Misterio Magazine 032
Misterio Magazine 032
Misterio Magazine 032
osebodigital.blogspot.com
MISTÉRIO - MAGAZINE
EDIÇÃO BRASILEIRA DO ELLERY QUEEN’S MYSTERY MAGAZINE
HISTÓRIAS DE DETETIVES
O Comissário Danwood em
CRIME NA PREFEITURA - H. A. Z. Carr
Nick Glennan em
O POLICIAL “TICO TICO” - MacKinlay Kantor
Dr. Frank Belling em
IN VlNO VERITAS - Lawrence G. Blochman
Sam Spade em
SÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ - Dashiell Hammett
HISTÓRIAS DE CRIMES
N0 32 JANEIRO DE 1952
Mistério-Magazine é a edição brasileira do “Ellery Queen’s Mystery Magazine”, Copyright de “Mer-
cury Publications, Inc.” É publicado mensalmente pela “Revista do Globo S. A.” Henrique d’Ávila
Bertaso, diretor, João Freire, gerente. Porto Alegre, Rio Grande do Sul, Brasil, Redação, Gerência e
Oficinas, Rua Barros Cassal, 82 e 86, Tel. 9-1112. End. Tel. “Reviglobo”. Preço: número avulso em
todo o Brasil, Cr$ 6,00; Assinatura anual, Cr$ 70,00. Escritório no Rio de Janeiro: Rua México, 128
(sobreloja) — Fone 22-9382. Escritório em São Paulo: Rua Fortaleza, 35 — Fone 32-1103. Escritório
em Curitiba: Rua Barão do Rio Branco, 41. Caixa Postal, 612. Agentes e correspondentes nas princi-
pais localidades do país. Todos os direitos, inclusive o de tradução em outras línguas, reservados pelo
“Mercury Publications Inc.” nos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Austrália, México e todos os outros
países qúe participaram na Convenção Internacional e da Convenção Pan-Americana de Direitos Au-
torais.
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MISTÉRIO MAGAZINE
N.° 32
Direitos Autorais
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A. H. Z. CARR
CRIME NA PREFEITURA
H. A. Z. Carr
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— Tomara que esta seja a última vez que eu tenha de assistir
a estas coisas, por dois anos, vença quem vencer.
Mas um policial uniformizado apareceu e alcançou-me um
bilhete, murmurando: “Para o Comissário Danwood”.
Dei-o ao Comissário. Êle leu. Levantou-se e desceu calma-
mente para a platéia. E eu atrás dele. Quando passou pelo Prefeito,
vi que este piscou para o Comissário e cochichou: “Para onde vai,
Danny?” O Comissário sorriu e foi saindo. Na sala de espera esta-
va o Inspetor Stotter, que é um camarada esperto, embora fale e
pareça-se com um professor de colégio. Êle disse:
-— Comissário, cheguei agora mesmo da Prefeitura, e creio
que o senhor deve saber logo. Atiraram no Dr. Holcombe.
Precisei de alguns instantes para me lembrar de quem êle
estava falando. Holcombe é o sujeito que faz chuva — aliás, fazia,
porque Stotter disse que êle estava morto.
O Comissário franziu as sobrancelhas e disse:
— Que coisa! Êle era um rapaz tão direito!
Quando o Prefeito requisitara Holcombe da Universidade do
Estado, muito embora fosse do partido oposicionista, os jornais
falaram muito. Aquela foi uma ótima ocasião para o Prefeito se
esquecer dos partidos políticos, porque a seca que nos apareceu,
parecia não ter mais fim. Os reservatórios estavam com o nível
baixo, não só os do estado, como também os dois outros grandes
localizados dentro dos limites da cidade. Embora o povo achasse
graça em não tomar banho, também andava meio preocupado, e
na Prefeitura todo o pessoal andava tonto, tentando atender às
queixas. Foi então que Holcombe, pilotando o seu avião, começou
a espalhar gelo seco sobre as nuvens, e toda vez que isto acontecia,
lá vinha uma chuvarada. Alguns diziam que êle tinha sorte, e que
fazia algum passe de mágica antes de jogar a cartada. O nível dos
reservatórios subiu um pouco, Holcombe tornou-se então uma es-
pécie de herói popular, e Johnny Connors granjeou a confiança do
povo, por tê-lo empregado.
O Comissário ficou ali na sala e pensou durante um segundo.
Sempre que olho para êle, imagino o modo pelo qual os detetives
dos livros têm a petulância de afirmar que conhecem uma pessoa
só pela aparência. Além do seu aspeto envelhecido, o Comissário
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tem um rosto comum: cabelos grisalhos, aliás, os que sobraram, e
que são muito poucos; nariz pontudo, queixo largo e olhos firmes
e azuis. No seu casaco solto, que estava usando àquela noite, po-
deria ser tomado por qualquer coisa: um homem de negócios, um
advogado ou um político. Na realidade, êle era apenas um policial.
E nunca passou disto: recruta, paisano, sargento-detetive, tenen-
te, inspetor, inspetor-chefe, mas sempre policial. Quando Johnny
Connors mandou chamá-lo, dizendo que o queria para novo Co-
missário de Polícia, creio que ninguém se surpreendeu mais do
que o próprio Comissário. Mas foi um gesto inteligente do Prefei-
to. Naquela ocasião êle vinha sendo atacado pelos jornais, porque
o Departamento estava cheio de empistolados e mal-organizado:
cheio de trapaças e coisas esquisitas. Ele sabia que o Comissário
era popular entre os repórteres, que os jornais chamavam-no de
policial honesto, e diziam que se alguém pudesse limpar a Força
Policial, este alguém só poderia ser êle. Tinham razão. Êle despediu
os que protegiam a jogatina e reorganizou o Departamento. Dois
anos depois não se reconhecia mais a Força, pois fora moralizada.
Todo o mundo estava satisfeito, menos o Comissário. Êle não
gostava ficar sentado numa escrivaninha a dar ordens. E continu-
ava lamentando não estar mais lá com os rapazes. Certa vez êle me
disse, muito sério: — “Babe. se alguém me trouxer outro relatório-
hoje, dê-lhe um tiro”. É claro que estava brincando porque mesmo
quando está cansado e aborrecido, êle diz: — “Babe, a política é um
negócio sujo. Sinto raiva só em pensar o que vai ai pela cidade, e no
que está sendo encoberto. Graças a Deus que o meu Departamento
está limpo”.
— Claro que está, chefe — respondi, e êle bateu no ombro,
sorrindo.
Agora, disse a Stotter:
— Como foi que Holcombe morreu?
— Com uma bala na fonte esquerda. Não pode ter sido sui-
cídio. A arma desapareceu, bem como a cápsula detonada. Pelo
orifício, parece que foi um calibre 32. O médico-legista estava exa-
minando o ferimento quando saí.
Um homem baixo, usando um paletó bem cortado, e trazendo
uma pasta, saiu do auditório e acendeu um cigarro. “Era baixo e o
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seu cabelo era escuro, e por um instante pensei que fosse o Prefei-
to, mas depois verifiquei que era Lloyd Thompson, seu cunhado, e
seu assistente. Quando Johnny Connors nomeou-o seu assistente,
depois da morte de Mrs. Connors, há alguns anos atrás, alguns
reclamaram que era proteção, mas disseram-me que Thompson é
mesmo bamba no seu cargo.
Ao avistar Thompson, o Comissário lembrou-se de perguntar
a Stotter:
— Os jornais já souberam disto?
— Não — retrucou Stotter. — Achei que era melhor guardar
segredo durante algumas horas.
— Muito bem — concordou o Comissário. Voltando-se para
Thompson disse:
— Mr. Thompson, depois que o Prefeito terminar o discurso
desta noite, poderá dar-lhe um recado meu? Peça-lhe para ir à Pre-
feitura, assim que a reunião terminar. Não quero perturbá-lo antes
do discurso.
— Terei o máximo prazer, Danny — respondeu Thompson.
Eis como é êle: chamando o Comissário pelo apelido, como fazia
o Prefeiro. Imita Connors em tudo.
— Importa-se de dizer sobre o que se trata, Danny? — per-
guntou êle.
O Comissário hesitou, mas por fim disse:
— Verá como é imprescindível que isto não transpareça antes
do Prefeito ter falado. O Dr. Holcombe foi assassinado esta noite,
na Prefeitura.
Thompson deu um assobio.
— Céus! Não imagina os cabeçalhos de amanhã? “CRIME NA
PREFEITURA”!
— Temo que sim — concordou o Comissário.
— Diabos! — exclamou Thompson. — Não pense que não
sinto a morte de Holcombe, mas a eleição está tão próxima, que
alguns milhões de votos, de um modo ou de outro, poderiam abalá-
la. Poderia arruinar-nos, a menos que tomemos providências ime-
diatas — disse êle, todo sorrisos e amabilidades para o Comissário.
— Mas sei que podemos contar com a sua cooperação, Danny.
—- O primeiro passo — disse o Comissário — é dar o meu
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recado ao Prefeito.
— Isto será um golpe para Johnny — acrescentou Thompson.
— Estamos trabalhando desde as quatro horas da tarde, e apesar
daquele sorriso. sei que êle está exausto.
— É, eu sei — disse o Comissário. — Mas é melhor começar-
mos.
Saímos para o carro que estava esperando por Stotter. Era
uma noite escura e cheia de nuvens, mas estava quente e o Comis-
sário não me deixou buscar o seu chapéu e o sobretudo. O chofer
ligou a sirena e o carro adquiriu velocidade.
— Vamos, conte tudo — pediu o Comissário.
Stotter contou:
— O médico-legista disse que a morte se deu entre as seis
e as sete desta noite, talvez perto das sete, no escritório de Hol-
combe, na Prefeitura. Uma Mrs. Barkowsky encontrou-o. Ela é a
arrumadeira. Isto foi por volta das nove e meia, quando entrou no
escritório para limpá-lo. Êle estava sentado, ou melhor, debruçado
sobre a escrivaninha.
— Bill — disse o Comissário — há pouco você disse que o
doutor estava examinando o ferimento, à procura da bala. Creio
que um 32, disparado contra uma têmpora, bem de perto, faria
com que a bala saísse pelo outro lado.
— Isto também tem me preocupado Stotter. — Quando per-
guntei ao doutor, êle disse que a bala podia ter-se desviado pela
parede craniana, e assim, seguido a curva interna do crânio, em
vez de atravessá-lo. Mas o que realmente me deixou abismado, é
que não havia sinais de pólvora em volta do ferimento. Quem quer
que tenha atirado, parece que acertou o alvo, mesmo de longe.
— Alguém ouviu o tiro?
— Ninguém, até agora — respondeu Stotter. — Mandamos
chamar a secretária de Holcombe, uma moça chamada Maxine
Austin. E também o camarada que tem escritório ao lado de Hol-
combe: Dr. Kreedlin.
Eu conhecia aquele camarada, Kreedlin. Lá na Prefeitura era
uma farra, porque quando Johnny Connors estava em apuros, con-
tratava logo um novo consultor, e o tal Kreedlin foi o primeiro que o
Prefeito agarrou, quando a seca começou a tornar-se uma ameaça.
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Era engenheiro, e tinha grandes idéias e fazia muitos planos, mas
nada aconteceu até que Johnny deu pela história, e mandou cha-
mar Holcombe, que fêz chover.
— Pensei que o Prefeito já não tratava mais com Kreedlin há
muito tempo — continuou o Comissário. Mas eu não fiquei surpre-
endido. Johnny Connors tinha horror de despedir os que trabalha-
vam para êle, mesmo que fossem incompetentes.
— Não, Kreedlin ainda está na lista de pagamento — comen-
tou Stotter. — Dizem que êle tem muito boas relações aqui na Pre-
feitura. Além dele e da secretária, mandei chamar mais dois ou-
tros, um dos quais pode bem ser o assassino. Um deles é Frankie
Coletti.
Dei um assobio, porque Coletti era um dos membros do sin-
dicato do jogo, sujeito duro, que ainda trabalhava pela cidade, em-
bora não fosse no mesmo setor.
Stotter continuou:
— Holcombe escreveu uma carta a Coletti, marcando encon-
tro entre as cinco e seis horas de hoje. Encontrei a cópia na sua
escrivaninha. E às sete estava morto.
— Ah! — exclamou o Comissário. — Quem é o outro que você
mandou chamar?
— Uma mulher. Vera Loomis. Conheceu Bill Loomis, dono do
Parque de Diversões Mohawk, do outro lado do rio? É a viúva dele,
e creio que agora está dirigindo o parque. Encontrei uma carta dela
para Holcombe. Estava escrita num tom ameaçador. Achei que era
melhor chamar a ambos, Coletti e Mrs. Loomis para fazer algumas
perguntas, sem contudo expor as razões.
— Isto mesmo. Mais alguma coisa, Bill?
Stotter meneou a cabeça.
— Nada foi tocado no escritório. Nem sinal, de luta. O trinco
da porta estava limpo. É claro que teremos que nos concentrar
no motivo, e esperar uma oportunidade. Infelizmente isto teve que
acontecer bem na véspera das eleições. A imprensa terá um dia
cheio. E Johnny. . .
— O Prefeito — emendou o Comissário.
— Isto é, o Prefeito — repetiu Stotter — há de querer o retrato
do assassino na primeira página dos jornais, amanhã de manhã
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cedo.
O Comissário concordou. Desembarcamos do carro em fren-
te à Prefeitura, onde estavam mais dois outros carros policiais, e
lá dentro as luzes estavam acesas. Stotter nos conduziu por uma
porta lateral a um corredor comprido, de mármore, no fim do qual
chegamos a uma porta onde se lia: Dr. Richard Hotcombe, Consultor
Meteorológico do Prefeito. Era uma sala estreita e comprida, limpa e
asseada, pintada de verde-claro e com caixílho branco na porta. As
escrivaninhas de Hokombe e da secretária, eram de nogueira.
Os encarregados de tirar as impressões digitais e o doutor já
tinham terminado as suas tarefas e ido embora, quando entramos.
No meio da sala, coberto por um lençol, estava um cadáver. O Te-
nente Harris, que é um bom sujeito, esperava para apresentar o
seu relatório. Fêz continência ao Comissário e disse para Stotter:
-— O caso vai ser difícil. Nenhuma impressão digital sobre
a escrivaninha, além das dele. A cápsula detonada era a de um
32, conforme o senhor disse, e mandei-a para o Departamento de
Balística.
— Então tudo o que sabemos — disse Stotter com fisionomia
sombria — é que alguém atirou em Holcombe, na têmpora esquer-
da, enquanto êle estava à escrivaninha, e que morreu instantane-
amente?
— Isto mesmo — concordou Harris.
Neste meio tempo, o Comissário levantou a ponta do lençol
e olhou para o cadáver. Holcombe tinha sido um sujeito possante.
O que se notava mais eram suas sobrancelhas escuras e muito
cerradas, e o seu queixo, que denotava grande força de vontade.
Vendo-o ali, morto, lembrei-me do camarada das notas de dez dó-
lares. Como era mesmo o seu nome? Hamilton.
Depois de alguns momentos o Comissário disse com um sus-
piro:
— É melhor tirá-lo daqui.
Harris deu a ordem a um policial que estava do lado de fora e
em seguida entraram outros e o levaram. O Comissário sentou-se
na cadeira de Holcombe, e olhou para a escrivaninha. No mata-
borrão cinza havia uma mancha de sangue, onde descansara a
cabeça de Holcombe. Os outros objetos eram o que se poderia es-
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perar: um jogo para escritório, uma dúzia de cachimbos, um pote
de fumo, alguns livros, uma caixa de madeira, contendo alguns
papéís, e umas tabelas de aparência técnica.
— Estas são as cartas de que lhe falei — disse Stotter, che-
gando-se à caixa de madeira. — Estavam na gaveta da escrivani-
nha.
O Comissário leu-as, e quando terminou, passei uma vista
d’olhos. Uma era uma cópia em papel amarelo, de uma carta para
Mr. Frank Coletti, Hotel Lancaster, Park Avenue, e dizia:
Prezado senhor Coletti. Minha secretária disse-me que o se-
nhor telefonou, pedindo que eu o chamasse por telefone na segunda-
feira à tarde. Se deseja me ver, estarei no meu escritório na Prefeitu-
ra, segunda-feira, entre cinco e seis horas. Atenciosamente.
A outra carta era timbrada em azul e vermelho: Parque de
Diversões Mohawk — Administração. Estava escrita em tinta azul,
numa caligrafia ampla:
Prezado Dr. Holcombe. Se o senhor não ouvir a razão, terei que
tomar providências, como já o avisei. Atenciosamente, Vera Loomis.
— Eles já vieram? — perguntou o Comissário.
— Falei com Mrs., Loomis pelo telefone, e ela disse que talvez
não possa sair do parque antes da uma hora que é quando fecha.
Então perguntei, e amanhã de manhã? Ela quis saber por que era,
mas disse-lhe apenas que tornaria a chamá-la. Ainda estamos pro-
curando por Coletti. Kreedlin, Mrs. Barkowsky e a moça estão ali
no outro escritório.
O Comissário continuou na cadeira, e pôs-se a olhar em volta
do aposento, sem perder nada. Um escritório comum. Arquivos,
cadeiras com assento de couro, e algumas fotografias de nuvens
na parede. Tive a impressão de que o Comissário estava contente
por entrar novamente no campo de um outro assassinato. O modo
como virava os olhos e passava a mão pelo queixo, fazia-me lem-
brar um gato arquitetando um plano para apanhar um peixinho
dourado. Ninguém dizia nada.
Depois, ele se levantou, foi até a porta. Percebi então, que no
caixilho branco, do lado de dentro da porta, havia um pequeno ris-
co escuro, à altura dos olhos do Comissário. Ninguém notaria, se
não estivesse prestando muita atenção. O Comissário tocou-o com
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a ponta dos dedos e exclamou: “Ah!”
— Vi isto — disse o Tenente Harris. — Parece-me que alguém
encostou um cigarro, ou um charuto aí.
O Comissário voltou à escrivaninha e disse a Stotter:
— Teremos que tentar sobre o motivo, como você disse, Bill.
Encarregue-se do interrogatório, que eu ficarei ouvindo, se estiver
de acordo.
— Ótimo — respondeu Stotter.
— Mrs. Barkowsky está levando a coisa muito a sério — co-
mentou Harris.
— Muito bem — disse Stotter.
— Então falaremos com ela em primeiro lugar.
Quando entrou, vi que era baixa e gorda; tinha um rosto ver-
melho e uma fisionomia triste; e seu sotaque era polonês. Chorou,
porque pensava suspeitássemos dela. Mas Stotter falou com suavi-
dade, e ela contou como entrou no escritório, acendeu a luz, viu o
cadáver, gritou e saiu correndo, à procura de um policial.
Stotter olhou para o Comissário, que indagou:
— A senhora gostava do Dr. Holcombe, Mrs. Barkowsky?
— Oh, sim — balbuciou ela. — Era um homem muito direito.
Tão bonito, e sempre com um sorriso nos lábios. Quando traba-
lhava até mais tarde, e eu entrava, sempre me dava boa-noite, e
perguntava como ia o meu filho, que está doente há seis semanas.
— Compreendo — disse o Comissário. — E creio que a senho-
ra sempre limpava o escritório dele com todo o cuidado, não é?
— Como se fosse a minha própria casa — retrucou ela. —
Sem uma sujeirínha. Êle sabia que eu limpava bem. Uma vez êle
disse que eu era “A Duquesa da Limpeza”.
— Quando arrumou o escritório pela última vez? — pergun-
tou êle. — Ontem?
—- Não. Ontem era domingo. Limpei-o sábado de tarde.
Êle quis saber se ela se recordava de ter limpado o caixilho
da porta, e ela disse:
— Sim, pois sábado é o dia da faxina. Então eu lavei até a
porta.
O Comissário foi até lá e apontou para o pequeno risco.
— Se isto estivesse aqui no sábado, a senhora acha que teria
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notado e passado um pano?
—- Oh, sim — respondeu ela — eu não deixo nada sujo neste
escritório.
— Muito obrigado — disse o Comissário, e ela saiu, sentindo-
se melhor.
Stotter ficou espantado.
— Não percebi nada, Comissário.
— Um detalhe insignificante. Talvez nem seja nada. Eu es-
tava apenas tentando descobrir, quando foi que esse cigarro, ou o
que quer que tenha sido, encostou-se ao caixilho, É natural que ela
tivesse deixado passar um fiozinho destes, mas o resto está ima-
culado, portanto, suponho que foi feito depois que ela limpou pela
última vez. É só isto.
— Mas o que se pode conseguir de um cigarro que foi en-
costado ao caixilho de uma porta? — perguntou Harris, de cenho
cerrado.
— Estou apenas tateando — disse o Comissário. — Quem é
o seguinte?
— Maxine Austin — respondeu o Inspetor. E poucos minutos
depois entrou uma moreninha que teria atraído qualquer um de
nós, uma Vênus pequenina, embora fosse pálida, e tivesse círcu-
los vermelhos em volta dos grandes olhos escuros. O seu vestido
era vermelho escuro. Trajava um casaco de fazenda preta e um
chapéu, nada espetacular, mas nela, ambos pareciam elegantes.
Seu corpo era todo cheio de curvas suaves, onde a gente gosta que
elas estejam. Por um instante pensei que ela ia fraquejar, quando
olhou ao redor do escritório, mas conseguiu controlar-se Stotter
foi muito delicado, e o Comissário ofereceu-lhe um cigarro, que ela
aceitou logo, e em seguida vieram os fatos. Tinha vinte e quatro
anos. Morava num apartamento com mais duas moças. Trabalha-
va na Prefeitura havia três anos. Seis semanas atrás, fora contra-
tada por Holcombe, como estenógrafa. Não o conhecera antes, e
gostava bastante dele.
— Farei tudo o que estiver ao meu alcance para encontrar o
assassino! — exclamou ela. — Qualquer coisa!
Stotter conseguiu saber que Holcombe passara fora do escri-
tório todo o dia, e que não recebera visitas. Ela saíra de lá às cinco
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horas, um pouco mais cedo do que de costume, porque precisava
fazer umas compras, e Holcombe dissera que estava bem.
— Êle estava aqui quando a senhorita saiu? — perguntou
Stotter.
— Sim, sentado diante da escrivaninha. Estudando os seus
relatórios sobre o tempo. Quando eu disse “até logo”, êle olhou para
mim e disse: “Até logo, Maxine”.
— A senhorita o chamava de Richard? — perguntou Stotter.
— Oh, não. Sempre de Dr. Holcombe. Mas êle me chamava
de Maxine. Dizia que era bastante idoso para ser meu tio. Mas não
era verdade. Tinha somente trinta e seis anos.
— Que espécie de homem era êle? — perguntou o Comissá-
rio.
Ela hesitou.
— Na aparência, despreocupado —- disse ela devagar. — Mas
levava muito a sério o seu trabalho, e às vezes era até muito seve-
ro.
— Alguma vez foi severo com a senhoríta? — perguntou Stot-
ter.
— Oh, não. Sempre foi muito bom para mim. Era apenas
uma coisa que eu pressentia em sua personalidade. Não creio que
êle era muito religioso, mas mesmo assim, tinha princípios rígidos,
como uma pessoa religiosa.
Stotter olhou-a de cima para baixo, e isto era o que eu estive-
ra fazendo desde que ela entrara no aposento, e disse:
— O Dr. Holcombe era solteiro, compreendo. Êle saiu com a
senhoríta alguma vez?
Seu rosto enrubesceu e ela falou:
— Sim, duas vezes. Só para jantar, quando tivemos que tra-
balhar até tarde da noite. Mas foi só isto.
Ela remexeu-se na cadeira, descruzou as pernas bem-feitas e
tornou a cruzá-las novamente.
— Compreendo — murmurou Stotter. — Suponho que êle
saía com outras moças de vez em quando. Ouviu-o telefonando
para elas?
Ela não gostou daquilo.
— Eu não tinha ciúmes dele, se é isto que o senhor quer di-
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zer. Eu gostava dêle, gostava muito, mas os seus encontros eram lá
com êle. Nunca procurei escutar as suas conversas particulares.
Bem se podia ver que Stotter não acreditava nela.
— Ora, Miss Austin, a senhoríta está querendo nos dizer que
não ouvia quando o Dr. Holcombe telefonava a outras mulheres...
— Não! — exclamou ela. — Eu tinha o meu trabalho para
fazer. Não sei quais eram as suas amiguinhas.
Então ela tomou fôlego e exclamou:
— O senhor está supondo que eu. . . que eu. . .
— Não estou supondo nada — retrucou Stotter. — Apenas
tentando formar um quadro.
Mas ela estava furiosa quando o Comissário fêz uma pergun-
ta.
— Estou interessado nas tabelas que o Dr. Holcombe esta-
va examinando quando a senhoríta deixou esta sala, Miss Austin.
Eram aquelas que estão sobre a escrivaninha?
Isto a acalmou. Controlou-se, olhou para as tabelas e res-
pondeu:
— Sim, creio que sim. — E depois continuou, como se sen-
tisse orgulho de saber tanto. — São comunicações de umidade e
temperatura de hora por hora, nos diferentes lugares e á diferentes
altitudes. Êle as usava para decidir se faria ou não um vôo. Sábado
elas indicavam que as condições eram favoráveis e êle subiu no
avião, e foi por isto que sábado de tarde e à noite tivemos aquele
grande aguaceiro. Uma vez êle disse que iria ficar mal perante os
jogadores de golfe, porque já era o terceiro sábado seguido que êle
sacudia as nuvens.
— Êle estava planejando outro vôo para breve? — indagou o
Comissário.
— Oh, sim. Disse que a formação de cumulus sobre a cida-
de era muito prometedora. Ouvi-o dizer a diversas pessoas pelo
telefone, que com um pouco de gelo seco pensava poder garantir
outra chuvarada sobre a área metropolitana, o que ajudaria os re-
servatórios da cidade. Estava estudando os últimos comunicados
quando eu saí.
— E sobre este tal Coletti? — perguntou Stotter.
— Quem? Oh, Mr. Coletti. A semana passada êle telefonou
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duas vezes e disse que desejava que o Dr. Holcombe fosse até a sua
casa. Sábado de manhã, segundo penso, o Dr. Holcombe escreveu-
lhe uma carta dizendo. . .
— Sim, eu a vi — interrompeu Stotter. — Holcombe sabia
qnem era Coletti?
— Não, creio que não. Êle disse que o nome não lhe era estra-
nho, mas não podemos saber de onde.
— A senhorita nunca ouviu falar no famoso gangster Frankie
Coletti? — perguntou Stotter.
— Oh, aquele Coletti? — exclamou ela. — Nunca sonhei. . .
não não pensamos nisto.
— Então não viu Coletti?
— Não — retrucou ela. — O senhor pensa que êle. . . que êle
atirou...
— Ainda não fomos tão longe — disse Stotter. — E acerca
de Mrs. Loomis?
— Não sei nada a respeito dela — respondeu a moça — exceto
que ela telefonou ao Dr. Holcombe e eles tiveram uma discussão.
— Sobre?
— Não tenho certeza. Ouvi apenas o que dizia o Dr. Holcom-
be. Tudo o que êle dizia era que estava atendendo ao interesse
público, e a filosofia dêle era a seguinte: “Puxar a corda e deixar a
chuva cair onde era preciso”. Êle disse a ela que, se uma vez come-
çasse a ceder a qualquer pressão, de qualquer fonte, não teria mais
fim. Disse que Mrs. Loomis teria simplesmente que fingir que êle e
o seu gelo seco faziam parte da natureza.
— Ouviu outras conversas que podem ter relação com o cri-
me? — perguntou Stotter. — Nada?
Ela parou e pôs-se a pensar.
— Bem — disse por fim. — Eu saí do escritório por um ins-
tante antes das cinco horas, e quando voltei, o Dr. Holcombe esta-
va falando com alguém. Não sei com quem era. Ouvi alguma coisa
porque eu não estava batendo à máquina e ela estava falando séria
e asperamente para êle.
— Que dizia? — indagou Stotter.
— Era sobre o reservatório de Long Park. Ouvi-o dizer:
“Não pode me dizer que o nível do reservatório de Long Park está
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baixo devido à seca”. Depois continuou: “Não tente dizer a mim o
que devo fazer. Se eu quiser me encarregar disto, fá-lo-ei. Não pode
me eliminar.”
— Êle não disse mais nada sobre isto? — perguntou Stotter.
— Nem uma palavra. Voltou a ler os relatórios e eu disse até
logo e saí.
O telefone tocou. Harris foi atender, escutou por uns minutos
e disse:
— Muito bem, espere aí. — Voltou-se para o Comissário. Co-
letti. Está em casa, podemos ir até lá e êle estará esperando com
o seu advogado, mas não virá aqui, a menos que seja com uma
ordem, porque não fêz nada.
— Diga-lhe que iremos.
Harris obedeceu. Então o Comissário voltou-se para Maxine:
— Alguém esteve aqui neste escritório sábado à noite ou do-
mingo?
— Não — exclamou a moça. — Só o Dr. Holcombe e eu tí-
nhamos as chaves. Eu não estive aqui, e depois de fazer a chuva,
sábado, êle foi para o campo, passar o fim de semana com seus
amigos.
— O Dr. Holcombe fumava cigarros? — quis saber o Comis-
sário.
— Nunca o vi fumar nada além de cachimbo — respondeu
ela.
— Muito obrigado -— disse o Comissário, e deixaram-na ir
para casa.
Stotter ficou olhando para o chefe como se tivesse algumas
perguntas a fazer, mas o Comissário falou:
— Vamos dar uma olhadela em Kreedlin.
Antes que mandassem chamá-lo, ouvimos passos no corre-
dor de mármore, e a porta abriu-se e surgiu Sua Excelência,
Johnny Connors.
Era da mesma altura do Comissário, mas a semelhança li-
mitava-se aí. O Comissário parecia-se com qualquer outra pessoa,
mas Johnny era um só e o único. Parado ali, no seu casaco solto,
e usando chapéu preto, os cabelos crespos e grisalhos, sobrance-
lhas escuras, e rosto firme, era tão elegante como qualquer galã de
19
cinema.
— É um caso muito triste, Danny — exclamou êle. — Não
preciso dizer-lhe que gostava de Holcombe. Quero que se faça uma
prisão rápida do criminoso. Onde estamos?
— Apenas nos fatos — respondeu o Comissário.
Thompson, que estava logo atrás, carregando o sobretudo do
Prefeito, deu o seu parecer:
— Temos esperança de que o senhor venha a prender o crimi-
noso esta noite, Sr. Prefeito. Deixando de lado o nosso sentimento
por Holcombe, e falando claro, isto poderia nos custar uma porção
de votos.
— Isto não tem importância, Tommy — retrucou o Prefeito.
— Uma boa quantidade deles dependerá da declaração que
fizermos, — acrescentou Tommy. — Poderíamos encontrar um gru-
po político que fizesse piorar mais ainda a falta dágua, e isto preju-
dicaria o resultado da eleição.
-— Não se preocupe por minha causa, Danny — explicou o
Prefeito. — Mas tiraria um grande peso das nossas cabeças, se esta
história aparecesse completa e solucionada, nos jornais de ama-
nhã. Tem alguma idéia de quem poderia ter feito isto?
— Ainda não, Sr. Prefeito — respondeu o Comissário. Sempre
chamava Johnny pelo seu título.
— Bem, sei que tendo você como encarregado, tudo o que fôr
possível fazer, será feito. Se souber de alguma coisa, mande-me
avisar imediatamente. Tommy e eu estaremos no escritório. Tere-
mos que mandar o caso para a imprensa, e acertar alguma coisa.
Mas em primeiro lugar, precisamos descobrir quais são os parentes
mais próximos de Holcombe, e dar-lhes a notícia da maneira mais
suave possível. Vamos, Tommy.
— Saíram para o vestíbulo, enquanto eu segurava a porta
aberta para eles. Pelas costas, com os casacos soltos e os chapéus
pretos, êle e Thompson pareciam uma dupla de dançarinos: Fred
Astaire e Gene Kelly, ou outra dupla qualquer.
Depois que êle se foi, Stotter falou:
— Com tudo o que êle tem na cabeça, ainda pode se lembrar
dos parentes de Holcombe.
O Comissário concordou.
20
— Vamos ver Kreedlin.
Um policial sai para chamá-lo e neste meio tempo o Comis-
sário diz para Stotter:
— Que foi que você disse acerca de Kreedlin ter boas rela-
ções?
Era uma pergunta sensata, porque ninguém gosta de pisar
nos calos de quem tem boas relações, se pode evitá-lo. No entanto,
Stotter não podia auxiliar muito. Disse apenas:
— Foi o que ouvi — que um graúdo o recomendou ao Prefei-
to.
Kreedlin entrou. Era magro, estatura mediana, tinha o rosto
ossudo e usava óculos; seu modo de falar era áspero e agressivo.
— Sinto que Holcombe tenha morrido, mas não vejo ra-
zões para que isto nâo possa esperar até amanhã. Tiraram-me da
cama.
— Sente-se — falou Stotter.
Kreedlin sentou-se, jogou fora um toco de cigarro e em segui-
da acendeu outro que retirou de um maço amarrotado que estava
no seu bolso, e colocou-o no canto da boca. Stotter começou. O
sujeito disse que estívera no seu escritório até quase sete horas.
Sabia que Holcombe estava vivo logo depois das seis, porque êle
tinha ido ao toilette dos homens e passara pela porta de Holcombe”
naquela hora e ouvira vozes. Não, não sabia se uma das vozes era
de Holcombe, pois só ouvira um leve murmúrio. Não sabia quem
estava no escritório com Holcombe. Ainda falavam quando êle vol-
tara. Não ouvira o tiro. Achava que Holcombe estava vivo quando
fora para casa, porque embora não ouvisse vozes, quando passou
pela porta, ouvira-o espirrar.
— Viu alguém no corredor quando saiu? — perguntou Stot-
ter.
— Não — respondeu Kreedlin. — Estes empregados sempre
saem cedo. Nunca trabalham à noite. Todos os escritórios estavam
vazios.
O seu tom de voz era desdenhoso.
— Então não viu ninguém?
Comecei a pensar que as coisas não estavam muito boas para
o lado de Kreedlin. O doutor dissera que Holcombe morrera antes
21
das sete — e segundo o próprio testemunho de Kreedlin, Holcombe
ainda estava vivo quando saiu do escritório pouco antes das sete. O
assassino deveria estar por ali àquela hora, mas Kreedlin disse que
não o vira e nem ouvira o tiro. Talvez tivesse se apercebido disto,
porque de repente mudou a cantiga:
— Espere. Eu vi alguém. Uma mulher. Uma mulher alta. Ti-
nha me esquecido dela até agora. Eu a vi do lado de fora, no cor-
redor. Ela estava olhando para as placas do edifício, e quando eu
passei por ela, pôs-se a caminhar.
— Pode descrevê-la? — perguntou Stotter.
— Bem — falou Kreedlin, meio receoso. — Eu não olhei de
perto para ela, mas tenho a impressão que tinha os cabelos verme-
lhos e sardas. Agora é que estou recordando.
Bem pude ver que Stotter não deu muita importância ao fato,
mas disse a Harris:
— Veja se consegue saber de alguma mulher alta, cabelos
vermelhos e sardenta, que tivesse andado por aqui por volta das
sete horas.
O Comissário fêz uma pergunta:
— Gostava do Dr. Holcombe?
Kreedlin hesitou um pouco, mas respondeu:
— Sim.
— Aprovava o seu método de evitar a falta dágua?
Meu amigo, isto foi a conta. Foi o mesmo que furar uma bo-
lha. Saiu uma porção de coisas. Kreedlin achava que Holcombe era
um impostor. A chuva que caía toda a vez que êle subia de avião
era porque sabia que iria chover mesmo, mas fingia que era o autor
do fenômeno.
— Truque de publicidade — dizia Kreedlin cada vez mais ex-
citado. Largou o cigarro e acendeu outro, e disse ao Comissário:
— Isto não era método para evitar a falta dágua. Deve-se
procurar a origem do problema. Erosão do solo. Drenagem. Reflo-
restamento.
Começou a expor os seus planos de abastecer o suprimento
dágua da cidade, por muito tempo, e a dizer que êle era um enge-
nheiro de verdade e não um farsante.
O Comissário interrompeu:
22
— Creio que o Prefeito não favoreceu o seu plano, não foi?
— Êle disse que não era politicamente prático na ocasião —
respondeu Kreedlin.
— Mas o manteve no emprego. Kreedlin ficou vermelho:
— Êle deve saber que os meus serviços um dia serão úteis à
cidade.
— Há poucos momentos, Mr. Kreedlin, o senhor falou nos
empregados públicos com um tom de voz que eu reconheci bem.
Não se considera um empregado público, também? —- perguntou
o Comissário.
— Claro que não — exclamou Kreedlin. — Não um emprega-
do comum. Estou aqui como consultor.
— E ainda assim — continuou o Comissário. — Como con-
sultor, evidentemente continua a esperar que lhe seja pago o salá-
rio depois que suas idéias foram rejeitadas?
Kreedlin ficou nervoso.
— Isto é comigo. Sei que serei útil ao Prefeito.
— Sem dúvida — disse o Comissário. — Mas o senhor se con-
sidera um engenheiro ou profissional, mais do que um empregado
público?
— O que tem isto a ver com este assassinato? Já lhe disse
que não ouvi o tiro. E isto é tudo o que lhe interessa.
O Comissário continuou como se fosse uma máquina:
— Em que trabalhava antes de vir para a Prefeitura?
— Era engenheiro consultor da Companhia de Construção
“Kreedlin”, antes de vir para cá. Meu irmão é o presidente. Isto
chega para o senhor?
Naturalmente eu conhecia o nome. Eles trabalhavam muito
para a cidade, mas nunca liguei o nome com este Kreedlin.
O Comissário aquiesceu:
— E o senhor deixou um emprego de tanta importância só
para trabalhar para a cidade?
— Era o meu dever de cidadão — disse Kreedlin — ajudar a
enfrentar a falta dágua.
O Comissário ficou a olhar para êle sem dizer palavra, por
alguns segundos. Depois falou:
— Falou com o Dr. Holcombe pelo telefone esta tarde?
23
— Não. Por que haveria de falar pelo telefone quando o meu
escritório fica bem aqui ao lado?
— Foi a Companhia Kreedlin que construiu o reservatório de
Long Park? — indagou o Comissário.
Kreedlin franziu as sobrancelhas e perguntou:
— Sim, e que tem isto?
— O senhor ouviu alguma coisa sobre um defeito na cons-
trução do reservatório? — perguntou o Comissário. — Assim como
uma rachadura na base de cimento, e que faria o nível dágua estar
anormalmente baixo?
— Mentira! Isto foi apenas uma desculpa de Holcombe, por-
que não era capaz de elevar o nível de lá.
— Ah! — exclamou o Comissário. — Então ouviu falar nisto.
Quem lhe contou?
— Não me lembro. Foi apenas um rumor, desses que a gente
ouve por aí.
Stotter pegou a deixa:
— É melhor dizer que o senhor tinha um ressentimento con-
tra o Dr. Holcombe.
Isto aplacou Kreedlin. Êle olhou cautelosamente em volta.
— Eu estava sentido, mas não direi que tivesse um ressenti-
mento profundo.
— Apenas uma pergunta de praxe — disse Stotter. — O se-
nhor possui alguma arma?
Kreedlin exaltou-se:
— Isto é ridículo, mas vá lá, se é isto que o senhor quer: não.
Não tenho nenhuma arma e nem acesso a nenhuma.
Stotter disse-lhe que podia ir embora, mas que ficasse de
prontidão de manhã bem cedo, e Kreedlin saiu sem dizer mais
nada.
— Êle poderia ter um motivo — disse Stotter para o Comis-
sário — mas se êle é o nosso homem, creio que teremos dificuldade
em prová-lo.
— Vamos ver Coletti — disse o Comissário.
Coletti morava num hotel grã-fino e tinha um apartamento
muito agradável. Quando chegamos êle trajava um roupão de seda
e fumava charuto. Era um homem forte, de rosto magro e bigodi-
24
nho fino. Bem que eu gostaria de amassar-lhe a cara, porque foi êle
um dos que ameaçaram o Comissário, mas aquela não era ocasião
para tal. Com êle estava um advogado gordo e baixo, que quase não
dizia palavra, apenas ficava sentado escutando.
— Ora vejam — disse Coletti. — O Comissário em pessoa! A
que devo tão imerecida e inesperada honra?
— Pare com a farsa —- disse Harris, e Stotter prosseguiu:
— Queremos apenas umas respostas a certas perguntas.
Você visitou o Dr. Prichard Holcombe na Prefeitura esta tarde?
Coletti levantou o rosto e olhou para Stotter e depois para o
Comissário, antes de responder.
— Sim. E daí?
— A que horas?
— Um quarto para as seis. Por quê? — perguntou Coletti co-
meçando a ficar inquieto.
— Quanto tempo ficou com êle? — perguntou Stotter.
— Talvez uns dez minutos, talvez quinze — respondeu Coletti
agora preocupado. — Desde quando existe algum mal, em um ci-
dadão visitar um empregado público?
Stotter sorri, mas não é um sorriso bonito.
— Nenhum mal, a menos que este empregado público venha
a ser assassinado por volta da hora em que o cidadão o foi visitar.
—- Assassinado! — gritou Coletti. — Com os diabos! Que é
que vocês estão querendo empurrar para cima de mim?
— Se você não o praticou, não tem nada que se preocupar
— disse calmamente o Comissário. — O que queremos saber na
realidade, é por que você foi ver Holcombe?
Coletti pôs-se a falar ligeiro:
— Eu o conhecia há anos. . .
— Não seja bobo — interrompeu o Comissário. — Holcombe
escreveu-lhe marcando um encontro. Êle não sabia quem você era.
Pense bem e diga a verdade, se não quiser ser preso como testemu-
nha importante. O que tinha a dizer a Holcombe?
— Espere um pouco —- disse Coletti e foi conferenciar com o
advogado. Depois falou:
— Pois bem, vá lá. Não há nada ilegal sobre isto. Eu tinha
uma pequena transação e queria discuti-la com Holcombe.
25
— Que espécie de transação? — perguntou o Comissário.
— É que eu jogo um pouquinho no prado.
Isto era até engraçado, porque sabíamos que êle ainda anda-
va às voltas com apostas.
— As vezes a gente pode ganhar algum dinheiro, se se conhe-
ce os cavalos e se chove na hora exata. Eu queria apenas ter uma
idéia de quando Holcombe planejava gelar as nuvens perto do local
das corridas. Perfeitamente legal, como eu disse. Seria muito bom
para mim, se eu soubesse da informação.
—- Compreendo -— disse o Comissário. — Uma pequena
transação comercial.
— Claro, é isto. Um pequeno negócio particular.
O Tenente Harris ficou impaciente e perguntou:
— Que disse Holcombe?
Coletti sorriu:
— O idiota não quis saber de nada. Ofereci-lhe uma quantia
razoável, mas êle fêz uma conversa comprida, que era um cientista
disposto a servir o público e que não queria juntar dinheiro para
si, nem para ninguém mais. Pensei que talvez conseguisse, fazendo
mais pressão, mas vi que êle era um desses sujeitos cabeçudos,
por isso, resolvi desistir. Nada de mal-entendidos, disse-lhe eu, en-
quanto ficar de boca fechada e não contar a ninguém a minha pro-
posta. Foi tudo o que aconteceu. Então eu fui embora. Êle estava
bem quando eu saí, sentado à escrivaninha.
Aquela era a sua versão, e não mudou nem uma palavra,
quando Stotter lhe fêz as outras perguntas. Êle disse que, depois
de deixar Holcombe, poucos minutos depois das seis, foi direta-
mente para um night club: O Papagaio Vermelho, do qual é um dos
donos. Lá tomou umas bebidas, jantou, assistiu ao primeiro show.
Uns vinte camaradas poderiam prová-lo. Por fim Stotter pergunta:
— Você tem um revólver ou uma pistola calibre 32?
O pequeno advogado pulou:
— A menos que o senhor tenha justificativas para suspeita,
que não pode ter, êle não responderá perguntas sobre armas,
— Não faz mal — disse o Comissário para Stotter. — Não ar-
ranjaremos mais nada aqui. Oh, espere. — Voltou-se para Coletti:
— Você fuma cigarros?
26
Coletti olhou para o Comissário como se o achasse tolo:
— Não, tenho horror a êles. Só charutos.
E foi tudo, exceto que, depois do Comissário ter passado pela
porta, eu tropecei e pisei com toda a força no pé de Coletti, que
estava de chinelos, e êle soltou um urro. Então eu disse com muita
polidez:
— Desculpe, Mr. Coletti. Queira perdoar. Foi um acidente. É
engraçado como os acidentes acontecem aos sujeitos que falam em
atacar o Comissário. Era melhor você se lembrar disto.
Então eu fui embora, enquanto êle ficou dizendo coisas
feias.
No carro, o Comissário olhou para o relógio e disse:
— Que tal uma corrida até o Parque de Diversões Mohawk,
Bill? Ainda é cedo.
— Boa idéia — concordou Stotter, e disse ao chofer para an-
dar ligeiro. A sirena começou a gemer e logo chegamos ao túnel do
centro da cidade e subimos por uma estrada de onde se viam as
luzes da roda-gigante e da montanha russa.
Chegando ao parque, fomos diretos para o escritório, que fica
à entrada, logo atrás da bilheteria, e perguntamos por Mrs, Loomis.
Um homem que estava contando a féria da noite, nos disse que ela
estava lá pelo parque e foi até a porta para nos indicar o caminho.
— Não posso deixar este dinheiro aqui — disse-nos êle — mas
com certeza os senhores a encontrarão na primeira barraca de tiro
ao alvo, logo na primeira esquina.
— Ela gosta de atirar? — perguntou o Comissário.
— Se gosta! -— exclamou o sujeito. —- Ela costumava fazer
um ato de tiro mágico num circo, e depois comprou a concessão de
tiro ao alvo nesta parte. Foi assim que ela conheceu Loomis. Agora
é dona de tudo.
Havia uma multidão em volta da tenda de tiro ao alvo, e po-
dia-se ver o brilho dos olhos de Stotter, porque a mulher que eles
estavam admirando era alta, com o rosto coberto de sardas e o
seu cabelo era avermelhado, preso para trás. Ficamos ali parados
a assistir ao espetáculo. Que mulher! Andava pelos trinta e cinco
anos, e era do tipo que poderia me agradar — um pouco forte de-
mais, talvez, mas com uma cara mais ou menos. E era grande em
27
tudo, sem no entanto ser gorda. Vestia slacks azuis e uma blusa de
lã cinzenta, que lhe desenhava um belo perfil e eu ouvi o Tenente
Harris dar um leve assobio. Mas apesar de tudo, continuei a olhar
para os tiros. Atirava com dois revólveres antigos e fazia todas as
peripécias: apagava seis velas com seis tiros; olhando por um es-
pelho, atirou por sobre o ombro, derrubando uma carreira de ca-
chimbos; abanava a arma e acertava todas as vezes num alvo. Um
homem atrás do balcão era encarregado de renovar a munição das
armas, e toda a vez que ela atirava, a multidão aplaudia.
— Que tal, rapazes? — perguntava ela numa voz grave, que
soava como a do Texas, e eles gostavam e ela ficava contente.
Harris murmurou ao meu ouvido:
— Se ela atirou em Holcombe, não provaremos nada com um
teste de nitrato para encontrar grãos de pólvora.
Percebi logo o que êle queria dizer. Por fim ela pára, e quando
a multidão se alinhou em frente ao balcão para tentar alguns tiros,
ela se voltou para nós e Stotter falou com ela. Ela nos fitou com um
olhar azul e frio e disse:
— Não sei o que querem comigo, mas venham ao meu escri-
tório.
Era um lugar confortável, com boas cadeiras, e quando está-
vamos sentados, Stotter tomou a palavra:
— Mrs. Loomis, a senhora pode nos ajudar, respondendo
apenas a algumas perguntas, e não lhe roubaremos muito tempo.
Primeiro, para apressar as coisas, quer nos dizer onde esteve esta
tarde, entre as seis e as sete horas?
Mrs. Loomis franziu a testa, mas respondeu:
— Na minha casa, em River Drive.
— Conhece o Dr. Richard Holcombe?
— Falei com êle pelo telefone. Mas suponhamos que o senhor
me diga para que é tudo isto.
Ela falava como um homem, diretamente. E Stotter respon-
dia da mesma maneira.
— O Dr. Holcombe foi assassinado.
— Assassinado?! — exclamou Mrs. Loomis. — Sinto muito.
Êle parecia ser um bom homem, quando falei com êle. Mas e que
tem isto a ver comigo?
28
— A senhora escreveu ontem uma carta ao Dr. Holcombe —
continuou Stotter — mostrando-lhe a mesma. — O que queremos
da senhora, é uma explicação.
— Certamente. É muito simples. Como sabe, sou dona do
Parque de Diversões Mohawk, herdei-o do meu marido. Talvez não
saiba, mas é um negócio muito próspero. No comêço deste ano,
com bastante despesa, renovei o parque todo. Até mesmo mandei
construir um pavilhão de danças, e instalei aquecimento interno
e um jardim tropical. Fica tão quente, quando está ligado, que os
freqüentadores podem dançar todo o ano, mesmo no inverno, como
se estivessem viajando para o sul. Eu trouxe uma banda famosa e
comprei uma licença para bebidas, e tivemos um bom início. Uma
das nossas atrações é o concurso de danças nas noites de sábado.
Arranjei tudo e fiz propaganda e, francamente, é aí que fazemos
mais dinheiro, porque o perdemos durante a semana. O senhor
bem pode imaginar, que prejuízo eu tenho quando chove três sá-
bados seguidos.
— Atribui isto às atividades do Dr. Holcombe?
— A que mais? Por que tinha êle de escolher as noites de sá-
bado para os seus vôos? Por que não nos dias de semana? Estou
tão ansiosa como qualquer outra pessoa para terminar de uma vez
com esta falta dágua, mas por que teria o meu negócio de sofrer?
Foi isto que eu pedi a êle pelo telefone.
— Que disse êle? —- perguntou Stotter.
— Disse que escolhia a ocasião em nue houvesse grandes
formações de nuvens sobre a cidade, e aconteceu que elas estavam
boas, nas noites de três sábados consecutivos. De qualquer forma,
êle estava mais interessado em encher os reservatórios da cidade,
disse-me êle, do que encher o meu parque de diversões.
— Quando foi esta conversa? — quis saber Stotter.
— Na semana passada — têrça-feira — disse ela. — Pedi-lhe
pelo amor de Deus que me desse uma oportunidade e deixasse
passar o sábado, e êle apenas fêz uma referência acerca de dei-
xar a chuva cair onde quisesse. Então no sábado, quando choveu
novamente, fiquei muito aborrecida. Foi aí que eu lhe escrevi esta
carta.
— Referiu-se a tomar providências — falou Stotter.
29
— Oh. Eu queria dizer providências legais. Disse a Holcombe
que se êle continuasse assim, eu iria exigir dele e da cidade uma
indenização de um milhão de dólares. Com franqueza, eu não pen-
sava ter a oportunidade de arrecadá-los, mas imaginei que a publi-
cidade valeria alguma coisa.
— Foi só isto? — perguntou Stotter. — Não teve outro contato
com Holcombe?
— Nenhum — respondeu ela.
— Nunca o visitou em seu escritório?
— Não.
Stotter olhou-a nos olhos e não disse nada por uns instantes.
Ela permaneria têsa e quieta. Então o Inspetor falou:
— Não é melhor a senhora pensar outra vez, Mrs. Loomis?
— Que quer dizer?
— Suponhamos que eu lhe diga — explicou Stotter em voz
muito baixa —- que por volta das sete horas desta noite uma tes-
temunha a viu no corredor da Prefeitura, em direção ao escritório
de Holcombe.
Stotter estava em parte blefando, é claro — e eu, aceitaria a
palavra de Mrs. Loomis, em vez da de Kreedlin. Mas ela se descon-
trolou.
— Oh, meu Deus! — e seu rosto ficou branco, sob as sardas.
Stotter ficou tão contente que quase bateu no próprío peito, porque
aquêle parecia ser o desenlace que êle estivera almejando.
— Vamos ver os fatos — ordenou. — O que aconteceu quando
a senhora viu Holcombe?
Mrs. Loomis passou a mão sobre os cabelos vermelhos e
mostrou-se desesperada.
— Não fui eu — exclamou ela em voz baixa. — Tenho três
filhos. Sou uma mulher de negócios. Eu nem conhecia Holcombe.
Pareço ser capaz de assassinar um estranho? Ou qualquer pessoa,
por este motivo?
Stotter disse apenas:
— Vejamos os fatos.
— Não esconderei nada. Esta questão era muito importante
para mim. Estou devendo muito aos Bancos, e estava contando
com a seca para ajudar o negócio. Estas chuvas freqüentes, princi-
30
palmente nos sábados, estavam me danando. No sábado passado
eu achei que devia fazer alguma coisa. Foi então que escrevi uma
carta ao Dr. Holcombe. Esta tarde telefonei-lhe outra vez.
— A que horas? — interrompeu o Tenente Harris.
— Um pouco depois das cinco, creio eu — disse ela. — E eu
lhe falei em mover uma ação. Não iria ficar de lado e deixá-lo arrui-
nar o meu negócio. Se tivesse que fazer chuva, que o fizesse tarde
da noite, quando os clientes do parque já tivessem ido para suas
casas. Deu-me a mesma resposta: precisava colocar o bem público
acima de qualquer interesse particular. Mas não se mostrava zan-
gado, e eu pensei que talvez pudesse convencê-lo. Perguntei-lhe,
que tal se eu o fosse ver aquela noite, e se êle poderia esperar até
que eu chegasse lá. Disse-me que estava bem, que de todo jeito
precisava estar no escritório, e então marcamos encontro para as
sete horas. Cheguei à Prefeitura pouco antes das sete, e procurei
o número do seu escritório, nas placas da sala de espera. Lembro-
me de ter visto um homem. Com certeza foi aí que fui vista. Então
eu entrei no corredor. Na minha frente, lá no fundo do corredor,
alguém saía daquele escritório, mas êle andava muito depressa, e
quando cheguei em frente, já tinha dobrado para o outro lado, de
modo que não cheguei a vê-lo bem. Estava carregando qualquer
coisa, uma valisa talvez.
— Tem certeza que era um homem e não uma mulher carre-
gando uma bolsa? — perguntou Stotter.
— Tenho uma idéia de ter visto calças compridas — disse
Mrs. Loomis, pensativa. — Deve ter sido homem. De roupa escura.
A não ser que fosse uma mulher de slacks.
— Que aconteceu depois?
Mrs. Loomis continuou:
— Bati e não obtive resposta. Então experimentei a maçaneta
e a porta se abriu. A luz estava apagada, mas da janela vinha bas-
tante claridade para que eu pudesse ver que havia alguém sentado
à escrivaninha, meio debruçado sobre ela. Pensei que Holcombe
estivesse dormindo e disse: “Boa-noite”. Quando êle não respon-
deu, tornei a falar: “Desculpe, mas creio que é melhor acender a
luz”. Procurei o comutador e quando olhei para Holcombe nova-
mente, vi que estava morto.
31
— Tocou nele? — perguntou Stotter.
— Não. Fiquei horrorizada. Quando cheguei perto vi o orifício
na cabeça dele, e percebi que não havia mais nada que eu pudes-
se fazer por êle, coitado! Então fiz uma asneira. Fiquei com medo
de que suspeitassem de mim, se soubessem da discussão que eu
tivera com êle. Agora, bem quando estou tentando pagar os em-
préstimos dos Bancos, uma publicidade má, como a de eu estar
metida num assassinato, poderia arruinar-me. Olhei para fora e
não havia ninguém, então fui embora. Não pensei que alguém ti-
vesse me visto.
— A senhora limpou o trinco da porta e o comutador com o
seu lenço? — perguntou Harris.
— Ora, não!
— Não ficou preocupada de deixar impressões digitais?
— Estava muito assustada para pensar nisto. Além do que,
eu estava de luvas — voltou-se para Stotter e prosseguiu. — Eu
não queria fazer nada errado, estava apenas tentando proteger a
mim e a minha família.
Stotter interrogou-a acerca de uma arma. Ela nos mostrou
um Colt 45, que guardava na escrivaninha, e também uma licença
para usá-lo, mas afirmou que nunca usara um 32.
— Mais um ou dois pontos, Mrs. Loomis — pediu o Comissá-
rio. — A senhora fuma?
— Não muito — respondeu ela, mostrando-se surpreendida.
— Uns cigarros de vez em quando.
— Fumou enquanto esteve no escritório de Holcombe? — per-
guntou o Comissário.
— Não, senhor.
— Sobre o homem que a senhora disse ter visto no corredor.
Pode lembrar-se de alguma coisa mais sobre êle? Era alto ou bai-
xo?
Ela hesitou.
— Creio que não era alto. Mas não me lembro bem. Foi ape-
nas um relance.
— Mrs. Loomis, não vou prendê-la desta vez, mas a senhora
deve compreender que se colocou muito mal, não comunicando
este crime — disse Stotter. — Agora a senhora vai para a sua casa
32
e lá permanecerá até que possamos ver em que pé ficam as coisas.
Amanhã saberá qualquer coisa.
— Muito. Mas eu lhe disse a verdade. Toda a verdade. É tudo
o que eu sei.
De volta ao escritório de Holcombe, na Prefeitura, Stotter dis-
se:
— Para mim a história de Mrs. Loomis parece verdadeira.
Pessoalmente, neste momento estou mais interessado em Kreedlin.
Êle estava bem perto quando Holcombe levou o tiro. Êle tinha
ciúmes de Holcombe. E se estava tentando evitar a propagação do
caso de Long Park, tinha um forte motivo para o crime.
— O que diz a respeito de Kreedlin é verdade, Inspetor —
disse Harris. — Mas há um ponto que me atormenta. Duvido que
êle seja um atirador tão bom que consiga acertar na têmpora de
Holcombe, a uma distância considerável, para não deixar nenhum
vestígio de queimadura de pólvora. Mas. Mrs. Loomis poderia tê-lo
feito.
— O motivo dela não é bastante forte — comentou Stotter.
— Não sei — disse Harris. — As chuvaradas de Holcombe es-
tavam arruinando-a. Ela ficou desesperada por causa do negócio.
E ela já conhecera o lado árduo da vida, isto bem se pode ver. Um
crime não seria muita coisa para ela embora o fosse para muitos
homens. Ela falou com Holcombe, e não ficou satisfeita. Pois bem,
levantou-se e foi até a porta. Naquele instante êle virou a cabeça,
talvez para apanhar algum papel, ou o telefone. Ela retirou um re-
vólver, e a uns quinze passos, alvejou-o na fonte. Para ela isto teria
sido uma canja. Depois, foi embora.
— Holcombe era do tipo de homens que se levantariam quan-
do uma dama fosse sair do escritório. Neste caso, êle não teria vira-
do a cabeça, e não teria sido encontrado à escrívaninha, debruçado
sobre ela, — comentou o Comissário.
— Talvez dessa vez não se tivesse levantado — falou Harris.
— Talvez não tivesse gostado da atitude dela. Para mim, o impor-
tante é que ela tem habilidade de atirar, tem o motivo e qualidade.
De um certo modo, ela estava lutando pelos filhos. Tal qual o faria
uma leoa. Ela seria capaz de eliminar Holcombe, se achasse que a
morte dele pudesse lhe trazer algum benefício, como por exemplo
33
o de impedir que o Banco lhe fechasse as portas, ou para salvar o
parque, ou ainda, se isto trouxesse conforto aos seus filhos. Além
disso, creio que aquela história de ter visto alguém na sua frente,
no corredor, não passa de invenção.
— Você está de acordo com isto, Babe? — perguntou-me o
Comissário.
— Não, senhor. Para mim foi Coletti. Segundo imagino, pro-
vavelmente Holcombe ameaçou espalhar a proposta de Coletti aos
jornais, ou quem sabe, às autoridades das corridas. Isto teria dei-
xado Coletti em ridículo, e isto é uma coisa que aquele sujeito não
poderia tolerar. Êle não precisaria nenhum outro motivo. Êle é do
tipo que mataria logo um camarada, se achasse que poderia sair-se
bem. Não daria oportunidades a Holcombe para fazê-lo alvo de cha-
cotas. Talvez fingisse que ia sair, desse uma espiada no vestíbulo,
visse que não havia ninguém, voltasse ao escritório e atirasse em
Holcombe. Havia bastante barulho na rua, devido ao trânsito, de
modo que se Kreedlin ouvisse o tiro, julgaria tratar-se da descarga
de algum caminhão, e não daria muita importância. Depois Coletti
saiu, e ninguém o viu.
— E o homem que Mrs. Loomis viu, levando uma valisa? —
indagou o Comissário.
— Se é que houve tal homem — continuei — talvez fosse
qualquer funcionário que ficasse trabalhando até tarde.
— Não sei — confessou o Comissário. — Coletti foi bastante
convincente quando falamos com êle.
— Uma farsa — insisti. — Provavelmente êle estava até rindo
por dentro, de ter deixado um assassinato nas suas mãos e nas do
Prefeito, numa ocasião tão inoportuna como esta. A meu ver, se
investigássemos bem o álibi de Coletti, veríamos que êle esteve com
Holcombe mais tarde do que nos disse, e que chegou ao Papagaio
Vermelho depois das sete horas. Um daqueles vermes que pululam
naquele antro, talvez desembuche qualquer coisa, se apertarmos
com êle.
O Comissário sacudiu a cabeça.
— Não estou convencido — disse êle. — Há alguns pontos
que eu gostaria de ver esclarecidos. Um deles é aquele risco no
caixilho da porta.
34
Stotter levantou as sobrancelhas, mas o Comissário prosse-
guiu.
— O outro ponto, é o espirro que Kreedlin ouviu. Deve ter sido
um espirro muito alto, se é que êle ouviu através da porta. A propó-
sito, já chegou algum resultado do departamento de balística?
— Já vamos saber — disse Harris, encamínhando-se para o
telefone. Pouco depois largou o fone ao Comissário:
— Pelo menos já temos alguma coisa definida. O departa-
mento informou que a bala que matou Holcombe, foi disparada por
um revólver munido de silenciador.
— Bom — disse Stotter. Como eu já dissera, êle era um es-
pertalhão.
—- Isto explicaria o espirro. Para Kreedlin talvez o tiro soasse
como um espirro. Mas isto não quer dizer que êle não atirou em
Holcombe, Poderia muito bem fingir que ouvira o tiro do lado de
fora da porta, e assim, despistar.
— O silenciador reduziria a velocidade da bala — disse o Co-
missário — e talvez seja por isto que ela não atravessou o crânio de
Holcombe. E também seria uma arma muito grande para carregar.
Junte ao fato, alguém desaparecendo com uma valisa, e o que é
que você conclui?
-— Comissário — disse Stotter, todo excitado — é isto! Quer
dizer que Mrs. Loomis estava dizendo a verdade. Cada vez se torna
mais e mais claro que o homem que ela viu foi Kreedlin. Tudo o
que nos resta fazer é encontrar a arma, e desmentir a história de
Kreedlin.
— Talvez — respondeu o Comissário.
— Comissário, se o senhor concordar, eu gostaria de pedir
ao Juiz Rosen um mandado de busca à casa de Kreedlin. E se o
senhor não precisa de Harris, seria bom que ele me acompanhasse,
para comandar a busca. Faremos um teste de nitrato na mão de
Kreedlin, embora supondo que tenha usado luvas. Em todo o caso,
se êle tiver a tal arma, ou alguma falha na sua história, sabere-
mos encontrá-la. Êle representa a única oportunidade que temos
de esclarecer as coisas esta noite. Dá-me permissão de prosseguir,
senhor?
O Comissário ficou em dúvida, mas afinal disse que sim.
35
Pareceu-me que o Comissário queria ficar sozinho, excetuan-
do-se a mim, é claro. Tornou a sentar-se na cadeira de Holcombe,
e depois levantou-se, foi até a porta e olhou para o tênue risco.
Parecia fasciná-lo.
Daí a um pouco êle falou:
— Babe, como é que um homem faz um risco horizontal dês-
tes, com um cigarro? — Êle falou comigo, mas eu percebi que esta-
va apenas pensando em voz alta, portanto, não respondi.
— Deve ter sido um cigarro — continuou êle. — Um charuto
deixaria um friso mais largo. As chances são de que foi feito hoje.
Creio que podemos supor assim. Parece recente. Se estivesse aí há
vários dias, com a porta abrindo e fechando, e sacudindo o caixilho
todas as vezes, os grânulos de cinza teriam se desprendido e caído
ao chão, e o sinal estaria muito mais apagado. Além disto, Mrs.
Barkowsky limpou a porta no sábado. Domingo ninguém esteve
aqui. Holcombe fumava cachimbo. Segundo Maxine Austin, não
tiveram visitas hoje.
— Ela fuma cigarros — sugeri.
Êle sacudiu a cabeça.
— Ela não tem mais de cinco pés e duas polegadas. Teria que
estar segurando o cigarro acima da cabeça, para fazer um risco
desta altura. Não, Babe, parece realmente que esta marca foi feita
por alguém que entrou aqui depois que Miss Austin saiu, às cinco
horas.
— Sei o que o senhor quer dizer.
— Isto me aborrece. Num caso onde não haja pistas diretas,
não se pode negligenciar nenhuma circunstância incomum, mes-
mo que pareça pueril. Como foi que esta marca chegou aí?
— Não sei — confessei.
— Ninguém levaria um cigarro na mão, à esta altura. Com
certeza estava na boca de alguém que entrou aqui depois das cin-
co, esta tarde. Quem? Holcombe só fumava cachimbo. Coletti fuma
charutos. Mrs. Loomis disse que às vezes fuma cigarros, e que não
fumou neste escritório. Se ela estava falando a verdade sobre este
ponto, significa que alguém mais visitou Holcombe, além dos três.
— Chefe — disse-lhe eu. — Isto é bom.
Àquela era a primeira vez que eu o via bancando o Sherlock
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Holmes, mas podia ver que estava gostando.
— Se o nosso raciocínio está certo — disse êle — podemos
imaginar um homem — ou uma mulher — talvez uma pessoa de-
sesperada, um assassino, entrando por esta porta, com um cigarro
à boca, e roçando-o contra o caixilho. O risco está a três polegadas
acima da minha boca. Tenho cinco pés e seis polegadas. Isto sugere
um homem de cinco pés e nove polegadas.
— Kreedlin! — exclamei. — É mais ou menos a altura dele e
é um viciado no fumo.
O Comissário esfregou o queixo.
— Como você disse, Kreedlin é o suspeito. E assim mesmo,
Babe, quantas vezes um homem, de cigarro à boca, encosta-o ao
caixilho da porta? Encosta-o com força, para deixar um risco? Nes-
se caso, a pessoa teria que ser muito vacilante em seus passos, não
acha você, para estar tão sem equilíbrio?
—— Talvez Kreedlin tivesse tomado alguns traguínhos para
ter coragem de eliminar Holcombe. Ou talvez êle tivesse lutado com
Holcombe...
O Comissário sacudiu a cabeça.
— Kreedlin não gostava de Holcombe, poderia estar com
medo dele por causa do irmão, mas não me deu a impressão de ser
capaz de um desespero que leva um homem a matar. Minha crença
é que estamos procurando por um homem desesperadíssimo e que
tivesse um motivo muito poderoso.
— Não sei, não — disse eu.
Olhamos para o risco.
— Vamos pensar novamente — disse-me êle. — Suponhamos
um homem que tivesse aberto só uma fresta da porta para olhar
o corredor? E estivesse com um cigarro na boca? E se esquecesse
que o mesmo estava ali? Assim — acendeu um cigarro, soltou al-
gumas baforadas, entreabriu a porta, olhou para fora, e encostou-o
de encontro ao lado da porta. Sobre a pintura branca apareceu um
risco estreito, três polegadas abaixo do outro.
— O senhor acertou! Mrs. Loomis! Ela tinha um motivo, como
disse o Tenente Harris. Ela admitiu que abrira a porta para olhar
o corredor. Ela é uma mulher alta e seria ali mesmo que o cigarro
dela deixaria a marca.
37
— Mrs. Loomis —- repetiu o Comissário para si mesmo. Vol-
tou para a cadeira de Holcombe, abriu as gavetas da escrivaninha.
Logo deparou com um maço de cigarros, quase cheio.
— É possível — disse êle. — Talvez Holcombe guardasse estes
para oferecê-los às visitas. Curioso, mas eu tive que virar a cabeça
para deixar aquela marca. Isto não é natural. Geralmente um fu-
mante carrega um cigarro como se fosse parte de si mesmo.
— Mrs. Loomis não está habituada a cigarros — informei.
— Se Holcombe ofereceu-lhe um, e ela aceitou para ser polida, e
depois alvejou-o e abriu a porta para olhar para fora. . .
— Talvez. Poderia ter sido assim — disse o Comissário, reclí-
nando-se na cadeira e olhando para o teto. Calei-me e fiquei espe-
rando. Pus-me a imaginar como estaria Stotter se arranjando com
Kreedlin, mas minha aposta agora estava em Vera Loomis. Embora
não me agradasse a idéia de que ela fosse uma assassina, não po-
dia compreender por que o Comissário não mandava buscá-la para
assim se resolver tudo. Daí a pouco senti-me aborrecido e fui até à
janela e olhei para o céu coberto de nuvens. Isto também tornou-
me tedioso e resolvi lembrar ao Comissário a razão da nossa visita
ali.
— O senhor acha que vai chover amanhã sem a ajuda do Dr.
Holcombe? — perguntei.
O Comissário não respondeu, mas depois de uns cinco se-
gundos estremeceu e indagou:
— Que foi que você disse, Babe?
— Eu estava apenas imaginando se amanhã iria chover, sem
que para isso o Dr. Holcombe usasse o seu processo de gelo seco.
— Foi o que pensei ter ouvido. Muito obrigado, Babe.
— Por quê?
— Por me dar a pista de que eu necessitava — disse êle.
Mas não parecia ter ficado satisfeito com isto. No seu rosto havia
uma expressão sombria. Ficou a pensar por um instante e depois
falou:
— Penso que chegou a hora de prestarmos declarações ao
Prefeito. Êle deve estar ansioso para saber qualquer coisa.
Atravessamos os corredores, em direção ao grande escritório
de Johnny Connors. Quando batemos, o Prefeito falou:
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—- Entre.
Era uma sala enorme, com a bandeira americana hasteada
num mastro de bronze, ao lado da escrivaninha, sendo que do ou-
tro lado da mesma estava a bandeira da cidade. Havia um tapete
grosso, quadros na parede; sofás de couro, etc. Johnny estava sen-
tado lá, junto com Thompson, e estavam trabalhando num papel.
Ambos pareciam pálidos e cansados.
— Danny! — exclamou o Prefeito. -— Solucionou? Já pren-
deu alguém?
— Não, Sr. Prefeito. Creio que estamos na pista, mas ainda é
cedo para efetuar prisões.
— Quanto tempo ainda levará? — perguntou o Prefeito.
— Tudo estará terminado dentro de algumas horas -— disse-
lhe o Comissário.
— Não podemos esperar tanto, antes de dar a notícia à im-
prensa. Ficando nesse pé, seremos criticados por termos silenciado
o caso. — Voltou-se para Thompson. — É melhor deixar sair assim
mesmo — disse êle.
— Deixe que apareça.
— Está bem, Johnny — disse Thompson, pegando o papel e
saindo.
— Estou exausto — disse o Prefeito, bocejando. — Estive fa-
lando em reuniões políticas desde as quatro horas da tarde. Graças
a Deus que amanhã não haverá discursos. Creio que é melhor ir
para casa e ler os relatórios antes de dormir.
— Dizendo isto começou a retirar alguns papéis da escrivani-
nha e colocá-los na sua grande pasta, e ao mesmo tempo falando:
— Quem foi, Danny? Quem matou Holcombe?
— Ainda persiste um elemento de suposição em nossas idéias
— disse o Comissário.
Johnny Connors sacudiu a cabeça com desapontamento, fe-
chou a pasta, colocou-a no chão, atravessou a sala, foi até o porta-
chapéus, e vestiu o sobretudo e o chapéu. O Comissário levantou-
se, também, pegou na pasta, como se a fosse levar para o Prefeito.
Mas eu percebi que êle a estava examinando com cuidado, e depois
de alguns segundos, pôs o dedo num buraquinho perto do fundo
da pasta, numa das pontas, onde ficavam as pregas em foles. O
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Prefeito não deu pela coisa, porque estava ocupado em colocar ou-
tro cigarro na piteira. Disse com impaciência:
— Bem, e quem é que a sua suposição escolheu como assas-
sino?
— O senhor, Prefeito, — disse o Comissário.
A princípio julguei não ter ouvido bem. Em seguida Johnny
Connors disse, muito calmo:
— Você ficou louco, Danny?
— Talvez — disse o Comissário, — Vou lhe dizer o que pen-
so a respeito deste crime, e então, se eu estiver enganado, poderá
despedir-me e terá todo o direito de fazê-lo.
— Trata-se de uma brincadeira, não, Danny? — indagou o
Prefeito, cheio de esperanças. — Mesmo que seja, é de muito mau
gosto; estamos todos cansados e fora de nós, esta noite, portanto,
vamos esquecer isto tudo e não falaremos mais no caso.
— Gostaria muito que fosse apenas uma brincadeira — disse
o Comissário.
O rosto de Johnny ficou vermelho e êle disse:
— Eu o despediria agora mesmo, se não me desse conta de
que você é um homem velho e cansado, e que não está completa-
mente certo da responsabilidade do que está dizendo. Que diabo
quer você dizer com esta bobagem?
— Tem razão — exclamou o Comissário. — Estou cansado
e sou velho. Gostaria de ter-me demitido deste emprego há muito
tempo. Mas, Sr. Prefeito, agora que já chegamos até aqui, sente-se
e deixe-me explicar.
Johnny hesitou, olhou para o relógio e disse por fim:
— Dar-lhe-ei cinco minutos — e sentou-se à escrivaninha.
— Não demorarei muito. Há um pequeno risco de cinza de
cigarro no painel branco da porta, no escritório de Holcombe. Te-
nho certeza de que foi feito pelo assassino, quando olhava para
fora, para ver se a costa estava livre. Por um tempo eu julguei que
deveria ter sido feito por um homem umas três polegadas mais
alto do que eu ou o senhor. Depois lembrei-me da sua piteira, que
o distingue dos outros. Segundo o modo como o senhor sempre a
usa, a ponta do cigarro fica a três polegadas acima da sua boca.
E naturalmente, estas piteiras são incômodas para usar na fresta
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de uma porta. Na verdade, seria quase impossível para um homem
deixar uma marca daquelas, sem uma piteira, a menos que tentas-
se deliberadamente fazê-lo.
— Meu Deus! — exclamou Johnny Connors. — E eu que pen-
sei que você entendesse do seu negócio! Que espécie de policial é
você? Isto é evidência?
— Não — concordou o Comissário — mas é sugestivo. Siga o
meu pensamento e eu lhe darei evidência. Sabemos que a bala que
matou Holcombe, saiu de um revólver munido de um silenciador.
Assim equipada a arma fica grande demais para ser carregada num
bolso ou num coldre. O assassino tinha que trazê-la escondida
num invólucro grande, de qualquer espécie. Se Holcombe tivesse
visto a arma, teria lutado, e não há sinais disso. Em vista disso, te-
mos que supor que o assassino manteve o revólver escondido todo
o tempo em que esteve com Holcombe. É possível que tenha atirado
de dentro do próprio invólucro — que era uma pasta, segundo as
minhas suspeitas. Foi por isto que não encontraram pólvora no
rosto de Holcombe. Segundo eu penso, o assassino estava parado
ao lado de Holcombe, com a boca do revólver a algumas polegadas
da cabeça de Holcombe, e ao pretextar retirar alguns papeis da
pasta, puxou o gatilho. Logo em seguida, um homem saiu apressa-
damente do escritório de Holcombe. Não era um homem alto — e
a pessoa que o viu pensou que poderia ter sido até uma mulher de
slacks. Raros eão os homens que têm uma figura elegante, ou que
usam roupas tão apertadas que façam lembrar, mesmo de leve, o
corpo de uma mulher. Este homem levava qualquer coisa seme-
lhante a uma pequena valisa, mas que, no caso, poderia ser uma
pasta grande.
— E daí? — perguntou o Prefeito, olhando diretamente nos
olhos do Comissário. — Você está perdendo tempo. Fêz uma acu-
sação idiota. Prove, ou cale-se.
— Esta sua pasta grande — disse o Comissário — tem um
buraquinho perto do fundo, bem onde deveria estar, caso um revól-
ver fosse disparado de dentro dela.
O Prefeito riu, mas foi uma risada nervosa.
— Um buraquinho na minha velha pasta — disse êle — e isto
me torna um assassino.
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— Não somente isto — continuou o Comissário. — Mas se
examinarmos o interior da pasta e encontrarmos vestígios de pól-
vora em volta do orifício, isto nos aproximaria mais, não é?
— Isto está indo muito longe — disse Johnny. — Minha pa-
ciência tem limites. Dê-me a minha pasta. Vou para casa. Na qua-
lidade de Prefeito, falando para o seu Comissário de Polícia, estou
desapontado com você. Com toda esta conversa à-toa, você não
sugeriu nem mesmo um motivo ou uma evidência. Amanhã trata-
remos da sua demissão.
— Um momento — disse o Comissário. — O motivo. Isto atra-
palhou-me, confesso. A não ser que se tratasse de um criminoso
inveterado, o assassino poderia ser um homern desesperado. E o
que levaria qualquer pessoa a tal desespero para matar Holcombe?
Nada que eu pudesse imaginar tinha sentido, até que Babe pergun-
tou se amanhã choveria sem a intervenção de Holcombe.
— E que tem isto agora a ver com tudo? Decididamente você
ficou louco — disse o Prefeito.
— O senhor acreditou em Holcombe — prosseguiu o Comis-
sário com firmeza. — Sabia que êle estava planejando voar ama-
nhã, e que êle esperava fazer cair uma chuva prolongada. O senhor
não podia suportar a idéia de ter chuva no Dia da Eleição, com as
corridas paralisadas, cada voto valia muito, e com chuva a comis-
são ficaria aborrecida. Uma chuvarada seria a sua ruína certa. Sua
única esperança era ter muitos votos, e a chuva sempre mantém
muitos eleitores longe das urnas.
— Seu idiota — disse Johnny, tornando-se furioso. — Pensa
que eu seria capaz de cometer um crime por alguns milhares de
votos? Julga que eu assassinaria um ótimo rapaz como Holcombe,
ou qualquer outro, por política? Pensa que se eu tencionasse as-
sassinar alguém, eu mesmo praticaria tal delito? Imagina que eu
iria matar um homem na véspera das eleições, quando uma notícia
má poderia arruinar-me? Você não diz coisa com coisa, Danny.
O Comissário conservou-se silencioso por uns instantes. De-
pois falou, muito devagar:
— O senhor precisa vencer nesta eleição. Certas coisas ruins
têm sido encobertas na sua administração. Caso vença a oposição,
ela poderá desvendar alguns escândalos que o arruinariam.
42
O Prefeito olhou para êk:
— Você está de fato me acusando de assassino — disse êle,
como se não pudesse acreditar.
— Holcombe era um problema para o senhor — continuou o
Comissário. — Sem dúvida pediu-lhe, gentilmente, que não voas-
se amanhã. E depois, verificando que êle não ligava importância
à sua eleição, e não queria suspender o seu trabalho pela cidade
— achando-se apenas um cientista honesto, que tentava executar
o que fora incumbido de fazer pelo povo. Por detrás daquela ma-
neira amigável, êle tinha um ideal rígido e aferrado, que o senhor
não esperava encontrar. Êle estava sendo pago para fazer chuva,
portanto, toda a vez que havia bastante nuvens no céu, subia e
espalhava gelo nelas — sem olhar para quem gostasse ou não. Pro-
vavelmente êle lhe disse o mesmo que já dissera aos outros: que se
uma vez começasse a ceder a qualquer pressão, de qualquer fonte,
não teria mais fim. As nuvens estavam se aglomerando esta noite,
assim, êle planejava voar amanhã para encher os reservatórios, e
não deixaria que a política interferisse. Assim êle pensava, e deve
ter sido isto o que êle disse, principalmente por não estar ao seu
lado, politicamente.
— Continue — disse o Prefeito. — É uma boa história. Talvez
possa se fazer na vida, escrevendo histórias de mistério, depois que
fôr despedido.
O Comissário suspirou:
— Holcombe estava esperando em seu escritório — talvez ti-
vessem pedido para que êle esperasse. O revólver foi para dentro
da pasta. Tenho ódio só em pensar no estado de espírito que levou
a pessoa a aprontar aquela arma, adaptando-lhe o silenciador. O
edifício estava vazio, ou pelo menos, parecia. De qualquer forma
o assassino tinha que se arriscar a ser visto. Estava desesperado.
Talvez tenha feito uma última tentativa para persuadir Holcombe e
então, nada conseguindo, alvejou-o.
— Já ouvi bastante — disse o Prefeito.
— Creio que não — retrucou o Comissário. — Talvez esteja
interessado em saber que o assassino teve uma escapada muito
mais curta do que pensou, porque um homem passou pela porta
pouco antes que êle puxasse o gatilho. Depois o criminoso apa-
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nhou a cápsula vazia, apagou a luz, abriu a porta e olhou para fora.
Foi aí que o cigarro, colocado numa longa piteira, deixou a marca.
Creio que esta é a pior cena do crime, Sr. Prefeito — um assassino
olhando pela porta, e usando a piteira da maneira habitual: num
dos cantos da boca.
O Prefeito umedeceu os lábios, mas não disse nada. Olhava
para o Comissário como se estivesse hipnotizado.
— O vestíbulo estava vazio — continuou o Comissário. — O
criminoso limpou a maçaneta e o comutador da luz, deixou a sala e
apressou-se a sair. Não percebeu que atrás dêle uma mulher apa-
recera no corredor e o vira antes dêle dobrar a esquina do mesmo.
— Ela não me poderia ter visto — disse o Prefeito, e sua voz
estava áspera pela primeira vez. — Eu não estava lá.
— Não? — perguntou o Comissário. — De toda a maneira,
está é uma exposição crua de como o crime foi praticado, Sr. Pre-
feito.
O Prefeito fêz uma profunda inspiraçâo, e quando falou, o
seu antigo tom voltara-lhe à voz:
— É tempo de terminar com esta bobagem. Existe um erro
fatal na sua bela história. Acontece que até saber da morte de Hol-
combe, não estive na Prefeitura desde as quatro da tarde, quando
falei numa sessão na cidade alta. Desde então estive sempre com
outras pessoas. Cada minuto do meu tempo pode ser identificado.
Não matei Holcombe, e se você fôr bastante louco para me exigir
um álibi, poderei fazê-lo.
O Comissário aquiesceu:
— Era isto o que eu queria ouvi-lo dizer. Acredito. Deu-me o
último argumento de que eu precisava.
— Que quer dizer? — perguntou o Prefeito.
— Uma das coisas que me amarraram neste caso — disse o
Comissário — á que o crime estava fora de cogitação para o senhor.
Sempre o considerei um homem fundamentalmente bom e decente.
Não podia imaginá-lo assassinando deliberadamente um homem
bom, por um motivo egoísta.
— Bem, então. . . — disse o Prefeito.
— Se o senhor não matou Holcombe — prosseguiu o Comis-
sário — então foi alguém cujo cigarro deixaria uma marca da altura
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do seu. É uma farra dentro da Prefeitura como Lloyd Thompson o
imita em tudo: o modo como o senhor fuma, ou como se veste. De
costas, êle tem a sua mesma aparência elegante. Êle utiliza tam-
bém a sua pasta. Tinha um motivo muito mais poderoso do que o
seu.
— Deixe o Tommy fora disto — disse o Prefeito. — Você não
tem mais evidência contra êle do que tem contra mim.
O Comissário continuou, como se não tivesse ouvido:
— A derrota nesta eleição teria sido talvez pior para Thomp-
son do que para o senhor. Considero que o senhor é um homem
honesto, mas não é segredo para ninguém que anda rodeado por
homens envolvidos em trapaças. A sua lealdade para com os ami-
gos teria sido muito adequada a qualquer outro cargo, menos ao
seu. Creio que agora ela o arruinou.
— Você acha. . . você pensa! — ironizou Johnny Connors. —
Suspeitas e mais suspeitas. Onde estão os fatos?
— Sim — concordou o Comissário. — Ainda não temos bas-
tante fatos. Ainda não tive tempo de descobrir se foi Thompson
quem trouxe Holcombe para o seu serviço, mas creio que sabere-
mos que êle era uma importante relação de Kreedlin. Ainda não tive
tempo de descobrir o que Thompson e Kreedlin estavam querendo
encobrir na construção do reservatório de Long Park, mas creio que
descobrirei que era alguma coisa escandalosa e ao mesmo tempo
perigosa para Thompson, bem como para a Companhia Kreedlin;
alguma coisa que poderia mandá-los para a cadeia. Talvez não nos
seja possível provar, mas minha suposição é de que foi Thomp-
son quem telefonou para Holcombe, falando sobre o reservatório de
Long Park, esta tarde, e tentou dissuadi-lo. Talvez tenha sido en-
tão, quando Holcombe recusou-se a aceitar a pressão, que Thomp-
son decidiu que êle devia morrer, antes que surgisse o escândalo.
Este motivo passou-me pela cabeça, bem cedo. Mas eu não podia
imaginar porque Thompson assassinaria Holcombe na véspera da
eleição, quando isto poderia afetar as suas chances de ser reeleito,
Sr. Prefeito. Não poderia esperar mais um dia, até que o senhor
voltasse para o seu posto? Então aquela pergunta de Babe fêz-me
lembrar de outro motivo, e que requeria ação imediata: caso cho-
vesse amanhã, isso causaria a sua derrota.
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O Prefeito acendeu um cigarro, e sua mão estava trêmula.
— Tommy esteve comigo na cidade toda a tarde.
— Sem dúvida — prontificou-se o Comissário. —- O crime foi
cometido por volta da hora em que o senhor tinha ido para casa, a
fim de trocar de roupa para a reunião desta noite. Creio que foi aí
que Thompson voltou à Prefeitura, trazendo a sua pasta, e cometeu
o assassinato. Com Holcombe fora do caminho, e não contando
com uma chuva natural amanhã — e isto êle tinha que aguardar
com ansiedade — êle pensava que o senhor venceria nas eleições.
Na realidade, não supôs que a notícia do crime afetaria a confiança
que os eleitores depositavam no senhor. Ao contrário, iria convertê-
lo numa publicidade de última hora, e usá-lo como método para
conquistar para o senhor a simpatia do povo. Uma vez que o se-
nhor fosse reeleito, êle poderia recobrar-se no caso Kreedlin.
— Você não provou nada — disse Johnny Connorg.
— Ainda encobrindo-o? Mesmo num crime? -— perguntou
o Comissário. — Eis como eu vejo Thompson depois do crime, Sr.
Prefeito. Êle devia estar preocupado, sem saber o que fazer com a
arma. Suspeito que a tenha conservado dentro da sua pasta du-
rante toda a reunião desta noite. Andou com a pasta sempre agar-
rada, mesmo quando foi até a sala fumar. Isso lhe parecia muito
mais seguro do que esconder o revólver. Oh, Thompson foi inteli-
gente: quem se atreveria a examinar a pasta do Prefeito, à procura
da arma do crime? Se o senhor quisesse algum papel da pasta,
êle apenas os alcançaria. Sem dúvida êle ainda trazia a pasta que
continha a arma, debaixo do seu sobretudo, quando o senhor foi
até ao escritório de Holcombe esta noite. Não posso crer que o se-
nhor soubesse disto, então. Parecia dizer a verdade, quando pediu
a imediata prisão do rato que matara Holcombe. Talvez Thompson
só lhe tivesse confessado, depois que ficaram a sós, no seu escritó-
rio. Talvez o senhor tivesse visto a arma dentro da pasta. Ou talvez
êle lhe contasse voluntariamente o que tinha feito, porque contava
com a sua lealdade pessoal para protegê-lo, e mesmo porque, nisto
tudo está o seu próprio interesse. Êle sabia que se fosse preso, o
escândalo o arrastaria com êle. E a primeira coisa que necessitava
era um bom esconderijo para o revólver.
O rosto do Prefeito estava cinzento.
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— Tudo isto é uma rede de suposições. Onde está a sua pro-
va?
— O revólver não está mais na pasta — disse o Comissário,
olhando em volta do escritório — e Thompson não o estava carre-
gando quando saiu do escritório há pouco. Far-lhe-ei uma proposta
amigável. Dê a pasta a Babe, e dê-me as chaves, e deixe-nos revis-
tar o seu escritório. Se não encontrarmos vestígios de pólvora quei-
mada dentro da pasta, e se não encontrarmos a arma, confessarei
que não posso provar nada, e pedirei demissão, e pronto.
— Por que deverei me submeter a isto? — perguntou o Prefei-
to. — É um insulto ao meu escritório.
— O senhor pode recusar — disse o Comissário — mas en-
tão terei que deixar Babe aqui, para ter a certeza de que o senhor
não levará a pasta e o revólver, e direi aos rapazes que prendam
Thompson, e consigam um mandado de busca. E se os repórteres
me perguntarem por que estou pedindo uma ordem para revistar o
seu escritório, terei que dar-lhes os motivos.
— Chantagem! — exclamou o Prefeito. Colocou outro cigarro
na piteira e acendeu-o. Sua mão estava trêmula, mas ainda con-
servava a piteira na mesma posição oblíqua.
— Danny — disse êle depois de alguns segundos — não me
diga que você é outro Holcombe. Não me venha com uma porção
de bobagens acerca do serviço público, nem do seu dever. Você
me deve alguma coisa. Fiz de você o que é hoje. O partido tem que
vencer amanhã. Você me deve lealdade, portanto, espero que não
continue com isto. Você e eu estamos metidos em muita coisa.
Lembre-se, se eu cair, você cairá também.
O Comissário não disse nada, só ficou olhando para êle com
firmeza e daí a um instante Johnny Connors estendeu as mãos:
— Está bem — disse êle. — Você venceu. Não precisa procu-
rar.
Abriu uma gaveta da sua grande escrivaninha, uma que ne-
cessitava de duas chaves para abri-la, e retirou um Smith e Wes-
son com um silenciador adaptado.
O Comissário levantou-se: —- Então é tudo. Diremos aos ra-
pazes que prendam Thompson.
— Um momento — pediu.o Prefeito. — Isto me liquidará. Não
47
tenho calma suficiente para aturar a sujeira que virá. Não há nada
que eu possa fazer por Tommy — e Mrs. Connors está morta. . . —
êle ínterrompeu-se e disse:
— Você foi sempre um bom amigo, Danny.
O Comissário ficou ali parado, pensando.
— Sou apenas um policial — disse êle por fim — e não é da
minha conta fazer julgamento morais, mas compreendo o que quer
dizer.
Quando eu ia me aproximar da arma para apanhá-la, o Co-
missário afastou-me.
— Obrigado, Danny.
— Está bem — disse o Comissário. — Vamos, Babe.
Comecei a fazer objeção, mas êle me interrompeu e dirigimo-
nos para a porta.
— Adeus, Danny — disse o Prefeito.
— Adeus, Johnny — disse o Comissário, e foi aquela a única
vez que eu o ouvi chamar o Prefeito de Johnny.
Saímos para o vestíbulo, fechando a porta atrás de nós. O
Comissário ficou quieto, esfregando o queixo com a mão e pare-
cendo muito triste. Depois de alguns segundos ouvimos um ruído
como se fosse um espirro no escritório do Prefeito.
— Eu gostava dêle — disse o Comissário. — Mas agora gosto
dêle mais do que nunca.
48
Se você conhece esta, então nada feito. . .
Quando MacKinlay Kantor veiu para Nova York em 1931 ou
1932 ainda mantinha no carro uma placa do Estado de Iowa, Uma
vez, quando dirigia pelas proximidades do Holland Tunnel, seu carro
foi detido por um pelotão inteiro de polícias de Jersey City que revis-
taram tanto o carro como Mr. Kantor com uma meticulosidade que
somente poderia ser encontrada num romance de ficção. Mr. Kantor
perguntou-lhes se andavam a procura de um carro roubado. Não,
mas a verdade é que andavam a procura de um homem, um homem
perigoso. (Era naqueles dias que Dilinger e outros bandidos anda-
vam às soltas pelo país afora).
Cerca de um ano mais tarde, MacKinlay Kantor se havia tor-
nado um assíduo colaborador da revista “Detective Fiction Weekly”.
Uma noite, quando saia de automóvel de Nova York, Mr. Kantor co-
meteu uma pequena infração dos regulamentos do tráfego (e quem
poderia censurar-lhe por isto depois de conhecer o tráfego de New
Jersey?), fazendo com que lhe caísse em cima outro batalhão de po-
lícias de Jersey City. Mais uma vez fizeram Mr. Kantor sair do carro
e realizaram uma busca em regra.
Aconteceu, porém, que vários dos polícias eram os mesmos
que haviam detido Mr. Kantor um ano antes, e quando “Mac” se
identificou, os zelosos policiais, com suas memórias fotográficas,
lembraram-se dele. Além disso, conheciam Mr. Kantor muito bem.
Como é fácil de imaginar, durante o ano anterior, haviam fica-
do conhecendo Mr. Kantor através das páginas da revista. Todos,
sem exceção, eram maníacos por histórias de detetives, e gostavam
dos contos de Mr. Kantor. E foi assim que eles fizeram com que Mr.
Kantor se detivesse no posto policial, e passasse ali toda a noite a
49
ouvi-los contar-lhe suas experiências pessoais.
Eis aqui uma destas histórias reais, contadas petos próprios
policiais, e que causou tanto sucesso entre os detetives de verda-
de...
O POLICIAL “TICO-TICO”
MacKinlay Kantor
50
se exibisse no seu Cadillac. . .
Dave deu uma risadinha.. Seu companheiro, Pete MacMahon,
sorriu também para o jovem e atirou-lhe amistosamente um pali-
to.
-— Você sempre leva Dave a sério demais, garôto.
— E por que êle não acaba com esta história de “Tico-tico?”
Êle também já usou os arreios, no seu tempo.
— Mas não servindo no Jardim Zoológico — grunhiu Dave.
— E o que há de mal no Jardim Zoológico? Você acha que não
há necessidade de proteção policial nos parques?
— Há sim — concordou o irmão. — Afinal de contas a gente
nunca sabe as surpresas que os ursos podem pregar à gente. Po-
dem fugir e morder alguém. E já uma vez foi uma velha que caiu
de cabeça no lago. Além disso alguém poderá roubar a estátua do
General Sherman de seu pedestal diante do aquário, um dia des-
tes. E se algum fedelho se apresentar de nariz sujo, não se esqueça
de assoá-lo. Está nos regulamentos. Pràticamente, é como uma
postura municipal.
53
O homem de casaco marrom segurava a mulher, torcendo-
lhe os braços, enquanto ela se debatia.
— Amarra-a, Jack. Depois trataremos de abrir aqui por esta
dobradiça.
— Vocês podem matar-me — soluçou a mulher por entre os
dedos que lhe comprimiam a boca, — Podem matar-me... matar-
me...
66
IN VINO VERITAS
Lawrence G. Blochman
71
SÓ SE PODE SER ENFORCADO UMA VEZ...
Dashiell Hammett
88
O VASO GREGO
Valma Clark
91
dúvida, Nausica jogando bola com suas aías. Havia também outros
motivos clássicos: uma encantadora Afrodite cavalgando graciosa-
mente um forte cisne; ágeis Silênios saitítando numa gangorra. . .
A mitologia pagã, em confusão e confinada em tão pequeno
espaço, nesta casa de antigüidades de Nova Inglaterra. . . Estra-
nho!
Em meio à minha surpresa, meu olhar se deteve sobre outro
objeto, e meu sentimento transformou-se em verdadeira admira-
ção, aguçada ao ponto de se transmutar numa viva curiosidade a
respeito do artista que havia realizado obra de tão cativante beleza
com materiais tão grosseiros. Era uma pintura partida, como vê-
nus sem um dos braços. Representava Palas Atenas, e a cabeça
e os ombros de um jovem que para ela tocava uma flauta de dois
tubos. A cabeça da deusa, que usava ainda o elmo dos guerreiros,
inclinava-se como se estivesse a escutar a música, e sua atitude
era de lassidão e de quietude, depois de árduo combate.
Aquela pintura dava uma impressão geral de serenidade,
com linhas tranqüilas e naturais, mau grado as bordas ásperas e
irregulares que cortavam as figuras pouco acima da cintura. Até
certo ponto, ela possuía a dignidade e a sinceridade de uma obra
de arte religiosa. E então notei que havia outras Atenas idênticas,
que a pintura partida revelava em toda a metade dos apertadores
de livros.
— Mas sòmente um profundo conhecedor da mitologia grega,
e entusiasta, seria capaz de fazer isto!...
— Como disse, o senhor? — perguntou a jovem que atendia
a loja.
— Isto. Mas é notável! Quem é êle? Diga-me alguma coisa a
respeito. . . — supliquei-lhe impulsivamente.
— Não lhe posso dizer muito. Mora sozinho, na praia, e nos
traz isto para vender. Chama-se Twining. . . Twining o funileiro,
como dizem.
— Mas isto aqui... assim quebrado... que significa?
Ela sacudiu a cabeça.
— Êle nunca diz nada a respeito disso. Afirma apenas que
não tem o modelo do resto, e que seria um sacrilégio terminar os
desenhos sem as linhas verdadeiras.
92
— Hum. . . respeito e consciência. — murmurei eu, — o que
é bem raro hoje em dia. Fico com os dois apertadores. Quanto cus-
tam?
— Cinco dólares.
— E um par de ninfas — acrescentei, pois aquilo me parecia
absurdamente barato.
— Infelizmente temos sòmente um exemplar, que está sendo
usado para calçar a porta, como o senhor está vendo.
— Mas não é possível! Para calçar a porta! — lamentei. —
Mas eu usarei as minhas como apertadores de livros, e colocarei
entre elas os Poetas Românticos.
— Bem. . . — disse a moça, procurando subitamente reme-
diar a situação, — o senhor pode deixar conosco uma encomenda
para o Sr. Twining. Êle terá prazer em pintar-lhe a outra.
— Ou talvez eu mesmo possa fazer a encomenda diretamente
ao Sr. Twining — exclamei. — Estou com meu carro aí, e disponho
de tempo. Como é que se vai até a casa dele?
— Mas o senhor não poderá ir de carro. Deve seguir a es-
trada de areia até o fim e então tomar por um estreito atalho que
vai direito ao mar. Fica a cinco quilômetros adiante; não há outra
casa. . .
— Não tem importância. Me meti na cabeça que havia de
visitá-lo. Ah! mas vejo que a senhora não me aconselharia.
— Não é bem isto. . . É que o homem é uma espécie de eremí-
ta — disse ela, corno que hesitando. — É um ancião muito polido,
mas ninguém o visita.
— Pois então é tempo que alguém comece.
Agradeci-lhe, procurei uma hospedaria sossegada, estacionei
meu carro para passar a noite, e nas últimas horas da tarde co-
mecei o longo passeio em direção ao mar e a casa de Mr. Twining,
o funileiro.
Segui por um sendeiro de areia que se alongava como um tra-
ço de giz entre touceiras de arando silvestre, arbustos de roble do
campo e pinheiros, através de uma paisagem desolada. Finalmente
me encontrei, de súbito, em cima de alta penedia que se debruçava
sobre o Atlântico.
As nuvens embaciaram o firmamento, e ao invés da clarida-
93
de do poente, havia estranha luminosidade amarela pairando por
sobre todas as coisas.
O mar estava muito calmo, com tonalidades verdes e de púr-
pura desmaiada, e uma larga orla de espuma, abaixo do promontó-
rio onde eu me encontrava, tinha uma coloração acinzentada. Mais
acima, no alto da penedia, e muito próximo à borda, via-se uma
dessas casas de Cape, acaçapadas e batidas pelos ventos. Subi em
sua direção, e avançando com certo esforço por entre os arbustos
silvestres, cheguei até a porta dos fundos.
Então, tendo como fundo uma janela mais afastada que emol-
durava o mar e o céu, vi o perfil de um homem idoso, de cabelos
brancos.
Sentava-se numa banqueta de trabalho, e na mão, em boa
postura, tinha um pincel; mas não estava pintando. A cabeça man-
tinha-se erguida e o homem escutava. Parecia quase como se es-
tivesse escutando aquela estranha luminosidade amarela de que
todo o ar estava embebido. Chamou-me imediatamente a atenção
a extrema delicadeza e a expressão de sofrimento que lhe transpa-
reciam do rosto.
Bati à porta e o velho moveu-se.
— Boa-tarde — disse-lhe.
Êle se dirigiu vagarosamente para a porta.
— Na loja de antigüidades “Ao Ferrôlho Aberto”, disseram-me
que poderia encontrá-lo aqui. Gostaria que o senhor me conseguis-
se outro apertador de livros.
— Apertador de livros? — murmurou ele.
— Espero que o senhor não terá inconveniente em pintá-lo e
mandar entregar-me.
— Ah! sim — fêz o ancião, e não havia dúvida de que me
seguia apenas com os olhos, enquanto seu espírito continuava a
ouvir seus próprios pensamentos.
Comecei a ficar intrigado sobre como poderia despertar-lhe
atenção. Uma espécie de cheiro de coisas antigas parecia envolver
aquele homem, um cheiro que se evolava não somente de seu velho
e surrado traje preto, de um talhe fora de moda, mas igualmente
de suas maneiras e da própria inflexão de sua voz, como que rema-
nescente da antiga escola.
94
— As ninfas — insisti — uma das Nausicas.
Com isto sua atenção foi despertada:
— Ah! Nausica. . . então o senhor conhece?
— Sim, . . Creio que sim.
— Pois, em geral, isto não acontece; para o público comum
elas são apenas umas mocinhas brincando com uma bola -— e
o velho sorriu como se ouro puro emanasse de seus próprios so-
frimentos; era um sorriso diferente e amável que me conquistou
imediatamente.
— Terei prazer em pintar uma Nausica para o senhor —
acrescentou com formalidade, esperando que eu continuasse a
manifestar minha satisfação.
— Aqui está meu nome — disse-lhe eu — talvez o senhor qui-
sesse assentar o nome e endereço.
-— Sim, naturalmente. . . seu nome. — Docilmente, trouxe
um bloco de notas e um lápis, e com bonita letra erudita escreveu:
“Mr. Claude Van Nuys”, com o meu novo endereço em Nova York.
Com ar distraído, deixou-me que pagasse, e ficou pronto para
despedir-se,
Mas não arredava pé. — São Silênios, é a deusa com o cisne
é Afrodite, não é?
— Você já pode ser considerado aprovado na série A, meu
filho — disse o ancião, sorrindo.
— E aquela Palas Atenas. . . um trabalho esplêndido. En-
tretanto. . .
— A! Atenas! —- um tremor de pesar passou de leve sobre a
físionomia do velho, que se tomou novamente reticente e vago.
Eu teria desistido de continuar, se uma terrível e imprevista
lufada de vento não viesse em meu auxílio, levando em torno de
nós nuvens de areia.
— Puxa! — exclamei — cobrindo o rosto contra os impactos
de areia fina.
— Teremos temporal, não? — perguntei-lhe.
Mas fiquei como que boaquiaberto diante da expressão de
horror e de inalterável tensão da fisionomia de Mr. Twíníng.
— Uma noite má. . . — murmurou — vento e o mar, revôlto...
Foi justamente numa noite assim. . . — como que tornou a notar
95
subitamente minha presença, e um alívio que me permitiria avan-
çar em nossa palestra, pensei.
— Mas o senhor não pode ficar aí fora, com este vento — ar-
gumentou êle, mais para si mesmo do que para mim -— será então
necessário... O senhor... — disse, passando facilmente para o pa-
pel de anfitrião cortês — quer aceitar o abrigo do meu teto até que
passe a tempestade?
Esperou que eu o precedesse na entrada da casa, fêz com que
eu me sentasse na única poltrona confortável que havia naquela
sombria sala de estar, e, depois de desculpar-se, sentou-se em seu
banco de trabalho e tomou novamente do pincel.
A pouco e pouco a peça se foi escurecendo. O velho esqueceu-
se de minha presença e tornou ao seu murmurar, tremendo a cada
lufada de vento, e detendo-se para escutar os gemidos do mar, lá
embaixo.
Assim ficou trabalhando até não mais poder enxergar, e
acendeu então uma vela, voltou-se para o traçado de um modelo
tirado da estampa colorida de um livro. Ao seu lado havia vários
volumes semelhantes, e tomei a liberdade de apanhar um deles e
folheá-lo. Havia, como eu imaginara, estampas dos mais famosos
vasos gregos, a maioria dos quais do período do colorido vermelho.
“Douris”. . . “Eufrônlo”. . . “Híeron”. . . — li em voz alta. -— Ah! e
estes magníficos lécitos brancos!
O efeito sobre o ancião foi instantâneo. Aqueles nomes — Hie-
ron. . . lécitos brancos — foram como senhas mágicas.
— Então o senhor os conhece, aos decoradores de vasos gre-
gos! — e deixou cair sobre mim uma torrente de entusiasmo cientí-
fico, de detalhes técnicos e de datas, cheios de reverência e de amor
pela beleza pura daqueles vasos.
— O senhor conhece! Conhece! — exclamou, exultando. —
Veja agora a Atenas de Douris. . .
— Mas em realidade eu não conheço nada. . . —- interrom-
pi, impelido àquela franqueza, pela sua manifestação de intensa
sinceridade. — O conhecimento que tenho dos clássicos é geral.
Trabalhamos somente com as obras dos períodos francês e inglês,
em nossa casa de Harrow, de que sou comprador para atender a
nossa clientela da Quinta Avenida.
96
Mas o homem não queria ouvir.
— O senhor fala a linguagem de quem conhece o assunto —
insistiu êle — “saiba que há quase meio século não conversava com
ninguém que falasse minha própria linguagem. . . Há quase meio
século que não encontrava um homem que tivesse ouvido falar de
Eufrônio, o mestre pintor de cerâmica. Deus, como isto me faz re-
cordar!
O velho riu-se.
— O senhor me fêz uma pergunta a respeito da minha Ate-
nas! Foi o primeiro homem que compreendeu. Espere!
Sorrindo como uma criança que se refere a um segredo, di-
rigiu-se à cômoda e dela tirou algo enrolado em papel. Com muito
carinho desembrulhou o objeto e apresentou diante de mim a me-
tade partida de um cálice grego, um cylix pintado de vermelho ao
qual uma das asas estava ainda presa mas a que faltava o suporte.
O velho esperou, em triunfo, a minha admirada exclamação.
Ah! — disse eu, desajeitadamente — a parte inferior é aquela
mesma Atenas com o toucador de flauta. Parece. . . um belo frag-
mento. . .
— Belo!? — repetiu com desdém. — Belo! Mas senhor, é o me-
lhor que se conhece. . . um aristocrata dos vasos gregos. Veja! As
linhas para completá-lo desenvolviam-se mais ou menos assim.
Tomou de um lápis, deitou o fragmento sobre uma folha de
papel branco, e completou as figuras quebradas de Atenas e do jo-
vem. Observei suas mãos, enquanto êle trabalhava: eram finas, de
dedos longos, nervosos, mas seguros do que faziam.
— Vê? — perguntou. — Agora, na parte externa do cylix te-
mos Atenas em sua quadriga depois da batalha. Não formam um
contraste, aquela Atenas pacífica e esta outra aqui? Não é, real-
mente, um artista de recursos, o homem que pôde realizar a am-
bas, e tão perfeitamente. Observe o senhor os cavalos — as linhas
audazes e vigorosas. Que força e leveza! É realmente uma pintura
máscula. . . Eufrônio. . . — o velho Twining se deteve, e tornou a
dar à exposição um cunho mais preciso. — A outra metade da taça,
a exterior, mostrava Atenas atirando sua lança contra o gigante
Anquelados. . .
— Mas onde está a outra metade? — perguntei. — O senhor
97
deve tê-la visto, pois conhece a decifração do enigma.
— Sim — respondeu êle lentamente. — Eu o vi; Deus sabe
como conheço a decifração do enigma. . .
Mas êle voltou-se para mim. . . ou melhor, para o seu querido
fragmento de taça grega.
— Veja o colorido! — sussurrou. — Este tom alaranjado es-
curo, e o aveludado negro e o magnífico verniz de toda a peça. . . O
segredo dos ceramistas gregos morreu com eles. É perfeito até os
mínimos detalhes. . .
Sentado ali, perdeu-se em reverente admiração de seu peda-
ço de cylix. . . Não tocava nele; era como se aquele fragmento fosse
por demais precioso para ser manuseado; mas, através dos olhos,
lhe dedicava a alma. Esquecera-se dos uivos do vento que aumen-
tava de intensidade e do ribombar da arrebentação cada vez mais
forte.
— Isto — anunciou êle calmamente por fim — é a metade de
um Eufrônio legítimo, até agora desconhecido do público.
Olhei para o objeto.
— Então o senhor diz que se trata de um Eufrônio. . . até
agora desconhecido?
— Sim, a assinatura estava no outro pedaço.
— Mas, por Deus, achada a outra parte (e o senhor deve sa-
ber onde pois parece tão familiarizado com ela!) este fragmento vale
o resgate de um rei!
— A outra metade perdeu-se; perdeu-se para sempre — disse
o velho. Mas este pedaço, por si só, é digno do resgate de um rei;
não em ouro, mas na moeda do conhecimento, o conhecimento que
êle trará ao mundo da arte grega.
Seus olhos cinzentos alargaram-se como se enxergassem
uma visão; o poeta se transmudava em cientista imaginativo.
Naquele instante eu me senti em presença de um nobre. Mas
a dignidade do ancião desfez-se abruptamente. Com a velocidade
de uma locomotiva que se aproximasse, o impacto em cheio da ar-
rebentação do Atlântico nos atingiu, abalando, sacudindo e fazen-
do gemer a velha casa até estalar como um saco de ossos soltos,
No mesmo momento a chuva começou a cair torrencialmen-
te, batendo nos vidros das janelas e tamborilando infernalmente
98
sobre o telhado. Afirmo que não sou covarde, mas naquele mo-
mento agarrei-me à pesada banca de trabalho como se estivesse
em busca de uma âncora. À luz trêmula da vela, vi o ancião colado
à parede, as mãos apertadas de encontro aos olhos. Parecia estar
em agonia.
Alcancei-o em dois passos.
— Que tem, senhor?. . . Mr. Twining?
Êle tartamudeava trechos desconexos de uma oração. Pus-
lhe a mão em cima do ombro, e subitamente êle agarrou-se a mim,
como uma criança que encontra uma mão inesperada no escuro.
Falava rapidamente, incoerentemente:
— Não, não; não é a tempestade. São as coisas que ela traz
aqui, em minha cabeça. . . imagens. Cenas que nenhum ser nunca
deveria ter vivido. Eu as vivi mais uma vez. . . torno a revivê-las ain-
da. . . como Macbeth. Não me deixe sozinho! É a Sua vontade. Foi
Êle que o enviou aqui, e a tempestade o detém aqui. . . É impossível
o senhor alcançar a vila hoje de noite. Deverá ficar aqui comigo e
ser o meu primeiro hóspede nesses últimos quarenta anos. Ouvirá
minha história. . . e me julgará.
— Sim, sim. — disse-lhe eu, para acalmá-lo, levando-o para
uma cadeira — naturalmente que ficarei, Mr. Twining.
Acalmou-se então, com a cabeça pendida sobre os braços que
apoiava na banca diante de si. Tendo o vento amainado um tanto,
êle pouco a pouco recuperou o controle de si mesmo.
— É uma loucura minha — suspirou, olhando por fim. — Às
vezes temo estar ficando um pouco maluco. Mss tenho vontade de
contar-lhe. . . contar a história de como encontrei o fragmento de
Eufrônio. O senhor, um estranho, há de ser imparcial. Mas o se-
nhor deve estar com fome.
Tornou-se novamente o anfitrião solícito, mas não molesto.
Começou a preparar as coisas habilmente, na cozinha; pôs sobre a
mesa uma toalha de linho branco e os talheres, e serviu-me caldo
de ostras tirado de uma sopeira azul, pão preto e mel, e uma espé-
cie de vinho com um bouquet digno de uma ode de Horácio.
Por fim, preparou-se para contar a história.
“Eu me encontrava no estrangeiro — começou — lá por 1885,
com um ano de licença no colégio que cursava, e em companhia de
99
um amigo — vamos chamá-lo Lutz, Paul Lutz. Devo dizer-lhe que
eu não tinha o direito de fingir-se seu amigo, pois, sinceramente,
eu o desprezava, e desprezava seus métodos e suas crenças. Sendo
um de meus colegas, mais jovem do que eu, parecia ter especial
predileção por mim.
Era estranho, pois era de uma família rica, e a não ser nosso
comum interesse em arqueologia e assuntos clássicos — interesse
que para êle era apenas um capricho, suspeitava eu — éramos
como pólos opostos. Êle era astuto, brilhante mesmo, mas, . . como
poderei descrevê-lo. . . Tinha os dedos grossos. Era do tipo bonito
e gâté de Byron: sanguíneo e moreno.
Lutz e eu éramos rivais em mais de um sentido. Havia. . .
uma jovem na cidade onde se achava nossa escola: nos recebia a
ambos. Chamava-se — já agora não importa mais dizer-lhe o nome
—- chamava-se Lorna, e era como o nome, uma bela jovem de ca-
belos cinzentos prateados. Tinha um belo espírito, e nos olhos um
brilho que era como o verso inesquecível de um poema.”
O velho ficou sentado em silêncio por algum tempo, como es-
tivera diante da maravilhosa beleza daquele vaso grego, e seu rosto
estranho e frágil era iluminado pelo mesmo brilho interior.
“Lutz e eu estávamos juntos em Atenas, na primavera, a ser-
viço do museu da Universidade, que então mal começava a formar-
se. Tínhamos à nossa disposição uma verba destinada a algum
espécime valioso e rondávamos os lugares onde se realizavam es-
cavações, e os mercados de antiguidades. Foi absolutamente um
acaso o fato de termos ido à Acrópole justamente quando se inicia-
va o trabalho de desentulho dos destroços anteriores à destruição
causada pelos persas. E foi também o mero acaso que nos levou ao
lugar, e justamente no momento, em que os trabalhadores desen-
terravam o vaso, em dois pedaços.
Um vaso, obra do ceramista Eufrônio — e a assinatura era
realmente visível através da camada formada pelo depósito de terra
— ali se encontrava, no meio daqueles destroços que datavam de
antes do saque perpetrado pelos persas no ano de 480! Ora, a exis-
tência de Eufrônio havia sido fixada numa data consideravelmente
posterior. Aquela diferença de datas era importante, e eu acabava
de topar com uma descoberta capaz de fazer época! Via diante de
100
mim aberto o caminho da fama.
Falei com o jovem grego que dirigia as operações, e consegui
dele a promessa de que me seria permitido examinar cuidadosa-
mente o objeto logo que o mesmo fosse completamente limpo. Lutz
mantinha-se junto de mim, e eu notei que também êle se entu-
siasmara com o vaso, embora escondesse seus sentimentos sob
um ar de indiferença. Mas eu não tinha tempo para tratar de Lutz.
Afastei-me dele. Segui minhas deduções através das ruas de Ate-
nas, e então fixei minhas conclusões na biblioteca de clássicos da
Escola Americana. Não havia erro algum nos elementos que eu co-
ligira, nenhuma falha em minha lógica. Então, no pleno entusias-
mo daquela façanha de mestre, voltei para o pequeno hotel onde
estávamos hospedados.
Abri a porta do nosso quarto e encontrei Lutz inclinado sobre
a mesa. Olhava avidamente para alguma coisa.
— Que maravilha! — disse. — E poder ajustar sem nenhuma
falha...
— Santo Deus! É o cylix — exclamei.
— Ê isto mesmo, meu velho! —-disse Lutz, sorrindo para
mim. — Acabo de dar-lhe um banho com água-forte. . . não, meu
cuidado foi extremo, não tenha receio. E agora, que é que você
acha?
— Que acho? Que posso eu achar? As cores eram como você
as vê agora, brilhantes, como um esmalte negro e laranja. Esque-
ça-se de teorias, e sinta simplesmente toda a beleza disso.
Estávamos ali, dois rapazes tão entusiasmados como se ti-
vessem achado o tesouro do Capitão Kidd. Lembro-me que come-
çamos acalorada discussão: Lutz preferia aquela Atenas forte e be-
licosa que atirava a lança ao gigante, enquanto eu afirmava que a
Atenas calma, sentada com a cabeça inclinada para a música de
seu tocador de flauta, constituía uma expressão mais elevada de
arte. Rindo, apanhei minha parte favorita do vaso, deixando Lutz
de posse de sua deusa selvagem.
Então a importância da descoberta do vaso e do artigo que eu
pretendia escrever voltaram a impor-se, e eu retomei a terra.
— Mas por que artes do demônio conseguiste apossar-te
dele? — perguntei.
101
Lutz pôs-se a rir, lançando um olhar apreensivo para o cor-
redor.
— É uma longa história. Bem... Mas queres fazer o favor de
passar a chave na porta, sim? Obrigado. Ora, pouco importa que
aquele trabalhador grego fosse um tolo, ou se tratasse de uma
questão de dracmas, ou das duas coisas ao mesmo tempo. . . O
certo é que o cylix está aqui. . . é meu. . .
— Mas, de direito, pertence ao governo grego. . . ao Museu da
Acrópole — protestei, dèbilmente.
— Sim, é claro que sei disso — riu-se Lutz. — Mas o caso é
que êle não vai nem para o governo grego nem para a Acrópole. Afi-
nal de contas, por que discutir, Twining? Você bem sabe que estas
coisas acontecem todos os dias.
— Bem sei. Apesar das leis, valiosas peças clássicas são con-
tinuamente embarcadas para os Estados Unidos, e na verdade,
nossa própria escola já comprou espécimes de origem duvidosa.
Então a emoção de minha descoberta apoderou-se novamen-
te de mim.
— O seu valor é maior do que você supõe, Lutz. Você não
acha nada de estranho em encontrar um vaso de Eufrônio no
meio de destroços da invasão persa? Mas como! Acorda, homem!
Se Eufrônio e seus contemporâneos viveram e pintaram antes dos
persas, quer dizer simplesmente que toda a cronologia dos vasos
gregos deve ser empurrada para trás cerca de meio século. E isto
significa também que a pintura grega se desenvolveu antes da es-
cultura grega, ao invés do contrário, como em geral se acredita.
Compreende você, agora? Compreende como este pequeno cylix é
capaz de revolucionar todos os ‘nossos padrões de arte grega? Mas
é colossal! Quando aparecer o meu artigo. . . quando fôr publicado
será citado, discutido e discutido e todos os jornais. . .
— Espere um momento! — comandou Lutz. — Não vamos
ainda apresentar este vaso, Você quer adiar um pouco este seu
artigo? Promete?
— Não sei. onde você quer chegar — respondi, com firmeza.
— Não sei a que deva fazer-lhe promessas. . .
Os olhos negros de Lutz apertaram-se, e sua face tomou uma
expressão de astúcia:
102
— Pelo que vejo, sua teoria depende de poder você, provar
que o vaso foi encontrado sob um monte de destroços que datam
da Invasão persa. A menos que possa garantir isto, toda a teoria
cai por terra, Penso que você não encontrará ninguém que queira
afirmar tal coisa. E se a coisa chegar a um impasse, então todo o
mundo se voltará contra o que dissermos.
— Mas o vaso foi retirado dos destroços persas; você mesmo
o viu hoje de manhã!
— Talvez.
— Mas então você ia. . . mentir?
— Talvez.
— Mas por quê? Eu simplesmente não compreendo!
— Você — disse Lutz suavemente — é que não compreende.
Será que me esqueci de dizer-lhe que paguei pelo vaso com cheque
contra minha própria conta bancária?
— Então você não retirou o dinheiro da verba da escola?
— Não. E como você vê, meu velho, você não me estava com-
preendendo bem. O vaso é meu.
— O que é que você quer dizer?
Lutz enrubesceu um pouco sob a pele morena.
— Não é para o museu da escola. É. . . para minha coleção
particular. Pretendo fazer dele o começo da mais bela coleção par-
ticular dos Estados Unidos. — E estendeu a mão para apanhar a
minha metade.
Mas eu recolhi o fragmento, apertando-o de encontro ao pei-
to.
— Pare com isto, Lutz, e diga-me de uma vez que de cientista
você não tem nada, mas que é simplesmente um gozador. Lembre-
se de que você está aqui em benefício da escola, enviado pela es-
cola. . .
— E com os diabos, como tenho trabalho para ela! — inter-
rompeu êle rudemente. — E continuarei a trabalhar pelos canais
regulares. Mas isto é outra coisa, algo fora do comum. É completa-
mente irregular, e neste caso o único responsável sou eu. Eu ficarei
com este cylix e suportarei as consequências. Agora, queira ter a
bondade de me devolver esse pedaço.
— Isto é que não! — respondi-lhe eu. — Se você pensa que
103
pode me reduzir ao silêncio. . . me calar vendo você tirar proveito,
disso. . . Não, eu vou guardar esta metade do cylix como uma ga-
rantia de que você acabará compreendendo qual a atitude certa e
agindo direito.
Nossa discussão tornou-se acalorada, pois Lutz pagara o
cylix com seu próprio dinheiro e não tocara absolutamente na ver-
ba instituída pela escola. Respondi-lhe então que se êle insistisse
em se apoderar do fragmento em meu poder, eu daria parte às
autoridades gregas que cuidavam para que nenhuma peça de arte
fosse retirada do país sem a sanção do governo grego.
Isto o deteve. Desistiu, e até mesmo tentou chegar a bom
termos comigo. Provavelmente, Lutz apenas retardou o desenlace
da questão até que estivéssemos a salvo, fora da Grécia. Quanto a
mim, eu estava firmemente resolvido a fazer com que minha opi-
nião prevalecesse.
Entrementes, partimos para os Estados Unidos. Tomamos
passagem, como havíamos planejado, num pequeno barco mercan-
te que faria uma viagem em volta de algumas ilhas do Atlântico e
tocaria em certos portos sul-americanos em sua rota para Nova
York. Ainda mantínhamos a trégua. Cada um de nós guardava ava-
ramente a sua metade do cylix e cada um de nós se mantinha
alheado do outro.
Havia um entendimento implícito entre nós de que o ajuste
de contas se faria quando desembarcássemos nos Estados Unidos.
Mas o navio estava fadado a jamais chegar.
Estávamos no meio do Atlântico, a cerca de oitocentas milhas
ao largo das ilhas do Cabo Verde, em rota para a Bahia quando se
deu o choque.
Era de noite, e como soprasse um forte vento, a princípio
pensei que o violento safanão que quase me lançou fora do beliche
era uma vaga particularmente violenta. Então todo o arcabouço
do navio começou a estalar e o ruído do motor cessou de repente,
despertando-me completamente. Segurei-me a beira do beliche.
— Que é isto?
— Não sei — bocejou Lutz, embaixo, saindo de um sono pe-
sado. — É melhor verificar. . . Que aborrecimento. . .
Tateei à procura de uma luz, e nos vestimos quando o navio
104
já adernara tanto que era impossível, manter-se alguém em pé.
Não trocamos mais palavra, mas Lutz parou de vestir-se para tirar
debaixo do travesseiro a caixa que continha a sua metade do pre-
cioso cylix. Eu havia segurado a minha metade, colocando-a junto
de mim enquanto terminava de atar os sapatos. Cada um de nós
olhava para o outro com suspeita; e Lutz seguiu-me rapidamente
quando eu, com meu tesouro, subi para o tombadilho do navio.
Segundo parecia, a tripulação enlouquecera, e o capitão tam-
bém havia perdido completamente a cabeça, pois no tombadilho
passamos por ele e o vimos soluçando, incapaz de dizer qualquer
palavra coerente. Os homens lutavam para alcançar os botes sal-
va-vidas, que tentavam baixar ao mar.
— Por aqui não conseguimos nada — resmungou Lutz. — Por
Deus, vamos sair desta confusão!
Seguí-o, avançando contra o vento e as ondas que arrebenta-
vam em cima do tombadilho.
Tropecei sobre um brutamontes que se pusera de joelhos, e
choramingara como uma criança. Dei-lhe um safanão e lhe per-
guntei:
— No que foi que batemos?
— Recifes. O barco está afundando. . . está afundando. Que
o bom Deus, misericordioso, tenha piedade de nós. . .
Lutz encontrava-se agora muito adiante, olhando pela amu-
rada do navio. Coloquei-me bem a seu lado, e segui-lhe o olhar.
Lá abaixo de nós, apertado contra o costado do navio, ba-
lanceava-se um pequeno caíque, que parecia tão frágil como uma
casca de ôvo por sobre aquela imensa massa preta de água que se
elevava. Tinha sido arriado provavelmente no primeiro momento
de confusão e depois abandonado pelos botes salva-vidas mais se-
guros.
— Uma possibilidade — disse Lutz. — Vou arriscar!
Voltou-se para mim, e seu olhar se deteve interrogativamente
no bolso de meu paletó onde se encontrava a metade do vaso.
— Mas não sozinho! — disse eu asperamente. — Correrei o
risco com você.
Ficamos a medir-nos com o olhar. Por todos os lados, em tor-
no de nós, havia o terror da tempestade, estes mesmos vagalhões
105
e arrebentamentos e estrondos que estamos vendo agora. Concen-
trando minha atenção sobre Lutz, observando-o, sentia meu cora-
ção encher-se de ódio, lenta mas seguramente, como um jarro que
se enche sob uma corrente dágua... um ódio que ameaçava trans-
bordar — um ódio mortal! Então, naquela noite como a de hoje, a
idéia dé assassiná-lo nasceu em mim. . . Sim, assassiná-lo!
A crise passou. Inesperadamente, Lutz cedeu.
— Pois bem. Continuaremos ainda juntos. . . por algum tem-
po. . .
Uma onda nos envolveu. Erguemo-nos novamente, procuran-
do verificar se o pequeno caíque não havia afundado. Não, lá estava
ele, sobre as ondas, com o bojo miraculosamente para cima.
— Vamos então! — gritou Luiz. — Não há tempo a perder
— disse ainda, tomando dos remos. Conseguimos nos afastar do
costado do navio que afundava, e nos distanciamos rapidamente
levados pelo mar.
O resto está como que borrado em minha lembrança. Recor-
do-me de formas escuras. . . pedaços de destroços flutuantes, e o
círculo branco de um salva-vidas vazio. Não vi o vapor afundar.
Com o romper de uma alvorada sombria, o vento parou, dan-
do lugar a uma chuva contínua, enquanto os vagalhões, pouco a
pouco, foram-se também acalmando e se transformando em ondas
espaçadas que, após as tempestades, continuam às vezes ainda
por muitas horas. . .
De qualquer modo, para encurtar a narrativa, vogamos du-
rante todo aquele dia sem avistarmos sinal de um único navio.
Molhado até os ossos e duro de frio, senti-me contente quando
tomava dos remos enquanto Lutz dormia. Vimos que as provisões
encontradas no caíque consistiam em meio balde de biscoitos, um
lampião sem óleo, algumas cordas e encerados, e só.
Comíamos parcimoniosamente os biscoitos e bebíamos água
da chuva apanhada no balde. Verificamos que nosso barquinho fa-
zia muita água através da emenda das tábuas, na proa, e por isso
juntamos na popa todo o lastro possível, e eu me ocupei em tirar o
mais que podia a água do fundo.
No fim da tarde, quando a situação parecia ainda pior, per-
cebemos um ponto preto no horizonte. Depois, quando a corren-
106
teza nos aproximou, o ponto transformou-se numa pilha de ro-
chas escuras, nuas e desabitadas. Conseguimos, com dificuldade,
aproximar-nos do lado abrigado da ilha, e então, numa estreita
enseada, desembarcamos. A massa de rochedos tinha talvez uns
quatrocentos metros de comprimento por uns duzentos de largura.
Os únicos seres que ali viviam eram gaivotas, insetos e aranhas, e
alguns peixes nas águas circunvizinhas.
Estivemos juntos na ilha durante quatro dias.
Durante aqueles quatro dias, meio mortos de fome e desabri-
gados como estávamos, Lutz e eu acalentávamos cada um a sua
metade do cylix e mantínhamos um olhar atento sobre a outra me-
tade. A tensão nervosa criada pela situação tornou-se intolerável.
E, pelo que se seguiu, nem sei o que dizer de mim mesmo. Antes
daquela crise eu nunca havia sido, em toda a minha vida, um ho-
mem perverso.
Você compreende, procurando determinar nossa posição pelo
mapa do navio da melhor maneira que podia recordar, cheguei à
conclusão de que esta rocha solitária era justamente aquela que
Darwín visitara e descrevera em sua investigação de ilhas vulcâni-
cas. Se era realmente a ilha que eu julgava, encontrava-se fora das
rotas oceânicas e por ela raramente passavam navios. As probabi-
lidades de sermos recolhidos, se permanecêssemos na ilha, eram
pequenas.
Não revelei tais conclusões a Lutz. Nem tampouco, depois
de êle ter comido nosso último biscoito, lhe fiz referência à minha
pequena reserva de carne concentrada, que eu então carregava
sempre no bolso para me poupar o incômodo de refeições muito
freqüentes.
Então, na segunda noite, quando Lutz dormia sob a coberta
de um encerado, e eu lutava contra a fome, vi a situação com clare-
za, Lutz seria o primeiro a sucumbir à fraqueza. Eu me aguentaria
por mais tempo do que êle. O barquínho era nossa maior probabi-
lidade de êxito, mas fazendo água como estava, não poderia servir
para dois homens. Mas um só, se se colocasse na popa. . . Havia
pois somente uma possibilidade. E o cylix. . . o cylix inteiro. . . em
meu poder. E o artigo que eu havia de escrever. . .
Cuidadosamente, parti um pedaço da carne concentrada em
107
que até aquêle momento eu não tocara.
Talvez eu devesse ter vencido meu ódio e dividido com Lutz
minha magra provisão. . . não sei. Mas na manhã seguinte, deita-
do de barriga para baixo sobre um rochedo, ele conseguiu, com o
canivete atado numa vara, espetar um pequeno peixe. Não dividiu
comigo o produto de sua pesca. Desesperado de fome, devorou o
peixe, cru, e aquela cena me causou náuseas e tornou ainda mais
forte minha resolução.
Invejei a resistência que daquela maneira êle havia arma-
zenado, mas não duvidei do resultado final. Apesar de toda a sua
constituição atlética, Lutz não tinha resistência, acostumado como
estava a uma vida sem dificuldades.
— Entrementes, êle mantinha uma certa aparência de ami-
zade e me tratava de forma cordial. Insistiu em juntar lenha seca
para fazer um fogo no caso de um navio se aproximar, e eu o enco-
rajei naquele esforço; embora não tivéssemos fósforos, êle pensou
que pudesse conseguir produzir uma faísca, e conquanto eu sou-
besse que aquela rocha era branda demais para servir como pedra
de fogo, concordei com ele.
Eu o observava queimar energia e se tornar mais fraco de
hora em hora, e esperei. . . esperei. . .
A idéia de homicídio pairava no ar, entre nós, e uma vez que
tais coisas nascem, não me admiro que um ódio mortal semelhante
ao meu se desenvolvesse na cabeça dele.
Mas não, e embora algumas vezes parecesse que me olhava
de modo estranho, Lutz permaneceu cordial. Êle estava tão resol-
vido quanto eu a conseguir a outra metade do cylix, mas afora isto
continuava meu amigo na sua maneira descuidada, egoísta — tão
amigo quanto havia sido antes. Como meu amigo, Lutz, grosseiro
e inescrupuloso como era, jamais poderia ter imaginado o que me
passava pela cabeça. Foi esse o meu grande pecado; o crime que
me faz duplamente amaldiçoado: era meu amigo que eu atraíçoava,
um homem ligado a mim pela amizade.
Quando, no quarto dia, cessou a chuva, um quente sol tro-
pical apareceu secando as poças dágua nas rochas, que forneciam
a nossa água. Senti que estava enfraquecendo. O calor naquelas
rochas nuas é pior do que a chuva fria. Comecei a ter febre. Não po-
108
deria esperar mais tempo. Enquanto meu companheiro mergulha-
va numa espécie de modôrra, reuni umas poucas coisas dentro do
caíque, guardei o meu fragmento do cylix numa reentrância oculta
na proa, e então me dirigi cuidadosamente para Lutz.
Fui tomado de uma tontura. . . mas continuei. Havia en-
saiado aquilo cinqüenta vezes, compreende, de modo que conhecia
já todos os movimentos que havia de fazer; e embora minha lem-
brança dos acontecimentos propriamente ditos não seja clara, devo
ter realizado o que eu planejara. É possível que quando eu estava
afastando o caíque, o despertasse, pois tenho, uma vaga lembrança
de uma luta.
E quando voltei a mim, sozinho no caíque, num calmo mar
azul, senti dor na garganta e mais tarde encontraria ali marcas de
dedos, que perduraram por vários dias. Talvez eu o tenha realmen-
te matado, e deixado naquele amontoado de rochas... não posso
lembrar-me. Mas quer eu o tenha matado com minhas próprias
mãos ou não, não tem importância; não há dúvida que eu o matei
ao abandoná-lo lá naquela ilha esquecida e reservando-me a única
possibilidade de salvamento. Eu era assassino por intenção e por
frio cálculo, assassino de meu amigo e colega!”
— E o que aconteceu com o senhor? — perguntei eu ao velho
Twining o funileiro.
— Fui apanhado vários dias depois, num estado de semi-
consciência, por um pequeno vapor de passageiros, exatamente
como eu havia previsto. Na longa viagem para os Estados Unidos,
vivi como em pesadelos. Senti-me impelido a confessar a verdade
ao capitão e suplicar-lhe que voltasse para apanhar Lutz, mas sa-
bia que já agora era demasiado tarde. Sofri sozinho, como merecia
ter sofrido.
“Havia noites em que eu sentia meus dedos afundarem-se
na carne de sua garganta; outras em que eu olhava para minhas
próprias mãos e não podia crer no que acontecera. Quanto à minha
metade do cylix. . . Já lhe disse que não consegui apoderar-me da
metade pertencente a Lutz, apesar de toda minha determinação,
pois somente este fragmento foi encontrado no caíque, escondido
embaixo da proa, onde eu o colocara? Este pedaço, embora em mi-
nha reação eu o odeie, sempre o mantenho diante de mim como a
109
lembrança, como as cinzas do meu pecado.
O vapor deixou-me em Boston, e eu vim para aqui: Como o
Agrícola afundara com todos que se encontravam a bordo, para o
resto do mundo eu era considerado morto. E isto era justo, como
castigo por ter assassinado meu amigo por um pedaço de cerâmi-
ca. Eu era inato para a sociedade humana. A pena para meu crime
seguiu-se como uma seqüência natural: ser jogado fora do mundo
e do trabalho que eu amava; não mais ler qualquer livro nem pôr
mais os olhos em qualquer revista que tratasse do assunto que me
interessava; em resumo, eu devia renunciar àquilo que era mais
vital para mim. Isso seria para mim a prisão, uma prisão pior do
que a que muitos criminosos já conheceram.
Encontrei esta casa afastada, entrei em contato com meu ad-
vogado, e, tendo obtido dele o compromisso de manter segredo,
consegui que minha pequena renda anual fosse paga regularmente
a uma pessoa com o nome de T. Twining neste endereço.
Assim me instalei aqui, suplementando minha renda por
meio desta pintura. Embora eu próprio tenha fixado os termos de
minha prisão, tenho vivido sempre de acordo com eles. Ao todo,
durante estes quarenta anos, jamais me permiti quaisquer inves-
tigações e nunca ouvi notícias de ninguém que conheci nos velhos
tempos. Virtualmente, eu me enterrei vivo.
Sim, o senhor está pensando que foi um erro de minha parte
eu enterrar aqui, também, a metade deste valioso cylix, pois, embo-
ra seja apenas um fragmento, teria sido suficiente para provar um
fato histórico. Talvez eu estivesse errado. Mas, não compreende o
senhor, que eu não poderia afirmar nada sem revelar minha identi-
dade e dar minha palavra de cientista de que o cylix foi retirado dos
destroços da invasão persa? Este caminho era perigoso. . . havia
o perigo de deixar-me conduzir para os velhos tempos. E também,
haveria nesse caminho honra para mim, para mim que não mereço
senão desprezo.
E, sempre, no fundo do quadro, havia a história de Lorna.
Não, as tentações eram muitas; não poderia correr o risco de en-
frentá-las. Mas leguei minha descoberta à humanidade; deixei uma
confissão escrita e uma declaração. Diga-me — o senhor veio re-
centemente do mundo — não acha que seria demasiado tarde, de-
110
pois de minha morte?
Embora eu tivesse alguma vaga idéia das grandes descober-
tas feitas no terreno das pesquisas clássicas nos últimos anos, as-
segurei ao velho Twining que talvez não fosse tarde demais.
— E desta forma — concluiu êle sua história — o senhor tem
diante de si um assassino! Qual seria, pois, o seu veridicto?
—- Mas como pode o senhor ter certeza? — redargüi eu. —
Se o senhor não se recorda mais dos detalhes a respeito do cylix,
o senhor também deve ter esquecido outros pontos. Além disso, as
probabilidades de salvamento de Lutz na ilha eram tão boas quan-
to as do senhor num caíque fazendo água. Quem poderia dizer?
O velho Twining meneou simplesmente a cabeça.
O vento voltou a aumentar de intensidade, e o velho deixou
cair a cabeça nas mãos. Eu o vi, naquela noite, sofrer as torturas
de um espírito eternamente condenado por uma consciência extra-
ordinariamente sensível.
Passada a tempestade, voltou o velho a ser o mesmo dono da
casa hospitaleiro quando se despediu de mim na manhã seguinte.
Saí com o sentimento de que estivera na presença do homem mais
polido que jamais encontrara; de que sua história da noite anterior
era absolutamente incongruente para um homem como êle. Acre-
ditei haver em sua história algum fator cujo alcance eu não pudera
apreender, e prometi a mim mesmo tornar a visitá-lo.
Mas o tempo foi passando. Estive no estrangeiro, na Inglater-
ra e na França. Então, dois anos depois, outra vez em Nova York,
achei o elo que estava faltando na história do velho erudito.
Era inevitável, suponho, que, como comprador da Casa de
Harrow, eu viesse topar, mais cedo ou mais tarde, com Max Bauer.
Durante um leilão particular apresentei despreocupadamente uma
oferta contra a daquele rico colecionador, e com bom humor perdi
para êle. Conversamos, e quando insistiu comigo para que jantasse
em sua companhia naquela noite e visse seus tesouros, acedi.
Não sei por que aceitei seu convite, pois não simpatizei com
êle; mas estava um tanto curioso a respeito de sua coleção, e sozi-
nho na cidade, em pleno verão, de sorte que aceitaria de bom grado
qualquer distração.
Foi assim, pois, que êle me fêz jantar bem, e especialmente
111
beber muito bem, até à saciedade, na ornada sala de jantar de seu
luxuoso apartamento.
Terminada a refeição, tendo sempre a seu lado a garrafa de
licor, levou-me através de salas literalmente cheias de quinquilha-
rias orientais. Blasonando, contou a história de uma ou outra das
peças de sua coleção, como havia roubado um homem ali, como
enganara outro acolá. Sua voz tornava-se mais grave à medida que
seu entusiasmo aumentava, e eu me sentia completamente a con-
tragosto, pensando em como podia pôr fim àquela visita, e retirar-
me.
Evidentemente o homem trazia ali poucos amigos em situa-
ção de apreciar os seus tesouros de arte, e por sob minha aprova-
ção superficial, êle se tornou cada vez mais parlador, até finalmen-
te convidar-me a ver sua mais apreciada relíquia, a pequena sala
onde guardava as peças mais preciosas de sua coleção,
Detivemo-nos diante de uma aquarela que representava uma
esguía jovem, em cinzento.
— Minha espôsa — disse o velho Bauer com um galanteio. —
É o seu retrato mais recente.
Voltei-me incrédulo, desviando o olhar daquele rosto muito
pálido, onde pairava um sorriso fino e sutil, meio irônico, meio fati-
gado, e fitando a cara grande de meu anfitrião. . . Dei de ombros.
— Bela mulher — murmurou êle. — O quadro não lhe faz
justiça. O rosto é assim, assim, mas o corpo, . . um corpo digno de
ser pintado por um artista.
Desviei dele os olhos e segui o olhar cinzento da jovem até
o objeto junto a ela e para o qual ela sorria ironicamente: era um
vaso grego com figuras vermelhas.
Então, algo que me era conhecido naquele vaso chamou-me
a atenção... como o modelo partido de um sonho já esquecera. Era
o fragmento de um vaso, a metade de um cylix, no qual havia uma
deusa, pintado em alaranjado, tendo na mão uma lança em riste.
— Ah! -— exclamei eu — a Atenas. . . Eufrónio!
— Então você entende disso, hein? — tartamudeou o velho
Bauer, — Não são muitos os que entendem. Coisa clássica. Eu tive
outrora a intenção de colecionar obras de arte puramente gregas,
mas desisti. Não que eu não tivesse conseguido, se não mudasse
112
de idéia, compreende, porque eu em geral consigo o que pretendo,
arranjando as coisas como convém. Este aqui — disse êle, levan-
tando os supercílios em direção ao vaso — foi meu único fracasso.
Mas êle tem uma história — serviu-se de mais um uísque. — Quer
escutá-la?
Olhei-o com atenção: os dedos rechonchudos, os lábios
cheios, sensuais, a pele morena. Como era mesmo aquele nome?
Sim, Lutz, era isto!
Decididamente, eu gostaria de ouvir aquela história!
— Meu único fracasso — acentuou êle, recostando-se numa
poltrona. — Mas a culpa também não foi minha. Foi de um pobre
diabo, um maluco. Agarrou-se a mim, representando um papel pa-
ternal, e eu o tolerei como se tolera a tal gente. Mas me aproveitei
bastante dele, pois naquela época eu era apaixonado pelos clássi-
cos, e êle sabia alguma coisa do assunto. Alem disso, andava caído
por Lorna, e ninguém poderia saber o que isto significava... Há gen-
te de gosto engraçado! Mas é melhor contar a história falando do tal
sujeito. Nós viajávamos juntos sob o patrocínio da Universidade...
Você nem poderia imaginar que eu já fui professor universitário,
hein? Pois eu topei com o tal vaso por pura sorte, e um Eufrônio
autêntico, partido ao meio, mas completo. Eu queria consegui-lo,
e consegui. Mas o tal sujeito — o Bonzinho — achava que o vaso
devia ser entregue ao museu da Universidade. Meteu-se também
na cachola de querer provar um certo ponto histórico. . . Era um
sujeito esquisito, pedante, sabe como é? Foi um caro custo. Eu não
tinha intenção de tornar público então a descoberta do meu Eufrô-
nio. Mas o sujeito se tinha metido na cachola que havia de escrever
algo a respeito. . . E você nem imagina como o homenzinho estava
resolvido! E como eu não podia causar uma discussão em Atenas,
onde estávamos, tive de tapeá-lo.
“Mas logo que saímos da Grécia . . . Bom, a verdade é que o
navio em que viajávamos nunca terminou sua viagem. Foi ao fun-
do! — e Bauer fêz floreio com o copo que tinha na mão. — Bem, pois
fomos dar numa ilha deserta. Ficamos dependurados numa rocha
no meio do oceano, nós dois, e o Bonzinho sempre agarrado com
uma das metades do vaso, enquanto eu ninava a outra metade.
Nunca passei dias menos confortáveis em tôda minha vida.”
113
Bauer tomou da garrafa e despejou mais uísque no copo.
— Pobre idiota. . . — continuou Bauer. — Você pensa que ele
se dava conta para onde me estava levando? Não, êle não era capaz
disso. Eu tinha alguns fósforos no bolso, escondidos, compreende?
E fiz uma pilha de lenha para fazer sinal ao primeiro navio que
passasse. Mas eu não tinha intenção de salvar também a êle. Não,
o que eu pensava era fazer com que êle saísse à deriva, no caíque.
“E era fácil, pois o homem já estava mais fraco que um gato,
compreende? Chegava a estar cinzento.,, e afinal de contas êle não
era nenhum fortão. Eu preferia correr o risco de ficar na ilha com
um monte de lenha seca para fazer uma fogueira, e ficar com as
duas partes do vaso. ..
— Assassinato? — contíuou Bauer, rindo. — É uma palavra
feia, náo é? — perseguiu com o dedo trêmulo uma mosca ferida que
se arrastava por suas calças. — Ora! a gente vê um sujeito matar
por ódio, outro por amor. . . sempre bons e nobres motivos. Mas
um verdadeiro colecionador mata por causa de um vaso. Matar é
natural. . . é a coisa mais fácil do mundo. . . quando a gente tem
pressa. E eu tinha pressa, compreende? Havía um barco passando,
porque vi a fumaça. Meti o sujeito no caíque, mas foi preciso lutar;
êle ainda tinha um resto de vida, embora o sol já o tivesse abatido
bastante. Naquele caíque furado. . . ah! êle não tinha muita pro-
babilidade de escapar, sem dúvida. Empurrei-o suavemente, sim,
com toda a gentileza. . . assim — e Bauer mostrou como fizera,
esmagando a mosca entre o polegar e o indicador — assim, até
que deixou de respirar. Procurei então a outra metade do vaso, e
não pude encontrá-la. Mas o fumo se aproximava, e eu não podia
esperar. Talvez ela ainda esteja lá, escondida nos rochedos. Então
empurrei, o barquinho, e a maré arrastou-o, afastando-o do navio
que passava...
“Corri e meti fogo nos meus gravetos que fizeram uma foguei-
ra dos diabos. Ao mesmo tempo procurava por toda a parte a meta-
de do vaso que estava faltando. . . procurei por todas as fendas das
pedras, e nada. O caíque já aparecia apenas como um pontinho, e
eu nada encontrara. Todo meu trabalho fora inútil! Você compre-
ende, eu tinha matado um homem... e afinal de contas, para quê?
Bem, mas que fosse para o inferno; afinal, não valia muito. . .
114
Mas como? O senhor ainda não vai embora. . . Pois esse foi
meu único fracasso. . . Quanto ao resto, consegui tudo: Lorna e
esta coleção aqui. . . tudo! Só aquela metade do vaso quebrado é
que não. Pena, não é?
Eu saí daquela casa deixando Bauer a acariciar sua metade
do cylix da mesma forma como o velho Twining o funileiro havia
acariciado a sua com o olhar. Mas, antes de sair, meus olhos caí-
ram novamente sobre o retrato da esposa de Bauer, e lembrei-me
das palavras do outro homem a respeito dela: “Tinha um belo es-
pírito, e nos olhos cinzentos um brilho que era como o verso ines-
quecível dc um poema”.
— Amor carnal e amor espiritual — murmurei eu.
Bauer foi procurar-me na manhã seguinte.
— Que foi que lhe contei ontem de noite? — perguntou-me.
Relatei-lhe brevemente.
— Ficção! — disse êle, sacudido por um riso contrafeito. —
Bem, mas tenho de ir andando. — Poderá. . . esquecer-se disso?
Apressei-me em tranquilizá-lo.
— Sim — concordei. — Esquecerei. . . mas com uma condi-
ção: que o senhor vá comigo até o Cabo. . . para ajudar-me a ajui-
zar o valor de uma obra antiga, e me dar seu conselho honesto de
entendido. . . sem despesas.
Êle consentiu imediatamente, pois despertara em si a vaida-
de do conhecedor.
Foi assim que nos dirigimos para o Cabo naquela clara ma-
nhã azul, depois da chuva.
Na aldeia fiz investigações a respeito do velho Twining o fu-
nilero, e preparei-me para o que havia de encontrar. Chegara a
tempo, disse-me uma mulher; ela estava preocupada com o ancião,
embora este não permitisse a ninguém permanecer na casa para
cuidar dele.
Tomamos pelo caminho que ia dar à praia, e eu mantive
Bauer alheado do assunto, respondendo vagamente às suas per-
guntas. Era um dia diferente daquele em que eu pela primeira vez
trilhara aquele caminho; uma manhã estranha.
O encontro fora planejado unicamente para favorecer o velho
estudioso, embora, ao ajudar Twining a limpar sua consciência,
115
eu também limpava a consciência de Bauer, o que aliás não podia
evitar. Mas Bauer, eu assegurava a mim mesmo, não tinha cons-
ciência. De qualquer modo aquilo não teria qualquer importância
para êle.
Mesmo assim, era uma situação sem paralelo, pensava eu:
dois homens, ambos vivos, cada qual acreditando haver assassina-
do o outro. E colocar estes dois homens, frente a frente. . .
Mas a vida é poucas vezes tão espetacular como julgamos.
Meus prognósticos falharam.
Além de uma faixa de grama que orlava a praia, que se torna-
ra prateada sob o luar, e mais adiante, erguendo-se precariamente
sobre o areal, encontrava-se a mesma casinhola cinzenta e rústica.
A porta estava entreaberta, e a banqueta de trabalho, deserta. En-
contramos o velho num quarto do lado do mar, deitado numa cama
de nogueira preta coberta por uma colcha de retalhos.
Êle estava recostado nos travesseiros, e o rosto cansado for-
mava como que uma silhueta, tendo por fundo o oceano, naquele
dia de uma côr azul, tingida de manchas pálidas, tirando a prate-
ado sob o sol. O velho erudito delirava, com o espírito errando em
torno daquele seu antigo pecado; continuava penando pelo crime
de um homicídio imaginário.
— Meu amigo — murmurou êle — o homem estava ligado a
mim pela amizade. . . aquilo era a morte certa. . .
— Escute! — disse-lhe eu. — Este aqui é Max Bauer, o ho-
mem que o senhor pensa haver matado! O senhor não o matou,
apenas pensa que matou. Êle está aqui, bem vivo!
Mas o velho não compreendia. Repetiu apenas o nome “Max
Bauer”, e voltou-se para o outro lado, com um longo estremeci-
mento.
Então Bauer tagarelava ao meu ouvido:
— O Bonzinho!. . . O velho Bonzinho em pessoa!
— Era assim que o senhor o chamava. . . ao homem que o
senhor matou. Agora nada mais adianta, nada mais. Êle ainda está
sob a ilusão. . . Jamais poderemos fazer com que compreenda o
que aconteceu realmente.
— Mas como?. . .
Voltei-me, impaciente, ante a insistência de Bauer, e dei-lhe
116
rapidamente os elementos que faltavam para que êle entendesse
tudo.
Bauer sentou-se.
— Então êle tentou matar-me! O velho. . . coitado! — e pouco
depois, continuou: — Por Deus! Mas é uma sombra do que foi!
Olhei para Bauer, sentado ali, corpulento e pesadão.
— Sim — repliquei. — Uma sombra.
Mas os olhos de Bauer já se haviam desviado de Twining e
fixado uma coisa que se encontrava sobre a colcha, e que a princí-
pio êle não vira, confundida com a côr dos retalhos, uma coisa de
tonalidades alaranjadas e negras.
— Mas como! É a metade que estava faltando! — exclamou
êle, e agora havia realmente emoção em sua voz.
Eu me encontrava entre Bauer e o objeto, guardando o tesou-
ro de Twining. E mais uma vez tentei fazer com que o velho Twining
recobrasse a memória.
— Aqui está Max Bauer — insisti.
Devo ter conseguido o que desejava, porque quando Bauer se
aproximou e quando eu segurei a metade do vaso, o velho fitou o
rosto moreno e sensual do outro com uma expressão que revelava
recordar-se de algo. Deve ter de certo modo compreendido a situ-
ação.
— Sim. . . — murmurou o velho. — Que fique com ela.
Tomou o fragmento de minha mão, segurou-o carinhosamen-
te durante um momento em suas velhas mãos fracas e belas, e
então colocou-o nas mãos grossas de Max Bauer. Este acertou avi-
damente o objeto.
— Matei-o! — tartamudeou Twining.
— Matou-me coisa nenhuma! — disse Bauer, rindo, pois ago-
ra, de posse do vaso, podia dar-se ao luxo de ser generoso. — Está
tudo bem, meu velho; estamos quites.
Mas Twining tateava, procurando um pedaço de papel.
— Aqui está! — exclamou. — Diga-lhes como foi que. . . sim...
a pintura antes da escultura. . .
— Mas por Júpiter! Há quarenta anos que o mundo sabe
disso! — explodiu Bauer, olhando cuidadosamente a declaração
escrita. — Ora, pois encontraram fragmentos de outros Eufrônios
117
naquele mesmo monte de destroços da invasão persa. Já provaram
exatamente a mesma coisa, e Deus sabe quantas coisas mais. Fo-
ram apenas fragmentos, compreende você, nada tão perfeito como
este cylix.
Bauer deixou o papel cair-lhe das mãos, e eu rapidamente
apanhei a confissão escrita de Twining, e mais tarde atirei-a na
lareira. O velho tornou a cair no miserável estado em que antes se
encontrava, sem que parecesse recordar-se do episódio.
Bauer saiu pouco depois.
— Foi um bom dia para mim, Van Nuys, e eu o devo exclu-
sivamente ao senhor. Meus agradecimentos — disse, cortêsmente,
da porta.
Sopitei minha aversão que lhe sentia. E assim, triunfan-
te e sem preocupações, partiu para a cidade Max Bauer, a quem
somente circunstâncias fora de seu controle haviam salvado de ser
realmente assassinado. Iria agora acrescentar aos seus vários te-
souros o vaso do velho Twining.
Eu permaneci ao lado do velho erudito, cujos instintos todos
o teriam empedido realmente de cometer o homicídio que havia
planejado, e fiquei a observar-lhe a agonia, vendo-o sofrer até o
último momento seu pecado imaginário.
E minha esperança é que Deus, no ajuste final de contas,
leve em consideração a sensibilidade dos espíritos que Êle há de
julgar, e determine, assim, a cada um o castigo que merece.
118
O leitor não precisa tremer. O conto premiado, de Lord Dun-
sany, “O Homem Mais Perigoso do. Mundo”, embora tenha como
personagens o detetive Linley e o homem mais perigoso do mundo,
não é o tipo da história que o leitor deva evitar quando se encontre
sozinho. Não se trata de uma única mulher, ou de um único homem,
em perigo. Não acenda todas as luzes, ou feche todas as portas.
Não olhe para baixo da cama, nem chame a polícia. Não, este é um
conto completamente diferente. É simplesmente uma história em que
milhares de seres humanos estão em jôgo — centenas de milhares,
se não toda a raça humana. . .
Lord Dunsany
119
Slugger. Pois ninguém pôde prendê-lo por nenhum dos dois casos.
Fato curioso, realmente. A polícia sabia perfeitamente que êle ha-
via cometido ambos os crimes, e Linley viera e lhes contara de que
maneira. Apesar disso, não o podiam prender. Bem, a polícia podia
prendê-lo sempre que quisesse, mas o que eu quero dizer é que
houve um veredicto de “Não Culpado”, e a polícia mostrava-se mais
assustada com isso do que um criminoso com um veredicto con-
trário. Assim, Steeger permanecia solto. E sobreveiu, então, o caso
de um homem que cometeu três crimes, e Linley prestou, de novo,
sua colaboração às autoridades. Prenderam o homem. Deflagrou,
em seguida, a guerra, e o crime passou a ser considerado uma
coisa insignificante, e ninguém mais ouviu falar de Steeger por um
longo espaço de tempo. Mr. Linley foi nomeado para uma comissão,
e quando descobriram sua capacidade, êle foi para o Ministério
da Guerra, e eu fui ser o que nunca imaginara antes, ou seja, um
soldado raso. Não se ouviu mais falar de Num-numo, exceto através
das pequenas lamentações dos anunciantes, quando se referiam
aos velhos bons tempos. Sim, fui convocado no verão de 1940, e fui
estagiar num quartel próximo a Londres. Muitas vezes permanecia
desperto, à noite, sob meus cobertores cinza, pensando nas bata-
lhas que a Inglaterra já travara, em coisas que ouvira na escola, e
nas coisas que os instrutores nos ensinavam, e procurando figurar
como se pareceriam as batalhas de outrora e como é que soavam.
Enquanto isso, uma batalha era travada sobre a caserna. Cheguei
à conclusão de que essas velhas batalhas deveriam ser extraordi-
nariamente calmas comparadas com aquelas noites. Mas não te-
nho muita certeza.
Bem, aquela batalha terminou decorrido um ano. Nós a ven-
cemos; nossos pilotos, quero dizer. Não tínhamos, então, tempo a
perder. Foi uma época difícil. Não penso que os alemães estejam
se comportando agora como então. Ultimamente eles têm fetio be-
las manifestações no sentido de que sejam preservados os bens
da cultura e da civilização. Não era assim, porém, que eles com-
preendiam o problema, naqueles dias, em que costumavam falar
na eliminação de nossas cidades. Mas não vou escrever sobre a
guerra: talvez alguém se abalance a isso daqui a cem anos, e que,
começando em 1914, omita os anos que vão de 1919 a 1939, e
120
prossiga até que ela cesse. Desta guerra pode surgir uma história
muito interessante. Vou escrever de novo sobre Mr. Linley. Isso me
faz voltar ao ano de 1943. Eu estava de folga, e tinha conseguido
carona num caminhão que se dirigia para Londres. Lá chegando,
a primeira coisa que fiz foi dar uma volta até Lancaster Street para
olhar os velhos edifícios. Queria olhá-lo simplesmente para con-
vencer-me de que não vivera sempre num quarto de caserna. Ora,
os velhos edifícios tinham desaparecido. Havia apenas uma quadra
de capim e macegas floridas. E havia quantidade de cardo-morto.
De um certo modo gostei do espetáculo, se bem que não fora isso
que eu viera ver. Os edifícios — lembro-o agora — eram um tanto
sujos e sombrios e tinham o nome de Clarence Gardens. Estavam
agora transformados realmente em jardins; ali surgira o sol, pelo
menos, e algumas variedades de flores. Presumo que não há nin-
guém em Londres que de vez em quando não suspire pelo campo,
e ali havia uma boa porção de campo, absolutamente silvestre. Fi-
quei satisfeito, por um momento, de ver aquela quantidade de sol e
de vegetação no meio de milhas de calçamento, até que pensei em
todo o morticínio que se fizera necessário para que crescesse aque-
les cardos. Olhei então para o ar para ver se conseguia localizar o
ponto exato em que existira o nosso apartamento, pois me pareceu
estranho pensar que eu já andara caminhando naquele espaço, e
que estivera sentado e ouvindo Mr. Linley num determinado ponto
do céu azul. Quando levantei meus olhos da vegetação, observei
que um oficial, que se achava próximo, me observava atentamen-
te. Perfilei-me e fiz-lhe a saudação regulamentar, ao que o oficial
replicou:
— Mas então é você, Smithers!
— Não pode ser Mr. Linley! — exclamei eu, pois êle parecia
tão diferente de uniforme.
— Sim, sou eu mesmo — respondeu êle. — Apertamos as
mãos. E, num instante, estávamos a falar do velho apartamento.
De repente êle me surpreendeu com esta declaração:
— Você é justamente o homem de quem precisamos.
Ora, eu já tinha desempenhado toda espécie de tarefas desde
que me haviam feito soldado, toda espécie de tarefas, mas nunca
ninguém me dissera aquilo. E aqui estava Mr. Linley me fazendo
121
aquela declaração, bem como se fosse verdade.
— Mas para quê? — indaguei.
— Dir-lhe-ei — respondeu êle. — É que aquele Steeger está
agindo de novo.
— Steeger — exclamei. — O homem que comprou dois fras-
cos de Num-numo?
— É esse o homem — disse Linley.
— Em que é que êle anda metido agora? — perguntei. — Nas
suas velhas trapaças?
— Em coisas piores.
— Piores! Mas em que, caramba, se o homem já é um assas-
sino?
— Êle apenas matou duas pessoas, é pelo menos o que sa-
bemos. Êle era apenas um assassino a varejo. Mas agora é um
espião.
— Ah, percebo. Meteu-se agora no negócio por atacado.
— Sim, e precisamos que você nos ajude a vigiá-lo.
— Teria prazer em prestar-lhes o auxílio que pudesse. Onde
é que êle se encontra?
— Oh, êle está aqui, está em Londres.
— Mas então por que não o prendem? — perguntei.
— Esta é a última coisa que devemos fazer — replicou Linley.
— Isso serviria para prevenir vários outros.
— O que foi que êle fêz desta vez? — inquiri.
— Ora — respondeu Linley — descobriu-se outro dia que êle
recebeu recentemente mil libras. Somerset House é quem infor-
ma.
—- Terá ele assassinado outra pequena e roubado o dinhei-
ro?
— Não, a coisa não foi feita com tanta facilidade — esclareceu
Línlley. — Êle encontrou a pobre Nancy Elth com as suas duzen-
tas libras, mas êle não pode encontrar uma pequena com dinheiro
todos os dias,
— Então de onde é que vieram as mil libras? — perguntei.
— Foi o dinheiro mais fácil do mundo -— declarou Linley.
— Espionando?
— Exatamente. É o mais bem remunerado de todos os negó-
122
cios escusos que existem no mundo. Especialmente no princípio:
são capazes de pagar qualquer coisa para terem um homem nas
garras, se êle lhes puder ser de qualquer utilidade. E Steeger pode-
ria prestar ótimos serviços. Êle é realmente um criminoso hábil, e
poderia ser um ótimo espião.
— E onde é que êle está? — perguntei de novo.
— Nós o localizamos — explicou Linley. — Aliás, nunca houve
muita dificuldade em se encontrar Steeger. A dificuldade sempre
esteve em provar-se que êle fêz alguma coisa. Sim, aí é que está o
problema, como diria Hamlet.
— E que coisa êle terá mandado dizer? — perguntei.
— Nada, por enquanto — informou Linley. — Eis porque de-
sejamos que você nos ajude a vigiá-lo. Mil libras é um bom paga-
mento, e deve ser por boa informação. E naturalmente o dinheiro
foi entregue por algum alemão que reside neste país, ou por algum
quisling ou qualquer outra peste deste tipo. Mas ainda não conse-
guiram levar a informação para fora do país.
— Como é que sabe? — indaguei,
— Porque há apenas uma coisa pela qual os alemães paga-
riam tanto — explicou Linley — e nós sabemos que eles ainda não
a sabem.
— De que se trata, posso saber?
— Onde será aberta a segunda frente — informou-me Linley.
— Presumimos que êle tenha descoberto a coisa e que outro espião
lhe tenha feito um pagamento antecipado. A informação valerá um
milhão se êle puder transmiti-la para a Alemanha. Cem milhões
seria atribuir-lhe um preço baixo, mas eles provavelmente iriam
pagar cinqüenta mil libras por ela. De qualquer maneira, sabemos
que eles ainda não têm a informação, e as mil libras constituem um
simples sinal. Mas o conhecimento torna Steeger o homem mais
perigoso do mundo.
— Mas de que modo pôde êle descobri-lo? — perguntei.
— Ainda não sabemos — foi a resposta de Linley.
— Compreendo — disse eu. — Vocês precisam então que êle
seja vigiado a fim de que não abandone o país?
— Oh, êle não pode sair — esclareceu Linley. — O que preci-
samos evitar é que êle transmita as informações.
123
— Como tentaria êle fazê-lo? — perguntei.
— Pelo telégrafo sem fio, provavelmente.
— Mas de que modo?
— Bem, nós conseguimos localizar todas as estações trans-
missoras — informou Linley — que operaram desde que a guerra
irrompeu; mas pode muito bem haver ainda, algumas ocultas, em
silêncio, esperando para a transmissão de grandes notícias como
esta. E penso que localizamos todos os pombos correios, embora
possa haver ainda um ou dois de que não tenhamos conhecimento.
Mas é mais fácil esconder um telégrafo sem fio do que um pombo,
porque você não precisa alimentá-lo.
-— E você deseja que eu o vigie?
— Apenas de vez em quando — respondeu Linley. — Êle está
em Londres, e sabemos mais a respeito de todas as casas aqui do
que você pode imaginar. Realmente não temos medo de que êle
faça qualquer transmissão de Londres, mas não podemos respon-
der pelo campo aberto, de modo que êle precisa ser vigiado para
onde quer que se movimente.
— E quanto ao outro homem, o espião que o estipendiou?
— Êle está muito por baixo — explicou Linley — e não pude-
mos ainda identificá-lo. Mas é apenas porque êle anda por baixo.
Se êle se metesse por aí a fazer coisas com um aparelho transmis-
sor, nós já o teríamos identificado. Eis porque achamos que êle não
tentará desempenhar essa missão, mas a confiará a Steeger. Afinal
de contas, Steeger é um sujeito espertíssimo, e não é qualquer um
que depois de cometer dois crimes pode andar à solta pela Inglater-
ra, Escócia e Irlanda do Norte.
— Gostaria de controlá-lo —- observei eu — se acha que po-
derei fazer alguma coisa.
Mas falei de um modo um tanto hesitante, porque, embora
Mr. Linley fosse tão amável a ponto de me oferecer tal tarefa, eu
estava começando a perceber que ela era muito importante — man-
ter em silêncio o homem mais perigoso do mundo — e, para falar a
verdade, eu não era o homem próprio para receber uma tarefa tão
melindrosa como aquela. Talvez pudesse se tivesse recebido melhor
formação, e tivesse tido oporunidade de manejar grandes negócios
desde cedo. A realidade é que passei toda minha vida, até então,
124
vendendo Num-numo e nunca tive nada maior, em matéria de ne-
gócio. De um riiodo ou de outro parecia que eu tinha me diminuído
para ficar do tamanho de minha função; ou talvez a função tivesse
somente o meu tamanho, e fora essa a razão porque ma deram,
e nunca me ofereceram outra de maior significação. E agora aqui
estava Mr. Línley a me oferecer uma incumbência que poderia
não parecer muito importante se eu a executasse bem, mas que, se
me houvesse com infelicidade e permitisse que o homem transmi-
tisse suas notícias sobre onde seria aberto a segunda frente, isso
podia custar a vida de centenas de milhares de criaturas. Foi por
isso que frisei “se o senhor pensa que posso fazê-lo”, e pelo modo
que enunciei a restrição eu mostrava a Mr. Linley que não poderia:
pareceu-me que era uma maneira decente de colocar a questão.
Mas Linley retorquiu: “Não há dúvida, você é o homem indicado
para a tarefa.”
— Farei tudo que estiver a meu alcance. Deverei andar far-
dado?
— Não — respondeu Linley. — Esse é o ponto. Não quere-
mos dar a impressão de que o exército o está controlando. Ou que
quem quer que seja o está observando por tal motivo. Mas de um
modo ou de outro, embora você represente o perfeito soldado, nes-
sa farda, à paisana você há de dar-lhe justamente a impressão que
desejamos.
Claro que eu não tinha absolutamente nada de “perfeito sol-
dado”, mesmo de uniforme, nem o queria, aliás. Foi bondade dele
dizer aquilo, mas percebi logo sua intenção.
— Muito bem — disse eu. — Recuarei alguns anos, colocan-
do-me nos dias de Num-numo e me acomodarei perto dele, e terei o
cuidado para não parecer muito “militar”.
— Bem — informou Linley -— devo dizer-lhe mais uma coisa.
Não precisamos de você agora. Nós o temos sob rigoroso controle.
Mas se éle se aproximar de um ponto de transmissão, vamos pre-
cisar de alguém extra para vigiá-lo. Êle então terá de ser observado
muito de perto. Êle poderia fazer a coisa em cinco minutos, e po-
deria muito bem destruir toda a Europa. Quer dizer, as partes que
ainda não estão destruídas.
Estes fatos, posso dizê-lo, passaram-se em fins de junho de
125
1943, quando todos os planos para a invasão da Europa estavam
prontos, e os alemães estavam ainda fazendo conjeturas. E en-
quanto procuravam adivinhar tinham de reforçar uma frente, de
cinco ou dez mil milhas. Uma palavra de Steeger, se êle tivesse des-
coberto a verdade, a reduziria a uma centena de milhas, e poupar-
lhes-ia uma porção de aborrecimentos. Tal era a situação quando
me despedi de Linley naquele dia estival, depois de um belíssimo
lanche que me fêz servir num grande hotel, êle no seu elegante
uniforme e eu um simples soldado raso. Lá não tocamos mais no
nome de Steeger, mesmo quando não havia ninguém escutando.
Êle não iria dizer uma única palavra sobre o assunto num recinto
fechado.
Agradeci-lhe por tudo quanto fizera por mim, por se ter lem-
brado de mim daquela maneira e por me ter proporcionado um lan-
che tão magnífico, feito o que apanhei um ônibus e regressei para a
caserna. Pouco tempo mais tarde recebi uma carta de Linley. Dizia
apenas isto: “O assunto está assentado e seu comandante já rece-
beu a necessária comunicação. Na manhã seguinte fui chamado
ao Comando, onde me deram um passaporte e mandaram que me
apresentasse ao Ministério da Guerra no mesmo dia, em serviço
especial, que me seria dado a conhecer quando lá chegasse.
Assim, toquei-me para Londres e para o departamento do Mi-
nistério da Guerra onde fui ordenado a comparecer. Lá recebi um
traje civil e uma entrada para um concerto no Albert Hall. O que
eu tinha a fazer era sentar-me na poltrona cujo número constava
da entrada e tomar o máximo de interesse na música, ao mesmo
tempo em que devia observar o homem sentado à minha direita.
Foi tudo o que me disseram enquanto me faziam experi-
mentar o novo traje. Estavam a escovar meu cabelo quando Linley
entrou. Entendiam que meu cabelo estava com um aspecto por
demais militarizado. Linley me deixou tudo bastante claro. O con-
certo — explicou êle — devia ser irradiado, e Steeger escolhera um
lugar exatamente sob o microfone. Estavam também seguramente
informados de que êle continuava retendo o segredo da segunda
frente, e era quase certo que diria alguma coisa a respeito durante
um dos intervalos, e o mundo inteiro poderia ouvi-lo. Claro que êle
precisava ser observado durante todo o tempo, mas provavelmente
126
poderia fazê-lo durante um intervalo.
— E como poderei detê-lo, senhor?
— Bem, estarei lá — respondeu Linley — do outro lado dele,
e penso que poderei detê-lo, mas gostaria de ter sua cooperação,
especialmente se êle começar a berrar o nome do país que está
para ser atacado. Terá então de fazê-lo calar ou de detê-lo de qual-
quer maneira. Mas não pensamos que êle procederá desse geito.
Em verdade, as probabilidades são de 1000 contra 1, porque, se o
fizer, chamará a atenção e será enforcado, o que naturalmente não
lhe passa pela cabeça. O que êle deve estar certo é da possibilidade
de fazer algum sinal. Estarei atento, mas gostaria de contar com o
seu auxílio.
Bem, isso aconteceu de manhã, e na mesma noite eu me
encontrava na Albert Hall, sentado numa poltrona do meio, preci-
samente na frente da orquestra, vendo um pequeno objeto pendu-
rado num fio, diante de mim. Era o microfone. Reconheci-o logo,
porque não se parecia com nada que eu tivesse visto antes, e um
microfone devia parecer-se com aquilo. Apareceu então Linley e
sentou-se à minha direita, deixando entre nós dois uma poltrona
vasia. Nem sequer me olhou. Olhava para a direita e para a esquer-
da, mas quando olhava para a esquerda fixava um ponto a milhas
além de mim.
Entrou, então, Steeger.
Nunca o vira, antes; mas se me permitem dizê-lo, sem causar
ofensa a ninguém, eu posso identificar um criminoso numa sim-
ples olhada. Era Steeger em carne e osso. A orquestra começou a
tocar. Era o que chamam uma sinfonia. De Beethoven. Sua quinta
sinfonia, segundo entendi, e devia haver três intervalos.
Sim, estava muito bonita, e Steeger permanecia sentado,
atento e sem fazer nada. Enquanto durou a primeira parte êle não
fêz o menor movimento. Nem sequer abriu os lábios.
Deu-se o primeiro intervalo. Eu o observei como um gato es-
preitando um cachorro. Num momento cheguei a relancear Linley,
mas êle aparecia absorto na música, como se a estivesse acarician-
do no espírito, e com a mão direita sob o casaco. Estava também à
paisana. Observei Steeger de novo. Neste momento êle pôs a mão
no bôlso interior do seu casaco, abriu a bôca e aspirou o ar. Ia tos-
127
sir. Uma ou duas pessoas também tossiam um pouco, pequenos
pigarros que haviam podido conter enquanto a orquestra tocava.
Mas Steeger ia tossir fortemente. Podia-se prever pelo tamanho de
sua respiração. No mesmo instante Linley tirou do bolso um lenço
encarnado. Dirigiu-me, então, um rápido olhar e me fêz um leve
sinal com a mão, dizendo-me para não fazer nada, pois eu estava
justamente me inclinando para a frente procurando saber se devia
tomar qualquer iniciativa. Linley reclinou-se de novo e começou a
pensar na música novamente. Parecia, pelo menos, muito satisfeito
e bem acomodado. Steeger tossiu, e eu o deixei, diante do sinal de
Linley. Assoou o nariz um tanto ruidosamente uma e duas vezes e
tossiu novamente. E, tossindo de novo, outra vez assoou o nariz,
guardando, finalmente, o lenço.
Permaneceu, depois disso, tão quieto quanto Linley. Passa-
dos alguns instantes a música recomeçou. E Steeger não mais se
moveu ou abriu os lábios enquanto ela durou. Quando sobreveiu
o segundo intervalo, olhei para Linley e êle apenas sacudiu a cabe-
ça. Steeger, então, aspirou profundamente o ar e puxou do lenço,
o mesmo fazendo Linley. Steeger tossiu de novo e assoou o nariz,
repetiu a tossida, e novamente aspirou o ar, terminando com uma
tossida e com uma assoada, precisamente como fizera antes.
E então a orquestra começou de novo. Uma bela música,
imagino, se fosse possível ouvi-la. Eu, porém, estava por demais
ocupado: observava Steeger. Não que êle fizesse mais alguma coisa,
durante a música ou no último intervalo, ou enquanto ainda durou
o espetáculo: não chegou sequer a espirrar mais.
Em verdade não há muito mais o que dizer: Linley me con-
tou depois o que se passou; o que Steeger fêz, quero dizer. Poucos
dias depois ocorreu a invasão da Sicília, e então Linley me falou.
Obteve-me outro dia de licença, em recompensa ao útil auxílio que
disse eu haver prestado, embora eu pense que o auxílio não foi tão
útil assim. De fato, eu em verdade não fiz coisíssima nenhuma,
mas, não obstante, aproveitei a licença e fui a Londres ver Linley.
Êle me proporcionou outro almôço o qual foi muito apreciado, pois
me fêz lembrar os velhos tempos, antes da guerra. Explicou-me,
nessa ocasião, que sinais Steeger havia feito. Êle o fizera em código
Morse. Cada tossida representava um ponto e cada assoada um
128
traço. E a palavra por êle transmitida fora Etna.
— Por que Etna? — perguntei.
Porque era uma palavra muito mais curta que Sicília. Apenas
seis pontos e traços, explicou êle, enquanto a palavra Sicília exigi-
ria pelo menos doze. Etna, ou por outro lado, era mais do que sufi-
ciente. Êle, porém, não conseguiu. Havia um homem no palco com
o dedo colocado num botão e observando Linley durante o tempo
todo; no momento em que êle viu o lenço encarnado de Linley, seu
dedo comprimiu o botão e interrompeu a irradiação. Esta, natural-
mente, foi reiniciada quando a orquestra começou a tocar de novo;
e tudo o que os ouvintes perderam — quer dizer, o mundo — foi o
ruído da assistência se agitando na platéia, e aqui e ali um músico
preparando o instrumento e os pequenos ruídos que se ouvem nos
intervalos. Assim, nem sequer houve necessidade de se explicar o
que sucedeu. Mas a explicação estava pronta para o caso de se ter
de interromper a música.
— Qual era a explicação?
— Um contratempo técnico — esclareceu Linley.
Oh, há ainda outra coisa a acrescentar. Haviam-me recomen-
dado que eu me tornasse tão insignificante quanto possível e que
não me parecesse com um soldado e que, por outro lado, não pa-
recesse que o estava observando. Assim, o que me pareceu melhor
foi apresentar-me exatamente como sou — como sou agora, quero
dizer — voltando ao antigo eu, que é o meu eu real. Isso quer dizer,
se quiserem saber minha opinião, que talvez ninguém conheça re-
almente muita coisa sobre si próprio, ou o que realmente seja. Pois
bem, abordei Steeger quando êle estava saindo e disse-lhe como
estes tempos estavam ruins para os negócios, e para tudo o mais,
já que ninguém podia obter coisa alguma, nem mesmo Num-numo.
Tempos melhores, porém, haveriam de vir e Num-numo reapare-
ceria no mercado. E eu era um bom vendedor, o que pude provar,
pois trazia um ou dois formulários de pedido no bolso. Gostaria êle
de autorizar um pedido? Êle receberia um frasco logo que a guerra
terminasse, e pelo preço antigo, e até mesmo abaixo daquele preço
se êle ficasse com meia dúzia. Nenhum pagamento seria necessá-
rio antes da entrega da mercadoria. E consegui ordem para meia
dúzia, e êle preencheu o formulário indicando o nome e o endereço.
129
Cornelius Westerhouse, foi o que êle escreveu, residente em Ba-
pham Road, 94, Wandsworth. Claro que eu sabia que não existia
tal estrada e que nunca existiu ninguém com o nome de Cornelius
Westerhouse. Mas de um certo modo me era agradável estar de
novo realizando o meu antigo trabalho. . ,
130
O CRIME PERFEITO
151
OS CRIMES DO ESPANTALHO
A. E. Martin
169
Temos uma grande dívida com um dos “mais assíduos” leito-
res do MISTÉRIO MAGAZINE pela seleção e pelo texto do conto que
se segue. O leitor é Paul Kitchen, de Bayonne, Nova Jersey, e deve-
mos confessar que quando Mr. Kitchen chamou nossa atenção para
“Mitrídates o Rei”, de Morley Roberts, ele nos apresentou um conto
de que nunca ouvíramos falar. E estamos muito agradecidos — pois
não devíamos deixar de conhecer este conto fora do comum.
O único trabalho de Morley Roberts que conhecíamos era um
conto bastante curto denominado “The Anticipator”, reimpresso
numa das antologias de Dorothy L. Sayers. “The Anticipator” é da-
quele tipo de história que, uma vez lida, permanece para sempre na
memória. Foi incluída no raro e pouco conhecido livro do autor, The
Grinder’s Wheel (1907), que Christopher Morley certa vez descreveu
como “um achado de grande valor”.
Morley Roberts, cujo nome é raramente ouvido nestes dias de
esquecimento, morreu em 1942 com a idade de oitenta e cinco anos.
Seu primeiro livro foi publicado em 1877 e o último em 1941 — cin-
qüenta e quatro anos de esforço criador. Durante este notável es-
paço de tempo Mr. Roberts escreveu mais de cinqüenta livros, uma
média de um por ano, explorando praticamente todos os gêneros da
expressão literária — o romance, o conto, o drama, a biografia, e nos
últimos anos de sua vida, tratados sobre a política mundial. Foi ami-
go pessoal de Joseph Conrad, W. H. Hudson e Conan Doyle, e seus
“hobbies” favoritos eram o xadrez e a pesca.
Já declaramos que “Mitrídates o Rei” é um conto fora do co-
mum. Em verdade, é muito mais do que isso, O único epíteto que lhe
convém é aquele abusadíssimo qualificativo de “único”. Mas citemos
Mr. Kitchen, o verdadeiro descobridor da história: “A idéia, o pivot
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dessa história é, por certo, tal, que não me recordo de haver lido
coisa semelhante em parte alguma, muito embora tudo se mostre
muito simples e óbvio depois de conhecermos o desfecho... Roberts,
entretanto, manipula a idéia muito divertidamente, e, além disso,
consegue o “clímax” a que os senhores se referem na nota introdu-
tória ao “The Stone Ear”, de Vincent Cornier. Mas em seu conto Ro-
berts sobreexcede Cornier — segurando a explicação do mistério até
a derradeira palavra. A solução de Cornier estava realmente em três
palavras, e estas três palavras foram empregadas no começo da
história, e não de uma maneira totalmente insignificativa, Roberts
reserva sua solução para a última palavra, e é a única vez que tal
palavra (ou significação) aparece no conto!”
Estamos de pleno acordo.
Mr. Kitchen prossegue: “Presumo que irão adotar um novo titu-
lo; o atual me parece pouco feliz e obscuro.”
Neste ponto discordamos de Mr. Kitchen. Não nos parece que
possamos melhorar o título de Morley Roberts. Concordamos que o
titulo original não seja particularmente atraente. E êle é, por certo,
obscuro. Mas o sentido do velho termo farmacêutico — mitrídate — é
absolutamente pertinente, e, se bem que a aplicação a Mitrídate o
Rei não seja perfeita, o termo faz parte do mistério. Mas não procure
a palavra mitrídate ou Mitrídates em seu dicionário ou enciclopédia
antes de ler o conto de Mr. Roberts, que se achava imerecidamente
“perdido.”
MITRÍDATES O REI
Morley Roberts
171
ràvelmente próprios para exibição, embora não exista quem pense
roubá-los; noutras há uma boa quantidade de homens capazes,
mas ali inutilizados para a vida; há alguns não totalmente inutili-
zados; outros há, pouquíssimos, que constituem excelentes funcio-
nários, pois o próprio serviço público nem sempre consegue des-
truir a natural energia de um homem. Destes, Hetherwick Coutts,
da A. G. 15, era um. Aos olhos dos superiores seu concurso, era
inestimável. Seus subordinados, porém, o consideravam uma bes-
ta. Votavam-lhe um ódio unânime e o manifestavam sem a mínima
reserva — quando êle se achava em licença ou fora da sala.
Para alcançar o departamento conhecido tecnicamente como
o A. G. 15, entra-se na porta mais próxima ao Reform Club, e de-
pois se pende para a direita. Depois de se andar mais ou menos
cem jardas, de passar por várias portas, e de contornar cuidado-
samente pilhas de caixas de papel que são humoristicarnente des-
critas como “em trânsito”, o visitante depara com uma escada de
pedra. Nesta altura convém-lhe chamar um mensageiro e gorgeteá-
lo. Depois de uma longa e cansativa jornada o viajante alcança um
corredor escuro que se assemelha à entrada de uma catacumba, e
provavelmente inutiliza, seu chapéu de encontro a um bico de gás
apagado. Abrindo uma porta, penetra no A. G. 15, e quase colide
com eus ocupantes, que usualmente são em númeero de seis.
Hetherwick Coutts ocupava a segunda peça, com um subor-
dinado, a quem um longo estágio no serviço militar, numa posição
subalterna, tornara impermeável ao mau temperamento de qual-
quer superior, a menos que lhe aplicassem pontapés. Justo é dizer
que Coutts nunca lançou mão de tais recursos, nem jamais atirou
objetos nos seus subordinados. Um divertimento sadio consiste em
lançar papéis ao chão e pedir ao inofensivo cavalheiro, que os trou-
xe, que os apanhe de novo.
É um meio desagradável de levantar objeções, e em qualquer
emprego, salvo o de Sua Majestade, esse sistema podia dar origem
a ações por ofensas e agravos. Hetherwick Coutts porém, não era
grosseiro a esse ponto. Vestia-se bem, e procurava viver de acordo
com a moda que lhe ditava o alfaiate. Seu forte era o sarcasmo,
e uma espécie de insolência militar que adquirira de um ou dois
oficiais superiores, que haviam sido relegados para os confins do
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Ministério da Guerra, como deputados-assistentes-ou-coisa-que-
o-valha porque eram demasiado espertos para viver com seus re-
gimentos.
É muito fácil aprender-se a zombar de alguém num grande
escritório. Há a certeza de haver pelo menos um idiota na sala e,
se êle é muito irascível, ou combativo em excesso para sustentar a
discussão verbalmente, surge um momento em que se retira para
fumar um cigarro. Então os outros podem colocar-se diante do fogo
e dizer o que pensam sem receio de uma rixa, que pode muito bem
terminar com arremêssos de tinteiros ou de exemplares da bíblia,
na edição feita para o exército, encadernada em papel vermelho.
Em alguns departamentos do Ministério do Exterior eles lutam
arremessando-se maços de mensagens de felicitações dirigidas a
Sua Majestade, nas quais nossa nobre rainha é cumprimentada
pelo seu natalício ou por qualquer outro evento. Destas mensagens
poucas, em verdade, chegam até Windsor, não obstante as cartas
que lhe acusam o recebimento. Mas em Pall Mall as maiores al-
gazarras e tumultos são feitas com almanaques militares ou com
tocos de vela. Mas deixemos de digressões, se bem que úteis, pois
foi num ambiente destes que Hetherwick Coutts ingressou na sua
primeira mocidade.
Como êle era odiado! — porque não era nenhum idiota, e ti-
nha uma memória prodigiosa.
— Havia um papel sobre este assunto, há cerca de dez anos
— lembrava êle, com facilidade, e os funcionários do empoeirado
arquivo praguejavam quando tal documento era requisitado.
— O senhor já cometeu exatamente o mesmo engano, antes,
Mr. Smith, de modo que lhe falta mesmo originalidade.
E podia recordar o erro de Mr. Smith nos seus mínimos de-
talhes, deixando indignado um homem tão zeloso no cumprimento
do dever.
Descia, então, a particulares absurdos. Um mísero escrivão
de dez pences a hora não podia cortar seus t de tal ou qual manei-
ra, a menos que quisesse procurar outro emprêgo. Procedia, tam-
bém, mesquinhamente, e mais de uma vez cometia erros com o
propósito de admoestar um funcionário por não tê-los percebido.
Às vezes tinha de assinar uma porção de papéis, anotando, em
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cada um, “nada a observar”.
— Se me pedissem informações sobre a inteligência daqueles
que me ajudam — observava êle zombadoramente — eu teria de
requerer um novo suprimento de papel para minuta.
Sempre fingia não ver seus subordinados se os encontrava
na rua, o que o fazia naturalmente muito agradável. Se eles sou-
bessem, porém, que o diretor geral, fazia o mesmo com ele, isso re-
presentaria um bálsamo para suas feridas e os levaria a trabalhar
animadamente durante uma semana. Bufava quando, às vezes, al-
gum funcionário lhe formulava uma pergunta. Brigava com os ser-
ventes. Os mensageiros o detestavam. Os ordenanças sonhavam
surpreendê-lo à noite para arrancar-lhe as entranhas. O garçon
que lhe servia o jantar, ou melhor, o lanche, pensava envenená-lo.
Havia outros, além do garçon, que imaginavam que a melhor
coisa que podia acontecer era Hetherwick Coutts fixar residência
no outro mundo e dirigir um A. G. 15 no mais profundo inferno de
Dante, tendo Satã como comandante em chefe. É comum os su-
bordinados odiarem o chefe, se existe alguma oportunidade de me-
lhorarem de situação quando sua morte sobrevém. E quanto mais
os homens sobem, mais se aguça sua insaciável ambição. Esta é a
maldição do serviço público., Ocultos no recesso de sujos edifícios,
seus problemas não significam nada para o mundo. Sua única am-
bição gira em torno de um poder minúsculo e de uma carteira mais
cheia. E se alguém, em qualquer tempo ou circunstância, odeia o
homem que lhe ocupa um lugar superior, quanto mais — Ó Pobre
Obscuridade! — o detestará se êle lhe barra o caminho, e não é
nem velho nem incapaz, e possue uma ágil e indecente saúde. A
única esperança, então, é vê-lo morrer de apoplexia. Êle tinha um
rosto saudável e sangüíneo — o que os levava a pensar que isso
constituía um bom sinal. Havia dois, pelo menos, que esperavam
tornar-se chefes, quando Hetherwick Coutts estivesse. Odiavam-
se, mas o ódio que votavam ao outro tornava-se, para eles, uma
doença cada vez mais grave.
F. W. Palmer, ou Frederick Wentworth Palmer, era o homem
que, de acordo com a rotina oficial, tinha a melhor chance, pelo
fato de ser o mais antigo a serviço de Lyall Burke. Mas Burke era o
mais capaz dos dois, e tinha uma nítida vocação para a subservi-
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ência. Coutts tinha melhor disposição com respeito a Burke do que
com qualquer outro em torno dele. Já procedera com êle, várias
vezes, com notável amabilidade, o que deixava Burke intrigado, à
espera de qualquer surpresa.
Diante de um propósito firme, o indivíduo deve agir de um
modo ou de outro. Pode esperar e esperar, mas, afinal, êle se abor-
rece de tanto afiar sua navalha em vão. Precisa escanhoar alguém.
Seus pensamentos evoluem conforme sua disposição. Deles brota
a flor do projeto e o fruto da ação. Numa vida mais ampla, é-nos
fácil darmos vasão a nossas energias, mas numa estreita rotina a
raiva, o ódio, e a falta de caridade não faz mais senão florescer. Se
um homem nos molesta sem saber, podemos sorrir e suportar, per-
manecendo em paz. Quando, porém, nos odeia, e nós a êle, o diabo
entra no embrulho, e todo o conteúdo odioso da panela da bruxa se
transformará no feitiço que mal murmuramos entre dentes.
Aquele homem distribuía espinhos no caminho de seus su-
bordinados. Tornara-se deshumano, bestial. Eles odiavam sua for-
çada cortezia. Sob suas línguas macias se ocultava a malícia. O
ciúme e a desconfiança que alimentavam entre si não era nada
quando pensavam nele. Cálidos sentimentos, simulando cama-
radagem, os excitavam quando pronunciavam rutilezas contra o
inimigo comum. Faziam conjeturas sobre sua força vital: quanto
tempo viveria êle? Perscrutavam todas as mudanças que ele reve-
lava: os sinais de uma noite mal dormida levantava-lhes as espe-
ranças. Quando êle se sentia realmente doente, pulso frouxo fazia
o deles acelerar; quando fraquejava, os outros se tornavam mais
fortes; quando êle saia, em licença, os dois se aproximavam. E, de
repente, a besta voltava, tão forte, corajosa e saudável que quase
desfaleciam. Congratulavam-se com êle pàlidamente como dois ve-
lhacos; e, como dois velhacos, ainda, naquela noite transformavam
dois lares num inferno.
Quem pôs a idéia em seus corações, quem os instruiu, quem
lhes deu coragem mesmo para pensar na sua morte do modo como
o fizeram? As sementes de todos os crimes se encontram em todos
os corações, como as sementes de todas as altas virtudes, de todos
os nobres desejos. Humilhe um homem, pode ser que êle não rea-
ja, falta-lhe coragem. Com o tempo, porém, êle reagirá. Esses dois
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homens, independentemente um do outro, determinaram livrar-se
de Hetherwick Coutts. Precisavam matá-lo. E muito naturalmente
voltaram-se para o veneno. Estudaram a coisa em segrêdo.
Hetherwick Coutts, entrementes, comportava-se como uma
exigente dona de casa, que, depois de permanecer até tarde na
cama, levanta-se para descobrir pòzinhos e sujeira em todos os
cantos do apartamento. Isto aqui estava errado, aquilo também:
por que é que quando dava as costas tudo passava a ser mal fei-
to? Tirava a pele de todos, e derramava-lhes ácido nos ferimentos,
deliciado, vendo-os contorcerem-se: usava um hemisfério do seu
grande cérebro para trabalhar e outro para inventar sarcasmos.
Durante duas semanas êle se divertiu extraordinariamente, e esta-
va já caindo na sua rotina habitual depois de conseguir que Burke
e Palmer ficassem tão bons quanto suas más resoluções.
A melhor maneira de induzir seu espírito a fazer alguma coi-
sa boa, sem qualquer moleza ou lentidão, ou falta de completa de-
cisão, é fazer exatamente o contrário, e permanecer do lado de
Ahríman sem nenhuma reserva. Cinco minutos antes de iniciar este
período, li uma carta que me acusava de deixar minha imaginação
escapar com suas faculdades perceptivas. Se isso é verdade, posso
estar errado em pensar que deve estar além de qualquer arte, ou da
prática de qualquer arte, não ter consciência nem remorso e uma
paixão por envenenamento. Penso, assim, que o melhor momento
que os dois subordinados de Coutts tiveram em sua vidinha de
serviço miserável foi quando sc mostraram à altura e começaram
a agir consoante seus impulsos reais. Mas a paixão que conduz ao
crime é usualmente como a aurora de um dia úmido. Há sangue,
e fogo e uma coloração de aspecto imortal a leste, mas êle se acin-
zenteía quando o mar se torna frio e o vento e a chuva aparecem
juntos para apagar-lhe a glória vã. Esses homens, afinal de contas,
eram covardes, muito embora uma vez tenham tido a ousadia de
agir. Pois tiveram.
Eles o envenenaram no mesmo dia, à mesma hora, já que
alguma estranha simpatia os unia. Quando Hetherwick Coutts os
insultou num tom em que concentrava todo seu desprezo, eles lhe
deram uma resposta vulgar e silenciosa, pondo-lhe veneno na cer-
veja. Sentaram-se à parte, num extremo da sala, e o viram esvasiar
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a garrafa. O sangue gelou-lhe nas veias, tremeram e murmuraram
desculpas às suas próprias consciências. Como se sentiram mal,
quando, meia hora depois das duas, êle anunciou que não estava
se sentindo bem e que iria para a casa. Estavam com a garganta
tão seca quanto as fontes do inferno, Foram invadidos pelo arre-
pendimento e começaram a suar frio. O homem, antes de praticar
um crime, deveria provar sua coragem, e não se atirar cegamente
no inferno sem conhecer sua capacidade de suportar um tormen-
to.
O medo que lhes ia na alma passou a refletir-se na expressão
espectral da fisionomia de ambos. Começaram a olhar-se furtiva-
mente, e terminaram por se temerem. — Por que será que Burke
estava olhando daquela maneira? — conjetura Palmer, e idêntica
pergunta se fazia Burke. Sob pretextos tolos, um passou a rode-
ar a escrivaninha do outro. Olhavam-se com o rabo dos olhos. O
despistamento que um notava no outro era uma confirmação. À
medida que as horas passavam, mais se confirmavam suas mútu-
as suspeitas. Quando o relógio deu cinco horas, os demais saíram
como bestas de carga satisfeitas por ter chegado o momento de
serem desatreladas. Os dois permaneceram e lavaram as mãos,
como teriam lavado suas memórias enodoadas. Burke conversava
com seus botões; diria que não se achava disposto a ir para casa;
convidaria Palmer para jantar com êle. O mesmo pensamento se
aninhava no cérebro mais lento de seu colega.
— Se quiser — disse Burke — venha jantar comigo em algum
restaurante. Não me sinto com vontade de ir para casa.
— Muito bem — respondeu Palmer, com uma voz rouca.
Burke sentiu-se um pouco melhor. — Jantaria aquele homem com
êle se soubesse? E se êle o tivesse visto?
Saíram, assim juntos e desceram Pall Mall até Charing
Cross.
— Vamos ao Gatti’s — lembrou Burke. Sentaram-se no extre-
mo do longo restaurante. Ambos procuraram esconder suas faces
na sombra. Mas havia pouca para os dois, e Palmer obteve o que
havia.
Burke encomendou um bom jantar: sopa, vol-au-vent e um
pássaro, e sugeriu champanha. Embora fosse mais miserável que a
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própria Miséria, Palmer não se mostrou surpreso. Este fato fêz com
que o coração do seu anfitrião sofresse um baque.
Comeram como se estivessem a mastigar côdeas secas numa
prisão, e enquanto isso se olhavam furtivamente. Beberam como
se quisessem apagar um fogo interior e adquiriram mais coragem.
Por tudo isso, olhavam como dois sujeitos pálidos e estranhos,
nada simpáticos. Os jovens tolos e as garotas, os velhos tolos e
as pequenas, de modo algum tolos para a sua geração, pareciam
sensatos e grandes ao lado deles. Como há diferentes infinitos, há,
também, diferentes degradações. Sentir-se grandemente amedron-
tado depois de um ato deliberado é mergulhar nos abismos do mais
profundo inferno. Eles continuaram a beber.
Palmer insistia em encomendar mais vinho, pelo qual êle
é que pagaria. Aquilo que os levaria para a sargeta uma semana
atrás não significava nada agora para ambos. Estavam estranha-
mente concientes de que bebiam uma enormidade sem se sentirem
afetados. Puseram-se a beber conhaque, e sua triste e extraordi-
nária sobriedade fêz com que o garçon os respeitasse. Dois caniços
secos, e quanto podiam beber! Levou o fato ao conhecimento do
gerente, que os inspecionou para estimar-lhes a solvência. Saíram,
afinal, e o ar frio da noite os afetou. Desceram o Strand e entraram
num botequim para tomar um traguinho de despedida. Simulavam
amizade, Burke tornou-se mais ousado.
— Para o diabo com o velho Hetherwick Coutts! — exclamou
êle.
— Sim — aquiesceu Palmer, pálido como um defunto. Sua
língua parecia colada. Burke olhou-o, de súbito, e Palmer deu as
costas e se pôs a caminhar. Seu alegre companheiro o seguiu. Su-
biram na direção de Píccadilly em silêncio.
“Gostaria de saber se êle vai para casa”, foi o pensamento que
ocorreu a ambos. “Logo que êle se ver livre de mim, - êle informará
a polícia”, murmuraram. Entraram em Piccadilly, eram doze horas,
ou doze e meia, e véspera de 1.° de Maio. Palmer cambaleou, no
próximo cruzamento, e saiu tropeçando pela ruazinha estreita, que
conduz a Vine Street; a Delegacia de Polícia se encontra ali, no fun-
do de St. James Hall, casa da música e da moral. Burke teve um
súbito e cego acesso de raiva, soqueou Palmer fortemente e o atin-
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giu nos queixos; o outro replicou, e ambos saíram rolando, engalfi-
nhados. Formou-se uma multidão de homens e mulheres, e gritos
e apupos trovejaram sobre eles enquanto lutavam na calçada.
“Dois janotas brigando” — exclamou uma pequena, que um
policial pôs de lado. Dentro de meio minuto eles se achavam no
interior da Delegacia, pois o policial se refreara três vezes, naquela
noite, para não prender alguém. Mesmo a tolerância de um policial
tem limites.
Quase que brigaram de novo para cada um dizer a primeira
palavra, e foram apartados rudemente por um outro policial.
— Afinal, o que houve? — indagou o delegado de plantão.
— Encontrei estes dois bêbados brigando — respondeu o po-
licial.
—- Êle envenenou um homem no Ministério da Guerra —
berrou Palmer, que na sua raiva, envolta em temor, lembrou-se de
acusar o outro do seu próprio crime.
— Foi êle quem envenenou! — retorquiu Burke prontamente.
— Eu o vi.
— Fêz o quê? — perguntou o inspetor. — Cale a boca, por
favor!
Esta advertência era para Burke, e como estivesse recupe-
rando sua calma e auto-contrôle, êle dobrou-se.
— Agora, senhor, repita o que estava dizendo.
— Estava dizendo que esse homem envenenou Mr. He-
therwick Coutts no Ministério da Guerra, nesta tarde. Eu o vi —
disse Palmer, cambaleando, pois estava completamente embriaga-
do.
— E o senhor diz que êle fêz o mesmo?
— Sim — respondeu Burke. — Eu o vi..
O inspetor deu de ombros e os examinou curiosamente. Vi-
rou-se para um sargento, pois recém assumira a função.
— Veiu alguma comunicação do Ministério cia Guerra?
— Não que eu saiba — respondeu o sargento.
— Acho que o melhor, então, é acomodar estes dois cavalhei-
ros por esta noite, pois se não envenenaram ninguém, eles, pelo
menos, estiveram se envenenando — observou o inspetor.
Foram afastados e cada um recolhido a uma cela.
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— Coisa um tanto esquisita, não lhe parece, Bowes? — per-
guntou o inspetor, afastando sua cadeira e se aproximando do fogo
para aquecer-se.
— Parece, mesmo — respondeu o lacônico sargento.
— Acha que houve realmente alguma coisa? — O inspetor
não pôde deixar de fazer a pergunta, pois a coisa parecia de fato
muito curiosa.
— Bebedeira, chefe! — respondeu Bowes.
— Amanhã cedo mande alguém ao Ministério da Guerra in-
dagar a respeito desse homem, desse Mr. Hetherwick Coutts.
E na manhã seguinte o sargento cumpriu a determinação.
Às onze horas Mr. Hetherwick Coutts estava no seu costumeiro
lugar, e em resposta às perguntas sobre sua saúde, declarou que
se sentia muito bem, embora tivesse se sentido muito mal na tarde
e na noite anteriores. Palmer e Burke nada ficaram sabendo da
indagação.
— Mas eu lhe dei uma dose de atropina suficiente para matar
dois homens! —- ficou Palmer conjeturando.
— Mas eu lhe dei uma dose de muscarína capaz de matar um
cavalo! — disse Burke para os seus botões.
Mas acontece que estes dois venenos são antídotos.
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PRÊMIO ESPECIAL PARA O MELHOR CONTO-MIRIM
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OH TEMPO, EM TUA FUGA
Vincent Cornier
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