidar das tarefas rotineiras de arrumar e preparar a
barca.
Fumaça permeava o ar na coberta, fazendo com que a cabine parecesse
ainda mais apertada e atulhada que o habitual. Meu pai vestiu seu sobretudo
de lã bom e arrumou a gola para que ficasse no lugar certo. Seus modos
sombrios aumentaram minha preocupação. Ele só usava aquele casaco para ir
ao templo ou para fingir que não tinha bebido demais na noite anterior.
A luz de velas brilhou em algo metálico em sua cintura – sua melhor
pistola de pederneira.
Eu parei com a mão apoiada na porta do armário.
– Armas, então?
– Só por garantia – ele grunhiu.
Peguei no armário minha faca com bainha de couro. Enfiei-a no bolso e
subi os degraus da cabine.
Remamos no bote até a margem e fomos à cidade. Nossos passos
arrastaram-se na estrada de cascalho; além do murmúrio triste dos juncos,
esse era o único som ao longo da margem do rio. Meu pai não parava de
olhar apreensivamente para o rio. A cabeça de Fee estava inclinada em
direção à água, ouvindo com aquele sexto sentido desconcertante que eu teria
dado qualquer coisa para possuir.
Engoli a inveja enquanto meu braço formigava de arrepio. Era primavera
nas terras dos rios, e a temperatura ainda caía depois do pôr do sol, mas o frio
que eu sentia estava principalmente dentro de mim. Por que o deus no rio não
tinha protegido os barqueiros cujas barcas afundaram? E o que meu pai e Fee
sabiam que não estavam me contando?
Encontramos o inspetor das docas parado ao lado de uma pilha de
caixotes, examinando o cais com olhos vermelhos. Pelo modo aleatório como
as caixas estavam empilhadas, parecia ser alguma carga que eles tinham
conseguido salvar do incêndio.
– Você é um homem de sorte, Nick – cumprimentou ele enquanto apertava
a mão de meu pai. – Se estivesse aqui duas horas atrás, acho que sua barca
estaria no fundo do rio. Junto com o resto.
Meu pai manteve a voz baixa em sinal de respeito.
– O que aconteceu?
– Onze barcas afundaram. – Do cachimbo do inspetor, subia fumaça em
uma espiral delicada. Sua voz estava bastante calma, mas percebi que sua
mão tremia.
– O navio veio de Akhaia. O Victorianos.
– O nome não me diz nada – meu pai falou.
– Era um cúter. De aparência veloz. Com seis canhões de quatro libras.
Eles foram carregados com foguetes incendiários.
Eu olhei para o rio, quase como se esperasse ver o fantasma do cúter
fazendo a curva. Não havia nada além das sombras escuras das árvores que se
alongavam sobre a água. Ao ver os mastros chamuscados, fui invadida por
uma pontada de perda. Barcas não eram apenas navios de carga. Elas tinham
personalidade. Elas eram lares.
Eu me voltei para o inspetor das docas.
– Um cúter como esse é um desperdício nessa parte das terras dos rios. Ele
não pode alcançar velocidade com todas essas curvas, e sua quilha é funda
demais para entrar nos melhores esconderijos. Ele pertence ao mar. O que
estava fazendo aqui?
– Tentando destruir as docas? – perguntou meu pai. – Ou um dos
armazéns?
O homem sacudiu a cabeça, perplexo.
– Até onde sei, nenhum dos dois. Eles apontaram primeiro para as barcas.
Três delas estavam carregando. Toda a carga explodiu. Aí as docas se
incendiaram, e o fogo se espalhou para o primeiro armazém. Nós
conseguimos fazer funcionar uma linha de baldes, mas dois rapazes se
queimaram feio lutando contra o fogo. – Ele apontou para a pilha de
engradados: – Isso é tudo o que restou da carga.
O inspetor das docas parecia muito solene. Eu soube que havia mais.
– Quantos mortos? – perguntou meu pai com delicadeza.
– Só dois. Os Singers estavam dormindo a bordo da Jenny.
– Que a corrente os leve. – Meu pai tirou o gorro de lã e alisou para trás
seu cabelo ruivo com fios prateados.
– Que a corrente os leve – repeti em um sussurro, cerrando os punhos. A
borda irregular de uma unha roída afundou na palma da minha mão. Eu não
conseguia imaginar quem faria algo assim. Os esqueletos queimados das
barcas projetavam-se da água imóvel, onde vários barris e caixotes de
madeira boiavam.
Nós tínhamos ancorado em um cemitério.
– O cabelo se parece com algas – sussurrou Fee, girando os olhos em
direção à água escura.
Antes que eu tivesse a chance de perguntar o que ela queria dizer, uma voz
soou às nossas costas.
– Nicandros Oresteia, capitão da barca Cormorant?
Eu virei para trás. Um oficial do exército estava parado no cais. Seu
casaco azul, que ia até o joelho, estava coberto de poeira da estrada. Ele era
iluminado por trás pelos últimos raios do sol poente, de modo que eu não
conseguia ver seu rosto.
Meu pai e eu trocamos olhares. Meu pulso se acelerou nervosamente.
O homem tornou a falar, e sua voz transportou-se além da água.
– Estou à procura do capitão da barca Cormorant.
Meu pai virou-se lentamente para ele.
– Sou eu.
– Por ordens da margravina de Kynthessa, preciso que o senhor venha
comigo agora.
Eu levei um susto. Ele tinha uma espada longa e duas pistolas. Não tinha
sacado nenhuma das armas, mas não era preciso. Elas estavam bastante
visíveis em seu cinto, em uma ameaça silenciosa.
– É mesmo? – disse meu pai, com notas iguais de provocação e de
incredulidade na voz. – Eu não achava que a margravina soubesse meu nome
para me dar ordens. Nós não nos conhecemos.
Movi lentamente a mão que o comandante não conseguia ver em direção
ao bolso, onde minha faca estava guardada. Eu tinha crescido ouvindo
histórias de Oresteias fazendo escapadas loucas e temerárias de homens de
uniforme. Eu estava pronta.
Meu pai sacudiu a cabeça para mim, e eu parei com a mão no ar.
– Sou o comandante Keros – disse o estranho. – Da Terceira Companhia
da margravina. Estou autorizado a falar em seu nome, como vocês sabem
muito bem, tenho certeza. O senhor faria a gentileza de vir comigo até o
gabinete do mestre da baía?
Então, às suas costas, soldados marcharam até o cais, e eu soube que ele
não estava pedindo.
Eu falei:
– O senhor não acha mesmo que nós tivemos alguma coisa a ver com isso.
– Claro que não, garota. – O comandante olhou para mim do mesmo jeito
que eu poderia olhar para um lambari ou para uma formiga. Ele dirigiu as
palavras a meu pai: – Tenho uma oferta que quero discutir com o senhor,
capitão. Em particular.
– Mas eu… – comecei a falar.
Meu pai apontou a cabeça em direção à cidade.
– Vá para a Nós e Bortalós, Carô. Eu me encontro com você lá.
Antes que eu tivesse a chance de protestar, eles o arrastaram pelo piso de
pedras enegrecidas, imprensado entre o comandante e os soldados. Eu não me
deixei enganar por seu andar despreocupado. Seus ombros estavam rígidos,
enquanto mantinha as mãos nos bolsos do casaco.
Observei até meu pai sumir de vista. Tudo acontecera depressa demais.
Meus dedos se retorciam, alisando o contorno de minha faca escondida. Eles
tinham deixado que ele mantivesse a pistola, lembrei a mim mesma. Ele
podia não estar correndo tanto perigo.
– Bom – eu disse a Fee, e então fiz uma careta. Minha intenção era soar
confiante, mas saiu quase como um grito. – Vamos.
Pontal de Hespera tinha apenas uma taverna, a Nós e Bortalós. Suas telhas
estavam chamuscadas, mas, fora isso, intocadas pelo fogo. Subi os degraus,
dois de cada vez, e entrei pela porta. Fee seguiu atrás de mim; seus cotovelos
bulbosos reluziam verdes à luz das lamparinas.
Uma tábua do chão rangeu sob meu sapato de lona surrado. Eu olhei para
baixo e percebi estar parada em uma poça d’água. Ela seguia pelo corredor,
molhando as tábuas e encharcando o tapete trançado.
Uma luz tremeluziu por uma porta aberta. Ouvi vozes baixas, masculinas e
femininas. Atraída pela curiosidade, espiei no interior do aposento. Algo
comprido e nodoso estava disposto em uma cama, envolvido por um lençol
de linho molhado. Primeiro, não percebi o que estava vendo, até que meu
olhar se fixou nas botas que se projetavam de baixo do lençol.
Eu engoli em seco. Eu só conhecia os Singers de vista. A sra. Singer tinha
um cabelo lindo, comprido e liso. Ele escorria sob o lençol, agora, como um
emaranhado negro de enguias, pingando sem parar.
O cabelo se parece com algas. Ao me lembrar das palavras enigmáticas,
imaginei o cabelo da sra. Singer emaranhado aos juncos verdes e musgosos
do fundo do rio, flutuando na corrente turva.
Fui atravessada por um tremor.
Eu desviei os olhos dos corpos e cambaleei pelo corredor até o banheiro.
Nunca tinha visto uma pessoa morta antes. Meu coração martelava em
pânico. Burra. Era burrice ter medo. Cadáveres não podiam machucar
ninguém.
Fee tocou meu ombro.
– Força.
Assenti com a cabeça e respirei fundo, para acalmar os nervos.
A tensão pairava sobre os presentes no bar como uma respiração presa.
Pessoas estavam reunidas em círculos e sussurravam em pequenos grupos, e
de vez em quando batiam as canecas no balcão. Eu quase podia sentir o
cheiro do choque e da raiva por sobre o odor de cerveja derramada. Havia
muitas mulheres e um só menino pequeno, que observava de olhos
arregalados enquanto a mãe o segurava pela gola. Não era raro que
barqueiros viajassem com a família a bordo.
Alguém assoviou:
– Você é a filha de Nick?
Thisbe Brixton tinha por volta de trinta anos, uma grossa trança loura que
descia pelas costas e uma tatuagem de serpente que envolvia o antebraço. O
sol clareara e branqueara os pelos de seus braços e vincara a pele nas
extremidades de seus olhos. Fiquei momentaneamente tomada de alívio ao
ver alguém que eu conhecia – até que eu entendi que a barca da capitã
Brixton possivelmente estava entre as embarcações afundadas.
Abri caminho até o balcão.
– Por que os soldados estão aqui?
– Não sei. – Ela chamou o balconista e pediu duas canecas da cerveja
escura e forte apreciada no norte das terras dos rios. – Eles chegaram pouco
antes de vocês.
– Eles queriam conversar com meu pai. – Minha voz parecia vazia. Eu
estava abalada, ainda me lembrando da imobilidade desconcertante dos
corpos e do modo brusco com que os soldados arrastaram meu pai. –
Disseram que era sobre um trabalho.
Pelas bordas vermelhas dos olhos da capitã Brixton, eu podia dizer que ela
tinha chorado.
– Não gosto de nada disso – murmurou ela.
Eu fechei a mão em torno da caneca gelada. Apesar das circunstâncias
horríveis, não consegui evitar me sentir satisfeita por ela me considerar velha
o bastante para tomar uma bebida. Eu sempre admirei a capitã Brixton. Sua
barca era uma das poucas tripuladas apenas por mulheres, e ela levava a
pistola mais bonita que eu já tinha visto, gravada com um padrão de
arabescos e flores.
– Graças aos deuses seu pai está aqui – disse ela. – Nós estamos reunindo
uma tripulação para caçar esses canalhas pelo que eles fizeram com os
Singers.
O senhor de idade ao lado dela sacudiu a cabeça.
– Nós não vamos, não.
– Ah, não encha, Perry. A hora de agir é agora. – Ela bateu com o punho
no balcão, o que fez com que as canecas chacoalhassem.
Se alguém afundasse a Cormorant, acho que eu estaria louca para atacar e
lutar, também, mesmo com os canhões de quatro libras. Algo como excitação
se revolveu imprudentemente em meu interior. Eu a segurei. Pessoas estavam
mortas. Meu pai estava em dificuldades.
Eu me virei para o homem.
– A sua barca também?
– Ayah – disse ele. – Embora tenhamos lutado muito para salvá-la.
Eu não podia acreditar que ele tivesse perdido a Fabulosa. O capitão Perry
Krantor navegava com ela desde antes do nascimento de meu pai. Ela era
uma bela embarcação antiga, com um convés pintado de vermelho-cereja e
um cata-vento no alto do mastro em forma de moinho de vento. Em relação
ao capitão, ele tinha sido amigo de meu avô. Era ruim demais para acreditar.
– O dano foi feio? – perguntei. – Ela pode ser içada?
– Que os deuses a abençoem, Carô – disse ele, e meu coração doeu com o
jeito como suas mãos manchadas de sol tremiam em torno da caneca. – Não
sei se é perda total, mas isso é para o avaliador decidir. E a empresa de
salvamento. Nós mandamos um mensageiro a Siscema. Em um maldito
cavalo. – Ele torceu os lábios para mostrar o que achava de barqueiros se
dobrando a mandar mensagens por terra. – Não restou barco nenhum maior
que um bote a remo.
De repente, visualizei o cata-vento da Fabulosa, retorcido e enegrecido, a
tinta descascando com o calor do fogo. Minhas unhas afundaram na palma da
mão.
– Vejo que você e seu pai não têm ido muito ao sul ultimamente, não é? –
disse a capitã Brixton. – Bom, eu tenho. Ouvi falar desse Victorianos. Seu
mestre é Diric Melanos, e todos nós sabemos com quem esse patife anda. –
Ela cuspiu no chão.
Eu não sabia. Ela tinha razão – nós não íamos muito para o sul.
Ao ver a pergunta em meus olhos, ela se inclinou para perto.
– Os Cães Negros.
– Cães Negros? – Minha cabeça se ergueu. – Tão rio acima, assim?
Todo mundo sabia que se devia manter distância dos Cães Negros, uma
tripulação de mercenários akhaianos – na verdade, piratas – cujos barcos
rápidos aterrorizavam o Pescoço, a baía de água salgada comprida ao sul das
terras dos rios. Agora eu sabia por que o capitão Krantor não estava animado
para reunir uma tripulação. Enfrentar os Cães Negros era um bom meio de
morrer.
– Piratas – chiou Fee. Ela enfiou um dedo verde e comprido na sua
cerveja, retirou-o e examinou as bolhas na ponta do dedo. A capitã Brixton
não deu atenção a isso. Capitães de barcas estavam acostumados aos
maneirismos estranhos dos homens-sapo.
– Tem alguma coisa muito suspeita nesse maldito negócio todo. Eles nem
levaram nada. – A capitã Brixton tomou um grande gole de sua caneca
parcialmente vazia. – Primeiro, Cães Negros, e agora, soldados.
– Você devia ir mais devagar – disse a ela o capitão Krantor.
– E você devia cuidar da própria vida, velho.
Afastei minha cerveja, intocada. Se os piratas tinham ateado fogo àquelas
barcas, eles podiam atacar outras. Meus pensamentos saltaram para a
Cormorant, ancorada sozinha e desprotegida lá fora no rio. Aqueles piratas
não estavam em busca de capturar presas nem dinheiro. Seu objetivo era
destruir e, com seis canhões, eles estavam bem equipados para fazer isso.
– Cães Negros. – Minha garganta estava rouca. – Preciso contar a meu pai.
CAPÍTULO
DOIS

Havia apenas um guarda postado diante do escritório do mestre da baía. Ele


não era muito mais velho que eu e estava curvado em um banco na varanda
de entrada mexendo em uma cutícula. Eu passei por ele.
– Ei! – exclamou com atraso, saltando de pé com um chacoalhar metálico
de armadura. – Você não pode…
Entrei bruscamente pela porta de tela.
– Pai! – eu disse, sem fôlego. – São os Cães Negros.
Meu pai estava sentado em uma cadeira de pernas delgadas e discutia com
o mestre da baía, sentado do outro lado de uma escrivaninha atulhada.
– Agora olhe aqui, Jack… – Ele se interrompeu e virou ao som de minha
voz. – O quê?
O comandante Keros estava parado atrás do mestre da baía, de braços
cruzados. O fim do crepúsculo penetrava através das persianas, iluminando
partículas de poeira no ar e refletindo no cabo de sua espada. Em toda a volta
do escritório, havia armários com portas de vidro cheios de objetos exóticos
de todas as terras dos rios.
– Eu… Eu ouvi as notícias na taverna – gaguejei, repentinamente
envergonhada com o peso dos olhos dos estranhos sobre mim. – A capitã
Brixton diz que o navio pertencia a Diric Melanos.
Meu pai ergueu a cabeça bruscamente. Ele reconheceu o nome, mesmo
que eu não reconhecesse.
A boca do comandante estreitou-se.
– Uma história suspeita de um bando de barqueiros. Eles não sabem o que
dizem.
Ouvi o arrastar de botas pesadas às minhas costas. Havia dois soldados
parados um de cada lado da porta. Assustada, dei um passo para trás, esbarrei
em um armário de vidro e fiz os objetos em seu interior chacoalharem.
– Esses barqueiros são meus amigos. – Meu pai era uma figura imponente
com o cabelo ruivo comprido e a camisa relaxadamente aberta na gola,
expondo as tatuagens desbotadas em seu peito. – Confio mais neles do que
em tipos como vocês.
O comandante Keros virou-se para mim.
– O que você queria entrando aqui desse jeito, menina? Isto é uma reunião
particular.
Meu pai sentou-se, ereto.
– Qualquer coisa que o senhor queira dizer para mim, minha filha pode
ouvir.
– A menina é sua filha? – O comandante me estudou de um modo com o
qual, infelizmente, eu estava bem familiarizada. Tentei ignorar a sensação
incômoda enquanto seus olhos rastejavam por mim.
Nem toda garota se parece com a mãe. Pior para mim. Minha mãe parecia
uma estátua de bronze clássica. Ela me deu a pele marrom e um pescoço
longo e esguio, mas as sardas e a tonalidade avermelhada de meus cachos
bem encaracolados vinham de meu pai. Nas cidades costeiras, é comum ver
pessoas com ascendência mista. Mas no interior das terras dos rios,
especialmente ali, perto da fronteira akhaiana, minha aparência chamava
atenção. O comandante olhava de um lado para o outro entre nós dois, como
se fôssemos um enigma a decifrar.
Meu pai o ignorou.
– Melanos e os Cães Negros, tão ao norte assim? – Ele sacudiu a cabeça. –
Isso não faz sentido.
O comandante sacou do interior do casaco um pergaminho enrolado e
bateu-o na palma da mão.
– Como eu estava dizendo, capitão Oresteia, há certa… carga… à espera
no armazém. Nós queremos que o senhor a entregue em Valonikos.
A cidade livre de Valonikos, uma cidade-estado independente a nordeste,
ficava a uma semana de viagem por barca. Eu estava familiarizada com o
percurso, que atravessava dois rios diferentes, mas nós não o fazíamos com
grande frequência. Meu pai preferia trabalhar na rota entre Trikkaia e
Iantiporos. O dinheiro era melhor.
– Essa é a proposta? – Os olhos de meu pai brilharam de raiva. – Isso é
tudo o que tem a dizer? Me parece que onze de meus amigos foram
incendiados porque os Cães Negros estavam à procura dessa sua carga.
Vocês não esperavam que eu somasse dois mais dois e descobrisse a verdade,
não é mesmo?
Foi o mestre da baía quem falou:
– Leve a carga a Valonikos, e eliminamos todas as acusações por
contrabando. É o melhor acordo que estou preparado a…
– Que acusações? – interrompi. – O que está acontecendo?
O mestre da baía estreitou os olhos.
– Não se dê ao trabalho de se fazer de inocente. O caixote que vocês estão
transportando está cheio de mosquetes e de munição suficiente para causar
um bom problema.
O contrabando é uma tradição honrada e antiga nas terras dos rios. Nós
nos interessávamos por isso, assim como vários outros barqueiros. Alguns
homens podem pagar um bom dinheiro para que transportem uma carga não
registrada para o outro lado da fronteira, e sem perguntas. Não era como se
esses mosquetes fossem cair em mãos criminosas – seu destino era um grupo
de rebeldes akhaianos, exilados de seu país por imprimir um panfleto do qual
o emparca não tinha gostado. Meu pai simpatizava com eles, e costumava
contrabandear suprimentos e pacotes de cartas de sua terra natal para eles.
– Como você sabe sobre… – Com o rosto em brasa, eu cerrei os punhos.
É claro. Enquanto Fee e eu estávamos na Nós e Bortalós, os homens do
comandante pisaram com aquelas botas enlameadas por toda a Cormorant.
Eles não tinham o direito de vasculhar nossa barca sem permissão.
Meu pai estava com as mandíbulas tensas.
– Talvez eu tenha quebrado algumas regras com esses caixotes, Jack –
disse ele. – Mas você também estaria quebrando algumas com essa busca e
apreensão.
Eu me adiantei.
– Isso é chantagem.
O comandante Keros me ignorou.
– Capitão Oresteia, estou preparado para lhe dar uma carta de corso – disse
ele. – Uma autorização para usar todo tipo de força necessária para levar essa
carga até Valonikos.
– Uma carta de corso? – ergueu-se a voz de meu pai.
– Sim. – O mestre da baía ficou vermelho nas extremidades. – O fato é que
você é o único navio em Pontal de Hespera que não foi destruído pelo fogo.
– Desculpe, Jack, mas a Cormorant é uma barca. Estamos equipados para
levar carga. Como você quer que eu me mantenha longe dos Cães Negros?
Sendo mais rápido que eles? Essa empreitada iria exigir mais velocidade do
que temos. Não quero ser grosseiro, é claro. Mas você entende o que eu quero
dizer.
– Acho que sei o que é uma barca, obrigado, Nick.
Tomada pela curiosidade, virei-me para o mestre da baía.
– Qual é a carga?
Devia ser algo importante. Algo perigoso. Por que mais os Cães Negros
deixariam o território deles nas águas do sul para subir até ali? E por que o
comandante tinha se dado a todo aquele trabalho de revistar nossa barca e nos
intimidar com soldados?
O mestre da baía mexeu em sua pilha de papéis.
– Não posso dizer.
– Então não posso levá-la a Valonikos. Carô tem razão. – Meu pai deu um
peteleco nos papéis. – Você não quer nos deixar escolha, não é? Isso é uma
coisa ruim de se fazer, Jack. – Ele olhou para o mestre da baía. – Por quanto
tempo você conheceu meu pai?
– Seu pai nunca teria tocado em armas contrabandeadas, e você sabe disso.
Meu pai riu.
– Sei que meu pai era muito bom no que fazia. Não vou dizer mais que
isso.
Segurei um sorriso. Meu avô tinha sido um contrabandista famoso, mas
claro que o mestre da baía nunca o havia apanhado.
O mestre da baía encolheu os lábios para o lado. Percebi que meu pai não
tinha necessariamente se ajudado com esse comentário.
– Você vai levar esse caixote para Valonikos.
Meu pai podia lidar com o velho Jack. Era com o comandante que eu
estava preocupada. Ele tinha o ar de um homem que não estava acostumado a
ser contrariado.
– Eu já tenho carga – disse tranquilamente meu pai. – Tenho uma carga
completa de madeira para Siscema. Ou vocês confiscaram isso também?
Vocês não fizeram isso, pois não têm os guindastes e alavancas para
descarregá-la, não com as docas em cinzas. Vocês também não têm esse
direito. A papelada da madeira está em perfeita ordem. – Ele tamborilou
sobre a mesa. – Em relação a esse seu caixote, talvez se fosse há alguns anos.
Não agora. Minha filha está comigo, Jack.
Eu fiquei irritada com isso. Meu pai sempre falava sobre a história
orgulhosa dos Oresteias; malandros que faziam contrabando e escapavam de
canhões. Nós éramos a barca perfeita para transportar a carga do comandante.
Um fiapo fino de indignação se retorceu em meu peito. Eu não podia ouvir o
deus no fundo do rio ainda, mas sabia que podia lançar uma faca melhor que
qualquer um. Eu não era criança.
– Pai, eu acho…
Ele me calou com um olhar severo.
– Infelizmente, a resposta é não. Não entrego uma carga a menos que eu
saiba o que é, especialmente se é algo que traz perigo para mim e para minha
tripulação. Se você quer alguém que pegue seu dinheiro num piscar de olhos
sem fazer perguntas, devia falar com a Companhia Bollard.
Os Bollards eram uma poderosa família de mercadores com a reputação de
ser um tanto cruéis. Imaginei que eles poderiam se dar ao luxo de aceitar um
contrato inescrupuloso – eles tinham baldes de dinheiro e possuíam dezenas
de barcos.
Meu pai apertou com força os braços da cadeira.
– Sou um barqueiro livre – ele disse. E entendi que ele estava se
preparando para se levantar e ir embora. – Não preciso fazer tarefas para
você.
O comandante sorriu.
– É uma pena ouvir isso.
Os soldados agarraram os braços de meu pai e ergueram-no à força da
cadeira, que caiu com um estrondo. Meu pai chutou o homem mais baixo,
tentando acertar suas pernas e derrubá-lo. Mas foi como se estivesse tentando
derrubar uma árvore.
– Pai! – Lancei-me à frente, com a mão sobre o cabo da faca.
Meu pai se debateu nas mãos dos soldados, retesando os músculos. Ele
soprou fios de cabelo do rosto corado.
– Carô! Fique fora disso!
O comandante acenou para seus homens.
– Infelizmente, não conseguimos chegar a um acordo – disse ele
calmamente, enquanto empurravam meu pai pela porta. – Mas, felizmente, há
onze barqueiros na Nós e Bortalós que estão atualmente sem barca. Um deles
vai concordar.
– Não! – Minha voz vacilou. A ideia de alguém, que não fosse nós,
navegando com a Cormorant me deixou com uma sensação horrível. Ela era
nosso lar. – O senhor não pode! Ela é nossa. – Minha mente girava com todas
as coisas que poderiam dar errado. Os Cães Negros poderiam afundá-la. Eu
poderia nunca mais tornar a vê-la.
O comandante virou-se para mim.
– Qual o seu nome, menina?
– Caroline. – Meu olhar lançava chamas em sua direção. Se ele me
chamasse de “menina” mais uma vez…
– Guarde essa faca, Caroline.
Olhei para minhas mãos, surpresa. Eu não percebera que tinha sacado a
faca da bainha. Tudo tinha acontecido rápido demais. Meu choque então foi
tão grande que recuei. Minhas pernas atingiram a cadeira, e eu caí sobre ela.
Um comandante do exército da margravina. E eu havia sacado uma faca
para ele.
Mas ele não parecia prestes a me enforcar. Nem me prender. Na verdade,
ele nem parecia me ver como uma ameaça. O comandante olhou de relance
para o espelho acima da escrivaninha do mestre da baía e ajeitou o casaco do
uniforme. Ele parecia quase entediado pelos procedimentos.
Devolvi a faca à bainha e saltei de pé.
– E meu pai?
– Seu pai será levado a um dos navios prisão em Iantiporos. Ele terá um
advogado, como é seu direito pela lei.
– Isso não é justo. – Eu o segui para a varanda. Eu tinha ouvido histórias
horrendas desses navios, onde centenas de homens ficavam acorrentados na
imundície esperando julgamento por crimes contra a margravina.
– O senhor não tem a droga de nenhum maldito direito de abordar nossa
barca sem nossa permissão.
– Vulgaridades não me impressionam – disse o comandante. – Eu não
tolero isso dos meus soldados jovens, e isso também não me agrada vindo de
você.
Bem, eu não era um de seus soldados, por isso ele não podia dizer muita
coisa.
Os homens conduziram meu pai para os fundos do prédio. Fee pulou a
grade e foi atrás deles. Assim que saíram de minha vista, senti uma forte
pontada de incerteza.
O comandante já estava no pé da escada da varanda.
– E a Cormorant? – exclamei, com a raiva adensando minha voz.
– Sua barca está apreendida. Ela vai ser confiscada e posta sob o controle
do mestre da baía.
Uma barca tinha personalidade, não era um reles objeto. Eu ardi de
indignação.
– E eu e Fee? Para onde nós devemos ir?
– Infelizmente, você vai ter de resolver isso com seu pai. Foi ele quem fez
a escolha, não eu.
– O senhor não deu a ele nenhuma escolha. – Eu corria para acompanhar
seus passos largos.
– Devo lembrá-la, senhorita Oresteia, que, nestas águas, contrabando é um
crime. – Ele ergueu as sobrancelhas. – E como é perfeitamente óbvio que
você e seu homem-sapo eram cúmplices, pode-se dizer que vocês estão
saindo dessa com facilidade.
– E se eu pagar a multa?
Ele parou.
– Muito bem. – Pelo tom de sua voz, eu seria capaz de dizer que ele estava
perdendo a paciência. – Se você conseguir produzir sessenta talentos de prata
e pagá-los ao mestre da baía, pode ficar com seu maldito pai e seu maldito
barco.
O comandante sabia que eu não tinha tanto dinheiro. Estava brincando
comigo. Engoli o nó amargo em minha garganta.
Ele me dirigiu um riso afetado, como se eu fosse uma crosta de lama em
sua bota.
– Tenha um bom dia.
O começo de uma ideia é como a água que fica na esteira de seu barco
assim que você o afasta das docas: nada além de pequenas bolhas
remoinhando preguiçosamente. Aí, o barco se aprofunda e ganha velocidade,
até que há uma onda espumante branca transbordando pela proa. Minha ideia
começou assim, um pequeno tremeluzir de coragem que cresceu.
– Comandante Keros! – Eu corri para alcançá-lo. – Espere!
– O que é agora? – ele exclamou, mal-humorado, com voz áspera e
autoritária. Percebi que, antes, ele estava se segurando, mas agora sua
paciência parecia ter se esgotado.
– Eu vou entregar sua carga. – Era impossível que ele não estivesse
ouvindo meu coração palpitar. – Conheço o caminho até Valonikos como a
palma da mão. E conheço a Cormorant. Eu naveguei com ela por toda minha
vida. Imagino que isso faça de mim uma aposta melhor do que qualquer um
daqueles outros capitães. – Na verdade, eu não estava certa de tudo isso.
– Bom… – O capitão me estudou por completo com o olhar. Eu prendi a
respiração. – Então, suponho, senhorita Oresteia, que vamos precisar de um
contrato.
O mestre da baía, surpreso, ergueu os olhos de seus livros de contabilidade
quando tornamos a entrar no escritório. O carpete ainda estava amassado
perto da porta, onde meu pai lutara contra os soldados. Afastei os olhos dali e
me instalei com rigidez na cadeira. Então, me lembrei de como meu pai tinha
ficado esparramado, como se não se importasse. Forcei-me a me recostar, até
que minhas omoplatas tocaram a madeira.
O comandante sacou uma bela folha de pergaminho do bolso do casaco e a
desenrolou esticada sobre a mesa.
– Esta é uma carta de corso, senhorita Oresteia. Você sabe exatamente o
que isso significa?
Sacudi a cabeça sem sentir nada.
– A margravina é a governante de Kynthessa…
– Eu sei disso – respondi bruscamente. – Não sou idiota.
Ele prosseguiu.
– Uma capitã na posse de uma carta da margravina não pode ser detida
nem interrogada. Qualquer coisa que ela faça, qualquer atitude, mesmo
assassinato ou um ato de pirataria, compreende-se que foi a serviço da
margravina. – Ele tamborilou sobre o pergaminho. – Você, agora, é uma
corsária. Se alguém lhe criar problema, mostre esta carta.
Pensei nos Cães Negros, naquele cúter com canhões de quatro libras. Se eu
mostrasse a eles um pedaço de pergaminho, eles provavelmente iriam rir da
minha cara. E, depois, me matar. Mas guardei o pensamento comigo.
– Você vai entregar o caixote ao consulado akhaiano em Valonikos. Ao
completar seu contrato, vai receber dez talentos de prata.
Dez talentos de prata eram uma soma incrível de dinheiro, muito mais do
que poderia valer a carga de um caixote.
– E se eu fizer isso – eu disse, cautelosamente. – Se eu levar esse
carregamento a Valonikos, sem fazer perguntas, et cetera, enfim… Se eu
fizer isso, o senhor vai libertar meu pai? Vai retirar todas as acusações?
– Você não está exatamente em posição de barganhar, aqui.
Ouvi a voz de meu pai no fundo da cabeça. Você sempre está em posição
de barganhar. Se acharem que não está, melhor. Você já os ganhou. Dei de
ombros.
– Está bem. Então acho que não temos um acordo.
O comandante retorceu o maxilar.
– Esta carga deve estar na barca e deixar Pontal de Hespera em uma hora,
com você ou com outro capitão.
Eu apertei os braços da cadeira.
– O senhor não ousaria. – Mas eu sabia que sim. No fundo, uma voz
baixinha dentro de mim se perguntava se a Cormorant não estaria mais
segura nas mãos da capitã Brixton ou do capitão Krantor.
– Calma, senhorita Oresteia. – Ele deu um suspiro. – Encontrar outra
tripulação iria levar tempo. Tentar argumentar com o irracional do seu pai
iria, da mesma forma, levar tempo. Tempo é o que eu não tenho.
– Por que o senhor mesmo não leva a caixa, se é tão importante?
– Meus homens e eu vamos cruzar a fronteira para Akhaia – disse ele. –
Existe… insatisfação na capital. Nós vamos cuidar dos interesses da
margravina por lá.
– A caixa não é um de seus interesses?
– Mocinha, nós somos soldados, não carroceiros nem barqueiros – disse
ele com desdém, como se um carroceiro ou um barqueiro fossem pessoas
absolutamente inferiores ao comandante de uma companhia militar. Pessoas
pouco relevantes. Ele deu de ombros. – Cada um cumpre com seu dever.
Entendi o que ele quis dizer. Ele me dizia que nossa conversa estava perto
do fim. Agora, eu tinha de fazer minha obrigação.
– A margravina quer que eu esteja em Akhaia, e não perdendo horas
preciosas nessa cidadezinha suja – disse ele. – Seus termos são aceitáveis. Se
você entregar o caixote ao inspetor das docas em Valonikos, seu pai será um
homem livre. Por enquanto, ele deve permanecer aqui, sob a custódia do
mestre da baía.
O mestre da baía terminou de escrever o contrato e soprou a tinta para
secá-la. Ele me ofereceu a folha de pergaminho. Puxei-a pela mesa.
– Você sabe escrever seu nome? – O comandante empurrou uma pena em
minha mão.
Eu olhei para ele.
– Claro que sei. Posso não ser uma comandante com um casaco bonito,
mas não sou burra.
Pelo olhar penetrante que ele me lançou, eu soube que o havia irritado.
Porém, ele devia estar mesmo ansioso para se livrar de mim, porque não disse
nada.
Meu pai dizia que você deve ler cada palavra de um contrato pelo menos
duas vezes, mas a linguagem era floreada e havia cláusulas demais, que
seguiam por tangentes infinitas. Eu expirei. Calma. Como o rio. Tentei
visualizar a água fluindo pacificamente entre pedras e juncos, mas minhas
emoções estavam tão revoltas quanto ondas oceânicas. As palavras moviam-
se à minha frente como aranhas negras sobre o pergaminho. Eu desisti e
assinei “Caroline Oresteia” perto do “X” no rodapé.
Então, estava feito.
CAPÍTULO
TRÊS

Meu pai diz que um barqueiro não segue homem nenhum, apenas o rio. Um
barqueiro é livre.
Quando saí para a varanda da sala do mestre da baía, sabia que não era
verdade. O pergaminho que eu tinha em mãos me dizia isso. Ele me
subjugava com seu peso.
– Vou escoltá-la até as docas, é claro – disse o comandante. Ele não
parecia desejar me escoltar mais do que eu desejava ser escoltada por ele.
Acho que ele estava se coçando para partir o quanto antes com sua
companhia e se dirigir aos deveres importantes em Akhaia.
– Eu provavelmente não vou chegar longe, mesmo que parta agora. O
vento estava praticamente morto quando entramos em Pontal de Hespera.
Ele franziu o cenho.
– Estava?
Uma brisa fresca do leste esfriou o suor em minha testa.
– Engraçado – eu disse. – O vento mudou. O vento está soprando do leste,
do mar.
Por um instante, achei poder sentir o cheiro de sal no ar. Mas não era
possível. Pontal de Hespera ficava bem no interior.
Ergui a cabeça para olhar bem nos olhos do comandante.
– Eu não vou partir sem me despedir.
Eu tinha certeza de que ele ia me negar isso, mas não negou.
– Seu pai está na cela. Espero que você volte em cinco minutos.
Encontrei Fee do lado de fora da detenção, agachada, com os dedos
membranosos estendidos na grama. Seus olhos brilhavam suavemente no
escuro, duas orbes vidradas.
– Eu vou a Valonikos. – Eu mesma mal conseguia acreditar nas palavras. –
Você vem comigo? Por favor? – O acordo dela era com meu pai, não comigo.
Honestamente, eu não saberia o que fazer se ela dissesse não. Barcas podem
ser navegadas por apenas uma pessoa, mas são projetadas para uma
tripulação de pelo menos dois.
Ela se levantou num pulo e me cutucou com o ombro, tocando-me logo
acima do cotovelo. Os homens-sapos não são pessoas altas.
– Ajudo – disse ela.
– Obrigada, Fee – respondi. – Não consigo fazer isso sem você.
A cadeia era um barraco úmido de teto baixo. Eu quase bati a cabeça no
candeeiro pendurado na viga. O lugar fedia a suor e mofo, e duvidei que a
palha que cobria o chão estivesse limpa. Barras enferrujadas dividiam o lado
direito do aposento em duas celas. A primeira estava vazia. Meu pai estava
sentado em um banco de três pernas, na segunda cela, com o casaco
desabotoado caindo às suas costas.
Ao som da porta se fechando, ele ergueu os olhos. Um olho estava
vermelho, mas, fora isso, ele parecia perfeitamente tranquilo. Fiquei aliviada.
Corri e me ajoelhei ao lado de sua cela, sem me importar que a palha úmida e
podre sujasse minha calça.
– Pai, não fique com raiva de mim. – As palavras saíam abruptamente. –
Eu disse ao comandante que eu vou fazer.
Seus dedos agarraram as barras.
– Carô, não. Não.
Lágrimas queimaram meus olhos e minha garganta.
– Eles iam mandá-lo para um navio prisão. E tomar a Cormorant… –
expliquei o que tinha acontecido. Quando terminei, minha voz se calou no
silêncio da sala escura.
Meu pai esfregou o queixo com o rosto inusitadamente imóvel. Eu me
preparei para uma repreensão. Eu tinha sido inconsequente. Estava apostando
nossas vidas, e a Cormorant. Mas ele não disse nada.
– Você não acha que eu estou pronta? – ousei sussurrar minha dúvida em
voz alta. – Você disse que, quando meu destino surgisse à minha frente, eu
saberia. – Empinei o nariz. – E se for isso?
Ele trocou um olhar com Fee.
– Ah, Carô, é claro que você está pronta. – Ele olhou para as próprias
mãos. – Talvez eu é quem não esteja pronto.
– Aquele cúter não conhece as terras dos rios. Mas eu, sim – funguei. – Eu
as conheço quase tão bem quanto você. Sei que você estava tentando me
proteger quando disse a ele que não iria levar a carga. – Toquei o bolso onde
eu tinha guardado a carta de corso. – Mas eu posso fazer isso.
– Não é exatamente a viagem mais fácil – suspirou meu pai. – Não é o que
eu teria escolhido para ser sua primeira entrega solo. Acho que agora é tarde
demais. Você já assinou o contrato?
Fiz que sim.
– Espero que você o tenha lido de cabo a rabo.
Eu revirei os olhos.
– Pai.
O comandante bateu bruscamente na porta. Meus cinco minutos estavam
quase no fim. Esfreguei os olhos com o suéter para que o homem não visse
que eu tinha chorado.
Meu pai olhou fixamente para a porta.
– Ayah, deixe que ele entre! Eu gostaria de dizer a ele o que eu penso,
gostaria, sim. – Seu olhar dardejou até Fee, em seguida retornou a mim. –
Carô, escute. O que você precisa saber sobre os deuses é que eles podem ser
traiçoeiros. Não tenha pressa para chegar a seu destino. Ele pode não ser o
que você espera, é só.
– O que você quer dizer com isso?
– Um deus faz o que… – ele hesitou. – O que ele quer. Um deus não pode
ser forçado nem apressado. – Ele parecia querer dizer mais, mas apenas
sacudiu a cabeça. – Bom, o que está feito, está feito.
Eu não sabia ao certo como interpretar suas palavras.
– Chega de lágrimas, garota. Você é uma Oresteia. – Meu pai pegou minha
mão através da grade e a segurou. A sensação de aperto em meu peito se
aliviou. – Entregue esse caixote. Pegue a rota do rio para o norte, passando
por Doukas. Não mexa com Iantiporos nem com o canal. Essa parte da costa
é cheia de piratas. E não se demore em nenhuma cidade. Se precisar de
ajuda… – acrescentou ele, com relutância. – Chame o povo de sua mãe.
Eu ergui as sobrancelhas. Meu pai nem sempre se dava bem com eles.
– Bom, pelo menos como último recurso – disse ele. – Escute, essa carta
de corso? Você não deve usá-la a menos que seja uma emergência. Chame a
menor atenção possível sobre si mesma. Mostrar essa carta por aí não vai
fazer nada além de levá-la à morte, não importa o que diga esse comandante.
Eu não parava de assentir com a cabeça, embora suas palavras escorressem
por mim como chuva. Doukas. Esconder a carta. Nenhuma cidade.
Sobrepujada pelo choque daquela noite, eu mal conseguia absorver aquilo.
– Você pode fazer isso, Carô – disse com firmeza meu pai. – Preste
atenção nisso: eu preferia ter a Cormorant em suas mãos do que nas de
qualquer outro barqueiro da Nós e Bortalós.
– Até nas do capitão Krantor?
– Ayah, até nas dele. Ele não é um Oresteia. Você é.
Uma memória nadou até a superfície. Eu tinha sete anos de idade e estava
ouvindo meu pai contar histórias enquanto minhas pernas balançavam do
assento do cockpit. Eu podia sentir o cabelo esticado em dois pequenos
coques dos dois lados da cabeça. Nós estávamos indo para o Lago Nemertes,
e o vento do mar soprava forte contra meu rosto.
Havia uma gaivota empoleirada na amurada ao meu lado, com as penas
arrepiadas. Ela me encarava com um olho negro e reluzente.
– Sua bisavó uma vez contrabandeou quatro barris de rum pelo jardim dos
fundos do mestre da baía de Siscema – meu pai disse isso com a mão apoiada
frouxamente sobre a cana do leme. – Porque ela era muito corajosa. Meu pai
enfrentou uma gangue de bandidos do rio com nada além de uma faca e uma
frigideira, e viveu para contar a história, sabe como? – ele apontou para mim.
– Ele era muito corajoso. Durante a guerra, eram pessoas como os Oresteias e
os Krantors que levavam seus barcos até além dos bloqueios. E você sabe por
quê?
Eu tinha ouvido essa história muitas vezes.
– Porque os Oresteias eram muito corajosos.
Ele me cutucou e me fez rir.
– Ayah, você tem razão.
Fechei os meus olhos com essa lembrança, e com o mundo girando a
minha volta. Eu sabia como ler uma carta de profundidade, como rizar e
guardar as velas. Eu tinha as habilidades, mas nunca navegara a Cormorant
sem meu pai. Será que eu era corajosa o bastante?
– O vento mudou – disse meu pai, trazendo-me de volta à realidade.
Não perguntei como ele sabia, encerrado na cela diminuta cuja única
janela estava fechada. O deus no fundo do rio dizia coisas assim a ele.
Meu pai relaxou encostado na parede e fechou os olhos.
– É o momento – sussurrou ele. – Não posso impedi-la.
Antes que eu tivesse tempo de perguntar o que ele queria dizer, o
comandante Keros assomou à porta.
– Hora de ir.
Saí cambaleante na noite enfumaçada, com Fee caminhando junto, à
minha esquerda. Sua presença era como a calmaria depois de uma tempestade
forte. Pelo menos, eu não estava completamente sozinha.
Diante da Nós e Bortalós, vi as silhuetas de vários barqueiros reunidos na
rua. Alguém havia acendido um cachimbo, suas cinzas eram uma mancha
solitária de luz, enquanto outros homens conversavam com vozes abafadas.
Por um momento, eu me permiti imaginar que o capitão Krantor ou a capitã
Brixton pudessem intervir. Todos tínhamos pistolas, e éramos em maior
número. Podíamos atacar a cela. Resgatar meu pai.
Senti a carta enfiada no bolso e soube que era uma esperança vã. Os
barqueiros tinham seus próprios problemas. Em relação a mim, eu tinha
assinado um contrato. Eu iria para Valonikos.
O inspetor das docas tinha carregado o caixote em um barco a remo, junto
com um cesto de provisões.
– Minha mulher assou esse pão fresquinho esta manhã. Tem café, também,
e o pouco de manteiga que consegui obter. – Ele se afastou do pilar do cais e
apontou o barco em direção à Cormorant. O comandante estava sentado no
assento de trás, aparentando tédio.
No caminho de volta a nosso bote, Fee e eu estávamos em silêncio. Ela, na
verdade, nunca dizia muito, e eu estava ocupada demais revirando todas as
preocupações e perguntas em minha cabeça. O barco a remo do inspetor das
docas já estava à espera, boiando preguiçosamente na sombra projetada pela
Cormorant, quando nos aproximamos, remando. Ignorei-o enquanto
observava a posição dos cabos e do equipamento no convés e desci para
inspecionar tanto a cabine como o compartimento de carga. Nada parecia fora
de ordem. Ainda assim, a ideia de que alguém tinha remexido nossa barca
sem nossa permissão me incomodava.
Os homens apertaram cordas em torno do caixote e o ergueram sobre o
convés. Não parecia nada especial. Era simplesmente um caixote de carga
grosseiro de madeira coberto por um encerado de lona.
Fingi esbarrar o quadril contra a borda da caixa. Ela não se mexeu. O que
quer que houvesse dentro dela, era pesado.
Talvez fosse ouro. Um caixote cheio de tesouros, sem dúvida, era
suficiente para atrair os Cães Negros. Mas eu me lembrei do que Thisbe
Brixton dissera: Eles nem levaram nada. Então não era ouro.
– Você não deve abri-lo – disse com seriedade o comandante. – Na
verdade, vai ser melhor para você se jamais tocá-lo. Você entende?
– Então, eu nunca vou vir a saber o que estou levando?
– Senhorita Oresteia, você assinou um contrato.
Isso estava no contrato? Achei que devia ter lido com mais atenção, mas
naquele momento era tarde demais para discutir isso. O comandante fez um
breve gesto de despedida e desceu para o barco a remo sem dizer mais uma
palavra. O inspetor das docas, porém, parou no alto da escada de cordas.
Ele segurou meu pulso em uma pegada forte. Eu me assustei.
– Diric Melanos é um assassino… – disse ele em um sussurro baixo e
urgente. – E um traidor. Fique atenta. O Victorianos, de Iantiporos. Ele tem
velas brancas e é pintado de azul. Ele só estava usando uma vela principal e
uma de estai quando eu o vi. – Ele me soltou. – Que a corrente vos leve.
CAPÍTULO
QUATRO

Apesar de tudo, meu estado de ânimo pesado melhorou quando o vento


encheu a vela da Cormorant.
– Vamos para o Lago das Garças – eu disse a Fee. – Podemos pernoitar lá.
O Lago das Garças é um lago pantanoso situado vários quilômetros dali,
rio abaixo. O canal estreito que levava a ele, raso demais para acomodar
qualquer coisa maior que uma barca, ficava quase escondido por árvores, o
que fazia do lugar um conhecido ponto de esconderijo de contrabandistas. Os
piratas no Victorianos talvez nem soubessem do local – eles, sem dúvida, não
seriam capazes de passar pela entrada.
Olhei para trás e percebi que a cidade de Pontal de Hespera tinha quase
desaparecido à popa. Apertei os olhos no escuro e vasculhei telhados à
procura de um último vislumbre da cadeia. Eram seis dias dali até Valonikos.
Talvez mais, dependendo do vento e do clima. Meu pai poderia ficar duas
semanas na prisão apertada do mestre da baía sem nada onde dormir além de
um monte de palha que fazia coçar.
E isso se nada desse errado. Um momento atrás eu me senti quase
entusiasmada por comandar sozinha a Cormorant. Então, fui tomada pela
culpa. Aquele transporte de carga não deveria ser divertido. Nossa situação
era de uma seriedade mortal.
Velejar à noite pode ser perigoso. Às vezes, se faz isso, claro, afinal por
que outra razão as proas das barcas seriam pintadas de branco? O trecho norte
do Rio Melro é perigosamente estreito, com curvas e meandros para desafiar
o melhor timoneiro, mas era impossível pedir um clima melhor que o daquela
noite. A brisa estava constante, e as nuvens em movimento rápido não
bloqueavam o luar. Eu podia ver muito bem; e Fee, ainda melhor. Visão
noturna é uma das habilidades mais valiosas de seu povo.
Três horas se passaram sem incidentes, até que, finalmente, meu estômago
roncou, e eu lembrei que nós não tínhamos jantado. Devia ser quase meia-
noite. Flexionei a mão com câimbra, passei o leme para Fee e entrei pela
escotilha da cabine.
A pequena área de habitação da Cormorant era dividida em três seções por
grandes vigas curvadas, como os ossos de uma baleia. As duas cabines da
frente tinham cortinas de lona que podiam ser fechadas para dar privacidade,
mas nós, na maior parte do tempo, as deixávamos abertas, para dar a ilusão
de mais espaço. O beliche de meu pai, na cabine da proa, era o maior. Meu
beliche ficava na seção do meio, aninhado na lateral de estibordo. Em frente a
ele, a rede de Fee pendia do teto.
A área comum tinha uma mesa com uma toalha xadrez colorida, bancos
embutidos e uma extensão que podia ser desdobrada para abrir espaço para
companhia. Do lado de bombordo, uma pequena bancada lateral estava
enfiada entre uma parede de armários. O fogão de ferro ficava abrigado ali, e
sua chaminé viajava por um buraco no teto. Era uma embarcação simples,
mas estava em forma.
Havia dois peixes já limpos e filetados na bancada lateral. Ao vê-los, fui
atingida por um raio de pura emoção. Meu pai tinha pescado os peixes
naquela tarde. Nós devíamos ter jantado juntos, à luz aconchegante de
lamparina da cabine.
Derreti manteiga na frigideira, espalhei migalhas de pão sobre o peixe e
coloquei os filés macios lado a lado. A frigideira chiou.
A Cormorant deu uma balançada, como se alguém tivesse sacudido o
braço de quem estivesse no leme. Agarrei a borda da bancada. Fee era uma
timoneira tão boa quanto eu ou meu pai. Isso não era de seu feitio.
Um coaxar soou, vindo do lado de fora. Problemas. Peguei a pistola extra
de meu pai no armário e subi a escada.
O luar brilhava nos olhos redondos de Fee. Em silêncio, ela ergueu um
dedo comprido e apontou.
Um navio, disposto ao longo da margem a estibordo. Suas velas brancas
fantasmagóricas estavam recolhidas e amarradas para a noite. Não era uma
barca – tinha quase vinte pés a mais, e o mastro era posicionado mais atrás,
bem no meio do barco.
Um cúter.
– Verificar – murmurou Fee, correndo para frente. Ela deu a volta pela
borda da cabine e desapareceu.
Minha mão começou a suar na cana do leme.
Eles podiam estar dormindo ou bebendo e jogando na coberta, mas, sem
dúvida, teriam posicionado um vigia. Nós tínhamos içado uma lanterna no
alto de um dos estais, como faz qualquer barca viajando à noite. Por um
golpe fantástico de sorte, nossa vela a bloqueava da vista do cúter. Se eu
mudasse de curso e seguisse junto ao lado de bombordo do rio, talvez o
homem de vigia não nos notasse. Por outro lado, nós pareceríamos estar
tentando evitar ser vistos. O que daria a eles uma razão para nos perseguir.
Tomei minha decisão e virei a bombordo. As árvores que estendiam seus
galhos sobre o rio projetavam sombras compridas sobre a água. Uma barca
com velas negras e perfil baixo poderia passar flutuando sem ser percebida
em meio àquelas sombras. Talvez conseguíssemos adentrar no Lago das
Garças. Ele não podia estar longe, naquele momento.
Fee voltou pelo convés. Pelo seu rosto, eu já sabia o que ela tinha visto.
– Eles – sussurrou ela.
Olhei para estibordo. Tínhamos chegado à mesma altura da popa do cúter
adormecido. O vento soprou e fez com que nosso cordame rangesse. Eu
prendi a respiração.
Por algumas batidas prolongadas de meu coração, achei que iríamos
conseguir passar por ele. Achei que o homem de vigia não tinha visto nossa
proa branca cortando a água.
Eu estava errada.
– Quem vem lá? – O grito ecoou nítido sobre a água. Um sino badalou e
ressoou repetidas vezes na escuridão.
– É uma barca passando! Uma barca!
– Vocês aí, levantar velas. – Essa voz era brusca e autoritária. Eu me
perguntei se era o notório capitão Melanos. – Para os canhões! Mosquetes!
Tudo na Cormorant era feito de madeira, lona ou corda. Se um daqueles
foguetes nos atingisse, ela iria queimar como um graveto. Igual à Fabulosa.
Igual à Jenny.
– Fee, pegue o leme! – Agachei-me no convés de estibordo e carreguei a
velha pistola de meu pai.
Um estrondo alto rompeu o ar. O barulho passou por mim e, com ele, uma
onda de excitação nervosa. Por vários segundos, eu fiquei ajoelhada, imóvel e
atônita, antes de perceber que eles tinham errado.
Apontei a pistola a meia-nau e apertei o gatilho. A arma deu um coice, e
seu recuo reverberou pelos ossos de meu braço. Eu não achei que tinha
acertado alguma coisa. Tudo o que eu podia ver eram as formas espectrais
das velas enquanto a tripulação do cúter trabalhava para içá-las.
Naquele momento, eu entendia a tolice da história de meu pai sobre seu
avô. Podia ser verdade ou apenas uma mentira que ficou maior e mais
comprida ao ser contada, mas não importava o quanto eu fosse corajosa: para
enfrentar piratas, uma pistola era muito melhor que uma faca e uma
frigideira.
– Posicionem esses malditos canhões, e não levem a noite inteira para
fazer isso!
Eu girei no cockpit e apontei para a lanterna que balançava do estai do
traquete da Cormorant. Eu a apaguei em minha primeira tentativa, com um
grande estrondo. O vidro quebrado tilintou ao atingir o convés.
Uma verdadeira pena, isso. Se nossas vidas não estivessem em um terrível
perigo, eu teria parado para admirar esse disparo.
Os mosquetes soaram outra vez, três em seguida.
Meu ombro direito doeu.
– Ai! – gritei, levando a mão ao ferimento.
O vento soprou em meu rosto quando fizemos uma curva e saímos
momentaneamente da vista do cúter. Segurei o ombro e tentei calcular em
minha cabeça. Quantos minutos para que eles levantassem as velas? Quanto
tempo até nos alcançarem? O sangue corria quente e escorregadio entre meus
dedos.
Eu me virei para Fee.
– Fique atenta à entrada do Lago das Garças – eu disse em voz baixa. –
Talvez nós possamos despistá-los.
Estávamos perto. Normalmente, eu marcava o caminho para o interior do
lago pantanoso pela linha de árvores e a casa de uma fazenda localizada mais
longe, nos campos. Mas estava tão escuro que eu fiquei aterrorizada de
perder a curva. Ou de já tê-la perdido. Um erro, agora, significaria a morte.
O luar revelou uma abertura na margem do rio, onde os topos felpudos das
tifas eram pontos negros contra os juncos. Um alívio refrescante percorreu
meu corpo.
– Ali!
Fee puxou a cana do leme com força e fizemos a curva. Borbulhas
correram em um turbilhão contra o leme. Água bateu contra o casco. Acima,
galhos de árvores pendiam baixos por sobre o canal estreito. Debrucei-me
para fora e observei a margem passar a poucos centímetros de distância.
Galhos raspavam o topo de nossa vela enquanto eu corria para prender a
escota, esquecendo o ferimento em minha pressa para caçar aqueles montes
de cabos. A verga superior se prendeu entre as árvores, e nós paramos
repentinamente, a sete metros do rio principal. Ramos quebrados com folhas
e gravetos tinham caído no convés.
Fee e eu trocamos olhares atemorizados. Estávamos presas.
– Silêncio – ela sussurrou, largando a cana do leme. Fee deslizou para o
chão sob o assento. Eu fiz o mesmo. As árvores tinham engolido nossa vela
negra e nos envolvido em escuridão.
Eu ouvi o cúter primeiro – o rangido de sua retranca e o chacoalhar de
cabos contra blocos de madeira e o braço de verga. Então eu vi seu gurupés
alto apontando para o ar como um dedo. Inspirei repentinamente, apavorada.
Agora o casco dele estava à vista e passou por nós pelo que pareceu uma
eternidade, embora devessem ter sido apenas segundos. Eles não podiam ter
mais de oitenta pés de comprimento.
Enquanto o volumoso cúter passava, o luar brilhou nas letras pintadas
sobre o amplo gio da popa. Elas diziam, em azul delineado a ouro,
VICTORIANOS, e, embaixo, em letras menores, seu porto de origem, IANTIPOROS.

O navio passou muito perto. Parecia que um rufar de tambores o


acompanhava, em ritmo ameaçador. Depois que a popa do cúter foi engolida
pela escuridão, percebi que era apenas meu coração.
Eu estava tão abalada que meus dentes batiam. Olhei para os galhos de
árvore ao alto, completamente emaranhados no nosso mastro e nas adriças.
Fee deu de ombros.
– Que confusão.
Era isso.
– Bom – eu disse. – Pelo menos não estamos mortas.
– Está tudo bem – sussurrou Fee, cutucando meu braço bom.
– Sei que está tudo bem. – Examinei o buraco sangrento em meu suéter. –
Só que eles podiam ter me matado.
Foi só de raspão. Quando eu era pequena, uma vez tentei segurar o cabo da
âncora no momento em que ela foi lançada e queimei a pele da mão,
deixando-a em carne viva. Isso não parecia pior. A dor já estava diminuindo.
E, quando o pânico recuou, outra coisa rapidamente tomou seu lugar.
Raiva.
Peguei uma lanterna no chão embaixo do assento, enquanto limpava o
sangue da calça. Minhas mãos lutaram contra a pederneira, mas finalmente
ela acendeu. A lanterna, envolta em vidro colorido, devia ser usada como
sinal durante tempo ruim. Ela lançava um facho agourento de luz vermelha
enquanto eu caminhava pelo teto da cabine. Folhas e galhos cobriam o
convés, arrancados das árvores acima quando nosso mastro e a verga da vela
se prenderam. Eu os chutei de meu caminho.
O caixote coberto de lona assomava no círculo de luz da lanterna. O que
havia dentro dele pelo que homens matariam? Cautelosamente, me
aproximei, como se a caixa pudesse se abrir de repente para liberar monstros,
Cães Negros ou outros terrores desconhecidos.
– Proibido – alertou Fee às minhas costas.
Eu hesitei. A escuridão ao redor era silenciosa, exceto pelo cricrilar de
grilos e o coaxar de sapos. O vento movia as folhas no alto.
Eu estava quase decidida a jogar eu mesma aquele maldito caixote na
água. Nós nunca pedimos para nos envolver em nada daquela confusão – nem
eu, nem meu pai, nem os Singers, que a corrente os leve. Os Cães Negros,
assim como aquele comandante, achavam que pessoas como nós eram
descartáveis. Bom, essa era minha barca. Essa era minha vida, e eu estava
assumindo o controle de volta. Naquele instante.
Arranquei o encerado de lona. Ele caiu, amarfanhado.
Madeira arranhou madeira quando puxei a tampa do caixote. Ela caiu
sobre a lona removida. Eu ergui a lanterna.
– Ah! – Exalei, pois não consegui pensar em uma única coisa inteligente a
dizer.
Havia um rapaz no caixote.
CAPÍTULO
CINCO

A luz o atingiu, e seus olhos se abriram repentinamente.


Eu dei um grito, peguei em minha cintura a pistola de meu pai e apontei o
cano para a cabeça do rapaz.
Ele me olhou com seus olhos azul-claros apertados, ofuscado pelo brilho
da lanterna. Fez uma careta e esfregou a nuca enquanto se desenrolava do
leito de palha. Percebi que ele tinha minha idade, ou talvez fosse um pouco
mais velho.
Ele cuspiu um monte de poeira.
– Abaixe essa coisa ridícula. – Ele tirou um chumaço de palha do peito e o
jogou para o lado.
Olhei para Fee, que espiava o interior do caixote com olhos arregalados.
Ele tinha uma estranha coloração estrangeira, com uma nuance azulada em
sua pele que a tornava quase translúcida. Seus cachos eram negros ou
castanho-escuros – à noite, eu não conseguiria dizer a diferença. Entre eles,
alguma coisa reluziu à luz da lanterna. Uma granada diminuta que ele tinha
na orelha, percebi. Sua roupa era elegante, toda de cores vivas e com
bordados elaborados, e ele usava uma jaqueta solta amarrada na cintura por
uma corda franjada de seda.
– Quem são vocês? – perguntou ele.
Dei inadvertidamente um passo para trás. Minha raiva tinha se suavizado
em uma confusão atordoante.
– Caroline Oresteia – respondi automaticamente, em seguida me censurei
por isso. Cabia a mim fazer as perguntas. Eu me aprumei tentando soar
autoritária.
– Quem é você?
Ele revirou os olhos, como se pedisse paciência aos deuses.
– Quero dizer, quem é seu pai? Quem é o povo dele?
– O nome dele é Nicandros Oresteia. Esta é sua barca. – Que coisa esnobe
de se perguntar. Meu pai diz que apenas um tolo olha para o nome de um
homem antes de olhar para o próprio homem.
– Uma barca? – O lábio do estranho se curvou. – Por que confiaram esta
tarefa a vocês?
A irritação ficou visível em minha voz.
– Recebi esse caixote e uma carta de corso do mestre da baía em Pontal de
Hespera.
– Muito bem. E quantos homens você tem?
– Homens? – ecoei, começando a achar que estavámos tendo duas
conversas diferentes, e nenhum de nós entendia o que o outro estava dizendo.
– Homens. Soldados. Armas. – Ele segurou a borda do caixote e examinou
o convés, nitidamente sem se impressionar nem um pouco com o que viu. –
Não é apenas você, é?
– Ah, ayah, eu tenho toda uma companhia dos melhores soldados da
infantaria da margravina escondida no compartimento de carga. – Senti como
se os deuses estivessem se divertindo um pouco comigo, e não gostei disso.
Eu mantive a pistola apontada para ele. – Você ainda não me disse quem é.
– Meu nome é… – ele hesitou. – Tarquin – concluiu, de maneira um tanto
pomposa para alguém sentado em um caixote de carga. – Tarquin Meridios.
Tenho a honra de ser um mensageiro do cônsul akhaiano.
Em minha opinião, era honra em excesso. Não consegui conter o riso que
escapou. Seu jeito formal de falar não combinava com nosso ambiente. Quem
exatamente ele achava que era?
Ele olhou fixamente para mim.
– Leve-me imediatamente ao seu pai.
– Ele está preso em Pontal de Hespera.
– Cada vez pior – resmungou ele. – Isso não é Valonikos. Por que estou
acordado? Isso parece o meio do nada.
– Quando as pessoas estão tentando me matar, eu gosto de saber o porquê.
– Esta caixa… – explicou ele devagar, como se falasse com uma pessoa
simplória. – Foi encantada por um poderoso homem das sombras para me
fazer dormir por toda a viagem até Valonikos. Você quebrou esse encanto
quando abriu a caixa… De maneira muito estúpida, se me permite
acrescentar.
Ele me surpreendeu, ficando de pé em um pulo. Eu dei um passo para trás.
Ele era quase trinta centímetros mais alto que eu.
– Eu não lhe disse para guardar esse dispositivo? – perguntou ele, olhando
para a arma.
– Desculpe se não estou acostumada com rapazes chocando de caixotes
fechados – respondi bruscamente. – Talvez isso aconteça o tempo todo no
norte, mas nunca acontece por aqui.
– Como se eu viajasse desse jeito regularmente – ele murmurou, enquanto
alisava a roupa. Não adiantou muito. Ela estava muito amarrotada e cheia de
palha. – E não diga “chocar”. Eu não sou uma galinha.
– Foi isso o que pareceu. – Eu me sentia pasma com toda a situação. –
Escute, você pode apenas… Não sei… Voltar aí para dentro?
– Não, não posso voltar – ele falou em um tom sarcástico, com o sotaque
pronunciado de um nortista. – A menos que você seja um homem das
sombras.
– Claro que não sou.
– Claro que não é – ele me imitou. – Ora, isso só pode ser feito por um
homem das sombras. Eles deviam ter dito a você que não abrisse a caixa sob
nenhuma circunstância.
Eu não tinha resposta para isso. Ele se aproveitou de meu silêncio,
estreitou os olhos e disse:
– Vejo que eles lhe disseram. Só um grande tolo desrespeita os conselhos
dados por seus superiores.
– Não sou nenhuma tola – eu disse. – E o que você quer dizer com
superiores?
Acima de nós, um galho de árvore estalou alto, nos assustou e fez com que
ficássemos em silêncio.
Um calafrio desceu pela minha nuca. A noite pega pequenos ruídos e os
amplifica. As sombras transformam insetos minúsculos em monstros. Eu me
segurei e não olhei para trás, para o escuro.
Fee apontou a cabeça em direção ao rio.
– Batedor – sussurrou ela, pulando pela amurada do barco com um barulho
suave ao cair na água.
Tarquin seguiu-a fixamente com os olhos.
– Nunca vi um homem-sapo antes. – O lábio dele se curvou. – Eu não
esperava que fosse tão… verde.
O vento agitou os galhos outra vez e fez com que eles batessem em nosso
mastro. Os olhos de Tarquin cruzaram com os meus no círculo da luz da
lanterna, então afastaram-se rapidamente para espiar com atenção a noite que
nos envolvia. De algum modo, eu soube que aquele ruído o havia perturbado
também.
– Vamos conversar lá dentro – eu disse em voz baixa enquanto pegava a
lanterna. Percebi como tinha sido burrice ficar parada na luz. O Victorianos
tinha descido o rio, mas podia voltar. Mesmo agora, ele podia estar ancorado
fora do canal, ouvindo nossas vozes se elevando e se atenuando. Qualquer
pessoa criada no rio sabe como o som viaja sobre a água à noite.
Ele assentiu com a cabeça. Estávamos, de repente, em completa afinidade.
Que ele estragou assim que entramos na cabine.
– Ugh, caramba! Que fedor é esse? – Ele cobriu o nariz com a manga
bordada de sua túnica e se encolheu de volta contra os degraus.
Nuvens de fumaça enchiam o recinto.
– O peixe! – peguei um pano e caminhei através da fumaça.
Em nossa urgência para escapar dos Cães Negros, eu tinha me esquecido
do peixe frito. Ele agora estava arruinado, enegrecido e grudado no fundo da
frigideira. Enquanto eu abria as vigias e as empurrava para fora, meu
estômago gemeu em protesto.
– Este é um barco grande – a voz abafada de Tarquin demonstrava
desprezo. – Por que razão a cabine é tão apertada?
– Esta é uma barca de trabalho. A maior parte do espaço é para carga. –
Raspei a crosta negra e grudenta da frigideira e a deixei de molho em um
balde com água.
Não foi surpresa ele não ter oferecido ajuda. Ele me observou, respirando
por trás da gola da túnica, que tinha sido perfurada por fragmentos de palha.
Devia coçar, porque ele a esfregava distraidamente de um lado para o outro.
Por baixo da túnica, eu podia ver um triângulo de peito nu. Ele se debruçou
para frente com os ombros curvados, tentando evitar que a cabeça atingisse a
lanterna, que balançava.
– Tem uma camisa limpa aí dentro, se você quiser. – Apontei com a
cabeça em direção ao armário. – Meu pai não é tão alto quanto você, mas
acho que vai caber.
Eu meio que esperava que ele fizesse algum comentário rude, mas ele
apenas franziu o nariz para as roupas dobradas. Eram as roupas de um
barqueiro, de tecido simples.
Estudei o estranho enquanto ele remexia no armário, perguntando-me que
mensagem ele levava para que os Cães Negros tanto o quisessem morto. E
por que ele estava em um caixote de carga, afinal de contas? Era um jeito
peculiar e ruim de viajar – eu não podia imaginar quantos hematomas ele
devia ter.
– Por que você não faz com que seu homem-sapo limpe isso? – Ele
prendeu o último botão e gesticulou desdenhosamente com a mão para a
frigideira. – Nós temos coisas a discutir.
– Ela não é meu homem-sapo.
– Você não é sua dona? – A camisa de meu pai caía solta sobre sua
estrutura mais magra, mas as mangas terminavam centímetros acima do
pulso.
Eu recuei, horrorizada.
– Ela não é uma escrava! Ela está em nossa tripulação. Meu pai lhe paga
um salário.
– Tem certeza? Sempre me disseram que, nas terras dos rios, os homens-
sapos são escravos.
– Fee trabalha neste barco desde que eu tinha nove anos de idade. Porque
ela escolhe estar aqui. Achei que você tinha dito que era um mensageiro.
Você nunca saiu de Akhaia antes? – Mas eles tinham homens-sapos em
Akhaia, também, ao longo dos rios e dos canais. Será que ele não tinha estado
em lugar nenhum?
Ele ficou vermelho, mas não disse nada.
Essa conversa sobre homens-sapo fez com que eu me preocupasse com
Fee. Eu mordi o lábio e tentei me lembrar de quanto tempo fazia desde que
ela tinha mergulhado na água.
– Você sabia que está sangrando? – disse Tarquin em uma voz entediada.
– Claro que sei. – Examinei o buraco em meu suéter, onde uma nódoa
escura de sangue manchava a lã. Na verdade, eu tinha esquecido. Peguei a
barra do suéter e comecei a puxá-lo cuidadosamente pela cabeça.
– Vire-se – ordenei a ele.
– Como?
– Preciso tirar a blusa. Vire-se. – A camisa que eu usava por baixo estava
tão puída que era quase transparente. Eu não ia deixá-lo dar uma olhada, de
jeito nenhum. Em nada. E eu não queria que ele risse de como éramos pobres.
Nós éramos pessoas trabalhadoras. Não havia vergonha nisso, mas eu senti
uma onda de vergonha mesmo assim.
Ele olhou para a parede.
– Enquanto faz isso – disse ele, mexendo com a joia em sua orelha –, vou
pedir que me conte tudo o que ocorreu até o momento em que você abriu o
caixote.
Eu dei um suspiro.
– Você não consegue falar como uma pessoa normal?
Ninguém que eu conhecia falava desse jeito, empolado e formal. Nem
mesmo minhas primas da parte de minha mãe, e elas eram garotas da cidade
que viviam em uma bela casa.
Ele puxou outra vez a orelha.
– Por que você não para de fazer isso? – perguntei. – Tocar seu brinco?
Ele o alisou com a ponta do dedo.
– Isso indica que sou membro de uma grande casa akhaiana – disse ele. –
Uma casa da qual você, sem dúvida, não ouviu falar.
Eu bufei.
– Provavelmente, não.
Abri o baú de medicamentos de meu pai, removi uma lata de sálvia e um
rolo de atadura. Enquanto limpava o raspão sangrento em meu ombro, relatei
a história do que tinha acontecido naquela noite, começando com nossa
chegada depois da curva que dava para Pontal de Hespera e terminando com
os Cães Negros.
Eu vesti o suéter de volta outra vez e fiz uma careta quando ele se prendeu
na atadura.
– Tudo bem, terminei. – Peguei a garrafa de brandy do meu pai e pus dois
copos na mesa. Minhas entranhas ainda estavam trêmulas de nossa fuga
acirrada. – Você quer uma bebida?
Tarquin, que ficara surpreendentemente quieto durante minha história, deu
de ombros. Eu tomei isso como um sim. Ele aceitou o copo e puxou-o pela
mesa. Percebi manchas escuras sob seus olhos, o que achei estranho. Com
certeza, um sono encantado devia significar muito… Bem, muito sono.
Engoli o brandy, e seu sabor agradável queimou minha garganta. Eu me
senti encorajada imediatamente. Ninguém fica bêbado depois de um gole de
bebida, por isso provavelmente era bravata ou minha própria imaginação. Eu
não me importava.
– Agora é sua vez. – Eu me encolhi de lado na cabine e joguei os pés para
cima do banco. – Por que você estava naquela caixa? Por que os Cães Negros
estão atrás de você?
– Eu vou lhe contar minha história – disse ele. – Pois, embora você seja
simultaneamente rude e sem os modos de uma dama, parece que estou preso
com você neste pedaço de lixo flutuante. Imagino que vou precisar de sua
ajuda.
– Não ferra – eu disse. Nós olhamos um para o outro, de lados opostos da
mesa, em aversão recíproca.
– Muito bem – ele passou o dedo pelo copo, mas não bebeu. – Vamos falar
abertamente. O que você sabe sobre Akhaia?
– Sei que a capital é Trikkaia – eu disse. – Sei que lá existe uma loja no
mercado que vende o melhor ensopado de peixe no norte das terras dos rios.
– A verdade é que eu nunca havia explorado além das docas e da região do
mercado.
– Isso é quase nada. – Ele passou a mão no cabelo e o despenteou. Minha
ignorância pareceu deixá-lo consternado. – O que você sabe sobre a sucessão
akhaiana?
– Uhm. – Eu tinha apenas uma ideia muito vaga do que era uma sucessão.
Algo a ver com a realeza. E herdeiros?
– É tudo muito claro. – Ele se levantou e começou a andar pela cabine. –
Os piratas que atacaram você devem ter sido contratados pelos Theucinianos.
Eu não consegui ver o que havia de claro em nada daquilo.
– O que é um Theuciniano?
– Você não sabe? – Tarquin parou e girou para me olhar. – Eu pensei… –
Por um instante, ele pareceu abalado, o que fez com que assumisse uma
aparência mais jovem e mais insegura. – Você disse que esta barca foi
escolhida pelo homem da margravina. Eu supus que ele tivesse lhe contado…
– Me contado o quê?
– A notícia que estou levando para Valonikos. – O lampejo de uma
expressão estranha passou por seu rosto. – O emparca de Akhaia foi
assassinado.
CAPÍTULO
SEIS

– Assassinado – repeti secamente. – O emparca de toda Akhaia. Não acredito


nisso, está bem?
Tarquin cerrou a mandíbula.
– Isso não é motivo para risos.
Akhaia era um império decadente. Quando o margrave de Kynthessa
declarou a independência de sua província da emparquia, ele deu início a um
conflito longo e sangrento, agora conhecido como a Guerra dos Trinta Anos.
Nos duzentos anos posteriores, vários outros territórios separaram-se para
formar repúblicas e cidades-estado menores. Mas, apesar de seu declínio,
nosso vizinho ao norte permanecia formidável. Como o maior país do
continente e berço de nossa cultura, Akhaia projetava uma sombra longa.
Eu me inclinei para frente.
– Por que esses Theucinianos querem matá-lo? O que você está levando,
uma carta, ou algo assim?
– Sim. – Ele olhou com firmeza para a lanterna, cuja luz vermelha
oscilante refletia em suas pupilas. Tive a sensação de que ele estava
decidindo exatamente o que me contar.
– Depois que Valonikos se separou da emparquia para se tornar uma
cidade-estado, certos membros distantes da linhagem real continuaram a
viver ali. No exílio, é claro. O emparca não tem… – ele se corrigiu – não
tinha nenhuma utilidade para eles. Não até agora. A mensagem que levo é
vital para o futuro de Akhaia.
Quando ele parou, eu gesticulei com expectativa.
– E então?
– Então o quê?
Eu cerrei os dentes.
– O que tem na carta?
– É um segredo, obviamente. – Tarquin se aprumou. – Se eu contasse a
todo trabalhador comum do rio os meus assuntos, eu não seria um bom
mensageiro, seria?
Em minha curiosidade extrema, eu estava disposta a ignorar o insulto.
– O que aconteceu com o emparca?
– Ele foi assassinado – sua voz estava rouca. – Por Konto Theuciniano,
que, por desígnio dos deuses, era primo do próprio emparca.
– Era?
Ele dilatou as narinas.
– Um homem que assassina seu próprio sangue não tem honra. Ele não é
um homem. Os Theucinianos sempre foram amargos porque sua linhagem
não herdou a emparquia na Sucessão de 1328. Um absurdo, é claro.
Ele se jogou no assento a minha frente e virou a bebida em um só gole.
– Não sei por quanto tempo eles planejaram o golpe, mas Konto
Theuciniano atacou o palácio e tomou o trono.
Eu me lembrei da pressa do comandante Keros para chegar à capital
akhaiana. Devia ser disso que ele estava falando quando disse que havia
insatisfação na capital. Mas se a notícia do assassinato do emparca já tivesse
chegado ao sul, por que os Cães Negros estavam tão dedicados a caçar
Tarquin? Sua informação não era exatamente um segredo. Havia algo
faltando nessa história, e isso não era a única coisa que estava me
incomodando.
– Você foi o único que eles mandaram? – Eu olhei para ele com
desconfiança. Com sua altura, o excesso de maneirismos e aquela túnica de
seda, ele iria chamar muita atenção nas terras dos rios. Sem falar que ele não
parecia muito experiente. – Com certeza, você não deve ser o melhor que o
consulado tem.
– Não sei o que você poderia saber disso – murmurou ele. – Tenho um
posto diplomático devido à influência de meu pai, apesar de minha juventude.
– Quem é seu pai?
– Ele está no conselho do emparca. Eu… – sua voz vacilou. – Eu não sei
se ele conseguiu sair do palácio. – Sua mão tremia sobre a toalha de mesa
xadrez. Ele me viu olhando para a mão e a recolheu sobre o colo.
Ficamos sentados em silêncio enquanto a lanterna tremeluzia, tempo o
bastante para criar uma sensação de desconforto. Por mais que me irritasse
admitir, ele tinha razão. Eu desejei nunca ter aberto a caixa. Meu pai e eu
éramos contrabandistas, mas não era algo tão aventureiro quanto parecia. Às
vezes, enterrávamos uma carga em algum esconderijo ou dávamos gorjeta a
um fiscal de impostos na calada da noite, mas, na maior parte dos dias, nós
apenas navegávamos de porto a porto. Nada havia me preparado para uma
situação como essa. O comandante devia ter aceitado a sugestão de meu pai e
dado o caixote aos Bollards. Aquilo era demais para mim.
– Tudo bem – peguei um mapa na prateleira, desenrolei-o e o abri sobre a
mesa. – Nós estamos aqui – apontei o dedo sobre a linha serpenteante que
marcava o Rio Melro. – E esta é a cidade livre de Valonikos.
Tarquin acenou com a mão.
– Não tenho intenção alguma de ir a Valonikos, agora que despertei.
– Ai, ai, ai. – Eu estava perto de perder a paciência. – Aonde você
pretende ir, então?
– Casteria.
Ele delineou o Rio Melro no mapa até chegar à bifurcação, onde traçou
uma linha que não subiu o Rio Kars em direção a Valonikos, mas desceu pelo
Lago Nemertes, passando por Iantiporos. Ele não parou até chegar ao
Pescoço, a grande baía estreita que ficava muitos quilômetros ao sul.
Eu espalmei as mãos sobre o mapa.
– Não.
– Isso é outra questão. Igualmente importante. – Ele apertou o copo, e os
nós de seus dedos ficaram brancos. – Você precisa me ajudar. Eu sou um
agente da coroa.
– Não de nenhuma coroa minha. Eu tenho de levá-lo a Valonikos. – A
liberdade de meu pai dependia disso. De mim. – Eu tenho uma carta de corso
da margravina que diz que devo levá-lo até lá e não deixar ninguém entrar em
meu caminho.
– E daí?
Eu cruzei os braços.
– Você está entrando em meu caminho.
– Mas tudo mudou, agora. Quando o homem das sombras encantou aquela
caixa, ele não sabia… – Ele fechou a boca abruptamente.
Eu tinha ouvido falar dos homens das sombras que vivem no norte, cuja
linhagem é cheia de segredos em sua maioria bem guardados. As histórias
dizem que eles podem extrair horrores e ilusões do escuro e distorcer seus
sonhos em pesadelos de gelar os ossos. Sussurra-se à boca pequena que eles
são descendentes da deusa da noite, assim como os homens-sapo são filhos
do deus do rio. Eu nunca tinha visto um homem das sombras. Só pessoas
muito ricas podiam pagar por seus serviços.
Um calafrio percorreu meu corpo.
Tarquin percebeu.
– Você não tem medo de homens das sombras, tem?
– Não – menti.
– A magia não torna um homem mau – disse ele. – É apenas uma
habilidade. Não é inerentemente boa nem má. É o que há no coração que o
torna mau, como acontece com todo mundo. – Ele se debruçou sobre a mesa,
e a lanterna projetou sombras de formas estranhas em seu rosto. Eu enrijeci. –
Você tem medo do escuro?
Eu o olhei com desprezo.
– É claro que não.
– Então você não tem razão para temer um homem das sombras. Eles
trabalham com a magia da luz e do escuro, do despertar e do sono – sua voz
assumiu um tom professoral. – Mas isso é tudo o que eles podem fazer.
Desorientação, sombra e sono, e assim por diante. Seu poder é transmitido há
muito tempo, desde épocas imemoriais, quando os deuses falavam e
caminhavam abertamente entre os homens.
Eles ainda fazem isso, eu quis dizer. Achei que todo mundo soubesse
disso. Mas achei que já tínhamos tido bastante azar. Eu não queria trazer mais
do deus do rio sobre nós ao falar dele em voz alta com um estranho.
Lá fora, o vento assoviava pelo topo das árvores. Respingos de chuva
entraram pela janela aberta da cabine, e a vela na lanterna queimava quase no
fim.
Houve um barulho de choque de madeira contra madeira, que deu um
susto em nós dois. Os pés de dedos longos de Fee surgiram na escada.
– Eles seguiram em frente – disse ela, sacudindo gotas de água.
– Você acha que eles nos viram? – perguntei.
– Eles atiraram em você. Claro que eles a viram – disse Tarquin.
Eu lancei um olhar rude em sua direção. Como se eu estivesse falando
com ele.
– Eu quis dizer o nome da Cormorant.
Com certeza estava escuro demais. Eu engoli em seco e me lembrei de
como eu tinha agachado no cockpit e lido a inscrição na popa do Victorianos
sob o luar. Era impossível saber.
Eu me voltei para Fee.
– Um disfarce podia não cair mal.
– Amanhã – concordou ela.
– Muito bem – disse Tarquin. Por enquanto, é melhor conseguirmos
dormir o máximo possível. De manhã vocês podem me levar a Casteria.
– Valonikos.
– Casteria.
Eu saquei a pistola de meu pai alguns centímetros para fora do coldre.
Ele não se impressionou.
– Quer parar de apontar esse dispositivo em minha direção? Você não vai
atirar em mim. Você não quer danificar sua carga preciosa, afinal de contas.
– Por que você insiste em chamá-la de dispositivo? – perguntei. – Com
certeza vocês têm pistolas em Akhaia.
– Claro que temos. Mas a arma de um cavalheiro é a espada. É o único
meio honrado de se lutar.
– Ah! – Eu olhei diretamente para sua cintura. – Eu não estou vendo a sua.
– Eu parti com muita pressa. Não tive tempo para… – ele fechou a boca e
ficou em silêncio.
Peguei a lanterna da mesa e olhei atentamente para ele. Ainda desconfiava
que ele não estivesse me contando tudo. Mas ele tinha razão sobre uma coisa:
eu não ousaria atirar nele, não quando a liberdade de meu pai dependia de sua
chegada em segurança a Valonikos.
Decidi que mais investigações poderiam esperar até de manhã.
– Você pode ficar com o beliche de meu pai. – Apontei com a cabeça para
a cabine da frente.
O beliche era o maior que tínhamos, embora ele provavelmente ainda
tivesse de dobrar os joelhos para caber nele. Mostrei a ele o banheiro, caso
precisasse usá-lo durante a noite, e peguei um cobertor de lã extra no armário.
Eu o empurrei em sua mão, quase em um desafio para que ele fizesse alguma
observação sobre sua aspereza. Mas ele não disse nada.
Cambaleei fazendo os últimos movimentos dos preparativos para dormir,
em seguida soprei a lanterna para apagá-la e desabei no meu beliche.
A Cormorant balançava reconfortantemente, com água batendo no casco
enquanto uma pancada de chuva passageira molhava o teto da cabine. Eu
permaneci acordada, desconfortável sabendo que havia um rapaz estranho
dormindo do outro lado da cortina. Eu não podia vê-lo nem ouvi-lo, mas sua
presença parecia encher a cabine. O ferimento em meu braço latejava. E, pior,
eu sentia falta de meu pai, uma solidão rude e cheia de autocomiseração que
apertava meu peito.
Demorou até que meu coração desacelerasse o suficiente para que eu
pegasse no sono.
Naquela noite, sonhei com a sra. Singer, a mulher do barqueiro morta na
Jenny. Sonhei que ela estava deitada imóvel sobre uma cama de corais, e que
o coral era mais brilhante do que qualquer coisa no fundo do rio. O recife
estava sobre uma faixa de areia dourada. Partículas de luz escoriam pela água
escura.
A sra. Singer estava deitada com um braço pendurado da borda do coral
esponjoso. Algas verdes grudentas envolviam seu rosto e se entrelaçavam
com as madeixas de seu cabelo comprido. Peixes nadavam acima dela, mas
eles não eram como nenhum peixe que eu jamais tinha visto. Suas cores eram
brilhantes, amarelo, laranja e azul vivos.
Aí a sra. Singer abriu os olhos e disse meu nome.
CAPÍTULO
SETE

Acordei na manhã seguinte muito aliviada por não ter sido assassinada pelos
Cães Negros enquanto dormia. Lançando um olhar em direção à cortina
fechada da cabine de meu pai, prendi o cabelo com um lenço vermelho
estampado e saí descalça no convés.
Neblina pairava sobre as terras dos rios. Uma libélula esvoaçava no ar com
as asas brilhando verdes em meio às tifas trêmulas. Fee estava empoleirada
na proa da Cormorant com um olhar distante no rosto. Será que ela estava
falando com o deus no rio? Como seus descendentes, todos os homens-sapo
tinham uma conexão com o deus. Eu não sabia se era a mesma língua das
pequenas coisas falada pelos barqueiros, ou algo muito mais antigo e
estranho. Senti uma pontada de inveja.
Estreitei os olhos, mirei o topo do mastro e examinei o estrago da noite
anterior. A verga da vela grande da Cormorant ainda estava emaranhada nos
galhos, e seu convés estava coberto de galhos e folhas. Meu pai não aprovaria
a forma como deixamos a vela amontoada. Juntas, Fee e eu limpamos o
convés e conduzimos a barca para fora do canal e para o interior da Lagoa
das Garças, onde ancoramos perto da margem.
Fee subiu do compartimento de carga e colocou um balde no convés.
– Pinte. – Ela pôs um pincel em minha mão.
Com relutância, olhei para o nome Cormorant escrito em cima da porta da
cabine em letras azul-claro com floreios vermelhos.
– Odeio estragar isso.
Ela deu de ombros.
– Ou morrer.
– Eu sei, eu sei. – Passei o pincel molhado sobre o C e o apaguei.
Quando eu dava os toques finais na pintura, Tarquin emergiu, piscando
para o sol da manhã. Ele olhou para o lago com surpresa. Na noite anterior,
estava escuro demais para ver qualquer coisa.
– Eu não sabia que havia outros barcos aqui. – Ele se envolveu com a
túnica bordada.
Uma embarcação estava ancorada na outra extremidade do Lago das
Garças, e uma coluna de fumaça erguia-se de seu telhado. Eu não consegui
identificá-lo – uma casa flutuante, talvez? Havia também uma barca, a Bela
Manhã. A mulher do barqueiro estava sentada no convés em uma cadeira de
balanço, fumando um cachimbo comprido. Ela e a filha olharam fixamente
para nós. Eu não as conhecia, mas sabia que elas estavam se perguntando por
que ainda não as havíamos cumprimentado. E que tipo de idiota nós éramos
para prender nossa vela na árvore?
Eu baixei o balde de tinta.
– Isso é tudo o que vestem os mensageiros do emparca?
– É uma túnica – ele viu minha expressão perplexa. – Roupa de dormir.
– Ah. – Meu rosto ardeu de vergonha. Bom, na verdade, por que alguém
desperdiçaria um traje tão elegante para dormir?
Ele esfregou o tecido entre os dedos.
– Não tive tempo de me trocar antes de ser forçado a fugir…
– Fugir? – Mais uma vez, suas palavras dispararam um sino de alarme no
fundo da minha cabeça. Algo não estava certo nessa história.
– Eu estava apressado para pegar a estrada – explicou correndo. Ele pôs as
mãos nos bolsos e olhou para a terra plana enquanto a brisa agitava seus
cachos.
As únicas velas brancas pertenciam a uma escuna de dois mastros que
estava muito longe, do outro lado do pântano marrom-amarelado. Isso,
porém, não significava nada, já que o Rio Melro tinha muitas curvas e locais
onde fileiras de árvores bloqueavam o horizonte. O Victorianos estava lá fora
à espreita em algum lugar.
O caixote de carga ainda estava no convés com a tampa desencaixada. Eu
o joguei para fora da barca, e ela fez um barulho de lama.
Tarquin me seguiu.
– O que você está fazendo?
– Os Cães Negros estão à procura de uma barca que está carregando esta
caixa – eu disse, olhando para trás. – Eu vou afundá-la. E você vai me ajudar.
Joguei a escada de cordas pela beira do convés e desci. No último degrau,
pulei, aterrissando com água até as coxas. Lama esguichava entre meus dedos
dos pés.
Ele deu um suspiro.
– Você espera que eu pule nessa imundície? Pode haver sanguessugas. Ou
cobras.
Pus as mãos nos quadris e olhei para ele com os olhos estreitos. O caixote
boiava na água ao meu lado.
– Claro que há sanguessugas. E provavelmente cobras, também.
Ele passou tempo demais removendo as botas e arregaçando as pernas da
calça, enquanto eu procurava pedras grandes ao longo da margem. Quando
ele desceu pela escada, eu tinha empilhado uma coleção.
– Vou me livrar de tudo o que possa fazer com que esta barca chame
atenção – eu disse. – Começando por este caixote. E você.
– Bom, você não pode se livrar de mim. – Ele caminhou pela água até a
margem com a lama sugando seus pés descalços.
– Mas eu posso fazer com que você se pareça mais com um barqueiro. –
Essa era a parte da qual ele não iria gostar. – Tire a túnica e a calça e ponha
na caixa.
Suas narinas se dilataram, e ele caminhou em direção a mim espalhando
água.
– Agora, veja aqui…
– Ah, honestamente. Não vou olhar. – Eu o estudei. – O que você devia
fazer é cortar o cabelo. E tirar esse brinco.
– Não.
– Com o que você se preocupa mais, sua vaidade ou sua sobrevivência? –
retruquei. – Ninguém nas terras dos rios se veste assim. Essas roupas têm que
sumir.
Seu olhar se dirigiu para mim.
– Seu lenço é incomum para a filha de um barqueiro. Feito em Ndanna,
imagino, pela estampa, e de seda especialmente fina. Suponho que não vamos
enterrar isso na lama.
Toquei o lenço amarrado em volta de meu cabelo. Ele tinha sido presente
de minha prima Kenté, o que não era da conta dele.
– Não é a mim que os Cães Negros estão tentando matar.
Tarquin fez todo tipo de ruído de raiva enquanto tirava a calça. Pelo canto
do olho, eu o vi balançar a perna como uma garça. Ao vislumbrar o calção
branco que usava por baixo, meu rosto esquentou.
– Agora que eu tinha acabado de tirar toda a maldita palha da túnica –
murmurou. Ele jogou a trouxa de roupa no caixote e ergueu as sobrancelhas.
– Tudo certo?
Sua carta do consulado não estava na calça nem na túnica. Ele a devia ter
escondido na cabine do meu pai. Arquivei essa informação para usar depois.
Empilhei minhas pedras dentro da caixa e observei bolhas subirem pela
água enquanto ela afundava. Quando ficou completamente submersa,
caminhamos pela água de volta até a Cormorant. Mantive os olhos
educadamente virados para baixo. As coisas entre mim e Tarquin já estavam
bem estranhas sem que eu o visse em roupas íntimas.
– Ugh! Tem uma sanguessuga em meu tornozelo. – Ele pegou uma
extremidade com a ponta de dois dedos e começou a puxar. Seu corpo negro
e escorregadio se esticou e ficou mais comprido, mas não se soltou de onde
estava grudado.
– Esfregue, não puxe. – Eu revirei meu pé e encontrei uma das criaturas
grudada em meu dedão. – Assim. – Com a unha, a removi e a joguei na água.
Em vez de agradecer, ele soltou um suspiro alto.
– Não vou ter mais nenhuma conversa com você enquanto estiver sem
calça. É ridículo.
Fee e eu trocamos olhares enquanto ele subia no convés e deixava pegadas
molhadas. Ele poderia ser bem mais suportável se não fosse tão obcecado
com a própria dignidade.
Procurei no compartimento de carga até encontrar uma placa pintada em
cores com o nome Octavia. Letras menores embaixo davam a cidade de
Doukas como nosso porto de origem. Eu a pendurei acima da porta da cabine,
onde ela quase cobriu a tinta fresca. Alguém que nos examinasse de perto iria
perceber, mas imaginei que, se algum dos Cães Negros chegasse tão perto, já
estaríamos mortos.
Tarquin subiu a escada da cabine.
– Pronto. Eu pareço um barqueiro, agora? – Ele disse a palavra como se
fosse um palavrão.
A verdade era que não, especialmente não com aquele olhar de escárnio no
rosto. Seus antebraços eram completamente brancos. Eu não conseguia ver as
palmas de suas mãos, mas sabia que elas seriam tão macias quanto as minhas
eram duras. Ele parecia desconfortável nas roupas de meu pai, e, além disso,
suas botas eram completamente erradas. Elas iam até o joelho e eram feitas
de couro macio cor de creme, e os botões de metal eram decorados com
leões. Eu me arrependi de não tê-las afundado também, mas nós não
tínhamos nenhuma outra que coubesse nele.
– O que vamos fazer em relação a esses piratas? – perguntou ele.
– Há muitos esconderijos por essas partes – eu disse. – Canais, pequenos
lagos, coisas assim. Lugares que só um barqueiro conheceria. – Ou um
contrabandista, mas isso eu não disse em voz alta. – Mesmo que eles
conheçam, acho que seu cúter não cabe. Seu calado é muito mais fundo.
– Você não pode falar de maneira simples?
– O calado. Um barco como esse deve ter pelo menos nove pés. – Ele
ainda parecia confuso. – A profundidade dele. Nossa quilha tem apenas
quatro pés de profundidade.
– Deve ser bom – disse ele. – Aposto que eles podem ficar de pé na cabine
deles.
Eu ignorei a provocação.
– Com alguma sorte, vamos ver os Cães Negros antes que eles nos vejam.
Não sou mais rápida que eles, mas sei onde me esconder. E depois de
entregarmos a madeira…
– Do que você está falando? Que madeira?
– Você não é minha única carga. – Eu me esforcei para que a irritação não
transparecesse em minha voz. – No compartimento de carga, tem um
carregamento de madeira destinado a Siscema.
– Isso não pode esperar? Minha missão é muito mais importante que seus
troncos.
Eu olhei para ele.
– Depois de descarregar as toras, vamos navegar muito mais rápido.
Ele pareceu aceitar isso e virou-se para examinar a tinta fresca na parede
da cabine da Cormorant.
– Por que você tem uma placa com o nome de outro barco?
– Contrabando – eu disse. Não era como se ele pudesse me entregar a um
inspetor de docas. Ele precisava de mim. – Às vezes, um disfarce é útil.
Claro, qualquer um que a conheça bem o bastante não vai ser enganado.
Tarquin olhou para trás, para a Bela Manhã, que tinha erguido sua grande
vela negra, depois outra vez para a Cormorant.
– Elas parecem exatamente iguais para mim.
Eu ri.
– Ayah, para você.
A mulher na outra barca nos deu um olhar cortante quando passaram
deslizando por nós. Sem dúvida, eles tinham escutado os disparos na noite
anterior e me visto pintar o nome da Cormorant, e decidiram que éramos
marginais do pior tipo.
Tarquin apontou para o barco na outra extremidade do lago.
– Aquilo é uma barca, também?
Fee se agachou sobre o telhado da cabine com os dedos dos pés abertos.
– Homem dos porcos – disse ela.
Eu ergui os olhos rapidamente.
Alguns diziam que o homem dos porcos era um deus. Se você o pegasse
em um dia de sorte, ele dizia seu destino. Nos dias de azar, ele se sentava no
fogão no teto de sua casa flutuante e defumava carne de porco até descolar
das costelas. Ele subia e descia o rio lentamente vendendo-a, assim como
bacon e porco salgado, porque até barqueiros se cansam de peixe. Meu pai
tinha comprado provisões dele muitas vezes, aparentemente sempre em dias
de azar, porque ele nunca dissera nem fizera nada remotamente semelhante a
um deus. Ele era apenas velho. E estranho.
Provavelmente tudo aquilo era uma história mentirosa, mas se eu alguma
vez precisei que alguém dissesse meu destino, esse era o dia. E mesmo que
não fosse meu dia de sorte, o porco era delicioso.
Eu desci para o bote da Cormorant e remei até lá.
O homem dos porcos estava sentado ao lado de seu defumador, com o
rosto oculto por um chapéu de aba mole. Era impossível dizer se ele tinha
pele marrom como a família de minha mãe ou se era bronzeado daquela cor
simplesmente de ficar sentado ao sol por toda a sua longa vida. Eu desconfiei
do primeiro, porque seu cabelo cor de aço era tão encaracolado quanto o meu.
– Como está você esta manhã? – chamou o homem dos porcos enquanto
eu amarrava o bote.
– Estou a caminho de Valonikos – eu disse com o coração pulando
nervosamente. – Para levar uma carga.
– Garota tola. É seu destino que a está puxando por esse rio. – Ele olhou
para mim. – O seu destino… e o daquele rapaz.
Eu levei a mão ao cabo da faca.
– O que o senhor sabe sobre… – eu me detive. Sem dúvida não era sábio
dizer seu nome. – Quero dizer, o que o senhor sabe sobre meu destino?
– Porco salgado, hoje? Tenho uma boa partida de porco salgado defumado
para vender. – Ele piscou. – Estou pensando que seu destino está muito longe
daqui, capitã Oresteia.
Eu desejei que ele parasse de ser misterioso.
– Não sou uma capitã – eu disse, entregando a ele um punhado de moedas.
– A Cormorant é o barco de meu pai. O senhor sabe disso tão bem quanto eu.
– Você não pode lutar contra isso. – Ele sorriu, mostrando todos os dentes
brancos. – Por que toda alma acha que pode lutar contra seu destino? Um
peixe nada rio acima, contra a maré?
Eu não era homem nem peixe, e estava começando a me cansar de seu
olhar astuto.
– Ele provavelmente tenta – eu disse a ele. – Porco salgado, por favor –
hesitei. – É verdade o que eles dizem? Que o senhor é um deus? O senhor
pode falar com o deus no rio?
Ele apenas sorriu e se abaixou para retirar a porção de carne de porco do
seu barril.
Eu contive um suspiro de irritação e olhei para trás, para a Cormorant,
desconfortavelmente consciente de como ela parecia vulnerável e deteriorada.
Ela não era páreo para os Cães Negros. Mas não podíamos simplesmente
ficar ali escondidos para sempre. De algum modo, eu tinha de chegar a
Valonikos, ou meu pai continuaria preso e, que os deuses não permitissem, eu
seria presa com Tarquin.
Olhei para os juncos turvos na beira da água. Se houvesse mesmo um deus
no fundo, eu poderia usar sua ajuda nesse momento.
O homem dos porcos me observou com olhos negros e penetrantes. Tive a
sensação estranha de que ele sabia exatamente o que eu estava pensando.
– Ela é uma deusa maior, mais profunda. A que conduz você. – Ele cuspiu
pela lateral do barco. – Ele não vai lutar contra ela.
– Eu mesma me conduzo. – A ideia dos deuses me movendo de um lado
para outro por aí, como uma peça em um jogo de tabuleiro, não caía bem
comigo.
Ele virou o bacon na frigideira e riu.
– Todos dizem isso, também.
Tentei manter a dignidade enquanto embarcava no bote.
– Bom dia, senhor.
– Que a corrente vos leve, capitã – gritou ele para mim, parecendo outra
vez igual a qualquer outro velho do rio. Era como se nossa conversa
misteriosa nunca tivesse acontecido.
Enquanto eu remava de volta para a Cormorant, tentei não pensar sobre as
palavras perturbadoras do homem dos porcos. Eu era uma Oresteia. Nós
pertencíamos ao rio. A ideia de outra deusa se metendo em meus assuntos
não me descia.
Tarquin me deu a mão para me ajudar a sair do bote. Enquanto eu subia
pela popa, percebi que estava errada sobre suas mãos. Elas eram brancas,
verdade, as mãos de um homem que nunca trabalhara por muitas horas ao sol.
Mas ele tinha calos grosseiros no alto das palmas, e era forte.
Talvez ele não fosse completamente inútil, afinal de contas.
Enquanto eu içava a vela, percebi que ele estava me observando.
– O que você está olhando? – perguntei, congelando com a adriça na mão.
Ele se encolheu e tirou os olhos de minhas pernas.
– Em Akhaia, as mulheres usam saias.
– Ora, bom para elas. – Minha face e minhas orelhas ficaram quentes de
repente.
– Eu não estava dizendo que era uma coisa ruim. – Ele tamborilou sobre
os próprios joelhos de um jeito que me fez pensar que estava embaraçado.
– Isso porque você está olhando para minhas pernas. – Eu me abaixei para
soltar o cabo, resistindo à vontade de puxar para baixo a barra de minha calça
cortada, que tinha subido. Ele agia como se nunca tivesse visto um joelho de
garota na vida. Não era nada. Nada para ser observado.
Nós partimos, com água borbulhando sob a proa da Cormorant. Eu a
conduzi pelo canal e para o rio, arrastando o bote atrás de nós como um
patinho nadando atrás da mãe. Muito tempo depois da fumaça do barco do
homem dos porcos ter desaparecido às nossas costas, eu me sentei e comecei
a ruminar.
– Viajar de barca é muito lento – reclamou Tarquin do assento à minha
frente. Ele esfregou o dedo na faixa do acabamento em madeira que
bordejava o convés. Eu desejei que ele não fizesse isso, pois estavam saindo
lascas de tinta. – Estou entediado. Deixe-me conduzir o barco, um pouco.
Ele mal tinha viajado em uma barca por meia hora. Era uma pena que eu
tivesse jogado a caixa na água, pois talvez eu enfiasse lá dentro outra vez.
– De que direção está vindo o vento? – perguntei.
– De lá. – Ele apontou a mão, erroneamente, para estibordo.
– Não, você não pode conduzir o barco.
– O que eu disse de errado?
– Estamos com vento de popa. – Ele olhou para mim com uma expressão
inalterada. – A popa fica atrás – eu disse. Uma criança de cinco anos sabia
mais que ele. – Por que você acha que a retranca está tão projetada para fora?
A retranca sendo esse grande pedaço de madeira preso à vela.
– Qual deles? – Ele deve ter visto a expressão rude que fiz, porque
acrescentou: – Eu preciso saber essas coisas, não é? Para me misturar.
– O de baixo. O outro é a verga. A questão é que um barco não pode
velejar na direção de onde vem o vento. O vento tem de empurrar o barco. Dê
a volta.
A brisa agitou seus cachos quando ele protegeu os olhos para examinar a
vela.
– Viu? É de onde está vindo o vento.
Tarquin pareceu absorver isso com uma expressão pensativa. Para meu
alívio, ele não pediu outra vez para velejar. Em vez disso, virou-se para Fee,
que estava sentada com as pernas nodosas de sapo penduradas pela lateral, e
a estudou.
– É verdade que homens-sapo podem respirar embaixo d’água? – Ele
dirigiu a pergunta a mim.
Eu contive a irritação.
– Sabe, pode perguntar a ela. Ela entende você muito bem.
– Oh. – Ele se aprumou e, dessa vez, dirigiu-se a Fee. – Desculpe se a
ofendi, senhorita…? – Ele fez uma pausa formal.
– Fee – interrompi. – É apenas Fee.
Os olhos de Fee se franziram nas bordas, e sua língua comprida projetou-
se para pegar um inseto. Tarquin deu um pulo para trás, assustado, e eu
contive uma risada.
O rio era estreito ali, e elevações arredondadas cobertas de capim do
pântano nos pressionavam dos dois lados. Os únicos sons eram o assovio
baixo e triste do vento através dos juncos e o zunido dos insetos. Rio abaixo
de onde estávamos, as velas de outras barcas flutuavam como triângulos
negros acima dos campos. O cúter não estava em nenhum lugar à vista.
Um peixe saltou a bombordo, e o sol reluziu em suas escamas prateadas.
Marolas lambiam a margem, e, em algum lugar, uma abelha zumbia.
Pequenas coisas. Eu desejei saber que mensagens secretas meu pai ouvia
nelas. Não importava o quanto eu escutasse com atenção, eu não conseguia
decifrar nada.
– No que você está pensando? – perguntou Tarquin.
– No homem dos porcos – menti. – Dizem que ele é um deus.
Ele deu um suspiro.
– Pergunte a si mesma o que é mais provável. Que um velho que vende
carne em uma casa flutuante seja um deus, ou que ele seja um velho que
vende carne em uma casa flutuante?
Eu também não estava convencida de que o homem dos porcos fosse um
deus, mas, sem dúvida, não ia ficar ali sentada deixando que Tarquin
zombasse dele.
– Bom, mas ele sabia sobre… – eu hesitei. – Olhe, é só uma coisa que as
pessoas comentam em voz baixa. A coisa sobre os deuses é que…
Ele revirou os olhos.
– Ah, sim. Uma garota que vive em uma barca vai me contar a coisa sobre
os deuses. Estou cheio de expectativas.
– A coisa sobre os deuses é que – eu disse, ignorando-o explicitamente –
eles gostam de ser um pouco sigilosos em relação a seus assuntos. E, para sua
informação, barqueiros conhecem muito bem os deuses. Há um no fundo do
rio. Todo mundo sabe disso.Todos os capitães em minha família são
favorecidos pelo deus do rio.
Menos eu. Eu apertei a cana do leme e torci ardorosamente para que ele
não perguntasse detalhes. Senti o olhar penetrante de Fee sobre mim, mas ela
não disse nada.
– Você não acha que um deus de verdade tem coisas melhores a fazer do
que se esconder no fundo de um rio como um crocodilo? – persistiu ele. –
Ou, por falar nisso, fritar bacon?
– Não surpreende que o consulado o tenha feito viajar em uma caixa –
respondi. – Você não é muito bom em diplomacia, é? Duvido que você tenha
uma carreira longa como mensageiro. Se você conseguir voltar.
Ele cerrou os punhos.
– Isso é uma ameaça?
– É uma observação.
– Bom, sabe-se em Akhaia que os deuses que antigamente caminhavam
entre nós há muito tempo voltaram para seus salões no céu e sob a terra. – Ele
pousou uma bota no assento do cockpit e olhou para a terra plana que
passava. – As únicas pessoas que podem falar com eles agora são os oráculos.
– Em palavras, talvez – escarneci.
Eu tinha visto templos imponentes em Akhaia, decorados com cabeças de
ferozes leões feitas de ouro sólido. Eu desconfiava que o deus akhaiano não
tivesse nada a ver com o deus do rio.
– Como mais você falaria a não ser com palavras? – perguntou Tarquin.
– O deus no fundo do rio fala conosco na língua das pequenas coisas.
Ele fungou alto para me mostrar o que pensava disso.
O homem dos porcos dissera que meu destino estava longe dali. Eu torci
para que ele não fosse mesmo um deus, porque isso não fazia sentido. Eu era
a imediata do meu pai na Cormorant, e um dia, quando ele se aposentasse, eu
iria me tornar sua capitã. Talvez, quando o homem dos porcos dissera “você”,
ele estivesse se referindo a Tarquin. O seu destino… e o daquele rapaz. Essas
foram suas palavras exatas.
Ou, talvez, o homem dos porcos não fosse nenhum deus, mas um velho
tolo e excêntrico que ficava sentado em uma casa flutuante e defumava
porco.
E, ainda assim, eu não conseguia parar de pensar sobre o que eu ficara
nervosa demais para dizer a Tarquin.
Ele sabia sobre você.
CAPÍTULO
OITO

Como filha de barqueiro, eu não devia admitir isto, mas acho pescar a coisa
mais chata do mundo. Foi o que me vi fazendo na manhã seguinte. E eu não
estava feliz com isso.
Como outras coisas desagradáveis que recentemente haviam se abatido
sobre mim, era culpa de Tarquin. Quando ele saiu do beliche, Fee e eu já
estávamos velejando havia horas. Ele ficou nas almofadas do banco, com os
restos de sua refeição matinal espalhados ao redor. Havia uma pilha irregular
de pratos rasos e grudentos sobre a toalha de mesa, e uma trilha de gotas
gordurosas pelo chão da cabine.
– Espero que você não ache que eu vou limpar sua sujeira. – Eu não
conhecia ninguém capaz de fazer tamanha sujeira. Eu olhei para a bancada
lateral. – Onde está o resto do porco? Eu o deixei bem aqui.
– Oh, eu… comi de café da manhã.
– Tudo? – Olhei para ele horrorizada. – Isso devia durar dias.
– Besteira – disse ele. – Mal foi suficiente para o café da manhã.
– Ele não deve ser a refeição inteira. É um petisco. Um luxo.
Ele escarneceu.
– Estava bom, mas não tão bom.
Eu subi de volta para o convés com passos pesados.
– Graças a você, o almoço é peixe. O jantar também é peixe. Espero que
você não seja burro o suficiente para perguntar o que tem para o café amanhã.
– Abri a cesta de material de pesca e prendi um anzol em uma linha. – Mas
como eu desconfio que você seja, é peixe.
Ele me seguiu.
– Olhe, eu não sabia. Não podemos parar e comprar mais provisões?
– Olhe ao seu redor – eu disse. – Não há nada pelas próximas vinte milhas.
Capim alto se estendia por todos os lados. Pouco menos de um quilômetro
à frente, havia uma ruína corcunda coberta de musgo verde, uma velha
mansão rural, talvez os restos de uma ponte. Nós tínhamos passado a última
noite escondidos atrás de outra ruína parecida, com o mastro da Cormorant
abaixado e as cortinas fechadas para esconder nossa lanterna.
– Não há outro barco de porco ou algo parecido? – perguntou ele.
Eu joguei a linha pela popa.
– E você ainda zombou do homem dos porcos. Esse é seu destino
alcançando você, é isso.
Tarquin debruçou para fora para ver a pilha de pedras arredondadas.
– Eu me pergunto se essa ruína é dos tempos em que Kynthessa ainda era
parte da emparquia.
– Acho que sim. – Eu agitei a vara de pesca. – Foi aqui que os patriotas
mantiveram sua linha de resistência, para impedir que o exército do emparca
saqueasse Siscema durante a Guerra dos Trinta Anos.
Naqueles tempos, os Oresteias desafiavam o bloqueio para os patriotas.
Tentei imaginar esses pântanos vazios cheios de galeras akhaianas e fumaça
de acampamentos, as terras dos rios mergulhadas em guerra.
– Patriotas – escarneceu Tarquin. – Traidores de um grande império, você
quer dizer.
– Ayah, Akhaia deve ser um império maravilhoso – eu disse. – Acho que é
por isso que sempre há partes dele se separando para se tornar independentes.
Ele apertou os lábios em uma linha fina.
– O margrave teve tanta culpa pela guerra quanto Akhaia.
– Eu soube que o atual emparca exilou cinquenta homens e mulheres só
por participar de encontros políticos – devolvi. – Isso só no ano passado, por
isso você não pode pôr a culpa em pessoas que morreram há muito tempo.
– Antidoros Peregrine e seus revolucionários foram um incômodo para o
emparca por anos. – Depois de uma pausa, ele explicou: – Mas não foram as
reuniões que fizeram com que o emparca finalmente perdesse a paciência. Foi
o panfleto que ele publicou, cheio de ideias radicais sobre os direitos das
pessoas comuns.
– Você o leu? – perguntei, irritada com seu desdém. Eu era uma das
pessoas comuns.
– Claro que não. – Ele acenou com a mão. – O emparca não queria que ele
provocasse uma insurreição, por isso ordenou que fosse queimado. Mas lorde
Peregrine costumava jantar conosco quando eu era criança – lembrou ele. –
Antes de publicar seus escritos loucos. Eu gostaria de saber o que aconteceu
com ele.
Eu podia ter lhe contado. Lorde Peregrine estava escondido em Kynthessa.
Ele e seus amigos eram, na verdade, os mesmos rebeldes cujos mosquetes o
mestre da baía confiscara em Pontal de Hespera. Eu sem dúvida não ia
revelar esse segredo, pois desconfiava que iria irritar meu passageiro saber
que estávamos transportando armas para pessoas que ele considerava
traidores.
– Seu pai é um lorde, também? – perguntei em vez disso. – Ou ele foi
eleito?
– Ninguém é eleito em Akhaia – disse ele, como se fosse um palavrão. –
Isso demonstraria fraqueza. Ele foi nomeado para o conselho pelo emparca, a
única maneira apropriada.
Acho, então, que ele achava nossa margravina fraca. Seu título era
herdado, passado desde o margrave original que liderara a rebelião contra
Akhaia todos esses anos atrás, mas ela era mais uma figura decorativa,
atualmente. Ela presidia o senado, que era eleito entre o povo. A cidade livre
de Valonikos tinha ido ainda mais longe ao se separar de Akhaia,
abandonando todos os títulos hereditários. Se Tarquin planejava continuar a
falar assim depois de chegar lá, iria ofender todo mundo. Eu me perguntei se
deveria alertá-lo.
– Prontos? – chamou-me Fee. Eu dei um pulo e abandonei a vara de
pescar.
Ela puxou a cana do leme com força, nós viramos de bordo, e a retranca
passou por cima. Eu cacei o cabo da escota quando a vela se encheu
bruscamente. Nós começamos a adernar para estibordo. A Cormorant correu
pelo rio, nossa esteira borbulhava às nossas costas.
Tarquin agarrou com força a borda do cockpit.
– O que está acontecendo? Eu não gosto disso.
– Viramos de bordo – eu disse. – Mudamos a vela para outro lado.
– Na próxima vez, me avise – disse ele com rigidez.
– Fee disse “prontos”. – Eu sabia que ele não tinha ideia do que ela queria
dizer, mas eu estava cansada de sua atitude superior.
Eu não via como uma pessoa podia não gostar de velejar em um dia bonito
como aquele, quando as nuvens corriam soltas como caudas de cavalos no
céu de safira. Será que ele não conseguia sentir como a Cormorant se movia,
como se o vento a desafiasse para uma corrida? Acho que ele não apreciava
tempo bom da mesma forma que as pessoas que dependem dele para seu
trabalho.
Nós não vimos sinal de Diric Melanos e dos Cães Negros desde a noite em
que eles nos perseguiram. Era como se o cúter tivesse desaparecido no ar.
Com o passar dos dias, as únicas pessoas por quem passamos foram uma
dupla de pescadores em um bote a remo que flutuava em meio aos juncos.
O sol mergulhou fundo, e as árvores se ergueram dos dois lados do rio.
Nós deslizamos por um túnel de galhos pendentes. Eu não conseguia afastar o
desconforto crescente que formigava em minha nuca. Estávamos navegando
às cegas, agora. Se os Cães Negros estivessem perto, nós não iríamos vê-los
até que estivéssemos praticamente em cima deles.
Baixei a mão na popa para tocar a água fria e aguardei esperançosa.
Nada aconteceu. O deus no rio fala conosco na língua das pequenas coisas.
É o que os barqueiros dizem, mas o que isso significava exatamente? Eu ouvi
o zumbido de inseto e o mergulho de sapos e senti a pressão delicada da água
sobre minha pele. Isso era tudo.
Meu pai dizia que, no dia em que meu destino chegasse, eu saberia. Uma
irritação se agitou dentro de mim. Ele podia ter sido um pouco mais
específico.
Olhei para cima e captei um lampejo de movimento atrás das árvores. Um
brilho branco fantasmagórico. Algo alto.
Havia um navio subindo o Rio Melro.
– Mudar o curso! – engasguei em seco enquanto me colocava de pé.
Fee empurrou a cana do leme para estibordo até o fim e fez com que
virássemos de bordo de maneira descontrolada. A Cormorant adernou, água
correu pelo convés, e a vela se agitou de um lado para outro.
Tarquin quase caiu do assento.
– Eu disse a vocês que me avisassem!
– Cale a boca! – Freneticamente, examinei a margem do rio procurando
por algum lugar, qualquer lugar, grande o suficiente para esconder uma
barca. – Ali! – Eu apontei para um grupo de salgueiros, com folhas que caíam
até a água como uma saia de mulher.
Enquanto Fee conduzia a Cormorant em direção às árvores, eu corri até o
mastro. O mastro de uma barca pode ser baixado por um sistema de
cabrestantes, pesos e polias, geralmente para passar sob pontes baixas. Mas
nosso tempo era escasso e precioso.
– Tarquin – sussurrei. Ele não respondeu. – Tarquin! – chiei mais alto, até
que seus ombros se ergueram. – Preciso de sua ajuda. – Gesticulei para o
alto: – Segure o mastro quando ele descer. Em silêncio.
Para meu grande alívio, ele saltou de pé instantaneamente e fez o que eu
lhe ordenei. O mastro desceu chacoalhando, pesado com o contrapeso de
chumbo em sua base. Sem experiência, Tarquin deixou que parte da vela
caísse na água. Eu não podia me preocupar com isso no momento.
Sem a vela, a Cormorant perdeu velocidade, abrindo caminho pela água
metro a metro, depois centímetro a centímetro. Sua proa desapareceu,
engolida pelas árvores. Galhos passavam por seu convés como cabelos
compridos.
A proa ainda estava para fora, visível para qualquer um no rio. Sem
pensar, saltei na água, e meus pés se afundaram na lama macia. A
profundidade da água chegava a pouco mais que o ombro. Apoiada com
vigor no casco da Cormorant, eu empurrei com toda a força.
Devagar, devagar, ela se moveu para baixo do véu de árvores, ajudada
pelo fim de sua inércia. Eu olhei loucamente para o rio. A Cormorant tinha
um perfil baixo e pintura escura, mas seriam as sombras suficientes para nos
esconder?
O navio que se aproximava ainda estava em sua maior parte escondido
pelas árvores, mas eu podia ouvir os rangidos e batidas de seu cordame e o
ruído da água passando por seu casco. A qualquer momento, ele iria fazer a
curva. Senti um aperto no peito. Eu me abaixei na água como um sapo, só
com a parte superior da cabeça acima da superfície. O cheiro de lama e capim
em meu nariz era forte.
O navio passou, e senti sua esteira me encobrir. De onde eu estava, era
baixo demais para ver muito dele, além de um vislumbre de pintura azul.
Dez minutos passaram de forma agoniante antes que o rosto de Fee
surgisse por cima da borda do convés. Sem dizer uma palavra, ela jogou uma
escada de cordas.
– Eram…? – Eu procurei o degrau de baixo.
– Eles.
Eu me ergui. Água escorria de minhas roupas e se empoçava aos meus
pés.
– Isso é intolerável. – Tarquin estava sentado no cockpit com os punhos
cerrados. – Eles quase nos pegaram. – Eu percebi que ele estava tremendo. –
É preciso haver outro meio.
Eu, de repente, me senti aborrecida.
– Esse é o único caminho para Valonikos.
– Você não entende! Não é você quem está em perigo!
– Não sou? – Eu levei a mão sobre o ferimento provocado pelo tiro. – Eu
fui baleada por sua causa, mas acho que você não se lembra disso. – Percebi
que seus olhos estavam baixos, no chão do cockpit, e perguntei: – Por que
você não olha para mim quando estou falando?
– Porque – disse ele com rigidez – sua camisa está molhada e posso ver
através dela. Embora eu ache que boas maneiras não sejam apreciadas nesta
banheira de madeira.
Levei rapidamente os braços ao peito e desci a escada para a cabine.
– Banheira de madeira – murmurei. Como ele me acusava de não ter
maneiras quando tudo o que ele tinha feito o dia inteiro fora me insultar?
Puxei e abri bruscamente a porta de meu armário e peguei uma toalha.
E congelei com o olhar atraído pela cortina que separava a cabine de meu
pai da minha. Olhei para trás, para os degraus do cockpit. Tarquin achava que
eu estava me trocando.
Essa podia ser minha única chance.
Abri as gavetas da escrivaninha de meu pai e revirei os papéis. Nada,
apenas contratos velhos e mapas enrolados. Ergui o tapete de palha e tateei as
ripas do piso por baixo. Ele não havia escondido a carta ali. Eu esperava ser
capaz de ouvir a chegada de Tarquin acima da pulsação em meus ouvidos.
Então, girei em um círculo e examinei o resto da pequena cabine à procura de
algum lugar onde ele pudesse ter escondido a mensagem.
Mas a carta não estava escondida no beliche de meu pai. Onde ela poderia
estar? As roupas não tinham bolsos internos para esconder algo assim, e eu
conhecia cada centímetro da cabine principal da Cormorant – ela não estava
ali. A menos que não houvesse carta nenhuma.
Mais cedo, quando eu disse seu nome, Tarquin não respondeu, quase como
se… Fui tomada por um calafrio gélido. Quase como se seu nome não fosse
Tarquin.
Um mensageiro real em uma caixa encantada. Isso parecia um conto de
fadas, porque era. Uma centelha de raiva ganhou vida em meu interior. Eu
odiava ser enganada. Quem quer que Tarquin Meridios fosse, ele tinha feito
com que eu parecesse uma idiota.
Um rangido nos degraus me alertou. Puxei os lençóis de volta sobre a
cama e fechei delicadamente as gavetas da escrivaninha. Com o coração
batendo forte, tirei a camisa molhada e me enrolei na toalha. Eu me virei e vi
Tarquin abaixar a cabeça para entrar na cabine.
Ele esbarrou em mim, e quase deixei a toalha cair.
– Por que você está espionando meu quarto? – Ele se erguia acima de
mim.
– Não é seu quarto. – Eu apertei bem a toalha, extremamente consciente
dos ombros nus. Água gotejava de minha calça encharcada no chão. – Eu só
estava… procurando uma toalha.
Tarquin passou os dedos pela atadura em meu braço.
– Eu… – ele limpou a garganta. Eu vi, nisso, hesitação. – Eu não quis
minimizar seu ferimento.
Algo me atravessou como um raio. Meu rosto queimou.
Ele desceu a mão pela toalha. Eu inspirei, imobilizada pelo choque de seu
toque. Então, ele se aproximou, e eu percebi que ele ia me beijar.
Eu lhe dei um tapa na cara.
A mão dele voou para o rosto avermelhado como se não pudesse acreditar
no que eu tinha feito. Esse segundo de hesitação e dúvida foi tudo de que eu
precisei.
Eu girei, saquei a faca da bainha e saí de seu alcance. Quando ele se
recuperou o suficiente para reagir, eu estava atrás dele. Segurei sua camisa
com uma das mãos e a torci para mantê-lo no lugar.
E apertei a ponta de minha faca contra suas costas.
Ficamos congelados em um impasse silencioso e tenso. Senti o movimento
errático de sobe e desce enquanto ele tentava controlar a respiração. Torci
para que minha faca não estivesse tremendo. Rapidamente, compreendi o
risco de minha situação. Ele parecia protegido e mimado, mas até onde eu
sabia, isso era um personagem. Se estava mentindo sobre ser um mensageiro,
ele podia ser qualquer um.
– Você percebe que sou muito mais forte que você. – Sua voz estava
firme. – E treinado em combate pessoal. Posso quebrar seu braço antes que
você entenda o que está acontecendo. Se eu resolver fazer isso.
– Você percebe que isso é uma faca – retruquei com o coração acelerado
diante de sua ameaça. – Posso estripá-lo antes que você quebre meu braço. Se
eu resolver fazer isso.
– Você não faria.
– Já arranquei a pele de quase mil peixes – eu disse. – Vou arrancar a sua.
Eu não conseguia me imaginar fazendo nada do gênero, mas nunca antes
um rapaz tinha tentado me beijar desse jeito, como se fosse seu direito.
– Você está blefando – disse ele.
Claro que eu estava, mas e ele? Eu o estudei, e meu olhar permaneceu em
seus braços. No dia anterior, quando ele me erguera do bote, eu percebi sua
força surpreendente. Ele podia estar dizendo a verdade sobre ter treinamento
em combate. Já se ele tinha participado de alguma luta de verdade… Eu era
mais cética em relação a isso.
Será que eu devia confrontá-lo? Acusá-lo de mentir? Sozinha ali com ele
na cabine, eu de repente não me senti segura. Quase me ressenti mais com ele
por isso que por mentir para mim. A Cormorant era minha casa.
– Por que você fez isso? – Eu empurrei a ponta da faca.
– Ai! Eu achei que você quisesse. Foi você que entrou no meu quarto. Sem
camisa. E aí olhou para mim como… Eu tive a impressão… Bom, todo
mundo sabe que as garotas das terras dos rios… – ele parou.
– Todo mundo sabe que as garotas das terras dos rios o quê? – Eu apertei a
lâmina com mais força, na esperança de que minha voz parecesse perigosa.
– Não importa – murmurou ele. – Isso não foi educado.
Ele estava certo, não foi nada educado.
Eu estava começando a repensar minha posição. Enquanto era verdade que
eu o tinha em desvantagem, eu estava apertada contra suas costas. Podia
sentir seu cheiro e o calor úmido emanando da pele de seu pescoço.
– Não acredito que você achou que eu iria… Ugh! – Eu o soltei e recuei
pela cabine.
– Ouvi dizer que as garotas das terras dos rios são mais… experientes que
em Akhaia. – Ele enfiou os dedos por baixo da camisa e os esfregou juntos,
para confirmar que eu não o havia cortado. – Eu acho que não.
– Eu já beijei um garoto antes, se é isso o que você quer dizer. – Assim
que as palavras saíram da minha boca, eu me arrependi delas. Eu não tinha de
dar explicações a ele.
– Então, por que você ficou tão ofendida?
Eu segurei a toalha junto ao peito.
– Só porque eu beijei outra pessoa não significa que estou interessada em
você!
Pelo modo como ele me olhava fixamente, eu podia dizer que essa ideia
não tinha passado pela cabeça dele.
– Dizer “não” é uma opção perfeitamente aceitável – disse ele com
desprezo. – Uma bem diferente de enfiar uma faca em alguém.
– Eu o estou levando a Valonikos porque não tenho escolha – eu disse. –
Não porque gosto de você. – Ele tinha me chamado de comum, insultado a
Cormorant e, além de tudo isso, agora eu estava certa de que sua história era
mentira.
– Eu não quero que você me leve para Valonikos! – O lábio dele se
retorcia furiosamente. – Eu não tenho falado isso para você?
Eu vi um brilho de culpa em seu olho.
– Por que realmente você tentou me beijar? – perguntei.
– O quê? – Ele rompeu o contato visual.
– Você achou que se você… Se você me seduzisse, eu o levaria para
Casteria, não é? – ele não disse nada. – Não é?
– Está bem! Quero dizer, isso não… – Ele deu um suspiro. – A ideia
passou pela minha cabeça, sim. Quando garotas acham estar apaixonadas,
elas…
– Elas o quê? – Eu brandi a faca.
– Elas ficam dispostas a fazer coisas que normalmente não fariam.
Sacudi a cabeça sem acreditar. Ele era nojento.
– Eu… Isso… As garotas que você conhece são mesmo assim tão
ingênuas? – esbravejei.
Ele olhou para minha calça úmida.
– As garotas que eu conheço são garotas.
As palavras caíram entre nós, e até ele pareceu perceber ter exagerado. Ele
enfiou a mão no cabelo despenteado.
Eu dei a volta e saí da cabine. Ao ver a expressão assassina em meu rosto,
Fee saiu do meu caminho. Atordoada e furiosa, eu andava de um lado para
outro em meio às folhas caídas de salgueiro espalhadas pelo convés. Eu não
conseguia imaginar como Tarquin pôde entender tudo tão errado. Como se eu
estivesse pensando naquilo.
As garotas são garotas. Isso incomodava porque ele não sabia nada sobre
mim. Quando visitei a família de minha mãe em Siscema, eu penteei o cabelo
para cima e usei vestidos. Fui a festas e fogueiras, fofoquei com minhas
primas. E no último verão, eu flertei com um garoto marinheiro, Akemé. Eu
não era ingênua o suficiente para achar que tinha sido um grande caso de
amor nem nada, mas tinha sido divertido. Pelo menos, ele antes se assegurou
bem de que eu queria beijá-lo.
Isso não poderia ser mais diferente. Eu não confiava em Tarquin, e,
mesmo que confiasse, ele não era nada o meu tipo. Ele era um esnobe,
preocupado demais com a própria honra. E ele não sabia como fazer nada.
Não havia nada atraente em um homem que era praticamente indefeso.
Eu estava mergulhada tão fundo em meus pensamentos que, primeiro, ouvi
o Victorianos antes de vê-lo. Sua retranca chacoalhou quando ele fez a curva,
e seus cabos gemeram e rangeram. Vozes masculinas ecoavam acima da água
imóvel. Sem ousar me mexer, observei em silêncio através da cortina de
folhas de salgueiro.
Então, eles estavam andando pelo rio de cima a baixo à nossa procura.
Minha cabeça ficou zonza e estranhamente leve. Diric Melanos podia ser um
patife, mas era um capitão habilidoso. Devia ser difícil manobrar um cúter
rápido como aquele por todas aquelas curvas. Muito depois de o cúter ter
passado rio abaixo, o ritmo de meu coração ainda estava acelerado.
– A bênção das pequenas coisas – sussurrei, desejando que o deus do rio
dissesse algo em resposta.
Joguei um balde no rio e lavei a sujeira do convés. Folhas de salgueiro
caíram na água em uma cascata satisfatória. Eu parei e me concentrei no
balde em minhas mãos.
Eu tive uma ideia.
Depois de tornar a enchê-lo, caminhei de volta até o cockpit.
– Tarquin – chamei, debruçando-me pela escotilha. – Venha cá. Tenho
uma coisa para você.
Ele se aproximou com cautela.
– Espero que sejam desculpas – disse ele com desdém.
Eu virei o balde.
Xingando e cuspindo água, ele se moveu ruidosamente pela poça. Ele
cuspiu cabelo molhado da boca e olhou para mim com uma raiva silenciosa.
Havia uma alga grudenta e pegajosa pendurada em sua orelha. Suas belas
botas de couro estavam encharcadas, e a camisa de meu pai estava grudada
em seus ombros.
Bom. Isso devia esfriá-lo.
CAPÍTULO
NOVE

– Por que estamos partindo? – Tarquin desceu os degraus da cabine. – Os


Cães Negros ainda estão aí fora!
É difícil viver em uma barca pequena com alguém com quem você não
esteja falando. Segurei a cana do leme com a mão e conduzi a Cormorant
para o meio do rio.
Eu olhei para trás e me dirigi a Fee.
– Diga a nosso passageiro que não podemos nos esconder para sempre.
Precisamos arriscar, se queremos chegar a Valonikos.
Os olhos de Fee giraram como globos.
– Criancice – disse ela.
Eu dei de ombros. Ela tinha razão, mas eu não me importava.
– Não quero falar com ele.
Ele me olhava de cara feia, do canto mais distante do cockpit.
– Posso lhe garantir que o sentimento é recíproco.
Ele pôs as botas em cima do banco do cockpit. Fragmentos de lama seca
caíram e sujaram o assento. Ele empinou o nariz, desafiando-me a fazer
algum comentário.
Eu fervilhei de raiva em silêncio. Ele tinha feito isso de propósito, porque
sabia que iria me irritar. Tarquin não tinha aceitado bem receber um balde de
água na cabeça.
Nós esperamos um dia inteiro, mas os Cães Negros não voltaram. Eu
estava louca para seguir viagem. Cada hora que ficávamos escondidos
naquelas árvores era mais uma hora que meu pai ficava trancado em uma
cela. O Rio Melro era a única rota para o nosso destino.
Nós simplesmente teríamos de arriscar.
Consultando um mapa, concluí que devíamos estar pouco acima da ponte
de Gallos. O sol do fim de tarde estava baixo no céu. Se nada desse errado,
achava que conseguiríamos chegar à Casa do Carpinteiro antes de escurecer.
A Casa era uma taverna de barqueiros, construída bem acima da água
sobre palafitas raquíticas. Ela se erguia sozinha como uma grande ave
pernalta do pântano, pois não havia nenhuma outra construção dali até
Gallos. Se o cúter tivesse passado por aquele caminho, alguém ali saberia.
Em pouco tempo, as árvores deram lugar a um pântano plano, e eu fiquei
tensa, examinando o horizonte à procura de velas brancas. Não vi nenhuma.
Relaxei, e soltei uma respiração que eu não havia percebido estar prendendo.
Conforme navegávamos, apareceu uma estrutura de madeira, não maior que
um ponto. Três luzes surgiram à vista, uma a uma. Alguém na Casa do
Carpinteiro estava acendendo lanternas.
Olhei para Fee.
– Vou à taverna fazer algumas perguntas. – Eu não conseguiria aguentar
um segundo dia agoniante sem saber onde estava o Victorianos.
– Eu vou, também – surpreendeu-me ao dizer Tarquin, se é que esse era
seu nome verdadeiro.
Eu cerrei os dentes.
– Você não pode. Os Cães Negros podem estar lá dentro.
Ele ficou de pé, bem mais alto que eu.
– Se digo que desejo ir, eu vou. Você não estaria tentando me dar ordens
se soubesse…
– Se soubesse o quê? – perguntei, na esperança de incitá-lo a revelar algo.
Ele controlou a emoção até o rosto ficar inerte como o rio ao amanhecer.
– Nada. – Ele abriu as mãos e as deixou cair soltas. – Só que… Meu pai é
um homem muito influente.
Entreguei o leme para Fee e desci para a cabine. Como muitas barcas
empregavam homens-sapo, ninguém iria olhar duas vezes para ela. Tarquin
era outra história. Tudo, de seus modos à sua cor, identificavam-no como
akhaiano, e não apenas akhaiano, mas um rico e de berço. Eu procurei nos
armários da Cormorant e juntei uma pilha de roupas velhas que dispus sobre
o beliche.
– Eu não posso vestir isso. – Tarquin mexeu no véu florido que estava em
cima da pilha de roupas. – Isso é coisa de velha.
– Isso mesmo. – Meus lábios se curvaram nos cantos. – Porque você vai se
vestir como uma velha.
– Não vou.
– Ah, vai, sim. – Eu gesticulei para as roupas. – Você não pode sair
mostrando esse brinco estúpido por aí. O véu vai cobrir sua cabeça muito
melhor que qualquer outra coisa que temos. Se não gostar, não venha. – Dei
um sorriso malicioso. – Ou venha como estiver. Os Cães Negros vão
reconhecê-lo imediatamente.
– Ah, então você quer que eu seja morto?
Eu dei de ombros.
– Isso faria com que você parasse de me perturbar. Uma coisa a menos pra
esquentar minha cabeça.
Ele examinou os cachos crespos que caíam pelas minhas costas.
– Eu não vejo como isso poderia melhorar as coisas. Eu garanto que, com
esse cabelo, sua cabeça está horrível com ou sem mim dentro dela.
Fiquei boquiaberta, mas segurei uma resposta sarcástica à altura do
insulto. Fazê-lo se vestir como uma velha era uma pequena vingança, mas
eficiente.
Ele pegou o vestido, o xale e o véu e abaixou a cabeça para entrar na
cabine da frente. Eu vesti minha capa de chuva e botei um gorro de tricô para
cobrir a maior parte de meu cabelo. Sua cor e textura eram diferentes o
suficiente para serem lembradas. Essa era a última coisa que eu queria.
Fee conduziu a Cormorant a um ponto de atracagem vazio. A julgar pelos
barcos, o público era, em sua maioria, de frequentadores da área. Barcos a
remo compridos e curvos dividiam o espaço com botes menores. A única
outra barca tinha uma bandeira tremulando em seu mastro – um barril de
vinho coroado com três estrelas, que imediatamente reconheci como o selo
dos Bollards. Olhei desconfiada para ele e desembarquei na doca.
– Esse não é um disfarce muito bom. – A voz de Tarquin veio das
profundezas do véu florido. – Quantas velhas com mais de um metro e
oitenta provavelmente veremos circulando pelas terras dos rios?
– Acho que tantas quanto garotos de dezoito anos com cara de akhaianos.
Ele se irritou e me deu um olhar rude. Eu tinha de admitir que ele dava
uma velha bizarramente engraçada, com a saia farfalhando em torno das
botas.
Quando seguimos pelas docas, passamos por uma dupla de pescadores.
Eles cheiravam a suor e à lama pungente do rio grudada em suas botas de
pesca, que chegavam até a coxa.
Tarquin franziu o nariz.
– Por que tudo em Kynthessa tem de ser tão sujo?
Olhei de soslaio para ele com desprezo. Sem dúvida ele iria achar as
cidades em Kynthessa mais de seu agrado. A maior parte da riqueza estava
concentrada ao longo da costa, onde empresas de navegação de carga
controlavam impérios comerciais. A Companhia Bollard, por exemplo, tinha
toda uma frota de brigues, navios de três mastros e barcas. Era impossível
que ele visse isso com desdém.
Por outro lado, eu desconfiava que Tarquin estivesse melhor conosco. Era
bem sabido nessas partes que, além de produtos, os Bollards negociavam
informação. Provavelmente, a essa altura, eles teriam arrancado dele seu
segredo e o vendido pela melhor oferta.
Tarquin puxou seu xale.
– Pare de se remexer – chiei. Começamos a subir a escada para a taverna.
Fee nos seguia e deixava uma trilha de pegadas molhadas.
– Se tivermos de fazer outro embuste – disse ele –, da próxima vez quero
um disfarce melhor.
– Isso não é um embuste. Meu avô certa vez se passou por um inspetor de
docas e contrabandeou todo um carregamento de whisky para Iantiporos, bem
debaixo do nariz da margravina. Isso foi um embuste.
– Silêncio. – Fee deu um olhar sério para nós dois.
Quando terminamos de subir a escada, eu abri a porta de tela. O bar estava
cheio de pescadores e marinheiros, dos quais apenas alguns ergueram os
olhos para perceber nossa chegada. Uma garçonete com avental coberto de
manchas âmbar fazia um círculo no salão acendendo velas com uma vela fina
e comprida. Cada mesa tinha uma toalha xadrez impermeabilizada, como a de
nossa cabine.
Deixei que a porta batesse ao se fechar às nossas costas. Puxei mais para
baixo meu gorro de tricô por cima do cabelo e inspecionei os presentes. Meu
pai nunca tinha problema para começar conversa com homens em bares, mas
ele conhecia praticamente todo mundo nas terras dos rios. Não havia
ninguém ali que eu reconhecesse. Talvez eu pudesse perguntar à garçonete se
os Cães Negros tinham passado por ali.
Um homem abriu caminho até o bar, me empurrando. Levei as mãos aos
bolsos, pois não há nada que batedores de carteira gostem mais que uma
taverna lotada. Tarquin apenas ficou ali parado, o que não me surpreendeu,
pois ele não tinha nenhum bom senso.
Alguém me segurou, circundando meu braço com uma pegada de ferro.
Eu levei um susto. Pelo canto do olho, vislumbrei um cabelo comprido e
uma barba. Ele cheirava a fumaça de madeira e sabão, e a algo estrangeiro.
– É melhor você vir comigo – disse ele baixo em meu ouvido.
– E se eu não for? – Meus nervos estavam tensos como uma linha com um
peixe.
O cano de uma pistola se afundou na parte de baixo das minhas costas.
– Para fora. – A barba dele fez cócegas em meu rosto. – Para a varanda.
Em silêncio.
Fiz o que ele me pediu na esperança de que Tarquin não estivesse prestes a
escolher esse momento para dizer alguma coisa idiota. Aí eu percebi que um
segundo homem o segurava pelo xale e o conduzia para fora, também.
Ninguém no bar pareceu perceber nosso aperto. Entre o casaco de meu
captor e o meu, a pistola estava escondida de vista. Para todas as outras
pessoas, devia parecer que nós quatro simplesmente tínhamos nos encontrado
e saído juntos para a varanda.
Quando a porta rangeu e se fechou às nossas costas, eu fiquei aliviada ao
ver que ela tinha uma tela. Com certeza, os Cães Negros não iriam nos
assassinar bem à vista de todos no bar.
O homem barbado dirigiu os lábios aos ouvidos de Tarquin.
– Escute, filho, não sei o que você está fazendo aqui, especialmente
vestido desse jeito. Mas é melhor tomar cuidado.
Puxei o braço e me soltei de sua mão. Em seguida, me virei e tive o
primeiro vislumbre de seu rosto.
– Oh! – Toda a disposição que eu tinha de lutar se esvaiu.
Sua capa era de um vermelho tão escuro que quase parecia preta. Como
Tarquin, ele usava uma joia na orelha. Suas roupas estavam cortadas como as
de um barqueiro, mas eram de tecido mais fino, trajes de um homem rico
tentando esconder quem é. Mas seu cabelo negro e seus olhos azuis o
entregavam.
Antidoros Peregrine, o revolucionário akhaiano exilado.
– Ai! Controle seu homem-sapo! – Outro homem passou com dificuldade
pela porta com Fee prendendo seu braço.
– Nós estamos bem – eu disse a ela, e então soltou o homem.
– Não vou contar aos Cães Negros quem são vocês – disse lorde Peregrine
para Tarquin. – Eu não gostava de seu pai, mas os Theucinianos são piores.
Não concordo com o assassinato de crianças.
Tarquin puxou o véu para trás.
– Eu não sei do que…
– Do que eu estou falando? Claro que não. – Ele olhou para mim. – É
Carô, não é? Perdoe-me pelas armas. Eu tinha de garantir que você viesse
rapidamente e em silêncio. Nós não temos problemas com a família Oresteia.
Acho que devemos a vocês por nos manter abastecidos neste último ano.
Suas palavras me lembraram.
– Ah, não acredito que me esqueci dos mosquetes – eu me apressei a
explicar. – Eles foram confiscados pelo mestre da baía em Pontal de Hespera.
É uma bela confusão. Eu juro, meu pai vai compensá-los…
Ele ergueu a mão.
– Não importa. Você, agora, tem coisas mais urgentes com que se
preocupar. Diric Melanos esteve nesta mesma taverna ontem.
Tarquin interrompeu.
– Eu sei quem você é. Meu pai costumava falar muito de você. – Peregrine
quase sorriu.
– Duvido que de forma positiva.
– Não era. Mas ele o respeitava como adversário. Eu lembro que você
jantou à nossa mesa uma ou duas vezes quando eu era menino. Você é
Antidoros Peregrine.
– Você provavelmente não vai acreditar em mim, mas eu lamentei a morte
dele. – O rosto barbado teve um lampejo de emoção. – E de Amaryah.
Sem pensar, estendi a mão para tocar a manga de Tarquin. Ele se recusou a
me olhar nos olhos, engolindo em seco de um jeito culpado. Ele pareceu
chocado ao ouvir que o pai estava morto. Na verdade, mais que qualquer
outra coisa, pareceu ofendido. Perplexa com a reação, deixei sua mão cair.
Lorde Peregrine prosseguiu:
– Soube que todo mundo foi morto no golpe. Imagino que haja uma
grande história para explicar como você veio parar aqui em Kynthessa.
– Há, sim – disse Tarquin, e isso foi tudo.
Lorde Peregrine deu a ele um aceno respeitoso com a cabeça,
reconhecendo que ele não iria ouvir a história.
– Mas como você o reconheceu? – perguntei.
Lorde Peregrine gesticulou para a saia curta demais de Tarquin.
– O capuz esconde seu rosto, mas eu me pergunto por que vocês não
tomaram mais cuidado com essas botas. – Ele ergueu as sobrancelhas. –
Botões de ouro? A marca do leão-da-montanha?
Consternada, olhei fixamente para as botas. Ele estava falando em ouro de
verdade? Eu imaginei que os botões fossem de latão. Eu me xinguei por não
ter jogado aquelas botas na água quando tive a chance.
Lorde Peregrine prosseguiu:
– Quando percebi quem você era, soube que precisava alertá-lo. Melanos
distribuiu prata por toda essa taverna, contando histórias em voz alta sobre a
barca que estava buscando. – Ele ergueu as sobrancelhas. – Parece que ela os
despistou em Pontal de Hespera. Mas ele deixou mais que moedas para trás.
Aquele homem no fim do bar…
Ele segurou meu braço antes que eu pudesse me virar.
– Não olhe – chiou ele. – Saiba apenas uma coisa: ele é perigoso. Todo
homem daquela tripulação é. Nas escaramuças de 88, o capitão Melanos fez
um nome para si como corsário, isso é bem verdade. Mas aí ele se tornou
pirata. Sua tripulação afundou cinquenta navios e matou centenas de homens.
Preste atenção em minhas palavras: eles não velejam para os Theucinianos,
eles viajam para si mesmos.
Se ele tinha sido corsário, o capitão Melanos antigamente devia ter tido
uma carta de corso. Assim como eu. Estremeci com uma sensação engraçada
de desconforto.
– De que lado você está? – perguntei. – Do velho emparca ou dos
Theucinianos?
– Nenhum deles – disse lorde Peregrine. – Os dias da monarquia absoluta
estão no passado. Queremos que Akhaia seja uma república, com um senado
eleito pelo povo. Mas eu não comemoro esse banho de sangue. – Pessoas que
eu… – Ele curvou a cabeça. – Pessoas que eu conhecia estão mortas.
Os olhos de Tarquin brilharam de raiva.
– Como pode dizer isso quando você estava agitando as pessoas? Achou
que não haveria sangue na revolução? – Um músculo em sua bochecha se
retorceu. – Não entendo como você pode ser um traidor de sua própria classe.
– Filho, minha posição como lorde me fornece poder. – Lorde Peregrine
pôs a mão no ombro de Tarquin. – O poder é uma coisa sensível. Você pode
usá-lo para esmagar aqueles que não o têm, ou para erguê-los. É uma escolha.
Acredito ser minha responsabilidade usar a voz que me foi dada.
Tarquin agitou o ombro para remover a mão do homem.
– Apenas pense nisso – prosseguiu lorde Peregrine, sem se ofender. – As
pessoas comuns de Akhaia são como formigas para Konto Theuciniano, para
serem pisoteadas sob o salto de sua bota. As coisas não precisam ser assim.
Enquanto Tarquin olhava fixamente para o rio que escurecia, de mãos no
bolso, eu vi um movimento em sua garganta. Eu não sabia dizer o que ele
estava pensando, porque seu rosto estava meticulosamente inexpressivo.
Eu me virei para lorde Peregrine.
– Onde está o Victorianos, agora?
– Em algum lugar entre aqui e a ponte, espero. Soube que eles pensam em
descer o rio amanhã.
A Casa do Carpinteiro era o último ponto de parada antes de Gallos. A
ponte levadiça, ali, era baixa demais para barcos como o Victorianos, e os
homens que trabalhavam para erguê-la deviam ter ido passar a noite em suas
casas. Onde quer que eles estivessem, os Cães Negros estavam presos até de
manhã.
– Preciso ir – disse lorde Peregrine. – Que a corrente vos leve, senhorita
Oresteia, como dizem aqui nas terras dos rios. Dê minhas lembranças a Nick.
– Ele fez uma pequena mesura para Tarquin. – Vossa excelência.
Eu congelei, incapaz de respirar.
Tarquin se retesou e seus olhos queimaram em direção a mim.
– Ela não sabia – disse ele em uma voz abafada.
Lorde Peregrine fez uma careta.
– Minhas desculpas.
Ele nos deu uma pequena saudação, empurrou a porta com o ombro e
entrou. Eu observei sua capa escura rodopiar a seu redor enquanto ele
passava pela multidão e saía por uma porta nos fundos.
Você não chamava um mensageiro de “Vossa Excelência”. Mesmo que
seja filho de um nobre. Minha mente girou, zunindo de desconfiança… E
com uma sensação crescente de medo.
O homem no fim do bar se virou. Era um homem grande e careca, com
braços duas vezes maiores que as minhas coxas. Suas luvas de couro estavam
arranhadas, e havia uma tatuagem azul rabiscada na pele de sua cabeça com o
cabelo começando a nascer. Um volume chamativo embaixo de sua jaqueta
me levou a crer que ele tinha uma faca presa às costas.
– Eu posso explicar… – começou Tarquin.
Eu levantei a mão.
– Aqui, não – resmunguei. – Vá direto para a porta. Mantenha a cabeça
baixa.
Nós quase conseguimos sair.
O homem careca flexionou os músculos e se afastou do bar. Enquanto
abria caminho pela multidão, ele enfiou uma das mãos no casaco.
Tarquin – eu não sabia do que mais chamá-lo – arregaçou as mangas do
vestido. Toda a intenção de ser uma velha tinha saído pela janela.
– Se eu tivesse uma espada.
– Bom, nós não temos uma espada. – Melhor para nós, eu suspeitava. Sua
confiança provavelmente superava em muito sua verdadeira habilidade com
uma lâmina.
Os lábios de Fee se curvaram para trás, mostrando dentes pequenos e
pontudos.
O homem tatuado assoviou um sinal. Um segundo e um terceiro homem se
destacaram da multidão e partiram como flechas em direção a nós. Eu não
sabia se eles eram parte da tripulação dos Cães Negros ou se eram apenas
corajosos homens do rio atraídos pela promessa de dinheiro.
Mas os Oresteias também são corajosos. Com um chute, derrubei uma
mesa e interrompi seu caminho. Canecas vazias atingiram o chão, fazendo
muito barulho, e uma vela caiu de lado, onde as chamas imediatamente
começaram a lamber a toalha de mesa xadrez.
– Fogo! – alguém gritou.
O homem tatuado avançou em direção a nós. Eu peguei uma cadeira e a
atirei nele com toda a força possível. Ela bateu em sua cabeça. Urrando como
um touro enfurecido, ele esbarrou em uma mesa de pescadores e derrubou as
peças de seu jogo no chão.
O maior dos pescadores pulou de pé com sua barriga protuberante por
baixo de um suéter de lã, e disse a ele exatamente o que pensava. O homem
tatuado o empurrou para o lado, o que fez com que seus amigos se
levantassem cambaleantes com gritos de protesto. Enquanto isso, as chamas
tinham saltado para uma segunda mesa. A garçonete gritou.
Tarquin entrou entre mim e nossos perseguidores, mas eu peguei a gola de
seu vestido e o puxei em direção à porta. Descemos ruidosamente as escadas.
Fee chegou primeiro, saltando três degraus de cada vez. Pernas de sapo são
uma vantagem quando você está com pressa.
– Fee, solte as amarras! – gritei.
Ela soltou os cabos de atracagem, e a Cormorant flutuou de lado para
longe do cais.
– Temos que pular do píer – exclamei e dei um grande salto. Uma água
azul escura passou por baixo de mim.
Atingi o convés correndo e fui direto até o mastro. Sem a vela, era
impossível navegar. Pelo canto do olho, vi Tarquin saltar a bordo. Com a
respiração arquejante na garganta, eu cacei a adriça. A vela negra se ergueu
em espasmos convulsivos, até que finalmente se encaixou no lugar.
Uma pistola disparou. Lascas explodiram da borda de madeira da
Cormorant.
– A pintura! – gritei.
Tarquin girou no convés.
– A pintura? Sério?
Mas a pintura logo era a menor de minhas preocupações. O homem com a
tatuagem saltou o vão e aterrissou no convés. Ele deu um olhar malicioso e
expôs dois dentes faltando.
– Olá, amor. – Ele segurava uma faca grande e suja.
Eu saquei minha própria faca. Ela parecia um brinquedo de criança ao lado
da dele.
Havia um par de remos guardados ao lado da parede da cabine. Tarquin
pegou um deles e o segurou como uma lança. Ele me empurrou com força
para trás de si.
– Para trás.
O homem tatuado estreitou os olhos e se lançou em sua direção com a
faca. Tarquin o atingiu com a extremidade rombuda do remo, desviando do
golpe com facilidade. O homem tornou a atacar. Tarquin avançou correndo,
movendo-se tão depressa que era quase um borrão. Madeira atingiu carne
quando ele acertou o homem na cabeça. Ele gritou e caiu na água.
Percebi que estava de boca aberta e rapidamente a fechei.
– Você é bom.
Tarquin sorriu. Então, ele escorregou em um pedaço molhado do convés, e
eu senti menos confiança nele.
Ele recobrou o equilíbrio.
– Eu sou o emparca de Akhaia – disse ele se aprumando. – Você acha que
eu não seria bom?
CAPÍTULO
DEZ

Ele largou ruidosamente o remo.


– Você já sabia. Eu posso muito bem admitir isso.
Eu me virei e caminhei pelo convés, trêmula de raiva. Sua traição era
como uma pedra dura sobre meu peito. Como ele podia não ter me contado
algo tão importante? Isso mudava tudo.
Tarquin me seguiu.
– Eu disse que sou o emparca de Akhaia.
– Eu ouvi.
Com Fee no leme, a Cormorant deslizava rio abaixo e pegava velocidade.
Uma névoa tinha começado a se aproximar, e as manchas molhadas da
primeira chuva pontilhavam o convés. Segurando o estai dianteiro, eu me
debrucei para fora para examinar a margem do rio. O perigo pairava sobre
nós como as nuvens baixas e úmidas. Nós precisávamos encontrar um lugar
onde nos esconder.
– O que impressionaria você? – Depois de tirar o véu florido, Tarquin
começou a desabotoar o vestido. – Imagino que seja impossível. Imagino que
seja necessário um conhecimento enciclopédico sobre peixes. Ou sobre
cordas.
Pelo menos agora eu entendia por que os Cães Negros queriam matar meu
passageiro. Eu não podia dizer que os condenava.
Eu me virei para encará-lo. Sua camisa, molhada de suor, estava grudada
em seus ombros. O traje descartado estava em uma pilha a seus pés, e a joia
vermelha brilhava em sua orelha esquerda. Isso indica que sou membro de
uma grande casa akhaiana, dissera ele. Tudo finalmente se encaixava – seu
jeito formal de falar, sua arrogância e, mais importante, o desejo dos
Theucinianos de tirá-lo do caminho.
– Olhe, qualquer que seja seu nome… – comecei.
Uma gota de chuva rolou por sua testa.
– Markos. Meu nome é Markos. – Ele esfregou a ponte do nariz. – Eu sou,
ou melhor, eu era o segundo filho do emparca – disse ele com um tom
estranho na voz. – Eu nunca devia herdar o trono. Mas agora…
– Espere, o segundo filho? Então por que… – Fui invadida pelo horror e
me detive imediatamente, temendo sua resposta.
Sua voz vacilou.
– O homem que matou Loukas, meu irmão, foi o capitão de nossa guarda.
Os Theucinianos devem tê-lo subornado. O próprio Konto matou meu pai –
disse ele, em um sussurro rouco. – Cortou sua garganta, em nossos aposentos
pessoais. Foi quando eu fugi. – Ele me lançou um olhar, com as pupilas
brilhando. – Imagino que você vá me chamar de covarde por isso.
Eu devia ter dito que sentia por sua perda. Era a coisa educada a fazer, mas
minha raiva por ele bloqueou minha garganta e impediu a saída das palavras.
– Meu pai, o emparca, não era um tolo – prosseguiu ele com voz rouca. –
Ele sabia que as pessoas estavam agitadas. Ele estava se preparando para uma
revolução. Por isso, chamou seu próprio homem das sombras pessoal,
Cleandros, e o instruiu a encantar quatro caixotes. Quando a tampa fosse
fechada, a pessoa em seu interior entraria em sono profundo.
– Por que você está me contando isso?
– Porque você deve saber.
Eu engoli em seco. Ele dizia isso agora. Agora, quando isso não
significava nada. Depois de mentir, mentir e mentir ainda mais.
– No caso de um ataque ao palácio – continuou. – Cada caixote deveria ser
enviado em uma direção diferente. Mas… – sua voz vacilou. – Ele nunca
esperava que o ataque viesse de alguém de nossa própria família. Os únicos
que conseguiram chegar às caixas fomos eu e… – ele hesitou. – E minha
mãe. Ela devia ser enviada para Iantiporos, para tentar convencer a
margravina a… a lhe dar asilo.
– Amaryah – eu disse em voz alta, lembrando. – Era de quem lorde
Peregrine estava falando? Sua mãe?
Ele fungou.
– Ele nunca devia ter falado dela com tamanha familiaridade.
– Por que, em nome dos deuses, você não contou a ele que ela está viva? –
perguntei. – Você não acha que esse é um detalhe que ele podia querer ouvir?
– Eu dei as costas para o emparca de Akhaia e saí pelo convés.
Eu ouvi suas botas atrás de mim.
– Eu não confio em Antidoros Peregrine.
Fee piscou os olhos amarelos quando chegamos ao cockpit. Ela fez uma
mesura quase até o chão.
– Excelência.
– Pare com isso – eu disse a ela enquanto subia pela escotilha. Ele não
merecia isso. Ele não tinha conquistado isso.
Tarquin – ou Markos, ou quem quer que ele fosse – me seguiu até a cabine
mal iluminada, abaixando a cabeça para evitar o teto.
– E então? Acabei de dizer a você que sou o emparca de um maldito país
inteiro. Você não vai dizer nada?
Gotas de chuva formavam uma névoa reluzente em seu cabelo preto. Abri
o armário e peguei a capa de chuva do meu pai.
– Aqui – disse mal-humorada jogando-a para ele.
Ele a pegou.
– Você está encarando isso com muita calma.
– Não estou, não. – Meu tom de voz era uniforme. – Estou furiosa. Eu
sabia que você estava mentindo sobre ser um mensageiro, mas isso… –
Engoli o nó doloroso em minha garganta. – Isso é um segredo grande demais
para ser guardado de mim. Você por acaso chegou a pensar na minha vida? –
perguntei. – Ou na de Fee? Nós merecíamos saber quanto perigo corremos. E
é muito perigo.
Uma ruga surgiu entre suas sobrancelhas.
– Você sabia que eu estava mentindo?
– Um mensageiro de verdade teria mais traquejo. Estaria acostumado a
viagens difíceis. – Eu fiz uma pausa com a mão na porta do armário. – Você
age, bem, de um jeito mimado.
– É isso o que você realmente pensa de mim? – perguntou ele em voz
baixa.
Eu vesti minha jaqueta.
– Por que tudo é tão sujo? – imitei-o. – Por que há tantos insetos nas terras
dos rios? Estou entediaaado!
– Está bem, você explicou o que queria dizer – disse ele com dificuldade,
com o rosto enrubescendo. – Só… pare de usar essa voz.
Eu bati a porta do armário.
– Eu nunca pedi para me envolver nisso! O homem que me deu essa caixa
mentiu para mim. E, depois, você mentiu para mim.
– Minha família tem uma propriedade em Casteria – disse ele. – Quando
chegarmos lá, posso pagar a você. Ouro, prata, o que você quiser. Em
compensação pelo perigo extra.
Eu olhei fixamente para ele.
– Você deve mesmo ser burro. Nós não vamos para Casteria.
Markos se aprumou em toda sua altura, e a cabeça bateu no teto.
– Ai! Sem dúvida, agora que você sabe a verdade sobre quem eu sou, você
pode ver que isso é importante.
Eu só via tudo aquilo com que eu me importava arder em chamas. Levá-lo
a Casteria significaria romper meu contrato. Brincar com a vida de meu pai.
E por quê? Por Akhaia? Não era nem meu país. Por ele? Ele tinha chamado
minha barca de pedaço de lixo, tentado me beijar sem minha permissão e,
para piorar ainda mais as coisas, ele havia me enganado.
– Tudo o que eu vejo são mais segredos – eu sacudi a cabeça. – Mais
mentiras.
Ancoramos em um lago pantanoso perto do rio principal e abaixamos o
mastro para esconder melhor a Cormorant de olhos curiosos. Pela aparência
do céu, o clima ainda iria ficar pior antes de melhorar. No escuro, Fee e eu
pusemos a cobertura encerada sobre a vela para protegê-la da chuva.
Markos se aproximou de um dos lados do mastro.
– Eu e Fee podemos fazer isso sozinhas. – Eu o afastei do caminho com o
cotovelo. – Vossa Senhoria não iria querer ficar com as mãos sujas.
– Na verdade, não é assim que você se dirige ao emparca – disse ele.
Eu o ignorei, até que ele desistiu e se afastou. Fee ajustou o encerado e me
lançou um olhar de reprovação.
– O quê? – Eu puxei as amarrações para baixo com mais força que o
necessário. – Eu esperava que você pelo menos estivesse do meu lado.
– Sem lados. – Ela apontou com a cabeça para as costas de Markos. Ele
estava parado sozinho com as mãos nos bolsos, vendo a chuva cair sobre o
pequeno lago. – Triste – disse com delicadeza.
– Se ele quisesse que eu me sentisse mal por ele – retruquei –, ele devia ter
me contado a verdade.
Levantei o capuz de minha capa de chuva e fui até a popa. Lorde Peregrine
dissera que os Cães Negros estavam em algum lugar entre nós e a ponte. O
Victorianos estava vasculhando as terras dos rios à procura da Cormorant,
mas nós não sabíamos praticamente nada sobre ele. Eu nem sabia qual a
aparência de Diric Melanos, ou o tamanho de sua tripulação. Talvez, em um
bote igual às centenas de outros botes naquela região, eu pudesse me
aproximar o bastante para descobrir alguma coisa. Pelo menos, eu poderia
saber onde eles estavam ancorados.
Uma chuva leve caía ao meu redor, retinindo na superfície do lago. Uma
poça estava começando a se acumular na quilha do bote. Eu desamarrei a
corda, entrei e comecei a remar.
O bote deu um solavanco, e eu quase caí do banco. Olhei para cima e vi a
corda bem esticada.
Markos estava parado com uma bota sobre a popa. Em uma das mãos, ele
segurava uma lanterna, na outra, a corda.
– Aonde você pensa que vai?
Eu apertei os remos.
– Explorar à frente.
– Sozinha? – Ele enrolou a corda na mão, impedindo que o barco se
movesse. – Você tem alguma ideia do perigo…
Eu olhei para ele.
– Não preciso de sua ajuda, Sua Majestade.
– Está errado, também – murmurou ele. O capuz da capa de chuva
revelava apenas sua silhueta, mas o queixo tinha uma expressão resoluta. –
Estou tentando ser um cavalheiro. Você me deixe fazer isso, por favor.
– Para que me serve um cavalheiro? – Eu bati na faca em minha cintura. –
Eu posso cuidar de mim mesma.
– É mesmo? – Ele caiu no interior do bote e o balançou. – O que você vai
fazer, começar outra briga de bar?
Eu apertei as mãos em torno dos remos. Ele era a última pessoa cuja
companhia eu queria, mas não podia expulsá-lo. Ele era mais forte que eu.
Essa parte não era mentira.
– Apague essa luz – ordenei, levantando a voz acima do ranger dos remos.
O bote deslizou para fora do lago, para o rio.
Sem a lanterna, meus olhos se ajustaram ao escuro. Nuvens cobriam a lua,
e a superfície da água estava lisa como uma lâmina de vidro, exceto pelas
gotas de chuva. Remei duas vezes com o remo de estibordo para apontar a
proa em direção a Gallos.
Markos sentou-se à frente, tamborilando os dedos no banco.
– A parte que não consigo entender – disse ele – é qual o jogo da
margravina.
Suor molhou meu pescoço.
– O que você quer dizer com isso?
– Bom, por que mandar você? – Ele me sentiu parar de remar e deu um
suspiro. – Pelas bolas de Xanto, você pode continuar? Isso não é um insulto.
Só quis dizer que a margravina podia facilmente ter ordenado ao comandante
que me levasse pessoalmente a Valonikos. Mas ela claramente tinha outras
prioridades.
– Eu não presumo saber – ofeguei – o que a margravina está pensando.
Porque, obviamente, nunca a conheci. – Eu não entendia como ele podia
pensar em política quando, a qualquer minuto, nós poderíamos nos deparar
com os Cães Negros.
Ele se remexeu de um jeito estranho no assento.
– Você a conheceu. – Revirei os olhos. – Claro que sim. Como ela é?
O lábio de Markos se retorceu.
– Como um morcego velho.
Eu resfoleguei, e trocamos um olhar quase amistoso.
– O que eu não entendo é como ela sabia que você estava na caixa – eu
disse.
Ele deu de ombros.
– Seus espiões, provavelmente.
– Ela tem espiões em Akhaia?
Ele balançou a mão.
– Todo mundo tem espiões. Acho que ela está jogando os dois lados contra
o meio – disse ele, pensativo. – Provavelmente, ela quer ver se Konto é mais
favorável a ela como emparca do que meu pai era. Para que ela possa decidir
qual reivindicação apoiar. – Ele cuspiu para fora do barco. – Vamos ver o que
ela acha de lidar com ele. Eu não desejo que ela seja feliz nisso.
Remei sem falar por vários minutos, aquietada pelo ritmo dos remos. Uma
nuvem cobriu a lua, tornando mais difícil ver a linha da margem.
– Lorde Peregrine disse que tinha uma dívida com seu pai – Markos
hesitou. – Por lhes levar suprimentos. Ele estava falando em contrabando,
não é?
Eu me encolhi, mas achei que podia muito bem admitir.
– Sim.
Ele ficou quieto por um instante.
– Então, você tem levado armas para rebeldes. Você nunca parou para se
perguntar o que ele iria fazer com elas?
– Ele é um filósofo, não um guerreiro. – Eu me concentrei nos remos
quando fui perfurada por seu olhar calcinante de reprovação. Não ajudou. –
Talvez ele só queira se defender.
– Eu não acredito que você seja tão ingênua – disse ele com delicadeza. –
Palavras também podem ser armas. Você está apoiando um revolucionário
perigoso.
– Não cabe a mim me preocupar com o motivo pelo qual ele quer os
mosquetes. Quando transportamos uma carga, é só um trabalho – menti. –
Mais nada.
– Vocês são simpatizantes. – Ele era mais esperto do que eu acreditava. –
É por isso que você e seu pai estavam contrabandeando os mosquetes. – Ele
parecia mais melancólico que raivoso. – Você odeia tudo o que eu represento.
– Não odeio exatamente… – fiz uma pausa. Água pingava da extremidade
das pás dos remos. – Lorde Peregrine foi exilado de Akhaia por escrever um
livro sobre os direitos de pessoas como eu. Seria assim tão estranho se eu
simpatizasse?
Estava escuro demais para ler sua expressão.
– Se tivesse sido Antidoros Peregrine quem tivesse matado minha família
em vez de Konto Theuciniano, eu me pergunto se você ainda estaria aqui
sentada dizendo isso.
Fui tomada por uma desconfortável onda de choque. A verdade era que eu
nunca tinha pensado muito nas consequências daqueles mosquetes. Eu ainda
acreditava que Markos estava errado sobre lorde Peregrine, mas ele tinha
razão sobre as armas: se pessoas viessem a ser feridas por elas, a culpa seria
parcialmente minha.
Nós estávamos chegando à ponte de Gallos. Eu levei um dedo ao lábio
para pedir silêncio.
O cúter Victorianos assomava acima das docas, com suas velas, enroladas,
constrastando completamente brancas com o céu escuro. O frio chuvoso
penetrou em meus ossos.
Gallos mal era uma cidade, era apenas um agrupamento de casas em torno
da ponte. O cais estava deserto; todos os barcos estavam cobertos com lonas
enceradas para impedir a passagem da água da chuva. Uma lanterna solitária
balançava embaixo dos beirais do telhado do barraco do inspetor das docas.
Em silêncio, remei para mais perto. Nada disso era culpa do Victorianos.
Na verdade, ele era uma beleza, com linhas delicadas e graciosas. Quando
passamos por baixo de sua proa, pude ver que ele tinha o casco trincado,
como a Cormorant, com tábuas curvas superpostas. Seu gurupés assomava
acima de minha cabeça, muito maior do que parecia à distância. Se três de
mim ficassem alinhadas de ponta a ponta, talvez tivéssemos o mesmo
comprimento daquele gurupés.
Um facho de luz de candeeiro jorrava por uma vigia perto da popa. Ela
tremeluzia, desaparecia completamente, em seguida explodia de volta à vida.
Havia homens, percebi, caminhando de um lado para outro em uma das
cabines do Victorianos. O que me interessava era que a janela estava aberta, e
por ela eu podia ouvir o sobe e desce de vozes.
Eu me virei para Markos.
– Eu pagaria um talento de prata para ouvir o que eles estão dizendo.
Nós flutuamos na sombra das docas. Eu me ergui parcialmente e espiei os
outros barcos no casco escuro do cúter.
Markos me puxou para baixo.
– Se você acha que vai sair dançando pelas docas direto para as mãos
deles, eu não vou permitir.
– Não nas docas – sussurrei. – Por baixo delas.
– Isso não vai ser nojento?
– Muito.
– Como sanguessugas, lodo e enguias?
– E aranhas – eu disse.
Ele me surpreendeu ao remover a capa de chuva.
– Está bem, então. Eu vou com você. – Enquanto desamarrava as botas,
ele sorriu para mim. – Alguém precisa impedir que você faça alguma coisa
perigosa e estúpida.
Seu sorriso passou por mim como um raio – eu não o estava esperando.
Será que eu o havia julgado injustamente? Sem dúvida, por ter crescido na
corte do emparca, ele deve ter aprendido a esconder seus sentimentos. Talvez
a arrogância fosse uma máscara atrás da qual ele se ocultasse.
Amarrei bem o barco a um pilar. Tirei os sapatos e o suéter e coloquei-os
amontoados sobre o assento, cobertos pela capa de chuva. Depois, abracei a
pilastra e subi sobre ela. Atrás de mim, o bote balançou.
Minhas pernas envolveram a coluna coberta de sujeira. Era, como disse
Markos, nojento. Não há nada mais escorregadio que uma estaca de madeira
que está há vinte anos na água, e eu já tinha visto aranhas do tamanho de
minha mão embaixo de docas. Eu me preparei e desci em silêncio para a
água.
Aos poucos, tateando com uma mão à frente da outra, seguimos nosso
caminho pela doca apenas com os braços e a cabeça acima da água. Chuva
pingava sobre as tábuas acima, e gotejava pelas frestas, para cair respingando
em meu rosto. O cheiro de lama e peixe era forte.
Eu não ia me permitir pensar nas aranhas das docas.
Naquele momento, estávamos na altura da popa do Victorianos, onde seu
grande leme se erguia da água. De onde estávamos, embaixo das docas, eu
mal conseguia ver a parte inferior da vigia. A luz brincava na água quando se
projetava sobre os pilares.
Bati no ombro nu de Markos e gesticulei com o queixo em direção ao
cúter. Nós nos aproximamos lentamente, seguindo pela água embaixo da
vigia, logo além do facho de luz inclinado do candeeiro. Eu me esforcei para
desacelerar a respiração. O latejar quente de exaustão física diminuiu, e, no
novo silêncio, eu percebi que conseguia discernir suas vozes.
– Ela não é mais rápida que o Victorianos.
Ouvi o tilintar de copos. Eu me aproximei mais, com cuidado para
permanecer na sombra da pilastra.
– Claro que não. Um de vocês, idiotas, provavelmente não a viu passar
quando deviam estar de vigia.
– Acho que você devia mandar Theuciniano se ferrar – disse o outro
homem. – Vamos seguir de volta para o mar. Esses rios são lentos, e os
malditos insetos são assassinos. Eu voto para voltarmos para Katabata.
Katabata. Isso soava vagamente familiar, como se eu tivesse visto em um
mapa em algum lugar. Arquivei o nome mesmo assim.
– Ainda bem que eu sou o capitão – disse o primeiro homem. – Você não
manda um emparca se ferrar.
Com isso, o capitão Diric Melanos passou diante da janela, e eu finalmente
vi o rosto de nosso inimigo. De perfil, pelo menos, ele parecia um tanto
vistoso. Usava um colete brocado e um chapéu tricorne, e uma cicatriz
desfigurava seu rosto sob o olho direito. Um verdadeiro pirata devia ter uma
barba pontuda ou um brinco, mas ele não tinha nenhum dos dois. Lorde
Peregrine o chamara de jovem impetuoso. Jovem para lorde Peregrine, eu
acho. O homem parecia ter uns trinta anos.
– Mesmo que eu pudesse fazer isso – disse o capitão –, ainda tem a
questão daquele outro. Eu não ouso contrariá-lo.
– Ayah, ele me dá medo, com certeza.
– Quieto.
A luz tremeluziu e mudou outra vez. As vozes dos homens se afastaram,
até um lugar onde eu não conseguia entendê-las. Houve um rangido e uma
batida baixa abafada. Uma porta se fechando.
Outra pessoa havia entrado na cabine.
O som de suas vozes veio outra vez em direção a nós.
– … encontre-se com Philemon. Veja se ele teve melhor sorte.
Eu nunca tinha ouvido falar em um Philemon, mas, se eles estavam a
caminho de se encontrar com essa pessoa, então ela não estava no
Victorianos. Será que os Cães Negros tinham um segundo navio à procura de
Markos? Para nosso bem, eu esperava que não.
– Seja como for, pelo menos conseguimos queimar um deles assim mesmo
– disse o capitão Melanos. – Acho que nós devíamos, em seguida, ir para
Casteria.
– Não – a terceira voz era aguda e escorregadia. – Nós precisamos do
garoto.
Ouvi uma forte expressão de susto ao meu lado. Luz brilhou através das
frestas na doca e riscou o rosto congelado de Markos.
– Cleandros – sussurrou ele.
CAPÍTULO
ONZE

Segurei seu braço por baixo d’água.


– O homem das sombras?
Markos puxou o braço e se soltou. Seus lábios tremiam de emoção ou de
frio.
O homem das sombras do emparca era um traidor. E ele não era apenas
uma ameaça indistinta, a quilômetros de distância em Akhaia. Ele estava ali.
Ele conhecia o rosto de Markos. Eu perdi o fôlego. Nós estávamos com mais
problemas do que eu jamais havia imaginado.
– Ayah, bom, nós já subimos e descemos este rio duas vezes – dizia o
capitão Melanos. – Aquela barca desapareceu.
– Eu lhe disse. Eles nos passaram. – Essa era a voz escorregadia que
Markos identificara como o homem das sombras Cleandros.
– Como, eu lhe pergunto, quando somos duas vezes mais rápidos? Acho
que eles estão escondidos em algum lugar. Eles devem conhecer cada maldito
canal e lago ao longo dessas águas. – Eu ouvi a batida de um copo sobre a
mesa. – Barqueiros conhecem essas coisas.
– Nós já perdemos muito tempo. Amanhã vamos passar pela ponte – disse
Cleandros. – Vamos procurar por eles no Rio Kars.
– Nós devíamos queimar essas barcas, isso sim. Fazer suas mulheres
falarem. Mostrar-lhes os canhões. Alguém sabe de alguma coisa.
– Você foi um tolo em Pontal de Hespera – disse o homem das sombras. –
Atear aquele incêndio só enraiveceu todos os homens do rio daqui até
Iantiporos. Não passou de um desperdício ineficiente e desnecessário. Uma
aposta, e agora você vê o que ela rendeu a você. Ninguém vai nos dizer nada.
– Eu sei que o garoto estava lá. Você não pode procurá-lo com sua magia
outra vez?
– Pela décima vez – retrucou o homem das sombras. – Isso não vai
funcionar. Onde quer que ele esteja, ele não está mais na caixa, então não
tenho como senti-lo. A magia em si é a única coisa que posso rastrear. Por
favor, pare com essas suas perguntas aborrecedoras. Nós temos a
emparquesa. Nós vamos encontrá-lo. – Markos se enrijeceu bruscamente,
fazendo a água redemoinhar a sua volta.
– O que foi esse barulho na água? – A voz do homem das sombras se
aproximou de nós. Ele devia estar parado na janela.
– Sapos. Peixes. – o capitão Melanos parecia despreocupado.
Um facho de luz mais forte recaiu sobre a água entre o cúter e a doca.
Alguém levantara uma lanterna. Eu me encolhi de volta para as sombras e
prendi a respiração. O medo me fez agarrar a estaca mais escorregadia.
Nos precisávamos sair dali. Aquela não era uma das histórias de meu pai
sobre os corajosos Oresteias de antigamente. Esse perigo era real. Se eles
pegassem Markos, iriam assassiná-lo. Não gostar de alguém era uma coisa.
Isso não significava que eu o quisesse morto.
Pelo menos nós conseguimos queimar um deles.
Um pensamento horrível ricocheteou por mim. Eles não queriam dizer
vivo, queriam? Eu visualizei uma bela senhora em um vestido de seda se
debatendo e se retorcendo em meio às chamas, esmurrando freneticamente a
parte interna da caixa…
Fechei os olhos bem apertado, tentando expulsar a imagem de minha
mente. Eu esperava que a emparquesa estivesse dormindo quando morreu,
como os desafortunados Singers.
Sacudi Markos e sussurrei:
– Vamos.
Nadamos de volta até o outro lado das docas sem dizer uma palavra.
– Minha mãe. – Ele subiu no bote. Água escorria por suas pernas,
empoçando no fundo da embarcação. Seus lábios estavam juntos, apertados
com tanta força que a cor havia desaparecido deles. – Pelo deus leão… Eu
sabia que meu pai e meu irmão estavam mortos – disse ele com os dentes
batendo. – Mas eu pensei… Ela não pode herdar o trono – disse ele com voz
embargada. – Ela não era nem ameaça para eles.
Com dedos trêmulos, eu vesti minhas roupas. Agradeci pelo meu suéter de
pescador, de tricô grosso, pois a lã esquenta mesmo quando molhada.
Markos sentou-se com as roupas empilhadas no colo. Em pânico, eu o
segurei pelos ombros e o sacudi.
– Markos. Recomponha-se.
A chuva caiu com mais força e escorria pela trave da lanterna na
extremidade da doca. Empurrei a capa de chuva de meu pai para Markos. Ele
conseguiu passar os braços pelas mangas, movendo-se como alguém meio
morto. Puxei o capuz para cima para cobrir seu rosto.
Nós fomos estúpidos, só por ter ido até ali.
Eu posicionei os remos. No Victorianos, ninguém deu nenhum sinal de ter
nos ouvido. Eu me estiquei para trás e remei com a maior força possível. O
bote pulou, quase saindo da água, e nos afastamos das docas.
Quando chegamos à escuridão turva da margem oposta do rio, eu não
parei. Remei com tanta força que produzi um redemoinho em nossa esteira
atrás da popa. Meu coração batia forte, e meu sangue fluía quente. A chuva
caía em torrentes, escorria pela gola de meu casaco e entrava pelas minhas
mangas. O gorro de tricô mantinha minhas orelhas aquecidas, mas meus
dedos estavam molhados e meio dormentes.
Tinha sido tolice entrar na água, quando não tínhamos como nos secar.
Não era tão ruim para mim, mas Markos não tinha o exercício para aquecê-lo.
Seus lábios pareciam azuis enquanto ele tremia no banco a minha frente, mas
o resto de seu rosto estava na sombra.
Ele não disse nada, nem quando chegamos ao esconderijo da Cormorant.
Ele saltou de pé e tentou passar o cabo pela argola enferrujada em sua popa.
Ele errou. O bote bateu no casco da barca.
Fee surgiu no cockpit de olhos arregalados. Ela pegou o cabo com Markos
e o amarrou tão depressa que suas mãos mal pareceram se mexer. Enquanto
ele subia pela popa, ela tocou seu braço. A preocupação obscurecia o rosto
dela. Ele soltou-se de Fee. Eu o observei descer para a cabine com o cabelo
grudado na nuca.
– Nós vimos o Victorianos – expliquei. A escuridão aninhada em meu
interior parecia grande demais para palavras. Eu baixei a voz. – Nós os
ouvimos conversar. A situação é ruim. Os Cães Negros mataram a mãe dele,
e o homem das sombras do emparca está em conluio com aqueles
Theucinianos.
Não havia muito mais a dizer. Eu me dirigi para a frente e parei com a
mão apoiada no mastro da Cormorant. Agora que o perigo tinha acabado,
todo o meu corpo tremia. Eu fechei os olhos.
Deus de meu pai. Deus de meus ancestrais. Leve a emparquesa em sua
corrente. Ajude-nos. Ajude-nos. Ajude-nos.
Quando tudo estava em silêncio, com a exceção das gotas de chuva, eu me
debrucei para fora e me entreguei completamente. O mundo se transformou
no espaço entre minhas respirações. Eu ouvi com tamanha atenção que achei
que os vasos sanguíneos em meus ouvidos pudessem explodir.
E ouvi…
Nada. Água da chuva gotejava das folhas, e um peixe pulou na superfície
do lago com um ruído delicado. Criaturas invisíveis faziam barulho na água
ao longo da margem. Se essa era a língua das pequenas coisas, ela não era
algo que eu pudesse entender.
Oito gerações de Oresteias foram favorecidas pelo deus do rio, então por
que não eu? Será que eu tinha feito alguma coisa? Uma lágrima brotou de
meu olho e pingou quente em meu braço.
De volta ao interior da cabine, eu vesti roupas secas e envolvi um cobertor
nos ombros. A chuva fustigava as vigias. Pela primeira vez desde que meus
dedos haviam se fechado em torno daquela maldita carta de corso, eu me
senti realmente desesperançada.
A cortina que dividia o beliche de meu pai do resto da cabine estava
totalmente puxada. Fee preparou uma caneca de chá com um pouco de
brandy e bateu no vau ao lado da cortina. Ela inclinou a cabeça para um lado
e falou com delicadeza.
Markos não respondeu.
Eu ergui a cabeça, observando o chá esfriar na mesa. Tirei a rolha da
garrafa de brandy e tomei um gole. Minha garganta queimou, mas o calor foi
apenas superficial. Ele nada fez para degelar o frio em meu coração. Fee
subiu rapidamente a escada e foi sentar-se à chuva, deixando-me sozinha.
Homens-sapo não se incomodam da mesma maneira que os humanos em
ficar molhados.
O relógio quase batia a meia-noite quando a cortina de lona foi puxada
bruscamente, chacoalhando suas argolas. Eu levei um susto com o som.
Markos sentou-se no banco à minha frente com uma trouxa enfiada
embaixo do braço. Ao observar seus olhos avermelhados nas bordas e o
maxilar cerrado, fui tomada por um medo cauteloso. Algo nele me fez pensar
em uma corda muito esticada. Cedo ou tarde, tudo chega ao ponto de ruptura.
– Eu só queria agradecer a você por ter me trazido até aqui. – Ele respirou
ruidosamente. – Estou de partida. Para Casteria. Esta noite.
Eu escarneci.
– O que você vai fazer, andar até lá? – Esfreguei minhas têmporas, que
doíam. – O que há de tão importante em Casteria?
Ele ficou em silêncio por um momento.
– Se eu lhe contasse, você consideraria me levar até lá?
– Não.
– E se a vida de alguém dependesse disso? – Ele acrescentou: – Não a
minha.
Eu me enfureci com isso.
– O que você quer dizer com “Não a minha”? Você acha que eu deixaria
que você morresse só porque não gosto de você?
– Eu não acho isso – disse ele rapidamente.
– Acha, sim. – Eu estava determinada a não deixar que ele visse como suas
palavras haviam me machucado. – Ou você não teria sentido a necessidade de
dizer isso.
Era verdade que eu não tinha sido muito simpática, mas eu ainda era
responsável por ele. Ele não conhecia as terras dos rios e não era bom em…
Bem, em nada. Se ele deixasse a Cormorant, provavelmente acabaria perdido
nos pântanos. Ou morto.
– O que é isso, afinal? – Eu peguei a trouxa e a arrastei pela mesa. Ele
estendeu a mão para me deter, mas fui rápida demais. Eu puxei a corda que
prendia a trouxa fechada, e o nó se desfez. – Isso não é nem um nó de
verdade.
Eu desenrolei a trouxa, revelando duas camisas, um pão e a pistola de
pederneira de meu pai.
Meu queixo caiu.
– Como você ousa roubar de nós?
– Eu… Eu vou reembolsá-la, é claro – gaguejou ele. – Por essas coisas, e
pela… pela capa de chuva.
Eu olhei para ele sem acreditar.
– Você não pode levar a capa de chuva.
– Está chovendo.
Senti um nó na garganta.
– Você acha que eu me importo com… Com essas coisas? – Eu joguei a
trouxa no chão. – E o meu pai? Como você pode ser tão egoísta…
– Sou eu quem está sendo egoísta? – rosnou ele, pulando de pé. – Eles
queimaram minha mãe viva!
Eu tinha certeza de que ele podia ouvir as batidas aceleradas de meu
coração.
– Seus pais estão mortos. – Minha voz, de repente, ficou embargada. –
Meu pai, não. Fiz uma promessa. Eu vou levá-lo para Valonikos.
Ele assomou sobre mim.
– Então é isso. – Músculos ficaram salientes em sua mão quando ele
agarrou a mesa. – Você não pretende me deixar partir.
Uma sensação desconfortável me tomou. A tensão pulsava no ar entre nós.
Eu engoli em seco.
– Não.
Nós dois mergulhamos na direção da pistola imediatamente.
Ele a alcançou primeiro e a tirou de meu alcance.
– Eu lhe disse que preciso chegar a Casteria. – Ele se colocou de pé,
ofegante. – Talvez, agora, você me leve a sério.
Eu dei um passo para trás. Pelo canto do olho, captei um vislumbre de
verde na escada da cabine.
Markos reagiu imediatamente e apontou a pistola para minha cabeça. Seus
olhos azuis estavam como gelo.
– Desculpe, Fee. Não quero que ninguém se machuque, mas é melhor você
ficar fora disso – ele disse. Eu inspirei. Minha respiração congelou
bruscamente quando ele caminhou em direção a mim. – Ou eu vou ter de
atirar nela.
Chegar tão perto foi um erro. Eu o chutei no meio das pernas. Ele grunhiu
e levou uma das mãos à virilha. Eu segurei o cano da pistola e a arranquei de
sua mão. Desequilibrado, ele tentou pegar a arma, mas errou e me acertou
com força no rosto.
Eu cambaleei para trás e bati com tudo no aparador.
Markos saltou em minha direção, mas eu girei para o lado. Os trincos
chacoalharam quando ele atingiu os armários. Caminhei de lado pela cabine,
botando a mesa entre nós. Irritado, ele tornou a avançar sobre mim, mas foi
detido pela faca de Fee, com a ponta pairando entre suas costelas.
Eu limpei sangue do lábio.
– Boa tentativa. – Eu estava respirando com dificuldade.
Seus olhos se arregalaram em choque ao ver sangue. Acho que ele nunca
tinha batido em uma garota, antes. Nada cavalheiresco.
Ele inalou entre os dentes.
– Um homem honrado não faria isso – murmurou ele, ajustando a calça. –
Não foi um movimento justo.
– Ayah? – Eu olhei para Fee. – Bom, eu tento nunca entrar em uma luta
justa. – E eu não era um homem honrado. Nem de perto. Abri a pistola. – A
arma não está carregada. E tem uma trava de segurança, o que significa que,
mesmo que estivesse carregada, não poderia ser disparada.
O peito dele arquejava.
– Tem alguma coisa que eu possa dizer que a convença a me levar a
Casteria?
– Sim – eu disse com um nó na garganta. – Conte-me a verdade.
– Caroline, por favor. – Fui percorrida por uma onda estranha de surpresa.
Era a primeira vez que ele me chamava pelo nome, com seu sotaque
enrolando o r de um jeito que o tornava diferente de como todas as outras
pessoas o diziam. – O que é que você mais deseja no mundo? – sussurrou,
estudando meu rosto. – É dinheiro? Seu próprio navio? Eu lhe dou qualquer
coisa.
Eu engoli em seco.
– A verdade.
Markos me olhou nos olhos e respirou fundo.
– Juro pelo deus leão, tudo o que estou prestes a dizer é verdade. Meu
nome é Markos. Eu sou o emparca de Akhaia. – Sua voz vacilou. – Minha
irmã de oito anos está em Casteria, e eu faço qualquer coisa para chegar a ela
antes dos Cães Negros. Mato qualquer um que fique em meu caminho. –
Lágrimas brilharam em seus olhos. – Até vocês.
Eu olhei para ele, com o coração apertado. Vi a Cormorant dilapidada e
apodrecendo em um estaleiro. Vi meu pai lutando contra correntes enquanto
era arrastado pelos homens da margravina. Vi sua barba ficar mais comprida
enquanto ele esperava, primeiro, por dias, depois, semanas. Esperava pela
filha que jamais chegaria por ele.
Eu vi todas essas coisas, e ainda assim a escolha não era difícil. Eu me
joguei no banco. Do outro lado da cabine, Fee baixou a faca. Não era nem
uma escolha.
– Pelos deuses, Markos. – Apoiei os cotovelos na mesa e a cabeça entre as
mãos. – Você é muito idiota.
– O que você quer dizer com isso? – perguntou Markos. Seu cabelo
molhado grudado na cabeça enfatizava os olhos fundos.
Eu levantei a cabeça.
– Quer dizer que nós vamos para Casteria.
Ele se virou abruptamente para a parede. Por longos segundos ele não
disse nada, e seus ombros se moviam para cima e para baixo.
– Obrigado – conseguiu dizer ele por fim, com a respiração vacilante. –
Você pediu a verdade. Há apenas um pouco mais na história do que
aconteceu naquela noite no palácio. Com meu pai e meu irmão mortos no
chão, corri para os aposentos de minha mãe. Minha irmã já estava ali.
Seguimos por uma passagem secreta até a adega, onde ficavam guardadas as
caixas.
Pelo modo embargado como ele contava a história, eu soube que era difícil
para ele, mas não consegui evitar interrompê-lo.
– Se Cleandros é um traidor, porque ele não matou todos vocês nesse
momento?
– Nossa família tinha vários planos de fuga. A única explicação é que ele
não sabia qual deles nós escolheríamos. Claro, ele saberia no momento em
que as caixas fossem fechadas; e a magia, ativada. – Mexendo na joia da
orelha, ele prosseguiu: – Ajudei minha irmã e minha mãe a entrar em suas
caixas, uma destinada a Iantiporos e, a outra, a Casteria. A criada de minha
mãe foi quem ficou para trás, para fazer com que os criados pusessem as
caixas em uma carroça destinada às docas. Sabe – disse ele, depois de uma
pausa – só agora estou começando a me perguntar o que aconteceu com ela.
– Provavelmente, ela foi morta. – Eu disse com azedume.
– Você acha que eu não tenho sentimentos – a voz dele estava carregada. –
Mas pensei apenas em minha irmã. Minha… Minha única esperança era que
ela não fosse importante o suficiente para os Theucinianos, sendo a filha mais
nova e uma menina.
– Markos. – Fui atravessada por um medo congelante. – O capitão
Melanos perguntou se, em seguida, eles iriam para Casteria.
– É por isso que nós precisamos partir agora. – Ele olhou pela janela para a
escuridão. – Preciso chegar lá antes.
Será que isso era ao menos possível? Os Cães Negros, acreditando que de
algum modo tínhamos passado por eles, iriam caçar Markos pelo Rio Kars.
Se chegássemos a Siscema, poderíamos desembarcar nossa carga no mercado
madeireiro e ganhar um pouco de velocidade. Podíamos seguir pelo Lago
Nemertes até o Rio Hanu, depois para o sul até o Pescoço.
Talvez. Se tudo se encaixasse perfeitamente.
Quando apagamos a lanterna, passava muito da meia-noite, mas eu não
conseguia dormir. Ouvi Markos na cabine da frente revirando no colchão.
Eu me sentei ereta e joguei as pernas para fora do beliche. Levei o
travesseiro para a extremidade oposta e deitei a cabeça na madeira que
dividia minha cabine da de meu pai.
Eu bati delicadamente com o nó dos dedos.
– Sinto muito por sua mãe. Você… você a amava muito? – Eu me senti
embaraçada. As palavras pareciam desconfortáveis e falsas a meus ouvidos.
– É claro que eu não a amava.
Isso parecia o Markos que eu conhecia, tanto no tom quanto no horror
genérico do sentimento. Surpresa, eu hesitei.
– Bom, se você quiser conversar…
– Não quero – disse ele, engolindo em seco com dificuldade.
– É que você pareceu abalado.
– Não estou abalado e não quero falar sobre isso. – Sua voz vacilava. – Vá
embora.
Alguns minutos depois, ele falou outra vez.
– Depois que minha mãe cumpriu seu dever com meu pai e lhe deu dois
filhos, ela foi para nossa residência de verão, nas montanhas. Ela só visitava
algumas semanas por ano. – O ritmo de suas palavras era lento e calculado,
como se ele recitasse a história da vida de outra pessoa. – Meu pai não se
interessou por mim até meu aniversário de dezoito anos. Na verdade, é
irônico… Eu me pareço muito com ele. É possível imaginar que isso fosse
importar para meu pai – disse ele, com a voz ainda estranhamente desprovida
de emoção. – Mas não importou. Para ele, eu era apenas o reserva. O único
propósito de um segundo filho, sabe, é tomar o lugar do primeiro filho, se
necessário. Isso não quer dizer que ele me negligenciasse – apressou-se a
acrescentar. – Ele contratou as melhores pessoas possíveis…
Contratar as melhores pessoas não parecia amor. Parecia um pouco triste.
– Tenho total consciência de que você me acha frio – disse ele. – Mas
como chorar por alguém que você na verdade não conhecia? Sinto falta da
ideia de minha mãe e meu pai, mas sinto mais falta de minha vida antiga. –
Ele deu um suspiro. – Isso é egoísta, não é?
– Eu acho – eu disse com cuidado – que seus pais eram quem eram. Você
não pode se sentir culpado por isso, não é culpa sua.
– Acho que nunca soube o que era amar alguém até o nascimento de
Daria.
Eu percebi que era a primeira vez que ele falava o nome da irmã. Sua voz
ficou delicada, fazendo com que ele parecesse quase simpático, quase
agradável.
– Meu irmão, Loukas, era muitos anos mais velho que eu – ele riu
amargamente. – Deuses, eu era desesperado para que ele prestasse atenção
em mim. Eu sempre estava… Sempre estava correndo em volta dele. Ele
praticamente me ignorava. – ele deu um suspiro rouco. – Talvez fôssemos
uma família fria. Mas eu não conseguia ser frio com Daria. – Ele fungou. –
Por que você está sendo simpática comigo? Você deixou claro o que pensa de
mim. Não precisa fingir.
– Porque – eu disse – você estava chorando.
A cabine estava tão escura que eu não conseguia ver minha mão diante do
rosto. Era fácil sentir-se solitário nesse tipo de escuridão.
– Eu não estava. – Ouvi uma batida abafada. Se eu tivesse de adivinhar,
diria que ele tinha socado o travesseiro. – Se eu estivesse, isso seria estúpido,
não seria? Chorar porque eu não sinto nada por eles.
– Eu disse uma oração para o deus do rio por ela – sussurrei. – Por sua
mãe.
Depois disso, tanto tempo se passou que comecei a achar que ele tivesse
dormido. Eu mesma estava pegando no sono, com os olhos pesados e
começando a arder. A Cormorant balançava e rangia delicadamente,
ancorada. No convés, pensei ouvir Fee assoviar baixo uma música.
– Você diz que seu deus do rio conversa com os barqueiros?
– Não tenho mais certeza – sussurrei, tão baixo que ele não conseguiu me
escutar. Uma lágrima quente escapou do canto de meu olho, escorreu por
minha têmpora e caiu no travesseiro.
– Invejo você – disse ele baixinho. – Eu gostaria que o deus de Akhaia
falasse comigo.
Não sei se, então, ele dormiu, mas eu, sim. Meu sono não foi tranquilo. O
travesseiro parecia uma pedra embaixo de minha cabeça, e eu entrava e saía
de sonhos entrecortados.
Começou com uma imagem que se repetiu várias vezes. Minha mão
deslizando pela amurada lisa de um navio. Pelo movimento do convés, acho
que estávamos no mar. Senti cheiro de cordas, alcatrão e salmoura.
Eu caminhava pelo convés vestindo um colete elegante e uma camisa com
mangas bufantes. Eu usava um chapéu tricorne e um par combinado de
pistolas de ouro com coronhas de osso em relevo.
O navio era o cúter Victorianos. Eu não o havia reconhecido no início,
com sua vela de mezena quadrada desfraldada e três velas de traquete
enfunadas acima do gurupés. Ele deslizava pelo mar, e sua proa cortava a
água com um splish-splash, splish-splash, splish-splash. Meu coração
cantava com as ondas.
Gaivotas voavam em círculos e mergulhavam ao redor do cúter. Uma
delas pousou sobre a amurada e bateu as asas cinzentas.
Ela girou a cabeça e olhou direto para mim.
E sussurrou meu nome.
CAPÍTULO
DOZE

Enquanto abaixávamos o mastro da Cormorant para passar por baixo da


ponte de Gallos, o velho no barco do pedágio nos observava pela janela
enevoada de sua cabine. Nuvens pesadas pairavam baixas sobre o pântano,
despejando gotas frias de chuva.
– Quem é esse? – Markos olhava fixamente, com os olhos fundos por falta
de sono.
– Esse é o homem que trabalha no barco do pedágio.
– O que ele faz aqui?
Eu dei de ombros.
– Coleta o pedágio. Se está escuro, ele se assegura de que todas as luzes
estejam acesas. Se é um navio grande, ele faz com que movam a ponte.
– Foi isso o que o Victorianos teve de fazer?
– Foi. Eles prendem uma parelha de cavalos ao cabrestante, e ele gira a
ponte, de modo que o navio possa passar.
Ele olhou para a ponte com uma nova apreciação.
– É uma pena que nosso mastro pode ser abaixado. Eu adoraria ver como
eles fazem isso.
O homem do pedágio saiu de sua cabine e foi até a amurada. Fumaça saía
da extremidade de seu cachimbo. Ele me deu um aceno de cabeça.
– Hoje passou, com a maré da manhã, um cúter procurando uma barca –
ele falou com o tom enrolado de um velho que já tinha visto todo tipo de
coisa subir e descer o rio e não ia se dar ao trabalho de se apressar por
ninguém. – Uma barca chamada Cormorant.
Tentei parecer natural, apesar do zumbido em meus ouvidos e do coração
acelerado.
– Eles disseram Cormorant? A última vez que vi a Cormorant ela estava
em Pontal de Hespera. – Eu me estiquei além da borda e joguei uma moeda
na rede do homem do pedágio. – Deve ter sido há uns quatro dias.
– Aqueles bandidos estão revirando o rio. Eles estavam revistando as
barcas nas docas. – Os olhos dele se dirigiram para Markos. – Fazendo
perguntas sobre um garoto. Mas eu acho que vocês perderam toda a agitação.
Markos virou o rosto abruptamente, pegou a ponta de um cabo e começou
a enrolá-lo em torno de um cunho. Eu fiz uma careta. Ele estava fazendo tudo
errado.
O homem do pedágio soprou fumaça de cachimbo.
– Eu disse a eles: “Eu não vi essa barca”. Mas não acho que as pessoas
aqui vão olhar com simpatia para os Cães Negros se eles resolverem voltar. –
Ele puxou sua capa de chuva para o lado para revelar a pistola enfiada no
cinto. – Nós sabemos cuidar do que é nosso em Gallos.
– Que a corrente vos leve, senhor – gritei.
Enquanto passávamos por baixo da ponte, Markos e eu trocamos olhares
severos. O cheiro de musgo e lixo molhados nos cercava, gotas de água
caíam com pequenos plics da pedra acima. Aí, luz derramou-se sobre nós, e
eu pisquei. A Cormorant tinha passado pela ponte.
– Levantar o mastro! – exclamei. – Içar vela!
Quando o vento tornou a encher a vela, eu tomei a adriça das mãos de
Markos.
– Não toque nos cabos.
– Eu só estava…
– Fazendo uma lambança. – Ele tinha envolvido o cunho com círculos
grandes e frouxos. Eu dei um suspiro. – Olhe, apenas não… Não toque em
nada.
– Você acha que ele sabia quem nós éramos? – Enquanto esfregava as
mãos na calça de meu pai, ele apontou com a cabeça em direção à ponte que
deixávamos para trás.
Eu olhei de cara fechada para Fee.
– Eu sei que ele sabia.
– O quê? – Sua voz saltou uma oitava. – Foi por isso que ele lhe mostrou a
arma? Como ameaça?
– Aquela pistola não era para nós. Ele estava me mostrando que sabia
quem éramos e que não ia contar.
– Você tem certeza de que ele sabia?
– Viajo para cima e para baixo deste rio desde que eu era do tamanho de
um lambari – eu disse. – Ele conhece meu rosto e conhece a Cormorant,
mesmo sem seu nome. E ele também sabe que, se meu pai não está comigo,
deve haver um problema. Você o ouviu. – Senti um nó crescer na garganta.
Olhei para trás, mas o barco de pedágio estava fora de vista. – Ele disse que
sabemos cuidar do que é nosso.
Choveu o resto daquele dia e noite adentro. Eu não me importava – o
tempo cinza refletia meu estado de espírito. Markos não apareceu muito e só
saía da cabine para beliscar apaticamente as refeições. Passei a maior parte de
meu tempo meditando sozinha no convés. Gotas tamborilavam na água,
retinindo em sua superfície, e uma neblina densa pairava sobre as terras dos
rios. Com o capuz de minha capa de chuva sobre o rosto, observei Fee se
agachar perto do cunho. Ela não se incomodava com a chuva que corria por
seu rosto escorregadio.
Fechei as mãos em torno da caneca quente de café e olhei fixamente para a
água barrenta como se, ao fazer isso, ela fosse revelar seus segredos para
mim.
Ela não fez isso.
Quando chegar o dia de seu destino, você vai saber… Mas, quanto mais
eu via e escutava, mais minhas dúvidas se concretizavam em certezas. Um
frio tomou meu coração.
O deus no fundo do rio fala com os barqueiros na língua das pequenas
coisas. E com a família Oresteia, sempre. Com todos eles, desde a época em
que atravessavam o bloqueio.
Exceto comigo.
Isso doía, como se um grande buraco negro tivesse se aberto em meu
estômago. Sempre houve alguns barqueiros que navegam sem o favor do
deus do rio, mas tudo é mais difícil para eles. E eu sabia que outros capitães
falavam sobre eles às suas costas. O rio sempre tinha sido meu lar. Se eu não
pertencesse a esse lugar, onde mais eu iria conseguir me encaixar?
O dia seguinte amanheceu frio e chuvoso. No interior da cabine, Markos
olhava sem ânimo pela vigia, com os olhos fundos e vermelhos. Eu não achei
que ele tivesse dormido. Através da cortina, eu o ouvi rolando e suspirando a
noite inteira. Por fim ele acendeu um candeeiro. Eu me virei para a parede e
tentei ignorá-lo enquanto ele folheava as páginas de um livro até de manhã.
– Está frio. – Eu joguei um dos pulôveres de meu pai para ele. – Aqui.
Ele obviamente não tinha espelho, ou teria visto a poeira branca de sal
onde as lágrimas tinham secado em seu rosto. No dia anterior, ele mal falara
uma palavra. Eu não me importei, porque eu também não estava muito
inclinada a conversar. Algo maior que nuvens de tempestade pairava sobre
nós.
Markos alisou o suéter em seu colo. Passou-se um minuto, até que ele
falou.
– Não foi só porque eu queria que você me levasse a Casteria.
Tomei um grande gole de café e queimei a língua. Meus olhos
lacrimejaram.
– Você sabe. Naquela noite. Eu não tentei beijar você apenas porque
queria que você mudasse de ideia sobre Casteria. Eu… interpretei mal a
situação – ele hesitou. – O que quero dizer é que você estava ali parada na
minha cabine… – Ele limpou a garganta. – Quero dizer, eu realmente quis…
– Eu não quero falar sobre isso – falei, bruscamente.
Ele falou mais alto que eu.
– Estou tentando me desculpar.
– Ah. – Nós caímos em um silêncio desconfortável. Ele puxou o suéter por
cima da cabeça e despenteou o cabelo preto. Se fôssemos meu pai e eu
sentados na cabine em um dia chuvoso com o fogão aceso, eu talvez tivesse
chamado aquilo de aconchegante, mas, com nós dois ali, era apenas tenso.
Eu rompi o silêncio.
– Como pode ter pensado isso? Eu tinha acabado de conhecer você.
– Provavelmente, eu não estava pensando… – Então, murmurou algo.
– O quê?
Markos afastou os olhos, mas não antes que eu visse suas maçãs do rosto e
as pontas de suas orelhas enrubescerem.
– Eu disse: “E eu achei você bonita”. – Ele remexeu com as mãos. – Eu…
imaginei algumas coisas que não existiam.
Se ele tivesse dito que estava caindo neve do teto da cabine, eu não teria
ficado mais chocada. Bonita. Depois de passar os últimos três dias insinuando
que nada naquela barca era bom o suficiente para ele, inclusive eu.
Ele prosseguiu.
– Acho que você podia se lavar mais, mas há um certo… Charme rural em
você. E você é muito…
Eu estreitei os olhos.
– Você devia ter parado quando estava ganhando.
– Eu ia dizer competente.
Isso não era mesmo o que eu esperava dele. Eu o olhei fixamente.
– Quem já tentou beijar uma garota por ela ser competente?
Ele deu de ombros e me lançou um sorriso enviesado.
– Meu mundo é cheio de pessoas inúteis.
– Ah. – Eu não estava para muita conversa aquela manhã.
– Eu tirei conclusões precipitadas sobre quem você era – prosseguiu ele. –
Conclusões que não deviam ser verdade e que provavelmente a magoaram.
Eu esperava, sim, manipulá-la. Estou pensando sobre o que disse lorde
Peregrine. Uma pessoa que detém uma posição de poder nunca deveria usá-la
para tirar vantagem dos outros – ele engoliu em seco. – Desculpe.
Eu senti que ele não tinha acabado.
– Eu me sinto em desvantagem aqui. – Ele observou a chuva cair pela
janela da cabine. – A única coisa que sei ser é um filho de emparca. Sei que
tudo o que faço parece errado e idiota para você.
Ele tinha uma expressão estranha no rosto, como se torcesse para que eu
negasse isso, mas já tivesse se resignado ao fato de que eu não o faria.
Quase me senti mal, então, por jogar o balde de água nele. Mas eu lembrei
como ele pusera as mãos em mim, e como isso me deixara com raiva e
envergonhada. E, depois, a vergonha que senti por ficar com vergonha,
porque era ele quem estava errado.
– Calculo que vamos chegar a Siscema ao meio-dia – eu disse, na
esperança de conduzir a conversa em uma direção menos embaraçosa. Eu
tinha certeza de que ele podia ouvir as batidas rápidas e apreensivas de meu
coração. – Você pode ficar aqui dentro, se quiser. Não vou pensar menos de
você se não quiser sair no clima ruim.
– Agora, isso é mentira. Você vai, sim.
Eu dei de ombros.
– Só estava tentando fazer com que você se sentisse melhor.
– Tem mais uma coisa que eu gostaria de dizer. – Ele aprumou os ombros.
– Depois de residir neste barco por vários dias, posso agora ver que ele não é
um pedaço de lixo. Ele é muito bom… nas coisas que ele faz.
Lancei um olhar penetrante em sua direção. Ele era inteligente o bastante
para perceber que elogiar a Cormorant era um meio seguro de voltar às
minhas boas graças, mas eu não vi malícia por trás de seus olhos cansados.
Resolvi aceitar seu discurso estranho pelo que ele aparentava ser: uma oferta
de paz.
– Obrigada por isso, pelo menos. – Fiz uma pausa por um instante. – Para
onde vamos agora?
Ele olhou para seu café, como se as soluções para os problemas que nos
assombravam estivessem no fundo da caneca.
– Acho que isso depende de você.
– No navio-farol que há no Pescoço – eu disse, lentamente – eles acendem
luzes de cores diferentes para alertar os barcos sobre o clima. Uma lanterna
amarela significa que o dia está bom. Uma lanterna vermelha significa que as
condições do mar estão ruins.
– O que nós temos?
– Duas lanternas amarelas. Navegue com cautela – eu disse.
Nós chegamos a Siscema logo após o meio-dia. A chuva tinha parado, mas
nuvens pairavam baixas sobre a terra, assim como a fumaça de centenas de
chaminés. Siscema era maior que Pontal de Hespera ou Gallos. Localizada
onde o Rio Melro e o Rio Kars se juntavam, era o porto mais importante no
norte das terras dos rios. A cidade era um labirinto de ruas calçadas com
pedras e jardins murados. Suas docas eram uma vasta confusão de barris e
caixotes empilhados por toda parte. Carroças entravam e saíam de armazéns
na beira do rio, e pairava um cheiro de alcatrão e serragem.
Conduzi a Cormorant para um ponto vazio no mercado madeireiro.
Cercada pelos familiares sons de porto, de guindastes barulhentos, gaivotas
estridentes e rangido de cordames, esperamos pelo inspetor das docas para
desembarcar nossa carga. Não havia sinal do Victorianos.
Eu tinha outras razões para ficar de olho aberto. Gente demais me
conhecia na cidade de Siscema. Pessoas pelas quais eu preferia não ser vista.
Markos observava um grupo de aves negras voar e mergulhar em meio às
boias.
– Cormorões – eu disse.
– Eles gostam de águas rasas, como o barco.
Fiquei satisfeita por ele ter percebido.
– Ela parece um pouco com um cormorão grande e preto, não é?
Markos perdera parte das sombras sob os olhos. Ele emergira no convés
com o cabelo molhado e o rosto rosado por ter sido recém-esfregado, no que
parecia muito mais com sua personalidade habitual.
Claro que sua personalidade habitual ainda era irritante. Mas ele parecia
mais relaxado quando se sentou no teto da cabine com as pernas penduradas
para fora, e a gola da camisa de meu pai se movendo ao vento. Talvez ele e
eu tivéssemos chegado a um entendimento cauteloso, ou ele tinha
simplesmente sido subjugado por sua tristeza.
– Quer parar de olhar para trás? Você está me deixando nervoso – disse
ele.
– Talvez tenhamos de esperar por horas. E se os Cães Negros aparecerem?
– Eu estava relutante em dizer a ele que os Cães Negros eram apenas metade
do que eu tinha na cabeça.
– Nós podíamos simplesmente nos esquecer das toras – sugeriu Markos.
– Nós vamos duas vezes mais rápido sem elas. – Mordi o lábio inferior,
arrancando uma lasquinha de pele. Era um hábito ruim, mas eu estava tão
nervosa que não conseguia evitar. – Por que o inspetor das docas tem de ser
tão desgraçadamente lento? – Gesticulei em direção às outras barcas. – Eu
gostaria apenas que pudéssemos pular essa fila e dar o fora daqui.
– É claro! Caroline, acabei de pensar uma coisa! – Ele pulou e desceu. –
Seu lábio está sangrando.
– Sim. Obrigada. Isso não ajuda muito. – Suguei o lábio machucado e
provei o travo ferroso de sangue.
– Não era isso. A carta de corso! Pena que não pensamos nisso uma hora
atrás.
– Você acha que isso vai ajudar em alguma coisa?
– Você acha que os barcos de uma margravina esperam? – Ele me olhou
com expressão de desprezo. – Por que um do emparca com certeza não. Onde
você a guarda?
Eu a retirei do bolso de cima de minha capa de chuva. A fita estava
amarrotada, e o pergaminho com orelhas nas extremidades, mas ainda era
uma carta de corso.
– Você, aí? – Havia um toque autoritário na voz de Markos quando ele
chamou o inspetor das docas. – Estamos a serviço da margravina.
Inacreditavelmente, o inspetor das docas parou o que estava fazendo e se
aproximou imediatamente. Talvez o truque estivesse na confiança. Markos
supunha que as pessoas iriam obedecê-lo imediatamente, por isso elas o
faziam.
Entendi que a exceção era eu.
O inspetor das docas tinha barba grisalha e pele mais escura que a de
minha mãe. Ele não era ninguém que eu conhecia. Siscema era um porto
grande, por onde passavam muitas barcas todos os dias – e barcos marítimos,
também, vindos do Lago Nemertes para Iantiporos.
– Eu tenho a honra de ser Tarquin Meridios. Sou mensageiro do consulado
akhaiano – disse Markos, oferecendo o pergaminho amarfanhado para o
inspetor. – Eu tenho uma carta de corso.
Observei os olhos castanhos do homem examinarem o conteúdo.
– Isto é para a barca Cormorant. – Ele baixou a carta.
– E esta é a barca Cormorant.
– Não é o que diz a pintura – observou, com os olhos indo e vindo entre o
documento e o barco. – Ela diz que esta é a Octavia.
– Nossos negócios exigem o maior segredo. Capitã Oresteia, poderia, por
favor, buscar os documentos do barco para este homem?
Eu me abaixei e entrei na cabine para pegá-los na caixa à prova d’água
onde meu pai guardava as coisas importantes. Muito nervosa, eu os entreguei
a Markos, que, por sua vez, entregou-os ao inspetor das docas. Ele não ia
aceitar aquilo, eu simplesmente sabia.
– E aqui está o contrato da madeira – eu disse, desconfiando que Markos
não pensaria em pedir por ele. Com um olhar entediado e olhos semicerrados,
Markos estendeu a mão espalmada. Eu pus o documento nela.
– Como pode ver – disse Markos –, estamos a caminho da cidade livre de
Valonikos com toda a rapidez a serviço da margravina. Precisamos
desembarcar esta carga imediatamente e partir.
O homem ergueu o papel contra o sol. Havia um desenho entrelaçado no
pergaminho que eu não havia percebido antes.
– Ele traz sua marca e seu selo – admitiu ele com uma sacudida
desnorteada da cabeça. Ele provavelmente estava se perguntando por que um
mensageiro estaria a bordo de uma barca de carga, mas estava impressionado
demais pela carta para perguntar. Ele assoviou para seus homens.
Enquanto puxavam para trás a escotilha do compartimento de carga e
traziam as alavancas e guindastes, perguntei baixinho a Markos:
– Quem, afinal, é Tarquin Meridios?
Ele sorriu.
– Eu o inventei.
– Não estou dizendo que você tem futuro como criminoso e malandro –
disse a ele. – Mas isso foi excelente.
Uma gaivota solitária desceu do céu e pousou em um dos pilares das
docas. Ela inclinou a cabeça para o lado e piou para mim.
Eu ergui os olhos e congelei. Uma mulher caminhava pela doca na
companhia de um homem de túnica com um livro-caixa. Eles eram seguidos
por dois guarda-costas, homens de armaduras de couro ornadas com pregos e
espadas.
– Maldição dos deuses. – Eu saquei a pistola do coldre.
– Quem é essa?
Eu peguei a manga de Markos.
– Escute. Os Bollards negociam todas as coisas. Produtos, dinheiro,
rumores. Tudo. Eles venderiam você para os Theucinianos sem pensar duas
vezes. Desça para a cabine e se esconda. Tem um compartimento de
contrabando a estibordo. Vá!
A mulher na doca vestia um gibão dourado com mangas bufantes vazadas.
Acima de seu rosto astuto e de pele marrom, havia um turbante de seda
vermelha com uma padronagem de bolinhas douradas.
Um relógio belamente gravado e um conjunto de chaves de latão
combinando pendiam de um porta-chaves na cintura. A gravação no aparelho
retratava um barril de vinho coroado com três estrelas.
A maior parte das pessoas a conhecia como Tamaré Bollard, negociadora
da família Bollard de mercadores. Infelizmente, eu a conhecia por um nome
diferente.
Eu baixei a pistola.
– Oi, mãe.
CAPÍTULO
TREZE

– Carô? Por que você pintou o nome da Cormorant? – foi a primeira coisa
que ela quis saber. – Seu pai está com problemas por contrabandear outra
vez?
Meu pai diz que a melhor mentira é a mais próxima da verdade, por isso
eu aproveitei a oportunidade que ela me ofereceu.
– Ayah – eu disse. – Quando ele não está? Ele achou que devia se manter
discreto por um tempo. Somos só eu e Fee. Estou a caminho de Valonikos
para buscá-lo.
Eu percebi que ela estava olhando fixamente para minha mão, onde eu
ainda apertava a pistola. Eu a enfiei despreocupadamente no cinto.
– Havia um homem por aqui, antes – eu disse como explicação, com a
nuca arrepiada pelo nervosismo. – Não gostei da aparência dele.
– Você vem de Pontal de Hespera? – Minha mãe se apoiou em uma
pilastra da doca. – Temos ouvido rumores estranhos. De problemas em
Akhaia e… outras coisas. Não sabemos como interpretá-los.
Admirei a fileira de brincos que percorriam todo o lobo de sua orelha. Ela
também usava um brinco cintilante do lado esquerdo do nariz. Eu não duvidei
que fossem de ouro verdadeiro.
– Não – eu disse, fria como uma barriga de truta. – Quero dizer, nós
estivemos em Pontal de Hespera. Mas faz alguns dias. Soube que piratas a
queimaram. O homem no barco do pedágio na ponte de Gallos disse isso,
mas eu achei que ele estivesse me provocando.
Minha mãe pareceu preocupada.
– Acho que não – ela disse.
– Algum problema? – Agradeci por ter guardado a carta de corso. Não
havia maneira fácil de explicar isso para minha mãe.
– Não sei dizer ao certo. – Ela deixou as preocupações de lado. – Mas
claro que você vai à minha casa jantar.
– Eu… uh… preciso pegar a maré para Doukas – menti. Eu não ia para o
norte, passando por Doukas, mas para o sul, pelo Lago Nemertes.
– Você, agora, está evitando sua mãe?
Esforcei-me para não me contorcer como um besouro cutucado com uma
vara.
– É minha primeira viagem sozinha. Eu queria ser rápida.
– Você pode pegar a maré da manhã e chegar lá ao meio-dia, Carô. Como
você bem sabe. – Ela saltou para o convés da Cormorant e acenou com a mão
para dispensar seus acompanhantes. – Agora, solte as amarras e vá para a
terceira doca. Temos uma vaga aberta. Você não vai ter de pagar as tarifas de
porto.
E, desse jeito, eu me vi presa.
Enquanto guiávamos a barca até a doca dos Bollards, minha mãe cruzou as
pernas e reclinou-se no assento do cockpit. Fee olhou para mim com
apreensão, mas não disse nada. Eu mesma tentei evitar olhar para a escotilha
da cabine. Torci para que Markos tivesse tido o bom senso de obedecer
minhas instruções e se esconder, mas, com o olho de águia de minha mãe
sobre mim, eu não ousei verificar. Depois que terminamos de descarregar
tudo, juntei-me a minha mãe nas docas e deixei Fee de vigia.
Minha mãe ficou bem perto ao meu lado enquanto caminhávamos pela rua
movimentada. Eu sabia que não havia como evitá-la. Ela era mais afiada que
uma faca – e, naquele momento, mais perigosa. Os Bollards comandavam um
vasto império comercial, isso era verdade. Mas, como eu dissera a Markos,
havia dedos seus em muitos negócios.
– Não gosto da ideia de Nick deixar você viajar sozinha – disse minha
mãe, esquivando-se de uma carroça cheia de barris.
– Mãe, tenho dezessete anos. Um dia ela vai ser minha barca.
Ela apertou os lábios para mostrar o que pensava disso.
– Sim, bem. Nada está decidido. Você ainda é nova. Qual foi o problema?
Eu hesitei.
– Acho que esse não é o tipo de coisa que ele gostaria que você soubesse.
– Isso era verdade. Em termos. – Sem ofensa, é claro – acrescentei, ao
perceber a sorte de ela não saber que meu pai estava contrabandeando
mosquetes para os rebeldes de lorde Peregrine. Ela teria ficado furiosa.
Ela escarneceu.
– É claro.
Porém, ela pareceu mais irritada com meu pai que comigo, o que servia
muito bem a meus propósitos.
– Como vão os negócios? – perguntei, como tática para dispersar.
Funcionou.
– Na verdade, a Companhia Bollard entrou recentemente em inúmeros
negócios lucrativos… – E iniciou uma explicação longa e maçante sobre
contratos de carga.
Os Bollards adoram falar de si mesmos. Eles acham que são a melhor
coisa que já existiu. Era por isso que eles não entendiam meu pai. Eles não
conseguiam ver por que um homem podia querer trabalhar no rio como um
barqueiro independente quando podia, em vez disso, se aliar a uma poderosa
casa comercial. Os Bollards possuíam e administravam muitos barcos, tanto
no mar como nos rios, mas eles contratavam outras pessoas para navegá-los.
Eles se achavam acima de meros barqueiros.
Talvez fossem. Foi um Bollard quem descobriu a rota marítima para
Ndanna, e o primeiro a circum-navegar esse grande continente. Tornar-se útil
para a família não era uma escolha – era esperado. Minha mãe achava que eu
devia estar na escola, aprendendo retórica, navegação ou alguma outra coisa.
Gentilmente, todo verão, desde que eu consigo lembrar, meu pai enchia
uma mochila e me deixava nas docas de Siscema para passar duas semanas
com minha mãe. Mas, ela, invariavelmente, se via ocupada com negócios da
família, portanto, em vez disso, eu apenas acabava aprontando com minhas
primas. Havia duas com mais ou menos a minha idade: Kenté e Jacarandá.
Esse era um dos motivos pelos quais eu queria evitar ir à casa dos Bollards.
Eu ficaria extremamente tentada a contar tudo a minhas primas, mas não
podia.
A imponente residência dos Bollards na cidade ficava em uma fileira de
casas de quatro andares idênticas e conectadas. As pessoas na cidade a
chamavam de a Casa do Capitão, pois ela tinha pertencido ao próprio Jacari
Bollard. Ela era maior no interior do que aparentava de fora. Estendia-se
interminavelmente e acabava em um jardim, em uma cavalariça e em uma
adega com a própria plataforma de carga. Acima da porta da frente, havia o
emblema da família: um barril de vinho com três estrelas em arco sobre ele.
No vestíbulo, imperando sobre os visitantes com sua fronte sisuda e
chapéu alto, havia uma pintura do grande explorador Jacari Bollard. Ele
olhava de cima para mim enquanto eu limpava as botas enlameadas no tapete,
sem dúvida se perguntando como uma de suas descendentes tinha acabado
por capitanear uma barca inferior. Ele parecia excessivamente aprumado e
nobre – nada de contrabando para o capitão Bollard, não senhor.
Embaixo do retrato, havia um mostruário polido cheio de objetos curiosos.
O contrato original da Companhia Bollard era mantido ali, sob um vidro,
junto com um sextante e vários mapas no estilo clássico com monstros e
serpentes desenhados nas bordas.
Um velho alerta de perigo. Aqui há drakons.
Minha mãe sinalizou para que uma criada pegasse minha capa de chuva.
– É claro que você vai querer um banho quente. Vou mandar uma criada
subir.
Isso era meu destino rindo de mim. A capitã de uma barca não espera ser
mandada para o banho como uma criança malcriada, não depois de ser
alvejada por piratas e incendiar uma taverna. Torci para que Markos não
tivesse a ideia de fazer alguma coisa idiota enquanto eu estivesse fora.
Depois que a criada saiu, puxei o cabelo para o alto da cabeça para que ele
não se molhasse e afundei na banheira de cobre fumegante. Enquanto
esculpia torres inclinadas com punhados de espuma, eu quase conseguia
fingir que tudo estava como deveria estar. Eu me perguntei se meus
ancestrais infames – os Oresteias, que desafiaram o bloqueio ou o intrépido
capitão Bollard – alguma vez pararam no meio de suas aventuras para um
banho demorado. Provavelmente, não.
Mas minha vida de repente tinha virado uma confusão maldita. Apoiei a
cabeça na borda da banheira e tentei não pensar em meu pai, em Markos nem
nos Cães Negros. Não consegui.
O vestido trazido pelas criadas era feito de brocado azul rígido com um
painel engomado na frente. Ele tinha decote baixo e era encimado por uma
jaqueta de um azul mais claro amarrada por um cinto na cintura, bufante
acima das saias. As mangas da jaqueta estavam presas por laços de fita e
cadarços no punho. Eu teria gostado de encontrar algum lugar naquele mar de
tecido para esconder minha pistola, mas as criadas irritantemente se
recusavam a dar as costas por mais que alguns segundos. Eu fui forçada a
deixá-la para trás.
Foi assim que eu me vi conduzida para o jantar. A sala de jantar dos
Bollards era um salão com painéis de madeira e muitas mesas. Minha mãe e
os membros mais velhos da família sentavam-se à mesa principal,
posicionada sobre uma plataforma. O ambiente estava repleto de vinho,
azeitonas e conversa alta. Cortinas de seda se entrelaçavam nas vigas, criando
um teto ondulado.
Todas as pinturas eram de navios, cada uma delas com uma placa de
identificação na base da moldura. Havia o Magistros, nossa nau capitânia do
século passado, um navio de três mastros. O Nikanor, perdido no mar na
região das Ilhas do Chá muito tempo atrás, e, na moldura mais ornamentada
de todas, o Astarta, que fora o navio do próprio capitão Bollard.
Toda essa história olhando para mim, e quem era eu? Apenas uma
barqueira com um monte de problemas.
Os olhos de minha mãe examinaram meu vestido citadino e se demoraram
em meu cabelo, que estava confinado por uma rede de renda negra.
– Muito melhor – disse ela. O que pareceu ridículo da parte dela, em
minha opinião, porque ela não tinha se dado ao trabalho de vestir saias. Ainda
usava o mesmo gibão com turbante que estava vestindo nas docas.
Meu tio Bolaji estava sentado ao lado dela. Ele era o mais alto oficial da
Companhia Bollard, um homem largo de face marrom-avermelhada que
usava a barba negra em três pontas, com uma conta em cada uma de suas
extremidades.
– Os Cães Negros não são uma tripulação respeitável. Não gosto de
negociar com esses homens – resmungou ele. Em seguida, ele me viu. – Olá,
Caroline. Espero que seu pai esteja bem.
Eu enrijeci ao ouvir suas palavras.
– Ele… está, obrigada – consegui balbuciar. Cães Negros, na casa dos
Bollards?
– E, ainda assim, dizem que um homem sábio tira mais proveito de seus
inimigos do que um tolo de seus amigos. – Minha mãe ergueu as
sobrancelhas para o tio Bolaji e bebeu o resto de seu vinho.
Ele deu um suspiro.
– Você estava certa em não dispensá-los. Também se diz que um
marinheiro deve conhecer a direção do vento antes de içar suas velas. – Eles
trocaram olhares plenos de significado. – Se os rumores que ouvimos são
verdade, o vento mudou. Descubra o que puder.
Minha mãe se levantou.
– Tenho certeza de que você vai querer ficar com suas primas, Carô. Eu
tenho negócios.
Quando pequena, sempre me ressenti dessas palavras. Aquela noite,
enquanto eu observava minha mãe deixar a sala de jantar, elas despertaram
uma curiosidade poderosa. Que negócio ela teria com os Cães Negros? Será
que o Victorianos estava agora mesmo parado na baía? Os homens do capitão
Melanos podiam estar revirando as docas.
Eu segui para as mesas mais baixas, fazendo um caminho sinuoso entre os
criados carregando coisas. Ao ver minhas primas Kenté e Jacarandá, parei e
abri um sorriso.
Elas estavam debruçadas sobre uma bandeja de pão, húmus e tâmaras,
com as cabeças próximas. Jacky era um ano mais velha que eu, e Kenté, um
ano mais nova. Eu tinha passado muitas semanas com elas na casa dos
Bollards durante os verões. Jacky era filha de uma prima de minha mãe. Na
verdade, eu não sabia ao certo qual o parentesco entre mim e Kenté, mas
todos os Bollards chamavam uns aos outros de “primos”. Quando crianças,
eu e elas subíamos em caixotes de carga nos armazéns da família e
passávamos horas nos balançando nos pilares das docas, criando histórias
sobre os barcos de velas cheias que subiam e desciam lentamente o rio.
Embora meus sentimentos em relação a ser uma Bollard fossem complicados,
eu amava minhas primas.
– Que a corrente vos leve – disse Kenté quando me juntei a elas. O brinco
de ouro em seu nariz brilhava à luz das velas. – Achei que você não fosse
aparecer antes do verão!
Kenté estava usando o cabelo repartido em quatro seções e preso em
tranças. Trajava um vestido verde com listras douradas muito bonito. Ele era
ainda mais chamativo que o meu, o que já dizia muita coisa, mas aquilo era
Siscema. Eles faziam as coisas de um jeito diferente na cidade.
– Que a corrente vos leve. – Parecia fazer dias desde que eu sorrira pela
última vez, mas, com minhas primas, era impossível não sorrir. A sensação
agourenta de perigo que tinha ficado zumbindo constantemente em mim se
aliviou um pouco.
– Não estou vendo seu pai – disse Jacky.
– Estou sozinha. – Eu me sentei em uma cadeira. – Estou fazendo minha
primeira viagem sozinha até Valonikos. – Decidi parar por aí, antes que elas
começassem a achar que eu estava escondendo algo.
– Está mesmo? Muito bom, Carô! – Kenté serviu um copo de vinho quase
até a borda e o empurrou sobre a mesa.
– Ah, espere até Akemé descobrir que não encontrou você. – Jacky me
cutucou no ombro. Um sorriso malicioso se abriu em seu rosto, que era de
tom mais claro, devido à presença de sangue akhaiano em seu ramo da
família.
Eu peguei uma tâmara, na esperança de que não me percebessem corar.
– Ele não está aqui?
Akemé era o jovem marinheiro com quem eu dormira no verão passado,
no que tinha sido minha primeira e, até então, única experiência do tipo.
Minhas primas sabiam de todos os detalhes do encontro – bem, a maior parte
deles –, e estavam determinadas a nunca me permitir esquecer isso.
– Está como aprendiz em Iantiporos. Com o pai. – Ela piscou para mim. –
Vou dizer a ele que você mandou um beijo.
– Jacarandá Bollard, você não faria uma coisa dessas! – exclamou Kenté,
fazendo com que vinho transbordasse de seu copo.
– Ah, ela faria, sim – eu disse. – Escutem, garotas, vocês sabem alguma
coisa sobre esses Cães Negros?
Kenté sempre sabia das fofocas boas. Como eu esperava, ela aproveitou
minha pergunta e estreitou os olhos.
– Sei que eles chegaram à cidade há uma hora, na chalupa Alektor.
Desceram o rio desde Doukas. Sua mãe deixou seu capitão à espera no salão
azul.
Uma hora. Enquanto eu estava aproveitando o luxo da sensação de água
quente em minha pele. Como eu podia ter sido tão estúpida? E quantos
navios os Cães Negros tinham à nossa procura? Eu nunca tinha ouvido falar
em uma chalupa chamada Alektor. Eu precisava voltar às docas e alertar Fee
e Markos.
– Ouvi dizer que Diric Melanos é o fora da lei mais bonito em alto-mar –
disse Jacky.
Eu quase escarneci. Como as lendas são exageradas.
– Ele não está aqui, está?
– Não, infelizmente.
– O que eles querem? – perguntei a Kenté, com o coração batendo
descontroladamente. Eu rasguei um naco de pão e o passei pelo prato para
pegar húmus com azeite.
– Negociar. – Ela deu de ombros.
Minha mãe era a principal negociadora do clã dos Bollards. Isso não me
disse muito.
– Sabe sobre o quê? – perguntei com a boca cheia, tentando dar a
impressão de que isso não tinha a menor importância para mim.
– Estão procurando alguém em uma barca.
– Oh, ayah? Os Bollards agora viraram caçadores de recompensa? –
perguntei com mais brusquidão do que era minha intenção.
– Tem alguma coisa a ver com carga roubada.
Meus dedos se cravaram na mesa. Mentirosos nojentos.
– Como você sempre sabe de tudo? – perguntou a ela Jacky.
Por um breve instante, o rosto de Kenté assumiu um brilho estranho.
– Essa é a minha sorte – disse ela. A luz da vela dançava sobre sua pele
marrom e seus olhos âmbar. – As sombras me favorecem. – Ela riu, e eu
percebi que ela estava apenas brincando.
Eu me debrucei para mais perto.
– Você soube de alguma coisa sobre um cúter chamado Victorianos, de
Iantiporos?
– Nada. Por quê?
Eu mastiguei em silêncio. O salão azul era a segunda melhor sala de estar
dos Bollards. Eu precisava dar um jeito de conseguir ir até lá e descobrir o
que estava acontecendo.
– Dizem que o capitão Melanos capturou cem navios, sabia? – disse
Kenté. – Nos conflitos de 88, quando ele era um corsário de Akhaia.
Jacky riu.
– Eles também dizem que o Nikanor foi afundado por um grande drakon
do mar, não dizem? – Ela apontou com a cabeça para a pintura na parede. –
Mas isso é só uma invenção.
Kenté lançou um olhar penetrante para ela.
– Como você sabe?
– Por que não existem coisas como drakons, é claro.
Um calafrio incontrolável subiu por minha nuca. Todo mundo que já leu
uma história sabe que não há melhor maneira de garantir que você seja
engolido por um drakon no último capítulo do que dizer que “não existem
coisas como drakons”.
Eu sabia que Kenté estava pensando a mesma coisa, mas ela não disse. Em
vez disso, ela baixou a voz.
– Sei de uma história com um drakon. Ela começa assim: Há muito tempo
atrás, em uma época esquecida, havia uma menina que amava segredos. Para
sua sorte, ela vivia em uma grande casa antiga que tinha muitos deles. Tarde
da noite ela costumava circular como um fantasma pelas passagens dos
criados. Aconteceu que, em uma determinada passagem, havia um furo perto
de uma lareira. Quando ela levou os olhos e ouvidos a esse furo, ela pôde ver
e escutar tudo o que se passava na saleta do outro lado. E, uma noite…
Jackie revirou os olhos.
– Não acredito que haja algum drakon nessa história. Você está só
inventando coisas.
Kenté botou a língua para fora, mas seus olhos se franziram ao cruzar com
os meus. Fui tomada por um frisson, pois eu entendi que aquilo não era
nenhuma história, suas palavras eram para mim.
Empurrei a cadeira para trás.
– Vou ao banheiro, meninas.
Kenté bateu na lateral do nariz com o dedo.
Há muitos segredos na casa dos Bollards. Para minha sorte, Kenté
conhecia a maioria deles. Ela estava certa sobre a passagem dos criados. Eu
entreabri a porta e entrei por ela. O corredor estreito tinha paredes caiadas de
branco e vigas baixas, um reflexo triste de seu companheiro mais elegante
que corria paralelamente ao longo da frente da casa. Caixotes e barris
empilhados cobriam a parede, todos com a marca do barril com as estrelas
dos Bollards. Essa extremidade da passagem estava deserta, pois a maioria
dos criados estava ocupada com o jantar.
Assim, consegui levar o olho ao buraco perto da lareira e espionar a
reunião de minha mãe com o homem dos Cães Negros.
Provavelmente, aquele era o mesmo Philemon que o capitão Melanos
tinha mencionado. Ele não me pareceu grande coisa. Sua barba era
emaranhada e malcuidada, e ele sempre parava para limpar o suor da testa
com um lenço listrado.
– Soubemos do massacre em Pontal de Hespera. – Minha mãe empurrou
um copo de vinho até o outro lado da mesa.
O homem deu um sorriso malicioso.
– Só duas pessoas foram mortas, portanto, isso não pode exatamente ser
considerado um massacre. – Fiquei louca de vontade de socar sua cara feia.
Os Singers eram pessoas reais, pessoas boas, e ele achava a coisa toda uma
piada.
Minha mãe esperou com as mãos entrelaçadas.
– Soube que os Cães Negros foram responsáveis.
– Diric Melanos fez um contrato com a família dos Theucinianos para
localizar e recuperar certa caixa de produtos roubados. Por qualquer meio
necessário, querida. – Ele deu um gole de vinho e grunhiu. – É bom.
Uma expressão de desdém, rapidamente escondida, passou pelo rosto de
minha mãe. Ela provavelmente estava achando que esse homem era um
desperdício de belo vinho antigo. Os Bollards se preocupavam muito com o
vinho.
– Por que você não me conta o que estão procurando? – Minha mãe serviu
um copo para si mesma.
– Nosso problema é com uma barca. Chamada Cormorant.
Eu quase caí para trás.
Minha mãe não reagiu. Sequer piscou. Eu sacudi a cabeça, estupefata. Eu
estava vendo porque ela era a melhor negociadora dos Bollards. Então, o
homem no barco de pedágio estava certo. Os Cães Negros sabiam o nome da
Cormorant – não só o Victorianos, mas essa outra embarcação, a Alektor. E,
naquele momento, minha mãe também sabia que eles estavam à nossa
procura.
– Há trinta barcas amarradas nas docas – disse minha mãe. – Você planeja
incendiar todas elas também? Porque posso lhe dizer que, se fizer isso, nunca
vai ter a ajuda dos Bollards. – Ela se encostou na cadeira. Para alguém que
não estivesse realmente prestando atenção, ela podia parecer relaxada, mas
era como uma gata estudando a maneira certa de atacar. – Philemon, não é?
Você se importa se falarmos abertamente?
– Adoro conversas abertas – disse ele com um olhar malicioso. Eu quase
senti pena dele.
– Algumas das barcas que você incendiou em Pontal de Hespera eram
embarcações dos Bollards.
– Bem, não fui eu quem fez isso. Foi Melanos. Ele é jovem e exagera as
coisas.
– Mesmo assim. – Minha mãe se debruçou para mais perto do homem.
Philemon sorriu, achando que ela estivesse flertando, mas eu sabia que ela
estava se movendo para matar.
– Se nós o ajudarmos a localizar essa barca, essa Cormorant – disse ela –,
naturalmente, qualquer valor pago a nós seria uma adição à restituição que os
Cães Negros já vão pagar à Companhia Bollard pela destruição de sua
propriedade. Acredito que foram quatro barcas afundadas, o que leva a
quantia que vocês devem a 250 mil. – Ela sorriu e passou o dedo pela linha
curva do decanter. – Mas isso depende de um cálculo do avaliador, é claro. E
quanto, além dessa soma, vocês estão dispostos a nos pagar por nosso
auxílio? – Ela inclinou a garrafa na direção dele. – Mais vinho?
Philemon piscou.
Eu me afastei do buraco com a cabeça zunindo de pensamentos. Então,
algumas das barcas afundadas pertenciam aos Bollards. Bom, se alguém
podia tirar dinheiro dos Cães Negros, era minha mãe. Ela podia arrancar
dinheiro de pedra.
Eu desconfiei que ela estivesse apenas retardando Philemon. Ela não tinha
nenhuma intenção de auxiliá-lo nessa busca, não quando ela sabia que a
Cormorant estava bem ali. Assim que minha mãe saísse dessa reunião, eu
poderia esperar uma surra. Ou, pelo menos, um interrogatório muito firme.
Fechei cuidadosamente a porta da passagem dos criados, atenta ao clique
baixo do trinco. Eu não ousava ficar nem mais um minuto na casa dos
Bollards. Eu não poderia resistir às perguntas de minha mãe. Ela iria
descobrir tudo. Eu tinha de subir às escondidas, tornar a vestir minha roupa e
fugir imediatamente.
Quase cheguei até a escada antes que a voz de meu tio no vestíbulo me
detivesse. Eu fiz a curva rapidamente e me achatei contra a parede.
Outro visitante tinha chegado tarde à casa dos Bollards. Um que eu
conhecia bem demais.
CAPÍTULO
QUATORZE

Markos estava usando um casaco que eu nunca tinha visto antes. Azul-escuro
com adornos dourados, ele se estreitava na cintura e caía em um conjunto de
caudas longas até seus joelhos. Uma fileira de fivelas reluzentes subia por seu
peito.
– Que a corrente vos leve nesta bela noite, senhor. – Ele bateu os
calcanhares e fez uma mesura.
Com um pequeno aceno para dispensar o mordomo, o tio Bolaji recuou
para o interior do vestíbulo para permitir a entrada de Markos.
– Sim, sim. Eu lhe dou as boas-vindas à casa dos Bollards.
– Meu nome é Tarquin Meridios. – Ele saiu da garoa enevoada, aprumou-
se em toda sua altura e removeu o chapéu impermeável de meu pai. O cabelo
dele caía para trás em ondas pronunciadas a partir da testa. – Eu tenho a
honra de ser mensageiro do consulado akhaiano. Soube que esta era a casa
aonde vir. Pois, o senhor sabe, necessito de um barco com urgência.
– Na verdade, posso conseguir passagem para o senhor em um de nossos
navios – disse meu tio. – Mas por que não procurou nossos escritórios?
Temos instalações na Rua Larga, muito mais perto das docas.
– Infelizmente, devido a minha situação, cheguei tarde a Siscema. Por
isso, peço desculpas, assim como por minha aparência.
Markos gesticulou para suas roupas. Eu desdenhei da sugestão de que
houvesse alguma coisa errada com o jeito como ele estava vestido. Ele ainda
estava usando a calça e camisa de meu pai, mas aquela jaqueta era mais
elegante do que qualquer coisa que tínhamos a bordo do Cormorant. Vi o tio
Bolaji olhar para ela e nitidamente avaliar sua qualidade.
– Eu devia levar alguns documentos para meus colegas na cidade de
Valonikos – disse Markos. – Mas, após uma série de infortúnios, que
incluíram, entre outras coisas, o roubo de um belo cavalo por um grupo de
bandidos, fui forçado a negociar minha passagem em uma barca local. Mas,
agora, tenho necessidade de grande velocidade.
Seus lábios se retorceram quando ele chegou à parte dos bandidos. Ele
estava gostando daquilo. Ele estaria se divertindo muito menos se soubesse
que um dos Cães Negros estava sentado do outro lado da porta, a pouco mais
de cinco metros de distância.
– Sua chegada a esta hora é uma pena, pois nossa representante está
atualmente em reunião com outro cliente. Na verdade, eu estava prestes a me
juntar a eles. – O tio Bolaji coçou a cabeça. – O senhor se importaria de
esperar no corredor até terminarmos com os outros assuntos?
– Isso seria mais que adequado – disse Markos. – O senhor tem minha
gratidão.
Eu me maravilhei com a rapidez com que ele voltara à fala formal.
Quando nos conhecemos, eu o achei rígido demais. Mas, naquele momento,
eu percebi que suas maneiras eram como uma fantasia que ele podia vestir ou
tirar – uma habilidade que certamente tinha suas vantagens.
– A menos… – Meu tio fez uma pausa. – O senhor gostaria de se juntar à
família no jantar?
Eu não podia deixar que ele ficasse ali, onde Philemon poderia vê-lo. Fiz a
curva de volta, lentamente.
– Isso não vai ser necessário, eu já… – Markos levantou os olhos e me viu.
Sacudi a cabeça vigorosamente, e ele se calou com uma tosse estranha. – Isto
é…
Eu entrei com as saias farfalhando em torno das pernas.
– Eu vou levá-lo para a sala de jantar, tio, se o senhor quiser ir lá com
minha mãe.
Eu peguei o braço de Markos. Ele imediatamente o ergueu, como homens
da cidade fazem quando acompanham uma dama. Eu pus a outra mão na
manga de sua jaqueta e fiz um grande esforço para dar um sorriso para ele.
Acho que não consegui, porque ele engoliu uma risada e olhou fixamente
para as tábuas do piso.
– Carô. – Meu tio ergueu as sobrancelhas. – Achei que você estivesse
jantando.
– Precisei pegar uma coisa – menti. – De qualquer modo, acho que ele vai
preferir se sentar com pessoas de sua idade. Não é mesmo?
Markos alternava o olhar entre mim e ele.
– Só até eu voltar. – O tio Bolaji olhou para a porta do salão azul. – Pois
eu gostaria de lhe pedir notícias de Akhaia. Se não se importar, meu jovem.
Nós só ouvimos rumores.
– Posso lhe contar o que sei – disse Markos. – Embora não seja muito,
infelizmente. Não volto a Akhaia há semanas. Mas eu também tenho notícias
graves.
– Bom, então. Você deve se juntar a mim à mesa quando eu voltar. Por
ora, vou deixá-lo aos cuidados das garotas, enquanto sigo meu caminho – ele
sorriu. – Tenho certeza de que nenhum jovem vai se importar com isso,
certo? – Ele desapareceu no salão azul, deixando-nos sozinhos no corredor.
Eu arrastei Markos pela porta mais próxima. Era um armário de casacos. O
ambiente cheirava a cedro e cânfora, e mal era grande o suficiente para nós
dois de pé, espremidos como estávamos entre fileiras de casacos.
– O que você está fazendo aqui? – perguntei.
– Ai! Solte minha manga. – Ele puxou o braço. – Achei que você estivesse
com problemas quando não voltou. Quando você ia me contar?
– Sobre o quê?
– Você sabe o quê. – Quando eu não disse nada, ele insistiu. – Esta casa?
Sua mãe? Você ficou com muita raiva de mim por esconder minha
identidade, mas nunca disse uma palavra sequer sobre nada disso. Eu tive de
saber por Fee.
Eu falei entre dentes cerrados.
– Minha identidade não vai fazer com que sejamos mortos.
– Sua identidade poderia nos salvar. Essas pessoas têm navios…
– Markos, você não pode estar aqui – interrompi. – Você não devia ter
deixado o barco.
– Fee está lá. Ele vai ficar em segurança.
– Estou dizendo que você não vai estar em segurança. Os Cães Negros
estão aqui! Seu capitão está nesta casa neste momento. No fim do corredor,
na sala de estar.
– Como assim com os Cães Negros? Aquele cúter não está em nenhum
lugar à vista.
– Philemon – eu disse, e observei seus olhos se arregalarem com o
reconhecimento. – Há outro barco. Uma chalupa.
– O que é uma chalupa? – perguntou ele. Segurei a língua para não dizer
nada rude. Ele prosseguiu, em um sussurro. – Pode ser um barco negro com
duas velas, uma normal e uma na frente? Tem um assim perto da gente. O
Alektor. Ele chegou ao porto depois que escureceu.
– Ayah? Ora, veja quem sabe tudo! Você sabia que ele pertencia aos Cães
Negros?
– Tem certeza?
– Certeza absoluta – eu disse. – É como disse o homem do barco do
pedágio. Eles viram o nome da Cormorant naquela noite, mas não sabem
diferenciar uma barca de outra. Por isso, estavam pedindo a ajuda dos
Bollards. Escute. Precisamos sair da cidade, agora. Minha mãe sabe. Ela sabe
que eles estão procurando a Cormorant.
Um vinco surgiu entre seus olhos.
– Ela não disse a eles que você estava aqui?
– Não.
– Então, estamos em segurança, pelo menos por enquanto.
– Não tenho certeza disso – eu disse. – Minha mãe não iria deixar que eles
me fizessem mal. Mas não posso deixar que ela descubra sobre você.
Infelizmente, acho que o dinheiro vai ser bom demais.
– Pelas bolas de Xanto – praguejou ele. – Quem são essas pessoas?
– São uma grande casa comercial. Eles não viraram uma grande casa
comercial provocando a raiva dos emparcas de países poderosos.
– Prefiro ser queimado que ouvir você chamar aquele impostor de
emparca! – Sua voz subiu dois ou três tons.
– Você quer calar a boca? – chiei.
– Acho que foi uma boa coisa para mim você ter assumido o lugar do seu
pai. – Ele beliscou a ponte do nariz, apoiado no cabide de casacos. – O que
nós vamos fazer?
Eu entreabri a porta para espiar por ela.
– Você vai ter de sair escondido.
– Pelo deus leão – disse ele. – Eu queria ter sabido disso antes de vir até
aqui.
– Minha mãe me pegou de surpresa – admiti. – Eu não consegui escapar.
Eu estava prestes a fugir.
– Você ia fugir então, hein? – Seus olhos me estudaram rapidamente de
alto a baixo. – Não antes de tomar um banho, botar um belo vestido e comer
um jantar perfeitamente luxuoso. Pelo menos, eu imagino que seja luxuoso,
nesta casa. Enquanto eu ficava esmagado dentro de um armário de
contrabando, naturalmente.
Eu me senti levemente culpada por isso.
– Você comeu alguma coisa?
– Fui reduzido a comer comida de rua comum.
Eu revirei os olhos. Minha simpatia estava evaporando. Eu gostava de
comida de rua.
– Onde está seu cabelo? – Ele me encarou no facho de luz que entrava pela
fresta na porta.
Meu cabelo estava envolto em uma rede negra e preso por uma fita de
veludo. Eu achava muito bonito, mas Markos estava olhando para mim como
se tivesse crescido uma segunda cabeça em mim.
– Eu o prendi. Deixe isso para lá. – Eu peguei o tecido rígido de sua
jaqueta. – Onde você conseguiu isso?
– Comprei em uma loja – disse ele, a palavra envolta em desdém. – Mas
ele veste bastante bem, apesar das origens humildes.
Eu me perguntei onde alguém compraria roupas se não em uma loja. Eu
me aprumei e perguntei:
– Quanto você gastou?
A soma que ele disse, embora menos do que eu temia, era muito mais do
que meu pai teria permitido que eu gastasse em um único artigo de vestuário.
Meus olhos foram atraídos pelas belas listas de fita branca e pela renda
dourada que forravam as lapelas, e para as fivelas de latão espalhadas por
todo ele. Eu teria gostado de um casaco desses. Era um casaco de homem,
mas apropriado, afinal de contas, para uma capitã de barca.
Sacudi a cabeça. Eu não entendi o que tinha me dado – me considerar uma
capitã. Eu era a imediata de meu pai. Se tivéssemos sucesso em nos livrar
dessa encrenca, ele provavelmente iria velejar até os setenta anos, como o pai
dele e o pai do pai dele tinham feito antes.
Uma pontada de dor me atingiu no coração. Melhor assim. O máximo a
que eu podia aspirar era ser uma capitã de barca medíocre, agora que eu tinha
certeza de que o deus do rio não me queria.
Espiei pela porta.
– A costa está limpa. Volte direto pelo caminho por onde você veio.
Depressa.
– E você? – perguntou Markos enquanto saíamos para o vestíbulo.
Eu não ia deixar a pistola de meu pai para trás de jeito nenhum.
– Preciso pegar minhas coisas. Vou logo depois de você.
A porta da sala de estar se abriu, e delas saíram vozes. Antes que
tivéssemos tempo de nos esconder, minha mãe, o tio Bolaji e o cão negro
Philemon estavam sobre nós.
Quando Philemon bateu o olho em Markos, uma nota ameaçadora cruzou
o rosto do homem, como um lobo que apruma os ouvidos ao notar a
possibilidade de uma presa.
– Quem é ele? – Philemon perguntou ao tio Bolaji, retardando o
movimento de colocar o chapéu na cabeça.
– Ah, aquele rapaz. Mensageiro do consulado akhaiano.
Philemon pareceu muito interessado em permanecer ali, mas o mordomo
já tinha posto o casaco em suas mãos. Ele deu um último olhar duro para trás,
em seguida vestiu o sobretudo e saiu na neblina.
O tio Bolaji me olhou de cenho franzido.
– Achei que você ia levá-lo para a sala de jantar.
– Ah, bom… – Tentei escolher uma desculpa entre as muitas que giravam
em minha cabeça.
– Isso foi culpa minha, senhor – falou Markos às minhas costas. – Sabe,
tenho interesse por mapas antigos. – Ele gesticulou para o mostruário de
vidro com objetos exóticos. – Eu disse à senhorita Bollard que desejava
examinar sua coleção. É uma beleza.
Inspirei profundamente. Eu sabia por que ele tinha me chamado de
senhorita Bollard. Era algo que se encaixava com o fingimento de que não
nos conhecíamos, e, ainda assim, uma coisa no fundo do meu ser se rebelava
contra isso.
– Esses são originais. – O tio Bolaji acariciou a barba com orgulho. – Este
é o mapa no qual Jacari Bollard traçou a rota comercial para Ndanna. – Ele
apontou para baixo do vidro. – E aquele é o baú que ele usou para trazer as
folhas de chá que presenteou ao emparca.
– É mesmo? O senhor tem muitos outros artefatos do Astarta? – A
Passagem Sudoeste era uma conquista significativa na exploração naval, mas
surpreendeu-me que Markos soubesse o nome do navio do capitão Bollard.
Ultimamente, eu estava me surpreendendo muito.
Permaneci em silêncio enquanto voltávamos para o jantar. Quando tive a
chance de olhar em direção a minha mãe, seus olhos me perfuravam. Ela
sacudiu a cabeça, e eu soube que era apenas por causa do tio Bolaji que ela
não estava me interrogando naquele instante.
Markos recuou. Sob o clamor da sala de jantar, ele sussurrou:
– Aquele era ele? – Ele moveu a cabeça na direção da porta da frente. – O
homem que acabou de partir?
– Você nunca o viu antes? – perguntei.
– Claro que não. Eu deveria?
Eu sussurrei:
– Então por que ele pareceu reconhecer você?
– Você está vendo monstros por toda parte, Carô. Ele é akhaiano. Eu sou
akhaiano. Provavelmente, foi só isso.
Eu achava que não. Eu nunca conheci a margravina, mas meu pai tinha
uma miniatura sua na escrivaninha, uma lembrança de seu jubileu de prata.
Um homem de Akhaia saberia qual a aparência de seu emparca, e Markos já
tinha me dito ser parecido com o pai.
O tio Bolaji se virou. Ao perceber que a cabeça de Markos estava
inclinada muito perto da minha, eu me afastei.
– Vá com meu tio – eu disse em voz baixa.
– Como nós vamos sair daqui?
– Estou trabalhando nisso – murmurei.
Talvez Markos tivesse razão. Eu estava vendo monstros, piratas e drakons
por toda parte. Eu os ouvi no som de um violino quando um homem o tirou
de um estojo de veludo e começou a afiná-lo. O pânico formou um nó em
minha garganta. A agradável sensação de calor e segurança na sala de jantar
era uma ilusão. Do lado de fora, o perigo arranhava nas janelas da casa.
A mesa de minhas primas estava deserta, coberta de copos vazios. Vi
Jacarandá dançando com um rapaz, mas Kenté não estava em lugar nenhum
que eu pudesse ver. À mesa principal, o tio Bolaji estava em uma conversa
profunda com Markos. Eu podia dizer que minha mãe estava ouvindo, mas
ela girava a haste de sua taça de metal nas mãos e não falava. Eu peguei um
copo de porto da bandeja de um criado e me encaminhei para mais perto, sob
o pretexto de observar os dançarinos.
Markos se inclinou e se dirigiu ao meu tio.
– Eu gostaria muito de ter o privilégio de dançar com sua filha.
O tio Bolaji riu.
– Ela é um pouco velha para um jovem da sua idade, não é? – O que era
verdade. Sua filha tinha mais de trinta.
– Ah. Eu estava dizendo a moça que conheci na porta.
– Ah, está falando de Carô? Ela é uma filha desta casa – disse o tio Bolaji.
– Porém, não é minha filha. – Ele apontou com a cabeça para mim. – Sinta-se
à vontade de perguntar a ela.
Foi inteligente de Markos confundir minha identidade de propósito. Nunca
ocorreu a meu tio que tínhamos nos conhecido antes daquela noite. Ele tirou
o copo de minha mão, fez uma reverência educada e me conduziu para a pista
de dança.
Pus uma das mãos sobre o ombro de seu casaco novo. Ele, provavelmente,
era o rapaz mais alto com quem eu já havia dançado. Quando curvou a mão
em torno de minha cintura, acima de onde minhas saias ondulavam para fora,
minha respiração começou a ficar ofegante. Lembrei a mim mesma que era
apenas uma dança. Perfeitamente respeitável. Markos esperou, contando as
batidas, então nos girou com habilidade, no mesmo padrão dos casais que ali
dançavam.
– Eu queria que você mesma tivesse me dito. – Os dedos dele se apertaram
em torno dos meus, mas não de um jeito romântico. De um jeito irritado. –
Você me deixou acreditar que fosse a filha comum de um barqueiro, quando
na verdade pertence a uma grande família de mercadores.
– Eu sou a filha de um barqueiro comum – devolvi as palavras com
sarcasmo, irritada com o jeito com que ele as tinha pronunciado, como se eu
pertencesse aos Bollards.
– Devo supor, agora, que o cabelo ruivo é de seu pai. – Ele gesticulou em
direção a minha cabeça. – E o temperamento audacioso. Você não herdou
isso desta casa.
– Sabe, eles não gostam de meu pai – eu disse em voz baixa. – Eles não
gostam de mim.
– Não é o que eu vejo. Não mesmo.
– Eles gostam de quem querem que eu seja. Gostam da filha de minha mãe
– retruquei. – Não de mim.
– É a mesma coisa.
– É mesmo? – eu disse entre os dentes.
– Nosso nome de família é quem somos. – O ombro dele ficou rígido sob
minha mão. Ele engoliu em seco. – Ele significa tudo.
Acho que ele tinha revisado sua opinião sobre mim, agora que eu
descendia de alguém famoso. Bom para ele. Mas nada em mim tinha
mudado. Nenhuma maldita coisa.
– Gosto muito do nome do meu pai – eu disse. – Vivo com ele porque esse
foi o acordo que eles fizeram.
Isso era mais fácil que admitir que minha mãe se interessava mais por
contratos de frete que por garotinhas. De vez em quando, meu pai visitava a
casa dos Bollards, mas nunca ficava por muito tempo. Você só precisava
conhecer meus pais por cinco minutos para saber que havia uma chama forte
entre os dois. Eles só não conseguiam viver juntos em uma barca muito
pequena.
– Que homem permite que sua mulher deixe o lar para trabalhar com
comércio?
– Esta casa foi construída em cima do comércio – lembrei a ele. Como
reagir de qualquer outra maneira faria com que as pessoas olhassem, apertei
seus dedos até ele fazer uma careta. – Enfim, o que faz você pensar que eles
são casados?
– Ah. – Seu rosto enrubesceu.
– Por oito gerações, os Oresteias exerceram seu ofício nesses rios –
respondi, com raiva e orgulho fervendo dentro de mim. – Eles trabalham com
barcas desde muito antes de qualquer um ter sequer ouvido falar de Jacari
Bollard. Então, você me responda isto: Qual nome é mais importante?
– Eu irritei você. Mas Caroline – disse ele, revirando o r com seu sotaque
–, não quis insultar a família de seu pai, e você acabou de praticamente
arrancar minha cabeça. Você não acha que, talvez, seja possível que você
tenha encarado as cosas assim devido a alguns sentimentos não resolvidos de
sua parte?
– Pare com isso. – Soltei sua mão e recuei, tomada por emoções
conflituosas. Estava acontecendo outra vez, como sempre. A casa dos
Bollards distorcia as coisas. – Eu não concordei em ser despedaçada como
um inseto sob um copo. Não por gente como você.
Bisavó Oresteia, que uma vez contrabandeou rum direto pelo jardim do
mestre da baía, não teria deixado que ele a irritasse assim. Mas as coisas
estavam muito confusas, agora. Markos não percebeu que suas palavras
tinham provocado todas as minhas dúvidas, trazendo-as à tona para flutuar ao
meu redor, como fantasmas dando risada. Eu nunca tinha me sentido menos
uma Oresteia.
Do outro lado da sala, o tio Bolaji e minha mãe estavam absortos em uma
conversa com outras pessoas a sua mesa. Eles não estavam olhando em
direção a nós.
– Venha. – Puxei Markos pela manga. – Estamos indo.
No corredor silencioso, os candeeiros reluziam em seus suportes nas
paredes. Uma criada de quarto solitária carregando uma cesta de trapos
atravessou apressada a passagem acarpetada. Ela mal olhou para nós.
Peguei o chapéu de Markos no cabide e o enfiei em suas mãos.
– Siga o contorno da casa pela esquerda até chegar a um beco. No fim
dele, vai encontrar um jardim. Esconda-se ali. – Eu o empurrei para fora pela
porta da frente. – Encontro você assim que puder pegar minhas coisas e dar o
fora.
Quando a porta se fechou atrás dele, meu distinto ancestral olhava para
mim com reprovação, do alto de seu retrato com moldura dourada. A luz de
candeeiros reluzia na pincelada de óleo negro que formava a curva de suas
suíças.
– Ah, cale a boca – rosnei, olhando para trás.
CAPÍTULO
QUINZE

Passos com botas ecoaram no chão encerado. Era minha mãe, na companhia
do tio Bolaji. Eles estavam muito envolvidos em uma conversa sussurrada,
com expressões sérias. Eu me espremi contra o mostruário de vidro de
objetos curiosos para deixá-los passar.
Minha mãe mal olhou para mim, mas chiou pelo canto da boca.
– Cama. Agora. E não ouse botar nem a ponta do pé para fora daquele
quarto. Eu já vou subir.
O tio Bolaji fez uma pausa.
– Onde está aquele jovem mensageiro?
– O mensageiro vindo das docas teve de partir imediatamente – eu disse,
sem hesitação. Mentir é muito fácil depois que você se acostuma.
– Ah. É uma pena. Acabei de pensar em outra coisa que eu queria
perguntar a ele. Mas não importa. – Ele passou por mim. – Nós devíamos
discutir enviar um emissário imediatamente, embora me embrulhe o
estômago bajular assassinos de crianças. A filha do emparca tinha oito anos.
– Nós podemos insistir em uma revisão do Acordo de 86 – disse minha
mãe. – Só a economia do pedágio… – Suas vozes desapareceram pelo
corredor.
Subi a escada até os aposentos no quarto andar, onde dormiam as garotas,
sob os beirais com tetos inclinados. Eu arranhei a porta de Kenté, então entrei
sem esperar.
– Você descobriu o que queria? – Ela estava sentada em um banco de
veludo, girando a cabeça de um lado para o outro. Seus olhos se encontraram
com os meus no espelho.
– Descobri – eu disse.
– Nós vamos sair. – Jackie pôs um último grampo no penteado trançado de
Kenté e examinou seu trabalho. – É claro que você vem com a gente.
– Aonde vocês vão?
– A uma festa. Você pode usar um vestido meu emprestado se apertar bem
o espartilho. – Ela olhou para mim, calculando o tamanho de minha cintura.
Eu não estava usando corpete, e ela sabia disso.
– Não posso ir – eu disse. – Preciso estar no rio antes das cinco. Vou para
o Lago Nemertes, e vocês sabem que as marés não esperam.
– É verdade – disse Kenté. – As correntes levam a todos nós. Mas achei
que você tinha dito que estava a caminho da cidade livre.
Toquei a lateral do nariz com um dedo.
– E isso é um segredo para vocês. Então estamos quites.
Ela fez bico.
– Mas não é muito divertido, não é? Você acabou de chegar aqui.
Cada momento que eu ficava, eu corria o risco de ser pega por minha mãe.
E Markos estava à espera. Eu me despedi e desci pelo corredor tomada pelo
remorso. Minhas primas supuseram alegremente que eu iria voltar no verão.
Elas não tinham como saber que, a essa altura, eu poderia estar morta nas
mãos dos Cães Negros.
Eu me virei.
– Adeus – sussurrei para a porta fechada.
De volta ao meu quarto, tive de me contorcer para alcançar as amarras
daquele vestido rígido, mas não ousei tocar a campainha para chamar a
criada. Ela iria querer passar óleo no meu cabelo e trançá-lo, ajudar a me
lavar e todo tipo de bobagem para as quais eu não tinha tempo.
Um rangido no alto da escada me alertou para a aproximação da minha
mãe.
A criada deixara algo sobre a cama que parecia um rolo de renda, após ter
entrado em uma briga com outro rolo de renda e perder. Com a boca torcida
para um lado em aversão, puxei o vestido pela cabeça quando ouvi passos
diante da porta. Apaguei a vela e entrei embaixo das cobertas.
A porta se abriu com uma batida forte.
– Está bem, Carô, qual é esse negócio com… – A voz de minha mãe se
calou.
Era impossível que ela não conseguisse ouvir minha respiração difícil e o
martelar do meu coração. Deixei que meus lábios se entreabrissem e relaxei
os dedos onde estavam enroscados no travesseiro.
Ela ficou ali parada por tanto tempo que, depois de alguns instantes, achei
que talvez fosse minha imaginação. Com certeza, ela tinha saído em silêncio
do quarto e ido embora. Acalmei a respiração, desejando que meus músculos
relaxassem. Finalmente, ouvi a sola de suas botas roçarem o tapete, seguidas
pelo murmúrio das dobradiças da porta.
Qual era o significado daquilo, e por que ela não me sacudira e me
acordara para gritar comigo? Com meu pai, eu sabia como eram as coisas.
Mas ela era… diferente. A mente de minha mãe estava sempre em
funcionamento, à procura de ângulos, pontos positivos e maneiras de os
Bollards obter vantagem. Para ela, a revolução em Akhaia significava
oportunidades de negócio.
Uma coisa era certa. Eu não podia confiar nela com esse segredo.
Uma mudança nas sombras fez com que meus olhos se abrissem
bruscamente. Eu me sentei ereta na cama, e minha mão tateou a cômoda à
procura da pistola.
Markos estava agachado no beiral da janela, bloqueando o luar. Seu
casaco comprido pendia às suas costas.
Eu chutei os lençóis.
– Como você entrou aqui?
Ele pulou delicadamente para o chão.
– Vi você passar diante da janela antes de a luz se apagar. Por isso, subi
pela treliça. – Eu percebi que ele estava muito satisfeito consigo mesmo,
apesar da mancha de grama em seu casaco. – O que você está vestindo?
Eu tinha me esquecido da monstruosidade daquela camisola.
– Não importa – resmunguei, cruzando os braços à minha frente. – Pensei
ter dito a você que me esperasse no jardim.
– Você disse que vinha logo depois de mim. Isso foi há meia hora. Fiquei
preocupado.
– Estou bem, mas precisamos deixar Siscema imediatamente. Vire-se. –
Olhei pelo chão à procura de minhas roupas. – Droga. A criada levou minha
camisa. E minhas roupas de baixo. – Levei a mão a uma pilha de tecido
amontoado. – Espere. Ela deixou a calça. A bênção nas pequenas coisas.
A camisola ridícula pendia de meus ombros com sua pala rendada à minha
frente. Segurei a barra e a torci em um bolo grosso que enfiei na parte de trás
da calça. Em seguida, peguei a pistola na cômoda e vesti minha capa de
chuva.
– Tudo bem, você pode virar – eu disse. – Mas saiba que se você rir, não
vou hesitar em atirar em você e dar seu corpo para os Cães Negros.
O perfil de Markos estava delineado pela luz suave que vinha da janela.
– Carô, tem certeza de que estamos fazendo a coisa certa? Os Bollards são
uma casa rica e poderosa. Eles podem nos ajudar. Por que estamos fugindo?
– Os Bollards só pensam em lucro. – Ergui as sobrancelhas. – Eu gostaria
de saber quanto um emparca vale para eles.
O tio Bolaji parecia desaprovar o golpe sangrento dos Theucinianos, mas
minha mãe agira como a mesma pessoa pragmática de sempre. Eu não achava
que os Bollards se importassem com quem ficaria com o trono de Akhaia,
desde que o emparca fosse favorável ao comércio.
– Você não confia na própria mãe? – perguntou ele.
– Ela é, primeiro, uma Bollard e, depois, uma mãe. – Me equilibrei na
beira da cama e enfiei o pé direito na bota.
– Isso não é uma coisa muito simpática de se dizer.
Eu sorri no escuro.
– Ela não concordaria.
As tábuas do piso rangeram quando ele caminhou até a janela.
– Você acha que podemos passar pelo consulado akhaiano a caminho das
docas? Eu tive uma ideia.
Eu olhei para a treliça abaixo da janela. Ela tinha aguentado o peso de
Markos, por isso achei que fosse resistente o bastante. Eu odiaria escapar dos
Cães Negros para despencar para a morte de uma janela no quarto andar.
– É melhor ser alguma coisa útil.
A luz do candeeiro no portão fez com que os olhos dele brilhassem.
– Pistolas e espadas são úteis?
Eu não sabia o que pensar desse Markos. Ele parecia estar saboreando
aquela aventura. E, o que era mais surpreendente, ele não estava se saindo
mal.
Quando joguei minha perna pelo batente da janela, eu disse algo que nem
em mil anos eu teria imaginado:
– Vá na frente.
Uma névoa úmida ainda pairava baixa sobre a cidade. O consulado
akhaiano estava escuro, exceto por uma luz em uma janela no andar superior.
Sob o cume do telhado, projetava-se uma cabeça de gato gigante de pedra.
Uma luz de candeeiro recaía sobre suas presas esculpidas, para lançar
sombras horrendas na parede.
– Você vai ser Tarquin Meridios outra vez? – sussurrei.
– Não, é claro que não. Qualquer um que realmente trabalhe aqui vai me
reconhecer imediatamente. – Markos olhou para a cabeça do gato, em
seguida baixou os olhos. Ele parecia estar medindo algo. – Todo consulado
tem de ter uma casa segura. Deve haver uma porta secreta em algum lugar.
Com o selo do emparca sobre ela.
Apontei com a cabeça para a entrada principal. Havia um guarda postado
ali, com um mosquete preso às suas costas.
– Cuidado.
Markos se agachou no beco estreito. Ele examinou a pedra angular e
passou a mão por sua superfície. Tateando a parede, seguimos em silêncio em
direção aos fundos do prédio.
Ele parou.
– É aqui.
Achei que ele estivesse arranhando um tijolo. Mas ele empurrou, e a
parede desceu para dentro com o rangido de engrenagens enferrujadas. Eu
prendi a respiração, na esperança de que o guarda não fizesse a volta para
investigar o barulho.
Markos tateou no interior da abertura.
– Ah, excelente – disse ele. Ouvi o barulho de algo se quebrando e o
cheiro de enxofre; uma combinação alquímica. Ele segurou no alto uma
lanterna de vela e me indicou que eu entrasse.
Engoli em seco ao ver aquela escada que levava a uma boca de escuridão,
mas desci atrás dele. A luz tremeluzente iluminou um pequeno aposento
redondo.
Espadas e machados pendiam de ganchos nas paredes, junto com uma
arma curva de aparência maligna que eu não consegui identificar. Havia
várias caixas menores em cima de mesas em torno das bordas da sala. Pelo
menos uma delas estava cheia de moedas. Havia mais armas espalhadas pelas
mesas, e montes de tecidos, também. Uma camada fantasmagórica e cinza de
poeira cobria tudo.
Markos foi direto para um par de espadas curtas.
– Um esconderijo de armas e outras coisas úteis – explicou ele, sacando
uma das espadas da bainha para examiná-la. Aparentemente satisfeito, ele
pendurou a bainha em um cinturão de couro largo. – Colocadas aqui só para
esta contingência. – Ele afivelou a outra espada do lado esquerdo do cinto. –
Parece que nada disso é tocado em cem anos.
Eu girei e observei a riqueza a nossa volta.
– É maravilhoso.
– Vê alguma coisa que você queira?
– Vou ficar com a pistola de meu pai, obrigada. Eu sei como usá-la.
– Acho que você deveria pegar uma espada – disse ele. – Só por garantia.
– Eu prefiro um punhal. Eu sei arremessar uma faca. Meu pai fez com que
eu treinasse.
Ele girou um punhal nas mãos.
– Você é boa mesmo? – perguntou ele e o jogou para mim. – Você poderia
matar um homem com uma faca?
Eu o peguei. A bainha tinha um padrão bonito de folhas e arabescos.
– Nunca tentei.
Será que eu conseguiria? Eu me orgulhava de minha precisão com uma
faca, mas nunca houvera uma pessoa de carne e osso do outro lado. Saquei a
arma alguns centímetros e tracei os entalhes do cabo. Eu não ousaria lançar
algo tão belo se não pudesse recuperar. Prendi a faca a meu cinto, mas sabia
que jamais iria usá-la, exceto como último recurso.
Markos jogou três moedas em minha mão com um sorriso enviesado.
– Para seu pai. Para pagar a ele pelo casaco.
Ele remexeu em um baú pequeno e pegou um cachecol. Ele o envolveu
nos ombros no estilo antigo e o prendeu com um broche de ouro em forma de
coroa de flores.
Olhei para aquilo desconfiada.
– Isso não vai atrapalhar se nos metermos em uma briga?
Ele olhou para si mesmo e apertou os lábios.
– Você tem razão. – Ele o desenrolou.
– Espere, o que é isso? – Um detalhe de ouro refletiu a luz. Empurrei o
resto das roupas para o lado. No fundo do baú, havia um conjunto de pistolas
douradas com cabos de osso entalhado. Elas estavam aninhadas em um estojo
de veludo, uma apontada para a esquerda; e a outra, para a direita.
Toquei o cano de uma das pistolas. O trabalho em metal era requintado.
Eu podia ver flores e arabescos e um leão-da-montanha deitado, com a cauda
curva em torno do cabo. O felino estava disposto em um círculo com palavras
escritas no exterior em uma letra que eu não conseguia ler. Seus olhos eram
pequenas pedras preciosas.
– Esse é o brasão real de Akhaia – disse Markos.
Desejei que ele não tivesse me contado. Não parecia certo levar um par de
pistolas daquele.
– Elas não foram feitas para mim.
E, ainda assim, havia nelas algo familiar. Algo que eu já tinha visto antes.
Tomada por um choque, eu me lembrei de meu sonho – de caminhar no
convés do Victorianos enquanto ele deslizava pelas ondas. Minhas mãos
percorreram a amurada, a madeira lisa sob meus dedos. Gaivotas voavam em
círculos e mergulhavam ao meu redor. Na cabeça, eu usava um chapéu de
três pontas e, na cintura, um par de pistolas douradas iguais.
Exatamente como aquelas.
Cambaleei para trás com a respiração tensa no peito.
Markos, ocupado examinando as pistolas, não percebeu.
– Bom? Você não vai levá-las? – Ele olhava para mim com expectativa. –
Você atira muito melhor que eu.
– Não é… Não é certo. – Umedeci os lábios. – Elas são muito mais
elegantes que suas espadas.
Coincidência. Era apenas isso. Apenas oráculos tinham sonhos reais. Eu
estava pensando nos Cães Negros quando peguei no sono duas noites atrás.
Em cartas de corso. Em corsários. Tudo de algum modo se misturara em
meus sonhos. Com certeza, muitas pessoas tinham pistolas douradas. Bom,
pelo menos, muitas pessoas ricas.
– Carô – ele inclinou a cabeça –, eu sou o emparca. Todas essas coisas
pertencem a mim. Eu as estou dando a você.
Outro compartimento no baú continha correias de couro trançadas, feitas
para usar por baixo do casaco de um homem. Ao prendê-lo, ajustei as fivelas
no menor buraco, em seguida ergui as pistolas da caixa, ainda me sentindo
estranha em relação àquilo.
Alheio a minha hesitação, Markos seguiu em frente. Ele esfregou a poeira
de um espelho na parede e se inclinou para perto.
– Este é o primeiro espelho decente que eu vejo em muito tempo – disse
ele. – Meu cabelo está uma bagunça horrorosa. Não sei como as pessoas
vivem sem valete. – Ele deu um suspiro. – Você vai zombar de mim por isso,
não vai?
– Vou.
Não havia nada de errado com o cabelo dele. Estava exatamente como
sempre. De repente, meus dedos estremeceram estranhamente, como se
fossem se erguer e tocá-lo.
Eu me afastei.
– Seu cabelo está bom. – Eu peguei uma fieira de contas e fingi admirá-la.
– Não tente pescar elogios. Não vou fazer isso.
– Um homem que dependesse de pescar elogios seus ficaria com o cesto
vazio e sem jantar – resmungou ele.
Eu bati palmas.
– Markos! Você está falando como um barqueiro.
– Ah, cale a boca. – Eu o vi tentar esconder o sorriso.
Eu me virei para o lado para ver minha imagem no espelho, admirando a
maneira como a luz do candeeiro brilhava em minhas pistolas novas. Livre da
rede, meu cabelo caía sobre meus ombros, uma massa de cachos densos
castanho-avermelhados. Eu me aproximei para examinar meu rosto.
Markos percebeu.
– Sabe, as garotas de Akhaia botam suco de flor de laranjeira nas sardas
para escondê-las.
Era típico dele pegar a única coisa de que eu me envergonhava. Algumas
garotas tinham umas sardas pequenas, mas as minhas eram grandes e
espalhadas.
– Ayah? Elas também usam belos chapéus e passam o dia inteiro ao abrigo
do sol? – Eu revirei os olhos. – Eu trabalho em uma barca. No sol. Flor de
laranjeira não vai adiantar nada.
– Não estou dizendo que você não é bonita – murmurou ele.
Uma sombra bloqueou a porta em arco.
Um homem de roupa de marinheiro estava parado na escada. Ele sorriu,
revelando um dente podre. Luz da lanterna tremeluzente brilhou sobre sua
espada comprida e curva. Ele, sem dúvida, não parecia trabalhar no
consulado akhaiano.
– Então é você. Philemon estava achando que era. – Arras-
tando pesadamente as botas, ele desceu. – Vocês têm os Andelas por trás de
vocês, podem ter certeza.
O rosto de Markos congelou.
– Não sei o que você poderia saber sobre isso – retrucou ele com desprezo,
sacando as duas espadas em um movimento amplo.
O homem riu. O comentário esnobe de Markos apenas confirmou que ele
era exatamente quem os Cães Negros desconfiavam que fosse. Ele às vezes
era mesmo um idiota.
Minhas pistolas novas não estavam carregadas. Eu levei a mão lenta e
discretamente em torno do cinto para pegar o punhal.
O homem gesticulou com a espada.
– Tente isso e eu vou estripá-la como uma truta.
O tempo pareceu desacelerar enquanto eu calculava – o tamanho de sua
espada, o número de passos para cruzar o pequeno aposento, quanto tempo se
levava para estripar uma truta.
Tudo aconteceu ao mesmo tempo. O homem avançou, e luz refletiu sobre
aço. Os detalhes dourados e rendados da cauda do casaco de Markos
lançaram-se à frente no escuro como o bote de duas serpentes gêmeas. Ele
pulou entre mim e o pirata. Antes que eu tivesse tempo de ter medo por ele, o
homem estava no chão com as mãos na garganta.
Sangue jorrava de seu pescoço e se empoçava em um círculo cada vez
maior sobre as pedras. Sua mão esquerda melada se retorceu e tombou,
imóvel. Eu não sabia para onde olhar. Era repugnante demais.
Markos se aprumou, segurando uma espada com uma mancha escura em
cada mão. Um cheiro ferroso encheu o local.
– Sabe... – eu disse. Minha voz soou aguda e desconexa. – Prefiro muito
mais as pistolas.
O barulho em meus ouvidos ficou mais alto, e eu cambaleei. O chão deu
um solavanco alarmante em minha direção. Algo caiu ruidosamente sobre as
pedras.
Uma mão quente e dolorosa envolveu meu braço. Markos me puxou para
cima com tanta força que meu casaco prendeu embaixo do braço.
– Ai – eu disse vagamente, do que pareceram quinze quilômetros de
distância. Meus ouvidos roncavam.
– Você ia desmaiar. – Os dedos dele se fecharam em torno do meu braço.
– Por que não me disse que não aguenta ver sangue?
– Como eu podia saber disso? Eu nunca vi tanto sangue na vida. – Engoli
em seco e permiti que meus olhos perdessem o foco para não ter de ver os
borrifos de sangue em sua camisa. O zunido quente em minha cabeça
começou a se esvair.
– Melhor? – Ele afrouxou a pegada.
Eu me soltei e ajeitei o casaco.
– Acho que você poderia tê-lo matado de um jeito menos repulsivo.
Eu me recusei a olhar para o homem morto quando passei por cima de sua
perna. Eu me apoiei na parede da escada e inspirei o ar fresco do rio. Eu não
estava me sentindo tonta. Eu não estava. Esse tipo de coisa só acontecia com
garotas da cidade. Às minhas costas, ouvi um som de algo deslizando.
Markos, limpando as espadas nas roupas do pirata morto.
– Eu não esperava que você fosse desmaiar – disse ele. – Você não tem
medo de nada.
– Eu não desmaiei. – Meu rosto estava afogueado. – Eu não estou com
medo.
– Muitos homens passam mal depois de matar pela primeira vez – disse
ele. – Muitos guerreiros.
– Você passou?
– Eu nunca tinha matado ninguém – sua voz vacilou. – Até agora. – O
tecido de seu casaco se moveu. Eu soube que ele estava olhando para trás,
para o homem morto.
– Eu não precisava saber disso – murmurei.
Markos esfregou os punhos da camisa de meu pai, o que apenas espalhou
as manchas de sangue.
– Eu não me sinto mal – disse ele, com uma expressão de aversão
passando por seu rosto. – Só… sujo.
O medo para o qual eu não tivera tempo antes chegou com força, fazendo
meu coração palpitar.
– O que nós vamos fazer com o… Com ele?
Ele inspirou e deu as costas para o homem morto.
– Deixá-lo aqui, imagino. Com a porta fechada, provavelmente nunca vão
encontrá-lo.
Na próxima vez em que alguém abrisse a sala secreta, talvez houvesse
apenas um esqueleto empoeirado. Estremeci, e não por causa do ar da noite.
Parecia um destino horrendo.
No caminho de volta para a barca, nós nos mantivemos nas sombras. Se
Philemon tinha pensado em mandar alguém ao consulado, ele provavelmente
tinha homens à nossa procura por toda a cidade. O cheiro do rio era potente à
noite e, de algum modo, ainda selvagem, apesar do entorno urbano. Nós o
seguimos até a baía, e finalmente fizemos a curva no último armazém.
Com a garganta quase fechada pelo pânico, procurei freneticamente a
Cormorant. Ela descansava nas docas dos Bollards, e a curva familiar de seu
casco erguia-se da água escura, exatamente onde eu a deixara. Uma lanterna
brilhava alta em seus estais.
Soltei o ar, aliviada.
– Fee! – chamei com delicadeza quando embarcamos.
No escuro, soltamos e içamos a vela principal. Markos ajudou, com Fee
dando tapinhas em suas mãos para lhe dar instruções silenciosas. A Alektor
estava a cerca de quinze metros de distância. Eu estava com medo demais
para respirar.
– Carô!
Minha mãe vinha correndo pelas docas, seguida por seus dois guarda-
costas. Era por isso que ela não tinha me acordado, porque ela mesma
pretendia revistar a Cormorant, pelas minhas costas? Tudo o que eu sabia era
que eu não podia deixá-la nos deter. Eu soltei a última amarra.
– Carô, o que é essa história de carga roubada? Como você se meteu com
os Cães Negros? Espere!
Nós nos soltamos, e a Cormorant afastou-se das docas, movendo-se muito
devagar.
Minha mãe caminhava pelo cais em suas botas altas enquanto nos
acompanhava. Ela ergueu a cabeça, e seus olhos dirigiram-se para Markos.
– Quem é você, na verdade? – perguntou ela.
Eu sabia que ele achava que eu estava cometendo um erro. Ainda assim,
ele ficou quieto e não disse nada, deixando deliberadamente a escolha para
mim. Por um momento desesperado, eu hesitei. Não era tarde demais para
jogar um cabo para ela. Para voltar. Os Bollards tinham escunas, navios de
três mastros e brigues – grandes navios oceânicos armados com canhões de
nove libras. Eu só tinha uma barca.
– Não posso lhe contar – eu disse. Mas havia uma coisa que ela podia
fazer. – Mande um navio até o mestre da baía em Pontal de Hespera. Meu pai
está preso lá acusado de contrabando. Ele vai explicar tudo.
– Pontal de Hespera? Você disse que ele estava em Valonikos. Dê a volta,
Carô! – Ela parou. Não havia mais cais.
– Desculpe, mãe – eu disse, do outro lado da crescente distância. Eu não
ousava dizer mais. Atrás dela, espreitava a Alektor, escura e silenciosa nas
docas.
– Ei! – gritou um homem. – Quem vai lá?
– Um vigia. Nas docas – sussurrou Markos de olhos arregalados. A
distância entre a Alektor e a Cormorant crescia, mas não rápido o bastante.
– Maldição! – Minha mão suada agarrou a cana do leme.
– Alarme! Alarme! – O homem se levantou e tentou pegar o mosquete. –
Uma barca deixou as docas!
Empurrei Markos com força.
– Abaixe-se.
Ele se jogou no piso do cockpit. Meu coração batia em ritmo frenético.
Nós ainda estávamos ao alcance deles. Eu abaixei a cabeça e me agarrei ao
leme, me preparando.
Esperando o tiro.
À noite, os sons são levados acima da água imóvel mesmo a grandes
distâncias. Eu ouvi o atrito inconfundível da lâmina de uma faca contra a
bainha, seguido por um grito gorgolejante e pelo barulho de algo pesado
caindo na água.
Ouvi a voz de minha mãe.
– Anjay, Thessos! Depressa, agora. Livrem-se desse corpo.
CAPÍTULO
DEZESSEIS

O sol em meu rosto me acordou. Eu pisquei, tentando limpar a confusão em


minha mente. Estava deitada em meu beliche, totalmente vestida e muito
amarrotada. Do outro lado da cabine, Fee estava enroscada em sua rede.
Ondas quebravam delicadamente contra o casco. Quando me levantei do
beliche, tudo me voltou à mente. Nossa fuga frenética de Siscema. A
angustiante velejada noturna, temendo que os Bollards ou os Cães Negros
nos alcançassem a qualquer momento. A ancoragem entre os juncos altos da
margem do rio, no local onde ele se alargava, exaustos demais para ir mais
longe.
E os sonhos.
Eu sonhei outra vez com a sra. Singer morta, com peixes nadando ao seu
redor. Eu estava começando a não fazer caso disso. Mas, para meu alívio,
dessa vez não havia a possibilidade de ser um sonho verdadeiro, porque
também havia gaivotas e golfinhos falantes. E uma cobra. Não, algo maior
que uma cobra…
Esfreguei a testa. Eu não conseguia me lembrar.
Em algum lugar, um sino chacoalhou um som enferrujado. Subi descalça
para o convés. O rio era tão largo que parecia um lago, mas eu sabia que, na
verdade, estávamos ancorados em um mar interior, de água salobra. Perto da
popa, ondas quebravam contra uma estaca de madeira inclinada. Duas fileiras
de colunas exatamente iguais demarcavam um canal, enquanto gaivotas
voavam e piavam acima do capinzal dos pântanos.
O Lago Nemertes. Nós tínhamos chegado no escuro.
Eu sempre amei a sensação de meus dedos dos pés se retorcendo sobre as
tábuas do piso da Cormorant. Isso fazia com que eu me sentisse mais perto
dela. Mas eu estava um pouco culpada em relação a deixar tudo uma bagunça
na noite anterior, por isso comecei a trabalhar arrumando e limpando o
convés.
Não percebi Markos até que ele estivesse quase em cima de mim.
– Você parece uma princesa pirata. – Ele se apoiou na cabine com a gola
da camisa desabotoada e se agitando ao vento.
Eu ainda usava a camisola de renda enfiada na calça, com um lenço
enrolado no cabelo.
– Não existe uma coisa dessas.
– Existe, sim – disse ele. – Tem uma história sobre uma. Arisbe, princesa
de Amassia. Amassia Perdida.
– Ah, eu conheço essa – eu disse. – O príncipe da ilha promete a mão da
filha em casamento a um emparca em um castelo distante, mas o mar fica
com raiva, pois era uma garota que a deusa do mar reclamara para si. Então,
houve uma grande guerra, com piratas, espadachins, crocodilos mágicos e
não sei mais o quê. E, no fim, o mar se vinga destruindo a cidade, não é isso?
– Eu dei de ombros. – É só uma lenda.
– Algumas pessoas nela são figuras reais da história de Akhaia.
– São?
– Você não sabe nada? – Ele me devolveu minhas velhas palavras de
zombaria com um sorriso. – O que faz com que você tenha tanta certeza de
que é uma lenda?
– Porque todos os marinheiros contam histórias assim, mas nenhum deles
jamais viu as ruínas de Amassia Perdida. Ela não existe.
Com as mãos nos bolsos, ele caminhou pelo convés.
– E, ainda assim, existiu mesmo um emparca, chamado Scamandrios II,
que teve uma esposa de um país insular. Na verdade, eles foram os primeiros
da linhagem direta de minha família a governar Akhaia. Quando ele morreu
jovem, essa mesma esposa governou como regente por muitos anos. Ela foi
uma das emparquesas mais famosas da história. Nossa versão, porém, não
tem crocodilos mágicos.
– Provavelmente, foram acrescentados pelo meu pai. Eles sempre
aparecem nas histórias. – Fui tomada por uma onda de dor. Engoli em seco e
dei as costas para ele para desamarrar a proteção da vela.
– Tudo vai ficar bem. – Markos limpou a garganta. – Você mesma disse
que sua mãe é muito influente. Ela tem de ser capaz de fazer alguma coisa.
Se alguma coisa acontecesse com meu pai, seria culpa de Markos. Eu
sabia que ele tinha se dado conta disso. Era um não dito que permanecia entre
nós, uma sombra avultante.
Eu mudei de assunto.
– Eu não gosto dessa história de Arisbe.
Ele revirou os olhos.
– Certo, vou perguntar. Qual o problema com ela?
– O fim. – Começando em lados opostos, desatamos os nós que prendiam
a vela amarrada.
– Ela se casa com um emparca – disse ele. – Ela governa Akhaia.
– Tudo o que ela conhece é destruído! O deus do mar afoga sua família!
Mas, tudo bem, não deve ser grande coisa, porque ela se casa com um
emparca.
– É uma história admonitória – disse ele. – Um alerta sobre os perigos de
desafiar seu destino.
– Como se tivesse sido Arisbe quem arranjou aquele casamento! A história
é sobre muita gente lutando por ela, mas é ela quem paga no fim.
Ele sacudiu a cabeça.
– Você tem muitas opiniões sobre as coisas.
– Obrigada – eu disse, embora desconfiasse que aquilo não tinha sido um
elogio. Juntos, içamos as velas e as erguemos até que se encaixassem no
lugar.
Dei um último puxão na adriça para tirar a folga.
– Cuidado – ordenei. Markos se inclinou sobre meu ombro enquanto eu
enrolava a adriça em torno do cunho, em um movimento em forma de oito.
Eu girei a mão, peguei por baixo a extremidade da corda e puxei o nó para
apertá-lo. – É assim que se amarra os cabos.
– Parece muito simples quando você faz isso – disse ele.
– Porque é.
– Você só acha isso porque foi criada em um barco. – Ele caiu de pernas
cruzadas no assento do cockpit. – Tudo isso parece uma língua estrangeira
para mim.
A vela tremulou quando o vento a encheu. Eu conduzi a Cormorant entre
as duas estacas mais próximas.
– Markos… – eu hesitei. – Ontem à noite. Quando eu… fiquei tonta…
Ele deu um sorriso malicioso.
– Você quer dizer quando desmaiou.
– Eu não desmaiei. – Respirei fundo. – A verdade é que eu podia ter sido
mais simpática com você. Quando nos conhecemos, eu… Eu ri muito de
você. Eu não poderia culpá-lo por zombar de mim.
Ele me respondeu com um aceno de cabeça.
– Nós somos mais fortes juntos que separados. Você não acha?
Não era o que eu esperava que ele dissesse, mas ele tinha razão. Nossa
aventura em Siscema havia mudado as coisas entre nós.
– Ayah – eu disse. – Acho que sim.
– Bem, é por isso que eu não zombei de você.
Eu temia levantar o assunto seguinte, por medo de aborrecê-lo.
– Aquele homem que você matou ontem à noite…
Ele segurou a borda do assento.
– O que tem isso?
Percebi que ele disse “isso”, não ele.
– Você… Bom, você quer falar sobre isso?
– Não. – Ele esfregou a testa. – Sim. Não sei. Odeio ter feito isso. Não é
uma sensação agradável ver a vida de uma pessoa se jorrar dela como...
Eu engoli em seco convulsivamente.
Ele se contraiu.
– Eu não quis dizer “jorrar”. – Ele se aprumou e olhou fixamente para
alguma coisa acima do meu ombro esquerdo. – Tem um barco se
aproximando – disse ele abruptamente.
Era uma chalupa, estreita e graciosa, singrando o Lago Nemertes em boa
velocidade com uma bujarrona e uma vela de estai enfunadas a sua frente. Eu
li o nome em letras douradas: Conthar. Havia um objeto de forma estranha,
coberto com uma lona junto da amurada. Captei um vislumbre de metal em
sua base.
Um canhão. Minha boca ficou seca.
Quando a chalupa virou e se aproximou ainda mais de nós, vi uma mulher
pendurada no estai dianteiro.
– Alôôô! – gritou ela.
Markos se enrijeceu.
A distância, ouvi a mulher discutir com um homem sentado no teto da
cabine.
– Bom, eles não estão respondendo – disse ela. – Não é ela. Veja o nome.
Octavia.
– Aquele é o barco de Nick.
– Olhe para ele pela luneta, meu velho. – Ela entregou uma luneta a ele.
– Minha visão é boa o suficiente. – Ele apontou o cachimbo em direção a
nós. – Aquela é a Cormorant, ou eu sou um ganso-bravo.
Eu reconheci sua voz. Quando cruzaram o curso da Cormorant, bem à
nossa frente, eu acenei.
Markos reclamou.
– O que você está fazendo?
Eu o ignorei.
– É Perry Krantor? – gritei na direção do outro barco. – O capitão Krantor
da Fabulosa?
– Como vai nesta bela manhã, Caroline Oresteia? – gritou ele em resposta.
O homem no timão saiu da linha do vento. A Conthar girou em um círculo
e virou para trás, mas, em um momento, se recuperou. Sua tripulação
manteve a bujarrona e orçou a vela principal para acompanhar o ritmo da
Cormorant. Eu, agora, podia ver seus rostos. A mulher era Thisbe Brixton.
– Eu não conhecia essa chalupa – eu disse.
– Emprestada. – A capitã Brixton se apoiou no lado de estibordo da
Conthar. – Estamos seguindo rio acima. Vinte de nós, todos barqueiros
fortes. Vamos pegar esses canalhas que incendiaram Pontal de Hespera.
– Vocês vão enfrentar os Cães Negros?
– Ayah. – Sua trança comprida se agitava ao vento. – Nós não
conseguiríamos tocá-los no mar, mas não estamos no mar. Estas são as terras
dos rios. Nós conhecemos estas águas melhor que eles.
– Eles subiram o Kars – gritei. – Pelo menos, foi o que eu ouvi. E é melhor
tomar cuidado. Eles têm amigos, a chalupa Alektor.
Os olhos da capitã Brixton se fixaram em Markos.
– Quem é esse? Ele parece alguém…
– Só um primo – eu disse, na esperança de que ela não soubesse muito
sobre minha família. Ele com certeza não se parecia comigo nem com meu
pai, nem, na verdade, com nenhum dos Bollards. Eu me xinguei por não
pensar em uma mentira melhor.
O capitão Krantor removeu o cachimbo da boca e me deu um olhar
penetrante, mas não disse uma palavra.
– Vocês têm… Têm alguma notícia de meu pai? – Eu prendi a respiração.
Ele sacudiu a cabeça.
– Ele está na cadeia do mestre da baía.
Eu dei um suspiro. Graças aos deuses. Ele estava, por enquanto, em
segurança. Com sorte, minha mãe teria sucesso em tirá-lo da prisão.
A capitã Brixton estalou os dedos.
– Lembrei. Ele se parece com o homem na moeda de um centavo.
Abri a boca para dizer que a moeda de um centavo tinha uma árvore.
Ela se antecipou a mim.
– Não a nossa. A akhaiana. Elas não se chamam centavos, se chamam
outra coisa, mas de qualquer forma, tem um rapaz nelas, e você se parece
com ele.
Markos sorriu desconfortavelmente.
– Claro, provavelmente não é daí que eu conheço você. – Ela riu. – É só
uma brincadeira. Não ligue.
– Alguma notícia de suas barcas? – perguntei antes que a capitã Brixton
conseguisse explorar mais aquele afluente.
– Eu esqueci que você partiu naquela mesma noite – disse o capitão
Krantor. – O próprio Finion Argyrus apareceu em Siscema. Não há empresa
de salvamento melhor que a Argyrus & Filhos, isso é certo. Se alguém pode
erguer aqueles barcos, esse alguém é Argyrus!
– Não se derrota os barqueiros assim tão fácil, hein, rapazes? – gritou
Thisbe Brixton. – Ayah, e o Velho não nos mandou em busca de vingança? –
Vi Markos olhar para o capitão Krantor, mas eu sabia que não era dele que
ela estava falando.
Os homens deram um grito alegre e entrecortado.
A capitã Brixton me mandou uma saudação de despedida.
– Que a corrente vos leve, Oresteia! – A Conthar manobrou e foi embora,
dirigindo-se à extremidade norte do Lago Nemertes. Eu desejei estar indo
com eles.
– Eu não devia estar no convés – disse Markos.
– Eles estão do nosso lado. Você parece o homem na moeda de centavo
akhaiana, não é? – Eu bati em seu braço. – Eu sabia que devíamos tê-lo
mantido vestido de mulher. Droga.
– Meu avô está nessa moeda. – Ele esfregou o vinco entre os olhos. –
Quanto custa uma barca?
– Por que…
Ele simplesmente olhou para mim.
– Você sabe por quê. Isso aconteceu com eles por minha causa. – Seus
ombros estavam curvados, como se o fardo sobre ele fosse muito pesado. –
Eu deveria fazer uma restituição.
Eu não queria fazer com que ele se sentisse pior, mas precisava ser
honesta.
– Não é o quanto elas custam – eu disse. – Você não é um barqueiro. Não
ia entender.
– Então faça com que eu entenda.
– Não consigo. – Eu procurei as palavras que queria. – Para um capitão,
um barco é… mais que apenas uma coisa que leva carga de um lugar para
outro. Para alguém que o ama, não importa se ele é velho. Ou que seu convés
não seja limpo. Ou que a pintura esteja lascada.
Eu espalmei a mão sobre o convés quente.
– Quando você o vê, com as velas erguidas no alto contra o céu, é como
levar uma pancada no peito. Por um momento, você não consegue respirar,
tamanha a força com que sua beleza o atinge. Você entende a vida que há
nele, e isso é um chamado para você. É quando você sabe que ama um barco.
É quando ele pertence a você.
– E é assim que você se sente em relação à Cormorant?
– Ela não é apenas uma barca – eu disse, mesmo com um nó na garganta. –
Ela é minha casa. Ela é tudo.
Eu abri ainda mais a mão. Senti cada rangido e movimento. Senti seu
espírito e as pequenas peculiaridades que faziam dela a Cormorant. Isso fazia
com que ela fosse nossa, e de mais ninguém.
– E gostaria de pagar a eles, mesmo assim – disse Markos. – Um dia.
O Lago Nemertes estava pontilhado de barcos. Avistei ao menos seis
barcas, uma barcaça comprida com uma vela de mezena e um navio oceânico
de três mastros, mas também havia barcos de passeio e de pesca, e todo tipo
de pequena embarcação. Estranhamente, estar em águas abertas dava uma
sensação maior ao mesmo tempo de segurança e de perigo. Eu podia ver
nitidamente cada barco que subia e descia aquele trecho. Nenhum deles era o
Victorianos nem a Alektor, com a bênção das pequenas coisas.
Mas eu também me sentia nua. Estávamos expostos no Lago Nemertes. Se
os Cães Negros viessem, não haveria saída.
– Nós estamos perto de Iantiporos? – perguntou Markos.
Eu apontei.
– Fica do outro lado daqueles penhascos. Se navegássemos um pouco mais
para bombordo, você conseguiria ver as colunas do prédio do senado. É uma
das maravilhas do mundo moderno. – Sabendo o quanto ele desprezava o
governo democrático de Kynthessa, eu me surpreendi quando ele não
interrompeu com um comentário de reprovação. – Depois de Iantiporos fica o
mar.
– Você consegue levar este barco para o mar?
– Ela vai bem no Pescoço. Mas em mar aberto? – Eu sacudi a cabeça.
Barqueiros eram supersticiosos em relação ao oceano. Ele não era domínio
do deus do rio. – Lá fora, você precisa de uma quilha profunda. Amuradas
altas. Mais velas.
Eu me virei para Markos e tive uma ideia.
– Você quer experimentar velejar? – Por algum motivo, eu me vi torcendo
para que ele dissesse sim. – Esta é uma baía grande. Aqui, você pode cometer
erros.
– Eu? Eu… Você me deixaria velejar? – Eu vi um brilho em seus olhos.
Ele pôs a mão hesitantemente na cana do leme. Fee a soltou e chegou para o
lado no banco.
– Bom, assim não está certo – eu disse imediatamente. – Segure com
força. Ela é feita de madeira. Você não vai quebrá-la. – Eu apontei para as
estacas que marcavam a parte mais profunda da água. – Apenas permaneça
no canal.
Ele fechou o punho em torno do cabo.
Eu saí do cockpit e subi no teto da cabine. O sol tinha nascido, e a água
estava azul e encapelada com ondas de pontas brancas rendadas. Com dois
pulos, Fee se juntou a mim.
– Não me deixem aqui! – Markos parecia em pânico. – A estaca está se
aproximando. O que eu faço?
– Você vai virar de bordo.
– O quê?
– Aquela coisa que você não gosta, quando a vela vira toda para o outro
lado.
Ele quase largou a cana do leme.
– Nós vamos virar.
– Ela tem vinte toneladas. É impossível virá-la.
– Eu duvido que a Sociedade Real de Física concorde com isso – disse ele
com os lábios apertados.
– É impossível virá-la com tempo bom – consertei. – Agora, quando eu
disser a você para empurrar a cana do leme, você vai fazer isso com força.
Ele se sentou na borda do assento e olhou para a vela.
– Agora?
– Espere.
Ele me lançou um olhar ressentido.
– Tenho total consciência de que você está fazendo isso só para me
torturar.
Os pilares se aproximaram. Eu podia ver as cracas na estaca torta e, além
disso, aves marinhas empoleiradas nas pedras molhadas. Ele elevou a voz:
– Nós vamos bater.
– Não vamos. Espere… Espere… Agora!
Markos empurrou a cana do leme com força. A retranca e verga da vela
bateram com um ruído abafado de madeira. Ele se abaixou por instinto,
embora a retranca tenha passado mais de um metro acima de sua cabeça. A
vela tremulou, em seguida se encheu.
Eu ajustei um pouco os panos. O vento estava soprando mais diretamente
de través, agora.
– Eu não sabia que ela podia voar assim! – gritou Markos. A Cormorant
estava tendendo um pouco para bombordo, mas dessa vez ele não reclamou
da inclinação.
– Ela alcança boa velocidade quando não está carregada. Ela não é tão
manobrável quanto aquele cúter, mas tem um bom desempenho.
– É divertido! – berrou ele.
Eu queria dizer a ele que não era divertido, era trabalho. Mas descobri que
não podia fazer isso. Um dia agradável com vento fresco tem magia própria.
Claro que um barqueiro vê beleza em seu trabalho, ou ele não seria um
barqueiro.
Deitei de bruços e apoiei o queixo no braço. Acima de nós, aves marinhas
voavam e mergulhavam. A madeira do teto da cabine me aquecia através da
camisa. Havia sal em minha pele e no ar. Inspirei, fechei os olhos e saboreei
seu travo salgado. Por um momento, achei ter entendido… alguma coisa.
O deus no fundo do rio fala conosco na língua das pequenas coisas. Eu
escutei, mas qualquer sussurro esquivo desapareceu antes que eu pudesse
pegá-lo.
Markos apontou.
– Vejam as aves.
Havia quatro gaivotas empoleiradas em uma linha ao longo do convés
curvo da barca.
– Ah, as gaivotas – eu disse. – Elas às vezes fazem isso.
Talvez parecesse estranho para alguém que não estivesse acostumado com
isso. Outra gaivota pousou, batendo as asas. Quan-
do eu me mexi, as cinco aves giraram o pescoço para me fixar com seus
olhos vítreos.
– Cááá – disse solenemente a gaivota mais próxima.
– Parece que elas estão observando você – disse Markos.
Eu ri.
– Xô! – Eu agitei os braços para as aves, e elas saíram voando, o que foi
sorte, porque todos sabem que gaivotas cagam por todo seu convés.
Pareceu que não passou tempo algum até chegarmos à boca do Rio Hanu.
Eu rolei com relutância para uma posição sentada. O canal se estreitava onde
o Lago Nemertes escoava para o interior do rio, e, além disso, a maré estava
correndo para fora, revelando áreas planas e alagadiças dos dois lados.
Aquilo era trabalho para um marinheiro experiente.
– Quase – disse Markos, entregando o leme para Fee. Seu cabelo estava
despenteado pelo vento. – Eu quase achei ter entendido.
– Entendido o quê?
– O que você quis dizer antes. – Ele passou a mão pela amurada da
Cormorant. – A vida que há nela.
Ele se levantou para esticar as pernas rígidas e congelou. Aper-
tou os olhos em direção ao teto da cabine e disse com voz sombria:
– O que é isso?
Eu girei, sacando minha pistola. Ouvi o murmúrio de aço quando Markos
sacou suas espadas.
O ar à nossa frente começou a ondear. Eu pisquei. Tinha de ser um truque
da luz. A imagem do rio, da lama e do céu da tarde pareceu derreter e flutuar
até o convés, como alguém jogando uma capa de seda.
Minha prima Kenté estava sentada no teto da cabine.
– Agora, isso… – eu disse; minha voz pareceu um crocitar hesitante. – Foi
perturbador.
CAPÍTULO
DEZESSETE

– Para trás – alertou Markos. Ele segurou meu pulso e me puxou à força para
trás dele. – Ela pode não ser o que parece.
– Me largue. – Eu tentei me soltar de sua mão, mas ele segurou firme.
– Só um tipo de criatura pode se esconder completamente assim. – Ele não
tirava os olhos de Kenté. – Carô, é um homem das sombras.
– Não seja idiota. Não é nenhum homem das sombras. – A ideia era tão
ridícula que me deu vontade de rir. – Essa é minha prima Kenté.
– É mesmo? Então como ela chegou aqui?
Kenté descruzou as pernas e se levantou enquanto alisava as saias. Ela
estava usando o mesmo vestido listrado verde e dourado do jantar da véspera.
– Isso é muito fácil – disse ela. – Talvez eu quisesse saber o motivo
secreto pelo qual minha prima estava com tanta pressa de escapar de
Siscema. – Ela estudou Markos. – Parece que eu encontrei você.
Ele avançou sobre ela, brandindo a espada.
– Eu reconheço uma ilusão quando vejo uma. Se você é Cleandros, vou
estripá-lo agora mesmo, traidor.
Ela engoliu em seco sem tirar os olhos da espada.
– Eu preferiria muito que você não me estripasse. – Ela ergueu as mãos. –
Carô? Uma ajudinha, aqui?
Senti a boca seca como se tivesse mastigado cordas. Será que um homem
das sombras poderia mesmo imitar minha prima, até o cabelo trançado e o
nariz arrebitado? Ele não tinha como saber qual a aparência dela. Eu
estremeci, com uma imagem horrenda me agarrando como dedos congelados.
Minhas primas, rindo, enquanto seguiam inocentemente pela rua escura de
pedras a caminho da festa… Enquanto o homem das sombras espreitava e as
observava.
Empurrei meu punhal akhaiano contra a garganta de Kenté – ou do homem
das sombras.
– Onde está ela? O que você fez com ela?
Seus olhos âmbar se arregalaram.
– Isso – ela disse – são armas demais. Eu sou Kenté, eu juro! – Ela
apontou com a cabeça para Markos. – Mas ele está certo. Eu também sou um
homem das sombras.
– O que você quer dizer com você é um homem das sombras? – perguntei.
– A deusa da noite pôs o dedo em mim quando eu era uma garotinha –
disse ela. – Como você acha que eu sei tantos segredos?
Eu quase acreditei nela. Kenté era mesmo esquiva e, além disso, se aquele
fosse Cleandros disfarçado, vindo para matar Markos, porque ele já não tinha
feito isso? Ele podia ter enfiado uma faca nas costas dele a qualquer
momento, naquele dia.
– Quando falamos pela última vez – eu disse – você me contou uma
história. Sobre que tipo de criatura era a história?
– Isso é fácil. Um drakon. Embora eu nunca tenha chegado a essa parte.
Satisfeita, eu afastei o punhal.
– É Kenté. – Ergui as sobrancelhas. – O que você está fazendo aqui?
– Eu farejo encrenca. – Ela afastou a espada de Markos do rosto. – E vocês
dois parecem estar com o barco cheio disso. Em relação a como subi a bordo,
como eu disse, isso foi bem fácil. Eu me envolvi em uma ilusão e segui vocês
até as docas. Então, eu me escondi no compartimento de carga. – Ela
esfregou o vestido. – Que, por falar nisso, está muito cheio de serragem.
– Nós devíamos deixá-la em terra – eu disse a ela.
Ela fez uma expressão amuada.
– Vocês dois parecem estar vivendo peripécias. Eu quero participar. – Ela
agitou um dedo para mim. – Eu vim pela diversão. Mas vocês vão ficar
comigo porque eu posso ajudá-los.
Infelizmente, ela estava certa.
– Como você fez isso? – perguntei. – A ilusão. Se você é um homem das
sombras, você não devia ser capaz de exercer sua magia apenas à noite?
– É simples. Se você cria a ilusão à noite, ela permanece durante o dia. A
menos que eu termine com ela, como acabei de fazer.
Percebi Markos olhando fixamente para Kenté. Minha prima não era mais
bonita que eu, embora seu vestido exibisse um decote muito maior.
Eu dei um tapa no braço dele.
– Você pode manter os olhos aqui em cima.
– Eu não estava… – Seu rosto enrubesceu.
– Você estava.
– Talvez um pouco – murmurou ele.
– Mas como você descobriu ter magia das sombras? – perguntei a Kenté,
ignorando a maneira penetrante com que seus olhos dardejavam entre Markos
e mim.
– Algo dentro de nós está sempre chamando pelo mundo. – Ela deu de
ombros. – Magia é isso: quando alguma coisa no mundo chama em resposta.
Não era uma resposta, mas as palavras misteriosas de Kenté provocaram
reconhecimento em mim. Chamar o mundo era exatamente o que eu estava
fazendo, só que o rio não estava dizendo nada em resposta.
Ela prosseguiu.
– Sou capaz de fazer truques desde que consigo me lembrar. Eu costumava
achar que era apenas boa em me esconder, até que… – Um tom estranho
surgiu em sua voz. – Três anos atrás, eu ouvi o deus da noite chamar meu
nome. Desde então, eu só fiquei mais forte. Posso fazer com que as sombras
venham ou partam. Posso ver trechos dos sonhos de Jacarandá quando ela
dorme. Tenho certeza de que poderia fazer muito mais com o treinamento
adequado, mas… – Ela deu um suspiro. – Eu não quero decepcionar meus
pais.
– Existe uma… Uma escola para homens das sombras, ou algo assim?
– A Academia – disse Markos, esfregando distraidamente o brinco.
Desconfiei que ele não tinha nem percebido estar fazendo isso. – Em
Trikkaia.
Entendi o que Kenté deixou sem dizer. Os Bollards não conseguiam
imaginar um motivo para que alguém não quisesse ser membro de uma
companhia mercante. Esperava-se que minha prima fizesse um casamento
vantajoso e entrasse para os escritórios da família. Se ela revelasse seu talento
para a magia, seus pais poderiam fingir aprovação, mas, em segredo, não
iriam gostar. Eu sabia como isso funcionava.
– Agora… – Ela sorriu. – Vocês precisam me dizer como se envolveram
com os Cães Negros.
Imediatamente, Fee saltou de pé e largou a cana do leme. Seus lábios
elásticos se esticaram em uma expressão de desprezo. Ela me lembrou um
animal com as penas do pescoço eriçadas.
Eu mergulhei em direção à cana do leme e firmei a Cormorant antes que
ela se dirigisse para a lama.
– O que foi?
Ela se agachou no convés e espiou pelo lado contrário ao vento, onde a
sombra da Cormorant deixava a água escura. A mão de Markos voou para o
cabo da espada, enquanto Kenté apenas observava com um interesse
perplexo. Meu pulso palpitava quente em meus ouvidos. Suor umedecia
minha testa. Fee jamais largaria a cana do leme assim. Não a menos que
houvesse alguma coisa errada. Eu olhei para o rio, mas estava turvo demais.
Fee sibilou para a água.
– Monstro – sussurrou ela.
Sem tirar a mão da cana do leme, eu me debrucei para fora. Nada se mexia
embaixo da água.
– Ela – Fee abraçou a si mesma com força. – Ela.
– Não tem nada lá embaixo. – Eu estendi a mão para tocar seu ombro.
Os olhos dela brilharam.
– Não está certo. – Ela se encolheu, como se meus dedos fossem fogo. –
Aqui, não.
– O que não está certo? – perguntei, consciente dos olhares de Markos e
Kenté fixos com curiosidade sobre mim. Aparentemente, Fee estava com
medo de mim.
Mais uma vez, olhei para as marolas escuras. Não vi nada, mas senti um
calafrio mesmo assim.
– Você não se pergunta o que tem lá embaixo? – Markos segurou um estai
e se debruçou para fora para observar a água. Desejei que ele não fizesse isso.
O comportamento estranho de Fee me deixara nervosa. Monstro. Eu não
consegui evitar visualizar um grande tentáculo se projetando repentinamente
do rio para agarrá-lo.
– Não tem nada aí – repeti.
Imagens saltaram em minha cabeça. Algo enorme se movendo nas
profundezas. Peixes entrando e saindo velozes de uma ruína encrustada de
cracas. O cabelo de uma mulher loura flutuando. Engoli em seco e concentrei
os olhos no rio à frente.
– Há muitos mistérios no mundo – disse Markos, pensativo. – Por
exemplo: O que na verdade sabemos sobre os deuses? – Ele apontou com a
cabeça em direção à água. – Por que o seu fala com vocês, enquanto os dos
akhaianos permanecem em silêncio? Ele deve ser mesmo um deus poderoso.
O que quer que estivesse lá em baixo, não era o deus do rio. Fee não tinha
medo dele.
– O que faz você dizer isso? – Minha boca estava seca.
– Bom, olhe para toda essa sorte que nós temos tido.
Eu devia ter admitido a verdade para ele, que nossa sorte nada tinha a ver
comigo. Mas disse a mim mesma que meu orgulho não podia acusar o golpe.
Isso era mentira. Uma pessoa pode viver sem orgulho. Isso só não é
confortável, é tudo.
Passamos a noite ancorados na margem do Rio Hanu, onde os alagadiços
reluzentes e o mar de capim do pântano tinham dado lugar a colinas
ondulantes pontilhadas de rochas. Nós tínhamos feito um tempo excelente
naquele dia, com o vento bom, e não havíamos visto sinal dos Cães Negros.
Enquanto navegávamos, eu recontei a Kenté a história de nossa viagem,
terminando com a fuga da casa dos Bollards. Era difícil acreditar que tinha
sido apenas na noite anterior. Parecia uma lembrança distante. Se o tempo
permanecesse bom, em dois dias chegaríamos ao Pescoço. De lá, era apenas
meio dia de navegação até Casteria.
Eu fechei a janela da cabine e puxei as cortinas.
– Bom, não tivemos nenhum avistamento do Victorianos.
– Isso é uma boa coisa. – Kenté viu meu rosto. – Você não acha que isso é
uma boa coisa?
Eu me joguei sobre o banco acolchoado.
– Nós sabemos que ele subiu o Kars. Eu estou preocupada é com a
Alektor.
– O que preocupa você?
Desenrolei o mapa de meu pai e o abri sobre a mesa.
– Onde está ela? Será que Philemon foi nos procurar em Iantiporos? – Eu
passei o dedo pelo mapa. – Achando que nós pretendemos nos esconder lá,
ou pedir a ajuda da margravina? – Sacudi a cabeça. – Eu não gosto disso.
– Os piratas que estão querendo matá-la desapareceram sem deixar traço –
disse ela, divertida. – E você não gosta disso?
Eu dei de ombros.
– Eu simplesmente não gosto.
Markos sentou-se de costas para a parede, remexendo o cabo da espada.
Ele olhava fixamente para frente com uma expressão melancólica e se
recusava a participar da conversa.
Kenté estalou os dedos.
– Acabei de lembrar! Eu trouxe uma coisa. Está no compartimento de
carga.
Markos a observou subir a escada. Ele baixou a voz e disse:
– Ainda me parece coincidência demais. Você tem certeza de que confia
nela?
– Como se fosse minha própria irmã – eu disse, imediatamente
arrependida pela escolha de palavras.
Ele apertou os lábios em uma linha branca, mas não disse nada.
Kenté voltou, arrastando uma sacola brocada a tiracolo. Ela remexeu em
seu interior.
– Cortesia da adega dos Bollards. – Com um floreio, ela produziu uma
garrafa de vidro âmbar. – E, agora, nós bebemos.
– Ah, muito bom! – Kenté sempre tinha sido muito boa em surrupiar
bebidas. Agora, eu sabia o porquê. Eu sorri e peguei a garrafa.
– Vida longa aos Bollards!
Eu reparti as canecas e servi descuidadamente três dedos de rum em cada
uma. Fee enfiou um dedo comprido na dela, em seguida o enfiou na boca.
Markos ainda estava meditativo no banco em frente. Empurrei uma caneca
sobre a toalha de mesa xadrez em direção a ele.
Ele tomou um gole, em seguida, tossiu.
– O que é essa lavagem? – ele disse, cuspindo.
– Rum. Bebida de marinheiros.
– Imagino que algumas pessoas chamem isso de rum – disse ele. – Mas o
gosto é de algo destilado em um barril imundo com um sapato velho no
fundo. É horrível.
Era, um pouco. Mas eu não ousei admitir que concordava.
– O que acontece quando nós chegarmos a Casteria? – perguntou Kenté.
Pelo canto do olho, eu vi Markos se remexer, provavelmente irritado com
a palavra “nós”. Talvez eu estivesse pedindo demais dele. Só depois de dias e
de várias situações em que escapamos por pouco ele passou a confiar em
mim. Ele não conhecia Kenté como eu.
Depois de muito hesitar, ele disse:
– Minha família tem uma propriedade em Casteria que meu avô
costumava manter para pescar. Desde sua época, a casa caiu em desuso. Meu
pai… – Ele fez uma pausa, com um tremor na voz. – Meu pai não tinha
nenhum interesse por esportes. Entretanto, ainda possuímos a propriedade,
que é mantida por uma pequena criadagem. Foi para lá que enviaram minha
irmã, Daria. As instruções especificam que a caixa só pode ser aberta pelo
emparca ou por um representante seu.
Percebi o modo como ele se demorou no nome da irmã. Pelo bem dele,
torci desesperadamente para que ela tivesse chegado a Casteria – e que os
criados de lá, ao contrário de Cleandros, fossem de confiança.
– Pelo menos, temos alguns recursos. – Ele os enumerou com os dedos. –
A magia de Kenté, a visão extraordinária de Fee, minha habilidade com uma
espada e o… bem, o conhecimento geral de Carô sobre comportamentos que
fogem à lei.
– Além de três pistolas – acrescentei. – E você tem suas espadas.
– E o que eu tenho? – disse Kenté, em um tom falsamente ressentido.
– Sombras.
Ela fez uma careta para mim e se virou para Markos.
– O que você vai fazer depois de resgatar sua irmã?
– Ainda não ousei pensar muito à frente. – Ele bebeu o rum. – O gosto é
melhor se você não sente o cheiro. – Ele girou a caneca lentamente sobre a
mesa. – Tenho esperança de que alguns conselheiros de meu pai também
tenham escapado. Todos eles sabiam que nós deveríamos nos encontrar em
Valonikos caso… Bom, caso algo como isso um dia acontecesse.
– A cidade livre é linda – eu disse a ele. – Ela se ergue sobre uma grande
colina. As casas são de tijolos caiados. Há varandas com flores cor-de-rosa se
derramando sobre elas, e telhados com jardins. E templos com cúpulas
vermelhas.
– A cidade livre – repetiu Markos. – Meu pai odiava quando as pessoas a
chamavam assim.
– Em minha opinião, Valonikos está se saindo perfeitamente bem sem um
emparca. Você sabia que seu archon é eleito pelo povo? – Mesmo ali, em
Kynthessa, as cidades eram governadas por archons nomeados pela
margravina. Embora o senado tomasse a maior parte das decisões, ela ainda
detinha uma quantidade significativa de poder.
– Que bom para eles – desdenhou Markos. Torci para que ele não estivesse
prestes a ficar todo enfezado outra vez. – Akhaia é trezentas vezes maior que
a cidade livre. Ela exige a estabilidade que vem com uma classe dominante
forte. Se déssemos as costas e entregássemos todo esse poder para o povo,
como Antidoros Peregrine quer fazer, isso poderia ter consequências
desastrosas.
Ele ia ficar todo enfezado. Eu revirei os olhos.
– Você parece estar repetindo as palavras de um livro. O que você acha?
Não os seus tutores. Você. Markos.
– Eu posso pensar por mim mesmo, sabia? – disse, com azedume.
– É mesmo? – provoquei.
– Um brinde a Valolikos, então – anunciou ele. – Só para que Carô pare de
me perturbar com isso. – Ele ergueu o copo e terminou o seu rum. Seus olhos
se franziram nos cantos. – Sabem, eu não me sinto leve assim em dias. Na
verdade, eu sinto que vamos conseguir.
– Isso é porque você está bêbado.
– Eu não estou bêbado.
– Você está, sim – sorriu Kenté. – Você disse “Valolikos”. Eu ouvi.
– Eu, não. Valonikl… Valol… Droga.
Todos caímos na gargalhada.
– Vocês são má influência sobre mim, sabia? – Eu olhei para a garrafa
pela metade. – Vocês dois.
Kenté agitou as sobrancelhas e gesticulou furtivamente em direção a
Markos por baixo da mesa. Eu dei uma cotovelada nela com força.
– Bom, eu vou para cama – anunciou ela, descendo do compartimento. –
Venha, Fee. Monte uma rede para mim.
Que os deuses nos protejam de primas intrometidas.
Imediatamente, Markos e eu pulamos de pé.
– Eu só vou… – Ele pegou a garrafa de rum.
– Certo – balbuciei. Meu rosto corou quando eu me abaixei para recolher
os pratos. Kenté tocou o lado do nariz com o dedo antes de se abaixar para
passar pela cortina e entrar na cabine seguinte.
Markos a observou ir.
– Você é diferente com ela.
Parecia ridículo que eu nunca tivesse percebido que combinação
extremamente bela eram olhos azuis com cabelo negro. Meu coração estava
batendo em ritmo frenético. Eu não sabia para onde olhar.
– Ela é minha prima. – Fingi arrumar os pratos sujos.
– Meu primo tentou me assassinar, então… – ele deu de ombros.
– Ayah. Sua vida está bem caótica, não é?
– Está. Está mesmo. – Ele fez uma pausa. – Carô, eu tenho pensado sobre
o que vai acontecer quando chegarmos a Casteria.
Eu senti vergonha por ter rido apenas alguns minutos atrás. E por pensar…
Bem, o que quer que eu estivesse pensando.
– Se… – ele respirou fundo. – A magia do homem sombra… Ela só é
desfeita quando alguém abre a caixa. Se todo mundo que conhecer Daria por
lá estiver morto… – Ele pôs a mão sobre minha manga, e fagulhas
percorreram meu corpo. – Carô, se alguma coisa me acontecer, e eu não
conseguir, você tem de tirá-la de lá. Prometa.
– Você vai conseguir.
Ele não soltava meu braço.
– Prometa.
Eu não vi como eu iria conseguir escapar viva se ele não conseguisse. Nós
estávamos no mesmo barco. Provavelmente, iríamos sobreviver ou morrer
juntos.
– Certo, eu prometo.
– Escute. Em Valonikos há uma casa – ele falou apressado. – Na Rua
Iphis. Vá a essa casa e pergunte por Tychon Hypatos. Sua família é prima
nossa. Ele é um homem muito rico. Ele pode ajudar Daria.
– Markos, pare – sussurrei. Ele estava falando como se já estivesse morto.
– Você precisa saber. Caso seja necessário. – Suas mãos envolveram meu
braço calidamente. – Agora, qual é o nome dele?
– Tychon Hypatos. Rua Iphis. Eu não vou precisar disso.
– Espero que não.
Ele me soltou. Eu esperei que ele recuasse, mas, em vez disso, inclinou o
ouvido em direção a mim.
Estávamos afastados apenas alguns centímetros. Teria sido fácil encostar
meu corpo no dele. Fácil despentear seu cabelo e apertar meus lábios sobre
aquele triângulo de pele macia na base de seu pescoço. Imagens saltavam
espontaneamente em minha mente: Markos, empurrando-me contra o armário
e me beijando sem parar até ficarmos os dois sem fôlego. Mãos por baixo de
roupas.
O rum e minha vergonha fizeram com que meu rosto queimasse. Como
você pode saber ao certo quando uma pessoa está pensando a mesma coisa
que você? Eu ouvi sua respiração irregular e vi a maneira nervosa como ele
afastou os olhos de mim, e eu soube imediatamente que ele estava.
– Eu vou para o convés – disparei, e o afastei do caminho para escapar da
cabine quente e apertada.
Eu precisava de ar. Ar fresco para acalmar a onda do rum em minha
cabeça. E em outras partes de meu maldito corpo.
Talvez eu não fosse a garota certa para esse tipo de aventura. Nas
histórias, a heroína é uma dama trancada em um castelo. Ou uma garota
comum com sonhos de ser especial. Ou uma criada que conhece um rapaz
bonito que vai levá-la embora de tudo isso.
Uma heroína é sempre alguém que quer escapar.
Bem, eu não queria. Eu queria meu pai de volta. Queria, um dia, herdar a
Cormorant. Sim, eu não tinha o favor do deus do rio. E daí? Eu ainda podia
ser uma barqueira. Aquele barco estava vivo embaixo de minhas botas, era
um amigo e um lar. Eu já tinha a vida que eu queria.
Eu não queria ser arrebatada por algum emparca, ver todas as outras coisas
em minha vida parecer menores e mais vazias, em comparação. No fim
daquilo, eu iria entregar Markos em Valonikos. Ou todos seríamos
destroçados pelos Cães Negros. De qualquer forma, eu nunca mais tornaria a
vê-lo. Dentro de sessenta anos, eu provavelmente seria uma velha tricotando
em sua cadeira e contando a história da única coisa excitante que tinha
acontecido em sua vida.
De repente, eu não queria nenhuma das duas coisas.
Que a corrente vos leve, dizia o povo das terras dos rios. Isso é muitas
coisas. Uma saudação. Uma bênção. Um reconhecimento de que o rio
continua a fluir a nossa volta, não importa o que aconteça.
Para mim, naquela noite, isso pareceu um alerta.
CAPÍTULO
DEZOITO

– Sabe, a Companhia Bollard tem uma filial em Casteria: – Kenté estava


empoleirada no teto da cabine com as pernas penduradas para fora. Sua saia
tremulava ao vento enquanto nós virávamos em direção ao Pescoço.
Eles deviam ter chamado aquilo de Espinha, pois era como se parecia no
mapa: uma baía estreita com muitos afluentes curtos como ossos. Colunas
inclinadas demarcavam um canal entre os penhascos, que eram pontilhados
de cavernas. Até então, não tínhamos visto nada suspeito, mas eu ainda
estava cautelosa. No norte das terras dos rios, você pode ver velas em
movimento de longe, mas, ali, um navio podia se esconder em meio às
rochas. Contrabandistas de rum e piratas tornavam aquelas águas perigosas.
Eu sabia o que Kenté iria sugerir.
– Não.
– Carô, eles podem nos ajudar. Você não acha que está exagerando um
pouco? – Ela deve ter percebido meu olhar teimoso. – Um pouco! Eu só falei
um pouco.
– Você não ouviu minha mãe e o tio Bolaji. Sabe qual a primeira coisa que
eles pensaram quando souberam do assassinato da família de Markos? –
perguntei. – Conseguir um acordo comercial melhor.
Eu olhei para o cockpit, onde Markos estava sentado em frente a Fee,
olhando fixa e determinadamente para longe. Ele tinha sacado uma de suas
espadas e estava batendo com o lado plano sobre os joelhos. Tap. Tap. Tap.
Eu baixei a voz.
– Então, sim. Eu tive medo que minha mãe o entregasse aos Theucinianos.
Os Bollards são… – Eu parei, sem querer ofendê-la.
As narinas de Kenté tremeram.
– Você acha que nós somos iguais aos Cães Negros.
– Não era isso o que eu ia dizer.
Ela sacudiu a cabeça.
– Você tem o mesmo problema que seu pai, Carô. Você é independente
demais.
– Um barqueiro não segue homem nenhum, apenas o rio – eu disse. – Um
barqueiro é…
Ela fez com a mão um gesto de desdém.
– Isso é seu pai falando, não você. Sua mãe matou um homem para
protegê-la, sem perguntar nada. Qualquer um de nós teria feito o mesmo. A
família é sempre mais importante que o dinheiro.
Mas Markos não era um Bollard. Eu o observei girar a espada, e o sol se
refletir na lâmina de alto a baixo, e dei um suspiro. Desde duas noites atrás,
quando bebemos o rum de Kenté, nossas interações tinham sido aflitivamente
polidas.
O que era estranho em uma embarcação do tamanho da Cormorant. As
pernas dele eram compridas demais, nossos joelhos batiam embaixo da mesa
durante as refeições. Quando ele foi pegar sua caneca no café daquela manhã,
sua mão tocou a minha, fazendo com que nós dois mergulhássemos em um
silêncio desconfortável. Não era nem como se alguma coisa tivesse
acontecido, mas a tensão do quase beijo vibrava entre nós.
Eu levei um susto quando Kenté se levantou assoviando um alarme.
– O quê?
– Problema, eu acho. – Ela estava de pé com um braço em torno do mastro
e a saia tremulando de um dos lados. – Vocês disseram que estavam
procurando um cúter ou uma chalupa? Tem um se aproximando pelo
Pescoço.
Senti um aperto no peito.
– Que cores?
– Velas brancas, pintado de preto. Não está levando nenhuma bandeira.
Eu pulei para dentro do cockpit, apoiei os cotovelos na popa, saquei a
luneta de meu pai da bolsa e a abri.
– É mesmo a Alektor.
Eu baixei a luneta. No horizonte, a cidade de Casteria era um borrão. Os
Cães Negros estariam em cima de nós antes que conseguíssemos alcançá-la.
Não era um palpite. Era uma certeza.
A Cormorant estava a toda velocidade, percorrendo o Pescoço o mais
depressa que podia. Eu confiava nas habilidades de Fee no leme, mas uma
barca era construída para transportar carga. A chalupa aproveitava o vento
melhor que nós. Ela era simplesmente rápida, avançando com a vela principal
e a bujarrona enfunadas e uma vela de mezena triangular enfiada entre a
verga e o mastro. Nós não tínhamos como ser mais rápidos que um barco
levando tanto pano.
Markos pegou a luneta.
– Eles nos seguiram! – Ele ficou parado tão perto de mim que senti o calor
irradiar de seu corpo.
– É impossível – eu disse, alto demais, para cobrir o zunido de meus
nervos. – Nós os teríamos visto. – Eu troquei olhares sóbrios com Fee. Eles
iriam nos alcançar em meia hora.
– Eles sabem qual a sua aparência – observou Kenté. – Você e Markos
devem se esconder. Fee pode navegar. Há muitos homens-sapo nas terras dos
rios, e há uma chance que eles nos confundam com uma barca diferente.
Minha mente se acelerou. A Alektor estava ancorada bem em frente a nós
em Siscema. Philemon saberia que a barca Octavia havia deixado o porto três
noites atrás, mas outras barcas podiam ter partido durante a noite, também.
Talvez ele não soubesse qual delas levava o emparca.
– Abaixe-se. – Peguei Markos pela camisa e o puxei para o piso do
cockpit. Ficar na coberta seria melhor, mas a Cormorant era minha barca. Eu
não ia entrar de jeito nenhum. Sentei de pernas cruzadas. O suor molhava as
costas de minha camisa. Nós estaríamos em segurança desde que
permanecêssemos abaixados.
Markos apertou uma de suas espadas no colo.
– Qual o seu plano?
– Não tenho nenhum. E você?
– Esperava que você conhecesse algum truque de navegação – disse ele.
– Não há muitos truques na navegação. Barcos com mais pano vão mais
rápido. – Eu estava me esforçando ao máximo para pensar em algo, mas não
tive nenhuma ideia. – Kenté, você pode criar uma ilusão ou algo assim?
– Não no meio da tarde. – Ela apertou as mãos. – Eu preciso do escuro.
– Nós não temos velas extras, temos? – perguntou-me Markos.
– Onde nós iríamos botá-las? – retruquei. – Você está vendo um gurupés?
– Você sabe que eu não tenho a menor ideia do que seja um gurupés.
Nós não tínhamos escolha além de lutar. Dobrei e desdobrei os dedos,
tentando calcular quanto tempo iria demorar até que estivéssemos ao alcance
de seus mosquetes. Eu odiava isso, a espera. A proa da Cormorant parecia
uma faca cortando o ar úmido.
Eu ergui os olhos para a ponta delgada da vela e percebi, com surpresa,
que não conseguia vê-la.
– Neblina – disse Fee.
Eu fiquei de joelhos, em seguida, de pé. A Alektor tinha desaparecido
completamente na névoa cinzenta.
Markos se juntou a mim, tremendo.
– O clima ruim normalmente chega assim tão rápido?
– Pode acontecer, tão perto assim do mar. – Entretanto, era estranho. O dia
não estava sequer encoberto.
– Nós estamos? Perto do mar?
– É claro. O Pescoço é água salgada.
Havia um frio molhado pairando sobre a água. Eu ainda podia ver os
borrifos das ondas e sentir o vento no rosto, mas a terra tinha desaparecido,
assim como grande parte do Pescoço. Eu ergui o sino grande que usávamos
para sinalizar nossa posição durante nevoeiros.
– Isso é uma boa ideia? – Kenté estreitou os olhos em direção à névoa
turva. – Eles não vão saber onde estamos?
– Você prefere ser atropelada por uma barcaça? – Eu badalei o sino. Nesse
momento, os Cães Negros eram a menor de minhas preocupações. Nós
estávamos correndo um risco muito maior: de bater em uma estaca ou
naquelas rochas. – Morrer por piratas ou morrer por naufrágio é morrer do
mesmo jeito.
Ouvi ao longe os sons de outras embarcações – sinos pequenos e grandes,
e uma buzina berrando. Esse provavelmente era um navio oceânico, muito
longe. Era difícil dizer de onde vinham os sons durante um nevoeiro. Um
daqueles sinos podia ser os Cães Negros. Mas eu não sabia qual era.
Os dedos de Fe se apertaram em torno da cana do leme.
– Não consigo ver – murmurou ela.
As pilastras que marcavam o canal pareciam um espectro na neblina, mas
eu conseguia vê-las. Como ela, com sua visão aguçada, não conseguia?
A língua comprida de Fee se projetou para lamber os lábios. Ela sacudiu a
cabeça, derrotada.
– Âncora.
Se ancorássemos bem ali no meio do canal, um barco maior podia passar
por cima de nós. O nevoeiro estava denso, mas eu tinha certeza de que já
tínhamos navegado em condições piores.
Botei o sino nas mãos de Kenté e ela olhou para cima, surpresa.
– Toque-o a cada vez que você contar sessenta – eu disse.
Uma sensação estranha de euforia me tomou quando assumi o leme.
Minhas preocupações com a Alektor se esvaíram. Eu estava no leme da
Cormorant. A sensação era boa. À distância, a estibordo, havia uma estaca
em meio à névoa. Eu ajustei o curso e apontei em direção a ela.
Markos se debruçou para fora para espiar ao redor da cabine.
– Cinquenta – ele contou. – Cinquenta e um… Fee acha que devíamos
ancorar.
– Está tudo bem. Eu sei aonde estou indo.
– Carô, seja razoável. Eu não consigo nem ver sua mão na cana do leme, e
ela está a um metro de distância. – Ele ergueu a voz. – Vamos bater nas
estacas, ou em um penhasco, ou… ou…
– Eu consigo.
Ele e Kenté trocaram olhares sombrios quando ela tocou o sino.
– Como você está fazendo isso?
A coluna parecia um fantasma alto e magro no nevoeiro, mas eu podia ver
as ondas atingindo sua base.
– Não está tão denso.
– Está denso, sim. – Ele parecia desesperado. – Está tudo cinza, até onde a
vista alcança.
– Segurem-se, eu preciso virar aqui. – Eu ergui os olhos para a vela. – Aí
vem um pilar.
Markos agarrou a borda do cockpit com força. Seus olhos baixaram para
se encontrar com os de Fee enquanto ela se segurava na beira de seu assento,
com o corpo tenso. Nenhum deles confiava em mim. Eu cerrei os dentes.
Bom, certo, se era assim que eles iriam ficar, eu faria tudo sozinha.
– Mudar o curso! – gritei, e Fee se levantou para ajudar a guiar a retranca
por cima, se encolhendo ao apertar a vela em torno do cunho. Eu não sabia
por quê. Eu não ia atingir nada.
– Está desanuviando – disse Markos, muitos minutos depois.
Esfreguei suor do pescoço. Às nossas costas, o nevoeiro pairava como
uma grande nuvem descida do céu, mas, à frente, raios de sol penetravam o
cinza. Em vez de apenas um pilar, eu podia ver três. Markos estava certo. O
nevoeiro estava se erguendo. Enquanto eu observava, uma rajada de vento
agitou as ondas.
– Imagino que isso tenha sido seu deus no fundo do rio – disse Markos. –
Dizendo a você onde estavam as colunas.
Eu desejei com todo o coração que fosse verdade, mas estava tentando
ouvir as pequenas coisas durante toda a viagem, e tudo o que eu escutara
tinha sido um monte de nada. Além disso, não podia ter sido o deus no rio, ou
Fee teria sido capaz de ver através da neblina, também.
Senti um nó no peito.
– O deus no rio não me diz nada.
Ele me olhou intrigado.
Então, ali estávamos nós. É uma coisa assustadora, entregar sua verdade a
outra pessoa. Mas, além disso, eu estava relutante em dizer em voz alta, como
se fazer isso, de algum modo, tornasse aquilo definitivo.
– Markos – fiz uma pausa e mordi o lábio, –, eu não escuto o deus.
– Mas você disse que todos os Oresteias são favorecidos pelo deus. Você
disse…
Minhas orelhas estavam quentes.
– Eu não menti, exatamente. – Desejei poder afundar até o leito do
Pescoço. – O deus no rio fala com os Oresteias na língua das pequenas
coisas. – Minha voz vacilou. – Só que… não comigo.
– E o nevoeiro? – Ele o estudou e uma ruga de reflexão surgiu entre seus
olhos. – Isso obviamente foi magia do rio. Magia de algum tipo, pelo menos.
– Ele se virou para Kenté. – Não foi você, foi?
Ela sacudiu a cabeça.
– Homens das sombras trabalham a magia da escuridão e da luz, do sono e
do despertar. Não do clima.
– Homens das sombras podem criar ilusões – observou Markos.
– Verdade, mas elas não teriam a aparência de um nevoeiro. – Ela
estremeceu. – Esse pareceu úmido demais para mim.
A extremidade inferior do Pescoço ainda estava dentro da nuvem. A
Alektor tinha sido engolida. Enquanto isso, à nossa proa, a cidade de Casteria
se espalhava ao longo de uma linha branca de praia, perto o bastante para que
eu pudesse identificar nitidamente cada construção individual. O sol da tarde
brilhava sobre o grande arco de pedra da propriedade do archon, e velas
pequeninas pontilhavam a baía. Nós tínhamos conseguido.
Eu pulei de pé e passei o leme para Fee.
– Eu vou… Preparar a vela.
Eu não tinha de fazer nada com a vela, mas apenas Fee sabia disso. Ela me
observou sair do cockpit com uma expressão estranha no rosto. Simpatia, e
mais alguma coisa que eu não sabia ao certo o que era.
Meus olhos arderam. Eu não queria que ela sentisse pena de mim.
– Se você não escuta o deus do rio, por que não disse isso antes? – insistiu
Markos. Eu ouvi suas botas no convés atrás de mim.
Eu apertei o passo.
– Porque eu não queria que isso fosse verdade. – Lágrimas brotaram em
meus olhos, mas eu fiz um grande esforço para piscar e contê-las. – Ainda
vou levá-lo a Casteria. Estamos quase lá, e eu não precisei de nenhum deus
para fazer isso.
– Eu sei que você vai – disse ele. – Carô, se o que você diz é verdade, isso
só significa que você é mais talentosa do que eu pensava. Se esses outros
marinheiros escutam o rio, então você deve ser muito boa para chegar tão
longe sem essa vantagem. Isso não é nada do que se envergonhar.
– Eu não estou envergonhada – menti. – Eu não quero falar sobre isso.
– Está bem – disse ele lentamente. – Eu só queria perguntar… Você tem
certeza? E se esse nevoeiro for um sinal? E se o deus estiver falando com
você?
Ele estava errado. Tinha de estar. Meu pai disse que, quando chegasse o
dia de meu destino, eu saberia, mas, na verdade, eu me sentia mais insegura
que nunca.
– Você nem acredita nos deuses – eu disse.
– Sempre acreditei nos deuses. Só não acreditava que eles falassem
conosco. – Com as mãos nos bolsos, Markos examinou atentamente a
neblina. – Até agora. Foi você quem me fez reconsiderar isso. Toda essa
conversa sobre a língua das pequenas coisas, seu deus do rio e seu homem
dos porcos. Por que você reluta tanto em ver que esse nevoeiro é mágico?
Eu desejei que ele mudasse de assunto. Eu tinha chegado muito perto de
aceitar meu destino, e agora ele estava ameaçando fazer com que eu voltasse
a ter esperança. E eu não queria ter esperança. Não quando não fazia sentido.
– Eu tentei muito escutar o deus. – Minhas unhas se cravaram na palma da
mão. – Eu não consigo. Markos, você não sabe qual a sensação de pensar por
toda a vida que você é destinada a alguma coisa especial e aí descobrir que
você… não é.
Ele apenas olhou para mim.
– Ah – sussurrei, ao perceber o que eu tinha dito. – Eu não queria…
– Deixe para lá.
– Veja, Markos – eu disse. – Você não pode consertar isso para mim, mas
ainda podemos acertar as coisas para você. Nós vamos levar você e sua irmã
para Valonikos. Vamos recuperar seu trono.
No momento em que as palavras saíram de minha boca, eu quis recolhê-
las de volta. Eu não quisera dizer nós. Talvez um dia ele juntasse um exército
e marchasse sobre Akhaia. Mas eu não estaria lá.
Ele me deu um meio sorriso.
– Você acha que pode fazer praticamente tudo, não é?
Se eu achasse, eu estaria certa. Eu descendia de exploradores e de pessoas
que tinham desafiado o bloqueio. A coragem estava duas vezes presente em
meu sangue. Eu a sentia vibrar através de mim enquanto estava parada no
convés, com o vento embaraçando meu cabelo. Nós passamos por barcos de
pesca e por armadilhas para caranguejo, até que, finalmente, Fee nos
conduziu além da boia vermelha que marcava a entrada da baía de Casteria.
Kenté soltou um viva.
– Nós conseguimos!
Eu vi antes deles.
Meus joelhos bambearam, e eu balancei. Tive de estender o braço para me
segurar no estai. Não era justo. Não depois de chegarmos tão longe.
Amarrado às docas, com as velas dobradas e guardadas, estava o
Victorianos.
CAPÍTULO
DEZENOVE

– Você sabe que isso é uma armadilha, não sabe? – Observei Markos andar
de um lado para outro da cabine. – É uma armadilha para você, e sua irmã é a
isca.
Seus dedos se flexionaram sobre os cabos das espadas. Eu sabia pela
rigidez de seu rosto que ele mal estava conseguindo conter as emoções.
– Não me importa. Eu preciso tirá-la de lá. – Ele deu um soco no armário.
– Droga.
– Eu entendo, mas…
– Ah, desculpe. – Ele sacudiu a mão. Havia uma marca vermelha sobre os
nós dos dedos. – Eu não sabia que toda sua família tinha sido assassinada
recentemente. Não ouse me dizer que você entende – disse ele com aspereza.
– Ela é tudo o que me resta.
– Bom, eu não sabia que você tinha perdido o bom senso recentemente –
retruquei. – Se é que você já teve algum. O que exatamente você planeja
fazer?
– Cleandros é um traidor. – Ele ergueu o queixo para olhar adiante. Minha
raiva costumava fervilhar, mas a dele era fria como gelo.
– Eu vou desafiá-lo para um combate individual.
Eu desconfiava que seria algo nobre e estúpido como isso. Eu me segurei
para não fazer um comentário sarcástico.
Diante de meu silêncio, ele estreitou os olhos.
– O quê?
– Eu não disse nada.
– Você estava pensando – disse ele. – Muito alto, devo acrescentar.
– É só que… – hesitei. – Se você acha que o homem das sombras ou os
Cães Negros vão lutar limpo…
Ele girou, e o casaco com detalhes dourados balançou em torno de suas
pernas.
– Você acha que eu sou ingênuo. – Seu rosto enrubesceu. – Tolo.
– Olhe, se fizermos as coisas como você quer, você vai ser morto! – Senti
de repente uma dor na garganta. – E eu não quero que você seja morto. Ou eu
não tenho permissão de dizer isso?
Quando ele tornou a falar, sua voz estava firme e baixa.
– Eu preciso ir. Se não quiser vir comigo, eu entendo. Obri-
gado por tudo. – Ele estendeu a mão. – Espero que possamos nos despedir
como amigos.
Eu dei um suspiro.
– Como se eu fosse simplesmente deixar você.
– E por que você não faria isso? – Ele engoliu em seco. – Eu não trouxe
nada além de problemas para você e sua família.
Fiz uma pausa e pensei em suas palavras. Eu prometera levá-lo a Casteria,
e ali estávamos nós. Por que eu não deveria zarpar e voltar com a
Cormorant? Akhaia não era meu país. Essa não tinha de ser minha luta. Mas,
enquanto eu olhava para ele, tudo o que tinha acontecido desde que nos
conhecemos voltou em flashback, começando com a abertura da caixa e
terminando com suas palavras no Lago Nemertes. Nós somos mais fortes
juntos que separados. Você não acha?
Eu não podia deixá-lo para que enfrentasse sozinho os Cães Negros.
Eu dei de ombros e disse:
– Como você quiser. Fee, vamos preparar as velas. Kenté, solte as
amarras.
A voz de Markos vacilou.
– Sério?
– Não, não é sério. – Dei um tapa em sua mão estendida. – Você às vezes
pode ser lento. Você acha que eu ia simplesmente apertar sua mão e deixá-lo
ir lá para cima sozinho? E ser morto, muito provavelmente – acrescentei.
Kenté olhou pela janela, onde entravam raios âmbar do sol de fim de tarde
que se projetavam baixos sobre a cidade.
– Se vamos fazer isso, é melhor agir agora.
Eu amarrei um lenço no cabelo.
– Nós estamos fazendo isso.
– Qual é o plano? – ela perguntou.
– Não acabarmos mortos. – O resto, nós podíamos descobrir no caminho.
Enquanto corríamos pelas docas, examinei o cúter com o canto do olho.
Ele parecia deserto, o que me deixou nervosa. Olhei para a Cormorant, e meu
amor por ela perfurava meu coração. Eu odiava deixá-la desacompanhada.
Talvez Fee devesse ficar para trás… Mas, não. Se houvesse encrenca,
precisaríamos de toda ajuda que pudéssemos conseguir.
– Conte-me tudo que eu preciso saber sobre a magia do homem das
sombras Cleandros – ordenei a Kenté quando deixávamos as docas. A rua
movimentada estava pontilhada de barracas de feira e baldes de peixe fresco.
– Ainda é de tarde. Precisamos chegar à irmã de Markos antes que o sol se
ponha.
– O que acontece depois? Ah… – Entendi o que ela queria dizer. – Você
está dizendo que, se escurecer, ele vai saber quando abrirmos a caixa. Você
pode dizer se ele já a abriu?
– Não é assim. – Ela franziu os lábios. – Não é minha mágica. Para ele, é
como… Como uma bolha estourando no fundo da cabeça. Markos, por
exemplo. Ele deve ter percebido no segundo em que Markos despertou. – Ela
olhou para ele. – Você deveria estar grato. Carô provavelmente salvou sua
vida quando abriu a caixa. Depois que a magia foi desfeita, ele não conseguiu
mais senti-lo. Ele não sabia onde você estava.
– Você pode sentir toda magia que já fez? – perguntou ele.
– Eu diria que, se tentar, sim. Eu a deixei por toda parte. Há uma agora
mesmo no canto da melhor sala de estar da casa dos Bollards. Eu a ponho ali
para encobrir os cacos de um vaso que deixei cair na semana passada. Eu
posso sentir isso quando estou forte o suficiente.
– Forte o suficiente? – perguntou Markos.
– Quando é noite. À noite, eu posso sentir as coisas ao meu redor. As
sombras. Pessoas dormindo. Seus sonhos e medos. Meus poderes começam a
ganhar vida ao pôr do sol, mas, quanto mais escurece, mais tudo… entra em
foco.
– Por que você está fazendo todas essas perguntas? – indaguei a Markos. –
Achei que você soubesse tudo sobre homens das sombras, sendo de Akhaia.
– Pouquíssimas pessoas sabem tudo sobre os homens das sombras. Eles
basicamente guardam seus próprios segredos.
– Seu pai tinha um homem das sombras na corte – observei.
– Não sei o que Cleandros fazia para meu pai. – Seu rosto assumiu uma
expressão reservada. – Comecei a desconfiar que ele fosse especialmente
talentoso em fazer magia de sono. Veja, por exemplo, o que ele fez com as
caixas. Mas era mais que isso. Depois que fiz dezoito anos, meu pai permitiu
que eu me sentasse em suas reuniões do conselho. Eu vi coisas acontecerem
que achei… estranhas. Um homem expressava oposição forte a algo que meu
pai sugeria, mas aí ele, de repente, não sei… Cedia.
Olhei horrorizada.
– Você acha que Cleandros controlava suas mentes?
– Não exatamente controlava. Um homem cansado fica confuso.
Esquecido. Suscetível a sugestões. Não digo que sei tudo sobre a magia das
sombras, mas sei que, acima de tudo, ela envolve trapaça.
Eu me voltei para Kenté.
– Você alguma vez já fez isso?
Ela deu um sorriso malicioso, e a luz do crepúsculo se refletiu no brinco
em seu nariz.
– Você já fez isso alguma vez comigo?
Ela ignorou a pergunta.
– O que Markos diz é essencialmente correto. Um homem das sombras
não consegue atear fogo a um homem. Mas ele pode manipular seus sonhos
para fazê-lo acreditar estar pegando fogo. Explique-me isto: O que é mais
perigoso?
– Para mim, parece uma magia inútil – eu disse. – Se você não consegue
nem fazê-la em plena luz do dia.
– Eu com certeza me escondi com muita facilidade em seu barco. – Ela
apertou os lábios, e eu vi a linha fina de suor acima deles. – Ele vai começar
fraco, mas, à medida que escurecer, seus poderes vão crescer. Até a meia-
noite, quando estão em seu ponto mais forte. Nós temos de nos apressar.
– Mas você é um homem das sombras também. Você pode enfrentá-lo. –
Pelo menos, eu esperava que ela pudesse.
– Não esqueça que eu não tive treinamento.
– Cada vez pior – murmurei.
Enquanto seguíamos através das ruas de Casteria, eu me sentia nua. Um
pressentimento desceu por meu pescoço e fez com que meu coração batesse
mais rápido. Nós não tínhamos visto nada dos Cães Negros, mas eles podiam
estar em qualquer lugar nos observando.
As propriedades mais antigas da cidade eram construídas na encosta de um
morro, em frente ao qual as ruas corriam alinhadas. De vez em quando, uma
escada descia por entre as casas aglomeradas até um pequeno cais ou praia
particular. As casas mais bonitas ficavam localizadas bem ao lado de
barracos, a única diferença era que tinham um portão de pedra ou um jardim
com árvores esculpidas. Markos parou em frente a uma casa cor de pêssego e
acenou para as cabeças de leão-da-montanha no portão.
– O lugar é este.
Ele pisou na calçada da frente, mas eu segurei seu casaco e o puxei para
trás.
– Você ia simplesmente entrar pela porta?
– Certo. – Ele fez uma careta e pareceu um pouco encabulado. – Vamos
fazer as coisas do seu jeito.
– Não pare de andar. Nem mesmo olhe para a casa – sussurrei sem mover
os lábios. A rua estava vazia, mas eu não sabia quem nos observava de trás
das cortinas daquelas casas. – Deve haver uma porta nos fundos, para criados
e comerciantes.
Nós margeamos a lateral do jardim e entramos no beco seguinte. Ali,
como eu desconfiava, encontramos a entrada dos fundos, uma discreta porta
de madeira.
Tentei a maçaneta. Destrancada.
A porta abriu para dentro e revelou uma cozinha com um fogão de tijolos
enorme. O fogo não tinha sido aceso. Enquanto meus olhos se ajustavam ao
escuro, vi que o papel de parede estava descascando. Sujeira de muitas botas
enlameadas havia secado no chão, e um cheiro bolorento pairava no local.
Markos me olhou nos olhos e fechou a porta cautelosamente às nossas costas.
Eu não achava que isso importasse.
– Markos, ninguém vive aqui há dias. – Eu apontei com a cabeça para um
queijo mofado na mesa. – Veja a comida.
– Eu estou lhe dizendo, ela devia estar aqui! – Com a espada na mão, ele
seguiu pelo corredor, espiando pelas portas. Finalmente, ele sacudiu a cabeça.
– Devia haver criados, toda uma casa em funcionamento. Minha família é
a dona desta casa. E eles ousam simplesmente ir embora?
Eu estava desconfiada da confusão nas prateleiras. Havia pratos de
porcelana estilhaçados por toda parte. Aquele lugar tinha sido revirado.
Passei cuidadosamente os dedos pelos cacos de uma garrafa de vinho
quebrada e os esfreguei juntos.
– Eu não gosto disso – murmurei. – Não gosto nada disso.
Markos deu um tapa na parede.
– Estes deviam ser homens leais. Imagino que este seja o resultado de
contratar criados khyntessianos… – Ele olhou para mim. – Desculpe.
– Talvez eles tenham ouvido as notícias sobre o emparca. – Kenté estudou
a bagunça. – E fugiram com medo.
– Precisamos revistar a casa. – Ele se aprumou. – Procurar por um baú.
Grande o suficiente para uma criança.
Não demorou muito. As outras portas levavam a uma pequena biblioteca,
a uma suíte e a uma despensa, no porão, que estava completamente escura,
exceto pelo brilho mortiço de uma única janela suja. Não encontramos
nenhum cão negro escondido nos armários, para meu alívio.
– Não é uma casa muito grande – eu disse. – Para um emparca. – Eu
esperava algo mais grandioso. A casa dos Bollards era facilmente vinte vezes
maior.
– É só um refúgio de pesca. – Markos esfregou a ponte do nariz. – O que
fazemos agora? Se os criados a levaram com eles, como vou encontrá-la?
Maldição, eu queria que tivéssemos escolhido qualquer outra maneira de
fugir. Qualquer coisa menos essas malditas caixas. – Eu pus a mão em sua
manga, mas ele a afastou. – Não posso… – Sua voz vacilou. – Não posso
suportar não saber o que aconteceu com ela.
Fee assoviou da cozinha.
Eu entrei apressada pela porta.
– O que…
Ela apontou com a cabeça para um baú de madeira, no canto dos fundos,
perto de uma saca de batatas. Nós o deixáramos passar na primeira vez.
Alguém jogara panos de prato sujos em cima dele, quase o escondendo de
vista.
Markos jogou os panos no chão, sacou a espada e golpeou as correias de
couro que prendiam o baú fechado. A primeira correia cedeu e se partiu. Ele
cortou facilmente a segunda, e se abaixou para segurar a tampa do baú.
Para além da janela, o céu acima dos telhados de Casteria reluzia laranja
com o crepúsculo. Um último raio de luz pairava no horizonte. Enquanto eu o
observava, ele se apagou.
– Markos, espere!
Ele abriu a caixa.
Encolhida em seu interior, havia uma garotinha. Por um momento
suspenso e horrível, eu achei que ela estivesse morta. Então, seu ombro
magro se mexeu, e ela se esticou.
Seus olhos se arregalaram.
– Markos!
Eu engoli a emoção repentina que me tomou com o jeito como o sorriso
dele iluminou seu rosto. Ele ergueu a irmã do caixote e a abraçou com força
junto ao peito. Ela usava uma camisola fina salpicada de estrelas e tinha o
mesmo cabelo negro de Markos, exceto pelo fato de ser totalmente liso. A
coitada tinha hematomas pelos dois braços inteiros.
Ela olhou para ele enquanto ele limpava palha de sua camisola.
– Eu tive sonhos horríveis.
Os olhos de Markos encontraram os meus acima da cabeça dela. Ele sabia
o que tinha feito.
– Sinto muito – disse ele com voz rouca.
Kenté olhou fixamente para Daria como se ela fosse a morte chegando
para nos levar.
– Ele soube disso instantaneamente. Precisamos ir.
Markos ergueu a irmã, tirou-a da caixa e a pôs sobre a mesa.
– Daria, esta é Caroline. Você deve fazer tudo o que ela disser. Se ela
mandá-la correr, corra. Se disser que se esconda, encontre um lugarzinho e se
enfie dentro dele. Você entendeu? Se ela mandar se abaixar…
– Eu me abaixo. – A menina revirou os olhos. – E eu sou pequena, não
burra.
– Daria. Isto é sério.
– Ela não pode correr vestindo isso. – Gesticulei apontando para a
camisola, que ia até o chão. – Ela vai tropeçar.
Markos fez uma careta. Sem dúvida, ele queria desesperadamente fazer
um comentário sobre como eu estava sempre estragando coisas boas, mas ele
pegou a faca que ofereci e cortou a camisola de Daria na altura dos joelhos.
Tentei lembrar a mim mesma que minha parte nessa aventura era ser a
pessoa com conhecimento de pistolas, facas e comportamento fora da lei em
geral. Mas era difícil quando meu coração queria derreter com o jeito todo
doce com que ele tratava a irmã.
A dobradiça de uma porta rangeu. Minha respiração se prendeu na
garganta. Eu disparei para o corredor.
Diric Melanos apoiou o braço diante da porta da frente e a bloqueou. Ele
vestia um casaco azul-marinho, coberto de cintos de pistolas. Eu não
duvidava que ele carregasse consigo pelo menos dez armas.
– Você deve ser a garota da barca – disse ele, com um sorriso se abrindo
em seu rosto marcado por cicatrizes. – De quem eu sempre escuto tanta coisa.
– Com o som de botas pesadas no chão, ele se afastou da soleira.
Cleandros, o homem das sombras, entrou, arrastando sua túnica negra com
listras douradas. Eu só tinha ouvido sua voz, mas o reconheci imediatamente.
Ele não era tão velho quanto soava – havia apenas pequenos tufos grisalhos
em seu cabelo castanho e sem brilho. No todo, ele parecia tedioso e de
maneiras brandas, como um professor ou um escriturário. Vários pingentes
pendiam de seu pescoço em correntes compridas.
O resto dos Cães Negros entrou atrás dele. Cinco, dez, quinze homens,
armados com adagas e pistolas.
Todo meu corpo vibrou com o perigo. Nós estávamos como os
caranguejos nas armadilhas flutuantes na baía.
Presos.
CAPÍTULO
VINTE

Daria olhava de um lado para outro entre Cleandros e o irmão.


– Ele é amigo do meu pai.
– Ele não é nosso amigo – disse Markos com as mãos nos cabos das
espadas.
Cleandros surpreendeu-me ao ignorá-lo.
– Você, que foi chamada pela sombra, eu a saúdo – disse ele para Kenté.
Em seguida, gesticulou com a cabeça para o capitão Melanos.
– Mate o emparca, a criança e a rata de rio. Mas traga a garota das sombras
para mim. – Ele se concentrou outra vez em Kenté, com um sorriso que me
deu uma sensação de estar com aranhas na nuca. – O que você está fazendo
longe da Academia? O diretor sabe onde você está?
Ela ergueu o queixo de maneira desafiadora, mas sua voz hesitou.
– Eu não respondo a seu diretor.
– Qual o seu nome, garota?
Kenté empinou o nariz e olhou para ele, o que era algo muito Bollard de se
fazer, e também um bom truque, considerando que o homem das sombras era
mais alto.
– Não interessa.
Eu não gostei de ser chamada de rata de rio, nem gostei do tom do homem
das sombras. Saquei minha arma. Melanos fez o mesmo, só que a dele era
uma pistola Bentrix com cinco canos, e eu só podia crer que todos os cinco
estavam carregados.
Ele agitou um dedo para mim.
– Nem pense nisso.
Por que eu não deveria? Os Oresteias são corajosos. Nós não gostamos
muito de ser assassinados. Afinal de contas, meu avô não tinha enfrentado
bandidos apenas com uma faca e uma frigideira velha? Eu tinha dois tiros e
dois punhais. Isso eram quatro homens que eu poderia levar antes que eles
me matassem.
Markos estava pensando na mesma linha. Com os maxilares se retorcendo
de raiva, ele sacou as espadas e entrou na frente de Daria.
– Bom? – Cleandros se virou para o capitão Melanos. – Diga a seus
homens que o matem.
– Essa escória? Por favor – desdenhou Markos. – Tentem. Vou adorar
cortar suas cabeças, mas principalmente a sua. – Ele se aprumou e, nesse
momento, eu vi o emparca que ele viria a ser.
Os olhos de Diric Melanos foram de Markos para Daria.
– E a garotinha? – perguntou ele.
Imaginei que matar crianças não combinasse com a imagem aventureira
que Melanos tinha de si mesmo.
– Achei que você fosse o terror dos mares – respondeu bruscamente
Cleandros. – Não um fraco chorão.
Kenté se aproximou de mim e sussurrou.
– Prepare-se para fugir quando eu avisar.
A lanterna dos piratas se apagou. A sala ficou escura, mas não muito. Eu
ainda podia ver todo mundo claramente: – Markos brandindo as espadas,
Cleandros e o capitão Melanos, e os piratas dispostos atrás deles com as
adagas na mão.
Kenté deu um suspiro nervoso e recuou um passo.
Cleandros riu.
– Isso é tudo o que você consegue fazer? – Ele pegou algo em torno do
próprio pescoço. Era um pingente de latão de aspecto estranho, com oito ou
doze lados. – Uma tentativa admirável. Com treinamento, você poderia ser
muito poderosa. Venha, criança, eu já lhe disse que você não corre nenhum
perigo. Na verdade, o diretor vai ficar muito satisfeito comigo por levar até
ele uma recruta tão intrigante.
– Não vou abandonar o barco de meus companheiros – declarou ela.
Os dedos dele se mexeram.
– Que seja.
Cleandros desapareceu.
Eu disparei mirando o ponto onde ele estava, só para ouvir uma risada
escorregadia do outro lado da sala. Dei um passo desconfortável para trás e
disparei a segunda pistola, atingindo acidentalmente um pirata na coxa.
Foi quando eles nos atacaram.
Markos saltou na frente de Daria e de mim, e sua espada bloqueou a adaga
do cão negro mais próximo. Ele girou entre os homens, esquivando-se e se
cortando. Ficou claro que ele estava acostumado a usar duas espadas ao
mesmo tempo, porque elas se moviam como se fossem parte de seus próprios
braços.
– Kenté! – berrei, derrubando de lado um banco acolchoado. Ela agarrou
Daria, e mergulhamos atrás dele. Com dedos trêmulos, recarreguei enquanto
Daria se encolhia no chão às nossas costas. – Fique bem aí – ordenei. Eu
tornei a me levantar, com pistolas nas duas mãos, e atirei.
Diric Melanos me viu. Ele se lançou entre dois de seus homens, me
segurou, agarrou meu braço e me arrastou de trás da proteção. Eu lutei,
chutando qualquer parte dele que pudesse alcançar.
Com um grito estridente, Fee saltou no ar. Ela caiu sobre os ombros dele
com uma faca entre os dentes.
Ele tentou se livrar dela, mas seus dedos dos pés nus se afundaram nele.
Isso foi distração suficiente para mim. Por sorte, meu pai me ensinou a
usar o cotovelo. Ele acertou o queixo de Melanos com bastante força. O
homem praguejou. Eu consegui me soltar, segurei Daria pelo braço e a puxei
para ficar em pé.
De repente, Markos deu um grito e tocou o cabelo. Seus dedos saíram
ensanguentados, e seu rosto foi tomado por uma onda de incerteza. Cleandros
devia ter golpeado ou atirado um punhal. Como Markos podia lutar contra ele
quando estava invisível?
– Vamos! – Eu corri de costas pelo corredor. Nós precisávamos sair dali.
Com sangue escorrendo nos olhos de um corte profundo no rosto, Diric
Melanos ergueu a pistola.
Muitos homens gostavam da Bentrix de cinco canos por seus belos cabos
de osso entalhado e a capacidade de disparar cinco cargas simultaneamente,
mas meu pai só carregava uma pistola de pederneira de câmara única. Ele
dizia que pistolas de vários canos eram imprecisas.
O disparo se espalhou em todas as direções, ricocheteou nas paredes e
estilhaçou um espelho. Nenhuma das balas nos atingiu.
Um dos cães negros caiu com sangue jorrando da perna. Eu sacudi a
cabeça. Tolo. Não se dispara uma arma daquelas em lugares apertados. Ele ia
matar todos nós.
Meus olhos se fixaram na porta do porão, e eu me lembrei daquela janela
suja no alto. Se bloqueássemos a porta às nossas costas, isso podia nos fazer
ganhar mais tempo.
Depois de abrir a porta com dificuldade, um cheiro úmido e terroso subiu
do porão. Empurrei Daria para baixo pelos degraus de lajotas dispostas sobre
terra. Algo borrado passou por mim, batendo em meu braço. Apertei os dedos
em torno da pistola até perceber que era Kenté, parcialmente envolta em
sombras. Fee se juntou a nós com a faca pingando sangue.
Passos de botas ecoaram no piso do corredor atrás de nós. Eu me ajoelhei
e apontei a pistola para a porta.
Markos apareceu e quase me derrubou.
– Ufa!
Quando recuperei o equilíbrio, ele fechou a porta e a travou com uma
barra de ferro. Nós descemos ruidosamente a escada curta.
– É um beco sem saída! – Havia pânico na voz de Kenté.
Apontei com a cabeça em direção ao fundo do porão.
– Vejam.
Havia uma janela retangular e amarelada, coberta de teias de aranha,
estendida horizontalmente ao longo do teto. Fee saltou rapidamente até o alto
de uma pilha bamba de caixas. Ela sacudiu a janela e, então, ao encontrar o
trinco emperrado, quebrou o vidro com o cabo da faca.
Fee saiu pela janela.
– É seguro – disse ela do outro lado com voz rouca.
Alguém bateu na porta.
– Daria primeiro – eu disse com voz embargada. Markos levantou a irmã
até as mãos de Fee, que a esperavam. Os pés da menina, com meias,
desapareceram pela janela.
– Vamos. – Ele conduziu Kenté até lá. Ela guardou seu punhal e
aproveitou seu impulso para subir. – Carô, você depois.
– Não, você. – Olhei para trás. Os piratas estavam golpeando a porta pelo
outro lado. – Você é o emparca.
A porta começou a ceder. Ouvi os cães negros xingando, em seguida um
disparo. Os gritos pararam.
– Markos, vamos!
Ele exalou, liberando a tensão dos ombros, como se tivesse perdido toda a
disposição de lutar. Sua garganta se moveu quando ele engoliu em seco.
– Não.
Eu percebi o que ele pretendia fazer.
– Mas você é o herdeiro de Akhaia. – Eu não queria deixar que ele se
sacrificasse. – Você é mais importante que sua irmã.
Seus olhos brilharam com emoção intensa.
– Você ainda não entende. Nada é mais importante.
– Todos podemos ir – insisti. – Se formos agora. Fee e eu vamos puxar
você.
– Se eu atrasá-los, vocês vão ter uma chance. – Suas mãos trêmulas
pairavam acima dos cabos das espadas. – Vão para o barco. Levem-na para
Valonikos. Para a casa da qual falamos.
– Markos…
– O nome. Depressa, diga-me o nome outra vez.
– Tychon Hypatos. – Meus lábios estavam meio dormentes. – Rua Iphis.
Mas…
– Você fez uma promessa – ele disse.
– Não foi isso o que eu quis dizer!
– Você acha que eles vão parar de me procurar? – Ele parecia feroz. –
Você não tem esperança de chegar a Valonikos, Carô. Nenhuma. Não se eu
estiver com você. – Estendi a mão para pegar sua manga, mas ele a puxou. –
É a mim que eles querem. Aquelas duas pessoas na barca já morreram por
mim. Imagino que você achasse que eu não lamentava isso, mas lamento.
Não consigo imaginar se…
– Markos…
– Pare de discutir. Pelo menos uma vez na vida, pare. – Sua voz estava
trêmula, e eu soube que ele estava com medo.
O tempo desacelerou e parou quando nós olhamos um para o outro. Um
milhão de pensamentos passaram pela minha mente. Um deles tinha de ser o
certo. O pensamento que iria impedi-lo de fazer aquilo.
– Ah, inferno. – Ele caminhou em direção a mim enquanto a porta gemia
em suas dobradiças. – Eu vou morrer de qualquer jeito.
Ele puxou meu rosto para perto. Eu entrelacei os dedos em seu cabelo e
grudei sua boca na minha.
Foi um beijo violento como uma batalha, eufórico e urgente. Seus lábios
estavam salgados. As batidas aceleradas de meu coração pulsavam em meus
ouvidos. Eu queria mais dele. Segurei a parte da frente de sua camisa com a
mão para puxá-lo para mais perto, puxá-lo comigo.
Ele interrompeu o beijo e cambaleou para trás. Eu senti em meus lábios
sua ausência, um frio que ameaçava penetrar profundamente em mim.
– Espere. – Eu encontrei minha voz. – Markos, espere…
A porta se estilhaçou. Ele sacou as duas espadas.
– Vá. Vá embora daqui.
Enquanto eu me erguia até o parapeito da janela, não consegui evitar olhar
para trás.
– Não – disse ele sem se virar. E então eles os atacaram com espadas e
punhos.
Eu não queria ver.
Com a respiração entrecortada, eu me virei e deixei que Fee me puxasse
pela janela. Lágrimas turvavam meus olhos. Não se deixa para trás um
membro de sua tripulação. Todo marinheiro sabe. Você simplesmente não
faz isso.
Eu me aprumei e guardei as pistolas. Os outros estavam de pé no beco
calçado com pedras, aguardando-me com expectativa. O azul do fim de tarde
estava sobre nós.
– Onde está meu irmão? – A voz de Daria era estridente.
Eu agarrei sua mão.
– Seu irmão – eu disse com raiva, em meio a uma dor na garganta,
enquanto a arrastava pelo beco – uma vez me disse que faria qualquer coisa
para salvá-la.
– Ande vocês estão indo? – Ela tentou se soltar. – Nós precisamos esperar
por Markos! – gritou. – Me solte!
– Ele não vem. – Esfreguei os olhos com a manga. – Silêncio! Markos
disse que se eu mandasse você correr, era para você correr. Bom, eu estou lhe
dizendo isso agora.
Corremos sob as sombras dos beirais, desviando de poças de dejetos e
pilhas de espinhas de peixe podres. Esbarrei em um acendedor de lampiões
que levava uma vara comprida e quase caí. Ele me xingou, mas eu não podia
parar. Acima de nós, luzes piscavam nas casas na encosta. Em algum lugar,
as pessoas estavam sentando-se para jantar, enquanto eu me esforçava para
respirar mesmo sentindo uma dor no peito.
Markos era um espadachim excelente. Talvez…
Eu afastei o pensamento. Os cães negros estavam em maior número. Havia
muitos deles. Eu sabia disso. Markos sabia disso.
O beco terminou. Eu olhei freneticamente para a esquerda e para a direita.
– Para que lado? – Kenté perguntou, arquejante.
Um grupo de gaivotas voava no ar, piando. Seus gritos atraíram meus
olhos para a direita, onde avistei os mastros bem abaixo de nós.
– Por ali!
Nós descemos barulhentamente uma escada de pedra. Ao olhar para a
baía, quase chorei de alívio. Eu não ouvia nenhuma perturbação às nossas
costas. Nenhum tiro. Enquanto corríamos pelas docas, Daria tropeçou, mas
eu a puxei de pé. Seu rosto pálido estava marcado pelas lágrimas. Markos
podia ter nos dado tempo suficiente.
Eu parei.
Havia cinco homens nas docas entre nós e a Cormorant. Três deles tinham
espadas, e um tinha pistolas gêmeas enfiadas no cinto. O quinto era o pirata
Philemon. A Alektor tinha chegado.
Nosso caminho estava bloqueado.
Uma semana antes, se você tivesse me perguntado “Você morreria pela
Cormorant?”, eu talvez tivesse dito sim. Era o que acontecia em todas as
histórias. Uma capitã afunda com seu navio. Mas, naquele momento, eu não
hesitei. Não pensei nisso nem por um segundo.
Markos trocara sua vida pela nossa. Eu sabia qual tinha de ser meu
sacrifício.
Eu dei as costas para a Cormorant.
– Deixem-na – eu disse.
CAPÍTULO
VINTE E UM

Há uma sensação de liberdade impulsiva quando você deixa para trás tudo o
que conhece. Enquanto eu corria pelas docas arrastando Daria às minhas
costas, sentia a excitação disso nas veias.
Markos estava morto. Não havia mais Cormorant. Mas eu estava viva. Eu
era uma Oresteia e eu era ousada. Meu cérebro se aguçou, e meu sangue
fervilhou.
Eu sabia o que fazer.
Um cúter não leva uma tripulação grande. Só um homem foi deixado de
guarda perto do Victorianos. Ele estava sentado em um pilar das docas, com
as botas balançando. Seu mosquete estava apoiado contra uma pilha de barris,
longe demais para ser de qualquer serventia para ele.
Ele nem nos viu chegar.
Eu saquei minha faca e a arremessei no guarda. Ouvi um impacto molhado
e um grunhido, mas eu já estava subindo a prancha de embarque, correndo.
– Kenté, puxe-a para dentro! – arfei. Madeira se arrastou sobre madeira
quando ela me obedeceu.
O cúter tinha um convés aberto com duas escotilhas que levavam à
coberta. Ele era guiado por uma cana do leme muito maior que a da
Cormorant.
– Volte aqui – ordenei a Daria, e avisei: – Não toque em nada.
Eu não conseguia pensar em Markos. Nem no homem que eu podia ter
matado. Nem na Cormorant.
Para qualquer um que cresça cercado de barcos, é um sacrilégio cortar boa
corda, mas eu não hesitei. Corri ao longo da amurada de bombordo do cúter
cortando todas as amarras. O Victorianos começou a se mover.
Passei desesperadamente a erguer a vela principal. Era pesada demais,
mas, quando achei que pudesse irromper em lágrimas de frustração, senti Fee
a meu lado. A verga da vela subiu até o topo. Com mãos trêmulas, enrolei a
adriça em torno do cunho de madeira.
– Vela de traquete? – arquejou Kenté sem fôlego.
– Sim, suba – eu disse.
Os cães negros tinham visto as velas do cúter se erguerem. Eles
começaram a correr, empurrando barqueiros e trabalhadores das docas de seu
caminho. Eu saltei de cima da cobertura da escotilha para a proa. Nós só
tínhamos alguns momentos antes que eles sacassem seus mosquetes.
A garotinha estava parada onde eu a deixara, ao lado da cana do leme.
– Saia daí – eu disse bruscamente, já arrependida de meu tom de voz.
Ela se afastou depressa, bem a tempo de eu agarrar a cana do leme e a
empurrar com força para um lado, exatamente onde ela estava parada
segundos antes. O cúter, ainda apontado para o vento, flutuava para trás.
Cerrei os dentes e me apoiei na cana do leme. Eu a puxei para mim e
empurrei com força mais uma vez.
Um dos cães negros correu pela doca. Kenté tinha removido a prancha de
embarque, mas ele se preparou para saltar. Nós não tínhamos nos afastado o
suficiente. Ele talvez conseguisse.
Fee esticou os lábios em um sorriso feroz e saltou sobre a amurada. Ela
ficou ali equilibrada com a faca na mão.
As pernas e braços do homem se agitaram, e seu corpo se ergueu no ar.
Nesse momento, Fee se virou e olhou para mim.
Eu larguei a cana do leme.
– Não faça isso!
Ela saltou.
Eles colidiram em pleno ar, se emaranharam e caíram. Houve um barulho
de água, e nela uma agitação esbranquiçada. Em seguida, não vi nada além de
ondas delicadas.
– Fee! – gritei com voz vacilante. – Fee!
Mas nem ela nem o pirata voltaram à superfície.
Muito devagar, o Victorianos começou a virar. No alto, a borda de sua
vela tremulou. Kenté subiu na cobertura da escotilha e se inclinou sobre a
retranca, empurrando-a para estibordo. Dei mais uma bombada na cana do
leme, e dessa vez a vela estremeceu. O vento a pegou e, com um belo ruído
de tremular, ela se enfunou. Eu senti a pressão no leme quando o navio
ganhou velocidade e a vela se tensionou.
Olhei para trás, frenética.
– Temos de esperar por Fee.
– Carô, ela se foi. – Odiei a simpatia na voz de Kenté.
Borbulhas subiram atrás de nosso leme e cresceram em uma esteira
agitada. Kenté chegou rápido à escota da vela mestra. Os Bollards podem não
ser uma família de barqueiros, mas eles sabem alguma coisa sobre barcos.
Nós partimos e pegamos nosso rumo pelo Pescoço. Às nossas costas,
disparos reverberavam sobre a água, embora estivéssemos bem fora de
alcance.
– Abaixe a cabeça – eu disse a Daria só por garantia. – Melhor ainda,
deite-se toda no chão.
Ela caiu como uma pedra, obedecendo imediatamente. Ela ouvia melhor
que Markos, eu tinha de reconhecer isso.
Markos. Havia um espaço negro e vazio onde ele costumava estar. Eu
queria gritar de frustração, me desfazer em pedaços, mas não podia. Não se
quisesse viver.
Eu estava com medo até de pensar em Fee. Era algo muito novo. Muito
fresco. Lágrimas dolorosas encheram meus olhos. Meu pai, a Cormorant e
Fee – esses eram os retalhos que formavam minha vida. Eu podia suportar se
faltasse uma peça. Naquele momento, tudo estava cheio de buracos, e seus
farrapos rasgados esvoaçavam ao vento.
Que tinha aumentado.
Bem atrás, a Alektor se afastou das docas. Mas, dessa vez, eu não
precisava de nevoeiros estranhos. Eu sabia que ela não conseguiria nos pegar,
pois o Victorianos simplesmente voava. Ele rasgava a água, e sua proa
levantava uma esteira branca. Era esse o tipo de navegação para o qual ele
tinha sido construído.
Kenté apertou os olhos e olhou para trás.
– Não acho que eles estejam se aproximando.
– Não vou abrir mais velas – eu disse. – Não, a menos que seja necessário.
Este navio é muito mais do que estou acostumada.
– Cleandros não devia ter sido capaz de desaparecer assim. Não momentos
após o pôr do sol. – Kenté sacudiu a cabeça. – Ele deveria estar muito fraco,
como eu estava. Você viu aquela coisa em volta do pescoço dele?
– Você está falando do pingente?
– Deve ser algum tipo de… de caixa de sombras ou algo assim. Ele
desapareceu no momento em que o abriu. Isso é muito engenhoso. – Ela
balançou para frente e apoiou a testa nas mãos. – E eu sou muito estúpida.
Por que eu nunca pensei em fazer isso? Há escuridão na caixa mesmo que
haja luz em seu exterior.
– Você está sendo estúpida agora – eu disse. – Como você podia saber? É
como eu dizer a Daria que suba no mastro e rize aquela vela e esperar que ela
saiba como fazer isso. Ele era o homem das sombras pessoal de um emparca.
– Fui uma tola em achar que poderia ajudá-la. – Ela remexeu em uma
unha. – Fee e Markos lutaram contra eles. Morreram lutando contra eles. –
Uma lágrima correu por seu rosto, misturando-se com os borrifos do mar. –
Eu não fiz nada.
Eu tinha outra coisa com que me preocupar. Chuva começou a cair no
convés, gotas grandes e raivosas. Seria uma tempestade.
– Vai ventar muito. Leve Daria para a cabine. Não quero que ela pegue um
resfriado.
– Quero ficar aqui! – Daria estava de olhos arregalados e com o cabelo
grudado à sua testa, como se fossem várias cobras molhadas. Markos odiava
quando a Cormorant navegava com qualquer inclinação, mas sua irmã
parecia eufórica com a maneira com que o cúter se inclinava para o lado,
enfrentando as ondas.
– Não vou pegar nenhum resfriado.
Na excitação de nossa fuga, ela tinha parado de chorar. Eu desconfiava
que ela ainda não tivesse compreendido a morte do irmão em toda sua
extensão.
– Procure nos armários – eu disse a Kenté. – Nós vamos precisar de capas
de chuva. Equipamento para clima frio.
– Você podia rizar a vela – sugeriu Kenté olhando para a vela. Uma onda
quebrou em nossa proa, jogando baldes de oceano sobre o convés em nossa
direção. Não dei importância a isso. Minhas botas já estavam encharcadas.
– Ainda não. – Eu estava com medo de parar.
– Este é o caminho para Iantiporos? – Daria ficou de pé, examinando os
penhascos enevoados. – Minha mãe está em Iantiporos.
Horrorizada, ergui os olhos para encontrar os de Kenté.
– Não posso – articulei as palavras sem emitir som. Era demais. Eu mal
estava conseguindo me segurar.
Kenté descruzou as pernas e estendeu a mão para Daria.
– Vamos descer para explorar, hein? Podemos escolher um beliche.
Agradeci pelo vento e as ondas estarem barulhentos. Se ela chorou quando
Kenté lhe contou, eu não ouvi.
Verdade seja dita: fiquei aliviada por Daria estar na coberta e fora de
minha vista. Eu não conseguia imaginar como seria descobrir que você era o
último membro sobrevivente de toda sua família. Ela iria querer alguém para
abraçá-la, fazer chocolate quente e lhe dizer que tudo ficaria bem.
Bom, eu não podia fazer isso. Não quando ela era a razão de Markos e Fee
estarem mortos. Talvez fosse egoísmo, mas eu tinha perdido tudo por ela, e
ela nem sabia disso. Senti uma forte pontada de dor em meu peito. As coisas
nunca mais ficariam bem.
Oh, Markos.
A emparquia de Akhaia era herdada pela linhagem masculina. Como
primo, a reivindicação de Konto Theuciniano ao trono não era legítima antes,
mas, a partir de então, era. O que Markos fizera ao trocar a própria vida pela
da irmã fora um gesto nobre – e idiota –, de enfurecer.
Minha garganta doeu, mas pareceu mais doença que pesar, como se eu
devesse estar na cama com o pescoço enrolado em flanela e besuntado de
linimento. Eu queria tossir, desmaiar e vomitar, tudo ao mesmo tempo.
O tempo não ajudava em nada. O Victorianos abria caminho pelas ondas
encapeladas, muito inclinado para estibordo. Navegar o Victorianos não era
como navegar a Cormorant. Ele lutava comigo pelo controle, enquanto eu me
esforçava com a cana do leme, tentando nos manter no curso. Eu quase
imaginei que ele estivesse sendo exigente por não acreditar que alguém tão
pequena e insignificante quanto eu tinha sido ousada o suficiente para roubá-
lo.
– Tudo bem, Vic – eu disse em voz alta, porque “Victorianos” era muito
grande. Parecia formal demais para um navio fora da lei como aquele. – Você
não vai me derrotar. Você precisa se acostumar com esse fato agora. Eu vou
levá-lo pelo Pescoço para o mar. E você não pode me impedir.
As nuvens se abriram e exibiram estrelas pálidas, como se o céu estivesse
piscando para mim. Nesse momento, juro que senti o mar ficar mais calmo, e
o vento amainar. Mas era apenas o meu desejo.
As duas horas seguintes provaram isso. Uma parede de nuvens escuras se
aproximou, e o vento aumentou. A chuva açoitava o convés, e minha mão
estava dormente na cana do leme. As capas de chuva dos armários do cúter
eram feitas para homens crescidos, portanto, eram grandes demais para mim.
Água escorria pela gola larga e entrava nas mangas, grudando minha roupa
ao corpo na parte de cima.
Depois de algum tempo, passamos pelo farol na extremidade do Pescoço.
Estávamos em mar aberto. Eu virei o navio pela última vez e afrouxei as
velas. Nesse ângulo, eu não precisava lutar tanto contra o vento e a água.
Finalmente, a inclinação do convés diminuiu, e pareceu que o Vic não estava
mais brigando comigo.
Olhar para o mar e tentar entendê-lo é como tentar conhecer o insondável.
Não dá. Observando a vastidão do oceano, senti um buraco no fundo de meu
coração. E, mesmo assim, achei que o mar entendia isso. Ele conhecia o
vazio. Conhecia o desespero. Ele ecoava o meu, e o devolvia para mim com o
barulho das águas. Tudo estava acelerado, agitado e cinza, cinza, cinza.
Eu me sentia cinza. Estava tremendo e encharcada. Fee estava morta,
Markos estava morto, e a Cormorant estava perdida. Desejei que meu pai
estivesse ali, mas eu tinha estragado isso também – os soldados da
margravina iriam trancafiá-lo na escuridão e na imundície de um navio
prisão, e era tudo minha culpa. O borrifo salgado em meu rosto se misturava
com minhas lágrimas, apagando-as como se nunca tivessem estado ali.
Eu recebera uma tarefa simples: entregar o caixote idiota em Valonikos.
Agora, o verdadeiro emparca de Akhaia estava morto, e eu estava envolvida
nisso. Eles deviam ter mandado alguém com quem os deuses realmente se
preocupassem. Qualquer barqueiro teria sido melhor que eu.
Eu gritei na noite. O mar engoliu meu grito e levou para si minha fúria e
meu pesar. Gritei com tanta força que minha voz falhou, e meus olhos
pareceram poder explodir.
Então eu ouvi. Um ronco vindo das profundezas.
Nós não estávamos sozinhos. Havia alguma coisa lá fora.
Uma cabeça enorme surgiu em meio às ondas agitadas, borrifando muitos
litros de água. Ela era coberta pelo que pareciam penas molhadas, e montes
de cracas se prendiam a seu pescoço comprido e escamoso. Com ela, veio um
cheiro forte e reptiliano.
Meu choque foi tamanho que larguei a cana do leme.
Era um drakon. Pelo menos, eu achei que fosse. Eu nunca tinha visto uma
imagem de um, pois as pessoas que escrevem os livros de história natural
dizem que eles são apenas lendas. Mas ele não podia ser nenhuma outra
coisa.
As velas do Vic tremularam e gemeram em alerta. Eu corrigi rapidamente
nosso curso, com o pulso acelerado.
O drakon abriu a boca gigante e rugiu para mim. Escorria água de sua
cabeça, e seus dentes pareciam espadas. Fiquei hipnotizada pelo brilho roxo
de suas escamas. Ele sacudiu sua juba espinhosa e jogou espuma e respingos
para todo lado. Havia nele algo selvagem e belo.
De repente, não me importei se o enfurecesse. Não me importei se ele me
devorasse, se ele enrolasse sua cauda grande em torno de nós e nos arrastasse
para o fundo do mar, como ocorreu com o navio Nikanor.
Que ele viesse.
Eu gritei de volta, um urro de desafio para responder ao do drakon.
– Carô! – Kenté saltou à minha frente, apontando uma pistola para ele.
Eu segurei seu braço.
– Espere! Não!
– Você perdeu a cabeça? – perguntou ela. – Isso é um drakon.
Ela lutou comigo, mas eu era mais forte. Eu a segurei.
– Você vai enfrentá-lo com uma pistola?
Pelo canto do olho, eu observava enquanto o monstro acompanhava a
velocidade do Vic. Eu não conseguia lembrar se devia ou não fazer contato
visual com um drakon. Muito atrás, eu conseguia ver indistintamente três
elevações que pareciam ilhas – as curvas de sua cauda se projetando da água.
– Ele vai se enrolar em nós e nos afundar. – Kenté ergueu a voz. – Ele
quer nos devorar.
– Não – eu disse, surpreendendo a mim mesma. Eu não sabia como sabia.
– Ele não vai nos incomodar. A última coisa que devemos fazer é provocá-lo.
Se não dermos atenção, talvez ele vá embora.
– Tudo bem – ela disse, desconfiada, baixando a pistola.
O drakon deu um rugido triste e mergulhou de cabeça nas ondas. Seu
corpo comprido sibilou por baixo d’água, levantando borbulhas. Eu não sabia
dizer por que impedira Kenté de atirar nele, só que parecera importante fazê-
lo.
Eu tinha encarado de frente um drakon do mar e sobrevivera. Quantas
pessoas já tinham visto um drakon? Não só em uma história mentirosa
contada por algum velho barqueiro sobre o primo da tia de seu irmão. Tinha
realmente visto um. Eu me perguntei o que isso significava – o fato de o
drakon ter escolhido emergir para mim. Será que aquela criatura tinha
inteligência, ou era apenas um animal selvagem, como um peixe, uma cobra
ou uma combinação ímpia dos dois?
– Acho que devemos nos revezar – disse Kenté, desconfortável, acima da
amurada. – Vou dormir um pouco agora e, mais tarde, venho aliviar você. –
Ela afastou os olhos do mar e estremeceu. – Embora eu não saiba dizer se
vou conseguir dormir. Não com essa coisa aí fora.
– Acho que ele se foi – menti.
Depois que Kenté desapareceu na coberta, as horas se confundiram. Eu
não consegui mais ver o drakon, mas sentia que ele ainda estava ali,
ondulando logo abaixo da superfície. Parecia quase como se ele estivesse me
fazendo companhia. Eu sabia pelas constelações a direção do norte, mas era
enervante seguir às cegas por um céu negro e um mar negro.
– Tychon Hypatos – sussurrei com os dentes batendo. – Rua Iphis.
Valonikos.
Uma luz surgiu a bombordo. Era um pequeno ponto amarelo que piscava.
Apertei os olhos e me esforcei para vê-lo. Não havia nada ali. Eu estava tão
cansada e com tanto frio que começara a ter uma alucinação com um brilho
de lampião na escuridão da noite.
A luz parou de tremeluzir, então eu lembrei que havia um navio-farol
ancorado ao largo dos baixios da ilha de Enantios.
Eu não estava louca. Era luz de verdade, em um navio de verdade, com um
homem de verdade em seu interior que provavelmente estava bebendo gim
quente ao lado de seu fogão. A luz acendeu algo em meu interior que não era
exatamente esperança. Bem depois de passarmos pelo navio, continuei a
olhar para trás por cima do ombro esquerdo para ele, um lembrete piscante de
que algumas coisas no mundo ainda eram constantes.
Kenté saiu pela escotilha carregando uma lanterna.
– Acho que aquele é o navio-farol de Enantios – eu disse com o nariz
congestionado. Esfreguei-o na manga pela centésima vez, e a pele esfolada
ardeu. – Vou consultar um mapa para garantir. Mas devemos estar a um terço
do caminho para Iantiporos.
– Você precisa dormir um pouco. – Ela fechou os olhos. Quando tornou a
abri-los, o facho de luz projetado pela lanterna tinha dobrado de tamanho.
– Eu não sabia que você podia fazer isso.
– Não é muito bom. – Ela a envolveu com as mãos em concha. – Ela não
tem nenhum calor. É mais como ausência de sombra em torno da lanterna
que luz de verdade. Você leva a mão ao interior do escuro, torce, e o afasta
para o lado… – Ela sacudiu a cabeça. – Você não tem ideia do que estou
dizendo.
– Não. – Eu estava muito cansada para dizer mais.
– Vá para a cama, Carô.
Eu soltei os dedos rígidos da cana do leme e os flexionei ao sentir uma dor
repentina e pronunciada.
– Você já velejou alguma vez sozinha, antes?
– Eu cresci em Siscema. Claro que já. – Olhei fixamente para ela até que
admitiu. – Em um bote. Mas não há ninguém aqui fora além de nós, e posso
dizer que sei ler uma bússola tão bem quanto você. – Ela deixou a lanterna de
lado e pegou a cana do leme.
Eu olhei para as águas escuras. O drakon parecia ter desaparecido. Sem
dúvida, havia algum significado oculto por trás daquilo, um sinal de algum
tipo. Se era bom ou mau, eu não sabia.
No alto da escada, eu parei.
– Kenté? Obrigada. Por tudo.
Cambaleei até a cabine, fazendo uma pausa para me assegurar de que
Daria estava bem. Enroscada e dormindo em um dos beliches, ela parecia
comoventemente pequena. Tirei minhas roupas molhadas e encontrei um
cobertor para enrolar à minha volta. Ele fazia coçar e fedia com suor
masculino velho, mas era quente.
Atônita demais para dormir, olhava para o nada, esperando que as
lágrimas surgissem. Mas elas não surgiram. Talvez estivessem esgotadas.
Apesar de tudo, pontos marrons e quentes começaram a tomar as bordas
de minha visão. Minha cabeça caiu sobre o queixo. Eu tombei de lado no
beliche mais próximo e me entreguei ao sono.
Quando acordei, a primeira coisa que vi foi um homem agachado do outro
lado do beliche me observando.
CAPÍTULO
VINTE E DOIS

Eu gritei e procurei minha faca.


O homem estava sentado à mesa da cozinha, tirando sujeira das unhas com
uma faca. Seu cabelo era esbranquiçado, pelo sol ou pela idade – o sol,
pensei, pois sua pele não tinha rugas, exceto em torno dos olhos – e ele o
usava torcido em dreadlocks e amarrado com um turbante de listas
vermelhas. Todo marrom-dourado, seu rosto era marcado por manchas de sol
e sardas. Ele usava um colete, sem camisa por baixo, exibindo braços
musculosos e peludos cobertos de tatuagens.
– Bom dia, capitã. – Ele sorriu, mostrando um dente faltando.
– Pelas bolas de Xanto! – Eu apertei o cobertor sobre o peito. – Quem é
você?
– Sou Nereus. – Ele ergueu a mão com a faca. – Por favor, sente-se. Eu
fritei um ovo e fiz café.
Eu podia sentir o cheiro da comida. Fiquei tremendamente tentada.
– De onde você veio? – Pelo movimento e pelas ondas que batiam no
casco, nós ainda estávamos no oceano. Tateei os cobertores e encontrei
minha faca na bainha. – Como você veio parar neste navio?
O homem que se chamava Nereus pareceu desapontado.
– Ah, pare com isso. É assim que você trata todo homem que lhe prepara
café da manhã? Não vamos começar a sacar facas.
– Você tem uma faca. – Enrolei a ponta solta do cobertor e o joguei por
cima do ombro como uma toga antiquada. – E homens estranhos não têm o
hábito de me preparar café da manhã.
Ele girou a faca no ar, pegou-a com um floreio e a guardou.
– Agora, por que você não come? A pequena come.
Assustada, eu me debrucei para fora do beliche. Daria estava sentada de
pernas cruzadas em um banco, lançando olhares tímidos para o marujo
misterioso enquanto cortava uma omelete com um garfo.
– Daria – eu disse –, não coma isso. Eu vou fazer o café da manhã para
você. – Eu me virei para o homem. – Você não estava aqui ontem à noite –
insisti, brandindo a faca. – De onde você veio?
A outra escotilha no convés dava para o compartimento de carga. Talvez
ele tivesse se escondido ali, mas por que não tinha se revelado no dia
anterior? Se ele fosse um cão negro, teria facilmente nos dominado durante a
tempestade.
– Ah. – Enquanto ele bebia de sua caneca, vislumbrei uma tatuagem
obscena de sereia em seu antebraço. – O café vai esfriar. Coma, pequena. –
Ele piscou para Daria. – Não há nada como comida quente para nos
convencer de que nem tudo pode estar perdido, ayah?
Ele sem dúvida não estava nos tratando como prisioneiras, mas aquilo tudo
fedia a algo suspeito. Ou talvez o fedor fosse de sua calça, que – eu não
estava imaginando, estava? – tinha um monte de algas secas presas a uma
perna.
– Vou comer e beber quando você responder minhas perguntas – eu disse.
– Onde está Kenté?
Ele deu de ombros.
– Quem você acha que está no leme?
Mantendo a faca entre mim e Nereus, eu desci do beliche. Minhas próprias
roupas ainda estavam úmidas, por isso encontrei um suéter grande no armário
e enrolei as mangas. Ele fedia a fumaça. Em seguida, pus meu punhal
akhaiano ao lado do prato e me sentei no banco. O estranho fez um gesto de
encorajamento.
Eu peguei um garfo.
– Você é um cão negro? Você quer me impedir de chegar a Valonikos?
Ele estalou a língua contra os dentes da frente.
– Tão desconfiada…
– Você parece um pirata. Os últimos piratas que encontrei tentaram me
matar.
Ele sorriu.
– Ayah, e ela não me mandou aqui para ajudá-la, Caroline Oresteia?
Uma sensação assustadora desceu por minha nuca. Como ele sabia meu
nome?
– Quem mandou você? – eu disse, enquanto mastigava um bocado de
omelete. Havia pimenta e ervas misturadas ao ovo. Estava deliciosa, ou talvez
eu apenas estivesse faminta. – Minha mãe? Você trabalha para os Bollards?
Assim que as palavras saíram de minha boca, eu me senti tola. Minha mãe
era membro de uma casa poderosa, mas nem ela podia colocar um homem
em um navio em movimento no meio do oceano. Seria possível que ele
estivesse nos seguindo por todo o caminho desde Siscema? Talvez os
Bollards tivessem um informante posicionado entre os Cães Negros. Uma
coisa dessas seria bem típica deles.
Eu refleti sobre isso enquanto erguia a caneca. O café estava escuro e
forte, do jeito que meu pai fazia. Pensar nele fez com que lágrimas brotassem
em meus olhos. Eu vi Nereus me observando e fingi tossir.
– Quente demais – reclamei, olhando para meu prato até recuperar o
controle sobre mim mesma.
Irritantemente, o homem que dizia se chamar Nereus estava certo. Com
café quente e ovos no estômago, eu me senti quase normal. Pela primeira vez,
eu me permiti me perguntar se Fee ainda estaria viva. Ela não tinha voltado à
superfície, mas, na verdade, homens-sapo conseguem respirar embaixo da
água. Eu me senti tola por não ter pensado nisso no dia anterior.
– Eu... eu estou aqui porque tenho uma dívida – disse Nereus. – E porque
senti falta do gosto de rum. Nunca fique trezentos anos sem rum, garota. –
Ele deu um tapa no joelho. – Agora, isso é um bom conselho ou o quê?
Eu cruzei os braços sobre o peito, com as mangas do suéter, grandes
demais, pendendo.
– Você não pode esperar que eu acredite que tem trezentos anos de idade.
Com quem você tem uma dívida? – perguntei. – Tamaré Bollard?
– Bollard – ele revirou o nome na boca e sorriu. – Ayah, pode-se dizer que
eu conheço os Bollards.
Cerrei o punho em torno do garfo. Se minha mãe tinha sentido necessidade
de mandar alguém nos seguir, ela podia ter escolhido um homem menos
irritante. O que ele quis dizer com trezentos anos sem rum? Eu não estava no
clima para histórias mentirosas. Será que ele não percebia o problema em que
estávamos?
Ayah, e ela não me mandou aqui para ajudá-la, Caroline Oresteia?
Sem dúvida eu podia espetá-lo com o garfo. Ou golpeá-lo com a frigideira.
Ou jogá-lo ao mar. Por outro lado, era possível que ele estivesse mesmo do
nosso lado. Ele tivera amplas chances de me assassinar enquanto eu dormia,
se fosse isso o que ele quisesse. Ele estava nitidamente fazendo um jogo
diferente.
Empurrei o prato para trás.
– Bom, não posso dizer que confio em você. Não gosto de pessoas que não
dão respostas diretas.
– No meu tempo – disse ele – as garotas eram menos mal-
-humoradas.
– Bom para elas – eu disse, olhando para trás. Peguei a mão de Daria e
puxei-a do banco onde estava. Só porque eu decidira não matá-lo por ora, não
significava que eu iria deixá-la sozinha com ele. – Venha.
Nós subimos a escada até o convés. Quando a escotilha se abriu com um
rangido, o vento soprou meu cabelo no rosto. Por um momento
desorientador, tudo o que eu vi foi oceano. Minha garganta começou a se
fechar. Nunca em toda a minha vida eu não fora capaz de ver terra. Kenté
tinha equivocadamente navegado longe demais. Nós iríamos nos perder no
mar.
Aí, eu avistei a linha indistinta da ilha de Enantios a estibordo e dei um
suspiro de alívio. Estávamos navegando para nor-noroeste, em um arco
amplo, com o vento soprando no meu ombro direito. A noite tempestuosa
dera lugar a uma bela e fresca manhã. Kenté estava sentada junto à cana do
leme com as tranças parecendo encrespadas e agitadas pelo vento.
– Os problemas sempre parecem nos encontrar. – Apontei a cabeça para
Nereus, que caminhava pelo convés com as mãos nos bolsos. – Por acaso
você não viu de onde ele veio?
– Eu apenas ergui os olhos e ali estava ele – disse Kenté. – Ele me
ofereceu um gole de uma garrafa de rum muito suja, que eu recusei, e então
disse que estava procurando você. Ele não é um homem das sombras, se é
isso o que você gostaria de saber. – Seu lábio se curvou. – Mas ele me deu o
maior susto quando eu o vi – acrescentou ela com raiva.
Eu conhecia a sensação.
– Cão negro, você acha? – Eu o estudei de longe, com os dedos
tamborilando no cabo de minha faca.
Ela sacudiu a cabeça.
– Eu não sei o que ele é.
Nereus levantou Daria pela cintura e a pôs sobre a amurada.
– Aí está você, querida.
– Não faça isso, ela vai cair! – disse bruscamente enquanto ia até lá. –
Daria, desça daí.
– Eu não quero.
Meu coração se revirou, pois algo na forma com que ela virou o pescoço
nesse momento me lembrou de Markos. Eu olhei fixamente para Nereus.
– Ela é a filha do emparca – eu disse. – A última de sua linhagem.
– Não, não sou. – Ela se recusava a olhar para mim. Eu me lembrei de
como Nereus dissera que nem tudo podia estar perdido, e percebi o que
estava acontecendo. Ele estava botando ideias na cabeça dela.
– Markos está morto – eu disse bruscamente.
Nereus me olhou com olhos semicerrados.
– Você tem muita certeza, hein?
Minha voz saiu distorcida.
– Os Cães Negros queimaram onze barcas porque ele talvez estivesse a
bordo. – E eles tinham matado seus pais e seu irmão, mas eu não queria dizer
isso na frente de Daria.
Ele deu de ombros.
– Eu não desistiria assim tão rápido de um amigo.
Senti meu controle começar a me escapar, então saí andando com raiva.
Ele não sabia nada sobre aquilo pelo que eu tinha passado. Como ele ousava
dizer isso para mim? Eu puxei e abri a escotilha para o compartimento de
carga. Na barriga do cúter, longe de seus olhos, eu finalmente senti que podia
respirar. Fiquei ali chorando por vários minutos, de punhos cerrados, até que
a ardência em meus olhos melhorou.
Uma luz poeirenta penetrava através das vigias. Eu franzi o nariz. Na
coberta, aquele cúter inteiro fedia a chulé. O capitão Diric Melanos mantinha
um navio impecável, mas não estava muito inclinado a pensar na higiene
pessoal da tripulação. O compartimento de carga estava destrancado, e a
chave, pendurada em um gancho próximo.
Eu espiei em seu interior.
E sorri pela primeira vez no que pareciam anos. Todo tipo de coisa
transbordava das prateleiras, colocadas de maneira desordenada sem
aparentemente qualquer respeito a seu valor. Havia uma pilha de porcelana
quebrada ao lado de uma bolsa da qual se derramavam moedas estrangeiras.
Havia colares preciosos e tapetes enrolados, pistolas e pinturas. Uma caixa
estava repleta de talentos de prata. Um armário no canto dos fundos continha
fileiras de mosquetes, muito mais do que estávamos contrabandeando para
lorde Peregrine.
Supus que tudo o que estivesse naquele compartimento de carga, naquele
momento, fosse meu. E não era como se eu tivesse roubado. Era meu
legalmente, por ordem da margravina, graças a sua carta de corso.
Abri a tampa de um baú ornamentado e entalhado e retirei rolo após rolo
de brocados luxuosos. Por baixo, havia roupas elegantes dobradas em papel.
Nenhuma delas serviria em uma dama. Eu não me importei – eram melhores
que os trajes fedorentos que eu tinha encontrado nos armários do Vic.
Abotoei o menor colete por cima de uma camisa de linho fino. Por cima
disso, enrolei um lenço malhado vermelho e o enfiei por dentro da camisa
como uma echarpe. Botei um chapéu tricorne na cabeça e afivelei um cinto
de couro trabalhado em torno da cintura.
Pela primeira vez, eu me senti a mestre de um navio corsário. Então essa
era a sensação de ser Thisbe Brixton, caminhando pelo convés de sua barca.
Como uma mulher que sabia quem era.
Como uma capitã.
Enfiei minhas pistolas gêmeas no cinto. Saquei uma delas e a revirei na
mão. Luz refletia no cabo enquanto eu admirava o leão-da-montanha cuja
cauda se enrolava por baixo. Um mestre ferreiro devia ter feito aquelas
pistolas. Elas eram caras demais para pessoas como eu.
Claro que eram. Elas tinham sido feitas para um emparca.
Os cantos de meus olhos ardiam, mas eu me recusei a permitir que as
lágrimas voltassem. Deixei que a tampa do baú se fechasse, tranquei a porta
do compartimento de carga e guardei a chave no bolso. Subi para o convés e
abri a boca para inalar grandes haustos de ar salgado e fresco.
Nereus, apoiado na amurada, me viu emergir, mas decidiu sabiamente me
deixar em paz. Daria pulou de pé para me acompanhar. Seus olhos
examinaram meu chapéu tricorne, e ela mostrou o lábio inferior.
– Eu quero um chapéu de pirata!
– Pare com isso. Damas não fazem bico.
– Como você poderia saber algo sobre isso? – ela fez mais bico.
– Corsários também não fazem bico. É isso o que somos. Somos corsários.
– Saquei o pergaminho, cujos cantos estavam amassados, do bolso interno de
meu colete. – Esta carta diz que podemos tomar presas. E foi isso o que
fizemos.
– Então um corsário é um pirata com uma carta? – Ela não pareceu
impressionada.
Como ela estava mais ou menos certa, eu não tive nada a dizer em relação
a isso.
Os olhos de Daria se arregalaram ao ver minhas pistolas iguais.
– Onde você conseguiu essas? – Ela estendeu a mão para tocar os olhos de
pedras preciosas do felino, e seu rosto ficou melancólico. – Essa é a marca do
leão-da-montanha.
– Markos disse que era o símbolo de Akhaia.
– Uma espécie de símbolo. É o brasão da família real. Da emparquia.
Uma sensação desconfortável palpitou em meu interior.
– O quê?
– Só um membro da família pode usar o leão-da-montanha. Ou um
guerreiro de alta posição como um guarda-costas ou um general. Alguém que
o emparca deseje homenagear.
Eu passei o dedo pelo corpo esguio do felino.
– Ele nunca devia tê-las dado para mim.
– Ele sabia o que estava fazendo. Meu irmão gosta de você. – Ela me
seguiu pelo convés. – Eu vi vocês dois se beijando.
– Daria. Seu irmão… – Engoli em seco. Dizer seu nome faria com que
aquilo parecesse real demais. – Seu irmão está quase certamente morto.
– Markos me prometeu que estaríamos juntos em Valonikos – Ela
empinou o nariz. – Ele sempre cumpre suas promessas. Nereus disse…
– Nereus é uma pessoa extremamente suspeita que nem nos contou quem
é. – Olhei fixamente para ele. – Não lhe dê ouvidos. Ele não estava lá.
Nereus despreocupadamente apoiou uma das mãos sobre a amurada.
– Diga-me, garota que sabe tanto, por que você não içou a vela de
mezena?
– Porque, ontem à noite, estávamos velejando em orça máxima com tempo
ruim. – E porque eu estava com medo, embora jamais fosse admitir isso. Eu
não estava confortável com o Victorianos. Nós já estávamos com mais panos
abertos do que aquilo a que eu estava acostumada, mesmo sem a vela de
mezena. – Isso não teria nos adiantado de nada.
Nereus deu um sorriso, e eu percebi que tinha passado por um teste. Uma
vela quadrada não adianta nada quando se está mudando frequentemente de
direção.
– Agora que estamos com o vento às nossas costas – ele disse – não há
razão para não içar essa vela de mezena. Uma bujarrona também poderia cair
bem, só pela diversão. Libertá-lo completamente.
Eu olhei para o céu. Ele estava claro, exceto pelos cirros em forma de
cauda de cavalo bem altos, o que normalmente significa que o tempo ruim
não volta por pelo menos um ou dois dias.
– Vamos fazer isso – decidi, sentindo-me corajosa.
– Agora, escute. Este navio é um cúter – ele disse. – Calculo que tenha um
pouco menos de setenta pés de convés, oitenta e cinco se contar esse gurupés.
Ayah, não muito maior que sua barca, mas com três vezes mais velas. Você
vai ver que grande parte de suas velas ficam na parte da frente. Veja onde seu
mastro está posicionado.
Eu olhei bruscamente para ele. Eu não me lembrava de ter mencionado a
barca.
O mastro do cúter era montado bem para trás, quase a meia-nau. Uma
barca leva uma única vela grande em um mastro posicionado em sua proa.
Aquele navio levava uma vela principal, uma vela de mezena quadrada acima
dela, além de uma bujarrona e uma vela de estai presas ao gurupés comprido.
Havia espaço para uma terceira vela à frente no mastro, alguma espécie de
bujarrona mais alta, talvez mesmo uma quarta.
– Ayah, em um dia bom, este é o navio mais rápido no Mar Interior – disse
Nereus, como se tivesse escutado meus pensamentos. – Ele foi construído
para voar.
Eu observei, protegendo os olhos, enquanto ele subia o mastro com
agilidade para desenrolar a vela de mezena. Nós podíamos usar um pouco de
seu conhecimento. Eu só teria que ficar de olhos abertos.
Com a vela de mezena içada e uma segunda vela triangular enfunada à
frente do gurupés, o Victorianos parecia se erguer um pouco. Ele mergulhava
à frente, abrindo caminho pela ondulação seguinte com uma onda de espuma
branca. Ele estava “com a faca nos dentes”, como diziam os marinheiros
Algo rangeu alto. Eu levei um susto, e meus ombros traíram minha
surpresa. Com quatro vezes o número de velas da Cormorant, esse navio sem
dúvida fazia mais barulho.
– Pense nisso como se fosse ele falando com você – disse Nereus ao
perceber meu desconforto.
Esse navio tinha me perseguido para cima e para baixo do rio desde Pontal
de Hespera. Eu não me importava realmente se ele falasse comigo. Não era o
barco que eu amava.
– Você vê, agora? Aqui em mar aberto, os Cães Negros não têm nenhum
navio que chegue perto de sua velocidade. Sinta como ele avança! – Ele
segurou um dos estais e se ergueu sobre a amurada. – Você não vai querer
perder isso.
Era incrível. Sob a luz do sol e o brilho dos borrifos, na segurança com
que o Vic avançava, eu quase conseguia me esquecer do dia anterior.
Quase.
Eu me debrucei sobre a amurada. O dia nos deixa ansiosos demais para
nos esquecer dos horrores da noite. À luz do sol, o drakon parecia um sonho,
mas outra coisa nos acompanhava centímetros abaixo da água. Algo liso e
cinza e…
– Vejam! – gritei. – Golfinhos!
Um deles saltou, e o sol reluziu em suas costas molhadas. Daria bateu
palmas. Havia outras criaturas, eu percebi, além dos golfinhos. Peixes de
muitas cores pulavam para dentro e para fora das ondas enquanto corriam
com o barco.
– Veja como os peixes saltam ao nosso lado – observei. – São muitos. Eles
devem admirar como ela corre.
Nereus só riu.
– Você acha que é isso?
Irritada, voltei para pegar a cana do leme de Kenté para que ela pudesse
dormir um pouco. Eu desejei que ele parasse de falar em enigmas.
Daria sentou-se comigo.
– O que vamos fazer agora?
O cabelo dela estava emaranhado, e o início de uma queimadura de sol
marcava suas faces. Sua alegria me preocupava. Pelo que Markos me contara
de sua vida no palácio, a mãe dela provavelmente era uma figura vaga e
distante. Eu entendia sua falta de tristeza em relação a isso. Mas ela sem
dúvida acreditava que o irmão mais velho podia fazer tudo, e agora tinha se
convencido de sua fuga. Ela iria ficar arrasada quando suas esperanças
fossem despedaçadas.
– Bebemos agora? – Nereus piscou e sacou uma garrafa marrom do
interior de seu colete. Kenté tinha razão. Parecia que ela tinha estado em um
naufrágio, com o rótulo manchado de água e parcialmente removido. Ele deu
um gole da garrafa.
Eu revirei os olhos.
– Não é um pouco cedo para isso?
Ele passou a garrafa para Daria, mas eu a tomei de suas mãos.
– Ela tem oito anos!
– Ah. – Ele acenou com a cabeça para ela. – Eu tentei, menina. – Ele
guardou a garrafa de rum e caminhou pelo convés com o passo gingado de
um homem muito acostumado ao mar.
Daria se remexia no assento, com uma expressão obstinada no rosto.
Finalmente, eu dei um suspiro.
– Certo. Vá com ele. Só não saia de minha vista.
Mais tarde, naquela noite, enquanto navegávamos à sombra dos penhascos
na ilha, Kenté sentou-se no banco ao meu lado. Seu vestido listrado ainda
estava amarrotado, mas seu rosto estava úmido. Ela parecia bem refrescada.
– Como você está levando? – perguntou ela.
Eu contei a ela de minhas esperanças em relação a Fee.
– Talvez – eu disse – neste momento ela esteja subindo o Rio Hanu na
Cormorant.
– Talvez. – Ela apertou os lábios e olhou fixamente para seu colo. –
Carô… – ela hesitou. – E Markos?
Eu apertei a cana do leme até meus ossos doerem.
– O que tem ele?
– Você não me contou que ele a beijou.
– Eu não quero falar sobre isso.
– Você estava muito bonita naquele vestido. Você sabe, aquele que usava
quando ele dançou com você em nossa casa. Sabia que foi nesse momento
que ele começou a gostar de você?
Eu estava prestes a dizer que ela não estava lá quando dançamos, mas aí
lembrei que ela podia ficar invisível. Ela, porém, estava errada em relação a
Markos. Ele queria me beijar muito antes de jamais me ver de vestido.
Em segredo, estava satisfeita por não ter ficado lá para vê-lo ser atingido
por uma adaga ou ser alvejado e consumido por buracos de balas. Se isso
fazia de mim uma covarde, eu não me importava. Imagens passavam
desenfreadas pela minha mente. Markos caído no chão. Sangue seco em
cachos negros. Olhos azuis e vidrados.
Pare. Eu apertei os dedos sobre as têmporas. Não pensar nele era o ideal.
Mas eu não conseguia fazer isso, então me concentrei na última vez que o
vira. Um garoto com duas espadas diante de uma escada. Eu fechei os olhos e
o congelei naquele momento.
– Enfim – prosseguiu Kenté. – Talvez seja como diz Nereus. Talvez haja
uma chance.
Eu resfoleguei.
– Ah, não, você também?
Ela ergueu um ombro.
– É só que ele diz isso como se soubesse de alguma coisa.
A certa distância no convés, Nereus distraía Daria fazendo coisas com a
ponta de uma corda. Meu pai costumava fazer isso quando eu era pequena.
Meus olhos se embaçaram.
– Bem, ele não sabe – eu disse mal-humorada. – Como poderia?
Esperança só faria com que doesse mais.
Nereus assoviou.
– Navio à vista!
A embarcação estava ancorada perto da ilha de Enantios. Seus mastros
estavam nus; suas velas quadradas, dobradas. Eles deviam ter visto nossa
aproximação, pois uma flâmula branca de sinalização se desenrolou e
começou a subir a adriça da bandeira.
– Bandeira branca. – Estreitei os olhos em direção ao navio. – Quem quer
que sejam, eles querem conversar conosco.
– E se forem os Cães Negros? – gritou Kenté. – Pode ser um truque.
– Fiquem atentas – disse Nereus. Os músculos sob sua tatuagem de sereia
se tensionaram quando ele agarrou a amurada. – E preparem-se para fugir.
Era um belo navio de três mastros com boas linhas. Sua pintura o
identificava como o Antílope de Iantiporos. Sob o azul e dourado de
Kynthessa, ele exibia a própria bandeira. O vento a enrolara em torno de um
cabo, onde ela tremulava desanimadamente. O navio de três mastros era
obviamente um navio mercante, embora houvesse quatro canhões pequenos
montados em seu convés.
A brisa desfraldou a bandeira. Eu levei um susto.
Um barril, encimado por três estrelas.
CAPÍTULO
VINTE E TRÊS

Esperei sozinha na amurada de bombordo enquanto o bote do Antílope


remava até nós. Eu não pretendia deixar que os Bollards pusessem os olhos
em Daria até que eu tivesse certeza de que podia confiar neles.
Quando vi quem estava sentada no bote, conduzido por um tripulante
solitário, eu quase desejei que saíssemos correndo dali. Ela vestia uma túnica
dourada drapeada por baixo de uma capa curta, presa no ombro por um
broche dos Bollards. O sol reluziu em seus brincos quando ela ficou de pé e
segurou a escada que jogamos pela amurada. De fato, só minha mãe
conseguia manter tamanho ar de autoridade desprendida enquanto subia uma
escada bamba de corda.
– Imagino que você tenha uma explicação para como conseguiu adquirir
um cúter deste valor e qualidade – disse ela, enquanto subia pela amurada. –
Especialmente porque me parece que este é muito semelhante ao navio que
eu soube que Diric Melanos estava navegando recentemente.
Outra garota podia ter abraçado sua mãe. Nós olhamos uma para a outra
como felinos cautelosos andando em círculos.
– O que você está fazendo aqui tão longe? – disparei.
– Por acaso, estou à sua procura – disse ela. – Fui visitar o oráculo em
Iantiporos. Ele me disse que iríamos encontrá-la aqui. – Ela inclinou a cabeça
enquanto me estudava. – O emparca estava com você em Siscema, não
estava? Foi por isso que você agiu de maneira tão estranha. Ele era o jovem
mensageiro que apareceu para jantar.
– Não. – Eu dei um passo para trás. Minha mãe tinha consultado um
oráculo sobre mim? A despesa devia ter sido astronômica.
– Carô. Você pode me contar.
– Não acredito em você – sussurrei.
Ela sorriu, mostrando todos os dentes brancos.
– Eu sabia que não.
O tripulante terminou de guardar os remos. Eu o teria reconhecido
instantaneamente se não estivesse com um gorro enterrado na cabeça. Eu
conhecia todos os seus maneirismos. E reconheci seus ombros largos e o
aperto firme de suas mãos bronzeadas quando ele subiu pela escada de
cordas.
– Pai! – Eu me atirei sobre ele no momento em que passou pela amurada.
– Carô! O que isso significa? – Ele me soltou, mas continuou segurando
meus ombros. – Onde está Fee? Onde está a Cormorant?
– Desculpe. – Eu não tive coragem de ver seu rosto chocado quando ele se
deu conta do que eu tinha feito. – Desculpe mesmo. – Eu me afundei em seu
casaco, finalmente deixando que as lágrimas fluíssem.
– Carô... – Ele ergueu meu queixo. – Carô, você quer dizer que ela
afundou? Onde está Fee?
– Oh! – Solucei. – Não afundou. Eu tive de deixar a Cormorant em
Casteria. Os Cães Negros… Eu não consegui voltar para ela. E Fee saltou na
água para nos salvar. Eu… Eu não sei o que aconteceu com ela.
– Eu nunca viajei com uma tripulante tão encrenqueira quanto Fee – disse
meu pai, embora seus olhos permanecessem preocupados. – Eu não contaria
que ela estivesse perdida.
– Já eu gostaria de saber do cúter – disse minha mãe. – E do emparca.
Meu pai passou o braço de maneira protetora em torno de meus ombros.
– Você podia parar com isso por um minuto? Você não percebe que ela
está abalada?
– Olhe aqui, Nick, eu percorri todo o caminho até aqui…
– O emparca não está aqui – eu disse. Os dois se viraram ao mesmo
tempo. – Não está mais. – Minha garganta se apertou. – Markos… O
emparca… Ele está morto.
– Não, não está. – Minha mãe sacudiu a cabeça. – Os Cães Negros estão
tentando vendê-lo por um resgate a seus parentes em Valonikos.
Ela disse mais alguma coisa, mas eu não ouvi.
– Ah – eu disse, estupidamente.
Markos. Vivo. Eu não me permiti acreditar nela. Não era fácil assim.
Minha mãe e meu pai continuaram a falar; suas vozes eram um zumbido
incompreensível. Eu levei a mão à testa e tentei respirar.
Markos.
– Você tem certeza? – finalmente consegui dizer, tão tarde que os dois
olharam para mim, confusos. – Na última vez que eu o vi, ele estava lutando
contra dez piratas. – Engoli as lágrimas. – Ele trocou a própria vida pela da
irmã. – O resto da longa história foi derramado entre soluços entrecortados.
Meu pai me puxou contra seu casaco áspero de lã. Eu fechei os olhos e
relaxei no cheiro familiar e caseiro de suas roupas.
– Eu devia saber que você abriria aquela caixa – disse ele. – Você é uma
Oresteia.
– Ela é isso – murmurou baixo minha mãe. – Uma Bollard tem mais bom-
senso.
Eu levantei a cabeça.
– Mas como vocês sabem sobre… sobre Markos?
– Um mensageiro chegou a nossas dependências em Iantiporos com uma
carta. Ele tinha cavalgado durante a noite inteira em meio àquela tempestade
– disse minha mãe. – A carta deveria seguir por um paquete rápido para
Valonikos. Ela tinha o nome de Diric Melanos. Eles podiam tê-la posto
imediatamente em um navio e a enviado se, naquele momento, eu não tivesse
entrado em nossos escritórios.
– Deixe-me ver.
Ela a entregou, e eu examinei o conteúdo. Era como ela dizia. O capitão
Melanos tinha enviado um bilhete de resgate para os parentes de Markos.
Eu baixei a carta.
– Mas os Cães Negros tentaram matá-lo.
– Pessoas como os Cães Negros se vendem a quem pagar mais. – Pelo
movimento de suas narinas, era fácil ver o que minha mãe achava disso. –
Um homem como Melanos está pensando em Valonikos. Em como se diz que
na cidade livre o ouro corre como um rio. Ele se pergunta que tipo de família
vai abrigar um emparca deposto. E quanto eles estariam dispostos a pagar.
– Konto Theuciniano os contratou para matar Markos – eu disse. – Ele não
vai ficar louco de raiva quando descobrir que não fizeram isso?
– A ganância provavelmente atrapalha seu julgamento. Por que ser pago só
uma vez quando você pode receber duas vezes? – A boca dela se retorceu. –
Eu conheço Diric Melanos. É isso o que ele vai pensar.
– Você o conhece? – Isso era algo que eu não tinha ouvido antes.
– Nós já nos encontramos. Vou lhe dizer uma coisa: ele vai lamentar se
um dia ousar tocar em minha filha.
– Sua filha. – Meu pai sacudiu a cabeça. – Mas você estava disposta a
entregar o garoto direto na mão daqueles Theucinianos.
– Eu disse a você que nada tinha sido decidido ainda. – Minha mãe estava
com os maxilares rígidos. – Nós só estávamos discutindo nossas opções. Na
verdade, a situação mudou. Você pode se dar ao luxo de ter seus princípios
muito elevados, Nick. Eu, não. A Companhia Bollard deve preservar nossos
relacionamentos…
– Com usurpadores e assassinos – resmungou meu pai.
– Emparcas, reis e margravinas sobem e caem, mas o comércio continua.
A corrente leva todos nós. Você sabe disso. Não posso escolher um lado.
Esse emparca não é um de nós.
– Sim, sim, porque ou você é um Bollard, ou não é nada. Como se eu não
soubesse disso. – Meu pai esfregou o queixo com barba por fazer. – Ayah,
eu, pelo menos, sei o suficiente sobre isso.
Eu tive um pensamento horrível.
– E se essa carta for mentira? – Minha voz vacilou. – E se eles pretendem
apenas enganar a família de Markos?
Minha mãe repousou a mão em meu ombro.
– Se for uma armadilha, nós vamos descobrir logo.
– O que você quer dizer com isso?
– Como eu disse – o brinco em seu nariz brilhou quando ela sorriu, –, a
situação mudou. Nós vamos resgatar seu emparca.
Eu estudei seu rosto. Como uma negociadora de sucesso, ela podia
esconder uma mentira com facilidade. Mas meu pai parecia confiar nela.
– Nesse caso – eu disse, devagar –, tem uma pessoa que você deve
conhecer.
Kenté, Nereus e Daria emergiram pela escotilha.
– Eu tenho a honra de ser lady Daria Andela – a menina disse, com voz
infantil, mas formal. A barra irregular de sua camisola se agitava ao vento.
– Sua graça – minha mãe fez uma mesura.
– Andela? – perguntei, surpresa. – Esse é seu sobrenome? É o de Markos,
também? – Subitamente, eu me lembrei do homem que nos atacara na casa
segura em Siscema. Vocês têm os Andelas por trás de vocês, podem ter
certeza.
– Por que não seria? – Daria estreitou os olhos. – Você está dizendo que
não sabia o sobrenome dele?
Eu me senti um pouco envergonhada.
– Ele nunca disse.
– Se você não sabe nem o sobrenome de um rapaz – ela disse, empinando
o nariz de modo atrevido – eu acho que você não deve sair por aí bei…
– Psst! – eu disse, encobrindo sua voz, mas meu pai me lançou um olhar
desconfiado mesmo assim.
Minha mãe assoviou para Kenté.
– Bom, seus pais, sem dúvida, vão gostar de saber que você não está morta
em uma vala em algum lugar. O que você estava pensando quando fugiu
desse jeito? – Ela avistou Nereus, e sua voz mudou. – Identifique-se
imediatamente, senhor. Pois, se o senhor estava na história de minha filha, eu
não me lembro.
– Você – disse meu pai com voz rouca, e a cor se esvaiu de seu rosto.
Nereus sorriu para ele.
– Com certeza você não achava que ela seria deixada para lutar sozinha.
– Eu… Não. – Meu pai olhou para mim, em seguida afastou o rosto
rapidamente. Ele parecia preocupado. – É só que… Não é você quem eu
esperava.
– A corrente nos leva à sua mercê – disse Nereus. – Como seu povo
costuma dizer. Não é verdade?
Eu olhei de um lado para outro entre eles, desnorteada. Então, meu pai
tinha sido o responsável por enviar Nereus. Mas como…
Fui tomada por uma compreensão repentina. O deus no fundo do rio.
De algum modo, eu sabia que essa era a resposta. Ela explicava tudo:
como Nereus tinha aparecido de forma misteriosa no Vic, seus modos
reticentes e as referências enigmáticas a ter trezentos anos de idade. Nereus
tinha mencionado os Bollards, mas, pensando bem, ele na verdade nunca
admitiu conhecer minha mãe.
– Pai… – Comecei, ansiosa para ouvir a história inteira.
Ele sacudiu a cabeça abruptamente e olhou de lado para minha mãe.
– Não aqui. Não agora.
Para minha irritação, ele se recusou a dizer qualquer outra coisa. Nereus se
ofereceu para ficar e vigiar o Vic enquanto Kenté, Daria e eu íamos no bote
até o Antílope, o que significava que eu também estava impedida de
questioná-lo sobre isso. Não que ele fosse capaz de dar uma resposta direta.
Nós jantamos no conforto das cabines bem equipadas do navio dos
Bollards, onde o cozinheiro de minha mãe tinha preparado massa com
mariscos em um delicado molho de vinho. Eu praticamente a devorei.
Minha mãe abriu um mapa sobre a mesa do capitão e o prendeu com um
peso de papel de latão gravado com o brasão dos Bollards.
– É isso. – Eu pus o dedo no mapa. – A Ilha Katabata.
– Você tem certeza de que foi isso o que eles disseram? – Minha mãe
olhou rapidamente para mim.
– Positivo. – Eu me lembrei da noite embaixo das docas. – Um dos cães
negros disse que votava para que voltassem para Katabata.
– Eu conheço essa ilha. Há um forte abandonado com uma baía ao norte…
Aqui – disse o capitão do Antílope, um homem forte com suíças compridas. –
É provavelmente onde eles estão escondidos. Fica apenas a algumas horas de
navegação daqui. Nós podíamos cair sobre eles no escuro. Surpreendê-los.
– Não – eu disse, e todos eles olharam para mim. – O homem das sombras,
lembram?
Minha mãe retorceu um canto da boca enquanto me observava
atentamente. Imagino que ela não estivesse acostumada a que eu falasse.
– Vamos atacar ao nascer do sol, então.
Kenté congelou com um garfo de massa a meio caminho de seus lábios.
Ela sacudiu a cabeça de maneira quase ilegível.
– O amanhecer pode não ser suficiente – eu disse. – Meio-
-dia é a hora em que ele estará mais fraco. É a hora mais clara do dia. –
Diante do olhar curioso de minha mãe, acrescentei: – Markos me contou
muitas coisas sobre homens das sombras.
Markos. Era estranho ousar ter esperança. Pela primeira vez, comecei a
acreditar que poderia realmente tornar a vê-lo.
Depois do pôr do sol, nós voltamos de bote para o Vic. Kenté olhava
fixamente para a escuridão com o braço em torno de Daria, cuja cabeça não
parava de balançar. Eu puxei meu remo direito para virar o bote em direção à
lanterna do Vic. Apenas dois dias antes, nós fugíamos desse cúter, mas, no
dia seguinte, eu iria navegá-lo para a batalha. Um impulso de ansiedade
dançava em meu estômago.
Enquanto eu remava por baixo da popa alta do Antílope, vozes detiveram
meus remos. Luz de candeeiros escapava entre as cortinas das janelas alguns
metros acima. Eu prendi a respiração.
– Você não pode estar querendo mesmo deixar que ela mantenha aquele
navio.
– É escolha dela, Tamaré – disse meu pai. – Ela recebeu uma carta de
corso da margravina. Ela está autorizada a capturar presas.
– Ela não tem idade.
– Uma carta de corso é uma carta de corso. – Escutei os altos e baixos da
voz de meu pai. Era estranho eu ter passado tantos dias me perguntando se
algum dia tornaria a vê-lo. – É o navio dela. Nereus vai ajudá-la a navegá-lo.
Na excitação dos planos de batalha, eu tinha me esquecido da conversa
enigmática de meu pai com Nereus. Não é você quem eu esperava.
Desesperada por respostas, eu me esforcei para ouvir mais.
– Claro que você não vai me dizer de onde o conhece – suspirou minha
mãe. – Ah, vá em frente. Você vai mesmo fazer o que quer, como sempre fez.
– Um toque melancólico surgiu na teimosia de sua voz. – Sei que eu lhe dei a
guarda dela, mas ela ainda é minha filha.
– Claro que eu sei disso – murmurou ele. – Venha para a cama agora,
garota.
Remei apressada para longe da janela, porque, de verdade, quem queria
ouvir aquilo?
Depois de colocar Daria em seu beliche, encontrei Kenté sentada de pernas
cruzadas em cima da escotilha dianteira. Eu podia não tê-la visto no escuro se
ela não estivesse murmurando meio alto para um colar. Eu o reconheci do
baú no compartimento de carga, que ela estava revirando naquele dia mais
cedo enquanto eu navegava. Em torno de seus pés, havia vários outros
pingentes e medalhões. Pelo menos um deles estava quebrado.
– O que você está fazendo?
– Tentando colocar um pedacinho de noite dentro deste pingente – Ela
afastou a bugiganga para o lado e esfregou a testa suada. – O que parece que
eu estou fazendo?
Deliberadamente, não respondi sua pergunta, porque parecia que ela
estava falando com um objeto inanimado.
– Kenté, por que você simplesmente não diz a seus pais que quer ir para a
Academia em Trikkaia?
– Eles dizem que eu sou sua última e única esperança. – Ela deu um
suspiro. – Você sabe como eles ficaram aborrecidos por causa de Toby. – O
irmão de Kenté era professor de matemática, o que não era uma coisa muito
Bollard de ser.
– Eu me pergunto se você está com medo… – Eu parei. – Eu não quis
dizer medo.
– Claro que estou, Carô… – Ela mordeu o lábio, revirando o pingente nas
mãos. – Você acha que estou fazendo a coisa certa? Essa magia… Ela é toda
baseada em escuridão e em ardis. – De algum modo, eu sabia que ela estava
pensando em Cleandros, que tinha traído seu emparca. – Talvez seja algo
com o que nós não devêssemos brincar.
Eu me lembrei do que Markos me disse na noite em que nos conhecemos.
– Acho que é o que uma pessoa traz no coração que a torna má. A magia é
apenas uma habilidade. Uma ferramenta.
Ela assentiu com a cabeça, embora não parecesse muito con-
vencida.
– Isso vai parecer idiota, mas… Tenho medo de sair de casa. Porque se eu
não for isto… – Ela apontou para o broche que prendia sua manta de lã,
gravado com o barril e as estrelas – ...então, quem eu sou? Se não sou isto,
em quem posso me transformar?
Sem resposta para isso, eu a deixei com seus experimentos e caminhei
pelo convés. O céu ali parecia maior, como um cobertor jogado sobre nós. Os
sons noturnos do Vic – tábuas rangendo, ondas quebrando e a vibração tensa
dos cabos – eram dolorosamente parecidos com os da Cormorant; ainda
assim, havia um vazio. No início, eu não consegui identificá-lo. Então,
percebi. Não havia sapos, nem grilos. Nenhum som das pequenas coisas.
Eu me apoiei nos cotovelos sobre a amurada. Abaixo de mim, a água
negra tranquila se agitou.
Uma pálpebra se abriu.
Eu cambaleei para trás. O olho era do tamanho da minha cabeça. Ele
brilhava à luz da lanterna, centímetros abaixo da água. Havia algo ali
embaixo do cúter.
Algo grande. Algo vivo.
– Ayah, você percebeu, não é? – Nereus sentou-se em um barril. A
extremidade acesa de seu cachimbo brilhava, laranja. – Ela a está seguindo há
dias.
Ele não podia estar dizendo que aquele era o mesmo drakon que
acompanhara o Vic na escuridão da noite durante a tempestade, podia? Aí, me
lembrei daquele dia no Rio Hanu, quando Fee sibilou para alguma coisa na
água. “Ela”, repetira Fee inúmeras vezes.
– Por que um drakon iria me seguir? – Minha boca estava seca.
– Ah – disse ele. – Você está acostumada com o rio. O mar é mais
profundo. Escuro. Cheio de segredos. O mar guarda as coisas que toma. As
profundezas estão cheias de esqueletos de navios e de cidades. Ayah, e de
homens. Você conhece a história de Arisbe Andela?
– Amassia Perdida. – A história sobre a qual Markos e eu conversamos.
Era difícil acreditar que aquilo tinha acontecido apenas três dias antes. Aí,
mais uma coisa me ocorreu: – Arisbe Andela?
– Ayah, esse era o nome dela.
– Engraçado – eu disse. – É o nome de Markos e Daria, também.
Então Markos estava falando a verdade quando disse que a lenda era
baseada na história de seus ancestrais. Como era estranho que, dentre todas as
pessoas, Markos fosse um descendente de uma princesa pirata.
Nereus bateu seu cachimbo.
– Arisbe tinha um irmão chamado Nemros.
– O Saqueador. Meu pai costumava me contar essa, também. O pirata mais
temível que já navegou o Mar Interior.
– Ayah, é esse homem. O velho Nemros, bem, havia três coisas que ele
amava. Velejar e o clamor da batalha.
– Isso são duas coisas – eu disse.
– Não interrompa. A terceira era… – Algo em sua voz fez lembrar tardes
preguiçosas de verão de outrora. – Diversão – disse ele, por fim. – A dança
do violino. O gosto de vinho, de rum e de mulheres. – Ele deu uma baforada
no cachimbo. – Naquele último dia fatídico, a deusa do mar disse a Nemros
que ela pretendia se vingar. Ele ouviu seu alerta, embarcou em seu navio e
escapou da tempestade. Quando o sol finalmente surgiu entre as nuvens na
terceira manhã, não se via sinal da ilha de sua família. Nenhuma torre branca.
Nenhuma pereira. O mar tinha engolido Amassia. Então, o que ele devia
fazer? Pois ele era um homem sem pátria. Assim, Nemros a procurou.
– Quem?
– Ora, aquela que vive nas profundezas. Quem mais? – Ele apoiou o
cachimbo no joelho e prosseguiu. – Mas o oceano era esperto, era sim, pois
ofereceu a ele uma barganha. “Assuma o lugar de sua irmã”, disse ela. “Sirva
a mim como ela devia ter feito, e vou transformá-lo no flagelo destes mares.
Vou dar a você um navio mais rápido que o próprio vento, e mais riqueza em
ouro do que você pode possivelmente imaginar. Sirva-me até a morte, ayah, e
depois. Então, e só então, você vai ter a cidade de sua família de volta.
– Mas Amassia está perdida – eu disse. – Ela afundou sob o oceano.
Ninguém nunca mais tornou a vê-la.
– Ah, eu disse a você que ela era esperta. – Ele agitou o dedo para mim. –
Agora, ela não disse quando, disse? O pirata Nemros tornou-se servo dela.
Ele afundou navios e saqueou cidades sob seu comando. E, ah, sim, ele se
tornou rico e famoso para além de seus sonhos mais impensados. – Ele fez
uma pausa. – Entretanto, ele nunca mais foi livre. Ele nunca mais teve um lar.
– Não entendo. O que isso tem a ver com o drakon?
– Nada. – Ele riu, enquanto eu lutava para resistir à tentação de derrubá-lo
daquele maldito barril. – Mas há alguns marinheiros que dizem que o drakon
é apenas seu destino chegando até você.
Havia mais uma coisa que eu precisava dizer.
– Nereus… – eu hesitei. – Você disse que ele a serviu além da morte.
Você quer dizer…
Ele ergueu as mãos para me interromper.
– Não diga mais nada, amor. Pois não vou responder.
Eu me perguntei se essa não era uma resposta suficiente.
CAPÍTULO
VINTE E QUATRO

Eu estava parada no convés do Antílope, observando, de olhos semicerrados,


o sol nascente. Acima de mim, uma vela quadrada se desenrolou, e o segundo
oficial gritou ordens, enquanto os marinheiros corriam para ajustar os cabos.
Um homem puxando um carrinho cheio de balas de canhão me afastou ao
passar, empurrando meu cotovelo.
– O que você quer dizer com nós não devemos lutar? – perguntei.
– Carô, seja razoável – disse minha mãe. – Lembre-se, você mesma disse
que pode ser uma armadilha. Eles querem Daria e querem seu cúter de volta.
– Com seu rosto implacável, ela nunca se parecera tanto com uma estátua
clássica de bronze. – Eu ousaria dizer que eles não estão muito apaixonados
por você depois de tudo isso.
– Pai…
Ele enfiou as mãos nos bolsos.
– Talvez seja melhor fazer o que sua mãe diz. Sei que você pode lutar, mas
precisamos pensar na menina.
Eu olhei para o Vic, iluminado pelo brilho da manhã na água. Quando
Nereus içou sua adriça, a verga da vela subiu até o alto. Ele queria batalha.
Era para isso que ele tinha sido construído. Ela puxava suas amarras como
um cavalo forçando suas rédeas.
– O Vic é mais rápido que o Antílope – eu disse. – Ele tem mais canhões.
– Ele também é menor – disse minha mãe. – E você não é uma capitã
experiente.
Ela e meu pai se entreolharam, enquanto eu continha minha irritação. De
todos os momentos possíveis, eles tinham escolhido aquele para estar de
acordo. Outras tentativas de fazer minha vontade jogando um deles contra o
outro foram facilmente desviadas. Eu remei ruidosamente de volta para o Vic,
praguejando baixinho.
Enquanto Nereus me ajudava a subir a escada de cordas, Kenté saltou da
porta da escotilha.
– Qual o problema? – gritou ela. Eu devia estar com uma expressão
especialmente assassina.
– Nós não vamos participar da luta – respondi com raiva. – Nós temos seis
canhões de quatro libras. São dois a mais que o Antílope. Droga. – Eu andei
de um lado para outro no convés. – Quer dizer, quem eles acham que tem
enfrentado os Cães Negros esse tempo todo? Eles nem conhecem Markos. –
Kenté abriu a boca, sem dúvida para observar que minha mãe o conhecera em
Siscema. – É diferente. Você sabe que é diferente.
– Uma mudança infeliz na situação. – Nereus olhava fixamente para o
horizonte. – Pois ele não tem velas, pólvora e munição? Ele não é construído
para abrir buracos em qualquer navio que ouse se opor a ele, e que os deuses
os amaldiçoem por tentar? – Ele inspirou o ar salgado. – Este é um dia para
batalha.
Ele entendia. Eu queria rasgar as ondas, rápida como o próprio vento. Eu
queria carregar os canhões e ver aquela maldita Alektor explodir em pedaços.
– Nós devemos fazer a volta na ilha e esperar pelo Antílope em um ponto
de encontro – eu disse. – Minha mãe vai dar três disparos de canhão. – Eu
cerrei os punhos. – Quando for seguro.
Eu não sabia mais nada sobre segurança.
Pouco antes de meio-dia, chegamos à ilha. Ancorei o Vic a certa distância
da costa, coberta de vegetação, enquanto o Antílope navegava ao seu redor
para lançar seu ataque ao forte dos Cães Negros. Mexi distraidamente no
lábio enquanto ouvia o estrondo distante de canhões, e o disparo eventual de
um mosquete ecoar ao longe.
– Com cinco, onze. – Kenté examinou os dados no convés. – Ganhei de
novo.
Estávamos jogando havia apenas uma hora, e eu já tinha perdido dois
talentos de prata para ela e um para Daria, que estava sentada de pernas
cruzadas ao lado de Nereus. Seu cabelo negro caía por suas costas em duas
tranças complicadas. Eu desconfiava que ela gostava deles dois mais que de
mim: de Kenté, porque podia trançar seu cabelo, e de Nereus, porque ele a
deixava fazer o que quisesse. Eu não ligava. Tudo o que me importava
naquele exato momento era a batalha. E Markos.
Como eles podiam jogar enquanto os canhões trovejavam? Eu estava
nervosa demais para ficar sentada. Meu lábio começou a sangrar, e o gosto de
metal enferrujado apenas me deixou mais ansiosa.
– A água está muito agitada. – Kenté olhou para trás. – Isso está me
deixando nervosa. Não parece que tem uma tempestade chegando. O céu está
perfeitamente limpo.
As ondas estavam fortes. Eu me perguntei se o drakon estava se movendo
de um lado para outro abaixo delas, agitando a água com o corpo ondulante.
Embora eu não o visse, senti que ele estava perto.
Eu pulei de pé.
– Não consigo suportar isso. – Segurei os cabos de minhas pistolas gêmeas
e comecei a andar de um lado para outro. – Por que está demorando tanto?
Só porque eu estava com raiva de meus pais, não significava que eu
quisesse que algo acontecesse com eles. A linha da costa estava
enlouquecedoramente imóvel. Se os Cães Negros tinham batedores à espreita
nas árvores, eu não conseguia vê-los, pois a ilha abrigava uma floresta densa.
De qualquer modo, não havia lugar nenhum de onde lançar um barco –
aquele lado da Ilha Katabata era uma parede de pedras de três metros de
altura que mergulhava direto no oceano.
Um canhão soou como trovão, o que fez com que meus ombros dessem
um salto.
– Você precisa encontrar alguma coisa com que se ocupar. – Kenté
sacudiu o copo dos dados. Eu percebi que ela estava usando três pingentes de
comprimentos variados em volta do pescoço.
Saquei as duas pistolas e decidi aprender a girá-las, do modo que vira
homens durões fazendo para se exibirem em tavernas. Eu girei a direita em
torno do polegar, e ela caiu barulhentamente no chão.
Kenté se encolheu.
– Outra coisa.
Eu me atrapalhei e tornei a deixar a pistola cair. Nesse momento, eu
percebi.
– Os canhões pararam.
Dez minutos se passaram. Depois, vinte. Depois, uma hora. E, aí, eu
soube.
O Antílope não estava a caminho.
Eu tomei minha decisão.
– Içar a vela principal e a de estai. Preparar os canhões. – Eu estava bem
certa de que isso era algo que as pessoas diziam.
– Mas cuidado – alertou Nereus, enquanto soltava as adriças. Eu me
perguntei se ele sabia de algo que nós não sabíamos.
– Tudo o que me importa agora é se você sabe carregar esses canhões! –
retruquei bruscamente.
Ele sorriu e mostrou o buraco entre os dentes.
– Ayah, eu sei.
Nós navegamos em torno da ilha. Kenté engasgou em seco.
Pontal de Hespera, foi tudo em que consegui pensar, porque era como
aquilo parecia: fumaça e fogo e barris boiando na água. Tanto a Alektor como
o Antílope estavam muito adernados, e destroços se espalhavam por toda
parte. A Alektor tinha um buraco enorme no casco.
Eu tinha um buraco enorme no coração.
Nós nos aproximamos. O forte dos Cães Negros ficava em uma colina
rochosa acima da baía, cercado por um muro de troncos pontiagudos. O lado
esquerdo estava parcialmente desmoronado, mas não da luta daquele dia, pois
trepadeiras emaranhadas cresciam sobre ele. Uma torre de pedra se erguia do
outro lado – antes, talvez fosse um farol ou torre de vigia. O sol se refletiu em
um canhão no topo, mas não parecia haver ninguém em sua operação – o que
não era surpresa, pois a torre não parecia muito estável. Parte dela jazia em
uma pilha fumegante.
Daria se encolheu na saia de Kenté. Eu soltei a cana do leme e fui até a
amurada, esquecida de tudo menos de meus pais. Com os olhos apertados,
observei o volume flutuante do navio dos Bollards. Suas velas rasgadas se
arrastavam pela água, e chamas lambiam seu casco.
Não havia nenhuma pessoa, viva ou morta, à vista.
– Nós devíamos ter participado dessa luta! – eu disse com a voz
embargada. – Os Cães Negros não tinham um navio que pudesse tocar o Vic.
– Não precisavam de um. – Nereu apontou para o forte com a cabeça. –
Artilharia naquela torre. Aquele deve ser um canhão de trinta e seis libras. E
veja os de nove libras compridos nas paliçadas.
– Eles não podem ter matado todo mundo!
– Acho que não. – Ele apontou para os destroços fumegantes. – Os botes.
Vejam.
Todos os botes do Antílope tinham sido lançados, e os da Alektor também.
Mas eu não vi nenhum deles em meio aos destroços flutuantes, nem pedaços
deles. Nenhuma tábua. Nenhum remo.
Eu engoli em seco.
– O que isso significa?
Nereus cuspiu pela amurada.
– Nada bom. Provavelmente eles foram feitos prisioneiros. No interior do
forte.
– Pode ser o contrário – sugeri. – Talvez os Bollards tenham aprisionado
os homens da Alektor. Talvez eles tenham remado até a praia por iniciativa
própria para atacar o forte em terra.
– Você está escutando barulho de luta?
Todos ficamos em silêncio. Eu ouvi o som das ondas contra madeira. O
crepitar de fogo. O vento agitando as árvores.
– Não – sussurrei e, com essa palavra, foram-se minhas esperanças.
– É melhor nós mudarmos de rumo. – Nereu deu as costas para os navios
fumegantes.
– E simplesmente deixá-los?
– A Alektor não afundou aquele navio de três mastros. Foram os canhões
do forte. Você quer ficar aqui parada ao alcance dele? Isso é implorar para
morrer.
– Não me importa! Temos de tentar. – Tudo o que importava estava
naquela ilha. Nós estávamos muito perto. Apertei os dedos nas têmporas para
acalmar o tremor em meu interior.
– Uma vela! – exclamou uma voz infantil. Daria subiu no pé do mastro. –
Vejam, uma vela!
A nova embarcação era elegante, com panos brancos enfunados à frente de
seu mastro único, e canhões reluzindo negros sob o sol. Àquela distância, eu
não conseguia ler seu nome, mas eu a reconheci. Era a chalupa Conthar.
Os barqueiros estavam ali.
– Rápido! – gritei. – Antes que eles disparem!
Kenté parou de agitar os braços.
– Por que eles iriam disparar?
– Eles vieram aqui atrás do Vic, lembra? Corra lá embaixo e pegue uma
bandeira branca. Se não conseguir encontrar uma, um lençol, o mais rápido
possível.
Eu ergui o lençol no mastro e esperei, apertando a amurada com tanta
força que meus ossos doíam.
Quando a Conthar se aproximou, a voz de Thisbe Brixton ecoou ao longe.
– Não atirem! Eu disse: não atirem! Aquela é a menina Oresteia.
Depois de recuar para o sul da ilha, a Conthar mandou dois botes até nós,
e nós nos reunimos na mesa comprida do Vic para um conselho de guerra.
Era estranho ver todos aqueles barqueiros amontoados na coberta do cúter
depois de dois dias com apenas nós quatro. A cabine cheirava a lama e
fumaça de cachimbo. Senti um nó na garganta, pois isso só fazia com que eu
sentisse mais falta de meu pai.
Eles não eram todos homens. Três deles eram homens-sapo; e quatro,
mulheres. Eu conhecia Thisbe Brixton e a mulher de nariz afilado ao lado
dela, que devia ser sua imediata. Elas pareciam as únicas lutadoras entre as
mulheres. As outras eram esposas de barqueiros, imaginei, que tinham
perdido suas casas depois do ataque em Pontal de Hespera.
– Esperem um minuto – disse um homem de cabelo louro e comprido,
depois que expliquei as circunstâncias que haviam nos levado até ali. – Eu
vim afundar esse navio. Vim aqui só para isso. E então? – Ele se virou para
os outros. – A filha de Oresteia tem este cúter, e metade daqueles Cães
Negros com certeza deve estar morta. – Ele me deu um olhar especulativo. –
Embora eu não veja a utilidade de um cúter de contrabando para uma menina
tão nova.
– Você quer ver a carta de corso? – Eu a saquei de meu colete e a joguei
sobre a mesa.
– Volte para Siscema – disse ele para mim. – Consiga uma oferta de
resgate. Se eles estiverem vivos, os Bollards, sem dúvida, vão pagar.
– Nicandros Oresteia está lá também, ou vocês estão esquecendo que ele é
um de vocês? – retruquei.
– Nós pertencemos ao rio. Eu não gosto disso aqui fora. – Ele olhou para o
capitão Krantor. – Vocês sabem o que eu tenho dito. Eu acho que Nick
Oresteia fez sua escolha há vinte anos, quando foi se meter com aquela
mulher. Os Bollards não são como nós. – Ele cuspiu no chão. Eu me irritei
com aquilo, mas, sem dúvida, os Cães Negros tinham deixado coisas piores
no chão do Vic. – Deixe que eles os resgatem. Eu não quero tomar parte
nisso.
Levei a mão à pistola. Eu nem sempre concordava com os Bollards, mas
não ia deixar que fossem insultados por pessoas como ele.
Ele se encostou na cadeira.
– Essa garota não se parece com Nick. Portanto, como podemos sequer
saber que ela é dele?
Eu me lancei por cima da mesa e o atingi no rosto com minha pistola.
Sangue escorreu de seu nariz e espirrou por toda parte. A raiva pulsava em
meus ouvidos. Lá fora, uma onda bateu com fúria contra a vigia, e água
escorreu pelo vidro. Eu senti vagamente Nereus e o capitão Krantor
segurarem meus braços e me puxarem para trás.
Thisbe Brixton riu.
– Ah, não sei, Dinos. Para mim, ela se parece muito com Nick, não é?
O barqueiro de cabelo louro apertou o nariz e murmurou uma torrente
constante de palavrões.
Perry Krantor se levantou, e os barqueiros mergulharam em um silêncio
respeitoso.
– Eu não me importo com a sucessão akhaiana – disse ele. – O rio, ele
passa por Akhaia e Kynthessa, e ele não liga muito para quem governa a
terra. E nem eu, pois eu pertenço ao rio.
Todos ali estavam atentos a ele. Eu prendia a respiração.
– Mas eu não gostei de esse emparca mandar os Cães Negros queimarem
nossos barcos. – Ele gesticulou para o pergaminho amassado. – Eu não gosto
desta história de carta de corso. Isso foi chantagem desde o começo.
O homem de idade acariciou a barba.
– Em minha opinião, nós já estamos dentro disso, querendo ou não. Eu não
vou com Carô por me importar com qual homem será o emparca de Akhaia.
Eu vou por Nick. – Ele apontou para mim com a cabeça, e meus olhos, de
repente, se encheram de lágrimas. – E por minha Fabulosa.
– Que bom para você – murmurou outro homem. – Mas eu tenho família.
Esses cães derrotaram o navio dos Bollards. Você querer tomar aquele forte
com algumas crianças é seu direito, Krantor. Eu voto para irmos para casa.
Thisbe Brixton cruzou os braços atrás da cabeça. Sua trança comprida caía
de um gorro de linha.
– Não ponha todos nós no mesmo monte que você, Hathor. Você não tem
ideia do que seja uma luta. – Ela piscou para mim. – Eu vou correr o risco
junto com essas garotas. Nick era meu amigo quando muitos de vocês
achavam que uma mulher não tinha direito de capitanear uma barca. Eu me
lembro de meus amigos.
Todo mundo começou a gritar ao mesmo tempo. Fiquei arrasada. Tinha
sido um belo discurso, mas não o suficiente. Meu pai estava naquele forte.
Cada minuto que desperdiçávamos ali, eles o podiam estar torturando ou a
minha mãe. Eles podiam mudar de ideia e decidir matar Markos.
Devia haver algo que eu pudesse dizer que atingisse os barqueiros. Algo
que os fizesse escutar.
Eu respirei fundo e me lembrei do velho do barco de pedágio, na ponte de
Gallos. Como ele me mostrara a pistola no sobretudo. Nós sabemos cuidar do
que é nosso. E então eu soube.
– Ei! – gritei. Eles continuaram a discutir. – Ei!
Eu lancei meu punhal akhaiano no ar. Ele se cravou, oscilante, no centro
da mesa. Isso chamou a atenção deles. Subi em uma cadeira.
– Eu tenho uma coisa para dizer aos barqueiros. E barqueiras – gritei,
captando o olhar da capitã Brixton. – Eu sou Caroline Oresteia, imediata da
Cormorant, e, agora, capitã do Victorianos. – As palavras pareceram
estranhas em minha boca, e ainda assim eram verdade. Eu fixei os olhos no
barqueiro de cabelo louro. – E qualquer um que ache o contrário pode tentar
tomá-lo, se quiser. Eu tive muitas oportunidades de conversar com Markos
Andela – prossegui. – Ele, que seria o emparca de direito de Akhaia, antes de
ser levado pelos Cães Negros. – Eu tinha entrado no tom do povo do rio.
Achei que meu pai teria aprovado. – Ele lamentava que pessoas tivessem
morrido por sua causa, mas queria fazer uma restituição. Ele pretendia
reembolsar todos os que perderam bens em Pontal de Hespera. Markos é um
homem bom – eu disse, ousando sentir um fiapo de esperança. Eles estavam
ouvindo. – E meu pai é um homem bom. Não estou lhes pedindo que façam
nada mais do que ele faria por vocês. E, ah, sim, ele faria! Ele não tirou você
da cadeia daquela vez, Hathor? – Eu avistei outro homem no grupo. – E não
foi ele quem ajudou você a lixar e pintar a Daisy? E, é claro, eu não preciso
mencionar que os Oresteias e os Krantors têm navegado juntos desde o dia
dos bloqueios. Nós sabemos cuidar do que é nosso. Eu vou salvar meu pai,
no Vic – anunciei. – E qualquer um que quiser pode navegar comigo.
– Ayah! – gritou o capitão da Daisy. – Nós podemos não ser lutadores,
nem estar armados até os dentes com mosquetes e canhões, mas somos
barqueiros livres. Vamos mostrar a esses cães que não vão conseguir acabar
conosco!
– Isso é o que vocês pensam – ergui a voz acima do clamor. – O Vic tem
armas suficientes para todos vocês, e nós não nos importamos em dividi-las.
Com os vivas que se seguiram, eu soube que tinha vencido.
– Capitão Krantor – chamei, revirando meu bolso. Eu saquei a chave do
compartimento de carga e a joguei por cima das cabeças da tripulação. – Abra
esse porão, por favor.
O homem mais velho a pegou e me fez uma continência provocadora.
– Ayah, Oresteia.
Enquanto os barqueiros distribuíam e carregavam os mosquetes, a capitã
Brixton me chamou.
– Quem é esse? – Ela acenou com a cabeça para Nereus.
– O nome dele é Nereus. – Eu não sabia ao certo o que dizer. – Nós o
conhecemos… em Casteria.
– Uhmmm… – Ela o observou por cima de sua garrafa de bolso. – Esse aí
sem dúvida tem a expressão. Tem o dedo de alguém, nele.
– Você quer dizer o deus? – perguntei. Ela tinha acabado de confirmar
minhas suspeitas.
– Claro, e um peixe não sabe quando um tubarão vem comê-lo?
Às vezes, eu odiava os deuses. Todo mundo que era associado a eles
falava em rodeios, de um jeito que eu achava muito irritante.
– Então, ele é um tubarão?
– Foi isso o que eu disse? – Ela sorriu. – Não ligue para mim.
Nereus se juntou a nós e se apoiou sobre a mesa. Ele inclinou a cabeça em
direção a Thisbe Brixton.
– Prima – ele disse, respeitosamente.
– Vocês são parentes? – perguntei.
Eles trocaram olhares divertidos enquanto eu tinha mais pensamentos
assassinos sobre os deuses.
– Tem alguma coisa nesta ilha – refletiu Nereus, examinando o mapa
aberto na mesa do Vic. – Ela quase me parece familiar. Eu me lembro…
desse forte. Só que, na época, ele não estava tão destruído. – Ele sacudiu a
cabeça. – Não sei.
Eu me debrucei para frente apoiada nos cotovelos.
– Você se lembra do que estava fazendo? Quando veio à ilha?
– Eu… – Suas sobrancelhas se franziram e ele delineou a ilha em forma de
feijão sobre o mapa. – Eu estava contrabandeando rum. Sim. Muito tempo
atrás, em uma época esquecida. Mas, na época, eles a chamavam de…
– Do quê? – perguntou Thisbe, bruscamente.
– Deixe isso para lá – ele disse, com os olhos brilhando. – Você apenas
mexeu em minhas lembranças, só isso. Escutem, no meu tempo, havia uma
baía secreta no lado leste da ilha. – Ele apertou o dedo sobre um símbolo. –
Aqui.
Eu olhei para o local com ceticismo.
– Essa marcação é para rochas.
– Parece, não é? Esse é o brilho da coisa. Há um ponto, um ponto muito
profundo, onde um capitão pode passar entre as rochas e ancorar em uma
enseada segura e escondida. – Ele sorriu. – Se ele ou ela conhecer o lugar.
– E você? – perguntou Kenté. – Conhece o lugar?
Ele piscou.
– O que dizem? Querem resgatar um emparca?
Enquanto Nereus conduzia o Vic em direção a sua baía oculta, eu me
preparava para a batalha. Ao meu lado, Thisbe Brixton carregava sua arma
gravada com flores, que eu tanto admirava, enquanto eu carregava minhas
próprias pistolas de duelo.
– Como vocês chegaram aqui, afinal? – perguntei a ela.
– Nossa história é bem curta. – Ela pôs a pistola sobre a mesa e tirou a
rolha de sua garrafa. – Nós vasculhamos o Kars à procura desses Cães
Negros só para saber que o havíamos perdido por três dias. Então, demos a
volta e voltamos para o sul; o deus no rio estava conosco, sem dúvida, pois
quando fizemos a volta para entrar em Siscema, encontramos um navio dos
Bollards. A capitã disse que tinha visto seu pai. E nós ficamos surpresos,
também, porque a última vez que nós o havíamos visto ele estava preso em
Pontal de Hespera.
Ela tomou um gole.
– Então, eu pergunto onde está Nick. “Desceu a costa atrás daqueles Cães
Negros”, diz ela. “Cães Negros!”, digo eu. “E não são eles que temos
perseguido esse tempo todo?” A meio dia de navegação de Iantiporos, um de
nossos homens-sapo avistou suas velas, por isso aqui estamos.
– É verdade o que você disse? – perguntei. – Sobre os homens implicarem
com você por ter sua própria barca? Minha avó foi capitã de nossa barca.
– Imagino que ela navegasse com o marido como imediato, ou o filho.
Sabe, eu não tenho homens em minha tripulação. – Ela sorriu para a
companheira de barca. – Ayah, que serventia os homens teriam para mim?
Meu rosto ficou avermelhado. Eu não sabia daquilo, embora fizesse
sentido.
– Não dê nenhuma importância a Dinos. Ele é um homem estúpido, se só o
que ele consegue ver é… Bom. – Ela bateu na mesa. – Você tem os olhos e o
cabelo avermelhado de seu pai. Além disso, seu rosto se parece com o de sua
avó Oresteia. Você não vai se lembrar dela, mas eu a conheci quando era
menina. Ela era uma Callinikos de Gallos antes de se casar, e é impossível ser
mais das terras dos rios que isso.
– Ah, eu não me aborreci com o que ele disse – menti. – Só não gostei da
cara dele. – Depois que terminamos de rir, eu acrescentei: – Mas obrigada.
Dobrei um lenço dourado para prender na cabeça e o amarrei em torno do
cabelo. Daria abraçava os joelhos, e alternava entre me observar e olhar
fixamente para os homens-sapo como se eles pudessem morder. Por cima da
camisa e do colete, eu prendi um peitoral e luvas compridas de couro e fechei
a fivela no menor buraco.
Kenté estava sentada quieta, girando seus pingentes entre os dedos.
Eu pus a mão em seu ombro.
– O que é?
– Só preocupada – disse ela. – E se alguma coisa sair errado?
– Não vai.
A imediata de Thisbe Brixton parou de amolar a adaga e olhou para mim.
– Os deuses têm o hábito de testar pessoas que dizem coisas como essa.
O deus no fundo do rio devia ser o deus de meus ancestrais. Ele devia falar
conosco na língua das pequenas coisas. Bom, eu estava cansada de esperar
que ele me notasse. Eu tinha passado a vida inteira à espera.
Talvez eu tivesse chegado ao meu limite com os deuses. Talvez, a partir
daquele momento, eu fosse cuidar de mim mesma.
Eu enfiei o punhal na bainha.
– Deixe que eles façam o pior que puderem.
CAPÍTULO
VINTE E CINCO

Thisbe Brixton rastejou para frente, apoiada nos cotovelos.


– Eu conto três homens.
Eu espiei através da vegetação rasteira e densa. A umidade da terra
penetrava em meus joelhos. A capitã Brixton acenou com a cabeça para mim,
e rastejamos de volta até os barqueiros, que estavam agachados na floresta.
– Acho que não há momento melhor que agora. – Nereus se apoiou no
tronco de uma árvore com os braços cruzados. – Eles devem estar
descansando depois da luta. Se tivermos sorte, estão começando a beber. Eles
não vão estar à nossa espera.
Eu respirei fundo.
– Certo. Vamos pela entrada dos fundos, mas ninguém vai mais longe. –
Eu olhei para minha prima: – Kenté é nossa batedora.
O barqueiro chamado Dinos me olhou com azedume.
– Ayah? E o que faz você pensar que essa menina vai servir de alguma
coisa? – Eu sabia que ele também me considerava apenas uma menina. Ele só
não queria dizer isso na minha cara porque eu estava muito bem armada.
Kenté se virou.
– O fato de eu poder ficar invisível explica alguma coisa?
– Essa menina é um homem das sombras. – Igualei seu tom rude. – Quem
você acha que derrotou os Cães Negros em Casteria e capturou seu cúter?
Kenté engoliu uma risada diante dessa mentira deslavada.
– Que a corrente nos leve – sussurrou um dos homens.
Usando as árvores densas como cobertura, nós nos aproximamos do forte.
Ele não era nem de perto tão impressionante daquele lado. Plantas cresciam
nas fendas entre as pedras, e o telhado estava coberto de musgo e ervas, com
muitas telhas faltando.
Ou os Cães Negros não sabiam que sua ilha podia ser tomada de sudeste,
ou eles achavam que mais ninguém sabia. Armados com mosquetes do
compartimento de carga do Vic, os barqueiros cuidaram rapidamente dos
guardas na porta dos fundos. Em uma mesa perto de seus corpos caídos,
havia um baralho disposto entre pilhas de bugigangas e moedas. O chão
estava cheio de garrafas quebradas.
Meu olhar permaneceu sobre os homens mortos. Talvez eles tivessem
amigos ou família, que estariam observando o horizonte esperando por sua
volta para casa. Eu apertei as mãos sobre as pistolas e endureci o coração.
No interior do forte, havia um homem solitário parado no fim do corredor
iluminado por tochas. Os dedos de Kenté se moveram em seu pescoço, e ela
desapareceu, bem no meio da tarde. Um dos barqueiros engasgou de susto.
– Não lute – cantarolou a voz de Kenté, ecoando nas paredes de pedra. –
Pois eu sou um homem das sombras sem treinamento. Vou fazer alguma
coisa estúpida e, muito provavelmente, explosiva se você puser as mãos em
mim. Abaixe suas armas. – Ela reapareceu com a pistola apertada contra a
têmpora do pirata. – Por favor.
O homem largou a arma imediatamente.
Eu revirei os olhos.
– Por favor?
O quartel general dos Cães Negros era uma bagunça. Eu nunca tinha visto
coisas tão bonitas espalhadas em uma desordem tão descuidada: um cálice de
ouro caído e esquecido em um canto, um colar precioso pendurado torto no
gargalo de uma garrafa de cerveja. Eu julguei silenciosamente o capitão Diric
Melanos e seus homens por deixar seu saque espalhado por toda parte
daquele jeito.
– Muito bem – sussurrei para Kenté. – Eu não sabia se o colar ia
funcionar.
– Depois de você fazer aquele discurso fantástico sobre eu ter derrotado os
Cães Negros e roubado seu navio?! Vejo que você tem pouca fé em mim.
– Parece que eu tenho muita fé – murmurei. – Já que, para começar, eu fiz
esse discurso.
– Eu sabia que ia funcionar. – Ela girou um pingente em sua corrente. – Eu
os testei ontem à noite.
– Alguém que não queira que os Bollards conheçam seus segredos devia
evitar fazer coisas tão exibidas como brincar com magia bem no convés, onde
qualquer um possa ver.
Ela assumiu uma expressão inocente.
– O marinheiro de guarda no Antílope dormiu.
Eu sacudi a cabeça.
– É melhor você não fazer isso comigo.
O som de vozes masculinas à frente fez com que Thisbe Brixton
sinalizasse pedindo silêncio. Rapidamente, descobrimos a origem do barulho:
uma câmara grande e redonda um nível abaixo de nós. Talvez ela já tivesse
sido uma sala de jantar formal, pois havia uma plataforma elevada em uma
extremidade. Eu me apertei contra a parede da escada e vislumbrei minha
mãe e meu pai sentados no chão, com a tripulação do Antílope. Uma onda de
alívio amoleceu minhas entranhas. Mas nós ainda não tínhamos terminado.
Os prisioneiros estavam cercados pelos Cães Negros.
– Há vinte homens lá embaixo – sussurrou Dinos.
– Mais para quarenta. – Thisbe lhe deu um tapa na nuca. – Você não sabe
contar?
O capitão Krantor apontou a pistola em direção à escada.
– Você viu o emparca?
– Ele não está aí – sussurrei. Meus nervos faziam com que meu pulso
corresse quente.
– Provavelmente, eles o trancaram sozinho – ele disse. – Deixe esse grupo
conosco. Vá encontrá-lo. – Ele se virou para Nereus. – Imagino que você seja
um bom homem para uma luta. Você está conosco ou o quê?
Os dedos de Nereus se envolveram em sua faca.
– Eu vou com a garota. – Suas narinas se agitaram, como se, de algum
modo, ele pudesse sentir o cheiro de batalha.
– Eu imaginava isso – disse o homem mais velho, esfregando o suor da
testa manchada pelo sol. – Agora, nós os cercamos por todos os lados.
Quando eu estiver em posição, vou gritar um sinal. E vocês respondem.
Prontos?
Kenté olhou para o teto arqueado do grande salão e puxou os colares de
baixo do vestido.
– Vou precisar de dois para isso.
Eu prendi a respiração. Mas aconteceu o mesmo que acontecera quando
ela tentou esse truque em Casteria. O salão grande ficou escuro, como se uma
mão gigante em uma luva negra tivesse apagado as lanternas. Mais que isso:
a magia de Kenté bloqueou a luz das janelas e das portas. Os barqueiros se
aproximaram um a um, tateando seu caminho pela escada.
– Acendam um fósforo, seus cães! – Suspeitei que esse fosse Diric
Melanos.
– Não está funcionando! – gritou em pânico um membro de sua tripulação.
– Ponte baaaaaaaaixa! – ecoou uma voz do outro lado do salão. Era Perry
Krantor, chamando como fazem os barqueiros quando chegam a uma ponte
sobre o rio.
– O que foi isso? – Os Cães Negros ficaram em silêncio. Ouvi o retinir de
aço e o farfalhar de roupas quando eles sacaram suas armas.
Outras vozes gritaram em resposta:
– Ponte baixa! – As vozes pareciam vir de toda a volta do salão, ecoando
nas paredes de pedra. – Baixa-aixa-aixa-aixa. – Fui atravessada por um
tremor. Era um som assustador.
– É aquele homem das sombras! – gritou alguém.
– Não, são as sombras dos barqueiros que vieram nos assombrar – gritou
um dos Cães Negros. – Eu disse a vocês, eu disse! Nós não devíamos ter feito
aquilo.
Eu sorri. Não, eles não deviam.
Um homem começou a rezar em voz alta, enquanto outro disparou uma
pistola. Vários homens começaram a gritar com o que disparara a arma.
Acima do clamor, eu ouvi uma risada familiar.
– É você, Perry? – Era meu pai, que sabia que mais ninguém dali até
Ndanna escolheria aquele como grito de guerra. Ninguém, exceto um
barqueiro.
– Ayah. Como está você, Nick?
– Vou ficar bem – disse meu pai. – Assim que você puser uma pistola em
minha mão.
Os dedos de Kenté se moveram, e a escuridão desapareceu, como um
cobertor sendo sacudido. Ela atingiu o teto e explodiu. Todos seus pedaços
diminutos voaram para os cantinhos e frestas do salão.
Então a luta começou.
Um dos barqueiros jogou para meu pai uma pistola e um saco de pólvora e
munição. Ele o pegou, ergueu os olhos para o alto da escada e me viu. Um
longo momento se passou entre nós. Ele ergueu a mão em uma saudação,
carregou a pistola e entrou na refrega.
Embora eu estivesse muito hesitante em abandonar meus pais, o ataque
dos barqueiros foi uma distração espetacular. Gesticulei com a cabeça para
Nereus e Kenté, e seguimos pelo corredor. À medida que corríamos mais
para as profundezas do forte, os cheiros de fumaça e mar ficavam mais
intensos no ar. Nenhum de nós falava. Minha preocupação com Markos
pressionava meu peito como uma pedra pesada.
Por uma porta aberta do lado direito do corredor, veio o tilintar de vidro.
Nereus entrou na sala, e eu ouvi um grito, seguido por um ruído desagradável
de trituração.
Nereus segurava o braço do cão negro torcido em um ângulo anormal às
suas costas. Uma poça de cerveja derramada era absorvida pelo tapete. Era o
capitão da Alektor, Philemon, embora seu lábio estivesse ensanguentado. Ele
usava um casaco comprido com detalhes dourados que reconheci
imediatamente como o casaco que eu tanto admirara em Markos.
– Um talento de prata – disse Nereus, passando o gume da faca na
garganta de Philemon – se você me disser onde o emparca está sendo
mantido.
– Você está brincando? – respondeu o homem com raiva.
Nereus riu.
– Claro que estou brincando. Conte-me, e, talvez, eu não enfie a faca em
seu olho. Mas não posso prometer nada.
– Ele… Eu não sei sobre emparca nenhum – gaguejou ele.
– Mentiroso! – Meu coração batia em um ritmo frenético. – Você está
usando o casaco dele. – Que ficava horrível no homem, com os braços
espremidos nas mangas, como salsichas. Ele era mais forte e mais baixo que
Markos. – Se machucá-lo, juro que mato você.
– Ele matou seis de nossos homens! – Philemon se debateu nas mãos de
Nereus. – Marujos bons e fortes, eles eram. Vocês têm toda razão: eu o
machuquei.
– Onde ele está? – Eu apertei a pistola em seu pescoço.
– Talvez tenhamos arrancado seus dedos. Um emparca não precisa de
dedos, precisa?
Esforcei-me para que meu rosto permanecesse imóvel, a fim de que ele
não soubesse como suas palavras haviam me abalado.
O sangue na boca de Philemon gorgolejou quando ele riu.
– Talvez eu tenha arrancado seus olhos e dado para as gaivotas comerem.
Acho que, agora, ele não está tão bonito.
Nereus enfiou a faca em sua bochecha.
– Você, cale a boca. O emparca. Agora.
Philemon olhou para ele com sangue escorrendo por sua barba. Em
seguida, apontou com a cabeça para o fim do corredor.
– A torre – rosnou. – Mas vocês chegaram tarde demais. Ela desabou, e a
escada está quebrada. A coisa inteira está desabando. – Ele me lançou um
olhar malicioso, mostrando um dente lascado. – Tudo o que você vai
encontrar lá, garota, é um cadáver.
Eu engoli minha fúria. Eles o haviam deixado lá para morrer.
– Eu vou com você – disse Kenté.
– Você o ouviu. – Eu carreguei minha pistola. – Não é seguro. Minha mãe
vai me matar se alguma coisa acontecer com você.
– Ah, e ela não vai se importar nada se alguma coisa acontecer com você.
Eu pus a mão sobre sua manga.
– Fique com Nereus e mantenha um olho nesse sujeito, caso ele esteja
mentindo. Eu já volto.
Ela apertou meu braço em resposta.
– Que a corrente vos leve.
A torre em ruínas rangia e trepidava. Em algum lugar, pequenos
fragmentos de reboco e pedra caíam pelas paredes, e o ar estava denso de
poeira. Passei com cuidado pela porta e testei a primeira escada. Ela não
parecia prestes a desabar embaixo dos meus pés.
Apoiei-me na parede e comecei a descer a escada curva, um degrau de
cada vez. O gemido fantasmagórico de metal fez com que eu apertasse os
olhos. A pistola tremeu em minha mão. A escada descia muito mais do que
eu imaginava ser possível. Com certeza, àquela altura, eu estava dentro do
próprio morro.
Algo caiu com um estrondo terrível, fazendo com que a torre inteira
tremesse. Eu perdi o equilíbrio. Por um minuto longo e aterrorizante, eu me
encolhi sobre os degraus, agarrada à pedra. Segurei um lamento. Markos
estava lá embaixo. Ele podia estar preso sob uma pedra caída. Ele podia estar
ferido. Eu me forcei a seguir adiante.
A escada terminava em um mergulho de cinco metros na escuridão. Eu
engasguei em seco e subi de volta rapidamente para terreno seguro. Meu
coração se acelerou quando eu me apertei contra a parede. Eu quase tinha
caído.
O aposento abaixo não estava totalmente escuro. O tremeluzir de um
candeeiro iluminava fracamente o poço. Eu me debrucei sobre a borda. Um
suor frio formigava em minha nuca.
No meio de uma poça de dois centímetros de profundidade, havia uma
cadeira. E, amarrada a ela, com muitas voltas de corda grossa, estava uma
pessoa que eu nunca mais esperava ver viva outra vez.
– Markos!
Ele apertou os olhos em direção a mim.
– Carô?
Seu olho esquerdo estava roxo, e um corte em seu queixo derramara uma
trilha grossa de sangue em sua camisa. Fora isso, excetuando a aparência
gordurosa do cabelo, ele parecia mais ou menos ileso. Fiquei tão aliviada ao
vê-lo que tudo o que consegui fazer foi sorrir descontroladamente.
Ele sorriu também, o que pareceu realmente horrível, com o estado de seu
rosto.
– Belo chapéu.
Havia uma tapeçaria devorada por traças na parede da torre. Eu soltei uma
boa extensão de brocado da viga que a sustentava, segurei-o com as duas
mãos, respirei fundo e balancei. A meio caminho para baixo, a tapeçaria
rasgou, e eu caí o resto da altura com um barulho de água.
Markos se contorceu nas cordas.
– Ouvi os canhões lá fora e torci para ser você. Onde está Daria?
– Você não deve me ter em alta conta se achou que eu fosse trazer sua
irmã para um lugar como este. – Eu cortei suas amarras, com cuidado para
manter o punhal bem longe de seus pulsos. – Ela está em segurança no navio.
Ele se encolheu e inalou ar.
– Qual o problema? – gritei alarmada. – Eu não cortei você, cortei?
– Minhas mãos – disse ele. – Eu não consigo senti-las.
Eu me ajoelhei a sua frente e apertei suas mãos entre as minhas. Elas
estavam inertes e frias. Eu bati nelas e esfreguei sua pele até que ele emitisse
uma expressão de dor.
– Pelos deuses. – Ele balançou para frente. – É só um formigamento, mas
dói como… Bom, não posso dizer isso na presença de uma dama.
– Você não quer dizer que está me considerando uma dama.
De repente, fiquei muito consciente de seu hálito em meu cabelo. Na
última vez que estivemos juntos, eu o beijei como se nunca mais fosse vê-lo
outra vez. Bom, aquele momento era esquisito demais. Eu larguei suas mãos
e tornei a me levantar.
Ele ficou lentamente de pé, esticando uma perna de cada vez. Eu levei um
susto. O sangue seco em sua camisa não era do queixo. Sua orelha esquerda
estava um desastre. Era a orelha – eu me dei conta, apreensiva – em que ele
usava o brinco de granada. A joia havia desaparecido.
Ele me viu olhando.
– É, bom, eu diria que você devia ter visto o outro cara, mas infelizmente
tenho de admitir que fui eu quem levou a pior.
– Eram dez contra um! – Minha mão se aproximou de seu ouvido.
– Mais como vinte. – Ele afastou minha mão. – Finalmente parou de
sangrar. Prefiro manter assim. Quem está lá fora disparando canhões?
Quando a torre foi atingida pela primeira vez, as pedras começaram a cair.
Todos os Cães Negros saíram correndo e nunca voltaram.
– Foram os Bollards. Espere, a primeira? Quantas vezes atingiram esta
torre?
– Eu contei três. Você trouxe os Bollards? Você nem sabia que eu estava
vivo. – Seu joelho esquerdo cedeu, e ele levou a mão ao lado do corpo, como
se tivesse uma câimbra. – Ai!
– Os Cães Negros tentaram enganar os Theucinianos. – Eu lhe ofereci meu
braço. – Eles queriam cobrar um resgate de sua família em Valonikos, ou
talvez fossem apenas recolher o dinheiro e depois matá-lo. Só que eles
contrataram um navio dos Bollards como mensageiro, então minha mãe
descobriu.
Dei a versão curta do que tinha nos acontecido desde que nos separáramos,
saboreando em segredo o calor de seu corpo enquanto ele se mantinha
encostado em mim para se apoiar.
– Típico – ele disse, quando terminei. – Você estava roubando navios
piratas e vivendo aventuras enquanto eu estava amarrado a uma cadeira. Fui
forçado a pensar em todo tipo de fantasia para passar o tempo. Admito que a
maioria delas envolvia você.
– Markos Andela… – comecei a dizer com seriedade para encobrir meu
rubor.
– Como você sabe meu sobrenome? Daria, imagino. – Ele me deu um
sorriso provocador. – Bom, não estou totalmente certo se devo permitir que
você tome essas liberdades.
– É engraçado – eu disse – você falar em tomar liberdades. Pare de flertar
comigo. Essa torre vai desmoronar em nossas cabeças.
– Você tem um plano para sair daqui, não tem?
Eu dei de ombros.
– Pelo caminho por onde viemos?
– Você pulou de uma porta a cinco metros de altura – disse ele. – Com a
ajuda de uma tapeçaria que agora está rasgada e, sem dúvida, não vai
aguentar nosso peso.
– Podemos subir…
– Eu não posso – ele disse com voz rouca, apertando a ponte do nariz com
a mão trêmula. De repente, percebi que ele estava envergonhado. – Desculpe.
É que… eu não… Eu não tenho forças.
– Markos, você tem certeza de que está bem?
– Um pouco de água cairia bem – disse ele com voz áspera. Seu rosto
estava branco como a pintura do Vic. Eu lhe entreguei depressa o cantil de
meu cinto, e ele bebeu tudo. – Eles me deixaram amarrado a esta cadeira por
tanto tempo que eu estava começando a achar que iria morrer aqui. – Ele
limpou a boca. – Eu gostaria de um banho e de uma camisa que não esteja
coberta de sangue. Mas acho que isso pode esperar.
Eu olhei desconfiada para ele, perguntando-me o que ele não estava me
contando.
– Mas ouso dizer que, de qualquer forma, não há apoios para as mãos – eu
disse, para fazer com que ele se sentisse melhor. – Se Kenté e Nereus
estivessem aqui... – Infelizmente, eu os deixara no fim daquele corredor
comprido e fora em frente sozinha. Isso, eu percebi naquele momento,
provavelmente tinha sido estúpido.
Eu girei em um círculo. Sob a luz da lanterna solitária com uma vela que
derretia, vi que o ambiente cavernoso estava cheio de água; partes dela, mais
profundas do que a poça na qual estávamos.
– Por que o chão está todo molhado?
– Havia um muro de contenção, lá fora – disse Markos. – Para segurar o
mar. Mas…
– Os Bollards provavelmente o explodiram em pedaços – concluí. –
Imagino que, com a maré cheia, todo este local fique embaixo d’água. Bom,
então, vamos apenas ter de esperar. Quando a água subir, ela vai nos levantar
até a abertura.
A torre gemeu de modo agourento, e ele hesitou.
– Antes que o teto desabe sobre nós?
Uma pedra caiu e aterrissou ruidosamente na água. Eu não gostava muito
da ideia de ser esmagada embaixo da torre quando ela caísse. Fiquei mais
irritada por talvez serem as balas de canhão dos Bollards a, indiretamente, me
matar. Quanto tempo até que Kenté e Nereus viessem à nossa procura? Eu
torci para que eles chegassem a tempo.
– Eu não gosto disso – disse Markos acima dos rangidos das vigas
sobrecarregadas. – Há outra porta, é claro. Aquela por onde todos os cães
negros saíram. Ali. – Ele gesticulou para o outro lado das poças d’água. – No
pé da escada.
– Que escada?
– Ela está embaixo d’água, agora. Estamos em cima de algum tipo de
plataforma. – Ele apontou com a cabeça para a sala circular. – Eles estavam
usando esta torre como depósito, para guardar tesouros, ouso dizer. Havia
todo tipo de coisas interessantes, antes…
Uma escada de pedra conduzia para baixo, desaparecendo em água turva.
Eu agora via que caixas e barris boiavam nos cantos da sala. Se a cadeira de
Markos não estivesse nessa plataforma, ele teria se afogado antes que eu
chegasse. Ele já estaria morto. Não foram só meus pés molhados que me
fizeram tremer.
– O mar está entrando! – O pânico apertou minha garganta. Eu tinha
passado toda a vida na água. Não seria assim que eu morreria. – A torre vai
desabar e nos prender.
– Você não pode fazer alguma coisa? – perguntou Markos. – Com sua
magia.
– Você sabe que eu não tenho magia nenhuma. – Eu engoli em seco. – Eu
achava que você seria educado o suficiente para não esfregar isso na minha
cara.
– Você ainda não entendeu? – Ele ergueu a voz acima do barulho das
pequenas pedras que caíam. – Escute, Carô. Você me disse que havia um
deus no rio. Que fala com os barqueiros.
– Existe. Mas não comigo. Nós já passamos por isso, Markos.
– Bom, obviamente – disse ele. – Porque seu deus não está no rio. Ele está
no mar.
CAPÍTULO
VINTE E SEIS

– Não. – Um filete gelado atravessou meu corpo.


Quando chegar o dia de seu destino, você vai saber.
Imagens passaram por minha cabeça. Gaivotas me observando com olhos
vidrados. Golfinhos e peixes correndo ao lado do Vic. O drakon. Sonhos
estranhos.
Não era possível. Eu apertei os dedos sobre as têmporas e tentei
interrompê-las.
O homem dos porcos em sua casa flutuante. Ela é uma deusa maior, mais
profunda. A que conduz você. Ele não vai lutar contra ela. E Nereus: Ayah, e
ela não me mandou aqui para ajudá-la, Caroline Oresteia? Finalmente,
entendi o que ele estava tentando me dizer com aquela história sobre Arisbe
Andela.
– No Pescoço. O nevoeiro. – Markos segurou meu pulso. – Eu tentei lhe
dizer na hora, mas você não acreditou em mim. Carô, eu não conseguia ver
nada naquele nevoeiro. Nem as estacas, nem os penhascos. Nem nosso
próprio mastro. Nem Fee conseguia ver.
– Não. – Eu puxei e soltei meu braço. – Não estava tão ruim. Não podia
estar. Eu podia ver…
– Através dele – disse ele. – Estou lhe dizendo, foi magia.
Eu sacudi a cabeça.
– O clima às vezes se comporta de um jeito estranho. Isso não significa…
– Não é estranho que um nevoeiro tenha surgido exatamente quando os
Cães Negros estavam prestes a nos alcançar? Você mesma me disse isso: o
Pescoço é água salgada.
Uma luz refletiu na água do mar, me provocando.
– Não foi assim que aconteceu – sussurrei.
– É mesmo? E o drakon? Foi o que Fee viu naquela noite no rio, não foi?
Ele tem seguido você. Carô, é você. Você não vê? – Seus olhos brilhavam
ardentemente. – A deusa tem chamado você o tempo todo. Você estava tão
ocupada tentando ouvir as pequenas coisas que deixou passar a maior coisa
de todas.
Uma chuva de pedras despencou do teto. Markos se virou para a escada
destruída.
– Devíamos gritar por ajuda. Talvez Kenté possa trazer uma corda, ou…
– Espere – eu disse.
Eu tirei as botas e as deixei cair. Meus dedos dos pés envolveram a pedra
lisa, e eu dei um passo hesitante. Nada pareceu diferente. Eu dei outro, até
estar parada no alto da escada submersa, com borbulhas encorajadoramente
em turbilhão em torno de meus pés.
Mordi o lábio e hesitei, enquanto Markos me observava com uma
expressão simpática.
Na verdade, eu estava com medo. O mar não era uma deusa amiga, que se
satisfazia guiando barqueiros de porto a porto. Ela afundava ilhas e arrasava
cidades. O mar guarda as coisas que toma. As profundezas estão cheias de
esqueletos de navios e cidades. Ayah, e de homens.
Em quem eu poderia me transformar no momento em que tocasse a água?
Se Markos estivesse certo em relação a mim, tudo o que eu sabia estava
errado. Tudo estava mudado. Eu respirei fundo e entrei no mar.
A água ergueu minha roupa com delicadeza. Luz da lanterna próxima
ondulava e bailava na superfície. Mergulhei as mãos, virei as palmas para
cima e me ofereci ao mar.
Dei mais um passo.
De pé com água até a cintura na escada submersa, eu me senti tola e
secretamente aliviada. A barra de minha camisa flutuava em torno de minha
barriga. Markos estava errado. Não havia nada especial ali. Eu girei para trás
para lhe dizer isso.
Aí eu vi.
Uma onda se agitou – no início, pequena, um movimento delicado na
superfície da água. Ela rolou de onde eu estava e cresceu em uma linha
branca, espumante.
A onda começou a quebrar. Outras se seguiram, uma atrás da outra, cada
vez mais rápido. Elas bateram contra as paredes, e eu levei um susto quando
os borrifos voaram sobre mim.
Um peixe prateado saltou, em seguida um segundo e um terceiro. O
barulho quando caíram na água tilintou como música. Eu quase podia
estender a mão e tocá-los. Fiquei boquiaberta. Senti a maré sugando ao meu
redor, mas essa não era uma maré natural. Ela sugava algo enterrado
profundamente em meu interior.
Algo de que eu quase me lembrava.
Uma voz trovejante sussurrou meu nome. A onda quebrou sobre mim. Me
joguei nela, e os dedos dos meus pés se ergueram da pedra. Eu podia sentir o
mar fora da torre – infinito, barulhento e incrivelmente fundo. Enquanto
acompanhava minhas mãos pela espuma, fiquei maravilhada com o quanto
elas estavam sensíveis. Senti mil bolhas individuais, e cada movimento das
ondas enquanto elas dançavam em ritmo selvagem.
Algo grudento e molhado se prendeu ao meu rosto. Atônita, eu ergui a
mão.
Eu estava usando uma coroa de algas marinhas verde-escuras. Puxei um
ramo solto e olhei para ele entre os dedos.
– Como? – berrei acima da água revolta, enquanto flutuava lentamente
para baixo, e meus dedos dos pés novamente tocavam o degrau. Eu ri. –
Como eu não sabia?
Meus olhos ardiam, mas não pela água salgada. Todos esses anos de
esperança. Com inveja de meu pai e de Fee. Sem saber se eu pertencia.
Nunca houve nada de errado comigo. Eu pertencia, sim. Só não ao rio.
Eu olhei para Markos, e minha garganta quase se fechou em torno das
palavras.
– Como você viu isso, e eu, não?
– Às vezes – ele disse, com um meio sorriso melancólico – precisamos que
outros vejam o que há de bom em nós antes que nós mesmos consigamos vê-
lo.
Ele desceu a escada, lutando contra o peso das roupas molhadas. Quando
chegou aonde eu estava, ele envolveu minha cintura com o braço. Eu enterrei
o rosto em seu pescoço e respirei seu cheiro de sal, sangue e Markos.
Ele chiou repentinamente e apertou a mão na lateral do corpo.
– O que é? – perguntei.
– Nada.
– Você está ferido – eu disse. – Eu devia ter esperado isso. Bem coisa de
um menino.
– Não está ruim – ele disse, entre lábios apertados. – Vamos.
– Caso você tenha esquecido, estamos presos.
– Carô, veja. – Ele me virou para trás.
Apenas momentos antes, eu estava nos degraus com água até a cintura,
mas, então, a água se agitava em torno de meus tornozelos. À nossa frente,
uma porta assomava na parede de pedra molhada. O que tinha sido um
grande lago estava se transformando rapidamente em uma poça. A maré
vazante tinha enchido o local de detritos – baús e caixotes virados, uma
camada de areia lodosa e pedaços de conchas quebradas.
Que sorte a minha, ser escolhida por uma deusa que era uma bela de uma
exibicionista.
Nós descemos pelo túnel em meio à água. Revelou-se que ele levava a um
pequeno pátio de treinamento à beira-mar cheio de estantes de armas, uma
das quais tinha sido derrubada pelas ondas. Markos pegou uma espada na
areia molhada e nós entramos correndo no forte. Tentei desenhar em minha
cabeça um mapa daqueles corredores sinuosos, mas era impossível. Escolhi
uma direção e cruzei os dedos para que fosse a certa.
As mãos de Markos pousaram em minha cintura enquanto espiávamos
além de uma curva, o que deixou todos os meus sentidos em sobressalto.
– Se vocês vão se beijar – disse Kenté às nossas costas – acho que posso
olhar para outro lado. – Eu me virei.
– Nós não vamos… Por que faríamos isso?
– Não? – Ela inclinou a cabeça na direção de Markos. – Ah, bem,
oportunidades perdidas.
Ele imediatamente me soltou, e a orelha que não estava coberta de sangue
ficou rosa.
– O que você está fazendo aqui? – perguntei, para encobrir meu próprio
embaraço. Parte de mim sentiu falta do calor das mãos dele.
– Procurando você, é claro. Você não respondeu quando eu a chamei pela
escada.
Encontramos Nereus encostado despreocupadamente na parede, limpando
os dentes com a faca. Philemon estava amarrado e amordaçado no chão com
tiras do que antes tinha sido sua calça. Ele parecia desejar muito estar em
outro lugar.
Nereus removeu um pedaço de alga de meu cabelo e o girou entre os
dedos.
– Vejo que está coroada.
– Ah, você sabe sobre essa pequena exibição, não sabe? – Eu ergui as
sobrancelhas. – Você podia ter me contado.
– Você fala como se fosse um segredo.
– Para mim, era, já que alguns de meus aliados têm a tendência irritante de
falar por enigmas. – Estreitei os olhos para ele. – Era de quem você falava
quando disse que tinha sido mandado. Ela mandou você. A deusa.
– Aquela que está nas profundezas.
Eu olhei para ele.
– E quem é você, que pode ser invocado por uma deusa? Conte-me a
verdade. Você é uma sombra? Você está… morto?
Ele piscou para mim.
– Não hoje.
– Você é Nemros, o Saqueador? – perguntei.
Os cantos de seus olhos se enrugaram.
– Eu fui muitos homens, e tive muitos nomes.
– Por quantas vidas você a serviu?
– Uma. Mil.
– Você quer dizer uma ou quer dizer mil?
– Sim. – Ele sorriu.
– Isso não é uma resposta. Isso não o incomoda? – perguntei. – Você não
quer ser livre?
– Se eu não a estivesse servindo, onde estaria? Morto, isso sim. Estar livre
ou morto não é, na verdade, escolha nenhuma. Gosto do cheiro de mar em um
belo dia. A sensação dos borrifos. O gosto de rum. – Ele deu de ombros. –
Faço qualquer coisa que ela me pedir se isso me mantiver longe do fundo do
oceano ou, que os deuses não permitam, embaixo da terra. Agora – ele deu
um suspiro – sinto cheiro de luta.
Markos se aproximou.
– Esperem. – Ele olhou para Philemon, então o socou com força no
queixo. O pirata desmoronou no chão.
– Ai – Markos fez cara de dor, enquanto sacudia a mão.
Eu ergui as sobrancelhas.
– Isso não foi muito honrado.
– Sim, bem, vamos dizer apenas que eu passei a adotar seu ponto de vista
– disse ele. Debruçado sobre o homem, ele se ergueu de maneira régia. –
Além disso, eu quero meu casaco de volta.
Nereus cortou as amarras dos pulsos do pirata e empurrou a faca em seu
pescoço.
– Você ouviu seu emparca.
Philemon tirou o casaco com dificuldade enquanto murmurava
xingamentos em voz baixa.
Markos o cheirou antes de vesti-lo, e seu nariz se retorceu.
– Essa foi uma semana muito exigente para minhas roupas. – Ele ajeitou a
gola. – Vamos.
Quando entramos no grande salão, descobrimos que a batalha tinha sido
vencida sem nós. Eu prendi a respiração e fiz uma contabilidade rápida dos
homens e mulheres ainda de pé: meu pai, minha mãe, Krantor, a capitã
Brixton e sua imediata e muitos mais, incluindo o capitão do Antílope.
Eu expirei, trêmula e aliviada.
Meu pai e o capitão Krantor estavam olhando para algo no chão, com os
chapéus apertados nas mãos. Era o corpo do barqueiro Hathor, deitado ao
lado de três outros barqueiros e mais dois da tripulação do Antílope. Eu
engoli em seco. Ele era o que não queria ter ido porque tinha família.
– Que a corrente vos leve – sussurrei. Pela primeira vez na vida, eu me
senti estranha ao dizer essas palavras. Era uma expressão das terras dos rios.
Eu não sabia ao certo se elas ainda me pertenciam.
Faltava uma das mangas na camisa de meu pai. Percebi que ela estava
amarrada em torno do braço de minha mãe em uma tipoia improvisada. Ela
parecia bem, apesar da mancha de sangue no rosto. Claro, ela estava dando
ordens às pessoas energicamente.
– Eu vou me preocupar com isso – gritou minha mãe para um dos
tripulantes do Antílope enquanto gesticulava com a mão boa. – Você, se
preocupe em limpar aquele maldito porão. Você pode muito bem pegar
qualquer coisa valiosa enquanto estiver fazendo isso, pois elas não vão ter
muito uso aonde estão indo, não é?
Atrás de mim, Markos riu.
– O que é tão engraçado?
– Durante todo esse tempo, eu pensei que você tinha puxado seu pai – ele
disse.
Eu olhei feio para ele, mas meus lábios não conseguiram evitar se curvar
em um sorriso.
Era fim de tarde quando os Bollards e os barqueiros reuniram os
remanescentes dos Cães Negros, levaram-nos para a praia e os puseram em
um curral improvisado perto da paliçada. Minha mãe, que nunca deixava
passar uma oportunidade de lucrar, tinha encontrado vários itens aos quais
atribuía valor em meio ao tesouro dos piratas. Eles estavam empilhados no
que restava do cais. Quando os últimos raios do pôr do sol caíram sobre a
baía e iluminaram os destroços flutuantes com um brilho laranja, todo canto
do forte tinha sido varrido. Todos os piratas tinham sido localizados.
Menos um.
O homem das sombras Cleandros havia desaparecido. Meu pai puxou
Diric Melanos pelo pescoço e o jogou no chão.
– Acho que há três mestres de baía diferentes e um magistrado que
gostariam de botar a mão nessa imundície.
Eu parei acima dele com minha pistola.
– Onde está o homem das sombras?
– Ele foi de grande ajuda para nós. – Melanos cuspiu na areia. Seu belo
casaco estava rasgado, e ele havia perdido o chapéu. – Fugiu durante a
batalha, não é? Maldito covarde. Eu disse a ele que íamos matar o garoto
logo depois de receber o dinheiro, só isso. Mesmo assim, ele não calava a
boca em relação a isso. Eu digo que ele já vai tarde. Não se pode confiar em
um homem das sombras.
Eu estava surpresa pelo capitão Melanos não ter acabado com um buraco
de bala durante a batalha. Imagino que os barqueiros ficariam contentes de
vê-lo ser enforcado.
Enquanto esperávamos na praia que Nereus e os barqueiros trouxessem o
Vic, minha mãe deu instruções.
– Vá até nossos escritórios em Iantiporos – disse ela para mim, soletrando
o nome da rua para que eu me lembrasse dela. – Mande uma mensagem para
Bolaji. Diga a ele que mande dois navios nos encontrar aqui urgentemente.
– Você não vem? – perguntei.
Ela sacudiu a cabeça.
– Vou ficar com minha tripulação. Vamos tentar salvar o que pudermos do
navio. Acho que seu pai também vai ficar. – Ela apontou para o braço ferido.
– Ele tem uma noção equivocada de que eu preciso de que cuidem de mim.
Enfim, eu acho que você provou seu valor naquele cúter.
– Eles não me conhecem em Iantiporos – eu disse, repentinamente incerta.
– E se…?
Ela soltou o broche de seu gibão e o colocou em minha mão.
– Leve Kenté com você. E mostre isso a eles.
Meu pai estava parado sozinho na praia mexendo em uma mecha
alquímica. Eu caminhei pela areia, parei ao lado dele e envolvi seu braço com
o meu. Seu casaco surrado tinha cheiro de lar.
Apoiada em seu ombro, eu observei a praia, os destroços flutuantes e o
crepúsculo. Lá fora, o mar subia e descia em um ritmo tranquilizante. Mais
longe na areia, Thisbe Brixton estava passando uma garrafa entre os outros
barqueiros. Suas vozes desordenadas se elevavam no refrão de uma canção
muito grosseira.
Vê-la despertou uma lembrança. Ela reconhecera Nereus. Claro, e um
peixe não sabe quando um tubarão vem comê-lo? E um pensamento ainda
mais assustador veio em seu rastro.
Meu pai o conhecia também.
Você, sussurrara ele no momento em que ficaram cara a cara no Vic. Eu fui
tomada por uma desconfiança fria.
– Pai – comecei, com cautela. – Você disse que, quando chegasse o dia de
meu destino, eu saberia.
Ele se virou para o mar, dando baforadas no cachimbo.
– Ayah – ele disse, lentamente. Seus olhos pareciam preocupados. – Eu
disse.
– É verdade que todos os Oresteias foram favorecidos pelo deus do rio?
Não houve nenhum deles que… – eu me preparei para a resposta – fosse, não
sei, outra coisa? Algo diferente?
Markos caminhava sem pressa pela praia, protegendo os olhos virados
para o sol poente. O Vic estava fazendo a curva no pontal com as velas
brancas enfunadas contra o céu. Ao vê-lo, algo lutou para se erguer em meu
interior.
– Escute, Carô – disse meu pai com a voz embargada, e meu coração
parecia prestes a se despedaçar. A garganta dele se moveu. – Tem uma coisa
que preciso lhe contar.
De repente, eu não quis ouvir aquilo. Ainda não. Eu me soltei, enfiei as
mãos nos bolsos e corri para alcançar Markos.
A meio caminho na praia, parei para olhar para meu pai. Ele estava com os
ombros caídos, e eu estava muito consciente das rugas em seu rosto. Ele
sempre soubera a verdade. Eu tinha certeza disso. A emoção me atingiu, mas
eu a afastei com amargura. Eu não queria escutá-lo. Quantas mentiras ele
tinha me contado?
Nós remamos até o Vic, onde Daria estava debruçada na amurada,
acenando freneticamente enquanto a esposa de um dos barqueiros lutava para
impedir que ela caísse no mar.
– Markos! – a menina gritou, de um jeito completamente inadequado para
a filha de um emparca, quando ele subiu a escada.
– Texuguinha! – Ele caiu de joelhos no convés e a levantou. Ela enterrou o
rosto em seu peito.
Algumas coisas não são o que se espera, como o garoto mais arrogante do
mundo chorando no ombro da camisola da irmã de oito anos. Kenté e eu
trocamos olhares e viramos o rosto para lhes dar privacidade.
Ao descer para a escuridão da cabine do Vic, desafivelei o cinturão pesado
e o joguei em uma pilha sobre o banco. Agora que tudo estava quieto outra
vez, eu não sabia o que fazer. Desejei que o Vic tivesse uma toalha de mesa
de xadrez vermelho aconchegante e um beliche familiar com cobertores
empilhados. Desejei que Fee estivesse ali fazendo chá.
Meus olhos se encheram de lágrimas. Eu não reconhecia mais minha vida.
A escotilha rangeu.
– É muito maior que a Cormorant, não é?
Eu fechei os olhos contra sua voz.
Botas se arrastaram sobre o chão quando Markos desceu o último degrau
da escada. Com uma única lanterna, eu não conseguia ver seu rosto.
– Ah – ele disse. – Eu esqueci…
Eu engoli em seco.
– Está tudo bem.
– Não está, não. Você me disse que ela era seu lar – ele disse. – Você me
disse que, quando um marinheiro ama um barco, isso o atinge com tanta força
que é impossível respirar.
Pela primeira vez, ele tratava a barca como uma pessoa, não como uma
coisa. De algum modo, isso deixou mais doloroso o nó em minha garganta.
– Está feito. – Eu me virei e me afastei dele.
– Caroline, desculpe. – Ele me seguiu, segurando-se rigidamente. – Eu
sinto muito, mesmo. É culpa minha. Você abriu mão dela por mim.
– Por Daria – corrigi, mordendo o lábio. Uma lágrima quente queimou
meu rosto. – Você saltou sozinho no meio de um bando de piratas – eu disse
para a parede. – Achei que você estivesse morto.
Eu o senti parado às minhas costas.
– Carô, seu pai vai recuperá-la.
– O que faz você pensar que eles não a queimaram? – sussurrei.
– Ela provavelmente ainda está amarrada nas docas de Casteria.
– Você a viu? – A esperança lutava contra o desespero no interior de meu
peito.
– Eu… estava inconsciente quando eles me levaram para a Alektor.
Quando acordei, estávamos no mar. – Ele pôs uma mão hesitante em minha
cintura.
– O que você quer dizer com inconsciente? – Eu me virei, quase batendo a
testa em seu queixo. Meu coração se acelerou com alarme e com mais alguma
coisa quando examinei seu rosto. – O que eles fizeram com você? Eles o
torturaram?
Ele não disse sim, nem não.
– Mas por quê? – perguntei, tomando seu silêncio como uma tentativa
estupidamente galante de me proteger. – Eles queriam saber alguma coisa?
– Não. Eles só… Acharam divertido.
Eu segurei seu queixo e virei seu rosto em direção à luz. Além do olho
preto, ele tinha um hematoma roxo na mandíbula, encimado por um arranhão
comprido. Mas o pior era a orelha esquerda.
– Markos. – Eu olhava para ele, horrorizada. – Acho que parte de sua
orelha está faltando.
– Podemos voltar a um minuto atrás? – reclamou. – Eu não quero falar
sobre isso.
– Sente-se. – Eu o empurrei em uma cadeira.
– Admito que eu estava pensando em beijar você. – Ele deu um suspiro. –
Eu mudei de ideia.
Eu peguei uma tigela de água e o pedaço de pano mais limpo que pude
encontrar. Enfiei o trapo na tigela e o levei ao lobo de sua orelha.
– Ai! – Ele se encolheu.
– Eu nem toquei você ainda. Pare de agir como um bebê.
– Eu queria que você não me tocasse. Por favor, não se ofenda, mas não
vejo você como o tipo de garota delicada com talento para enfermagem.
– Eu consigo ser se quiser – Eu passei o trapo por seu pescoço com mais
força do que era minha intenção.
– De novo, ai. Não consegue, não. – Ele cerrou os dentes. – Você é do tipo
que arremessa facas e dispara pistolas.
Eu mergulhei o pano na água. Mesmo sob a luz mortiça, sua orelha parecia
infeccionada. Ele teria de ver um médico quando chegássemos a Iantiporos.
Enquanto eu limpava as feridas em seu rosto e em seu pescoço, ele manteve
as unhas enfiadas nas palmas das mãos.
– Tire a camisa – ordenei, um pouco temerosa de ver o quanto ele estava
ferido.
Ele sorriu e inclinou a cabeça para trás.
– Você está flertando comigo?
– Admito que eu estava pensando nisso – eu disse com atrevimento,
erguendo as sobrancelhas. – Mas mudei de ideia.
Passei a mão por cima dele para deixar o trapo na tigela de água
ensanguentada. Ele pôs a mão sobre a minha, aprisionando-me. Nós olhamos
um para o outro.
Aí Kenté desceu o último degrau da escada e disse:
– Carô, não se mexa. O homem das sombras está bem atrás de você. Com
uma pistola apontada para sua cabeça.
CAPÍTULO
VINTE E SETE

A lanterna se apagou, como se uma sombra tivesse se descolado do teto e


caído sobre ela.
Sem minhas pistolas, eu estava indefesa. Um disparo ecoou acima de
minha cabeça, e eu caí no chão. Acima de mim, um armário explodiu em uma
tempestade de estilhaços. Markos praguejou.
A luz tremeluziu e voltou à vida.
– Você continua não sendo mais que uma irritação, senhorita Bollard. –
Cleandros estava a pouco mais de um metro de distância, com o cano de uma
longa pistola de pederneira apontado direto para Kenté. – Você não é forte o
suficiente para me superar.
Ela jogou um pingente quebrado no chão.
– Bom, eu vou continuar tentando.
Ele apontou a pistola para mim.
Claro, Markos saltou imediatamente da cadeira e se jogou entre o homem
das sombras e mim. Porque ele era um idiota.
– Muito cavalheiresco, milorde – disse Cleandros. – Você sabe que não
pode me impedir de matá-la se eu assim desejar.
Markos olhou para ele com raiva.
– Acho que você quer dizer Vossa Excelência. – Eu desconfiei que ele
estivesse com mais raiva de ser chamado pelo título errado do que de estar
prestes a ser alvejado.
– Estou pensando em matar você também – disse Cleandros. – Mas acho
que vou levá-lo para Valonikos pela recompensa, afinal de contas, agora não
preciso dividi-la com Melanos e sua tripulação imbecil. – Ele gesticulou para
todos nós com a pistola. – Para o convés. Agora.
Eu não vi escolha além de obedecer.
– De onde ele veio? – sussurrei para Kenté enquanto subíamos a escada.
– Ele deve ter subido a bordo escondido durante a batalha. Eu o vi
andando pelo convés sob um manto de sombras, por isso eu o segui.
– Parem com essa conversa – ordenou Cleandros ao passar pela escotilha.
Ele fez uma mesura para nossa tripulação emprestada. – Abaixem as armas,
por favor! Continuem a navegar. Apenas não interfiram.
Nereus pôs a faca sobre o convés. As mãozinhas de Daria tremiam tanto
que ela deixou cair as pontas de corda que estava segurando, e seus olhos
nunca deixavam Markos. Nereus a estava ensinando a dar nós.
Uma pontada de emoção me atingiu. Ela não estava com medo por si
mesma, mas pelo irmão.
Markos virou para trás e lançou para a menina um olhar agoniado. Sua
mão quase não se moveu, mas Cleandros viu mesmo assim.
Ele empurrou o cano da pistola nas costas de Markos.
– Se você tocar nessa espada, sua irmã morre enquanto você assiste.
Remova o cinto.
– Não.
Cleandros apontou a pistola para Daria.
– Venha, criança. Para junto de seu irmão.
Ela obedeceu e segurou a mão de Markos. Com hematomas e cortes
visíveis no rosto pálido, ele largou o cinto da espada em uma pilha com as
outras armas.
O homem das sombras gesticulou para que fôssemos para a proa do cúter,
além da escotilha da frente e dos barris ali empilhados. Olhei para o céu roxo
com nuvens e percebi consternada que o sol tinha caído abaixo do horizonte.
Ele iria apenas continuar a ganhar poder.
– Já que vocês são ignorantes – disse Cleandros –, vou lhes contar sobre os
filhos da noite. Alguns de nós se dedicam muito à prática de espreitar e se
esconder. – E acenou com a cabeça em direção a Kenté. – Outros, usam a
escuridão para extrair os medos mais profundos dos homens. Mas eu tenho
grande talento para a arte do sono e dos sonhos. Foi por isso que Vossa
Excelência, o emparca, me valorizava acima de todos os homens em seu
círculo interno.
Enquanto ele falava, meus membros ficavam inertes. Seria muito fácil,
pensei, simplesmente desistir.
– Vocês podem perceber que estão ficando cansados – disse Cleandros. –
Seus pensamentos ficando indistintos. – Esforçando-me para não bocejar,
tentei me lembrar do que era engraçado. – O emparca descobriu que, nesse
estado, uma mente se torna suscetível. Facilmente influenciável. – Ele deu
um sorriso malicioso. – Em uma sala comigo, um conselho inteiro de homens
pode se ver concordando com tudo o que diz o emparca.
Até as pálpebras de Kenté piscaram.
Markos beliscou o próprio braço.
– Meu pai confiava em você. E você o traiu.
– Seu pai não se importava com ninguém abaixo dele. Você, de todas as
pessoas, devia saber disso. Ainda não está cansado?
Markos olhou para ele com raiva. Embora soubesse que seu pai não o
amava, eu percebi que o fato de Cleandros também saber disso o deixava
com raiva.
– Agora – disse o homem das sombras –, sentem-se no convés.
Eu balancei, em pé. O tom de voz dele era muito amistoso e razoável.
– Markos – disse Kenté. – Não.
Ele piscou.
– Não é… É que… Eu o conheço. Estamos seguros. – Ele tocou uma das
mãos na testa, assombrado.
– Ele matou sua mãe. – O olhar de Kenté movia-se apressadamente entre
Markos e o homem das sombras. – Ele traiu sua família.
– Eu me lembro. – Não parecendo convencido, ele bocejou. – Lembro,
sim.
Isso me fez bocejar, também. Eu me perguntei por que Kenté parecia tão
excitada. Eu me sentia muito relaxada.
O homem das sombras fez um aceno com a mão.
– Isso não vai funcionar, você sabe. – Ele deu um sorriso indulgente para
Kenté, como um pai divertido com as travessuras de uma criança. – Seu
poder é só um lampejo em comparação com o meu.
– Markos! – ela tentou outra vez. – Seu irmão. Cleandros o matou.
Lembra? Seu irmão.
– Loukas! – A cabeça dele caiu. – Eu… Eu só vou sentar um instante.
– Não! Você vai permanecer de pé. – As palavras saíram freneticamente
da boca de Kenté. Eu desejei que ela estivesse mais calma. – E você vai
lembrar por que quer lutar contra esse homem!
As pernas de Markos cederam, e ele caiu de joelhos. Ao longe, alguém riu.
Achei que ele havia tido a ideia certa.
– Preciso descansar – murmurei, esfregando os olhos. – Só por um minuto.
A voz do homem das sombras parecia vir através de um denso nevoeiro.
Ele se virou para Kenté.
– Você pode ser capaz de resistir a mim, sabia? Mas seus companheiros,
não.
Muitas coisas aconteceram ao mesmo tempo. Kenté levantou as mãos para
o céu. Markos e Daria desapareceram. Nereus soltou um grito de guerra
feroz, puxou uma faca da parte de trás de sua calça e saltou – não em direção
ao homem das sombras, mas em minha direção. Ele pegou meu braço, abriu
minha mão e a cortou. Uma onda de dor queimou minha pele.
– Ai! – Eu segurei a mão sangrando. – Por que você…
Aí percebi que estava outra vez acordada. Piscando para que a sonolência
passasse, tentei me concentrar outra vez no que estava acontecendo.
Cleandros riu para Kenté.
– Você se acha poderosa o suficiente para escondê-los de mim? Os mestres
da Academia vão purgá-la desse excesso de confiança infantil. – Ele fez um
gesto impaciente, como se afastasse teias de aranha.
E congelou, com a voz de escárnio presa em sua garganta, quando Markos
e Daria não reapareceram.
Ele se virou para minha prima e disse com raiva:
– Você não tem treinamento. Você não devia conseguir ocultá-los de mim.
Não é possível!
Antes que eu pudesse me mover para detê-lo, Cleandros apontou para o
ponto onde eles tinham desaparecido e puxou o gatilho.
Ninguém gritou. Nenhum sangue respingou no convés. Eles simplesmente
não estavam ali.
Ele avançou sobre Kenté, enfiando pólvora e munição em sua pistola.
– Onde eles estão?
Eu recuei e arrastei minha prima comigo. Meu calcanhar atingiu o pé do
gurupés. Eu tropecei e segurei um estai para me equilibrar.
– Eu podia ter cobrado dos Bollards um resgate por sua prima – disse
Cleandros a Kenté. A raiva embargou sua voz. – Mas tudo tem limite. Que
isso seja uma lição para você.
Atrás dele, Nereus saltou sobre a arma, mas era tarde demais.
O disparo me atingiu do lado direito do peito, e sangue vermelho jorrou
em um borrifo.
Dor, uma dor lancinante. Todo o meu braço foi tomado. Pontos bailavam
em meus olhos. Minha respiração estava irregular e arrastada, como se eu de
repente não estivesse conseguindo inalar ar suficiente. Sangue manchava
minha camisa e meu colete. Eu cambaleei e escorreguei no gurupés. Minha
mão se afrouxou no estai.
O tempo pareceu desacelerar. Eu ouvi, como se a grande distância, meu
sangue pingando no convés. À minha frente, o mar subia e descia.
Há alguns marinheiros que dizem que o drakon é apenas seu destino
chegando por você. Se ele ainda estivesse ali embaixo, ele não seria atraído
como um tubarão por meu sangue na água? Seria esse meu destino, ser
devorada por um monstro marinho como o Nikanor e sua tripulação
malfadada?
Não. Fui tomada por uma compreensão. O drakon pertencia ao mar. Assim
como eu. Aquele mesmo drakon estava me seguindo desde o rio. Como o
quê? Um protetor? Um guia? Se eu estivesse certa, o drakon tinha tanta
chance de me machucar quanto de arrancar a própria cauda.
Eu larguei o estai e caí no mar.
O homem das sombras riu. Ao longe, ouvi Kenté gritar quando atingi a
água. Eu não conseguia sentir o braço direito, e minhas pernas pareciam uma
massa inerte. Uma onda passou por mim, agitando o sangue que formava
uma nuvem ao meu redor como tinta derramada. Eu inalei uma boca cheia de
água do oceano, e o sal ardeu em meu nariz.
Eu estava errada. E minha vida seria o preço a pagar pelo meu erro.
Aí eu a ouvi.
CAPÍTULO
VINTE E OITO

– Eu a sssssssaúdo, irmã.
Algo escorregadio, porém sólido, se ergueu por baixo de mim. Eu
emaranhei os dedos de minha mão boa no tufo que percorria as costas de algo
que parecia penas, mas tinha a sensação de algas marinhas. Seu pescoço era
pontilhado de amontoados de cracas. Com o resto de minha força, apertei os
joelhos em torno de seu corpo.
Ele saltou das ondas como uma explosão. Ele era lindo.
Espuma foi borrifada por entre os dentes do drakon quando ele girou a
cabeça. No convés do Vic, um barqueiro cambaleou para trás, gritando. O
cheiro de sal e cobra umedeceu o ar. Com água correndo em meus olhos, eu
lutei para me segurar.
– Mostre-me seu inimigo! – ele sibilou.
Eu apertei os olhos e visualizei Cleandros, me concentrando bem em suas
túnicas com detalhes dourados e seu rosto comum. Tremendo
descontroladamente e sentindo o gosto de sangue na boca, eu esperava, de
algum modo, que ele pudesse me entender.
– Ah, eu sinto seu cheiro – declarou o drakon. – O arranhar de areia do
sono. O doce sabor da escuridão. Eu já comi um de vocês antes.
Cleandros se virou para encará-lo, então foi como se todo o mundo
enegrecesse. O homem das sombras desapareceu, assim como tudo mais – o
céu, as ondas em movimento e o Vic.
Eu ouvi o drakon rir.
– Tolo. O mar não teme a escuridão.
O drakon saltou fazendo um arco fora da água como um arco-íris, e eu me
agarrei às suas costas enquanto ele deslizava sob mim. Ele arrancou o homem
das sombras do gurupés com um ruído de trituração de abalar os ossos. Senti
as laterais do corpo dele passarem por baixo de minhas pernas quando o
drakon o engoliu. Sua cabeça atingiu as ondas com muito barulho do outro
lado da proa do Victorianos.
O mundo mergulhou novamente no crepúsculo bem a tempo de eu ver o
oceano correr em direção a mim. Senti um nó no estômago, e inspirei
freneticamente uma última vez.
Eu afundei.
E afundei.
Eu não conhecia nada.
Depois de muito tempo, percebi que eu não estava morta. Notei que eu
estava respirando, ou, pelo menos, estavam saindo bolhas do meu nariz.
Tentei manter a conta dos segundos à medida que ia para baixo, mas era
como tentar agarrar o vento com a mão.
Eu desisti e me deixei flutuar.
Fachos de luz penetravam a água turva, emprestando a ela uma cor
turquesa. Eu não conseguia ver exatamente a fonte da luz. Talvez ela
estivesse a toda minha volta.
Como eu tinha chegado até ali? Eu não conseguia me lembrar.
Alguma coisa roçou minha perna. Eu me debati em pânico, até que vi o
corpo listrado de amarelo e preto de um peixe nadando em direção à
escuridão. Um segundo peixe veio investigar e nadou ao meu redor.
Eu empurrei a camisa inflada, tentando ver onde eu tinha sido atingida. A
bala rasgara um pedaço irregular de minha carne. Hesitantemente, toquei a
pele pálida e pegajosa em torno do buraco, temerosa demais para enfiar meu
dedo ali. Não havia rastro de sangue se espalhando pela água.
Talvez eu estivesse morta. As cores do mar e do peixe me lembraram de
meu sonho sobre a sra. Singer, a esposa do barqueiro afogada. Talvez tivesse
sido um sonho verdadeiro, uma antevisão de meu próprio destino.
Fechei os olhos e, quando tornei a abri-los, estava em uma cidade.
Eu estava parada no alto de uma grande torre, as ruínas de prédios antigos
espalhadas à minha frente. Envoltas em algas e salpicadas com cracas,
algumas estruturas tinham tombado, as vigas de madeira que antes formavam
seu esqueleto estavam apodrecidas. A pedra branca resistia, arredondada e
alisada pelo tempo e pela água. Peixes nadavam para dentro e para fora das
janelas, e um grande bloco de coral crescia no meio do que antes tinha sido
uma rua.
Toda uma cidade, no fundo do oceano.
Ao meu lado, havia uma garça. Eu pisquei, surpresa. A garça não parecia
mais preocupada que eu em respirar. Ela estava no alto da torre, sobre uma
perna fina e comprida, com a outra escondida entre as penas. Seus olhos
vítreos mantinham-se fixos em mim.
– Eu estou imaginando coisas – eu disse a ela.
A garça falou com voz de mulher.
– Por que você acha isso?
– Porque eu levei um tiro no coração. Ou estou sonhando por causa da
febre, ou estou morta.
– Risadas. Seu coração não fica aí.
– Como você poderia saber? Você não é humana.
– Não sou? – perguntou ela. O que me irritou, porque obviamente ela era
uma garça.
– Você não sabe o que é? – eu perguntei, soltando bolhas pela boca.
– Qual minha aparência para você?
– Uma garça – eu disse.
– Que estranho. Risadas.
– Por que você faz isso… Diz “risadas”? Por que simplesmente não ri?
– Já me disseram que meu riso deixa os humanos nervosos. – A garça
girou sobre a perna e começou a saltar em direção a mim.
– Qual o som que ela faz?
– Como o vento de um furacão. Como uma centena de facas. – Sua voz
transformou-se em um sussurro sibilante. – Como os sonhos de um afogado.
Os sonhos de um afogado. Eu tornei a pensar nos sonhos que tivera desde
a noite em que conhecera Markos. Com a falecida sra. Singer da Jenny
deitada em um leito de coral, e todos aqueles peixes estranhos e coloridos. Os
peixes eram iguais a esses.
– Sei quem você é – eu disse.
– Nós duas somos quem deveríamos ser.
Aquela que vive nas profundezas, foi como Nereus a chamara. Suas
gaivotas tinham me observado, seguindo-me com olhos negros e redondos,
desde que eu era criança. Ela havia criado um nevoeiro através do qual
apenas eu conseguia ver. Seu drakon me protegia.
E eu pertencia a ela.
– Por que você me mandou sonhos sobre uma mulher morta? – perguntei.
– Eu lhe enviei sonhos sobre este lugar. A mulher morta está na sua
cabeça.
– A garça está na minha cabeça também? Por que você disse que era
estranho? – Enquanto o mar erguia e agitava meu cabelo, esclareci: – Eu ver
uma garça.
– Uma ave ao mesmo tempo do mar e das terras dos rios – disse ela. –
Talvez não seja tão estranho, afinal de contas.
– Por que eu nunca a vi antes de hoje?
– Eu podia lhe fazer a mesma pergunta. – A água se agitou a minha volta
em uma carícia delicada. – Nunca houve um dia de sua vida em que eu não
estivesse perto.
Eu olhei além dos telhados desmoronados.
– O que é esta cidade?
– Os humanos dizem que ela foi perdida – disse a garça. – Mas eles estão
errados. Ela está onde sempre esteve, uma prova de que aqueles que eu
reclamo pertencem a mim. Arisbe Andela. Nemros, o Saqueador. – Sua voz
se transformou em um chiado. – Caroline Oresteia.
Eu estremeci ao me lembrar de como Nereus dissera que o mar guarda as
coisas que toma.
A garça olhou para a cidade.
– Foi o mundo que mudou. – Havia certa melancolia em sua voz. Ela
trocou de pernas e, com elas, de assunto. – Quem é ele, aquele com quem
você viaja?
– Nereus?
A garça fez um som de escárnio.
– Esse eu conheço. Ele é meu. Faz parte de mim tanto quanto os recifes, as
águas e os peixes que nadam. Estou falando do outro.
– Markos. Ele é o verdadeiro emparca de Akhaia. – Se ela já não sabia
sobre ele, eu estava relutante em lhe contar demais. Nereus me alertara que
ela era traiçoeira.
– Risadas. Eu devia saber. Senti nele o fedor de ar da montanha. – Achei
que ela teria torcido o nariz, se tivesse um. – E, ainda assim, há alguma
coisa… Bom. Ele não me interessa. Enquanto aquele que jaz sob a montanha
ainda dormir, como tem feito pelos últimos seiscentos anos.
– Por que o deus de Akhaia dorme? – perguntei. – Por que ele não fala
com ninguém além dos oráculos?
Eu não vi seu sorriso, mas o senti. Era um sorriso que sugeria dentes,
embora eu não pudesse dizer por que nem como. Garças não têm dentes.
– Porque ele cometeu o erro de entrar em guerra comigo. E perdeu.
– Todo deus tem um país?
– Alguns têm muitas cidades e muitos países. Todas as cidades junto do
mar são minhas. Valonikos. Iantiporos. Brizos. – Ela entrou em um silêncio
meditativo. – Valonikos nunca pertenceu a ele.
– É por isso que Akhaia não para de perder partes de seu império? – Um
peixe estava tentando nadar por dentro de meu cabelo. Eu resisti à vontade de
espantá-lo. – Porque seu deus está adormecido?
– Akhaia já foi forte – concordou ela. – Ela é menor, agora. Ele cuida de
suas feridas e não fala com ninguém. Ele não escolhe guerreiros. Ele não
pode protegê-la.
– Ele precisa de seiscentos anos para cuidar de suas feridas?
– Isso não passa de um momento para ele.
– E você? – Eu percebi que minha pergunta não fazia sentido e
acrescentei: – Escolhe guerreiros?
– Risadas – foi tudo o que disse a garça. Eu achei que ela piscou, mas
podia ser alguma partícula flutuando pela água turva.
Eu me perguntei se ela iria me propor fazer alguma barganha, como com
Nemros, o Saqueador. Eu não sabia ao certo se confiava nela, nem em suas
barganhas.
– Confiança. – Ela inclinou a cabeça emplumada. – Isso não importa.
Você vai me servir mesmo assim.
– Você não tem o direito de ouvir as coisas em minha cabeça – eu disse. –
Os pensamentos em minha cabeça são meus.
– Eles são meus, porque você me pertence – disse ela.
Os pensamentos em minha cabeça não estavam particularmente lisonjeiros
naquele instante.
– Risadas. Os humanos sempre acham que podem lutar contra ele. Você
não pode. – Suas palavras eram assustadoramente iguais às do homem dos
porcos. – Ele vem por você, deslizando pelas profundezas, como meu drakon.
Ele sempre vem por você.
– O quê?
– Seu destino.
O tempo parou. Ou mudou. A garça desapareceu. A cidade desapareceu.
Eu flutuava sozinha. Minutos se passaram, ou anos, enquanto eu boiava em
um infinito vazio azul.
Alguma coisa surgiu acima de mim. Um padrão do qual eu quase
lembrava, embora eu o tivesse visto muito tempo atrás, em uma época
esquecida.
A luz do sol se movia e tremeluzia na superfície da água. Curvei as mãos e
dei um impulso em direção a ela. Meus pulmões queimavam. Bolhas
passaram por mim. Os instintos estavam tomando conta. Todo o meu corpo
se esforçava para subir, subir, subir…
Minha cabeça irrompeu na superfície.
Para meu grande alívio, a primeira coisa que vi foi uma praia. O sol
brilhava sobre uma linha de ondas que quebravam em cima de seixos
arredondados e coloridos, e ali, no horizonte distante, havia uma cidade de
telhados vermelhos. Eu entendia, agora, como Jacari Bollard devia ter se
sentido quando pôs os olhos em Ndanna.
A cidade era Valonikos.
Eu caminhei até a praia com a calça grudada às minhas pernas, e a camisa
tinha uma mancha rosa-clara onde eu fora baleada. Meu pé esquerdo pisava
dentro de uma bota cheia de areia. A outra bota havia desaparecido. Eu tinha
certeza de que eu parecia o marinheiro de pior reputação a dar na praia de
Valonikos.
Eu olhei com azedume para o mar.
– Você podia ter me deixado um pouco mais perto da civilização. E com
os dois sapatos.
Com areia sugando meu pé descalço, caminhei mancando em direção à
cidade distante. Eu tinha caminhado uns dez metros quando uma onda se
ergueu e quebrou na praia, com uma mancha marrom visível na espuma
revolta. A onda recuou e cuspiu minha bota direita.
Eu olhei fixamente para ela.
O repuxo arrastou a bota, que caiu de lado e começou a deslizar areia
abaixo.
Aparentemente, aquele era o tipo de coisa que iria acontecer agora que a
deusa estava interferindo em minha vida. Eu dei um grito de alegria e
persegui a bota pela praia.
CAPÍTULO
VINTE E NOVE

O Vic parecia belo amarrado às docas, mas não era o mesmo que virar a curva
e ver a Cormorant. Eu não o amava daquele jeito como descrevera para
Markos – ele não era minha casa. Mesmo ali parado mansamente na baía com
as velas amarradas, ele era intimidador. Eu ainda não havia me esquecido de
todas as vezes que sua visão me assustara até os ossos.
Era engraçado, suas letras pintadas ainda diziam “Victorianos”, como
sempre, mas eu agora só pensava nele como Vic.
Subi pela prancha e passei a mão por sua amurada lustrada.
– Está bem, Vic – sussurrei. – Aqui estamos nós.
Uma escotilha se fechou com uma batida. Eu estava desarmada, mas
minhas mãos voaram para minha cintura por instinto.
Era Markos.
Ele estava parado sozinho sobre o convés com a mão apoiada no cabo da
espada. Quando me viu, ele congelou. Seus olhos estavam fundos e
avermelhados.
– Quem é você? – ele disse, sem rodeios. – Você não é ela. Eu não
acredito nisso.
– Eu não me importo. Eu desci, e minhas botas surradas se esfregaram nas
bolhas esfoladas em meus calcanhares. – Eu estou andando há quilômetros, e
estou queimada de sol. Tenho areia em todos os lugares possíveis em que
uma pessoa pode ter areia em seu corpo e, sim, eu estou dizendo todos os
lugares. E estou faminta.
Ele me bloqueou.
– O que Carô fez na primeira vez em que eu tentei beijá-la?
– Você sabe o que eu fiz. Estávamos os dois lá! – Exclamei, desesperada.
– Ah, entendi. Isto é um teste. – Revirei os olhos. – Eu dei um tapa em você.
E joguei um balde de água fria em você.
Ele tocou minha camisa endurecida de sal. Eu odiei o aspecto de seus
olhos assombrados.
– Você foi baleada. Caiu na água. O drakon claramente engoliu você.
– Ele nunca me comeria.
– Então você se afogou.
Eu sussurrei:
– Ela jamais deixaria que eu me afogasse.
Ele empurrou bruscamente para o lado o decote de minha camisa. Com
dedos estendidos, ele tateou minha pele.
– O que você está…? – Aí percebi. Eu segurei sua mão na minha e a desci
alguns centímetros, até o buraco rasgado do lado direito da minha camisa,
embaixo de minha clavícula. O mar lavara o sangue seco.
Enfiei o dedo através do furo no tecido e o agitei.
– Tudo bem?
Ele soltou uma respiração irregular.
– Carô. Eu nem mesmo… Tem uma cicatriz. Mas está curada. – O olhar
que ele me lançou foi tão intenso que me pegou de surpresa.
Eu arregacei a manga.
– E foi aqui que os Cães Negros atiraram em mim. Na mesma noite em
que nos conhecemos. Como você deve se lembrar. – Eu o afastei e passei por
ele. – Agora, se você terminou de me tratar desse jeito rude, posso subir a
bordo de meu próprio barco? Preciso mencionar que fui baleada
recentemente?
Eu ajeitei a camisa, perguntando-me se ele podia ouvir a velocidade com
que meu coração batia. Minhas orelhas ardiam. Eu precisava botar espaço
entre ele e mim, para restaurar as coisas a seu estado normal. Eu passei pela
escotilha e peguei a escada.
– Achei que você pudesse ser um homem das sombras. Um assassino dos
Theucinianos. – Ele me cobriu de perguntas. – Onde você esteve? Por que
não foi devorada pelo drakon? E como chegou a Valonikos?
Eu saltei os últimos dois degraus. Havia os restos de uma refeição
dispostos sobre a mesa.
– Não sei. – Peguei um pedaço de queijo e o devorei. Eu nunca tinha
sentido tanta fome. – Foi aqui que eu saí andando do mar – eu disse com a
boca cheia de queijo. – Logo ao sul da cidade.
Markos olhava fixamente para mim, atônito. Ou talvez ele estivesse
apenas horrorizado com minhas maneiras à mesa.
– O que você quer dizer com saiu andando do mar? Por que não de baixo
dele?
– Markos, eu estou bem. Ela jamais deixaria que nenhum mal me
acontecesse. – Eu engoli. Parecia estranho falar de coisas tão mágicas e
pessoais. Nós podíamos muito bem estar falando sobre o tempo.
– Você falou com ela.
Eu peguei um pedaço de pão.
– Eu não quero falar sobre isso.
– Você falou mesmo com uma deusa.
– Markos.
– Você, agora, está viva ou morta? – Ele olhou para mim como se eu não
fosse exatamente humana.
– Eu me sinto viva. Eu prefiro não pensar mais muito sobre isso. Onde está
todo mundo? – Eu inspirei profundamente. – Nereus ainda está aqui, não
está? – Ocorreu-me o pensamento terrível de que talvez sua tarefa tivesse
terminado, e a deusa do mar o houvesse levado de volta. Eu não conseguira
me despedir.
– Onde mais ele estaria? – Eu tinha me esquecido de que Markos não sabia
tudo sobre Nereus. – Ele levou Daria para ver o mercado de peixes. Os
Bollards têm quartos acima de seus escritórios, aqui. É onde seus pais estão
ficando. E Kenté.
Deixei a faca de manteiga cair, fazendo barulho.
– Markos, você é burro? Não devia estar aqui sozinho!
– Eu queria ficar sozinho. A esposa de meu primo insiste em me mimar
sem parar. Eu vim aqui atrás de silêncio. Para pensar.
– Sobre o quê?
Ele ergueu as sobrancelhas.
– O que você acha? – O silêncio que se seguiu foi ao mesmo tempo
significativo e estranho. Ele o quebrou limpando a garganta. – Você quer
cerveja?
– Acho que não. Preciso de água, e muita. – Minha garganta e minha pele
pareciam esticadas e ressequidas.
Ele estendeu o braço sobre a mesa para tornar a encher meu copo de lata.
Eu sorri. Era engraçado vê-lo pegar o jarro e me servir – algo que ele nunca
teria feito quando nos conhecemos. Fiquei maravilhada com o quanto era
agradável estar comendo com ele.
– O que aconteceu na ilha? Eu não entendi como Kenté o escondeu do
homem das sombras. Isso são tortas de carne?
Ele empurrou a bandeja em direção a mim. As tortas estavam frias, mas eu
pouco me importei.
– Na verdade, ela não fez isso. Nós estávamos atrás daquela pilha de barris
no convés. Quando Nereus gritou, isso me acordou o suficiente apenas para
me lembrar de que estávamos em perigo. Eu agarrei Daria e mergulhamos
para trás dos barris. – Seu rosto enrubesceu. – Bem, na verdade foi mais ela
quem me agarrou. Eu acho que ele estava se concentrando em mim, sabe? Foi
uma coisa muito estranha. Eu fiquei muito confuso.
– Eu sei. Também senti isso.
Ele prosseguiu.
– Só quando Cleandros começou a gritar com Kenté eu percebi que ele
não tinha visto quando nos escondemos. Quando não reaparecemos, ele
achou que isso significava que ela era mais poderosa que ele. Foi quando ele
ficou com raiva e atirou em você.
Enquanto eu comia e bebia, ele me contou o que tinha acontecido com
nossos aliados. Cinco dias tinham se passado desde que eu caíra no mar.
Nereus levara o Vic até Iantiporos, onde Kenté visitou os escritórios da
Companhia Bollard. Os Bollards mandaram navios para resgatar a tripulação
do Antílope e transportar os Cães Negros para as autoridades apropriadas.
Meu pai e minha mãe decidiram se assegurar de que Markos e Daria
chegassem a Valonikos em segurança. Minha mãe quase mandou Kenté de
volta para Siscema, só que Daria deu um ataque e se recusou a navegar sem
ela. Enquanto isso, os barqueiros se despediram deles e deram início a sua
viagem de volta para Pontal de Hespera na Conthar.
– Vocês ainda têm as minhas coisas? – perguntei.
– Na cabine da capitã. – Ele empurrou sua cadeira para trás. – Eu vou…
Eu também me levantei. Meu coração batia forte.
– Não, eu pego.
A cabine tinha sido limpa; e a cama, arrumada com lençóis e cobertores
limpos. Encontrei meu cinto em uma prateleira. Tirei uma das pistolas do
coldre e passei o dedo pelo leão-da-montanha. Aí, toquei a aba de meu
chapéu tricorne, que estava na prateleira ao seu lado. Eles pareciam os
mesmos. Mas tudo estava mudado.
Alguma coisa bloqueava a luz da lanterna. Eu girei e vi Markos apoiado na
porta. Meus olhos desceram para seu casaco. Era o que ele tinha comprado
em Siscema, embora o resto de suas roupas fosse novo. Desejei passar o dedo
por aqueles detalhes dourados. Era um casaco muito atraente, especialmente
nele.
– Ainda o estou usando. – Ele se esticou como os leões em minhas pistolas
de duelo akhaianas e deu um sorriso. – Você gostaria que eu fosse outra vez
Tarquin Meridios?
– Por que eu gostaria?
– Admita, você o achava bonito.
Por todos os deuses, ele estava flertando comigo, pouco mais de meia hora
depois do meu retorno dos mortos.
– Havia coisas que eu queria dizer a você – disparei. – Não para Tarquin
Meridios. Você. – Meu rosto esquentou. – Mas você estava morto.
– Eu senti algo parecido – disse ele. – Mas aí, era você quem estava morta.
Prossiga, por favor.
De repente, fiquei tímida.
– Você primeiro.
Um lado de sua boca se curvou para cima.
– Muito bem. – Ele desviou os olhos de mim e disse: – Eu finalmente
percebi por que não teria funcionado na primeira vez que tentei beijar você.
Eu cruzei os braços.
– Porque eu não sou o tipo de garota que beija garotos desconhecidos?
– Não. Bom, sim. Isso também. – Sua voz estava firme e séria. – Toda a
minha vida, esperei que as pessoas me respeitassem porque eu era o filho do
emparca. Mas você não fez isso. No início, isso me deixou com raiva. Na
verdade, me enfureceu. Você não tem ideia.
Eu tinha alguma ideia.
– Mas, agora, eu a conheço melhor. – Hesitantemente, ele enrolou um de
meus cachos em seu dedo. Eu não o detive. Encorajado, ele passou a mão por
meu cabelo. Fez cócegas, mas pequenos fogos de artifício se acenderam por
todo meu corpo.
– Agora, eu entendo. – Ele baixou a voz. – Você respeita pessoas que
cuidam de outras pessoas. Pessoas ousadas. E corajosas. No início, eu não
conseguia entender isso. Por que você tinha o mais comum dos barqueiros em
mais alta conta que a mim. Você respeita as pessoas por causa das coisas que
elas fazem. Você era diferente de todo mundo que eu conhecia. Você sabia o
que eu não sabia, que são as coisas que fazemos que nos tornam quem somos.
Eu sabia o que queria dizer, mas também sabia o que aconteceria se
dissesse.
– Markos.
Ele se apoiou na porta, tentando com tanto esforço parecer natural que até
eu quase fui enganada.
– Eu acho que você é a pessoa mais corajosa que conheço. – Eu dei alguns
passos para trás na cabine.
– Você vai para a cama. É claro. Você passou por muita coisa. – Ele
enfiou os dedos no cabelo. – Quero dizer, você estava morta. Eu só vou…
Eu pousei a mão em sua camisa e afastei bem os dedos. O calor sólido que
emanava dele fez com que eu me sentisse ousada.
– Quando você me beijou em Casteria, eu não sabia se aquilo significava
alguma coisa – eu disse.
Seu peito arquejou sob meus dedos.
– Como se eu fosse beijar alguém daquele jeito sem significar nada.
– Ah, você não faria isso?
– Não – disse ele, limpando a garganta. – Desse jeito.
– Talvez você quisesse apenas beijar uma garota antes de morrer.
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Talvez eu não quisesse morrer sem beijar você.
– Foi isso o que eu acabei de dizer.
– Você sabe que não. Não mesmo. – Ele sussurrou: – Posso, por favor,
ficar? Juro que não vou fazer nada.
Ele recuou e colocou toda a extensão da cabine entre nós, para provar suas
intenções. Mas a cabine era pequenina, e ele era alto demais para ela. Eu senti
sua presença, algo quente e físico, tomar todo o aposento.
– Por que você disse isso desse jeito? – perguntei. – Você não vai fazer
nada. Se e quando formos fazer alguma coisa, e não estou dizendo que
vamos, seríamos nós dois fazendo. – Eu umedeci os lábios. – Tipo, talvez eu
possa querer fazer coisas. Mas, aí, você fala como se dependesse de você e
me tira completamente disso.
– Des… Você quer?
Ao perceber que tinha ido longe demais, eu me preparei para mudar de
rumo.
– Não sei. Talvez.
– Nós estamos falando sobre… Eu só queria ter certeza de que estamos
nos referindo ao mesmo tipo de… coisas aqui. – A tensão se estendeu entre
nós. Ele se aproximou, como se houvesse um cordão que o conectasse a mim,
e eu simplesmente o tivesse puxado.
– Há outro tipo de coisa que acontece entre uma garota e um garoto?
Ele me deu um sorriso malicioso.
– Você está perguntando?
Eu o empurrei pelo ombro.
– Cale a boca.
Ele me beijou.
Uma garota que, aos dezessete anos, é capitã de um cúter pirata que ela
tomou como presa não devia deixar que sua cabeça fosse virada por beijos,
mesmo que fossem dados por um garoto que era o emparca de direito de todo
um país. Particularmente não se a garota soubesse fatos embaraçosos sobre o
dito emparca que deviam torná-lo completamente sem atrativos. Como, por
exemplo, ele não saber carregar uma pistola nem dobrar uma vela
adequadamente, ou, na verdade, não fazer qualquer coisa útil exceto parecer
bem com duas espadas na mão ao mesmo tempo.
Eu não liguei. Tudo deixou minha cabeça, exceto o quanto eu estava ávida
por seus lábios e sua língua, mesmo que eu precisasse ficar na ponta dos pés
para alcançá-los. Seu cheiro, toque e sabor eram de Markos. Eu simplesmente
não podia estar beijando mais ninguém.
Era tudo ele. A maciez de seu cabelo, quando finalmente enrolei meus
dedos nele. O calor de seu hálito, quando ele desceu arrastando os lábios pelo
meu pescoço. Nós nos envolvemos um no outro até não haver espaço entre os
dois. Até que eu não consegui mais dizer qual coração pulsante eu sentia.
Ele riu com delicadeza em meu ombro.
– Não posso acreditar que isto está acontecendo.
– Está tudo bem – eu disse. – Amanhã podemos voltar a não gostar um do
outro.
– Você acha que não gostamos um do outro?
– Acho que considero você enlouquecedor. – Cerrei o punho em torno de
sua camisa.
– Bom. Isso é diferente.
Sua voz estava irritantemente presunçosa, de modo que eu o beijei um
pouco mais para calá-lo.
– É muito provavelmente porque – ele disse; seu hálito fazia cócegas em
meu pescoço – nós passamos muito tempo juntos naquele maldito barco. É só
isso. Uma… Uhm… Coisa natural – concluiu ele distraidamente, como se
não pudesse se dar ao trabalho de pensar na palavra. – Uma reação – ele disse
vários minutos mais tarde, beijando-me até chegar ao ouvido. Tão tarde, na
verdade, que eu mal conseguia me lembrar do que ele estava falando.
– Concordo – eu disse. – Sem dúvida, não é nada. – Eu tentei escalá-lo,
envolvendo as pernas em torno de sua cintura. Suas costas bateram contra a
parede, fazendo alguma coisa na prateleira se mexer e cair.
Por fim, encontramos a cama, o que não foi difícil nem no escuro, porque
a cabine era muito pequena.
– Markos – hesitei, sem saber ao certo o que ele iria pensar. Mas era
preciso que aquilo fosse dito. – Esta não é… minha primeira vez. Se é que
isso importa. O que não deveria. É só que… eu achei que você devia saber.
Caso…
– Carô. Você está falando demais.
O alívio relaxou a tensão em meus ombros.
– Eu quase esperava que você fizesse uma observação grosseira sobre as
garotas das terras dos rios.
Eu o senti congelar.
– Eu fui um babaca empolado quando disse isso.
Eu não ia discordar daquilo.
– O que você quer fazer? – sussurrei.
Meu coração palpitava com um medo silencioso. Eu tinha medo que ele
voltasse a pensar com sensatez outra vez e lembrasse que isso era uma ideia
terrível. Que nós dois juntos éramos algo parecido com o que acontece
quando uma pederneira atinge aço.
– Tire mais de suas roupas – disse ele com voz rouca, e isso acabou com
minhas preocupações.
Seu casaco estava pendurado no braço esquerdo, onde havia ficado preso,
e nós dois tínhamos nos esquecido disso. De minha parte, minhas mãos
estavam dentro de sua camisa aberta. Eu sempre admirara ombros
masculinos, e os dele eram especialmente bonitos, com toda aquela esgrima.
Eu envolvi a perna em torno da dele. Meus dedos descalços dos pés fizeram
uma trilha pelo músculo de sua panturrilha. Eu nunca imaginara que seu peso
fazendo pressão sobre meu corpo fosse uma sensação tão boa.
– Eu quis dizer, além disso.
– Eu não tinha pensado além disso. – Ele puxou de leve um de meus
cachos e o observou se encolher outra vez em um saca-rolha. – Amo seu
cabelo. – Com os olhos baixos, ele engoliu em seco. – Carô… Você sabe que
eu não posso lhe prometer nada. Eu… simplesmente não posso.
– O que… O que você quer dizer com… “prometer”? – gaguejei.
– Você sabe, casamento. Um noivado. Esse tipo de… – Sua voz se calou.
Eu vi seus olhos morrerem um pouco, preparando-se para minha reação.
Eu o empurrei para trás e me ergui apoiada sobre os cotovelos.
– Como se eu fosse querer isso! Eu tenho dezessete anos. Tenho coisas
mais importantes a fazer.
Ele olhou para mim com um meio sorriso estranho.
– Você não é parecida com ninguém, hein?
– E você é um mentiroso, Markos. Você disse que não tinha pensado além
disso. Você pensou o suficiente para vir com esse discursinho, não foi? – Eu
me joguei no travesseiro. – Casamento. Eu vou ser uma capitã e uma
corsária. Eu vou ser o terror dos mares. Quem quer que se case com você, vai
ter de usar vestidos bonitos, ir a festas e aprender o nome de uma centena de
políticos chatos.
– Ah, vestidos bonitos, isso parece uma tortura – sussurrou ele. – Você
está mesmo à vontade com isso?
Mas eu estava. A ideia de qualquer outra mudança era demais para
suportar. Só daquela vez, eu queria fazer aquilo que desejava e deixar que o
destino se explodisse.
– Por que você está sorrindo? – perguntei.
– Porque – ele disse – nós finalmente estamos fazendo alguma coisa que
eu sei como fazer. – Ele tocou a camisa fina de linho que eu usava por baixo.
– Sim?
– Sim – eu disse com impaciência junto de seu cabelo, tentando
desemaranhar seu casaco do pulso esquerdo. Os botões tinham ficado presos.
Ele se atrapalhou com os laços em minha cintura.
– Sim? – Seu hálito quente fez cócegas em meu ouvido.
Eu me apertei contra ele, que grunhiu:
– Sim.
E chutei minha roupa íntima para o pé da cama.
Ele tirou a própria roupa com dificuldade, e eu lembrei que o havia visto
praticamente nu naquela vez no Lago das Garças. Eu não me dera ao trabalho
de olhar com muita atenção para ele, para ser honesta, pois não esperava nada
impressionante.
Bom. Isso tinha sido um erro. Mas não foi apenas seu corpo nu que me
surpreendeu. Ele estava coberto de hematomas roxos e tinha uma atadura
apertada em torno das costelas.
– Quieta. – Ele se aproximou para beijar meus lábios. – Os médicos dizem
que estou bem. Só está dolorido. – Nós estávamos apertados pele contra pele.
Eu o senti tremer; sua respiração era um adejar irregular no peito. – Carô?
Sim? – Ele prendeu o lábio inferior entre os dentes e esperou uma resposta.
– Por que você não para de me perguntar?
– Porque… – Uma ruga se formou entre seus olhos. Os músculos de seus
braços estavam tensos. – Eu cometi um erro da outra vez. Não quero fazer
isso de novo.
– Ah. – Eu o beijei, mas novamente ele recuou. Seus lábios deslizaram dos
meus, ainda teimosamente à espera. – Sim para tudo – eu disse.
A expressão séria em seu rosto quase me matou. Eu não conseguia
descobrir quando ele se tornara tão importante em minha vida. Era como
tentar identificar o momento em que você aprendeu a respirar. Eu tentei me
forçar a deixar o nervosismo, mas, afinal de contas, eu gostava muito mais
dele do que tinha gostado de Akemé. Então, não era a mesma coisa.
Eu o senti por toda minha pele, mesmo nos lugares em que ele não estava
tocando. Curvei as mãos sobre a pele descascando de sol em seus ombros e
achei que meu coração fosse explodir do meu peito. Quente, sua pele era
muito quente. E sólida e real.
Uma pontada estranha e ardente em meu coração fez com que eu o
puxasse para perto.
– Eu não achava que fosse tornar a ver você – sussurrei.
– Eu não achava que fosse tornar a ver você. – Ele enterrou o rosto em
meu pescoço e inspirou. – Você não devia ter voltado por mim. Foi perigoso
e estúpido.
– Essa sou eu. Perigosa e estúpida. – Eu sorri, e isso eliminou a
possibilidade de lágrimas.
O que ele fez em seguida as eliminou ainda mais.
CAPÍTULO
TRINTA

A voz de um barqueiro viaja longe. Isso é, ao mesmo tempo, uma bênção e


uma maldição.
Para nós, foi uma bênção, porque eu ouvi meu pai antes mesmo que ele
chegasse às docas. Me livrei dos braços de Markos e rastejei até a escotilha.
Eram meus pais, sem dúvida. Kenté vinha atrás deles, e Daria estava entre
eles usando um vestido florido com chapéu masculino.
– Você precisa sair!
Markos começou a vestir suas roupas.
– Achei que o povo do rio não tinha preocupações com a pureza de suas
filhas.
– Eles não têm. Bom, pelo menos, não meus pais. – E acrescentei: – Eu
acho.
Ele enfiou a camisa amarrotada por dentro da calça.
– Maravilha.
– Talvez minha mãe. Mas o que ela poderia dizer? Ela se juntou com meu
pai, e eles não são casados. – Tentei ajeitar meu cabelo para que ficasse pelo
menos razoável. – Só é embaraçoso.
Não havia muito espaço na cabine, por isso não paramos de esbarrar
nossos cotovelos e joelhos enquanto nos vestíamos, o que, de algum modo,
pareceu mais íntimo do que o que tínhamos feito na noite da véspera.
– Podia ser pior – disse Markos. – Se nós estivéssemos em Akhaia, eu
provavelmente teria de enfrentar seu pai ao amanhecer.
Olhei para ele com expressão vazia.
– Um duelo – explicou, enquanto alisava o casaco. – Como estou?
Eu dei um sorriso malicioso.
– Sua calça está aberta.
Ele praguejou.
– Se meu pai achasse que você podia me machucar, ele não iria se dar ao
trabalho de encarar um duelo com você. Ele iria simplesmente matá-lo. – Eu
afivelei o cinto. – Vamos fingir que estamos apenas tomando café da manhã
juntos.
– O que não parece nada suspeito. – Ele passou um dedo por meu pescoço.
Fui transpassada por um frisson com seu toque delicado, mas fingi que
aquilo não tinha me afetado. Destranquei a porta da cabine, e saímos para a
sala comum. Eu ainda estava terminando de calçar as botas.
Ele segurou minha mão.
– A que distância estão seus pais?
– No fim das docas.
Antes que eu pudesse perguntar por que, ele me jogou contra a parede e
me beijou. Não consegui evitar passar as mãos em torno de seu pescoço. Sua
pele estava quente, e ele cheirava como eu. Nós cheirávamos um como o
outro, imagino, uma mistura atraente de areia, suor e sono. E provavelmente
outras coisas, que meus pais, como não eram estúpidos nem inexperientes,
iriam reconhecer.
Eu não consegui me forçar a afastá-lo. Seus lábios eram macios; e sua
língua, forte e preguiçosa. Ele segurou com o punho minha camisa na parte
de baixo das costas. Eu queria rastejar para o interior de seu casaco e ficar ali
a manhã inteira.
– Precisamos parar – ele disse, apertando-me contra toda a extensão de seu
corpo. E aí, por mais que eu estivesse com vontade de me derreter nele, eu
me afastei. Um de nós tinha de deter aquela loucura.
Parecia tão estranho, depois de tudo pelo que eu passara, ter de dar
satisfações a meus pais outra vez. Eu ouvi passos acima e a porta da escotilha
se mover.
Daria foi a primeira a descer a escada. Markos a agarrou por trás e a
levantou.
– Texuguinha.
Ela gritou, mas eu sabia que ela estava adorando. Ela lhe deu um tapinha
no ombro e disse:
– Você parece feliz outra vez. Estou muito satisfeita com isso.
– Cale a boca, monstrinha. – Ele puxou o chapéu dela, e meu coração se
alvoroçou. Ver Markos ser um bom irmão fazia com que ele ficasse ainda
mais bonito. – O que você está usando na cabeça?
– Meu chapéu de pirata. Nereus conseguiu para mim. – Ela olhou para
mim por baixo de sua aba inclinada. – É igual ao de Carô.
Meus pais e Kenté desceram pela escada, e, de repente, tudo era barulho,
abraços e todos falando ao mesmo tempo. O olhar do meu pai saltava de mim
para Markos e, depois, novamente para mim. Eu sabia que ele não tinha sido
enganado pelo metro de espaço entre nós.
– Mas como vocês descobriram que eu não estava morta? – perguntei.
Minha mãe foi rapidamente até o fogão e começou a servir café.
– Nereus nos contou esta manhã
– Nereus? Eu não… Quando Nereus…?
Minha mãe ergueu as sobrancelhas.
– Não imagino que você o tenha ouvido.
Eu não conseguia olhar para nenhum deles. Um silêncio desconfortável
baixou sobre todo mundo, menos Daria, que ainda estava falando sobre o
chapéu. Com o rosto afogueado, desejei ter permanecido morta no fundo do
mar.
Meu pai deu um tapinha no ombro de Markos.
– Talvez você pudesse ir comigo ao mercado para buscar pão fresco. – Eu
quase engasguei com o café. Por seu tom de voz, eu sabia que aquilo não era
um pedido.
Markos soube também. Eu prendi a respiração e me lembrei de como ele
podia ser rude se achasse que sua honra estava sendo insultada, mas ele disse
apenas:
– Sim, senhor.
Eles partiram, e, então, levando o dedo ao lado do nariz, Kenté subiu com
Daria para o convés. Era a cara dela desaparecer quando outra pessoa estava
se metendo em encrenca.
Fiquei sozinha com minha mãe.
– Por que Nereus não voltou com vocês?
– Ele falou com entusiasmo sobre procurar uma certa taverna. Eu nem tive
coragem de dizer a ele que ela está fechada há muitos anos, desde que eu era
criança. E, mesmo na época, o prédio estava quase caindo. – Ela franziu o
cenho. – Eu me pergunto quanto tempo faz desde que ele não zarpa desta
baía, por não saber disso.
Seu brinco reluziu quando ela franziu o nariz.
– Provavelmente, eu deveria estar tendo com você o lado feminino dessa
conversa, agora. – Ela olhou fixamente para dentro de sua caneca de café. –
Seja responsável, pense em sua reputação, procure-me se tiver qualquer
pergunta, e assim por diante. Mas vamos simplesmente pular isso, se não se
importa. Você é crescida, e não é problema meu. – Ela deu um suspiro. – Eu
sei que nunca fui muito maternal.
– Você não precisa começar agora. – Minhas bochechas estavam quentes.
Se eu tivesse alguma pergunta sobre sexo, ela sem dúvida seria a penúltima
pessoa do mundo a quem eu perguntaria. – Sério. Está tudo bem.
– Ele parece bem legal. Mas, Carô, não deixe que isso fique sério demais.
As pessoas sempre gostam de achar que podem superar ter origens diferentes.
– Ela sacudiu a cabeça, e senti que ela não estava falando apenas de Markos e
mim. – Não é muito fácil.
Eu não queria pensar nisso nesse momento.
– Eu me pergunto o que o meu pai está fazendo com Markos.
– Botando nele o medo dos deuses, espero. – Minha mãe bateu de leve na
mesa. – Agora, esta manhã, sugiro que visitemos algumas das melhores lojas
no distrito de vestuário, você não tem nada para vestir. Tychon Hypatos é
conselheiro e amigo do archon. Ele e a mulher são pessoas ricas. Você não
pode ir até lá parecendo uma malandra naufragada.
– Eu gostaria de roupas novas. – Eu fiz uma pausa. – Quero um casaco
com detalhes dourados. E mais coletes como este. E um par de belas botas de
couro.
– Vestidos – ela disse sem rodeios, em sua voz de mesa de negociações.
– Nada de vestidos – retruquei.
Ela limpou a garganta.
– Às vezes, eu gostaria de ter estado por perto quando você era uma
menininha. Quando eu poderia ter lhe comprado coisas bonitas. Trançado seu
cabelo. – Ela se remexeu desconfortavelmente na cadeira. – Coisas que mães
fazem.
Eu a vi como se fosse pela primeira vez. A responsabilidade pusera linhas
vincadas em torno de seus olhos, e sua fé na família a tornava alta e forte.
Seria tarde demais para o tipo de amor que meu pai e minha mãe tinham?
Talvez nós duas fôssemos implicantes e teimosas. Mas eu conseguia respeitá-
la.
– Está bem – eu disse. – Vestidos. Mas nada de espartilhos.
Ela entreabriu um sorriso malicioso.
– Imagino que é o que vou conseguir.
– Mãe – comecei. Com os olhos no café, eu juntei minhas palavras. – Eu
devia ter confiado em você. Desculpe.
– Esqueça isso. – Ela acenou com a mão. – Você é como Nick, só isso.
Não depende de ninguém, só do rio.
– Não – eu disse com voz rouca. – Não do rio.
– Ayah? – Para minha surpresa, ela sorriu. – Então é assim? Eu tinha
começado a desconfiar. Sabe, o próprio Jacari Bollard foi escolhido pela
deusa das profundezas. E ele descobriu uma rota comercial que mudou o
mundo. Talvez você seja mais Bollard do que imagina, hein?
– Ah. – Suas palavras me lembraram. Eu levei a mão ao bolso. – Eu me
esqueci. Pode ficar com isso de volta. Eu nunca cheguei a usá-lo. – Eu pus
seu broche dos Bollards sobre a mesa. O sol matinal reluziu nas estrelas
douradas em relevo.
Ela o empurrou de volta para mim.
– Fique com ele. Nunca se sabe… Você pode precisar dele algum dia.
Enquanto eu revirava o broche na mão, perguntei a mim mesma: eu era
Bollard ou Oresteia? Os dois? Eu gostava de pensar que era algo
completamente diferente. Algo novo. E enfiei o broche no bolso. Talvez
pudéssemos deixar as coisas para trás, e ainda assim nos agarrar às melhores
partes delas. As partes que importam.
Nós fomos até a Rua do Mercado, onde encomendei um guarda-roupa
novo, pago com a bolsa de talentos de prata que eu descobrira no
compartimento de carga do Vic. Eu fiquei parada me contorcendo em minha
roupa de baixo enquanto as meninas da loja enrolavam fitas em torno de
meus seios e quadris. Meu melhor vestido deveria ser de seda verde com uma
estampa negra. A costureira pendurou o tecido ao meu redor, enquanto minha
mãe assentia com a cabeça em aprovação.
Não tornei a ver Markos até a tarde daquele dia.
A casa de Tychon Hypatos era uma grande propriedade rural afastada da
estrada e cercada por um jardim de árvores esculpidas. Eu cheguei à entrada
pavimentada com conchas e vi Antidoros Peregrine puxar a porta da frente e
fechá-la às suas costas. Ele usava um chapéu de aba larga baixo sobre o rosto.
Eu acenei com a cabeça.
– Lorde Peregrine.
– Senhorita Oresteia – disse ele, tocando o chapéu ao passar por mim.
Eu não perdi tempo ao entrar na sala de estar.
– O que você está tramando?
Markos ergueu os olhos de um livro.
– Não sei do que você está falando.
– Aquele era Antidoros Peregrine saindo pela porta. – Ele abriu a boca
para negar, mas eu o interrompi. – E não ouse dizer que não era. Eu o
reconheci mesmo com o chapéu. Por que você está se reunindo com notórios
rebeldes akhaianos?
– Se você quer saber, foi ele quem veio até Valonikos para se encontrar
comigo. Ele quer que eu veja como as coisas são feitas por aqui. Você sabia
que seu archon e seu conselho são eleitos pelos cidadãos?
– E daí?
– E daí que Peregrine acredita que podemos fazer uma nova Akhaia,
fundada sobre princípios modernos. Ele acha que eu poderia ajudar sua causa.
– Ele acha que você é uma oportunidade política!
Ele fechou o livro bruscamente.
– Talvez ele só queira o melhor para Akhaia. – Eu captei um vislumbre do
título impresso na capa do volume fino. Declaração de princípios: um
manifesto sobre os direitos incontestáveis do povo. – Eu achei que isso fosse
agradar você.
– Você devia tomar cuidado, só isso – murmurei. – Você sabe que ele não
gostava de seu pai.
– Ele não concordava com meu pai – Markos me corrigiu. – Você sabia
que eu nunca tive permissão para ler isto? – Ele gesticulou em direção ao
livro. – Meu pai ordenou que todas as cópias fossem queimadas. Peregrine
tem alguns argumentos convincentes, em especial relacionados ao poder
político consolidado nas mãos do…
– Hum? Você acha que esse archon não tem poder? – perguntei. – Todos
os homens com poder tiram proveito. Não importa se o obtiveram por
nascimento ou por eleição.
– Você está querendo me proteger. – Sorriu. – Que doçura.
A sala tinha um lado aberto. Markos atravessou o piso de lajotas, afastou
as cortinas diáfanas e saiu para a sacada. Os telhados vermelhos de Valonikos
se espalhavam abaixo de nós como as saias de uma mulher. Em arquitetura, a
cidade livre era similar a Iantiporos, Casteria e as outras cidades costeiras que
antes faziam parte da emparquia akhaiana. Todas compartilhavam das
mesmas colinas brancas, prédios quadrados em tons pastel, e telhados
cobertos por jardins de árvores em vasos. Além da cidade, o mar se estendia
até o horizonte, decorado com pontos brancos – as velas de navios entrando e
saindo da baía.
– Eu não estou – resmunguei. – Só que você não está nem parecendo você
mesmo. Você me disse que não confia em lorde Peregrine.
– Isso não…
– Foi exatamente o que você disse. Agora, você vai simplesmente deixar
que ele entre aqui tranquilamente e ponha todas essas ideias na sua cabeça?
Isso não é você.
– Imagino que devo ter todas as minhas crenças, toda minha vida, já
mapeadas antes mesmo de fazer vinte anos? Isso é hipocrisia, não é? Vindo
de você.
– O que você quer dizer com isso?
Ele ergueu as sobrancelhas.
– Quero dizer que, duas semanas atrás, você acreditava que seria uma
barqueira para o resto da vida.
Eu não podia negar isso.
– Eu não disse que isso era uma coisa ruim. – Eu passei os dedos pela
grade da sacada. – Só acho que você devia ser cauteloso.
– Quando encontramos com Peregrine pela primeira vez – ele disse em
voz baixa –, ele chamou minha mãe pelo primeiro nome. Isso me deixou com
raiva.
– Eu não percebi – eu disse com sarcasmo.
– Ele estava sendo presunçoso. – Markos deu um suspiro. – Ele a
conhecia, melhor que a maioria das pessoas. Aparentemente, eles tinham sido
grandes amigos na corte, muitos anos atrás, antes que ela se casasse.
Infelizmente, eu não sabia. Eu gostaria… – Ele sacudiu a cabeça. – Eu não
sabia o suficiente sobre minha família.
Deslizei a mão para cima da dele e a apertei. Ele apertou a minha também.
– Meu primo Konto odeia esta cidade – ele disse. – Ele a quer de volta.
– Como você sabe?
– Os Theucinianos são imperialistas. Sei como eles pensam. Konto me
quer de volta, também. Ou morto. Não pretendo deixar que ele me pegue. –
Seus olhos observaram os telhados e as sacadas caiadas. – Decidi que não
pretendo deixar que ele pegue nenhum de nós.
– Markos, o que…?
Seus olhos estavam iluminados por algo que eu não sabia dizer o que era.
– Esta é uma bela cidade. Sinto uma paz aqui. – Ele se apoiou na grade. –
Sinto como se eu pudesse ser alguém de quem eu gosto, nesta cidade.
– Se lorde Peregrine conseguir o que quer… – comecei a dizer.
– Ele não usa mais esse título.
– Não importa. Se ele conseguir o que quer, talvez Akhaia não precise de
nenhum emparca. Você pensa nisso? Em uma Akhaia moderna, eles não
precisariam de você.
– Não – ele disse, e, em vez de parecer raivoso, achei que ele parecia
empolgado. – Não precisariam.
– Isso não o incomoda?
Ele deu de ombros.
– O mundo está sempre mudando.
– Eu não pensei que logo você iria querer isso.
O vento agitou seu cabelo negro.
– Não sei mais o que eu quero. O mundo é muito maior do que eu
imaginava. E, Carô, a parte engraçada é que… – Ele riu. – Eu acho isso uma
coisa boa.
Ouvir Markos falar assim era, sem dúvida, uma surpresa. Eu não
conseguia identificar exatamente por que aquilo me deixava tão
desconfortável. Não que eu estivesse aborrecida com sua excitação em
relação às ideias de Antidoros Peregrine, mas por que tudo precisava estar
mudando de maneira tão alarmante e rápida, incluindo Markos? Desejei
desesperadamente ter um momento para recuperar o fôlego.
Uma surpresa ainda maior ocorreu no dia seguinte, quando uma barca
entrou na baía de Valonikos. Não era a barca mais nova nem a mais rápida.
Sua pintura estava arranhada e perfurada, marcada com buracos de bala, e
suas velas negras estavam muito desbotadas pelo sol. Havia um homem-sapo
sentado em seu cockpit, acenando.
– Fee! – foi o que eu consegui dizer antes que minha garganta se fechasse.
Meu pai saltou a bordo e balançou a barca.
– Bem, vejo que temos uma história, aqui. – Ele passou as mãos pelas
tábuas quentes da Cormorant. – Carô, o que você fez com minha maldita
pintura?
Isso foi tudo o que ele disse, por um bom tempo. Ele caminhou pelo
convés, pôs a mão na retranca e acariciou o mastro. Eu o observei traçar um
rolo de corda e alisar as vigias de latão.
– Fee, como? – Eu segurei suas mãos escorregadias e a girei em um
círculo. Eu não conseguia parar de rir. Ou eu estava chorando?
– Sapos caem – disse ela. – Sapos nadam. Pés com membranas.
– Como você escapou dos Cães Negros? Como você recuperou a
Cormorant?
– Escuro. Silêncio. Água. Docas. Esperei. Esperei. Esperei. Cormorant.
Entrei. Pulei, homem, faca. Garganta. – Foi o máximo de palavras que eu
jamais a havia ouvido dizer de uma só vez. – Zarpei.
Os olhos de Fee se arregalaram. Eu me virei e vi Nereus apoiado na
retranca às minhas costas com as mãos nos bolsos.
– Prima. – Ele fez uma mesura teatral.
Nós mandamos um corredor até a casa de Tychon Hypatos e, depois de
algum tempo, Markos e Daria se juntaram a nós. Markos mostrava o convés
para a irmã e a presenteava com histórias de nossas escapadas por pouco nas
terras dos rios. Até minha mãe apareceu por algum tempo. Todos nos
apertamos em volta da mesa e jantamos tortas de carne e peixe fresco do
mercado. Em seguida, um a um, os outros se foram, e ficamos apenas eu,
meu pai e Fee, como sempre.
Mas não exatamente.
A cabine da Cormorant, agora, parecia apertada sob a luz aconchegante da
lanterna. Eu passei as mãos pela madeira reluzente de seus armários, beliches
e estantes, demorando-me na toalha de mesa xadrez vermelha e branca.
Eu tinha mesmo vivido ali? Parecia algo que tinha acontecido anos atrás.
Uma sensação desconfortável. Engoli em seco, sentindo um nó na garganta, e
subi para meu ponto favorito no teto da cabine.
– Ayah, aqui estamos nós. – O convés rangeu quando meu pai se juntou a
mim. – Todos foram para a Rua Iphis. Estou lendo a mente de sua mãe. Ela
está pensando: “Se eu conseguir uma coroa para esse jovem, o que ele
poderia fazer pelos Bollards?”. – Ele deu de ombros. – Eu mesmo não ligo
para isso. Só preciso de uma boa carga pesada e de vento firme.
Ele olhou para mim.
– Então, é aqui que isso acaba para nós. Para mim e para você.
Lágrimas arderam em meus olhos.
– Pai, não diga isso.
– Eu enganei você, ao guardar silêncio. – Ele deu um suspiro trêmulo e
olhou para as mãos calejadas. – Mas agora tenho de contar minha história e
torcer para que você perdoe seu velho pai. – A brisa do crepúsculo agitou o
cabelo grisalho em torno de seu rosto. – Eu sabia que você não tinha sido
feita para o rio.
Eu não ousei respirar.
– Foi muito tempo atrás. Você devia ter três ou quatro anos. Eu estava
navegando pelo canal quando, olha só, o tempo ficou horrível. As ondas
quase nos inundaram. Eu rizei parcialmente a vela, depois o resto. Não
adiantou nada. Acho que foi o mais perto que eu estive de me afogar. E
então… Ela estava ali. Com uma voz como se fossem as maiores
profundezas. – Ele estremeceu. – Como algo selvagem.
– Como uma centena de facas – suspirei.
Meu pai assentiu com a cabeça.
– Isso mesmo. “Eu não sou um dos seus”, eu disse. “Pertenço àquele que
fica no fundo do rio, e você sabe muito bem disso. Embora eu não vá negar
sua ajuda.” Ela falou: “Saiba de uma coisa: eu nunca vou machucá-lo, Nick
Oresteia. E isso você pode considerar uma promessa. Pois tenho uma dívida
com você. Mantenha-a em segurança para mim”. Ergui os olhos, e meu
coração quase saltou do peito. Você estava sentada a contravento, molhada
até os joelhos, pois estávamos navegando fundo assim na água. Toda vez que
vinha uma ondulação, ela a molhava até a cintura, mas você só ria. Claro que
entrei em pânico. Eu gritei para que você descesse para o cockpit. Aí eu a
escutei. “Como se eu, por acaso, fosse deixá-la cair”, ela disse. E, logo em
seguida, desapareceu.
Ele deu um suspiro.
– Eu nunca contei isso nem a sua mãe. Acho que eu sou só um velho tolo.
Achei que, talvez, se eu não dissesse isso alto o bastante…
Eu enxuguei o rosto com a manga.
– Eu achava que o deus no rio não me queria. – Naquele momento, eu
estava chorando abertamente. – Eu chamei seu nome tantas vezes, e ele
nunca… Ele nunca me respondeu.
– Calma, minha querida. – Ele me envolveu em seus braços. – Você nunca
foi indesejada. A verdade é que o mar a amou desde o momento em que você
nasceu.
– Mas está tudo errado – funguei. – Eu devia estar na Cormorant. Não era
isso o que devia acontecer. – Eu enfiei o rosto em seu suéter. – Eu devia estar
com você.
Ele passou os dedos delicadamente pelo meu rosto e disse:
– Não. – Ele me beijou no alto da cabeça. – Eu soube no minuto em que
você pegou aquela carta de corso. Eu sabia que era seu destino chegando para
você. Esse cúter é uma beleza. Lembre-se do que eu lhe ensinei e cuide muito
bem dele, agora.
– Mas eu amo a Cormorant. – Espalmei a mão sobre o teto quente de sua
cabine. – Aquele navio não significa nada para mim.
Ele alisou meu cabelo.
– Às vezes, devemos deixar o passado para trás antes de poder ver nosso
futuro bem ali, sentado à nossa frente.
Eu fechei os olhos.
– Ele é bonito e rápido, mas não é… a minha casa. Nunca vai ser. – Eu
apoiei o rosto em seu ombro, inspirando os cheiros lamacentos e familiares
de suas roupas.
– Pare de chorar, agora. – Ele passou o braço em torno da minha cintura. –
Você não tem mais emparcas para resgatar?
Eu ri, mesmo enquanto fungava.
– Cuidado – alertou ele. – Eu acho que ela vai pedir mais de você do que
ele já pediu de mim.
– Thisbe disse que ela era um peixe e Nereus era um tubarão, vindo para
devorá-la. Mas eles, sem dúvida, devem ser amigos. Com certeza, o deus do
rio e a deusa do mar…
– No máximo, primos. Às vezes, aliados. – Ele olhou para o horizonte,
onde, além dos muros da cidade, o mar aguardava a noite. – Mas amigos?
Não.
Ele foi para a coberta e me deixou sozinha. Pela janela aberta, ouvi os
altos e baixos de sua voz. Meu pai sempre falava com Fee do mesmo jeito
com que falava com todo mundo. Ele não se importava muito quando ela não
respondia.
Fiquei sentada no teto da cabine até depois da meia-noite, com os joelhos
dobrados contra o peito. Um último vigília na noite, sentindo tudo. Os ruídos
de seu cordame rangendo e estalando. O agitar de água contra seu casco. O
canto de pequeninos sapos embaixo das docas. Só quando desdobrei as
pernas rígidas, eu percebi que o que estava fazendo era memorizar tudo,
porque aquilo era o fim.
Era a última vez que aquilo seria minha casa.
CAPÍTULO
TRINTA E UM

Três dias depois, Tychon Hypatos e sua esposa dariam uma grande festa para
Markos em sua residência. Felizmente, meu vestido novo ficou pronto
naquela manhã daquele mesmo dia. Passado e embalado em papel, ele foi
levado até o Vic por uma vendedora que olhou de olhos esbugalhados as
tatuagens de Nereus.
A festa não foi como nada que eu já tinha visto antes, nem na casa dos
Bollards. O pátio estava decorado com lanternas flutuantes de papel. Pilhas
de uvas e queijos se derramavam no meio de mesas compridas. Havia até
esculturas feitas de comida, o que me pareceu uma grande tolice.
Eu não sabia se a tia de Markos – ou prima, ou qualquer que fosse seu
vínculo com ele – não tinha gostado de mim. Enquanto me olhava fixamente
na fila de cumprimentos, eu tive a nítida sensação de que ela sabia
exatamente o que estávamos fazendo quando ele escapou para o Vic naquela
noite.
Como se isso fosse da conta dela.
Ela acenou a cabeça educadamente quando recebeu Nereus, Kenté e a
mim, embora eu soubesse que ela nos considerava um bando de vagabundos
grosseiros. Eu encontrei Daria em um vestido formal rosa, carrancuda, junto
da mesa de sobremesas. Não havia ninguém de sua idade na festa, e Markos a
abandonara para discutir política. Kenté a levou para dar uma volta na pista
de dança para animá-la, enquanto Nereus e eu nos escondemos em um canto
obscuro atrás de uma torre feita de frutas.
– Nereus… – eu hesitei. – Agora que terminou de me ajudar, o que
acontece com você?
– Ah, duvido que isso tenha acabado para mim. – Mangas compridas
cobriam suas tatuagens, mas seu sorriso com um dente faltando ainda fazia
com que ele parecesse ter má reputação. – Porque você ainda não acabou.
Não está nem perto.
– Eu perguntaria o que você quer dizer com isso, mas você não vai me
contar mesmo.
– Você está aprendendo. – Ele piscou e terminou o primeiro copo de
vinho. Ele tinha quatro, dois nas mãos e dois na mesa.
– Você navegaria comigo? – Torci para que ele dissesse sim. – Como
imediato do Vic? Na verdade, você deveria ser o capitão. Nenhum homem vai
querer navegar sob meu comando.
– Ayah? Eu não sei nada disso. – Ele pegou um pedaço amassado de papel
de seu bolso.
Era um folheto impresso. Uma história, altamente exagerada, de uma
garota que roubara um navio pirata, a quem as pessoas estavam chamando de
Rosa da Costa. Eu desejei ter feito metade das coisas que a história dizia que
eu tinha feito. O caricaturista me desenhara com uma grande pena no chapéu.
Eu decidi obter uma imediatamente.
– Mas isso é basicamente mentira. – Eu baixei o papel. – Eu não pareço
com uma rosa de jeito nenhum.
– Seu cabelo é avermelhado.
– Essa é a coisa mais idiota que eu já vi. – Eu joguei o panfleto sobre a
mesa. Ele o alisou e tornou a guardar no bolso.
Eu podia tê-lo interrogado mais, se Tychon Hypatos e outro homem não
tivessem escolhido esse momento para invadir nosso canto.
– Ahá! Senhorita Oresteia. Eu tinha praticamente aberto mão de toda a
esperança de encontrá-la. – Hypatos gesticulou com um floreio. – Este é
Basil Maki, o cônsul kynthessano. Representante da margravina.
O homem fez uma mesura.
– Que a corrente vos leve, como seu povo costuma dizer.
– Bom – eu disse. – É com o senhor que devo conversar sobre os dez
talentos de prata que me foram prometidos?
– A senhorita não desperdiça palavras, senhorita Oresteia.
– Capitã Oresteia – corrigi. – Meu contrato dizia que eu devia entregar a
caixa e seu conteúdo em Valonikos.
– O conteúdo, entendo – disse ele com um sorriso. – Você o apresentou ao
inspetor das docas?
– Isso me parece uma resposta de advogado.
– Infelizmente, sou advogado. – Ele fez outra mesura. – Ou era, antes de a
margravina me elevar a minha posição.
– Imagino que Markos possa se apresentar ao inspetor das docas – eu
disse. – Se, com isso, puder me conseguir dez talentos.
Suas sobrancelhas ergueram-se praticamente até a linha de seu cabelo,
acho que por eu ter falado com tamanha intimidade do verdadeiro emparca de
Akhaia.
– Eu devo informá-la que os Cães Negros fizeram uma petição para a
devolução de sua propriedade – disse ele. – Claro, é agora uma questão de
jurisdição, pois o navio em questão está fora dos limites de Kynthessa.
Eu não entendi metade de suas palavras.
– Eu era uma corsária. Uma carta de corso me dá o direito de tomar uma
presa. Eu conheço meus direitos.
Ele inclinou o cálice em minha direção.
– Ainda assim, os Cães Negros estão alegando que você roubou um cúter
deles.
Eu sorri.
– Eu roubei.
– Pelo que eu soube, a margravina não está necessariamente, digamos... o
que se poderia dizer satisfeita com a maneira como as coisas foram
resolvidas.
– Então ela não devia ter dado a mim esse tipo de poder.
– Senhorita Oresteia, você deveria saber que o excesso de confiança nem
sempre me impressiona nos muito jovens. E você é apenas uma garota de
dezessete anos. – Maki acariciou a barba rala. – Mesmo assim, sua
reivindicação legal ao navio é perfeitamente válida. Não estou nada inclinado
a conceder uma audiência aos Cães Negros. Mas isso pode não importar.
– Como assim?
– O capitão Diric Melanos, homem que fez a petição, desapareceu da
custódia da lei.
Minha mão congelou com o copo a meio caminho dos lábios.
– O senhor quer dizer que ele escapou?
– Duvido, considerando que ele deixou para trás uma poça do próprio
sangue.
Eu estava prestes a lhe fazer mais perguntas, quando Markos se juntou a
nós.
– E tenho a honra de ser Markos Andela – disse ele, estendendo a mão. Eu
olhei fixamente, pois nunca o havia visto se apresentar por esse nome, apenas
pelo título. Eu desconfiava que fosse influência de Peregrine.
Ele parecia… Bem, ele parecia maravilhoso. Não havia como negar,
embora eu não ousasse dizer isso em voz alta. Ele já se tinha em demasiada
alta conta. Estava usando um casaco formal com cauda, rendas elegantes
caíam de sua gola e de seus punhos, e sua echarpe de seda azul tinha o padrão
de leões-da-montanha. Será que tinha ficado mais alto? Ele sempre parecera
alto. Devia ser a forma como estava se portando naquela noite. Ele parecia
um emparca dos pés à cabeça.
– Esse vestido é muito elegante – disse Markos depois que o cônsul pediu
licença –, embora eu não entenda seu cabelo. – Ele o examinou desconfiado,
como se fosse um ninho de cobras enroscadas. O que, na verdade, era o que
ele parecia.
– Foi Kenté quem fez.
– Está bonito. Mas, na verdade, não é você. Gosto de seu cabelo quando
está… grande. E encaracolado. E vermelho.
– Ele é sempre vermelho! – devolvi. Nenhuma das outras coisas parecia
um elogio.
– Muito irritadiça, gosto disso. – Seus lábios roçaram meu ouvido. –
Sempre saiba de uma coisa – sussurrou. – Gosto de uma centena de coisas em
você, e só uma delas é sua aparência de vestido.
Ele sem dúvida provou isso mais tarde naquela noite, quando me arrastou
para a biblioteca vazia.
Seus lábios se grudaram nos meus, e ele me apertou contra uma estante.
Passei a mão por baixo de sua gola para sentir sua pele quente. Com a outra,
eu o puxei para mais perto.
– Sinto sua falta – disse ele com voz rouca enquanto beijava meu pescoço.
– Você me deixa louco. Sinto sua falta.
– E então? Qual dos dois?
Ele riu. Nossos lábios tornaram a se encontrar, devagar dessa vez, e nossas
línguas se emaranharam. Algo dentro de meu peito se contorceu. Ele me fez
desejar coisas. E me deixou com medo de desejá-las. Eu ajeitei
delicadamente um cacho de cabelo para trás de sua orelha.
Ele segurou minha mão.
– Não faça…
Era a orelha que tinha perdido o lobo. A nova pele cicatrizada estava
reluzente e vermelha.
– Ah, honestamente – eu disse. – Eu a vi quando estava com um aspecto
bem pior que esse.
– Está feio. – Ele se virou. – Odeio isso.
– Markos, você tem usado o cabelo em cima da orelha desde que estamos
em Valonikos? Para que ninguém veja? Você é o mais vaidoso, o mais… –
eu parei, reconhecendo a expressão tempestuosa em seu rosto. Seu corpo
tinha ficado rígido.
Eu pus a mão em seu rosto e virei-o para trás.
– Eu já lhe disse, acho que você é o… – Eu ia dizer “garoto mais
corajoso”, mas senti que, de algum modo, isso não estava certo naquele
momento. – O homem mais corajoso que eu conheço. – Eu o beijei. – Eu
gosto de uma centena de coisas em você, e pode ter certeza de que nenhuma
delas é aquela metade de sua orelha esquerda.
Isso finalmente fez com que ele risse. Nosso beijo seguinte foi tão
profundo que fez doer, e não apenas nos lugares de sempre.
– Carô, este vestido tem botões demais.
Eu tirei seus dedos de minhas costas.
– Eu sei. Por isso eu vou continuar vestida. Enfim, acho que estou de
partida. Não vou aguentar mais quatro horas nesta festa.
Ele bateu a testa contra a estante e deu um gemido.
– Fique.
– Fique você. – Eu me sacudi para sair de seus braços. – Todas essas
pessoas vieram aqui para vê-lo. – Eu o beijei com delicadeza. – Eu não me
importo. Sério.
– Na verdade, Peregrine provavelmente está vasculhando a festa à minha
procura neste exato momento – admitiu ele.
– Até logo. – Eu apertei sua mão antes de ir.
Eu tinha mais uma coisa a fazer antes de buscar minha cama na cabine do
capitão do Vic.
Minha prima estava sentada em uma poça de seda vermelha, de costas
para o mastro do Vic. Seu cabelo estava trançado em fileiras e preso em um
nó intricado no alto da cabeça. Eu mal conseguira uma chance para conversar
com Kenté em Valonikos. Eu desconfiava que os Bollards a estavam
mantendo sob rédea curta, levando-se em conta sua cena de desaparecimento.
Havia uma paz em torno da baía à noite. Eu me sentei no convés e apoiei
os cotovelos nos joelhos. Distraidamente, espalmei a mão sobre a madeira,
como costumava fazer na Cormorant. O calor do dia armazenado ali irradiou
para minha mão.
– Meus pais estão chegando amanhã, em um paquete de Siscema – Kenté
apoiou a cabeça no mastro e fechou os olhos. – Eu não sei o que fazer.
– Sabe, sim – eu disse. Ela abriu um dos olhos para olhar para mim. –
Claro que sabe. Em minha opinião, você pode voltar para Siscema com seus
pais. Ou… – Apontei com a cabeça para o navio atracado à nossa frente. –
Esse é o Olivos. Ele vai partir para subir o Kars com a maré da manhã. Para
Doukas e outros portos mais à frente. Até Trikkaia.
Ela não disse nada.
Eu saquei uma bolsinha do bolso e a pus no convés com um tilintar.
– Eu não preciso do seu dinheiro.
– Ayah, talvez não sob circunstâncias normais. Mas talvez precise – eu
disse com delicadeza – para isso.
– Não posso. – Ela pegou o saco e o girou repetidas vezes nas mãos.
– Uma coisa é não saber seu destino – eu disse. – Mas você tem se
escondido do seu, e eu acho que sei por quê. Você me disse uma vez que
estamos todos chamando pelo mundo, e a magia é o mundo respondendo. –
Meus olhos arderam. Eu não sabia se por ela ou por mim. – Bom, o mundo
está chamando você.
– Tenho medo de nunca ir para a Academia. E tenho medo de ir. Estou
cansada de ter medo de tudo. – Ela delineou o barril e as estrelas em relevo
em seu broche. – Mas eu não sei me despedir.
– Então, não se despida. Simplesmente vá! E, se tudo o que aconteceu com
Markos, com meu pai e comigo… – Minha voz vacilou. – E se isso fosse meu
destino? E se isso, tudo isso, estivesse relacionado a apenas uma coisa? Me
trazer a este lugar neste momento? Kenté, talvez você devesse estar bem aqui.
Nestas docas. – Eu apontei: – Em frente àquele barco. Esta noite. E se este for
seu destino e você deixá-lo passar? Você precisa…
Eu me virei. A lua ainda brilhava sobre as docas de Valonikos, cobrindo
seus cantos de sombras. O Olivos ainda rangia baixo, ancorado.
Mas Kenté havia desaparecido.
– Boa sorte – sussurrei.
Na manhã seguinte, eu saí cedo, pois tinha tarefas a cumprir. Primeiro,
visitei o distrito comercial, onde os prédios tinham sido recentemente caiados
e tinham vasos com flores cor-de-rosa à sua frente. Em seguida, balançando
as moedas no bolso, eu caminhei em direção às docas.
– Carô! – Markos correu para me alcançar.
Eu esperei.
– Achei que você fosse passar o dia com seus admiradores.
– Eu precisava escapar. Nereus disse que você tinha saído. – Ele olhou
para mim e riu.
– O que é tão engraçado?
– Seu casaco. – Ele tocou os detalhes dourados. – É igual ao meu.
Eu fingi ficar ofendida.
– Não é. Ele é verde-garrafa. O seu é azul.
Ele se posicionou ao meu lado, e caminhamos em um silêncio amigável.
Eu lançava olhares de soslaio em sua direção. Ele usava uma camisa nova
branca como neve, mas deixara a echarpe pendurada. Eu não achava que o
velho Markos teria aparecido em público com uma aparência tão
desmazelada.
– Carô, eu gosto desta cidade – disse ele com as mãos nos bolsos,
enquanto seguíamos através da movimentação do mercado. Um homem
esbarrou em seu ombro, mas ele não reagiu nem exigiu desculpas. Quase.
Talvez ele tivesse empurrado um pouco de volta. – Gosto de toda a energia.
Todos os navios. Acho que ela tem orgulho de ser livre.
– Markos… – eu hesitei, sem vontade de estragar sua diversão. – Você
devia caminhar pelas docas assim? Não é provável que seu primo Konto
mande mais mercenários? Ou assassinos?
– Vou contratar guarda-costas. – Ele deu de ombros. – Mas, por enquanto,
estou gostando de circular por conta própria. Eu nunca fiz isso antes.
Eu sacudi a cabeça. Era a cara dele se excitar com algo tão bobo quanto
aquilo. Eu avistei uma barraca de comida e o puxei pela manga.
– Vamos comprar peixe embalado no cone.
– Embalado no quê?
– No cone. Tem um lugar nesta rua que vende o melhor peixe no cone de
todo o Rio Kars.
Ele olhou para mim com expressão vazia.
Eu tinha esquecido que precisava explicar até as coisas mais simples para
ele.
– Frito com farinha de rosca e servido em um cone de papel.
Ele pareceu extremamente cético, mas isso passou dez minutos depois.
Nós subimos a rua com a boca cheia de lascas de peixe quente.
Markos lambeu a gordura dos dedos.
– Você devia ter feito isso assim na barca.
– Não tinha como. Eles o fritam em um caldeirão de gordura fervente.
Ele fez uma careta.
– Desculpe por perguntar.
Eu parei ao perceber uma loja na esquina e esfreguei a mão na calça. A
placa dizia Argyrus & Filhos, e embaixo, em letras menores, Valonikos-
Siscema.
Uma campainha tocou quando eu empurrei a porta para abri-la. A garota
na recepção ergueu os olhos de sua papelada.
– Aqui é a Argyrus e Filhos? – perguntei. – A empresa de salvação de
navios?
– Nós somos o que diz a placa – concordou. Ela usava uma blusa listrada
de azul e branco enfiada por dentro da calça. Seu rosto e seus braços estavam
dourados de sol; e seu cabelo castanho, preso em um coque frouxo na nuca.
Eu gostei de sua aparência, uma garota trabalhadora como eu.
– Finion Argyrus está?
– Ele está em um trabalho em Pontal de Hespera – disse ela rapidamente. –
Eu sou Docia Argyrus. A filha. Como posso ajudá-los?
– Que a corrente vos leve – eu disse. – Eu não sabia que havia uma filha.
Ela estreitou os olhos e cruzou os braços.
– Não cabia na tabuleta.
– Eu sou Caroline Oresteia. – Comecei a tirar um saco de moedas do
bolso.
– A garota pirata. – Ela me examinou dos pés à cabeça. – Não pensava que
fosse conhecê-la. Interessante.
– Corsária – corrigi. – Tomei uma presa recentemente. O cúter
Victorianos.
– Eu o conheço.
– Em seu compartimento de carga, ele tinha um baú de talentos de prata. –
Eu larguei a bolsa na mesa. – Entendo que sua firma está cuidando do resgate
da Fabulosa e das outras barcas perdidas em Pontal de Hespera. Eu desejo
pagar.
Ela olhou para Markos. Se ela sabia quem era ele, não disse.
– Além disso – eu disse, quando ela pegou uma pena para anotar minhas
instruções –, você pode incluir na carta que, no caso desses quatro homens –
eu soletrei os nomes dos barqueiros que tinham morrido no forte dos Cães
Negros –, eu desejo pagar dez talentos às mulheres ou aos herdeiros de cada
um deles.
– Além dos outros custos?
– Ayah.
Sua pena parou.
– Isso é muito dinheiro.
– Basil Maki está me representando neste assunto. Ele é o cônsul
kyntessano. Então, se precisar de mais dinheiro, por favor, procure-o.
Depois de deixarmos a loja, Markos se recusou a falar comigo por três
quadras inteiras.
– Eu disse a você que queria fazer isso – ele disse, com um rosnado.
– Você não tem o dinheiro. Eu tenho. – Agarrei seu braço e o forcei a
parar. – Eu não teria o Vic se não fosse por você. Portanto, de certa forma, é
seu dinheiro, também.
– Não é – ele disse com azedume. – Enquanto você roubava esse navio e
resgatava minha irmã, eu estava inconsciente e amarrado.
– Ayah, bem, nem todo mundo pode ser bom em todas as coisas. – Eu
sorri. – Você sabe o que estou dizendo. Se eu não o tivesse conhecido, nada
disso teria acontecido.
– Eu mesmo tenho pensado nisso – admitiu ele. – Sobre o quanto sou
agradecido por estar predestinado a encontrá-la.
– Foi sorte. – Mesmo dizendo isso, eu sabia ser mentira.
– Você ainda não acredita, depois de tudo isso? Pense em todo mundo que
ajudou a salvar a mim e Daria. Em todas as pessoas que encontramos pelo
caminho. Os barqueiros, os Bollards, até Nereus. Todos eles têm uma coisa
em comum.
Eu.
Todo aquele tempo eu estava achando estar na história de Markos, mas
talvez eu tivesse entendido ao contrário. Talvez ele estivesse na minha. Eu
ouvi o sussurro malicioso em minha cabeça. Risadas.
– Carô... – Markos pegou minha mão. – Eu quero que você fique. Comigo.
Em pânico, eu puxei a mão. Meus pensamentos corriam confusos
enquanto eu olhava para outro lugar, para todos os lugares – para qualquer
lugar, menos para ele.
– Não desse jeito. – Ele me soltou. – Espere. Isso não saiu direito.
– É melhor que você não tenha tido a intenção de querer dizer isso.
Eu saí andando pelo calçamento de pedra. Minhas emoções borbulhavam e
fervilhavam de um jeito que eu achei especialmente desagradável.
– Bem, eu não tive. Você quer parar? – Ele me perseguiu pela rua. – Carô.
Eu não quis dizer isso. Mesmo porque, se eu tivesse dito, você provavelmente
ia me dar um tapa. De novo. – Ele respirou fundo. – Deixe-me terminar
– Você disse, quando nós… – Eu estava embaraçada demais para
continuar. – Você disse que não haveria nada dessa conversa.
– Eu sei – disse ele, em voz baixa. – Mas é preciso dizer algumas coisas.
Eu parei para encará-lo.
– Eu não quero que você mude minha vida.
Ele apertou os olhos e me encarou sob a luz do sol de meio-dia.
– É um pouco tarde demais para isso, não é?
Eu me lembrei do que meu pai tinha dito. Às vezes, devemos deixar o
passado para trás antes de poder ver nosso futuro bem ali, sentado à nossa
frente.
O mundo tinha mudado. Nós não podíamos voltar.
– Mas tenho pensado que um cúter rápido poderia ser de muita utilidade
para mim. Quero dizer, nós. Quero dizer… – Markos organizou o
pensamento. – O que quero dizer é que, como você não vai voltar para o rio,
eu gostaria que você navegasse a partir de Valonikos. Você pode ser uma
corsária. Para mim. Sei que não tenho exército nem frota. – Ele deu de
ombros. – Mas preciso começar de algum lugar.
Ele estendeu a mão, como trabalhadores fazem para selar um acordo.
Eu a apertei. Seus dedos estavam quentes em minha mão. Baixei a voz
para que ninguém mais na rua escutasse e disse:
– Markos Andela, emparca de Akhaia. Senhor de et cetera, et cetera. Eu
sempre serei sua amiga. Eu navegarei para você. – Eu ergui a mão livre em
um alerta. – Não por Akhaia. Por você.
Ele não me beijou, optando por permanecer à distância de um aperto de
mão. Eu podia dizer que ele sentia isso, também – o momento exigia certa
solenidade.
– Bom – ele limpou a garganta –, então, está combinado.
Ficamos ali parados na rua por muito tempo, sorrindo estupidamente um
para o outro e com o vento fresco do mar agitando nossas roupas. Eu tirei
minha mão da dele e comecei a caminhar ao longo do passeio de madeira que
conduzia além dos armazéns até o labirinto das docas. Markos caminhava ao
meu lado, perto o bastante para sua manga roçar na minha.
– Então, você tem alguma ideia sobre o que podemos fazer com um cúter?
Nós fizemos a curva no armazém.
– Eu, não…
Eu parei no meio da frase. De repente, eu não conseguia respirar. Foi
como levar um tiro de pistola de pederneira novamente. Era como ser
golpeada no coração.
– O quê? – Markos disse, ao longe. Mas eu mal o escutei.
Tudo tinha parado. Eu estava hipnotizada pelas bordas bem delineadas de
suas velas enroladas, paradas contra o céu azul. Sua madeira e sua pintura
brilhavam. Seu cordame e seus estais eram delicados e graciosos. A curva de
seu casco, a forma de suas tábuas superpostas, pareciam perfeitas para mim.
Mas era algo mais que isso. Eu sentia sua essência.
Fui tomada por uma onda de uma música empolgante. E sorri.
Porque foi quando eu vi o Vic.
Agradecimentos

Quando comecei a escrever esta história, sentia que ela era especial. Eu
estava certa, embora tenha sido uma jornada de quatro anos desde o primeiro
rascunho. Um superobrigada à minha agente, Susan Hawk, por ser tão
entusiasta deste projeto. Obrigada a meu editor, Cat Onder, que leu o
manuscrito inteiro três dias depois que eu o apresentei. Gosto de pensar que
tive sorte em encontrar a pessoa certa logo de cara. E também um imenso
obrigada pa-
ra as pessoas incríveis da Bloomsbury a da Bent Agency.
Agradeço aos meus amigos e à minha família, que foram submetidos a
longos monólogos sobre edição que provavelmente eram bem pouco
interessantes – e um agradecimento extra àqueles que leram as primeiras
versões deste livro. Um grande viva à galera do grupo NBA Twitter, cuja
empolgação constante na época em que eu tinha um blog me deixou mais
confiante para seguir em frente. Talvez tudo isso soe estranho, mas o fato é
que existe uma conexão legítima entre jovens leitores e fãs de basquete!
Obrigada meus amigos do NBA Twitter, os primeiros leitores deste livro!
Agradeço especialmente à Laura Walker e a Sarah Moon, as membras-
fundadoras do time “Livro no Mundo”. Sem o encorajamento de Laura como
minha primeira “leitora beta”, não sei se teria chegado sequer ao segundo
rascunho. Meus queridos, vejam! Este é um livro! E ele agora está no mundo!
É engraçado a forma como as coisas vão se concretizando. Acabei de
perceber que preciso agradecer a Chris Paul. Se você não tivesse deixado
Nova Orleans, eu provavelmente nunca teria parado de escrever no blog. De
um jeito bizarro, este livro existe por sua causa.
Obrigada ao meu pai, que me inspirou amor pela fantasia desde a infância,
quando lia O Hobbit para mim. (Um dia, pai, vou escrever um romance de
capa e espada!). Para minha mãe, que enquanto este livro era avaliado, me
incentivou a visualizá-lo pronto e dizer: “As coisas sempre dão certo para
mim”. Elas realmente dão certo! E para meu irmão, Bryan, por descobrir
todas as referências à cultura geek presentes no livro.
Obrigada Michael, meu querido, especialmente por todas as semanas em
que estive louca revisando este livro e ignorei você completamente. De algum
jeito, a casa não foi submersa por um mar de louça suja e tralhas, e todos os
gatos sobreviveram. Tenho certeza que esse mérito não é meu. Amo você!
Este livro é dedicado à memória da minha avó, Barbara Proops, que nunca
riu quando uma versão minha de apenas oito anos dizia a ela que se tornaria
escritora. Sou grata por ter conseguido contar à minha avó que uma editora
aceitou publicar meu livro. Infelizmente, ela nunca poderá lê-lo.
E, finalmente, este livro não existiria sem a obra clássica para crianças de
Arthur Ransome. E sem a música de Stan Roger. Para ir em frente, às vezes
você precisa olhar para trás. Me voltei às canções tradicionais e às aventuras
de navegação que eu amava, aquelas que inspiraram uma garota sonhadora a
se tornar pirata. A garota cresceu e os sonhos se transformaram neste livro.
SUA OPINIÃO É MUITO IMPORTANTE
Mande um e-mail para opiniao@vreditoras.com.br
com o título deste livro no campo “Assunto”.

1a edição, dez. 2017


Garota oculta
Hall, Shyima
9788576838142
248 páginas

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"Convicções fortes e honestas caracterizam esta inquietante autobiografia.


Com simpatia e respeito, o relato de Shyima Hall inevitavelmente conquista o
leitor" Publishers Weekly Shyima vivia em situação de pobreza com sua
família no Egito. Quando tinha 8 anos, uma de suas irmãs mais velhas –
empregada doméstica de um casal rico do Cairo – foi demitida por furto.
Seus pais, então, fizeram um acordo com os ex-patrões da irmã: para pagar a
dívida, Shyima ficaria no lugar dela. Assim iniciou sua escravidão. Os
raptores de Shyima referiam-se a ela como "garota estúpida" e a forçavam a
fazer de tudo como servente. O pouco dinheiro recebido em troca de seu
trabalho era enviado diretamente a seus pais, com os quais Shyima passou a
ter muito pouco contato. Dois anos depois, seus raptores mudaram-se para os
Estados Unidos e Shyima foi levada ilegalmente com eles. As mais diversas
formas de escravidão contemporânea são uma realidade terrível para milhares
de adultos e crianças no mundo inteiro. Shyima foi uma dessas vítimas.
Conheça sua trajetória inspiradora rumo à liberdade neste relato comovente.

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Garota imperfeita
Howell, Simmone
9788576838777
320 páginas

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Skylark não é mais uma menina, mas os outros personagens dessa história
não estão prestando atenção nesse fato. Gully, o irmão mais novo de Sky, tem
dez anos e está obcecado por investigar uma tentativa de assalto; sua mãe foi
embora para o Japão numa busca insana pela vida artística; seu pai, Bill,
parece satisfeito em beber enquanto permanece imerso na loja de vinis e no
passado; do alto do terraço, Nancy, a amiga mais velha e experiente, fuma
um cigarro e diz que Sky deve se divertir mais; uma garota é encontrada
morta e há cartazes com seu rosto estampado por todo o bairro; há uma
estranha ligação entre a garota dos cartazes e Luke, o novo funcionário de seu
pai. Nessa história, cada acontecimento tem sua própria melodia. E essa é a
história de como Sky encontra seu lugar no mundo. Um lugar em que não
existem garotas perfeitas. É também a história de uma garota louca e de uma
garota fantasma; de um garoto que não sabia de nada e de um garoto que
achava que sabia de tudo. E é sobre vida, morte, luto e romance. Só coisa
boa. Destaques do livro "Divertida e dona de um olhar mordaz sobre as
imperfeições do mundo (e sobre ela mesma), Sky é autêntica." – Kirkus
Reviews

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Insígnia: o catalisador
Kincaid, S. J.
9788576838135
458 páginas

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Último capítulo da saga traz um final avassalador! Tom Raines e seus amigos
estão ansiosos para voltar à Agulha Pentagonal e continuar seu treinamento
nas Forças Intrassolares. Ainda que este seja um momento em que as coisas
não pareçam estar tão bem. Tom não se intimida e persiste em lutar. O que
começar como um ajuste de contas intrigante entre Tom e seu pai logo se
transforma em uma mudança perigosa, pois há agente suspeitos em posições
de poder, bem como revelações sobre um novo controle militar. Isso
significa, talvez, que Tom tenha que manter segredos inclusive se seus
aliados. Em seguida, uma figura misteriosa, outro fantasma na máquina,
inicia uma luta contra as corporações, mas os métodos adotados por Tom
para combate-lo são chocantes. Neste terceiro volume, vemos Tom e seus
jovens amigos, os cadetes, diante de um futuro impossível, o qual eles nunca
poderiam prever. Em Catalisador, S. J. Kincaid nos presenteia com um final
eletrizante, concluindo uma jornada heroica e fantástica de tirar o fôlego.
"Um final perfeito para esta série e um questionamento aos leitores: como
lidar com as grandes ideias?" Kirkus Reviews

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Insígnia: a arma secreta
Kincaid, S. J.
9788576835738
502 páginas

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"Você não vai conseguir parar de ler." - Veronica Roth, autora de Divergente,
best-seller do New York Times. É a Terceira Guerra Mundial. O inimigo está
vencendo. E se a arma para virar o jogo fosse você? Mais do que qualquer
outra coisa, Tom Raines quer ser alguém importante. Aos 14 anos, com uma
aparência pouco digna de atenção e uma vida cheia de incertezas, ele está
bem longe de realizar o seu desejo. Exceto por sua habilidade com games,
Tom não tem muito com o que contribuir. Um zero à esquerda. Durante anos,
o garoto perambulou de cassino em cassino com seu pai, um jogador
completamente sem sorte e que fazia de seu vício um meio de sobrevivência.
A cada dia, iniciava-se uma nova jornada em busca de um "lar", mesmo que
isso significasse um quarto qualquer pago com o pouco dinheiro ganho em
apostas. Mas, certo dia, o que parecia ser uma existência fadada ao fracasso,
muda radicalmente. Da noite para o dia, Tom é convidado para integrar a
elite do Exército e utilizar seu talento como jogador para ajudar seu país a
vencer a Terceira Guerra Mundial. Tom, então, tem a oportunidade de se
tornar alguém importante: uma supermáquina de guerra com habilidades
tecnológicas jamais imaginadas. E de quebra, ganha a chance de conquistar
tudo aquilo que parecia reservado aos outros: sucesso, amigos, um amor de
verdade. Mas o acesso a tudo isso tem um custo. Será que vai valer a pena?
Com personagens fascinantes e um enredo de tirar o fôlego, Insígnia faz uma
eletrizante viagem ao futuro e revela um mundo onde as fronteiras entre
humanos e máquinas não podem mais ser distinguidas.

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Divina vingança
LaFevers, Robin
9788576839507
394 páginas

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Sybella nunca soube ao certo o que era amor. Não sem segunda intenções.
Desde sua infância, ela teve de confiar em si mesma para conseguir
sobreviver.

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