História Da Província Do Ceará
História Da Província Do Ceará
História Da Província Do Ceará
J;
ge šfiñnmmúfi
'
Cornell University Library
F 2556.A36
Historia da província do Ceara, desde o
I I I!
3 1924 020 012 690
I!!
,15% -
#3?
DESDE OS TEMPOS PRIMITIVOS
RECIFE
TYPOGRAPHIA D0 JORNAL no ¡usclFE
Rua do Imperador n. 77
1 8 ÕT
Àjãâws
PREFAOIO
CAPITULO I
(ZA PITIÍLG l l
6
__ 39-...
termo medio em rendimento annual 800$000 réis ; depois redu-
zio-se a couza insignificante.
Os indigenas aldeiados no Ceara sempre mostraram-se afei
çoados a vida silvestre ; inclinação que ainda hoje se revela nos
que actualmente vivem entre nós, os quaes sempre buscam os lu
gares mais retirados, quando encontram sitios azados aos seus
dezejos, e genero de vida.
O governo portuguez manifestou constante e decidido em
penho pela civilização e aproveitamento dos indigenas. Si da
parte dos colonos o interesse levava-os a perseguição dos
mizeros selvagens, não acontecia assim com o governo da me
tropole.
Assim o governo, reconhecendo com quanta vantagem os
missionarios jezuitas catechizavam os selvagens, promoveu, e
auxiliou o pio trabalho d'esses enltores da vinha sagrada. Para
dar incremento a missão da Ibiapaba, estabelecida desde 1697
por ordem regia, determinou-se em 1721 a ida de mais 10 mis-
sionarios jezuitas, os quaes para ali foram, dando-se 6:000 cruza
dos por 3 annos para a fabrica do edificio conveniente, e 40$000
réis de congrua annual a cada padre, com passagem gratuita.
E tanta consideração dava o governo ao progresso das mis
sões e oatecheze dos indigenas, que em 1723 conferio el-rei aos
2 principaes indios da Ibiapaba, José de Vasconcelos, Felipe
de Souza e Sebastião Saraiva o titulo de don, e o habito de San
tiago com tensas efectivas de 20$000 réis annuaes.
Ali o aldeiamento xegou ao crescido numero de milhares
de indigenas.
De 1765 a 1781 vieram das brenhas para diversas aldeias
mais de 4:000 indigenas de diferentes nações.
Não curava a administração publica sómente de congregar
os indigenas em aldeias, para infiltrar-lhes o habito do trabalho,
eos costumes da civilização: outras providencias tomava tam
bem para a consecução de tão louvavel fim.
0 numero dos individuos aldeiados em todo o paiz exigia
direção regular ; e foi n'esse intuito, que se estabelecera o dire
torio provizorio para o governo das povoações indigenas.
Esse diretorio dava regimen especial ao governo economi
co dos indigenas em suas aldeias; e como a experiencia mostrasse
a nenhuma conveniencia d'esse sistema, mandou a ordem regia
de 12 de Maio de 1798 abolir similhante diretorio, e determi ^
nou, que os mesmos indigenas ficassem sem diferença dos outros
vassalos, sendo dirigidos pelas mesmas leis.
E como providencia favoravel ao desenvolvimento da civi
lização indigena, concedewse n'essa mesma ocazião aos indivi
_33...
CAI'ITULÚ- Ill
CAPITULO IV
CAPITULQ V
CAPITULO VI
que apenas trazia- 3 ou 4 para dar ao priuci pal, e aos seus proxi
mos parentes ; mas que na aldeia, onde elle padre estava, tinha
muita ferramenta, que por todos distribuiria, si quizessem viver
na sua companhia, livres de inimigos, e com grandes roças pre
paradas para el les, tendo boas terras para fazer outras, e conve
niencia de gozar da poderoza proteção do rei de Portugal. De
mais lucrariam a vantagem da salvação de suas almas, sendo fi
hos de Dcos, e herdeiros do céo, que seus pais e avós desconhe
ciam : e tamanho era esse bem, que por obtel-o deixara elle
missionario patria, parentes, e se embrenhara nos matos para ar
rancar as suas almas do poder do diabo e do eterno padecimento
do fogo do inferno.
Assim o veneravel missionario dominava a vontade dos sel
vagens, os quaes deliberavam-se a acompanhal-o, e tomando si
tio e terras convenientes formavam novas aldeias: assim este
fervorozo conquistador de almas reduzio milhares de gentios, que
trouxe ao gremio da santaigreja, e sugeitou a obediencia do rei
como vassalos. '
Concluidas as obras p recizas ao principio da colonia, entre
gou Martim Soares em 1613 o prezidio ao seu immediato Este
vão de Campos, e volto u a Pernambuco afim de avizar ao gover
nador do estado Gaspar de Souza, que os Francezes estavam si
tuados na ilha do M aranhão, fomentando amizade com os guer
reiros e valerozos Tupinam bas : e assim convinha apressar a ex
pedição da conquista do Maranhão contra os mesmos Franeczes,
ali estabelecidos desde 1594, cr-n:o fira dito, por ter estado esse ter
ritorio abandonado pelos Portuguezes desde as infelizes tentati
vas de colonização por João de Barros, e Luiz do Melo.
Apenas sahio Martim Soares do prezidio, não mantiveram
os indigenas a mesma cordialidade com os colonos, de cuja commu
nicação altanados se afastavam. rec eiozos do mesmo tratamento,
que lhes dera Pedro Coelho ; de sorte que quando por ali passa
iam Jeronimo de Albuquerque, e Martim Soares com 3 navios e
100 homens mandados por ordem do governador do estado para
o Maranhão, não poderam levar todo o socorro, que dos ditos in
digenas esperavam, e foram seguindo pela costa até a enseada
da Jericoacoara, onde deram fundo.
Construida na dita enseada uma pequena fortaleza, com a
denominação de Nossa Senhora do Rosario, mandou d'ali o com
mandante da expedição a Martim Soares com uma embarcação
reconhecer a Ilha do Maranhão ; mas porque em vão aguardas
se este oficial, e não conseguisse a esperada aliança do manhozo
Jnripariguassú, deixou de prezidio na fortaleza 40 homens, e re
gressou por terra a Pernambuco com a. outra parte da gente da
__90 __
expedição, uns embarcados, c outros por terra. Estes 40 ho
mens reduzidos a penuria por falta de viveres, e continuados as
saltos dos aborigenes, estavam a ponto de sucumbir, quando de
Pernambuco lhes xegou socorro, vindo 300 homens destinados a
expedição do Maranhão.
Eram estes apenas ali xegados, eis que surge uma embar
cação franceza, a qual, supondo a fortaleza mal guarnecida,
dezembarcou gente para tomal-a ; mas encontrando decidida
rezistencia, retrocedem os Francezes aceleradamente, e seguem
para o seu destino do Maranhão.
Mais de um anno era passado sem noticia alguma de Mar
tim Soares, e nen: mesmo se sabia, si os Francezes tinham esta
belecimento fixo no Maranhão, constando sómente com certeza,
'que commerciavam com os indigenas. Soube-sc então, que Mar
tim Soares, tendo descoberto a colonia franceza, e examinado as
suas forças, fora por um temporal obrigado a amarar-se, indo por
fim aparecer nas costas da Espanha, onde informando ao gover
no da metropole de tudo, fez com que viessem ordens expressas
ao governador geral do Brazil para a expulsão dos Francezes.
Com estas ordens novo vigor tomou a expedição, que em
Pernambuco organizava o governador geral do Brazil, nomean
do para commandante d'ella a Jeronimo de Albuquerque, o qual
veio com a sua gente em numero de 300 homens de tropas regu
lares, e 334 indigenas aliados, sob as ordens de 12 xefes, e dezem
barcou a 7 de Setembro de 1614 na enseada do Iguape com os
indigenas, e foi reunir-se com a frota, depois de dous dias de
marxa, na fortaleza do Amparo, onde com 16 soldados, ha
mais de' 14 mezes, o esperava o capitão -do prezidio do
Ceara.
Em quanto ali esteve, xegou do Rio-grande-do-norte o
xefe indio Antonio Filipe Camarão, o qual por axar ali o seu ir-
mão Jacaúna, não quiz proseguir na expedição, comentando
se com dar 20 indigenas commandados por sen filho.
D'aqui levou Jeronimo de Albuquerque as melhores tro
pas existentes no prezidio, e passou-so para a fortaleza das Tar
tarugas, ereta junto a Jericoacoara, que, examinados varios lo-
caes até o Camucim, axou mais conveniente para ali demorar-se,
emquanto abria amigavel communicação com os Tapuias da
Ibiapaba, os quaes mostraram-se accessiveis; tirando d'fihi o xefe
da expedição a grande vantagem de não deixal-os pela retaguar
da como inimigos, quando avançou para o Maranhão.
Nas Tartarugas a 5 de 'Outubro do referido anno cele-
brou-se afesta do Rozario, havendo a tarde parada militar, a
__ 91 __
que assistiram os intitulados embaixadores da Ibiapaba, e de Ju
ripariguassú.
O canto, o orgão, c a flauta soaram pela primeira vez n'a
quelles ermos lugares, que viam tambem pela primeira vez o
ensaio de um exercito em linha de batalha, ostentando 0 bri
lho d'cssas armas, que vinham dar novos dominadores ao so
lo, cujos uaturaes iam tudo perder com a perda da terra e da
liberdade.
Esses embaixadores eram as testimunhas solemnes da
posse. que de vastos e não cogitados dominios tomavam os
novos senhores. Em sua simpleza nem cuidavam siquer oS
indigenas na significação do que ante seus olhos se consumava.
Expulsos os Francezes do Maranhão, e explorado o Para,
considerou a côrte de Madrid como importantissimas as novas
conquistas, e por isso Filipe Quarto fez nova divizão politica do
Brazil; e separando do governo geral as possessões do Maranhão
e Para, estabeleceu em 1624 segunda repartição debaixo do titulo
de estado do Maranhão, no qual ficou abrangido o territorio do
Ceara, e mandou para governar o novo estado a Francisco Coelho
de Carvalho, que, sahindo n'aquelle anno de Lisboa para Per
nambuco, só dous fannos depois tomou posse do governo no pre
zidio do Ceara.
Oestado novamente creado, conforme li em uma antiga
memoria, escrita em 1734, comprehendia cm suas demarcações,
correndo do sul ao norte, pela costa do Atlantico desde a capita
nia-mór do Ceara até o rio Oiapóc. mais de 430 legoas, e de léste
a oeste, subindo o rio Amazonas até o sitio da Franciscana, mais
de 1:0001egoas; e em toda esta vastidão de terras apenas ha
viam 9 povoações. incluzive as 2 atuaes cidades de Belém e Ma
ranhão, e existiam por calculo aproximado 3:000 moradores
brancos.
Por esse tempo intentou a Olanda estabelecer-se no Bra
zil. Considerando na fraqueza do governo espanhol, não hezitou
em concederasociedade mercantil, que então formou-se sob a
denominação de companhia das Índias ocidentaes, o privilegio
excluzivo de fazer o commercio da America por espaço de 24
annos.
Em 1621 estabeleceu-se a companhia das Indias ociden
taes, que. sendo uma sociedade mercantil, tinha todavia uma
origem belicoza, visto como devia o seu nascimento não só a idéa
de lucro commercial, mas tambem ao dezejo de concorrer por
via da guerra para o enfraquecimento da Espanha. Era uma
sociedade de armadores, unidos para combater o poder espa
nhol, vizando os seus lucros e proveitos nas prezas da guerra
~92_.
E foi esta aeauza, por que u cmnpnnhin acabou: min
goando as rendas, cresci:un as despezas para sustentar as novas
colonias. .
A 3 de de Junho de 1621 a sociedade recebeu os seus
estatutos aprovados pelos estados-geraes. As suas prineipaes dis
pozições eram :
1.' Direito cxcluzivo de commerciar por 24 annos nas cos
tas c paizes d'Africa situados entre o tropico de Cancer, e o
cabo da Boa-esperanca. nos paizes e costas da America, desde a
ponta meridional da Terra-nova, pelo estreito de lilagal'hães,
até o estreito de Anian, o além d'isso nas terras austraes situa
das entre os meridianos do cabo da Boa-esperança, c da costa
orienta-l da Neva-Guiné :
2.' Os suditos necrlandezes, que contraviessem a esta con
cessão, commerciando n'essas paragens, ficavam sugeitos a apre
hcnsão, e eonfisco de navio e carga:
3.' A companhia podia construir fortalezas e trinxeiras
n'esses paizcs, fazer tratados de aliança, e commercio com os
principes, e povos d'esses paizes, nomear governadores, e em
pregados, os quaes, além de prestar juramento a companhia,
jurariam fidelidade e obediencia aos estados-goraes .
4.' As tropas necessarias para a conquista dos paizes no
vamente descobertos, ou para a defeza dos ja ocupados, seriam
ministradas pelos estudosgcraes, mas pagas pela companhia ; c
além do juramento aos estados-gemas, e a companhia, presta
riam tambem juramento ao estatudér ou capitão-general dos excr
citos da republica '.
5.' Os estadosgeraes deviam pagar annualmentea com
panhia, durante cinco annos, uma somma de 200:000 florins'
por cuja metade participariam dos lucros da companhia :
ö.° No cazo de ter esta alguma guerra importante, os es
tados-geraes pol-iam :i sua dispozição 16 vazos de guerra, e 4 ia
tes, equipando a companhia igual forca naval.
A companhia começou com o capital de 7,108:161 lie
rins, o qual elevou-se logo a 18:000:000, divididos em ações de
6:000 florins.
A administração social era confiada a 19 diretores, um
dos quaes podia, julgando-se necessario, ser nomeado pelos esta
dos-gcraes ; e a junta diretora tinha séde alternadamente em
Amsterdam, e Midelburgo.
Dc 6 em 6 annos devia publicar-sc uma conta corrente dos
lucros e perdas da sociedade.
Preparada a companhia, enviou frotas ao Brazil : e ocu-
pode Pernambuco em [630, trataram os Olairlezes oportuna
._QS...
(IAPITULÍ) VII
eaza.
Acto tão precipitado c criminozo não teve consequen
cia mais funesta: o capitãoe soldados culpados foram prezos,
e depois remetidos para a Bahia para serem ali julgados e pu
nidos.
Este governador fora a Pernambuco. deixando no gover
no interino o capitão do prezidio Carlos Ferreira. Havia sido
perpetrado na ribeira do Xoró um barbaro assassinato na pessoa
de Afonso Paes, homem notavel no lugar ; e porque o dito com
mandante do prezidio tomasse vehemente interesse pela prizão
dos assassinos, mandando soldados para os capturar os assassi
nos vieram ao prezidio, e de uma emboscada junto a caza da re
zidencia do mesmo capitão na noite de 11 de Agosto de 1708 dis
pararam-lhe um tiro de clavina, cuja bala fraeturou-lhe um
braço. ,
Impossibilitado o capitão Carlos Ferreira do continuar no
governo, o senado da camara assumio no dia 14 o poder adminis
trativo durante a auzeneia do governador.
Gabriel da Silva fôra ao centro da capitania, e em 1708
estabeleceu no Icó um arraial para proteger os moradores
ameaçados pelo gentio Icó, conseguindo 'fazer tudo sem perda
alguma de gente, não obstante a irritação dos indigenas.
Francisco Duarte de Vasconcelos seguio ao antecedente
capitão-mór. Foi provido no governo por patente regia de 24
de Outubro de 1709, e empossado em 25 de Agosto do anno
seguinte.
Este governador teve grave dissensão com o senado da ca
mara ; e havendo-se procedido a eleição dos vereadores para o
novo quatriennio, quiz o governador obrigar os vereadores a dei
- 1132 --
xar os seus cargos antes de terem os novos eleitos as suas cartas
de uzança, como era de lei. -
Os vereadores rezistiram , e reprezentaram ao governador
de Pernambuco, o qual aprovou o procedimento dos mesmos ve
readores. e suspendeu o governador Francisco Duarte, xaman-
do-o a Pernambuco para dar contas do seu comportamento.
Veio para o substituir o capitão-mór Placido de Azevedo
Falcão, o qual, apenas xegou, entendeu-se com a camara, e esta
communicou a Francisco Duarte a ordem do governador de Per
narnbnco, que foi immediatamente obedecida. Isto teve lugar á.
8 de Outubro de 1713.
Esta e outras questões suscitadas entre os governadores e a
camara deu lugar a propôr o ouvidor Soares Reimão a supressão
do cargo de capitão-mór da capitania do Ceara, fican'do suprido
pelo commandante do prezidio : o que no pensar do ouvidor evi
tava a despeza do pagamento de honorario d'aquelle posto,e pre
vinia as commoções motivadas pelos arbitrios e negociações dos
capitães-móres. Todavia o'governo da metropole não deu con
sideração a tal proposta, e continuaram os capitães-móres no
Ceara.
Placido de Azevedo foi nomeado pelo governador de Per
nambuco por portaria de 3 de Setembro de 1713 para substituir
intermamente ao capitão-mór Francisco Duarte, a quem succ'
deu no dia 8 de Outubro do mesmo anno.
Este governador foi bem aceito na capitania : e com as suas
dispozições dezassombrou a gente branca do grande aperto, em
que esta se axava, pois destruira os Tapuias, sofrendo maior es
trago a nação dos Jaguaribaras, dos Canindés, e dos Annassés,
Mortos ou ai'ugentados os gentios, deixaram os colonos quietos
em seus trabalhos.
Manoel da Fonseca Jaime, nomeado capitâo-mór do Cearí.
por patente regia de 18 de Fevereiro de 1715, sucedeu a Placido
de Azevedo, tomando posse do governo em 30 de Agosto do
mesmo anno, e deixando-o em 31 de Outubro de 1718, sem que
da sua administração conste eouza alguma notavcl.
Foi Salvador Alves da Silva o capitão-mór, que seguio-se ao
precedente. Nomeado por patente regia de 25 de Abril de 1717,
foi impossado no governo no dia ~1' de Novembro do seguinte
anno, c regeu a capitania até entregal-a ao seu sucessor em 11 de
Novembro de 1721.
Sucessor do precedente foi o capitao-mór Manoel Fran'
cez, nomeado por patente regia de 26 dc Agosto de 1720, e em
possado de sua autoridade em ll do Novembro de 1721. Go
vernou-acapitania por espaço de mais de 6 annos, foi ativo no
_105
rado. nomeado por patente regia de 2] de Janeiro de 1751. e
empossado a 18 de Agosto do mesmo anno.
Francisco Xavier de Miranda Henriques sucedeu ao pre
cedente capitão-mór, tendo sido nomeado por patente regia de
19 de Dezembro de 1754, e empossado a 22 de Abril do anno
- seguinte.
Em 27 de Junho entrou em exercicio do seu cargo o ouvi
dor Vitorino Soares Barboza, nomeado por provizão de 23 de
Setembro de 1755.
O capitão-mór João Baltazar de Quevedo Homem de Ma
galhães, nomeado por patente regia de 7 de Julho de 1758, re
cebeu o governo da capitania, e o exercitou até o seu falescimento
sucedido em 1765.
' Este governador, e o ouvidor Vitorino Soares tiveram in
decente contenda. O ouvidor queixou-se do governador imputan
do-lhe prevaricações, ao passo que este acuzava o ouvidor de que
rer assassinal-o, xegando a convidar pessoas para similhante aten
tado. Este ouvidor passou como arbitrario, foi arguido de vender
a justiça, e delapidar os dinheiros publicos : o que é certo é que
comprou fazendas de gado no Riaxo-do-sangue, e arrematou
dizimos reaes por interposta pessoa, a qual falio sem pagar o de
bito a real fazenda.
Em consequencia d'esse falescimento foi pelo governador
de Pernambuco nomeado em 26 de Março de 1765 para vir re
ger interinamente a capitania Antonio J ozé Vitoriano Borges da
Fonceca, '0 qual aos 25 de Abril do referido anno de 1765 tomou
posse do governo.
Era este capitão-mór homem ativo e animado de bons de
zejos. Xegando a capitania. logo reconheceu a falta de organiza
ção da
levar a autoridade publica
efeito as suas ordenssem agentes e meios,
e pensamentos. com que
Portanto podessel
ao governa
16
-- 112 -
sua natural fcrocidade, não obstante os esforços dos missio
narios.
Em consequencia da ordem regia de 20 de Abril de 1708,
que mandou, que em Pernambuco, Ceara, e Rio-grande-do
norte se fizesse guerra aos indios de corso; vendendo-se os ca-
tivos em praça publica, tirou-se devassa no Ceara; depois da
qual deu o capitão-mór regimento ao capitão Bernardo Coelho
d'Andrade para ir fazer guerra contra as nações dos Icós, Cariris,
Cariús, e Caratiús, e mais confederados a elles,perseguindo-os até
destruil-os, visto axarem-se estes barbaros n'aquella devassa in
cursos em graves culpas. Deviam os cativos vir para a vila
para o capitão-mor tirar o quinto d'el-rei, a joia do governador
de Pernambuco, a sua joia, e repartir o mais com igualdade pela
tropa.
Os selvagens Anassés, que, de ha muitos annos, viviam al
deiados debaixo de missão, vizinhos do Aquiras, animados pelo
que no interior praticavam os demais selvicolas, insofridos dos
maos tratos dos brancos, rebelaram-se a 18 de Agosto de 1713,
e unidos com outras tribus de corso acommeteram a vila do
Aquiras, cujos moradores, indo abrigar-se na fortaleza do prezi
dio, foram em caminho a vista da aldeia da Paupina (Mecejana)
investidos por aquelles barbaros, perecendo 200 pessoas entre
homens mulheres e meninos.
Quazi pelo mesmo tempo na ribeira do Acaracú os indi
genas Areriús levantaram-se contra os moradores da dita ribeira,
os quaes com o padre da missão ali existente poderam alcançar a
povoação da serra da Ibiapaba, onde os Tabajaras, sob a direção
do padre missionario jezuita Ascenso Gago, conservaram-sc
fieis.
Emfim para o interior do paiz, onde viviam as tribus sel
vagens em continuadas correrias contra os brancos, n'esse tempo
tomaram maior afouteza; e a nação dos Canindés, habitadôra do
í'io Banabuiú, como mais poderoza, tomou a dianteira na re
beldia, e com as tribus vizinhas investio contra os brancos, que
dificilmente poderam defender-se, reunidos em arraiaes fortifi
cados.
N -'esta desesperadora situação axava-se a capitania,
quando a ella xegou o novo capitão-mór Placido de Azevedo
com algum socorro de polvora e xumbo, e a gente para
mudança da guarnição do prezidio. Uma tropa composta de 500
individuos havia sahido do prezidio em fins de Setembro sob o
mando do capitão Antonio Vieira da Silva em seguimento dos
selvagens invazores do Aquiras, recolhendo-se a mesma em No
vembro seguinte sem ter feito mais do que afugental-os. matan
_- 113 _
do-llies 28 pessoas. Quando xegou essa tropa, ja outra, forma
da pela gente da ribeira de Jaguaribe, seguia no encalço d'aquel
les selvagens.
Correndo com 0 levantamento do gentio, que a fortaleza es
tava sitiada, vieram muitos moradores de Jaguaribe e Icó para
socorrel-a ; e como axassem não ser exata a noticia, ofereceram
se para destruir os selvagens, de quem tanto se receavam, sendo
municiados pelo capitão-mór,
Nao limitou-se o capitão-mór a essa providencia ; fez se
guir outras expedições, e com tanta deligencia procedeu. que
em Fevereiro do anno seguinte (1714) estava a capitania dezas
sombrada do grande aperto, em que se vira, axando-se os selva-'
gens mui destruidos, de sorte que a nação dos Jaguaribaras, prin
cipal cauza da rebelião, estava acabada, a dos Canindés, e a dos
Anassés muito destroçada.
O coronel João de Barros Braga foi o incumbido de bater
os indigenas na ribeira de Jaguaribe. Fez n'elles grande estra
go, e aprizionara mais de 400 Tapuias, os quaes rcpartira com
os seus companheiros de expedição, tomando para si grande nu
mero de prezas.
Acuzado depois de não haver procedido ao quinto real, foi
devassado e condemnado em 1718 a restituir 70 prezas :
condemnação de que posteriormente foi absolvido com muito
custo.
Havia determinado a ordem regia de 27 de Março de
1715, que se continuasse a guerra com os Tapuias, para que se
extinguissem esses barbaros, ou se afastassem para as bre
nhas tanto quanto ficassem aos colonos brancos o uzo livre das
terras ocupadas, e que n,elles se fizesse tal estrago, que os inti
midasse, de fórma que se não atrevessem a fazer novos commeti
mentos,e ficassem os subditos portuguezes livres de padecer hos
tilidades dos indigenas bravios.
Em consequencia d'esta real ordem tinha-se declarado guerra
aos indigenas no Maranhão; e teve o capitão-mór Salvador Alves
de ir com auxilio a aquella capitania. Reunida'a tropa auxiliar. di
rigio-se com ella pela ribeira do rio Jaguaribe no mez de Agosto
de 1721, afim de afugentar o gentio Genipapo, de quem então
apareciam receios.
Investido o dito gentio no lugar Boqueirão, ficaram pri
zioneiras algumas mulheres : os que fugiram, buscando abrigo na
ermida da povoação de São João, missão jezuitica, foram d'ali
tirados, e conduzidos como cativos ; depois do que encami
nhou o capitão-mór a sua pequena expedição para a serra da
_-- 114 -
Ibiapaba, d'onde. devil ella passar ao .llaranhão :ts ordens do
respectivo governador.
Uma ordem rcgia de 11 de Janeiro de 1711 prohibira.
que os governadores do Ceara fizesscm guerra aos indigenas,
salvo o cazo de defeza ; no cazo de guerra ofensiva só a fariam,
precedeudo aprovação da « Junta de missões ; ›› e sabendo o go
verno portuguez oqne praticam. o governador Salvador Alves
no Boqueirão com os Tapuias, julgou injusta a guerra, e man
dou, que osindigenas reduzidos ao cativeiro fossem restituidos a
liberdade, entregando-sc o preço aos compradores.
Os indigenas da capitania, jâ't tão destruidos, deram ain
' da no tempo do governador João Batista Furtado motivo de no
va expedição contra elles.
Autorizada era a guerra defensiva contra os selvagens; e
porque levantassem-se os indios de Banabuiú com hostilidades
contra os moradores d'ali, fez o dito governador aprontar uma ex
pedição, que subio pela ribeira de Jaguaribe, e foi socegar
a gente de Banabuiú, acossando os selvagens até as terras do
Piauhi.
O Ceara em principio esteve sujeito judiciariamente a
ouvidoria de Pernambuco, fazendo parte da comarca d'este
nome ; mas em 1711 foi o Ceara annexado a comarca da Parahi
ba, atendendo-se a dificuldade, que tinham os ouvidores de vir de
tamanha distancia fazer as devidas correições. ,
Ainda passando o Ceara para a comarca da Parahiba,
subsistia igual dificuldade. Não era possivel, que os ouvidores,
rezidindo tão distantes, esendo o tranzito dificilimo, providencias
sem com o necessario remedio sobre os negocios judiciaes de uma
população ja crescida, e dessiminada na grande cstensão da
capitania. Raramente aparecia aqui um ouvidor em cor
reição.
Resolveu portanto o governo portuguez formai' do Cea
ra uma comarca; para ouvidor foi nomeado o baxarel Jozé
Mendes Maxado, que empossou-se do cargo em 14 de Abril
de 1723.
Abrio o novo ouvidor correição na vila do Aquiras, ca
beça da comarca ; e porque sobre algumas pessoas influ'entes do
lugar recahissem os efeitos da justiça, ergueram-se contra elle,
tomando parte n'isso o juiz ordinario Zacarias Vital Pereira,
'o qual ou por mais ofendido em sua pessoa, ou por agravar-sc
de alheias ofensas, não hezitou em opor-se a correição do ouvi
dor, sob pretexto de ainda axar-se dentro da capitania o ouvidor
'da Paraliiba, cuja jurisdição de direito cessara desde 0 acto da
posse do novo ouvidor.
fi- 115 «
Prezoojuiz ordinario, proseguia o ouvidor na corroigão,
cxcitando com esta prizâ'ro o animo dos descontentes, que mais
Se exacerbaram com varias prizões feitas pelo ouvidor na ribeira
do Acaracú.
Por esse tempo nos sertões batiam-se Í'erozmentc duas fa
milias, que procuravam anniquilar-se: eram essas familias a
dos Feitozas, dirigida pelo principal d'ellas, Francisco Alves
Feitoza, e ados Montes, capitaneada por Geraldo do Monte,
como adiante especificarei.
Em consequencia de recentes atentados por ambas as
parcialidades praticados, havia-se instaurado a devassa judi
cial; e como se convencesse Francisco Alves, que o juiz
devassante favorecia aos seus contrarios, procurando suplan
tal-o com aparato de justiça, recorreu ao ouvidor no Aca
racú.
Veio este ouvidor ao Cariri, e determinou a prizão dos
Montes pelo capitão João Ferreira da Fonseca, o qual, reunido
aos sequazes de Francisco Alves vindo do Inhamun com 800 in
digenas Genipapos, começou em Maio de 1724 a praticar inau
ditas violencias, matando e roubando os inimigos dos Feitozas,
cujas mulheres não escapavam aos assaltos libidinozos d'essa fe
roz turba. .
Os adversarios do ouvidor, ao ver o estado do Cariri, to
mam logo o partido dos Montes, e acuzam ao mesmo ouvidor co
mo culpado das atrocidades ali praticadas. mas elle, julgan
do-se agredido pelos- inimigos dos Feitozas, insistia em perse
guil-os, embora não eonviesse nos excessos, que elle não podia
cohibir.
O capitão-mór, ea camara do Aquiras pedem ao ouvi
dor,que retire-se da corrcição, vista a alteração dos lugares,
por onde andava, e o perigo de sua vida em taes circuns
tancias; não accede o ministro, e n'esta situação novo dezastre
aparece. Os partidarios dos Montes ajuntam-se a titulo de re
prezentar ao ouvidor contra os executores das suas ordens, e
aprezentam-se com as suas queixas, rezultaudo entre os requeren
tes e os aderentes do ouvidor grave conflito, no qual morreram 30
pessoas, seguindo-se um combate, em que os sequazes de Fran
cisco Alves'destroçaram os seus contrarios.
Cresce no Aquiras a fermentação dos advcrsarios do ou
vidor, que receiozos da vinda d'este"eonseguem da camara, que
requeresse ao capitão-mór a priz ão d'aquelle ministro como per
turbador do socego da capitania. O capitão-mór, reconhecendo a
gravidade da providencia requerida, não annuio a ella. respon
dendo que mandaria alguma tropa para vir com o ouvidor, mas
-- 116 -
não para prendcl-o : resposta que poz em declarada sublevaçâo a
camara, e povo do Aquiras, em cujo nome apareceu o seguinte
requerimento, ue aqui transcrevo para que vejam os leitores
o espirito e i éas d'esses homens, que formavam então o
nucleo da população d'esta provincia em seus tempos pri
mitivos.
Eis o requerimento : _ « Senhores Oficiaes da camara.
Diz o povo, que por ser oprimido das sem-razões e injusti
ças, roubos e afrontas, que faz ao dito povo o doutor José Men
des Maxado, em corpo uniforme requer a Vmes., da parte de
Deos e d'el-rei, nosso senhor, que d'este dia, que se contam 3 de
Outubro d'este prezente anno de 1724, o não quer conservar, teh
nem manter, nem reconhecer por seu ouvidor, como tambem to
dos os seus oficiaes pelas razões sobreditas, as quaes mais larga
e destintamente foram prezentes :í Vmcs. pelos capitulos, que
aprezentaram contra o dito ministro, e oficiaes ;‹ e da mesma
sorte requer a Vmes., da parte do mesmo senhor, não admitam,
nem conheçam por tal o dito ministro, mas antes aparecendo, ou
sabendo parte certa, onde assista dentro daesta capitania, o façam
prender a ordem do dito povo. para então mais miudamente se
lhe darem as culpas, que contra elle tem : e outro sim requer o
dito povo a Vmcs., se não dê posse a outro ouvidor, que em seu
lugar venha, sem que primeiro S. M., que Deos guarde, haja por
absolvido e perdoado ao dito povo de alguns erros na- dita suble
vação, que podesse commeter : outro sim requer o dito povo a
Vmes., não dêem posse, nem admitam outra camara durante as
pretenções do dito povo na fórma acima dita : como tambem re
quer o dito povo, não dêem posse Vmes. a outro capitão-mór
sem primeiro se alcançar a dita concessão do perdão de S. M.,
que Deos guarde : e requer o dito povo, que assim e da maneira
que n,este seu requerimento pede, o façam lançar por termo nos
livros d'este senado, para que a todo o tempo conste com as cul
pas perante el-rei dou J05.o Quinto, que Deos guarde, a quem só
como leaes vassalos reconhecemos por nosso legitimo rei e se
nhor para nos prover do remedio necessario ao socego e quieta
_;šo d'esta capitania. Como juiz do povo -SL' mão da Costa. ››
Aprezentado em camara este requerimento, não hezitou a
mesma em annuir a tudo quanto n'ellc se pedia, -expedindo-
se ordem de prizão contra o ouvidor, que ao saber do proce
dimento da camara do Aquiras auzentou-se da capitania.
O capitãqmór sem forças para reprimir a sedição. e co
nhecendo tambem os dez-acertos do ouvidor, pareceu indiferente
ao movimento ; e só depois que vio o ouvidor fóra da capitania
procurou socegar tanto alvoroço c inquietação, fazendo recolher
-117
as suas habitações a gente,que armada pelos dous partidos rivaes
dos Montes e Feitozas hostilizava-se com encarniçamento.
Assim terminou esta questão, que, originada da aplicação
da justiça aos poderozos do lugar, cresceu pela fraqueza da auto
ridade, que não pôde conter a dezobediencia.
A tibieza da ação governativa em nossos amplos sertões
firmava a doutrina da vindicta particular; Os homens fortuno
zos adqueriam clientela, e dceidiam as questões a viva força, ter
minando-as commumente pelo assassinato dos seus antagonistas.
Entre as frequentes coutendas, que na capitania tiveram
brado, notaram-se as procedentes dasdezavenças entre as duas fa
milias de Montes, e Feitozas, em que ja acima toquei, e entre
Manoel Ferreira Ferro, natural d'esta capitania, e José Pereira
Aço, natural de Portugal.
Particularizemos estes dous factos, que nos darão idéa das
sen'as de outr'ora.
Afamilia dos Montes era originaria de Pernambuco : va
rios membros seus tiraram datas de terras em Jaguaribe, Ba
nabuiú e Salgado, e fundaram varias fazendas de ereação de
gados.
Inrequecidos, tornaram-se potentados, e confia dos nas rela
ções de parentes, que tinham no Recife, mais afoutos proecdiam.
Desde a ocupação olandeza começara essa familia a estender
se no Ceara.
A familia dos Feitozas havia-se tambem inrequecido, ob
tendo terras na scrra do Araripe, no sertão do Inhamun, e
na ribeira do Cariú.
Eram então principaes xefes d'essas duas familias Geraldo
do Monte por um lado, e Francisco Alves Feitoza por outro,
conforme ja dice. '
Este era cazado com uma irman d'aquelle ; mas negocios de
honra de familia os malquistaram em ponto extremo, e os dous
cunhados buscaram fazer todo o mal rcciproco possivel.
Os Feitozas ,haviam descoberto terrenos- no vale do rio
Juca; e apenas Geraldo do Monte sabe d'isso, obtem por sesma
ria a posse d'esses terrenos ; porém nem os medio. nem os si
tuou com gados. Os indigenas ali existentes o contrariavam
n'esse intento.
Passados 6 annos, a sesmaria cae em commisso poruãohaver
o primitivo sesmciro precnxido as condições legaes. Então
Francisco Alves consegue data d›essas terras, e o cunhado, des
peitado por similhante procedimento, rezolvcu obstar a tomada
de posse do terreno.
Travam renhida questão os dous- rivaes; por fim recorrem as
_-118
armas, um para fazer efetiva a medição da sesmaria, o outro pa
ra impedil-a.
Os Feitozas tinham por si as tribus indigenas dos Ca
riris, e Inhamuns ; os Montes dispunham dos indios Calabaças,
e Icós.
Os dous eontendores eram oficiaes superiores de mi
licias; e esta circunstancia era um recurso poderozo, de que
se valiam. Reuniram gente, e varios confiitos tiveram entre si.
Tendo o ouvidor de voltar do Cariri, aonde fôra, como ja
dice, veio Lourenço Alves, membro da familia Feitoza, com
gente armada para o acompanhar.
Geraldo do Monte não hezitou em acommeter o sequito do
ouvidor, e nas ribeiras do Salgado e Jaguaribe houveram va
rios encontros, por cuja memoria ainda hoje conservam-se os
nomes de diversos sitios, como Pendencia, Arraial, Batalha,
Tropas, Emboscada, e Defuntos, denominações todas indicati
vas de factos, que então sucederam nas correrias feitas pelos dous
partidos.
O lugar denominado Juiz entre Icó e Lavras comme
mora ositio, aonde por Geraldo do Monte fôra assassinado o
magistrado, que se dirigia ao seu acampamento como apazigua
dor e conselheiro.
Varios annos passaram-se n'essas estranhas correrias, a
que a impotencia do governo da capitania não podia pôr termo.
Finalmente os dous partidos esgotaram-se, c paulatinamen
te foram se dissolvendo,' não só depois de muitas mortes n*es
ses encontros ou combates form-nes, como depois de varios assas
sinatos em emboscadas particulares.
Geraldo do Monte retirou-se para a sua fazenda do B0
queirão, onde falesceu : Fraz* cisco Alves passou-se para o enge
nho Curraes no termo de Serinhaem em Pernambuco, onde vi
veu por alguns annos.
Por esses tempos vagava nos sertões da Bahia um embus
teiro, que dizia-se parente da caza real, e intitulava-se principe
do Brazil. Acompanhado por um frade, provavelmente fingido,
fazia-se acreditar como tal.
E' incrivel, que acreditado fosse tão grosseiro embuste :
todavia conta-se, que elle extorquira boas quantias por conces
são de titulos honorificos, e que Francisco Alves, depois de retirar
se do Ceara, lhe comprara o perdão dos seus crimes, e voltara
para as suas fazendas do Juca, aonde vivera socegado, e morrera
em paz.
Estava ainda fresca a lembrança da contenda dos Montes
e Feitozas, quando snrgrio a contestação entre Manoel Ferreira
- 119 -
Ferro, e José Pereira Aço. ambos moradores no Cariri, e ambos
possuidores de terras no Brejo-grande. - -
A contestação de limites d'essas terras foi em principio ao
fôro judicial; d'ahi passou a ser discutida por vias de facto.
José Pereira acrescentou ao seu nome o epiteto d'Aço
por contrapozição ao de Ferro do seu contendor: e sob estes
auspicios começaram as hostilidades das duas parcialidades. Os
assassinatos repetiram-se , e quando a agitação ameaçava series
conflitos, foi por ordem do governador da capitania prezo Jozé
Pereira, o qual, remetido para a Bahia, ali pôde livrar-se de
pois de algum tempo passado nos carceres.
O ribeiro conhecido pelo nome de Riaxo-do-sanguc, no
termo da atual vila d'este nome, tem origem n'uma d'essaS
contendas por limites de terras.
Refere a tradição, que ahi dera›se um conflito, de que
rezultaram varias mortes, ficando ensanguentado o leito do ri
beiro: d'aqui procedeu a denominação, com que o conhecemos.
A tradição tambem da outra origem ao nome. Diz-se,
que no alveo do ribeiro ha umas pedras encarnadas, e d'ellas
derivou-se a denominação de Riaxo-do-sangue.
Sem afiançarmos qualquer das origens referidas, dircmos,
que nos parecem plauziveis, e razoaveis. O conflito deo-sc, e as
pedras existem : ambas as circunstancias talvez concorressem
para generalizar a denominação, que pode fundar-se no facto na
tural e no facto humano.
Os missionarios jezuitas não tinhão na capitania estabele
cimento algum fixo e regular, limitados as missões, que assen
tavão em diversos lugares.
Desde os primitivos tempos da capitania os jezuitas fize
rão excursões no intuito de civilizar os indigenas.
Os padres Francisco Pinto, e Luiz Figueira forão os pri
meiros catechistas do Ceara, como ja fica relatado.
Após elles vierão em 1612 os padres Diogo Nunes e Gas
par de São Peres, que nas aldeias de Jaguaribe batizarão o xefe
Poti, tomando este desde então o nome de Antonio Filipe Cama
rão, hoje tão notavel nos annaes da nossa historia.
Emquanto Martim Soares esteve no prezidio do Ceará, foi
solicito em obter missionarios; assim quando em 1624 o gover
nador do recente estado do Maranhão tocou no Ceara, e ahi to
mou posse do govemo, Martim Soares conseguio fiearem com elle
dous missionarios, cujos trabalhos alias não deixarão efeitos per
manentes.
Frei Cristovão de Lisbôa, eleito custodio do estado do Ma
ranhão, ali estava em 1626; c por saber das necessidades ecle
17
_ 120 _
ziasticas do Ceara, aqui veio, acompanhado de alguns sacerdo-
tes. Obrigado a fazero trajecto por terra, foi em caminho aco
metido por um bando de 90 Tapuias, dos quaes pôde dificilmente
defender-se em um ataque formal. Com 25 pessoas de guerra
destroçou os Tapuias, mas estes em toda a jornada o incommo-
darão com emboseadas, e investidas ligeiras, até que o mesmo
eustodio pôde a 25 de Junho de 1626 xegar ao prezidio, onde
Martim Soares o recebeo.
Nenhuma obra permanente realizou frei Cristovão de
Lisboa, limitando-se a missionar passageiramente com os seus
companheiros.
Os jezuitas obtiveram do governo portuguez em Março
de 1721 ordem para a fundação de um hospicio, concedendo-se o
auxilio necessario; e porque reconhecessem as vantagens do lu
gar, e a indole pacifica dos Tabajaras, eseolherão para assento
d'esse hospicio a serra da Ibiapaba na situação, onde depois fun
dou'se Vilaviçoza, n'esse tempo pequena aldeia de indigenas ju
formada pelos anteriores missionarios.
Desde 1697 havia-se determinado a fundação de um hos
picio de jezuitas no Ceara : porém em consequencia de difieulda
de no suprimento das congruas concedidas aos padres, ficou essa
ordem sem cumprimento, até que por instancias e representação
do padre João Guedes, antigo missionario n'esta capitania, foi
novamente determinado em Março de 1721, que se erigisse hos
picio n'aldeia da Ibiapaba, para d'ali sahirem os padres em mis
são parao Ceara ePiauhi, devendo para esse efeito haver 10
missionarios, a cada um dos quaes se daria a congrua annual de
40$000 reis, além de 6:000 cruzados, tirados dos dizimos da ca-
‹ pitania para a fabrica da obra.
Xegou esta ordem no tempo do capitão-mór Manoel
Francez, o qual com tanta diligencia cuidou da obra, que em 18
de Dezembro de 1723 estava o hospicio pronto, e 6 padres co
meçaram a rezidir ali, pagando-se-lhes a congrua marcada, a qual
do 1' de Agosto de 1733 foi elevada a 60$000 reis annuaes.
Ainda no tempo d'este governador em 1727 estabeleceram
os jezuitas hospicio no Aquiras. Desde muitos annos viviam el
les no sitio, onde estava o prezidio, e d'ahi sabiam constante
mente para as suas missões, eatechizando os indigenas, ora n'um,
ora n'outro lugar, em que formavam aldeias.
Assim foi, que formaram as aldeias de Parnamerim (pas
sada depois para Paupina, hoje Mecejana), da Pavuna, da Pa
rangaba, hoje Arronxes, e da Caucaia, hoje Soure.
Obtida a ordem para a fundação de um hospicio no
Aquiras, ali edificou o padre João Guedes o hospicio, e a igreja,
- 121 --
cujas ruinas ainda vemos. No frontespicio da igreja li em 1850
a inscrição, que dizia--1753--.
O padre João Guedes era natural da Alemanha; e nota
vel é, que a ordem regia. que mandou fundar o hospicio da Ibia
paba, exigisse pozitivamente, que entre os missionarios para ali
enviados fossem alguns alemães. Essa recommendação por cer
to fuudava-se na prevenção dos indios a favor dos Francezes, que
ali havião estado. Afeiçoados a estes, mais facilmente se acom
modarião com os Alemães, aos quaes receberião como Francezes,
do que com os Portuguezes, de quem tinhão em principio rece
bido mao tratamento.
Os jezuitas permaneceram nos seus hospicios da Ibiapaba
e Aquiras, prestando valiozos serviços na catecheze indigena até
serem expulsos do Brazil.
O maiquez de Pombal, ministro preponderante Sob o rei
nado de Don Joze Primeiro em Portugal, convenceu-sc da ne
cessidado de extinguir o dominio dos jezuitas, e não trepidou
em realizar o seu pensamento. As communicações do Brazil,
aonde então estava un; irmão do marquez como governador do
estado do Maranhão, decidirão o ministro adesfeixaro golpe, que
premeditava . .
O alvara de 19 de Janeiro de 1759 havia declarado os je
zuitas banidos e proscritos das possessões da corôa portugueza ;
e o alvara de 13 de Setembro seguinte os considerou rebeldes,
trahidores, adversarios, e agressores contra a pessoa d'el-rei,
Em 1760 os jezuitas do Brazil forão prezos e remetidos
para Portugal.
A companhia de Jezus, fundada pelo fidalgo, e soldado
espanhol Ignacio de Loiola, que a igreja canonizou como santo,
rapidamente prosperou, e extendeo-se por todo o mundo, e é sa
bido como por esforços dos governos de Portugal, França, e Es-
panha _foi esta companhia extinta em todo o orbe catolico por
bula pontificia de 21 de Julho de 1773, mandada executar nos
dominios portuguezes por alvara de 7 de Setembro do mesmo
anno.
Havia o governo portuguez mandado annexar a serra da
Ibiapaba ao Piauhi no governo do Maranhão; mas desgostozos
os indigenas ali aldeiados, e receandase que elles por essa razão
procurassem o sertão, deixada a aldeia, foi determinado em 31
de Outubro de 1721, que ficasse sem efeito a ordem de simi‹
lhante annexação, sendo esta providencia acompanhada da con
cessão feitz por el-rei aos 3 principaes indios da aldeia de Ibia
paba do titulo de don, e do habito de Santiago com tensas efecti-
vas de 20$000 reis annnaes.
--122
Não poupavam-se favores e providencias para o aumento
das aldeias.
Sob reprezentação do padre João Guedes rezolveo o rei
dar ao maioral dos indios da Ibiapaba a faculdade de conceder
pazes no regio nome -aos Tapuias levantados, permitio-lhe o
uzo de certo numero de armas de fogo, não excedente de 100, re
zervada aos padres a immediata inspeção d'esse negocio.
Outra faculdade importante foi dada ao referido maio
ral, afim de manter a ordem e regularidade das aldeias pela pu
nição dos turbulentos, e malfeitores ; e essa faculdade foi a de
poder levantar polé; declarando-se porém, que o castigo se não
iuflingiria sem permissão dos missionarios; so o crime de homi
eidio, não sendo em acto de guerra, excetuava-se do castigo da
polé ; pois perpetrado similhante crime, devia o delinquente ser
preze e remetido ao ouvidor da comarca para proceder contra
elle na forma das leis criminaes da monarchia.
Assim empenhava-se o governo da metropole pela civiliza
ção e conservação das tribus selvagens : eram porém similhantes
actos sem consequencia, e não poderam impedir a rapida dimi
nuição da raça americana, cuja conservação no Brazil nos podé
ra poupar a vergonha da escravidão, que nos legarão homens cu
biçozos, e deshumanos. -
Excrcia _o ouvidor Antonio de Loureiro a sua jurisdição,
quando a capitania xegou o ouvidor nomeado Pedro Cardozo de
Novaes Pereira. Desinteligencias suscitadas entre ambos fize
ram com que o ouvidor em exercicio processasse e pronuneiasse
ao seu futuro sucessor, de maneira que, xegado o dia de passar
lhe o cargo, repugnou fazei-o sob pretesto de não dever entregar
a autoridade a um homem eriminozo, e sustentou competir-lhe
proseguir no emprego até vir novo sucessor, ou até livrar-se o
ouvidor Pedro Cardozo do crime arguido.
Surprehendido assim o novo ouvidor, recorreo ao vice-rei
do estado na Bahia, o qual mandou, que fosse o mesmo ouvidor
empossado, não obstante a pronuncia irregular contra elle decre
tada, dando o capitão-mór do Ceara o necessario auxilio de for
ça, e fazendo sahir da capitania o ex-ouvidor.
Nem obaxarel Antonio de Loureiro, nem a camara do
Aquiras quizerão obedecer a ordem do vice-rei, para cujo cum
primento convocou o novo ouvidor gente, com que se dirigiu para
aquella villa, aonde o seu competidor preparava-se para resistir.
Vendo este porém a superioridade de força do novo ouvidor, a
prezença do capitão-mór no Aquiras com tropa, e o abandono da
camara, soeia na desobcdiencia, deliberou retirar-se da vila como
praticou na madrugada de 4 de Junho de 1732, dia destinado
- 123 _
para a posse do novo ouvidor, levando comsigo para o Acaracú o
archivo da camara, e da ouvidoria, e um sequito de homens ar
mudos.
Entrando o ouvidor Pedro Cardozo na vila do Aquiras, to
mou posse no supradito dia. De acordo com o capitão-mór cuidou
de aquietaro alvoroço da capitania; mas Antonio de Loureiro
no Acaracú proseguia no exercicio da jurisdição de ouvidor, e
no intento de reunir gente para efectuar a prisão do legitimo ou
vidor. Afim do pôr cobro a esse criminozo procedimento, man
dou o capitão-mór uma força de 200 homens para no Acaracú
fazer efectiva a prizão do ex-ouvidor, o qual, vendo-se sem sequi
to suficiente. evadio-se da capitania, e depois de jazer prezo na
fortaleza do Rio-grande-do-norte por mais de um anno, foi em
Portugal sofrer o castigo da sua turbulencia.
CAPITULO VIII
à
--124 -
aaes a concorrer para 'povoar a capitania, na qual eram solteiros
a maior parte dos homens.
O trabalho manual era feito pelos indigenas, a quem pa
gava-se salario não excedente de 50 reis diarios.
Os mantimentos erão baratos; e a farinha de mandioca,
que constituia com a carne e o pescado o principal genero de ali
mentação do povo, regulava o preço de 320 reis por cada alqueire.
Em 1760, por ocazião de grande penuria d'este genero, o senado
da camara taxou o preco de 800 reis por alqueire, prohibindo que
os especuladores o vendessem a 1$600 reis, sob pena de 8$000
reis de multa, c 30 dias de cadeia: o que foi publicado por edital
do governador da capitania.
A carne fresca vendia-sc a 240 reis por arroba; o
pescado era barato, o milho, e feijão logravam preço vilis
simo.
Varias secas flagelaram a capitania no decurso do seculo
16' : c a tradição conserva a memoria das secas de 1724, 1728,
1736, 1772, e 1793, as quaes causaram grande mortandade nos
gados de toda a especie, e trouxeram grandissimo transtorno ú.
população, que via perder-se os seus cabcdaes, e sofria os incom
modos de uma forçada transmigração. .
Conta-se, que n'essas ocaziões morriam a fome algumas
pessoas: persuado-me porem haver exageração em taes noticias.
Si alguem morria, era isso antes devido as molestfias rezultantes
dos rigores das estações, c da ma alimentação, do que propria
mente de fome.
Antes do abandono de um lugar não é prezumivel, que o
deixassem exhaurir-sc a ponto de ficar sem recursos para manter
a-vida; sendo certo que nos matos havia caça, e frutos, que po
diam aproveitar-se até certo ponto. A falta d'agua, que somen
tc encontrava-se em grandes profundidades, e largas distancias,
constituia o peicr mal d'esses tempos de sequidão.
D'estas secas a mais extensa e fatal foi a de 1793, que
durou até 1795, sendo por isso denominada a sêca grande. A
recordação d'ella conserva-se ainda na lembrança de muita gen
te contemporanea d'esse lamentavel sucesso. `
Estes acontecimentos meteorologicos trouxerão notavel
atrazo a riqueza da capitania, não só pelo prejuizo immediata
mente eauzado a fortuna publica, como pelo receio, que inspirou
aos futuros exploradores dos nossos terrenos, e aos emprehende
dores da industria pastoril. A uberdade das terras porém den
tro de pouco tempo reparou as perdas pela pasmoza reprodução
dos gados nos annos seguintes aos das sêcas.
A industria fabril era insignificantissima; não passava de
-125-
artefactos grosseiros do uzo commun, os quaes certamente não
merecem menção.
O commercio da capitania era acanhado. Consistia na
venda do gado vacum, c cavalar, que ia em pé para os mercados
de Pernambuco, Bahia, e Maranhão.
O xarquc exportava-se para o Recife pelo porto do Ara
cati, lugar que deve o seo nascimento e prosperidade d'então a
esse genero de mercancia.
Couro bovino, algodão, e sal erão generos, que tambem
exportavão-se para o Recife pelos portos do Aracati, Acaracú, e
Fortaleza.
A então vila do Aracati era o cmporio commercial da ca
pitania, e estava em frequente communicação com Pernambuco,
de quem recebia as mercadorias européas de consumo no terri
torio cearense.
Depois do Aracati era o Icó o principal mercado dos nos-
sos sertões, e o povoado mais notavel. Seguia-sc Sobral por sua
riqueza, eindustria de cortumes: a Fortaleza apenas tinha im
portancia por ser capital administrativa; como ponto commer
cial foi nula durante o seculo passado.
Não pude axar os precizos elementos para dar o quadro
exacto dos valores do nosso commercio n'esses tempos. Pesqui
zas minuciozas nos archives fiscaes poderão ainda habilitar al
guem para fazel-o.
Em principio do seculo 10 a 12 embarcações pequenas,
como iates, e eseunas, faziam o trafico do capitania : nos ultimos
annos do mesmo seculo ja esse trafico empregava de 20 a 30 bar
cos de diversas lotações.
No fim do seculo ultimo a administração da capitania li..
mitava-se a mui restrito pessoal.
O capitão-mor governador da capitania com as suas atri
buições administrativas e militares, o senado da camara inten
dendo sobre a policia municipal, o ouvidor e o juiz ordinario
para a justiça civil e criminal, o almoxarife para as couzas da
real fazenda, era todo o funcionalismo activo da governança da
capitania.
No militar haviam os empregos ou postos da infantaria, e
da milicia: no judicial dous tabeliães, um inqucridor, dous ofi
ciaes menores, alcaide, e meirinho com os respectivos escrivães
eonstituião o pessoal subalterno do juizo.
Depois com o aumento dos negocios as couzas alterarão
se; c principalmente os negocios fiscaes tomaram melhor forma,
mediante a creação da provedoria da real fazenda, annexa ú ou
vidoria da comarca.
_126
Ajustiça publica era então impotente contra os cabeci
lhas e potentados, que erguião-se no sertão.
Confiadoã nos recursos, que encontravam nos bens da for-
tuna, e na falencia da aplicação da lei, elles fazião justiça por
suas proprias mãos.
Um dos motivos, que mais frequentemente suscitava des
ordens no sertão, das quaes seguião-se homicidios, e as vezes
combates privados, era a questão de limites de propriedades ru
raes.
Desavindos os proprietarios, começavão as intrigas, e os des
forços pessoaes ; e d'ahi passavão aos mais violentos atentados.
Familias havia, que fazião garbo de ostentar prepotencia,
e desprezo aos recursos da lei, e a erse respeito conseguirão no
tavel nomeada os Feitozas em Inhamuns, e os Hourões em Vila
viçosa. Hoje porem os membros d'essas familias são cidadãos
pacificos, vendo-se em sociedade mais regularizada. e menos su
geita aos caprixos individuaes.
O desforço pessoal nas questões civis era arraigado nos ha
bitos da população, sendo alias muitas vezes aconselhado pelos
homens juristas, que sabiam ser autorizado pelas leis portnguezas,
mas que não meditavam no perigozo desenvolvimento d'essa fa
culdade legal, que so devêra exercer-se com summa prudencia e
criterio.
A ação de repelirmos prontamente a invazão violenta
da nossa propriedade, conhecida na fraziologia legal e juridica
pela denominação de degforço in continenti, foi uma origem fe
cunda de lutas sangrentas entre os nossos antepassados,
Ao roubo e ao furto elles ligavam idéas de infamia ', mas
ao crime de homicidio por desafronta a injurias verdadeiras ou
supostas nenhum escrupnlo se juntava, antes havia certa ufania
n'esse procedimento. Tal cra o transtorno das ide'as!
A inviolabilidade da vida humana é um grande principio,
que nenhum- interesse privado ou social deve suplantar.
Respeitava-se a propriedade, porque na sua violação via
se a infamia, e o proveito ignobil: atacava-se a vida, porque a
idéa do pundonor, e desagravo da injuria aprezentava o autor- do
crime como executor de um acto de justiça social, que os agentes
d'esta não querião ou não podião praticar.
Taes doutrinas havião tornado o povo -sangninario ; e
quando lamentamos similhante estado de eouzas, como uma.
perversão do sentimento moral, encontraremos a consoladora
idéa de regeneração, si atendermos para esse pronunciado res*
peito a propriedade, indicio de nobres instintos, que por erro-
nea educação se desvirtuavam.
-127
As guerras contra os gentios habituaram os nossos pri
meiros colonos ae pouco respeito a vida do homem.
Contra os gentios julgavam-se todos autorizados a vindicta
particular, a tal ponto que foi precizo vir a ordem regia de 12 de
Outubro de 1700 declarar, que os gentios mansos eram vassalos do
rei, e deviam ser punidos pelas justiças, e prezos com auxilio das
autoridades.
' Para conhecer da impotencia da justiça publica, e da ex
tensão do mal da impunidade, baste-nos citar dous factos.
Em 1708 a camara municipal do Aquiras pedia ao rei a
creação de 6 aleaides para a prisão dos criminozos por não serem
para isso bastantes os 50 ou 70 soldados do prezidio ; pois desde
1700 até então haviam impunes 214 delinquentes, que não eram
perseguidos por falta de cadeia, e de agentes policiaes.
No municipio do Icó dentro do espaço de 60 annos, a con
tar de 1735 a 1795, haviam para cima de 1:000 eriminozos, sen
do a maior parte por facto de homicidio.
Em todos os pontos, onde a população aglomerava-se, os
crimes contra a pessoa subiam em crescida proporção.
Em 1737 a camara municipal do Aquiras representava,
que no Ceara andavam muitos vagabundos vivendo de furtos com
graves crimes, os quaes não eram punidos pela largueza dos ser
tões, e por valerem-se de homens poderozos.
A falta de segurança individual era um dos grandes males
d'esses tempos: alguns governadores no intuito de deminuir o
dano uzavão do arbitrio de obrigar a assinar termo de segurança,
quando pessoas importantes das localidades inimizavam-se, e re
ceiava-se da parte de alguma d'ellas atentados contra a outra.
Assim vemos varios d'esses termos de segurança nos rc
gistos dos governadores: e notarei aqui o que axei no tempo
do governo de Luiz da Mota em 1797, e pelo qual o capitão Joze
Camêlo ficou «responsavel por sua pessoa e 5:000 cruzados de
sua fazenda por qualquer incommodo, perigo, ou risco de vida,
que experimentassc o sargento-mor do Aracati Teodozio Luiz
da Costa. ››
A ilustração era nenhuma ; e nenhum instituto de ins
trução publica vio a capitania alem das agorentadas escolas de
leitura e de latim,
As escolas primaria: eram poucas durante todo o decurso
do 16' seculo.
Com a creação de vila houve uma escola no Aquiras, e
outra na Fortaleza: depois estabelecêram-se outras escolas nas
vilas, que foram se arcando, de sorte que ao findar o seculo exis
tiam 11 escolas de leitura nas vilas existentes na capitania.
-128- '
O mister de professor primario era em regra exercido pelo
secretario da camara respectiva. Esses mestres ensinavam, se
gundo o seu regimento, não so a boa forma dos caracteres, mas
tambem as regras de ortografia portuguesa e sintaxe, as quatro
operações aritmeticas simples, o catecismo cristão, e regras de ci
vilidade.
A instrução secundaria, isto é, o estudo de humanidades
eifrava-se no ensino da lingua latina. Fortaleza, Aquiras, Ara
eati, Icó, Vilaviçoza, e Sobral tinham aulas de latinidade.
Por ahi podemos avaliar do estado de atrazo literario, e
da falta de ilustração na capitania.
Tal éra a deficiencia de pessoas habilitadas em letras, que
partes litigantes nem sempre tinham quem as aconselhasse..
Em 1701 os habitantes da capitania dirigiram ao governa
dor um requerimento, pedindo que ou mandasse vir outro advo
gado, ou ordenassc a suspensão do licenciado existente, o qual,
aconselhando a uma das partes contendoras, deixava a outra em
embaraeos : pelo que determinou o governador, que o licenciado
Luiz Viegas deixasse a capitania dentro de 10 dias.
Em 1710 haviam na capitania dous advogados, Manoel
Monteiro, e Jorge da Silva, providos pelo capitão-mor do Ceara,
e confirmados pelo governador de Pernambuco.
Antceedentemente pedira a camara do Aquiras r o gover
nador de Pernambuco tres letrados, que aconselhassem nos nego
'cios da administração da justiça na capitania; mas tam-somen
te tres soldados invalidos, e não tres homens instruidos nas leis
c na pratica do fôro, vieram ao Ceara no caracter de advogados.
Quando o primeiro ouvidor do Ceara Mendes Maxado
teve de sahir forçadamente da capitania em 1724, so um verea
dor sabia escrever, e este era o sargento-mor Manoel Pereira La
go, que tomou posse do cargo de juiz ordinario, não empossando
se o vereador mais velho e os immediatos por não saberem ler !
O despotismo dos governadores exercia-se sem contradi
ção dos particulares; apenas alguns conflitos surdião por par
te do senado da camara, dos quaes sempre rezultavão actos de
violencia contra os vereadores.
Assim um dos governadores xegou a tentar prender a to
dos os vereadores: outro prendeo ao_vereador e juiz ordinario
Zacarias Vidal, quebrando-lhe a vara, insignia do cargo muni
cipal, injuriando-o, e metendo-o a ferros,
Factos d'essa natureza levaram o mesmo senado a repre
zentar contra o despotismo dos governadores, manifestando ao
rei o receio, que tinhão os homens cordatos, de aceitar os cargos
da vereança, para evitar os perigos da luta com os caprixozos
-129
governadores; e assim pediam os reprezentantes, que os vereadores
da camara durante o anno do exercicio não podessem ser citados,
demandados, prezos, nem metidos a ferros; requeriam tambem,
que a rezidencia dos governadores se tirasse na propria cabeça da
capitania, e não em Pernambuco, como se fazia, onde ninguem
podia declarar os maos feitos de taes autoridades.
A saude publica pendia tam-somente da salubridade do
clima. Nem institutos de salubridade, nem medicos havia ; e
.so em 1778 a junta da real fazenda estabelcceo o ordenado annual
de 40$000 reis para um cirurgião, que veio rezidir na capitania a
requizição da camara do Aquiras, a qual pagava o estipendio
marcado.
Em principio havia uma so parochia, que comprehendia
todo o territorio da capitania ; no fim do seculo passado ja exis
tiam 14 freguezias ; mas a falta de sacerdotes foi sempre notavel.
Reprezentava o seriado da camara em 1716 sobre essa falta.
Então além do vigario, que alias estava em Pernambuco, apenas
havia na capitania dous sacerdotes, os quaes eram missionarios.
A vinda dos jezurtas, e a formação das missões regulares, e do
colegio no Aquirase na Ibiapaba, e a sucessiva creação de novas
freguesias, xegando, como ja dice, ao numero de 14, melhoraram
o estado de couzas em relação ao pasto espiritual, e ao ensino rc
ligiozo.
Os rendimentos publicos provinham dos tributos ja antece
dentemente indicados. O tributo mais rendozo era o dizimo do
gado vacum e cavalar, cuja arrematação até meiedos do seculo
fez-se de toda a capitania por cada anno ; depois passou a fazer-se
por freguczias triennalmente.
No anno de 1718 os dizimos renderam apenas 152003000
reis; mas nos ultimos triennios do seculo xegaram a produzir
perto de 80:000$000 reis.
Essas arrematações quazi sempre deixavam lucros vanta
jozos; e eram por isso mui cubiçadas.- sendo feitas quazi sempre
por conta de pessoas abastadas do Recife.
Deduzidas as despezas do serviço publico, as sobras dos
tributos eram remetidas para oreal erario, e nos ultimos annos
do seculo findo ellas xegaram a 15 e 20 contos de reis por anno.
Fazendo-se a arremataçi'io dos dizimos por prestações an
nuaes, acontecia nem sempre serem pontuaes os arrematantes nos
pagamentos: d'ahi rezultavam para a fazenda real debitos, cuja
cobrança as vezes dificultava-se pela ação pouco encrgica da jus
tica em os nossos remontados sertões.
D'isto queixava-se a junta da fazenda de Pernambuco,
quando em 1792 rccommendava para o Ceara. que se ativasse a
-130
cobrança de mais de 4 contos de reis devidos pelo capitão João
d'Araujo, e que se não tinha podido cobrar « por ser um d'aquel
les potentados, que vivem nos confins da capitania, e que so pa
gam quando querem. ››
Em 31 de Dezembro de 1796 os debitos reaes ativos mon
tavam a mais d'então
dos ouvidores de 78:000$000
eral a reis. Umd'esses
cobrança dos grandes
debitos;empcnhos
por cujo
bom exito eram sempre excitados com eneomios do governo.
A viação publica consistia em caminhos imperfeitamente
abertos, e sem melhoramento algum no nivelamento do terreno
para facilitar o tranzito, nem na direção dos rumos para incurtar
as distancias. Sendas apenas feitas para eommunicaçâo de sitios
vizinhos ligavam os povoados pela translação de um a outro pon
to: estradas não havia, nem pontes existiam nos rios, os quaes
nos tempos invernozos constituiam dificil barreira aos viandantes
durante as enxentes.
Na estação do estio os rios seeavam, os campos enxuga
vam, e as viagens facilitavam-se por serem osterrenos da provin
cia geralmente planos. e faltos de espessas matas, que quazi so se
encontravam nas serras e suas adjacencias, onde viam-se lugares
mais frescose substanciozos. ff 5' -
Segurança individual vacilante, commercio limitadissimo,
industria insignificante, riqueza publica e individual escassa, ser
tões invios, justiça sem valor, despotismo dos governadores exer
cido sem contestação, nenhuma instrução civil, e pouquissima
doutrina religioza, eis o aspecto, que oferecia a capitania no cor
rer do seculo ultimo.
Sucintamente expuz os sucessos dos nossos primeiros tem
pos: baldos de registos publicos, e de memorias particulares, não
oi possivel individualizar os acontecimentos, como talvez o exi
gisse a curiozidade do leitor: todavia aprezento a maior copia de
noticias, que pude colher sobre as couzas patrias.
Vou encetar a expozição de factos mais recentes. e de
que mais abundantes vestigios subsistem; e assim a narração dos
sucessos do prezente seculo, em que vamos entrar, sera mais cir
cunstanciada, sobretudo quando os acontecimentos tornarem-se
notaveis pela importancia politica.