Duns Scotus 5

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John Duns Scotus

Bruno Beltrão Léo 1

RESUMO

O presente artigo analisa a vida e a obra de John Duns Scotus, filósofo e teólogo
franciscano medieval. Dotado de uma inteligência e sutileza de pensamento ímpares,
o Doutor Sutil – como foi intitulado, foi considerado o representante mais qualificado
da Escola franciscana pelo Papa Paulo VI. Inicialmente, o texto traz informações da
vida do beato e de suas obras mais conhecidas. Posteriormente, aborda a filosofia e
teologia de Scotus, evidenciando sua originalidade e capacidade analítica, e sua visão
do cristocentrismo. Finalmente, o texto aborda a contribuição do teólogo ao dogma da
Imaculada Conceição de Maria.

PALAVRAS–CHAVE: Duns Scotus, Doutor Sutil, Doutor Mariano, Escolástica

Vida e obra de Duns Scotus2

As informações acerca da vida privada de Duns Scotus são relativamente


esparsas, mas graças às pesquisas realizadas a partir do século XX se pôde obter
dados mais confiáveis acerca de sua biografia. Assim, a partir da descoberta da data
de sua ordenação sacerdotal, a 17 de março de 1291, estima-se que o ano de seu
nascimento pode ter sido o ano de 1265 ou 1266.
O lugar de nascimento do filósofo também é questionado, pois já lhe foi
atribuído ser inglês, irlandês e escocês. O certo é que o sobrenome Scotus evoca o

1
O autor é graduado em Engenharia Eletrônica, Mestre e Doutor em Economia pela Universidade de Brasília -
UnB, e graduando em Teologia na Faculdade de Teologia da Arquidiocese de Brasília – FATEO.
2
Esta seção está baseada no livro “Juan Duns Scotus – Introducción a su pensamiento filosófico-teológico”, de
José Antonio Merino, Biblioteca de Autores Cristianos, 2007.
2

nome de sua região, Escócia, ao passo que o de Duns – pequena cidade escocesa,
o lugar de seu nascimento.
Duns Scotus pertencia a uma família economicamente abastada. Seu pai se
chamava Niniano Duns de Litteldean, e um tio seu – Elias Duns, entrou para a ordem
dos franciscanos. Em 1278, Scotus teria cerca de treze anos, quando frequentou a
escola dos franciscanos de Haddington, onde estava seu tio. Quando completou
quinze anos (em 1280), ingressou no noviciado da ordem franciscana, acolhido por
seu tio Elias, que era então o custódio da Custódia da Escócia.
Estudou em colégios da própria Ordem, completando sua formação em Oxford.
Há opiniões sobre se esteve em Paris para aperfeiçoar sua formação. O conhecimento
que tinha sobre a lógica de Paris se pode explicar pelo fato de que os manuscritos e
o ensinamento de Simon de Faversham3 circulavam por Oxford naquela época.
Entre 1300 e 1301, Scotus comenta os livros das Sentenças de Pedro
Lombardo4, em Oxford. Em junho de 1302, por recomendação do ministro provincial
da Inglaterra, foi chamado a lecionar na Universidade de Paris, interrompendo, assim,
seu Comentário às Sentenças, iniciado em Oxford.
Sua estada em Paris foi interrompida no final de junho de 1303, pois foi expulso
da França porque se recusou em subscrever a petição do rei Filipe IV – o Belo5, o qual
apelava por um concílio contra o papa Bonifácio VIII. Assim, Scotus retorna a Oxford
para continuar a lecionar. Quando o Papa Bento XI, em 18 de abril de 1304, revogou
o decreto que privava a Universidade de Paris de conferir títulos acadêmicos, Scotus
retornou àquela Universidade, a pedido de seu antigo mestre, Gonzalo de España,
ministro geral, que escrevia ao ministro provincial da França nos seguintes termos:
“Recomendo a vossa caridade nosso caríssimo irmão em Cristo, p. John
Scotus, de quem conheço suficientemente sua digna vida, seu excelente
saber, sua sutilíssima inteligência e outras muitas qualidades, em parte, em
razão de uma larga convivência comunitária com ele, e, em parte, em razão
de sua grande reputação”.

3
Simon de Faversham foi um filósofo escolástico medieval inglês, educado em Oxford, que provavelmente
lecionou em Paris por volta de 1280, e cuja obra consiste quase que inteiramente de comentários à lógica de
Aristóteles.
4
Redigidos em meados do século XII pelo bispo de Paris Pedro Lombardo, os quatro livros das Sentenças são
uma obra fundamental no campo da especulação teológica e constituem-se uma cuidadosa compilação de textos
bíblicos e frases (sentenças) de Padres da Igreja e outros pensadores medievais que juntos compõem uma
detalhada exposição da teologia cristã da época.
5
Filipe IV foi um rei francês polêmico, estando na origem da tentativa de deposição do papa Bonifácio VIII e da
transferência do papado para a cidade de Avinhão, e criando as condições, algumas décadas depois da sua morte,
para a eclosão da Guerra dos Cem Anos.
3

Scotus, já celebre por seus ensinamentos, recebeu o título de doutor no ano


seguinte. Ensinou em Paris como mestre regente entre 1306 e 1307. No final de 1307,
foi transferido a Colônia como Lector principalis. Morreu muito jovem nesta cidade, em
8 de novembro de 1308, sem se saber de que tipo de enfermidade. Já no final do
século XIV e início do século XV, vários documentos apresentavam sua morte como
exemplar, em uma espécie de êxtase. Seu corpo foi sepultado na igreja dos Irmãos
Menores conventuais. Junto a seu simples sepulcro está esculpido o seguinte epitáfio
em latim: Escócia me gerou / Inglaterra me recebeu / França me ensinou / Colônia me
guarda (Scotia me genuit / Anglia me suscepit / Gallia me docuit / Colonia me tenet).
Seus contemporâneos o apelidaram Doutor Sutil, ao que acrescentaram mais
tarde o título de Doutor Mariano. Durante vários séculos, foi muitas vezes criticado
injustamente por alguns intelectuais, e mesmo seu grau de santidade foi negado por
certos setores influentes. Finalmente, o papa João Paulo II o proclamou beato em 20
de março de 1993. Com isso, terminou uma larga história de suspeitas tanto de sua
ortodoxia como de sua ortopraxis.
O ambiente intelectual em que vivia era muito complexo, no que concerne às
diversas correntes filosóficas e à questão de como ser fiel à escola que se julgava
mais segura. A obra intelectual do Doutor Sutil, que brota dessas complicadas
circunstâncias, é surpreendente. Scotus explicou de três formas o livro das Sentenças
de Pedro Lombardo. Assim, temos três Comentários às Sentenças. A primeira versão
foi feita em Oxford, cuja redação leva o nome de Leitura. O segundo comentário foi
feito em Paris, do qual seus alunos fizeram a redação, conhecido por Reportata
parisiensia. O último comentário, que leva em conta os anteriores, se chama Ordinatio
ou Opus Oxoniense, que começou em Oxford e terminou em Paris. Esta última é sua
obra principal.
Além dos comentários sobre as Sentenças, escreveu obras sobre lógica,
comentários a Aristóteles e a Porfírio. Comentários a De anima de Aristóteles.
Quaestiones super libros Metaphysicorum, donde se encontram também temas
teológicos. Collationes, ou conferências sobre temas diversos, principalmente
teológicos, realizados tanto em Paris como em Colônia. Theoremata ou teoremas que
expõem as principais teses da teologia. Tractatus de primo principio, donde se
oferecem as provas filosóficas da existência de Deus.
4

Teologia e Filosofia de Duns Scotus

No contexto histórico em que se insere, e sob a influência de mestres


franciscanos como São Boaventura6, Gilberto de Tournai7, Mateus de Aquasparta8,
Pedro de João Olivi9, entre tantos outros – dominicanos, eremitas e seculares, Duns
Scotus propiciou uma nova síntese entre as correntes platônico-agostiniana e
aristotélico-tomista, haja vista sua formação em Oxford, a tradição franciscana e o
ambiente antiaristotélico e antitomista que o circundava. Nesse ambiente, sua
concepção teológica irá determinar sua filosofia. E não somente porque Scotus
pensou esta no âmbito daquela, mas também porque é consciente de que o homem
se encontra sob o paradigma do pecado de origem e não pode assinalar tal situação
atendendo exclusivamente à faculdade de pensar e à experiência histórica a partir de
si mesmas.
Isto vale dizer que o homem não tem a cognitividade de Deus em sua
singularidade sob uma forma intuitiva, como os bem-aventurados, mas que a deva
elaborar conceitualmente. E o conceito mais simples entre todos os conceitos que a
mente humana pode formar de Deus é o ser infinito. Esta compreensão do ser infinito
possibilita criar um ponto de encontro entre a filosofia e a teologia que se coloca na
metafísica, a ciência do ser enquanto ser (ens inquantum ens). E para que se dê tal
relação interdisciplinar – filosofia e teologia, se concebe o ser de uma forma unívoca,
quer dizer, expressa o ser enquanto ser sem outra determinação
Para a maior parte dos escolásticos, o ser diz-se de tudo quanto existe ou pode
existir em realidade. A noção de ser atinge em Scotus um grau de abstração até então
desconhecido. Para Scotus, o ser enquanto ser é concebido na sua pura forma,
independentemente não só de qualquer determinação categorial, mas também dos
seus modos intrínsecos – finito ou infinito. Dessa forma, ao ser enquanto ser se acha

6
São Boaventura foi teólogo e filósofo escolástico do século XIII. sétimo ministro-geral da Ordem dos Frades
Menores, canonizado em 1482 pelo papa Sisto IV e declarado Doutor da Igreja em 1588 pelo papa Sisto V com o
título de “Doutor Seráfico”.
7
Gilberto de Tournai foi um teólogo e filósofo escolástico franciscano, professor de Artes e Teologia em Paris,
que redigiu a enciclopédia pedagógica mais detalhada da Idade Média: Rudimentum doctrinae christianae, entre
os anos 1260 e 1270.
8
Mateus de Aquasparta foi um filósofo escolástico italiano da Ordem dos Frades Menores, autor das
Quaestiones disputatae.
9
Pedro de João Olivi tratou do poder do Papa, levado, principalmente, por duas situações de conflito: quanto
ao alcance do poder espiritual, devido aos debates sobre a pobreza dentro da Ordem franciscana e, nesse caso,
foi dos primeiros a afirmar a “inerrabilidade” do Sumo Pontífice.
5

naturalmente ordenada a intencionalidade da inteligência, pois só por ele as demais


coisas se tornam inteligíveis. Deste modo o ser, precisamente porque incluído em
todas as coisas, define o horizonte ou capacidade operativa da inteligência enquanto
é ele que fornece o ângulo ou perspectiva de acesso ao vasto panorama da realidade.
Graças a ele nenhuma realidade é excluída: por ele se transcende o mundo da
experiência e se abre caminho para a metafísica e para o ser infinito – Deus.
Assim, para Scotus, a demonstração metafísica da existência do ser infinito –
Deus, deve partir não da existência atual das coisas, mas da sua essência, isto é, das
suas propriedades metafísicas. E por raciocínio filosófico, Scotus irá deduzir, mediante
o princípio de não-contradição, a existência de um ser primeiro, atribuindo-lhe alguns
atributos que deve possuir tal primeiro ser: unidade, inteligência, vontade e infinitude.
Ainda, esse ser primeiro, para poder causar tudo quanto pode causar, deve poder
conhecê-lo e amá-lo antes de o causar – logo, é dotado de inteligência e vontade. É,
além disso, infinito – porque, podendo causar tudo, conhece tudo distintamente e,
sendo supremo em perfeição, não comporta limites de espécie alguma.
Para Scotus, a metafísica torna possível, ao mesmo tempo, que se tenha
acesso a Deus pela necessidade da existência de um ser em ato infinito e que tal
existência seja possível e real, pois a evidência só se dá no conhecimento que Deus
tem de sua própria essência. E esta evidência, que requer um conhecimento perfeito
do objeto, se chama “teologia em si”.
Ademais, irá existir outra teologia chamada “em nós”, de conhecimento
imperfeito e dependente da apreensão que se tenha de tal objeto, já que a natureza
está incapacitada para compreender todos os objetos inteligíveis das ciências. Essa
teologia “em nós” abarca as verdades que a Escritura transmite e as que se deduzem
dela, sabendo, além disso, que a Escritura só diz aquelas verdades que o homem
pode compreender a partir da deficiente situação em que se encontra.
Há de se destacar que as razões aduzidas por Scotus conduzem à necessidade
da Revelação que só a teologia acolhe. E é uma Revelação que transmite um Deus
pessoal, livre no amor, que tomou a iniciativa da salvação e que se autocompreende
como dom. A natureza humana experimenta-se como uma potência passiva que se
desenvolve em sua referência a Deus por Deus mesmo, não a partir dela própria.
Ainda, segundo o Doutor Sutil, para o conhecimento da revelação cristã se
requer a dimensão sobrenatural da graça, experiência que não é necessária para a
filosofia e para as ciências, pois elas se creem capazes de uma perfeição humana
6

para construir seu âmbito científico por um conhecimento certo pela noção de ser e
dos primeiros princípios:

Nesta questão se vê a controvérsia entre filósofos e teólogos. Os filósofos


sustentam a perfeição da natureza e negam a perfeição sobrenatural; os
teólogos, em contrapartida, conhecem o defeito da natureza e a necessidade
da graça e a perfeição sobrenatural...10

Ressalte-se, também, a especial importância que adquire a cristologia para


Scotus, nos moldes do pensamento de São Boaventura. Assim, Jesus Cristo é a obra
máxima de Deus ad extra. Ele é o primeiro pensado e o primeiro querido no início da
criação, antes do pecado de Adão, causa e fim do universo:

Quanto ao primeiro, digo que a Encarnação de Cristo não foi prevista


ocasionalmente, mas da mesma maneira que o fim era visto imediatamente
por Deus desde a eternidade, assim também Cristo em sua natureza humana,
por estar mais próximo do fim, era predestinado antes que os demais, falando
dos que são predestinados. Então, a ordem da previsão divina foi esta:
primeiro Deus se entendeu a si mesmo sob o conceito de sumo bem; no
segundo momento, entendeu todas as criaturas; no terceiro, predestinou à
glória e à graça, e a respeito de outros teve um ato negativo, não os
predestinando; no quarto, previu que iriam cair em Adão; em quinto, pré-
ordenou a respeito do remédio como remi-los pela paixão de seu Filho, de
maneira que Cristo encarnado – como também todos os eleitos – era previsto
e predeterminado à graça e à glória antes que fosse prevista a paixão de
Cristo como remédio contra a queda, da maneira como o médico quer a saúde
da pessoa antes de ordenar acerca do remédio para curá-la.11

Assim, para Duns Scotus, o acontecimento Jesus Cristo como “bem tão
supremo entre os entes” (tam summum bonum in entibus) no desígnio de Deus não
está subordinado a nenhuma outra realidade; por isto, a glória destinada à alma de
Cristo está pré-ordenada à glória concedida por Deus a Adão nas origens. O desígnio
de Deus tampouco está subordinado à previsão do pecado de Adão por parte de Deus,
que o haveria realizado igualmente; contudo, com a previsão do pecado de Adão e
dos outros homens nele (Adão) e por ele, Jesus Cristo entra no desígnio de Deus
também como redentor e talvez submetido à passibilidade, dado que, na ausência de
pecado não teria havido nenhum motivo para retardar a glória ao corpo de Cristo no
caso de que não houvesse acontecido a redenção. Jesus Cristo, então, na doutrina

10
SCOTUS, D. Ordinatio, I.
11
Ibidem.
7

do Doutor Sutil, é a obra máxima de Deus (summum opus Dei) querida por Deus por
si mesma.

Duns Scotus e a Imaculada Conceição de Maria

Segundo Duns Scotus, o pecado original não se propaga ou se transmite pela


concupiscência e pela contaminação da carne, mas porque a graça e a privação da
graça não são de ordem material e, portanto, não são produtos de uma realidade
material (a carne). Ação dos pais limita-se a dispor a matéria (o “corpo”) para receber
a alma criada e infundida por Deus, que é a causa eficiente única da alma espiritual;
os pais, pois, não podem produzir o pecado original na alma. Por conseguinte, diz
Duns Scotus, a Conceição Imaculada de Maria é possível, se se tem presente o que
é essencialmente o pecado original e como ele se transmite. Assim, dado que consiste
essencialmente não na mancha transmitida à alma por parte da carne manchada, mas
na privação da justiça original, deve-se dizer que este pecado se apaga por meio da
graça que recria a relação filial com Deus.
Assim, consoante Scotus, esta infusão da graça por parte de Deus pode dar-
se: 1) depois do nascimento ou 2) já durante a gestação ou 3) no primeiro momento
mesmo da concepção do ser humano, quer dizer, no primeiro instante da existência
da alma. Nos dois primeiros casos, há contração do pecado original. No terceiro
(suposto que Deus a tenha querido concebida sem pecado, é o caso de Maria) não
há contração alguma do pecado original, mas uma preservação do pecado. E mesmo
que – dado, mas não concedido – neste terceiro caso se desse alguma infecção da
carne, esta nunca incluiria nem o pecado original nem a contaminação da alma. No
dizer de Scotus:

Deus pôde, no primeiro instante da existência da alma (de Maria), dar-lhe a


mesma graça que concede a outras almas no momento da circuncisão ou do
batismo. Deste modo, naquele primeiro instante, (a alma de Maria) não teria
tido pecado original, da mesma maneira que outra pessoa, depois de tê-lo
contraído, não o tem depois do batismo recebido. E embora (naquele primeiro
instante da existência da alma de Maria) a carne estivesse manchada, isso
não implicaria o pecado original nem a infecção da alma, do mesmo modo
8

que depois do batismo a contaminação do corpo (concupiscência)


permanece, mas desaparece absolutamente a infecção da alma12.

São Boaventura, entretanto, formulava a seguinte dificuldade: Maria, enquanto


filha de Adão, tinha que existir, em primeiro lugar, e depois receber a graça. Duns
Scotus, como bom lógico, não nega que antes é a existência e depois se recebe a
graça de Deus. Contudo, com um sagaz argumento, ele precisa: não se trata neste
caso de uma prioridade cronológica, mas de uma prioridade de natureza, segundo a
qual duas entidades, por causa de sua respectiva natureza, se supõem uma à outra,
embora começando a existir no mesmo instante temporal. No caso de Maria, portanto,
no mesmo instante temporal no qual a sua alma começa a existir, por sua “natureza”
(ou seja, enquanto alma) pode estar indiferentemente em graça ou em pecado; se
Adão não tivesse pecado, no mesmo instante temporal em que Deus a cria, a
adornaria sobrenaturalmente com a justiça original; agora, embora de fato Adão
pecou, no entanto, somente no caso de Maria, Deus quis, em virtude dos méritos de
Cristo, adorná-la igualmente com a graça santificante.
Scotus argumenta que se Cristo não tivesse preservado Maria do pecado
original, não teria sido um mediador perfeitíssimo. Assim, Duns Scotus recorre à
relação que Cristo tem, como mediador, tanto com a Trindade, com a qual reconcilia,
como com o mal, do qual livra, e com a pessoa que é reconciliada com a Trindade.
Logo, os argumentos do Doutor Sutil valem somente para Maria, porque ela tinha que
ser a digna Mãe do Redentor.

Considerações finais

John Duns Scotus não era um místico nem um poeta como São Boaventura,
mas um excepcional metafísico, sagaz e penetrante, que soube oferecer uma visão e
interpretação global, unitária e dinâmica de Deus, do homem e do mundo em perfeita
sintonia com o espírito do fundador de sua Ordem. Se Boaventura foi definido como
“o segundo príncipe da escolástica”, Duns Scotus é considerado seu aperfeiçoador e
o representante mais qualificado da Escola franciscana13.

12
SCOTUS, D. Ordinatio, III.
13
Cf. Papa Paulo VI em sua carta apostólica Alma parens.
9

A inteligência penetrante do Doutor Sutil não se detém ante teses, doutrinas e


sistemas aparentemente rigorosos e indiscutíveis, pois a verdade supera os
esquemas mentais e não se deixa aprisionar em axiomas, teoremas e deduções
lógicas. Scotus é crítico não apenas com relação aos sistemas vigentes de seu tempo,
mas também com relação à própria capacidade racional do homem para conhecer a
verdade. É o filósofo da dúvida das doutrinas consideradas certas.
É um autor difícil, mas não complicado. Entretanto, não é para mentes
superficiais, senão para espíritos exigentes, lúcidos e profundos. É um filósofo e
teólogo analítico, metafísico das essências, atento observador das existências. Sua
especulação mais elevada está apoiada e conectada com a vida. Todo seu
pensamento está orientado para a vida, porque previamente se fixou em tudo que
acontecia com ela, e que não pode ser representado por princípios gerais e abstratos.
Daí sua ontologia do concreto e sua teologia do amor, expressa de forma magistral
no cristocentrismo. O Doutor Sutil nos oferece a esplêndida articulação de um
humanismo cristão, no qual o saber está a serviço do bem viver e do bom convívio,
ou seja, de uma sociedade justa, pacífica e fraterna.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FRESNEDA, F., Textos e Contextos da Teologia Franciscana, MTF, Vozes, 2005.

IAMMARRONE, G., Cristologia, MTF, Vozes, 2005.

MERINO, J. A., Juan Duns Escoto – Introducción a su pensamiento filosófico-teológico,


BAC, 2007.

Papa PAULO VI, Carta apostólica Alma parens, 1966.

POMPEI, A., Mariologia, Vozes, 2005.

ROPS, D., A Igreja das Catedrais e das Cruzadas, Quadrante, 1993.

SCOTUS, D., Ordinatio, I-III.

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