Antoine B. Daniel - Os Incas - 02 - O Ouro de Cuzco PDF
Antoine B. Daniel - Os Incas - 02 - O Ouro de Cuzco PDF
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FOLHA DE ROSTO
PRÓLOGO
PRIMEIRA PARTE
Cajamarca, 14 de abril de 1533, ao amanhecer
Cajamarca, 14 de abril de 1533
Cajamarca, junho de 1533
Cajamarca, 25 de julho de 1533, ao amanhecer
Cajamarca, noite de 25 de julho de 1533
Cajamarca, manhã de 26 de julho de 1533
Cajamarca, 26 de julho de 1533, crepúsculo
Cajamarca, noite de 26 de julho de 1533
SEGUNDA PARTE
Cordilheira de Huayhuash, 5 de outubro de 1533
Hatun Sausa, 11 de outubro de 1533
Hatun Sausa, 15 de outubro de 1533
Vale do Apurimac, 30 de outubro de 1533
Vilcaconga, 8 de novembro de 1533
Vilcaconga, noite de 8 para 9 de novembro de 1533
Vilcaconga, 10 de novembro de 1533
Rimac Tambo, 13 de novembro de 1533
Jaquijaguana, noite de 13 de novembro de 1533
Jaquijaguana, 14 de novembro de 1533
TERCEIRA PARTE
Cuzco, 15 de novembro de 1533
Cuzco, 15 de novembro de 1533
Cuzco, noite de 15 de novembro de 1533
Cuzco, fim de novembro de 1533
Cuzco, noite de 4 de dezembro de 1533
Templo de Cuzco, 20 de dezembro de 1533
Cuzco, 25 de dezembro de 1533
Cuzco, janeiro de 1534
Cuzco, janeiro de 1534
Kenko, janeiro de 1534
QUARTA PARTE
Cuzco, julho de 1535
Tiahuanaku, agosto de 1535
Cuzco, agosto de 1535
Cuzco, setembro de 1535
Tupiza Grande Salar, novembro, dezembro de 1535
Huchuy Qosgo, dezembro de 1535
Deserto do Grande Salar, dezembro de 1535
Huchuy Qosgo, fevereiro de 1536
Lago Titicaca, fevereiro de 1536
Calca, abril de 1536
GLOSSÁRIO
Antoine B. Daniel
— Os —
INCAS
Volume Dois
O Ouro de Cuzco
Digitalização de Clodoaldo
Revisão de Edinaldo Celestino da Silva
Formatação de LeYtor
OBJETIVA
ANTOINE B. DANIEL
OS INCAS
VOLUME DOIS
O OURO DE CUZCO
PRÓLOGO
Rédeas na mão, pousando com cuidado as botas nas pedras quebradiças, Gabriel
vai à frente, precedido apenas por dois carregadores que levam lonas para tendas. A
largura da trilha só permite que seu cavalo baio possa segui-lo sem se assustar.
Desde o alvorecer, eles avançam ao longo de uma falésia sem nenhum ponto de
referência. A cerração é tão forte que não dá para ver o céu nem o rio, cujo rugido
estrondoso eles ouvem ao longe, vindo de baixo. Mas, de repente, como sugada por
uma boca gigante, a bruma se levanta desde a base da montanha verƟcal. Estende-
se, ora se concentrando, ora se esgarçando nas arestas dos rochedos. Qual uma
carícia, uma brisa cálida roça o rosto de Gabriel.
Ele pestaneja, pousa uma das mãos no lombo do cavalo e pára. Num instante, a
claridade torna-se fulgurante e o céu, de um azul lavado.
Só então, vê que chegaram apenas à metade do abismo. A picada não sobe um
vale, mas sim um corte na montanha, tão estreito que parece ter sido talhado por um
machado gigante. Ao sol, uma miríade de plantas suculentas e liquens grudados no
paredão da falésia cinƟla com um brilho molhado. Cem toesas abaixo, o rio
engrossado pelas chuvas dos dias precedentes ruge como fera, o ventre aberto
revolto. Está tão cheio de terra e areia desbarrancadas que suas águas agitadas
ganharam um tom ocre escuro, grossas como barro para encher taipa. Aqui e ali, elas
arrastam troncos, galhos, maços de mato ou moitas de orquídeas e de cantutas.
Olhando para trás, como uma serpenƟna colorida no pano de fundo da rocha
esverdeada, Gabriel vê agora a longa coluna que o segue a uma certa distância. Cem
carregadores vergados sob o peso do ouro, quase o mesmo número de lhamas,
seladas como burros, atrás deles, espanhóis puxando seus cavalos pelas rédeas, a
pluma vermelho sangue do morrião incrustado de prata de Hernando Pizarro e,
finalmente, a grande maca do "convidado" de honra, o general inca Chalkuchimac.
Há cinco semanas, Gabriel deixou Cajamarca para ir ter com o irmão do
Governador, que foi para o sul buscar o máximo de ouro possível. Os homens estão
de volta, a missão mais que cumprida.
Com seu jeito, manhoso e violento, sem se incomodar mais em bater do que em
menƟr, Hernando convenceu o primeiro dos generais do Inca prisioneiro Atahualpa a
unir-se a eles. Assim, Chalkuchimac, considerado o mais terrível guerreiro inca,
segue-os na liteira até Cajamarca para encontrar seu senhor. Se há 20 de seus
soldados a escolta-lo, é muito! Apesar do desprezo cada vez maior que sente pelo
comportamento de Hernando, Gabriel só pode apreciar o feito. Esse modo de
captura pacífica do general inca talvez acalme os eternos receios da tropa. Desde o
episódio que os espanhóis entre si gostam de chamar de a Grande Batalha de
novembro, não há um soldado que acorde de manhã sem medo de ter que enfrentar
um ataque do exército de Atahualpa que, segundo os rumores, ainda é numeroso e
poderoso...
- Ei! - resmunga Pedro o Grego atrás de Gabriel -, o senhor vai se dignar a avançar
ou deveremos ficar plantados aqui até o Natal?
Gabriel sorri sem replicar. O gigante grego está rabugento desde de manhã. Como
muitos, está cansado de puxar o cavalo em vez de montá-lo! A menos que o fato de
não ter a seu lado o inseparável companheiro, o negro SebasƟan, que segue um
pouco mais adiante na coluna, seja a causa de seu mau humor.
Os homens retomam a caminhada com prudência, levando as montarias com rédea
curta para evitar intervalos.
Ora sobem regularmente, felizes de senƟr afinal o calor do sol no rosto, ora uma
sombra passageira esconde o sol, correndo como um traço escuro nos flancos da
falésia.
Gabriel ergue o rosto: um pássaro imenso plana sobre o canion com uma lenƟdão
circunspecta, sem bater asas. Embora no alto, parece imenso.
A cada meia jornada, Gabriel deduz o tempo, lenơssimo, que ainda o mantém
afastado de Anamaya. Perscruta cada cume de montanha esperando, contra a lógica,
que aquela seja a última e que finalmente eles estejam descendo para Cajamarca.
Sente falta de tudo da amada: da voz, da boca, da nuca, do perfume de relva seca
e flor apimentada. Quisera beijar seus ombros e seu ventre, mas sua boca só sorve o
frio da montanha. À noite, acorda como se esperasse suas carícias, seus sussurros, o
azul imenso de seus olhos quando fazem amor. Sonha com aquele corpo que ela
sabe lhe negar e lhe entregar, com sua doçura selvagem, com seu jeito de inclinar a
cabeça semicerrando as pálpebras quando ele diz baixinho que a ama. Ri ao se
lembrar de sua Ɵmidez quando ele lhe ensinou esta palavra na língua da Espanha.
Levanta-se, gelado, e vai esperar a aurora, enrolado numa manta úmida. Através
das brumas e das chuvas, nos cumes das montanhas e nas curvas dos vales, quer
encontrá-la. Então esse Peru, essa terra tão estranha quanto uma estrela espetada no
céu, lhe parece magnífico por ser a terra dela. E às vezes, durante as longas
caminhadas do dia, ele observa os olhos tristes e assustados dos carregadores,
procurando decifrar algo dela em seus traços.
- Ei! Sonhador - diz bruscamente Candia atrás dele, apontando o dedo enluvado -,
olhe um pouco o que nos espera!
Trezentos passos adiante, numa curva do rio e um pouco abaixo, uma ponte de
cordas liga os dois lados abruptos do cânion. Uma ponte tão comprida que pende
como um colar sobre um peito encovado.
Gabriel diminui o passo. O gigante grego, o rosto lívido sob a barba cerrada,
alcança-o resmungando:
- Não estou gostando disso. E os cavalos vão gostar menos ainda!
Gabriel, sem escutá-lo, assobia entre os dentes, admirado.
- Por Santiago! Como eles conseguiram construir essa ponte?! - exclama.
- Essa é uma questão que não me interessa a mínima, companheiro! Você devia era
querer saber como vai passar em cima dela e se ela vai agüentar...
- Botando um pé na frente do outro, acho eu - graceja Gabriel. - Você estaria com
medo, Grego?
- Não estou com medo. Não estou é gostando disso!
- Na verdade, amigo, acho que sua única saída é tentar gostar! Ou transformar seu
cavalo em Pégaso...
Pedro faz uma expressão contrariada, sem convicção.
Enquanto avançam de novo ao longo da falésia, os homens descobrem no fim do
caminho os pilares monumentais onde se prendem as cordas da ponte. Finamente
trançadas, elas são da grossura de uma coxa de homem.
Toda uma rede de cordas e nós forma o guarda corpo da obra, mais larga que as
trilhas por onde eles acabam de passar.
Gabriel fica um instante petrificado de admiração. Os operários e os arquitetos
incas, mesmo sem possuir nenhum instrumento de ferro, nem serra, nem goiva, nem
plaina, conseguiram fazer uma construção tão elegante quanto práƟca. Três das
enormes cordas sustentam um tabuleiro de toras minuciosamente presas umas às
outras. Para tornar a superİcie menos escorregadia e perigosa, finos ramos são
encaixados em cima das toras, para nivelar a superfície.
- Por Nossa Senhora! - blasfema Candia. - Olhe!... Olhe, Gabriel, a ponte se mexe!
Fica cavada...
É verdade, constata Gabriel. É um volume pesado, uma verdadeira rampa que
desce para o rio rugindo lá embaixo, e balança suavemente ao vento que, no entanto,
não é violento.
- Digo-lhe que não vai agüentar o peso dos cavalos! - insiste Pedro. - Ei, Grego!
Você já foi mais corajoso! Está vendo o tamanho das cordas e o peso dos troncos, é
coisa sólida...
Do outro lado, aparecem guardas indígenas. O resto da tropa começa a ir ao
encontro deles e os carregadores aguardam com uma aƟtude indolente, na qual a
curiosidade desponta sob a apatia, que os estrangeiros dêem os primeiros passos
com os cavalos.
Gabriel Ɵra o comprido lenço azul da cor dos olhos de Anamaya, o qual não sai
mais de seu pescoço, e começa a vendar com ele os olhos de seu cavalo baio.
- Faça como eu, Pedro - diz. - Tape os olhos do seu cavalo, para ele não ver o
abismo nem o rio...
Com prudência, segurando no alto a rédea do baio, sussurrando-lhe palavras que
tranqüilizam a ele mesmo, Gabriel se aventura entre os pilares. Com alguns passos,
está em cima do abismo. Quanto mais avança, mais violento fica o rugido do rio,
como um ladrar constante a subir do vazio.
Por entre as cordas, ele vê a coluna, a liteira do general inca, a pluma do capacete
de Hernando chegarem ao início da ponte. Todos o espreitam. Ele grita:
- Siga-me, Pedro, está tudo bem!
- Já estou atrás de você! - berra Candia com sua voz estentórea. - Não vá pensar
que vou deixar você bancar o herói sozinho!
Gabriel sorri e aperta um pouco o passo. O cavalo o acompanha bem, confiando
em seu comando. Descem com facilidade rumo ao ponto mais baixo da ponte.
Parece que a rampa se acentua. Gabriel tem que jogar os ombros para trás, como se
a cada passo enfiasse o salto da bota na lama e não nesse leito de galhos. Com a
mão esquerda, agarra-se às cordas ásperas, enquanto os cascos do cavalo
escorregam e descobrem as toras.
O ronco do rio fica ensurdecedor. Dá para ver a lama correndo, os vagalhões
quebrando nas rochas numa explosão de espuma tão violenta que sobe uma espécie
de chuvisco nessa parte do cânion.
Um ruído surdo, um grito, chega então a Gabriel. Seu cavalo lhe bate no ombro,
bufando ruidosamente. Gabriel se vira e ouve Pedro vociferando:
- Raio de ponte miserável!
Gabriel quase riu. O Grego escorregou e caiu sentado, uma bota já no abismo.
Mas conƟnua segurando as rédeas do cavalo, e o animal, o pescoço arqueado, as
patas dianteiras cavando o piso, segura o amo.
Inclinando-se para o lado, Candia agarra uma corda e consegue se ajoelhar,
bufando. A pluma rosa de seu capacete se parte e voa para o vazio, girando devagar.
Custa muito a ser devorada pela fúria do rio.
- Está tudo bem? - pergunta Gabriel.
- E por que não estaria? - berra Candia.
Lá em cima, na entrada da ponte, Gabriel vê Hernando sorrindo, cercado por seus
homens de confiança. Mesmo ao longe, mesmo com a sombra da barba, adivinha o
desprezo odiento desse sorriso.
- Vamos em frente - resmunga de si para si.
Mas o incidente mudou o equilíbrio da ponte e, estranhamente, parece lhe ter dado
vida. Ao balanço lateral, alia-se uma estranha ondulação, como se o tabuleiro da
ponte Ɵvesse sido colhido por uma onda. Quanto mais avançam, mais violento fica
esse movimento. A cada subida da onda, a cada sacolejo, o cavalo hesita. Gabriel
puxa a rédea, mas é vencido pelo enjôo. Num instante, o suor lhe cola no corpo a
camisa e o gibão.
Então, tudo pára de repente. Eles estão suficientemente próximos da outra
margem
para que as cordas se esƟquem. Os guardas indígenas lhes sorriem. Com o
estômago embrulhado e o coração na boca, Gabriel aperta o passo e termina a
travessia quase correndo. Sem se dar conta, berra como numa estocada. Os guardas
param de sorrir e saem correndo, sumindo num grupo de construções cercadas por
um muro.
O Grego o encontra na ampla plataforma situada na saída da ponte, e os dois se
abraçam rindo muito, trocando palmadas nas costas.
***
Durante quase uma hora, os lhamas e os carregadores indígenas atravessam a
ponte sem incidentes. A destreza dos carregadores da liteira do general inca é
espantosa. Eles parecem literalmente deslizar ao longo das cordas, sem fazer caso do
balanço. A própria liteira permanece estável e horizontal, e as cortinas quase não
balançam.
Já a destreza dos cavaleiros e soldados de infantaria espanhóis é desigual. Eles se
encorajam com gritos inúteis e seus gestos não têm o ritmo e a precisão dos índios.
Alguns vomitam na própria ponte; a maioria chega pálida a outra margem.
SebasƟan atravessa sem problema e vem se postar ao lado dos dois amigos,
saudandoos com uma simples piscadela.
O sol logo está a pino. Uma leve brisa dispersa as úlƟmas nuvens que obstruem o
oeste do vale. Naquela claridade violenta, o verde dos arbustos ganha uma
profundidade de esmeralda. Riscando o azul profundo do céu, já não é um condor,
mas dois, três, dez que rondam num balé majestoso. Gabriel não consegue deixar de
admirá-los, encantado de vêlos chegar cada vez mais perto. IdenƟfica melhor os
longos pescoços, os bicos enormes, curvos como uma adaga turca. Mas são as asas,
sobretudo, que o impressionam. De um negro absoluto, refleƟndo o sol como placas
de aço adamascadas e imensas, parecem eternamente imóveis, vibrando apenas com
as correntes de ar. Pelo que Gabriel está vendo, a envergadura dos maiores condores
ultrapassa com folga o corpo de um cavalo!
Insensivelmente, as aves vão fazendo voltas mais amplas. Inclinando-se nas
curvas mais secas, vão mais longe rio acima. Voltam, voando tão baixo que, de
repente, apesar do barulho do rio, ouve-se um farfalhar vibrando no ar.
Os úlƟmos carregadores a atravessar a ponte estão na metade do caminho quando
isso acontece.
Dois a dois, tendo pousada no ombro uma comprida vara de bambu de onde
pendem carcaças de lhamas jovens com que os espanhóis gostam de se banquetear,
dez índios avançam com prudência. Já avançaram bastante e pegaram o ritmo da
ondulação da ponte, a não ser uma dupla de retardatários que parece ter dificuldade
em manter o equilíbrio.
De repente, os primeiros carregadores interrompem a marcha, olhando para o céu
com uma expressão aflita. Só então Gabriel compreende. Um dos condores está
voando tão baixo, tão perto das cabeças dos úlƟmos carregadores que parece que
vai bater neles. Espantados, os dois índios erguem o braço para se proteger. A
carcaça do lhama cai, girando sobre si mesma, imediatamente seguida por um
segundo condor, antes de se precipitar nas corredeiras.
Descrevendo uma curva graciosa, a imensa ave de rapina imediatamente ganha
altura, soberba e insolente, para tornar a mergulhar em cima da ponte. parece furiosa
por ter deixado escapar a presa. Suas congêneres entram por sua vez no balé. Uma
após a outra, asas a frente, o pescoço enfiado no colar imaculado, bicam os
carregadores, agora deitados na ponte e uivando de medo.
Gabriel consegue finalmente entendê-los:
- Kuntur! Kuntur!
Sob o olhar estupefato de todos os que estão na margem, dois índios brandem as
carcaças de lhamas por cima das cordas da ponte.
Então o primeiro condor, majestoso, vem até eles, tão lentamente que parece que
vai pousar. Abre as garras compridas como uma mão humana, agarra a presa e a
leva para o céu.
Gabriel, ofegante, ouve o gemido que sai da boca dos índios enquanto as aves
desaparecem:
- Kuntur! Kuntur! ..
- Meu Deus, o que deu neles? - pergunta Pedro o Grego, os olhos ainda arregalados.
- O condor é um animal sagrado para eles - explica Gabriel -, os incas vêem nele
um mensageiro do Deus Sol deles e...
Mas não tem tempo de dizer mais nada. Um rugido de fúria faz com que ele se vire.
Hernando, na entrada da ponte, insulta os carregadores que chegam correndo.
- Bando de imbecis! Vocês têm medo das aves! Quem mandou jogarem esses
lhamas?
Os carregadores, o medo ainda estampado nos olhos, param a alguns passos do
irmão do Governador. Hernando agarra bruscamente Felipillo pelo ombro, o tradutor
que os segue desde o desembarque de Tumbez.
- Diga a esses macacos que não quero que se desperdice comida! - ordena.
Felipillo resmunga alguma coisa. A cabeça baixa, o mais velho dos índios
responde de modo quase inaudível:
- Eles dizem que é preciso alimentar o condor quando ele tem fome, senão o Deus
Sol fica furioso!
- Selvagens do inferno! - berra Hernando. - Alimentar as aves e o que mais? Eu
não quero saber da fúria do sol! É a minha que vocês vão conhecer...
Em três passos, Hernando passa de novo embaixo dos pilares, agarra o velho
carregador
e, com embalo, levanta-o e balança-o por cima das cordas da ponte com um grito de
lenhador.
Sem acreditar em seus olhos, Gabriel vê o espanto nos rostos, a grande mão
aberta do carregador caindo no vazio, sua boca aberta para deixar sair um grito que
não vem. Depois o homem não é mais que um fantoche gesƟculando. Bate na quina
de uma pedra que o projeta como uma massa mole no rio. Some nas águas como se
nunca tivesse existido.
No silêncio, Hernando vira-se para os espanhóis e sorri.
- Aí está um que não sabe voar, parece - diz ele com uma alegria sinistra.
Os índios ficam perturbados, sem ousar sequer olhar para a torrente. SebasƟan
não conseguiu conter um soluço de surpresa e seu eterno sorriso virou uma careta; o
escravo, o rosto cinza, treme, impotente. Gabriel, invadido pela raiva, aproxima-se
de Hernando como se Ɵvesse que deslocar um corpo de chumbo. Planta-se diante do
irmão do Governador, tão perto que sente seu bafo na cara.
- Dom Hernando, o senhor é um merda e fede!
Hernando não responde. Seus olhos se apertam até virarem fendas através das
quais brilha o ódio. Profundo, infinito. Em voz baixa, ele diz afinal:
- Não ouvi direito o que você disse, seu bosta filho da mãe.
- A sua presença empesteia o ar, dom Hernando. O senhor não é una homem, nem
um cristão. O senhor envergonha seu nome. Seu sangue é lama e seu cérebro está
podre há muito tempo!
- Por Cristo!
A espada de Hernando sai da bainha. Gabriel só tem tempo de abaixar os ombros
para evitar a lâmina que quer atingir seu pescoço.
- Ahh!
Aos berros, Hernando fusƟga o ar e se dobra, mas outra vez Gabriel foi mais
vivo, esquivando-se com um pulo, os braços abertos, com um movimento de dança.
- No dia em que o senhor morrer, dom Hernando - diz ainda Gabriel, a voz menos
trêmula, quase divertida -, nem os bichos que comem carniça vão querê-lo!
- Venha lutar! - grita Hernando Ɵrando o morrião para ficar mais à vontade. -
Pegue a espada, seu idiota filho da mãe!
Em volta deles, todos recuaram. A lâmina ágil de Gabriel range e refulge quando
ele a saca com desenvoltura. Os ferros se chocam Ɵnindo. Por um instante, a cena
parece transcorrer em câmera lenta, como se entre eles Ɵvesse se formado um bloco
invisível, intransponível.
Depois Hernando afasta as pernas. Sua lâmina desliza sobre a de Gabriel, que
pára, joelho e cintura flexionados, erguendo a espada acima do ombro. Os ferros se
chocam com força. Gabriel repele Hernando e se desvencilha girando, um sorriso
nos lábios. O irmão do Governador está pesado, esbaforido de raiva, embrutecido
pela violência. FusƟga o vazio com a lâmina como um cão abana a cauda. Gabriel
se contenta agora em se preparar aos poucos. Vê a fúria louca nos olhos de
Hernando. Então, aproxima-se de um salto, o tronco de perfil. Sua lâmina desliza
sobre a espada de Hernando, envolvendo-a agilmente. Gabriel põe todo o peso do
corpo nas armas e, com um movimento ágil, abre o braço para a direita.
Com um Ɵnido de sino, a espada de Hernando voa aos pés de Candia, que não
consegue conter o riso.
Espetando o gibão de Hernando com a ponta da espada, Gabriel o empurra,
obriga-o a recuar. A boca deformada, os olhos de Hernando transmitem uma
expressão que Gabriel nunca viu. Está com medo, pensa com prazer.
- O senhor ignora que o sofrimento tem duas faces, dom Hernando - sussurra. - O
medo nos olhos dos outros o excita, mas o que diz do medo que agora está lhe
torcendo as entranhas? Mais um esforço e seus calções receberão um peso extra...
Sem parar de falar, Gabriel força Hernando a recuar até a beira do rio, exatamente
onde ele jogou o desventurado carregador.
- Pode ficar com medo, não vou matá-lo. Mas tenha certeza de que o Governador
dom Francisco terá que julgar seus delitos. O senhor está levando muito ouro para
Cajamarca, e um grande general do senhor desta terra. Isso não vai desculpá-lo por
tudo.
Pode me ameaçar, pela Virgem Santíssima! Vamos ver quem vai sofrer no final.
Hernando brincou, mas todos sentem que não está achando graça. A humilhação
que acaba de sofrer é demasiado flagrante.
- Paz, senhores, a lição está dada! - corta Candia, o Grego, tocando o braço de
Gabriel. Deus é testemunha: dois conquistadores não podem lutar um contra o outro
sem dignidade nem perigo, pelo bem da Conquista! Dom Hernando, aqui está sua
espada. Vamos seguir em frente, por favor.
Hernando e Gabriel se olham de alto a baixo, Gabriel baixa a espada. Mas é
Hernando quem abaixa os olhos.
Atrás deles, a cortina que protege a liteira do general Chalkuchimac se fecha sem
ruído.
Na hora em que a coluna se põe em marcha, SebasƟan pega Gabriel pelo braço.
Dá alguns passos com ele, em silêncio. Depois se inclina em seu ouvido e diz:
- Obrigado.
PRIMEIRA PARTE
Capítulo 1
Cajamarca, 14 de abril de 1533, ao amanhecer
"Amo você", murmura Anamaya para o dia que vai raiando pálido sobre
Cajamarca. A noite ainda está escura, mas a fumaça que paira sobre os telhados de
palha se Ɵnge de azul.
Anamaya está sozinha.
De mansinho, deixou o palácio onde Atahualpa está preso. Afastou-se, rápida
como uma sombra, pelas ruas estreitas que correm ao longo da ladeira que domina a
praça. Logo chegou ao rio e ao caminho de acesso à estrada real.
- Amo você - repete. - Te quero!
As palavras lhe vêm com tanta facilidade na língua dos espanhóis que todos se
espantam, conquistadores ou índios! Junto aos seus, isso até despertou uma
desconfiança antiga. Mais uma vez, ficaram falando dela por trás. Pouco importa!
Ela desliza correndo ao longo das casas, confundindo-se com a escuridão dos
muros para fugir da vista dos guardas que vigiam o palácio de Atahualpa e o quarto
do resgate onde os tesouros vieram se amontoar aos milhares.
Só a visão dessas cargas preciosas parece embriagar os que ganharam a batalha
de Cajamarca e ousaram botar a mão no único Senhor Atahualpa. Como se o ouro
pudesse lhes conferir poderes mágicos que eles não possuem!
Em Anamaya, essa pilhagem provoca apenas uma tristeza profunda e silenciosa.
Mas os homens são insaciáveis. Para encher ainda mais o salão do resgate, dom
Hernando Pizarro foi pilhar o grande templo de Pachacamac, na longínqua praia do
mar do Sul. Como demorasse a voltar, o Governador dom Francisco enviou Gabriel
e alguns homens de confiança atrás de seu irmão.
Gabriel... Anamaya deixa o nome lhe vir ao coração, sonoridade tão estranha e
tão doce... Evoca o rosto do estrangeiro de cabelos de sol, sua pele tão branca, o
sinal do puma escondido em seu ombro, marcando a ligação deles, essa ligação
secreta que ela lhe revelará um dia.
Gabriel não gosta de ouro. Ela o viu mais de uma vez permanecer indiferente e
até se irritar com a alegria louca dos companheiros com o mero contato com algumas
folhas de ouro.
Gabriel não aceita que os índios sejam espancados a toa, nem que sejam
acorrentados e mortos.
Gabriel salvou o único Senhor da espada.
Anamaya se lembra das palavras de Atahualpa, quando possuíam ainda todos os
poderes do único Senhor. Na véspera da grande batalha, vendo os estrangeiros pela
primeira vez, ele dissera:
- Gosto dos cavalos deles, mas, a eles, eu não entendo.
Ela poderia dizer como ele: "Gosto de um deles, o que atravessou o oceano por
mim. Mas, a eles, eu não entendo."
***
***
***
***
***
- Agora - afirma lentamente Atahualpa - eles vão me libertar.
O Único Senhor está sentado em seu tripé real, uma capa de lã fina nos ombros.
Sua voz é surda. Como se apenas repelisse o silêncio.
O aposento é grande e sempre escuro. Nem luz nem ar penetram ali, e a fumaça
dos braseiros encardiu as pedras, o alto das tapeçarias e as vigas de madeira. Vários
nichos estão vazios ou contêm apenas magníficas urnas rituais de madeira entalhada
para a cerveja sagrada. A maioria dos potes de ouro, as taças de prata, as estatuetas
de divindades, tudo está há muito tempo amontoado no quarto do resgate.
Assim é que a cada visita de Anamaya, o único Senhor manda saírem as criadas,
as mulheres, as concubinas. A inƟmidade de um instante é tudo o que resta de sua
anƟga liberdade.
Pela abertura que dá para o páƟo do palácio, o sol só chega ao limiar. Desenha
um retângulo amarelo-claro no lajedo.
O vulto de Atahualpa sai penosamente do escuro. Anamaya não consegue deixar
de estremecer ao pensar que aquele que foi o Inca, deslumbrante de sol, desliza
agora lentamente para o mundo de baixo.
O llautu, a faixa real, conƟnua em sua testa, com as plumas negras e brancas do
curiguingue, o símbolo supremo do poder do único Senhor. Anamaya nota que ele já
não tem mais brincos de ouro nas orelhas. O lobo esquerdo, aberto como um anel de
carne morta, bate em seu ombro. Suas esposas lhe fizeram uma Ɵra de fina alpaca
que lhe prende os cabelos para esconder o lobo rasgado da outra orelha.
Anamaya evita olhar para esses sinais lamentáveis de um poder que se esbate.
Dia a dia, parece que a alma de Atahualpa o vai deixando. As virgens ainda lhe
tecem túnicas para cada novo dia. Oferecem-lhe o alimento em potes que ninguém
mais uƟliza. Os de sua casa, mulheres ou homens, os poucos poderosos que, como
ele, estão prisioneiros nos palácios de Cajamarca, temem suas palavras como antes.
Os estrangeiros se inclinam diante dele antes de falar e o Governador espanhol lhe
manifesta o respeito devido a um senhor. No entanto, Anamaya não consegue deixar
de ver em tudo isso uma encenação que se desgasta. Vê que o único Senhor está
ficando encurvado, que seu rosto está ficando flácido, que o vermelho de seus olhos
vai se escurecendo. Sua boca não está tão bonita nem tão autoritária. Sua
imobilidade demasiado freqüente e pesada. Seu corpo todo parece estranhamente
menor.
Nele desaparece o conquistador, o filho do grande Huayna Capac. Atahualpa
ainda e o único Senhor que vive no palácio de Cajamarca, porém não é mais o
poderoso Filho do Sol que venceu seu irmão louco de Cuzco. Não passa de um
prisioneiro sem correntes sonhando com a libertação.
Ela queria lhe contar o que acaba de ver na estrada da garganta. Avisá-lo de que
Chalkuchimac está lá, em sua liteira, como a primeira das jóias de ouro que os
estrangeiros não param de trazer. Mas não ousa, e Atahualpa repete:
- Agora, já há ouro suficiente, eles vão me deixar ir embora.
- Não sei - responde Anamaya desviando o olhar. - O quê?
- Não sei - repete ela.
Atahualpa faz um gesto de irritação apontando para a sala do resgate. - Escolhi o
maior aposento de meu palácio, tracei no muro uma linha
que marcaria a altura que o tesouro aƟngiria para o meu resgate. Essa altura foi
atingida.
- Eu me lembro, único Senhor - aprova Anamaya com delicadeza.
Os estrangeiros riam, achavam que a loucura o tivesse dominado.
- Indiquei-lhes onde encontrar nossos objetos de ouro e prata. Disse eles poderiam
pegar tudo, em todas as casas, menos nas que foram de meu pai.
- Sei disso, único Senhor.
Um sorriso clareia o olhar de Atahualpa.
- Não ignoro que estou falando com a esposa do Irmão Duplo de meu pai...
Anamaya marca uma pausa imperceptível e recomeça:
- Único Senhor, os que partiram para o Pachacamac estão de volta hoje.
- Como sabe?
Anamaya não responde. Não quer sublinhar sua fraqueza. - Eles estão chegando
com muito ouro.
Um sorriso ilumina o rosto do Inca.
- Não é o que eu lhe dizia? Vou ficar livre.
- Único Senhor - diz ela com uma voz tão baixa que é quase inaudível. - O grande
aposento estará repleto de ouro, com todos os nossos objetos sagrados, os mais
anƟgos assim como aqueles que os joalheiros acabam de terminar. Mas os
estrangeiros não sairão de seu reino. Vão querer ir até a Cidade Sagrada. Vão encher
a grande sala e irão tomar o ouro de Cuzco. E mesmo que lhe tenham promeƟdo
pelo Deus e pelo Rei deles não tocar em nada que for de seu pai Huayna Capac, só
de ver o ouro, esquecerão a promessa. Você sabe disso, único Senhor...
Atahualpa baixa os olhos.
Anamaya não quer mais se calar. Prossegue com doçura.
- Outros estrangeiros estão chegando em seu reino, único Senhor. Com cavalos,
armas, e também querem ouro.
- Sim - murmura Atahualpa. - Não gosto daquele que é muito feio, que é caolho...
As palavras são confusas na boca de Atahualpa, como se fossem de uma criança
hesitante.
- Almagro é o nome dele.
- Não gosto dele - repete o Inca. - Os olhos dele não mentem! Ele e os que vieram
com ele tomam mulheres sem a minha permissão. Depois riem se lhes proíbo isso.
Ele se diz amigo de Pizarro, mas, em seus olhos, vejo que isso não é verdade...
- Por que esses homens estão aqui, único Senhor, senão para tomar mais e mais
ouro?
- O irmão de Pizarro há de me proteger - diz Atahualpa. - Ele é poderoso.
- Hernando? Perdoe-me, único Senhor, mas não confie nele. Ele é um impostor.
Atahualpa sacode a cabeça:
- Não! Ele é poderoso e os outros têm medo dele.
- Está dizendo isso porque ele tem um porte imponente e cuida do traje, ao
contrário dos outros, que andam ma afiambrados, sujos como esses animais que
importaram e que infestam nossas ruas. A pluma em cima de seu capacete é
vermelha, mas sua alma é negra.
Uma esperança envergonhada invadiu o semblante de Atahualpa. - Ele prometeu
que me ajudaria. Se não fizer isso...
Sua voz fica um tom mais baixa. Ele faz sinal para que Anamaya se aproxime. A
luz volta a seus olhos, que brilham com uma excitação ingênua. - Se ele não fizer
isso, os milhares de combatentes reunidos por meus fiéis generais virão me libertar.
Chalkuchimac está em Jauja, e está pronto.
Vai avisar os outros...
Anamaya abafa um grito.
- Ó, único Senhor!
Mas, enquanto ela hesita, ouvem-se gritos no páƟo. Um servo vem se curvar à
entrada do aposento. Anamaya sabe o que ele vai dizer e fica gelada. - Único
Senhor... O general Chalkuchimac está aqui. Pergunta se quer vê-lo.
A princípio, Atahualpa não se mexe. Depois, o senƟdo das palavras chega a seu
coração e as cores fogem de seu rosto.
- Estou morto - sussurra.
- Ele deve entrar? - torna a perguntar o servo que não escutou. - Estou morto -
repete Atahualpa.
***
Na entrada do palácio, Chalkuchimac não se livrou do fardo que lhe pesa nas
costas. Gabriel olha para ele, dobrado em dois, os olhos mergulha dos no chão,
como um suplicante carregando sua cruz.
Almagro resmunga:
- Vamos acabar com o raio dessa comédia! A única coisa que esse macaco deve
fazer é nos dizer onde escondeu o resto do ouro.
Dom Francisco ergue a mão calçada com uma luva preta. - Paciência, Diego.
Paciência...
Os guerreiros incas que protegem a entrada do páƟo recuaram com respeito
diante de Chalkuchimac. No centro do espaço, em um chafariz baixo, a jorra da boca
e da cauda de uma serpente de pedra. A toda volta, veem se as flores vermelho
vivas das cantutas, a flor dos incas. Há uma serva ali exclusivamente para recolher
as pétalas murchas.
Enquanto Chalkuchimac, de joelhos, chegou ao meio do páƟo, Atahualpa sai de
seu aposento. Gabriel mal o vê. Atrás do Inca, na penumbra que lhe esconde
parcialmente os traços, ele vê Anamaya.
Quando ela finalmente ergue os olhos para ele, ele custa a se conter para não ir até
ela.
Atahualpa senta-se lentamente num banco de madeira vermelha, com cerca de um
palmo de altura, onde ele costuma ficar. Aproximam-se mulheres, sem Ɵrar os olhos
dele, prontas para servi-lo.
Chalkuchimac deposita finalmente seu fardo nas mãos do carregador que o seguiu
desde a entrada da cidade. Descalça-se e ergue as mãos espalmadas para o céu, para
o sol escondido.
Lágrimas lhe escorrem pelo rosto rústico.
De seus lábios escapam algumas palavras, das quais Gabriel capta apenas as que
expressam gratidão a Inti e balbucios de amor ao Inca.
Em seguida, Chalkuchimac aproxima-se de seu senhor. Sem parar de chorar, beija-
lhe o rosto, as mãos e os pés.
Atahualpa permanece imóvel como se um fantasma o tocasse. Seus olhos se
perdem ao longe. Gabriel já viu o Inca muitas vezes, mas não consegue compreender
suas reações nem as expressões de seu rosto.
- Seja bem-vindo, Chalkuchimac - diz afinal o Inca com uma voz monocórdia e
desprovida de calor.
Chalkuchimac se levanta e torna a virar as mãos espalmadas para o céu. - Se eu
esƟvesse lá - diz com uma voz vibrante -, nada teria acontecido. Os estrangeiros não
teriam posto a mão em você.
Os olhos de Atahualpa pousam finalmente nele. O olhar de Gabriel procura o de
Anamaya. Os olhos azuis da jovem mergulham nos dele na hora em que dom
Francisco toca em seu ombro e pergunta baixinho, um tanto impressionado: - O
que estão dizendo?
- Palavras de boas-vindas.
- Jeito estranho de se desejar boas-vindas - resmunga o Governador. Chalkuchimac
se endireita. Seu rosto recuperou a nobreza e a impassibilidade.
- Aguardei suas ordens, único Senhor - diz em voz baixa. - A cada dia, cada vez
que nosso Pai Sol subia no céu, eu queria vir socorre-lo. Mas você sabe, eu não
podia fazer isso sem a sua vontade. E o chaski me trazendo a sua ordem nunca
chegou. Ó meu único Senhor, por que não me deu ordem de destruir os Estrangeiros?
Atahualpa não responde.
O general inca aguarda, calado, uma resposta, uma palavra calorosa. Não vem
nada. Não virá nunca.
Dom Francisco pergunta ainda:
- E agora, o que diz ele?
Gabriel sente pesar sobre ele o azul imenso e magnífico dos olhos de Anamaya
falandolhe, e de repente ele compreende. O que torna Atahualpa tão imóvel, o que o
congela naquele silêncio terrível é a raiva.
- O general lamenta não ter servido melhor ao Inca - murmura Gabriel. - Lamenta
que ele esteja preso...
Chalkuchimac dá dois passos para trás.
- Aguardo suas ordens, único Senhor - repete. - Estávamos sozinhos. Seus
generais, Quizquiz com o capitão Guaypar e os outros também estão sós. Se não der
a ordem, eles não virão libertá-lo.
Então ele vira as costas àquele que foi seu senhor e sai do páƟo com um passo
lento, encurvado, como se carregasse nos ombros um fardo mais pesado do que o
que carregava ao entrar.
***
***
- Não estou saƟsfeito - diz o Governador Francisco Pizarro olhando nos olhos de
Gabriel -, e você sabe por quê.
- Fale, dom Francisco, para que eu possa ouvir de sua boca.
Pizarro suspira. Ele saiu com o jovem do palácio do Inca, levando-o para longe
da praça, pela ladeira que sobe ao longo do palácio do Inca, em direção a colina
onde fica essa estranha construção que eles chamam de "forte" por hábito, uma vez
que nunca se encontrou arma ou soldado algum lá dentro.
- Você insultou seriamente meu irmão Hernando e o desafiou em duelo na frente
dos homens...
- É essa a história horrível que ele lhe contou? - Não lhe permito isso!
Apesar da severidade do tom, Gabriel não está realmente preocupado. Se
Hernando Ɵvesse convencido o Governador, não seria a um passeio na cidade que
ele teria direito, mas a um tribunal nas devidas condições. Prudente, o Governador
deve ter ido se informar do incidente com Candia.
- Vamos ganhar tempo, dom Francisco. Diga a seu irmão que me ameaçou com as
piores punições. E assumirei a humilhação de dizer que lhe manifestei meu
arrependimento total e sincero...
- Se fosse só isso!
Gabriel está intrigado com o abatimento que parece ter se apoderado do Governador.
- De que diabo se trata, dom Francisco? Seu irmão foi tocado pela graça divina e,
arrependido dos crimes que cometeu, ameaça se isolar num mosteiro para expiar os
pecados e morrer com cheiro de santo?
- Pare com essa brincadeira, aprendiz. Meu irmão é um herói para todos desde que
voltou com esse general. Meu irmão é admirado e temido por todos os índios. E meu
irmão exige desculpas...
Gabriel dá uma sonora gargalhada.
- Seu irmão ainda não me conhece bem. Mas achei que a ponta da ;minha espada...
- Pare! Estou dizendo - vocifera Pizarro tapando os ouvidos -, não quero saber mais.
- Então não me peça mais, dom Francisco.
Os dois chegaram ao topo do cerro que domina a planície onde se estende a
cidade de Cajamarca. Ao longe, eles vêem as fumaças das fogueiras das Termas do
Inca, onde Atahualpa os esperava.
Entendo você - diz Pizarro com uma voz surda - e, no seu lugar, sem dúvida, eu
recusaria. Mas lhe peço mesmo assim...
A mudança de tom de Pizarro alerta Gabriel que fica calado aguardando o que
vem pela frente.
- Preciso de meu irmão. Conheço todos os seus defeitos. Mas preciso da ausência
de escrúpulos e da autoridade dele... e do dinheiro...
- Enquanto o tesouro se amontoa!
- Você não sabe mesmo de nada! Esse tesouro não é nada, perto das montanhas
de dívidas que acumulei, nada perto do que espera meu sócio, o caolho Almagro,
nada perto das promessas que tive de prodigalizar quando a conquista não passava
de um sonho louco na minha cabeça... Se Hernando
deixar, estou...
Pizarro não termina a frase, mas acompanha-a com um gesto cortante mão no
pescoço, mais eloqüente que um longo discurso. Sua sinceridade Gabriel mais do
que a ameaça.
- E se eu não apresentar minhas desculpas...
- ... em público...
- ... em público, Hernando ameaça largar tudo.
Pizarro concorda. O coração de Gabriel dispara e um suor frio lhe escorre pelas
costas.
- Não sei, dom Francisco, não sei bem...
Pizarro balança a cabeça.
- Faça o que quiser, filho.
Gabriel não diz nada, mas, no fundo do coração, já sabe que aceitou. Uma curiosa
mistura de alívio e fúria o deixa trêmulo. Não vê o leve sorriso que, como uma
nuvem, passa pelo olhar de Pizarro.
***
***
Ao lado do palácio onde se instalou seu irmão o Governador, o que abriga dom
Hernando Pizarro já parece um palácio da Espanha. Não se sabe por que milagre, o
irmão conseguiu que lhe despachassem malas e malas, e sua casa vive infestada de
artesãos índios, cuja habilidade é formada com maior ou menor brutalidade pelos
espanhóis.
O aposento que ele transformou em sala de jantar tem a pretensão de lembrar um
palácio de Carlos V, com sua grande mesa grosseiramente entalhada, seus
candelabros, sua baixela de ouro e prata. Até os criados têm uma libré própria -
vermelha como seu penacho. Não se está às ordens de Hernando como as de uma
pessoa qualquer...
Quando dom Francisco e Gabriel entram ali, Hernando já está à mesa com os
irmãos mais moços Gonzalo e Juan, Soto e os principais capitães espanhóis dos
quais falta apenas Candia. São recebidos com gargalhadas.
- Meu irmão - diz o ơmido Juan -, dom Hernando estava justamente contando
como jogou aquele bárbaro no rio mandando-o voar como um pássaro.
O silêncio cai em volta da risada forçada de Juan. Todos os olhares se voltam
para Gabriel.
- Seu irmão lhe contou o resto da história, dom Juan? Dizem que é divertida.
- Não me lembro - diz Hernando. - Talvez queira nos elucidar, senhor.
- Minhas luzes nesses assuntos são limitadíssimas, dom Hernando, e eu não
saberia me
lembrar do que o senhor teria esquecido.
Os olhos de Hernando soltam chispas e dom Francisco fica rígido ao lado de
Gabriel, que sente sua extrema tensão.
- A sabedoria lhe chegou tarde - diz agressivamente Hernando.
- Isso é apenas prudência, Vossa Senhoria, ou fraqueza. Não darei a esse
esquecimento o belo nome de sabedoria.
- Realmente, está faltando alguma coisa, alguma coisa de essencial. Gabriel desata
a rir, com entusiasmo. - Vossa Senhoria, falta tanto para eu chegar perto disso... -
Faça então um esforço.
- É que, por mais que tente, não consigo. E uma burrice.
- Uma burrice, senhor, e daquelas - rosna Hernando mergulhando Os olhos furiosos
nos do irmão -, como eu nem sei...
Hernando, que ficou o tempo todo em pé, as mãos apoiadas na mesa, *o agüenta
mais. Derruba a cadeira de repente e se dirige para Gabriel. Gabriel, com um
movimento ágil, dá meia volta e dirige-se para a cortina que faz as vezes de porta.
Dando as costas a Hernando, murmura:
- Apresento-lhe as minhas desculpas, dom Hernando.
Desaparece com tanta rapidez que Hernando fica atônito diante da cor na
panejando. Volta-se, furioso, para a assembléia.
- O que esse animal disse?
- Ele lhe apresentou suas desculpas, meu irmão - diz Juan, com um constrangido.
- Pode nos dizer por que?
Capítulo 3
Cajamarca, junho de 1533
***
***
***
Houve uma época, pensa Gabriel caminhando pelas ruas escuras, cortadas por
gritos e discussões, em que esta cidade era habitada por homens que só faziam
seguir os deuses e teme-los. E agora estamos aí, com todas as nossas febres, ávidos
de ouro e de glória como aves agourentas! Às vezes, na curva de uma rua, brilha a
tocha de um dos 50 cavaleiros do quarto noturno. Os úlƟmos a chegar - os homens
de Almagro - são os mais nervosos, porque são os mais pobres. Não têm nenhum
peso, nem mulher, só têm a conta para beber...
"Já, já, você vai ver...", lhes diz o pessoal de Cajamarca, que compra alho com
lingotes de ouro.
Ao sair na praça, Gabriel inicialmente toma o caminho do palácio de Pizarro.
Depois vê, do outro lado, atrás da igreja em construção, uma aglomeração diante do
maior dos entrepostos antigos, as kallankas, como são chamados, onde Hernando se
instalou.
Aí é que Chalkuchimac descansa essa noite, os braços e os pés queimados, os
nervos à flor da pele.
Alguns soldados guardam a entrada, tensos diante da mulƟdão de índios, e no
entanto
calmos. Os homens conversam a meia voz. É diİcil captar sequer o brilho escuro de
seus olhos.
Uma mão toca seu ombro, e ele se assusta, a mão no punho da espada. - Não
tenha medo...
- Anamaya!
A noite está agradável. Ela vesƟu um añaco amarrado na cintura com uma faixa
própria. É frágil e magnífica, uma estrela pousada na terra. Fica ao lado dele, sem
tocá-lo.
- O que estão esperando? - pergunta Gabriel apontando para os índios.
- Querem servir a Chalkuchimac.
- Por quê?
Ela se vira para ele, o rosto impassível, mas com uma ternura gozadora na voz.
- Você quer sempre saber o porquê, mas nem sempre eu sei. Sei o que há. Eles
perderam o Inca, mas precisam de um novo senhor. - O Inca continua vivo...
- Seu Pai Sol não se levanta mais para ele.
- Você quer dizer que ele se levantou para esse aí? - pergunta Gabriel apontando
para a porta do palácio.
- Não. Só digo que eles têm o desejo de servir.
- Servir a quem, se não for ao Inca?
Anamaya não responde. Seu olhar se perde nas colinas, na lua, nas montanhas, nas
neves eternas.
Quando seus olhos voltam a Gabriel, ela vai se encostando nele muito devagarinho.
- Venha - sussurra ela.
Juntos, alheios à tristeza dos índios, a embriaguez dos espanhóis, caminham ao
longo do muro da praça e pegam a estrada das Termas do Inca. Foi por ali que, no
outono, o magnífico cortejo de Atahualpa chegou para conhecer num único dia sua
glória e seu fim. Foi por ali que, naquela noite, eles fugiram para encontrar seu
destino.
Quando eles se embrenham no escuro, o murmúrio de suas vozes se mistura com
os das águas. Em pouco tempo, os dois se confundem com a noite.
Capítulo 4
Cajamarca, 25 de julho de 1533, ao amanhecer
No azul ơmido do alvorecer, Gabriel segue a cavalo pelo caminho bem calçado
que domina o rio Hatunmayo. Protegido do vento maƟnal por uma mata cerrada, ele
avista ao longe o topo das colinas com laivos de ouro pálido ao sol nascente. A
temperatura está agradável. O sereno da noite se esvai gota a gota nas folhas das
árvores.
À medida que ele ganha altura em relação a Cajamarca, seu coração fica mais
leve. Ilusão do vento, embriaguez da brisa"... É como se ele finalmente escapasse, a
galope, da tensão que dia a dia vai ganhando a tropa dos conquistadores.
Hernando, o irmão do Governador, voltou para a Espanha. Acompanhado por
alguns fidalgos, vai levar a boa-nova da vitória de Cajamarca com a prova do quinto
do Rei: um navio inteiro cheio de ouro.
Gabriel não tem tempo de se regozijar com sua parƟda. Em matéria de maldade,
os jovens irmãos do Governador se eqüivalem a Hernando. Reina tensão na cidade
entre "os que têm" e "os que não têm": ouro, sempre ouro... Quanto mais chega,
mais aumenta a avidez: os que já estão ricos queriam mais e os que só recolheram
migalhas estão prontos a matar para conseguir alguma coisa. Diz-se à boca pequena
que a tensão entre os dois colegas de Panamá, Almagro e Pizarro, está no auge.
Depois, novos boatos deixam os espíritos irritados. Secretamente dirigidos por
Chalkuchimac, sempre deƟdo no próprio palácio de Hernando Pizarro, os índios
estariam reunindo tropas nas montanhas em volta da cidade. O intérprete Felipillo
afirma que o exército do Inca é tão numeroso que seus generais têm que dividi-lo em
três ou quatro corpos para que possa ser abastecido mais facilmente.
Chalkuchimac foi novamente interrogado. Mas, dessa vez, ficou calado. Dom
Francisco enviou Soto com um destacamento à cidade de Cajas por desencargo de
consciência.
Todos os dias, os cavaleiros percorrem os caminhos dos arredores da cidade à
procura de pistas de alguma vanguarda, a preparação de algum ataque que não
acontece.
Pouco a pouco, insidiosamente, o medo volta.
Não é o medo terrível do outono, quando descobriram o poderio do império, ou o
pânico da noite da batalha, quando souberam que a luta seria um contra várias
centenas. É o medo mais surdo, que aperta as entranhas e não larga. À noite, fica
adormecido, volta, se esconde num vento ou nos passos de um animal nas matas de
corte...
E aí, esse galope que faz Gabriel mudar de posição na sela um pouco rápido demais.
- Dom Gabriel! Dom Gabriel!
Gabriel reconhece o gibão de veludo verde-escuro, o cavalo malhado com as
rédeas tacheadas de prata. Pedro Cataño é um homem elegante, mas um dos raros
espanhóis cuja companhia Gabriel não odeia. Os dois têm a mesma idade e, por
pouco, poderiam ter se conhecido nos bancos da universidade. Cataño é um dos
raros homens dessa aventura a saber ler e escrever. Aliás, a escrever, ele passa
muito tempo, como se esƟvesse apaixonado por sua própria história. É também um
dos que se comportaram com mais dignidade na batalha de novembro, nunca
procurando insultar o Inca. Aliás, por isso e por sua tez morena, com as maçãs tão
salientes que quase o faziam ser confundido com um naƟvo, ele era chamado de
índio.
- Ei, Pedro! Por que esse galope? Má notícia?
Cataño balança a cabeça, sorriso nos lábios, um pouco ofegante.
- Não! Vi que você estava partindo e me deu vontade de ir junto.
- Não é certo que eu esteja precisando de companhia - diz Gabriel sem severidade.
- Gabriel - responde Cataño sem se perturbar -, pensei que as ordens eram para
ninguém se aventurar sozinho nas colinas...
- Ah, as ordens! - resmunga Gabriel com um suspiro fatalista.
Devagar, a passo, os dois chegam ao primeiro cume. Acima deles, o rio corre
tranqüilo. O dia já vai alto e uma leve brisa impede que o calor aumente.
É diİcil acreditar que milhares de homens armados de machados e fundas se
escondem nesse esplendor.
Cataño faz seu cavalo emparelhar com Gabriel. Os dois homens, lado a lado,
admiram a beleza da cidade cujos tetos fumegam.
- Que bobagem esses boatos - acaba dizendo Gabriel. - Aposto todo o ouro que eu
não tenho que não há um guerreiro inca num raio de léguas!
Cataño sorri:
- Isso é que é apostar bem!
- Estão nos contando mentiras, Pedro! E sabemos por que, não?
Cataño faz uma expressão prudente. Ele tem uma Ɵmidez reservada revesƟda de
uma audácia que parece quase ilimitada. E suas palavras às vezes não têm rodeios:
- Quer dizer que o pessoal de Almagro quer se livrar do Inca Atahualpa? Que está
com tanta pressa de chegar a Cuzco e fundir o próprio ouro que desobedeceria às
ordens reais?
- O resgate de Atahualpa foi pago, até em excesso - aprova Gabriel. - Os recém-
chegados encabeçados por dom Diego não agüentam mais esperar. A presença de
Atahualpa e os supostos riscos de um ataque dos soldados de Chalkuchimac para
libertá-lo estão lhes dando nos nervos. E, de fato, não podemos nos enterrar aqui...
Você não acha?
Cataño apenas hesita.
- Dom Francisco não deixaria. Quer dizer: matar o Inca.
Gabriel afaga com carinho o pescoço de seu cavalo baio. Quando evocam diante
dele a reƟdão do Governador, ele não consegue evitar senƟr ainda nas narinas o
cheiro de carne assada que sentiu perto da fogueira de Chalkuchimac.
- Digo que é preciso esperar.
- Ele sabe dessa ameaça?
- Dom Francisco sabe tudo e entende tudo. Ninguém aqui conhece a situação
melhor do que ele. E todo mundo vê que ele não foi muito correto com dom Diego.
Eles se aventuraram juntos nessa história, durante dez anos, contra todos os
obstáculos, foram companheiros de todas as horas. Mas eis que hoje um está rico e é
Governador, enquanto o outro perdeu tudo e não passa de um capitão!
Em silêncio, enquanto essas palavras calam dentro deles, os dois admiram mais
um pouco o esplendor da planície. Depois, Cataño balança a cabeça com um sorriso
cansado:
- Entendo agora por que os irmãos do Governador o odeiam tanto, dom Gabriel!
Até agora, eu só via nisso ciúme de sua inƟmidade com Dom Francisco. Mas você é
muito perspicaz. Não vão lhe perdoar nada...
Gabriel ri baixinho e olha para ele com amizade.
- Cabe a você julgar se também pode ser perspicaz, Pedro. Sem ignorar os
dissabores que esse excesso de visão pode lhe trazer.
Pedro olha para ele sem responder. Mas seu meio sorriso, cheio de afeto
reconhecimento, deixa claro que sua escolha já está feita.
Após uma breve saudação, sem dizer mais nada, Gabriel esporeia o cavalo e toma
o rumo da cidade.
***
Ao calçar suas sandálias de palha, Anamaya encontra na Ɵra uma aranha gorda de
luzidias patas cabeludas. Após um movimento de repulsa, deixa o inseto lhe subir
pela perna nua, hesitar em volta do joelho antes de descer e sair correndo pelas lajes
de pedra. Rápida como uma sombra, a aranha some embaixo de uma esteira.
Anamaya fica um instante imóvel. Não gosta mais como antes das manhãs.
Levanta-se muitas vezes toda suada, o coração transtornado por pressenƟmentos,
entristecido com as menƟras, os silêncios carregados demais que pesam na cancha
do palácio. Escondem do Inca os servos que morrem, os que fogem, a impercepơvel
degradação das coisas. Traçam em volta dele um círculo invisível, cada vez menor.
Ali, ele ainda é o senhor absoluto. Fora dali, reina o caos, a impotência, a
confusão...
É uma vida estranha à qual o amor de Gabriel não traz nenhuma certeza, mas sim
uma perturbação ainda maior.
- Está sonhando, Anamaya?
Inguill nunca perdeu o hábito de entrar sorrateiramente em seu quarto com sua
agilidade de viscacha. Assim sobreviveu, assim circula pelo palácio inteiro. Na
confusão reinante, poucas perguntas foram feitas sobre essa criada que surgiu por
milagre. Precisa-se de todas as mãos.
- Estou tentando acordar - sorri Anamaya.
- Tenho o direito de falar com você?
Inguill tem esse jeito infantil e sério que faz Anamaya sentir-se uma mãe.
- Você ouviu, como eu, os boatos que correm sobre Inti Palla...
- Não quero saber de Inti Palla.
Sem querer, Anamaya deixou transparecer raiva no que disse a Inguill. A
lembrança do ódio daquela que foi uma princesa tão linda não se apaga. Inguill a
fita, surpresa.
- Desculpe - emenda Anamaya num tom mais suave, pegando a mão de Inguill. - E
que boatos são esses?
- Dizem que InƟ Palla foi seduzida por aquele que serve aos espanhóis e traduz
tudo o que se diz.
- Felipillo?
Inguill faz que sim com a cabeça.
- Inti Palla é... vai à cama de Felipillo?
- Você não sabia?
Anamaya ergue os ombros com desprezo.
- É impossível. Inti Palla é uma das mulheres de Atahualpa! Como ela ousaria isso?
Inguill assume um ar de teimosia, aperta o punho de Anamaya, levada por sua
certeza.
- Como não! Eu vi. Eu não estava dormindo naquela noite e fui à cancha antes de
me esconder no templo das divindades. Bem, eles... - Eles...?
- Felipillo pegava nela e ela estava toda feliz...
Um pouco da velha aversão pela pérfida princesa renasce no coração de
Anamaya. Sua voz está mais dura quando pergunta: - Eles viram você?
- Acho que não.
- Eu disse para você tomar cuidado, Inguill!
- Coya Camaquen! Eu ouvi quando eles falaram o nome de Atahualpa. Eu Ɵnha
que lhe dizer!
- Sim... Eu lhe agradeço. Não se esqueça de ser cuidadosa. E agora, me deixe,
menina.
Os olhos de Inguill se demoram um pouco em Anamaya, depois, a contragosto,
ela obedece.
Só, Anamaya fica inteiramente imóvel. Sente uma dor lhe subir nos rins. A
vergonha, o
medo e a decepção formam venenos dentro de seu corpo. Ela deveria ir correndo
falar com o Inca, avisá-lo do perigo, como vem fazendo tantas vezes há luas e
estações.
Mas, dessa vez, só sente dor e necessidade de ficar só.
***
- Imbecil! Cretino!
Pela abertura do muro, Gabriel ouve os insultos. Apeia do cavalo, entrega as
rédeas a um dos índios que ficam sempre na frente das canchas, e entra no páƟo.
Um espanhol está batendo só com o punho da espada num índio, agredindo-o com
pancadas violentas na cabeça, nas orelhas e no pescoço. O homem sangra e grita.
- O que está havendo aqui? - pergunta Gabriel.
O espanhol se vira, cachos castanhos revoltos emoldurando um rosto ainda
rechonchudo de criança que lhe dá um ar de anjinho. De costas, Gabriel não
reconheceu imediatamente Gonzalo Pizarro, o mais moço dos irmãos do Governador.
O homem mais bonito de Cajamarca. Uma beleza que é apenas a máscara de uma
alma diabólica.
Gonzalo sorri com uma amabilidade fingida, mostra com a ponta da espada uma
mesa aos pés da qual está a enxó.
- A gente manda esse animal fazer uma mesa. Uma mesa, está entendendo? Não
um púlpito nem uma cadeira trabalhada: uma mesa. E olhe só!
Gonzalo se apoia na mesa, que balança imperceptivelmente.
- E aí? - pergunta Gabriel, esforçando-se para sorrir com tanta naturalidade quanto
Gonzalo.
- Aí ela está bamba.
Gabriel vai até a ponta da mesa e põe a mão ali por sua vez.
- Não está, não - diz ele calmamente.
- Estou dizendo que está.
Gabriel se abaixa para pegar a enxó e a entrega ao índio cujos olhos estão
assustados.
- Tome - diz em quíchua. - Não tenha medo.
O homem hesita, pega timidamente a ferramenta olhando apavorado para Gonzalo.
- Acho que não balança, não - diz Gabriel para Gonzalo em tom de brincadeira. -
Mas, se balançasse, o Governador seu irmão concordaria comigo que isso não vale a
vida de um pobre diabo.
A mão de Gonzalo está crispada no punho da espada. O nome do Governador,
seu irmão, o deixa pensativo.
- Cuidado - diz finalmente.
- Caramba - brinca ainda Gabriel -, é que estou noite e dia em alerta.
As maçãs do rosto de Gonzalo ficam rubras com a gozação.
- Você não vai sair dessa comigo como saiu com meu irmão - sibila. - Estou
ouvindo, Gonzalo. É que estou com saudades daquele seu
irmão mais velho do penacho vermelho. E depois, tenho tanto medo de você
quanto tinha dele. Não vê como estou tremendo?
Gabriel gira nos calcanhares, sai do páƟo e dá uma fruta ao índio que segurou
seu cavalo sem se mexer.
Gonzalo dá um safanão no artesão que olha fixo para o chão.
- Refaça essa mesa, seu bugre macaco! - grita. - E que ela não balance mais.
Depois, vira-se para o vão pelo qual Gabriel foi embora e aponta para ali com o
punho cerrado.
- Cuidado - repete só para seu prazer.
E sorri.
***
Sentado na Ɵana, o trono real, o Único Senhor tem os olhos fechados e o rosto
impassível, totalmente imóvel, como se já fosse sua própria múmia.
Quando abre as pálpebras, suas pupilas são dois minúsculos pontos negros
perdidos no meio do lago avermelhado das íris.
Anamaya está calada. Um senƟmento anƟgo, mais forte que a raiva contra
Atahualpa, mais forte que a tristeza e a amargura.
A ternura.
Mas, de repente, como se Ɵvesse percebido essa afeição, o Único Senhor faz um
movimento inaudito. Escorrega do banco para o chão coberto de peles de guanaco e
mantas de lã de vicunha. Estende as mãos para Anamaya. Um sussurro mal se
mistura à sua respiração.
- Coya Cama quen!
Então ela se adianta de joelhos, pousa as mãos na mão do Filho do Sol, palma
contra palma.
O Único Senhor treme. Seu corpo todo treme, seus lábios, suas mãos, seu peito,
tudo nele treme no abalo do mundo. Ele treme até bater queixo. Treme como as
pedras de múlƟplos ângulos mil vezes polidas tremem nos templos quando Pacha
Mama, a Mãe Terra, põe as entranhas em movimento.
Então os braços do Inca envolvem Anamaya e a estreitam. Ele se agarra a ela
como seu pai Huayna Capac uma vez se agarrara em sua casa por uma noite inteira
antes de morrer. Estreita-a junto ao coração como no passado quando, guiada pelo
cometa, ela lhe indicava seu destino de triunfo e glória.
Ouvem-se passos nas lajes do páƟo. Quando chega à porta do aposento, é
abraçados assim que o Governador Francisco Pizarro os encontra.
***
Pizarro hesita ali, constrangido. Atrás dele, o olhar ladino de Felipillo está
estupefato com o que vê. O Governador espera alguns instantes, depois, como nada
aconteça, chama com uma espécie de delicadeza e respeito:
- Senhor Atahualpa!
O Inca abre os braços, e Anamaya se levanta sem pressa. Vai para trás de
Atahualpa, que tornou a sentar-se na Ɵana. Ela fita Felipillo. O intérprete vira a
cabeça, incomodado. Ela pensa nas palavras de Inguill, mas as três palavras que
saem da boca do Governador captam toda a sua atenção:
- Você está livre!
Ela não tem certeza se entendeu direito.
O Governador fita intensamente o rosto de Atahualpa.
- Você está livre - retoma ele -, mas eu não o entendo.
Felipillo traduz olhando Anamaya de baixo para cima.
- O que significa isso? - pergunta o Inca. - O que o Machu Kapitu está dizendo?
Anamaya repete por sua vez, encarando o Governador cuja alma ela não consegue
ler.
- Ouço boatos, senhor Atahualpa! - prossegue Pizarro mais à vontade. - Eu os
afasto, mas os boatos não param... Em meu palácio, quase todos os dias, os seus
caciques vêm me dizer que partem ordens suas para todas as regiões do país para
reunir tropas contra nós... O seu general Chalkuchimac está aqui, conosco, mas você
envia instruções a seus outros capitães, Quizquiz e também Ruminavi. Mas gosto
muito de você e não acredito em tudo que me contam. No entanto, pergunto-lhe:
tenho razão para não acreditar neles?
O rosto de Atahualpa se ilumina.
- Você tem razão! São brincadeiras.
O Governador ouve a tradução de Felipillo e balança a cabeça.
- Tanto melhor! Nesse caso, você poderá logo voltar a seu reino do norte como eu
lhe havia promeƟdo e reinar em paz ali, com a minha proteção, para a glória de
nosso Imperador Carlos V e a de Nosso Senhor. Enquanto isso...
Atahualpa ouve com atenção. Espera. Mas Pizarro também se cala de repente,
sem mostrar impaciência alguma.
- Vou morrer - declara finalmente Atahualpa.
- Como assim, morrer? - espanta-se o Governador. - Em breve vou me unir a meu
Pai.
Pizarro não nega, não protesta...
Pela corƟna, Anamaya de repente vê enquadrar-se o vulto de Gabriel que se
esgueira para junto do Governador.
- Me perdoe! Dom Francisco! - sussurra ele, esbaforido. - Não pude voltar mais
depressa.
Pizarro não se vira para ele. Não tira os olhos do Inca.
- Não diga isso, meu amigo - fala num tom doce. - Você não vai morrer. Se tem
inimigos, vamos protege-lo deles! E também dos cristãos que não o compreenderem.
Prezo muito nossa amizade.
- Estou cansado - replica o Inca em tom monocórdio.
- Descanse. Fique em paz e tenha um bom dia.
Pizarro sai após uma saudação que dobra em dois sua silhueta seca, seguido de
Felipillo e Gabriel.
- Onde eles estão? - pergunta no pátio.
Os dois soldados se aproximam. Estupefato, Gabriel vê SebasƟan, a cara
fechada, trazendo correntes da grossura de um punho de criança. - Mas o que está
fazendo com isso? - pergunta Gabriel. SebasƟan não responde. Gabriel vira-se para
o Governador: - Dom Francisco, me explique, por favor!
- Venha - diz Pizarro a Gabriel, após ter indicado com um gesto a entrada do
quarto do Inca aos dois soldados. - Temos que conversar.
Anamaya ficou atrás de Atahualpa. Ao ver a corƟna tornar a se levantar e as
correntes nas mãos dos espanhóis, ela faz um movimento de recuo.
- Não se preocupe - diz Atahualpa -, está tudo bem.
SebasƟan se aproxima do Inca imóvel. Seu olhar foge, pousa um instante nas íris
azuis de Anamaya e torna a fugir.
- Mande que eles façam o que têm a fazer - pede tranqüilamente Atahualpa.
O gigante negro põe um colar de ferro no pescoço do Inca, com atenção para não
apertar demais. Ata uma corrente ao colar, que é preso com um cadeado na viga
mais baixa da estrutura.
Atahualpa conƟnua imóvel. Um sorriso pálido ilumina seus olhos e relaxa seu
semblante.
- Vê - diz a Anamaya -, estou livre!
Capítulo 5
Cajamarca, noite de 25 de julho de 1533
Dia após dia, a maior sala do Templo do Sol foi se transformando, com os meios
disponíveis, em vago eco dos palácios da Espanha. Móveis de fabricação grosseira,
mesas e cadeiras de espaldar alto, muitas vezes bambas, é verdade, foram
construídos. Tapeçarias de padrões desbotados pendem nas paredes, enquanto aqui e
ali há algumas arcas empilhadas. Num dos nichos, miniaturas da Virgem Maria com
o Menino Deus, apreciadas pelo Governador Pizarro, subsƟtuem as máscaras de
pumas, os lhamas de ouro ou prata já fundidos, as cerâmicas quebradas.
Em volta da grande mesa onde pinga a cera dos candelabros, há quatro lugares
postos. Por ora, só há três convivas: dom Diego de Almagro está em frente a
Gabriel, enquanto Pizarro ficou em pé.
Essa noite, dom Diego não está usando a faixa atravessada no rosto furado de
bexigas. Gabriel não sabe para que olho deve olhar. O perfurado por uma lança
indígena é estranhamente atraente em sua monstruosidade. Uma massa preta e seca,
que parece às vezes se mexer no ritmo do olho sadio. Com seu ar grosseiro e
rúsƟco, dom Diego, que dizem ser corajosíssimo, sabe ser astuto e tirar partido de
sua deficiência.
- Fui vê-lo - diz com seu sotaque arrastado da Mancha que jamais perdeu. - Fui à
cela dele e pedi que ele se acalmasse.
- De quem está falando, dom Diego? - pergunta Gabriel.
- De Pedro Cataño! Seu amigo, ao que me parece! Ele veio há pouco fazer um
escândalo no Conselho, interrompendo dom Francisco para afirmar que você e ele
haviam abortado um complô contra o Inca! Pelo sangue de Cristo, ele não estava
dizendo que daria a vida por ele? Será que é um dos seus mil e duzentos filhos, para
falar assim? Embora, pela cor da pele dele, a gente possa se fazer essa pergunta...
Pizarro sorri, mas Gabriel empalidece e precisa cerrar os dentes para não insultar
o caolho.
- O Governador mandou botá-lo no xadrez para acalmá-lo - ri dom Diego. - O que
mais podia fazer?
- Não botar - resmunga Gabriel -, e simplesmente aconselhar que ele calasse a boca!
- Paz, senhores! - intervém Pizarro esfregando as mãos por uma vez sem luvas. -
Pedi que nosso amigo Cataño viesse jantar com a gente. Não é uma boa idéia, dom
Diego?
Revirando o olho, Almagro ergue os braços para o céu.
- Conheço a profundidade insondável de sua bondade, Francisco. Insondável e, se
me permite: perigosa.
O semblante de Pizarro se desanuvia. Sejam quais forem as causas e a acrimônia
de sua rivalidade, Almagro tem esse privilégio de ser uma das raras pessoas capazes
de lhe arrancar um sorriso.
- Se Vossas Senhorias me obsequiassem com uma explicação - pede Gabriel com
uma certa malícia, prevendo o que vai ouvir.
- No conselho de guerra por onde seu amigo Cataño irrompeu tão bruscamente,
discuơamos com efeito o desƟno do Inca. O capelão Valverde e eu somos da
opinião que ele é um homem que poderia ser convertido ao cristianismo, mas
outros...
O bruxuleio dos candelabros lança sombras sinistras no rosto de Almagro.
- Outros acham que isso é perigoso - aprova Almagro com sua voz aguda
brincando com um copo de vinho ruim. - Outros acham que não é mais possível
adiar a expedição à capital do Império. Moguer e Bueno foram categóricos quando
voltaram de Cuzco. Ali há tesouros muito mais consideráveis do que os que vimos
até agora. Quero dizer que vocês que acompanharam dom Francisco, meu amigo e
Governador, coletaram, fundiram e embolsaram cuidadosamente...
- Todavia, nenhum de nós duvida que seja necessário nesta aventura demonstrar
um espírito muito cristão - replica Pizarro impassível. - Nosso Imperador Carlos V
deve poder usufruir de nossas obras quando elas lhe forem entregues.
- As ordens reais são claras - intervém Gabriel. - Mandam que a vida dos
Príncipes, Reis e Senhores das Índias seja salvaguardada na medida do possível.
- Na medida do possível, portanto, não em caso de traição - resmunga Almagro.
- Que traição? - pergunta Gabriel, levantando a voz.
- Não, traição, não - diz suavemente o Governador aproximando-se da mesa. -
Talvez a possibilidade de, Diego! Talvez apenas, em falta de provas da traição do
Inca, devamos proteger a vida dele... Enquanto aguardamos a volta de Soto.
- Temos provas! - exaspera-se Almagro batendo com o copo na mesa. - Quais?
pergunta Gabriel.
- Os depoimentos da gente deles!
- Umas bobagens, dom Diego! Sabe muito bem que entre eles só há intrigas e
vinganças...
- Bobagem sua, meu rapaz! Quer a verdade? Digo-lhe uma: não podemos pegar as
estradas de Cuzco arrastando esse animal emplumado atrás da gente! Todos os
índios do universo cairão em cima de nós!
- O que sabe sobre isso? Ele os acalma com uma palavra! Eu já vi.
- Não viu nada, meu caro! Quem viu fui eu que tenho um olho só! Há 40 anos que
vejo do que essa raça é capaz. E Francisco sabe disso tão bem quanto eu, não?
- Gosto de fazer as coisas segundo a lei e a ordem, dom Diego.
- Pois sim! Tome então as providências, Governador! Decida a data da parƟda
para Cuzco e não deixe o emplumado vir atrás de nós!
- Isso é indigno - exclama Gabriel se levantando. - Não podem... Dom Francisco
faz sinal pedindo-lhe calma e vira-se para a Virgem. - O Inca está sob a nossa
proteção. Se deve ser culpado, um tribunal
vai julgar, como na Espanha.
Almagro balança a cabeçorra disforme, morde com raiva um pãozinho de milho e
dá um grito.
- Diego, o que foi?
- Raios que me partam! Quebrei um dente - resmunga Almagro furioso. - Deixe
para lá a sua Virgem Santa e mande nos servirem a carne, Francisco. Estou com
fome!
Dom Diego de Almagro cospe o canino no chão.
A escuridão afoga os recantos do palácio de Atahualpa. O Único Senhor ordenou
que não se acendessem as tochas. Negou-se a comer e a receber as visitas dos
curacas, e a solicitude das concubinas e das mulheres.
Só quer a presença de Anamaya ao seu lado.
Enquanto a luz do dia entra no nicho do puma de ouro, ele se mantém calado.
Somente quando é noite fechada é que pronuncia as primeiras palavras:
Sou uma fera que não sabe mais saltar.
Não há aí amargura nem tristeza: é uma constatação. Ele toca o colar, agita a
corrente que o prende à parede.
- Venha cá, Coya Cama quen. Me abrace...
Anamaya pousa as mãos no Único Senhor. Sob a maciez da roupa, sente seu
corpo esgotado cujo calor já se atenua. Um homem que morre por vontade própria.
Um homem que já pertence ao mundo de baixo.
- Sei tudo, agora - diz Atahualpa calmamente. - É tarde demais e não tenho
remorso, pois é minha própria vida que é o preço desse conhecimento. Sei o que
meu pai lhe disse antes de morrer, pois estou na mesma noite que ele e logo vou
encontrá-lo. Não é mais a minha voz que lhe fala, mas a dele ainda. E ouça... Ouça:
por trás da nossa, há as de nossos Pais! Minha voz é mais anƟga que eu e vai durar
muito tempo depois de nós. Coya Cama quen, doce menina de olhos de lago, nunca
se esqueça de levar a voz dos Filhos de Inti!
- Há luas, sei que o Único Senhor deve parƟr - murmura afinal Anamaya. - No
entanto, agora que chegou a hora, tenho medo.
- Eu não tenho. Fique comigo como ficou com meu pai.
A respiração de Anamaya mistura-se à do Inca e eles são um ser só na noite.
- Já não há nenhum clã em Cuzco - sussurra Atahualpa. - Exerci minha vingança
como um homem embriagado, injusto e cheio de cólera. Já não há irmãos nem
inimigos... Os filhos do império hoje estão acorrentados como eu. Eles choram e
sofrem por minha culpa.
Seus joelhos dobram, Anamaya o apoia, mas o colar aperta a garganta do Inca.
Um grunhido de dor vibra em seu peito.
- O norte e o sul se enfraqueceram por minha culpa, o sangue do Sol correu por
minha causa. Chalkuchimac Ɵnha razão: os estrangeiros não têm nada com isso! -
retoma ele com uma voz rouca. - Eles não são iguais às aves de rapina que esperam
a presa se esgotar por si só. Eu, Atahualpa, filho de InƟ e do grande Huayna Capac,
dividi o Império das Quatro Direções e os estrangeiros se aproveitam disso.
Constróem com poeira numa montanha de fogo que um dia há de despertar e
queimá-los até suas cinzas se dispersarem e se espalharem no Oceano que os trouxe.
A voz não sai mais de seu peito. Está rouca como a de um vento proveniente das
entranhas da terra. É a voz de todos os ancestrais, dos pais e dos filhos que
construíram essa linhagem infinita desde a criação do mundo.
- Durante muito tempo rejeitei meu irmão Manco. Agora vejo o que você viu sem
ousar me dizer: ele é o primeiro nó dos tempos futuros.
- E o puma?
A pergunta saiu sem querer da boca de Anamaya. Não há surpresa nenhuma na
voz de Atahualpa quando ele responde:
- O puma não está mais comigo, mas você deve confiar nele. Faça o que meu pai
lhe ordenou, siga esses conselhos...
No alívio que invade seu coração, Anamaya sabe que se quebra nesse instante a
cadeia do silêncio que apertava sua própria garganta. Finalmente o Único Senhor
conseguiu ver e compreender ele mesmo o que ela viu e compreendeu há luas.
Finalmente ele está de novo próximo dos anciãos do Outro Mundo. Sim, está no
caminho do fim do corpo.
Por muito tempo, na noite, os olhos fechados e o espírito tranqüilo, o Único
Senhor e a Coya Cama quen se unem na mesma alegria. Já não há fronteira entre sua
vigília e o sonho, a noite e o dia, a carne e a ausência de carne. Qual aves
transparentes, abrem suas asas e sobrevoam as montanhas e as planícies do país
bem-amado, viajando pelos tempos anƟgos e futuros, pelo lago de suas origens e o
rio sagrado do céu, pela prata da Lua e o ouro do Sol.
Prisioneiros, eles são livres.
***
***
***
***
É uma noite sem a luz de Quilla, a Lua. O palácio do único Senhor ahualpa está
mergulhado numa escuridão que nunca terá fim.
Em toda parte, nos vastos como nos pequenos aposentos, nos páƟos e nos
depósitos, gemidos ecoam na noite. Ainda ontem, algumas das esposas, concubinas e
das servas sonhavam servir aos estrangeiros. O povo se queixava do Inca, lembrava-
se de sua dureza, sua indiferença... Agora tudo é só or. O sangue nunca correrá o
bastante por esse sofrimento.
Anamaya sente-se fervendo e pára no chafariz do páƟo, para mergulhar mãos na
água clara. As gotas d'água escorrem em seu rosto sem refrescar.
Inguill vem ao seu encontro, sem uma palavra, aninha-se em seu peito.
Anamaya deixa e a consola. Ela também, a menina de Cuzco, a protegida Manco,
chora a morte daquele cujas ordens e a crueldade causaram a morte de sua mãe e de
seus irmãos.
Depois, devagarinho, Anamaya se afasta dela. Olha-a um instante no escuro,
aquele rosto de passarinho banhado em lágrimas.
- Agora me deixe - murmura com ternura -, tenho o que fazer...
Inguill desaparece na noite.
Anamaya entra sorrateiramente no amplo quarto de Atahualpa. Só há a tocha
acesa no fundo do aposento, não iluminando nada, mas criando o ambiente de uma
casa que vai baixando lentamente ao Outro Mundo.
Seu pé bate num objeto que produz um som metálico: é o colar que acorrentava o
Inca há pouco. Tateando, habituando a vista pouco a pouco à penumbra, ela encontra
tudo o que cercava o Inca ainda vivo e que conserva a marca de seu calor, de sua
força apagada: a tiana de madeira vermelha, a mesa de junco trançado, o tabuleiro
virado...
- Você também voltou!
Um medo tremendo a percorre num instante. - Inti Palla!
O vulto da jovem sai do escuro. Anamaya tem um movimento de recuo e tropeça
no banco do Inca.
- Não tenha medo...
Não é a voz da anƟga InƟ Palla, aquela em cuja amizade acreditou e que a traía
com palavras melifluas, por trás das quais escondia-se o ciúme. - Me dê a mão, por
favor.
InƟ Palla está quase implorando, no entanto suas palavras parecem vir de um
mundo já distante. Após alguma hesitação, Anamaya pega a mão estendida, que está
gelada apesar da temperatura agradável e da umidade da noite.
- Tenho tanto remorso a noite, dormindo ou acordada, e meu espírito se agita em
vão para fugir desse sentimento. Meu remorso é um quipu cujos nós já não se
contam...
Inti Palla dá uma risadinha que se transforma em tosse e lhe sacode o peito.
- Não sou nada e no entanto comparƟlhei o leito do Inca. Quando nós duas
estávamos juntas na casa das virgens de Quito, eu não queria outra coisa. Consegui
o que queria. Depois, não sei como, as traições vieram povoar minha cama com
mais freqüência que o único Senhor. As vinganças e as decepções se sucederam às
traições...
A princesa se aproxima de Anamaya. Seu braço e seu ombro roçam nela. Sua
pele está estranhamente seca e rugosa, como se todo o corpo de InƟ Palla se
preparasse para o Outro Mundo.
- Você via muito bem essas traições. Eu Ɵnha medo que você o roubasse de mim.
E de ser rejeitada como as concubinas esquecidas que os soldados dividem entre si.
Eu, tão delicada.
Nova risada. Sem alegria.
- O remorso que sinto, sabe, é por não ter menƟdo, não é nem por ter traído
Atahualpa com Felipillo... Meu remorso é você, menina dos olhos azuis. Amei e
admirei você mais que a qualquer pessoa.
Anamaya tem outro sobressalto, reƟra a mão. Mas InƟ Palla se agarra a ela até
lhe cravar as unhas compridas na palma da mão.
- Você não quer acreditar em mim, não é? Duvida muito de mim? Não acredita em
mais nada que sai da minha boca!
- Acredito em você, Inti Palla...
- Eu o queria tanto! Anamaya, nenhum outro momento de minha 'da me atormenta
mais a memória do que aquele dia em que você chegou no acllahuasi. Esse dia, em
que você pôs os olhos em mim pela primeira vez. Seus olhos estranhos, tão lindos,
tão profundos, que o ciúme me dilacerou o ração na mesma hora. Você Ɵnha algo
que eu nunca teria... Com o tempo, compreendi que seu olhar, na verdade, só pedia
amizade e fidelidade. Uma amizade para a vida toda. Mas meu orgulho, meu medo,
logo me proibiram a amizade. Para a vida inteira!... Agora vou morrer. Essa noite
mesmo, vou morrer com esse remorso no coração.
- Você é minha amiga - sussurra Anamaya.
Ela se surpreendeu com as próprias palavras. Estas não mentem. Apenas em
voltar uma emoção muito antiga e longínqua que ela pode oferecer nesse instante a
princesa perdida.
Em sua mão, a mão de Inti Palla ficou paralisada. Parece-lhe menos fria.
- Vê como é estranho - diz finalmente InƟ Palla mais baixo ainda - ora não tenho
mais medo.
As duas jovens se abraçam no quarto transformado em prisão e misturam suas
lágrimas
silenciosas. Anamaya sente a respiração de InƟ Palla se mar, seu corpo se retesar
com uma vontade nova e forte.
- Eu queria que você me ajudasse agora - pede a princesa que foi tão linda.
- Sim - diz Anamaya.
***
Pizarro está com a cabeça descoberta, uma faixa preta na manga da casa preta.
Ergue o copo de prata quando Gabriel entra.
- Sabe o que estou bebendo?
Gabriel não responde. Perto de Anamaya, sua raiva havia passado, mas voltando
a cada passo que o aproximava do Governador.
- Obrigado, não estou com sede - diz secamente. - Prove, filho!
O tom do Governador não admite réplica. Gabriel pega o copo que lhe é merecido
e molha os lábios. Para imediatamente cuspir o líquido. Dom Francisco balança a
cabeça, sem esboçar nenhum sorriso, e pega de volta o copo.
- Vinagre! Passarei a semana toda bebendo isso e comigo aquele caolho do
Almagro e todos os outros!
- Dom Francisco, se acha que isso vai... Soto!
E quase um grito que Gabriel dá ao ver Soto entrar pesadamente no aposento,
ainda de chapéu e à frente de alguns homens. O capitão está com o aspecto negro
dos maus dias. Seus olhos estão cansados, sua barba, tão desgrenhada quanto sua
roupa está empoeirada. Antes mesmo que ele abra a boca, Gabriel sabe o que vai
dizer:
- Nada! Nada, dom Francisco! Nem sequer um soldado índio, uma tropa, uma
coluna. Num raio de 100 léguas em direção ao sul, eu lhe digo: nada! Há tantos
exércitos do Inca nas estradas quanto nas costas de minha mão... As únicas armas
que vimos são as pás de pedra dos camponeses! É isso: nada... Mentiram para nós!
Pizarro suspira. Olhos baixos, revolve o vinagre no copo. - Fui enganado!
Soto volta-se para Gabriel, o cansaço lhe endurecendo a voz:
- O que está acontecendo aqui, Gabriel? Dizem-me que o Inca morreu. Atravesso
a cidade e em toda parte escuto berros de gelar o sangue!
Gabriel estremece. Todos os seus músculos estão doloridos como se ele Ɵvesse
passado dias cavalgando em vão.
- Garroteado - murmura.
- Garroteado? Sem julgamento?
- Com julgamento.
- Mas se eu estava na estrada...
A boca do capitão treme. Ele se cala. Já entendeu.
- Com que, então, Almagro teve ganho de causa.
Abaixa a cabeça um instante, sacudindo-a como se quisesse livrar-se de uma
mosca importuna.
- Governador - retoma lentamente com um tom severo. - É verdade que a presença
do Inca tornava a expedição a Cuzco delicada, mas havia outras soluções que não
essa execução... Lamento a morte do Senhor Índio. Ela não é boa. Nem para o
senhor, nem para nós.
"E você não viu tudo", pensa Gabriel, que não consegue Ɵrar da cabeça a imagem
do colar de ferro.
Pizarro sustenta por um momento o olhar de Soto, depois enche o copo de
vinagre. Molha os lábios ali sem franzir o cenho:
- Eu também lamento, dom Hernando.
Há na voz de Pizarro uma solenidade, uma tristeza que impõem respeito. Soto
contempla-o em silêncio, procurando um olhar, esperando mais uma palavra. Que
não vem. Ele torna a botar o chapéu e sai com seus homens.
- Conte-me - diz então dom Francisco a Gabriel. - Conte-me como ele morreu.
***
***
SEGUNDA PARTE
Capítulo 9
Cordilheira de Huayhuash, 5 de outubro de 1533
- Cuidado!
O grito ecoa bem em cima de Gabriel. InsƟnƟvamente, ele abaixa a cabeça sob o
escudo prontamente erguido e crispa a mão sobre a rédea de seu cavalo, forçando-o
contra o muro. Fragmentos de rocha despencam como uma metralha no abismo,
blocos enormes caem ali com um estrondo. O impacto das pedras nas lajes e no
ferro dos escudos ecoa como golpes de maça enquanto os homens prendem o fôlego.
Alguns pedriscos repicam na garupa dos cavalos que bufam. Depois, tudo se cala.
Quase simultaneamente, os longos vultos de Candia e SebasƟan se levantam.
Como Gabriel, eles deixam cair os escudos e olham para o alto da encosta.
O desmoronamento deve ter sido bem em cima do ressalto que ainda esconde a
garganta. Preocupado, Gabriel vira-se para os carregadores que seguem. Mas todos
souberam se proteger e somente alguns fardos rasgaram.
- Maldita artilharia! - reclama o Grego. - E eu entendo disso!
Os olhos de Candia estão brilhantes. Os três amigos se fazem a mesma pergunta:
o desmoronamento é natural ou foi provocado pelos guerreiros de Quizquiz e
Guaypar?
Na verdade, de onde eles estão, é impossível dizer.
- É o terceiro desde hoje de manhã - observa SebasƟan com um esgar irônico. - Se
não provocaram esse, é que têm um deus para fazer o trabalho no lugar deles!
Candia murmura um insulto que se perde no vazio.
- Em marcha - ordena Gabriel estalando as rédeas na garupa do cavalo baio. - Não
vale a pena ficar congelando aqui.
Atrás deles, a imensa coluna se estende fumegando por toda a encosta. É como se
um povo inteiro esƟvesse avançando pela encosta da montanha. Os 400 espanhóis
conduzidos pelo Governador, Soto e dom Diego Almagro estão afogados, engolidos
por essa legião imensa composta de milhares de índios, escravos ou tropas aliadas
dos cañaris, guerreiros da costa, servos dos pequenos senhores locais, reunidos de
bom grado ou a contragosto ao poderio novo e fascinante dos estrangeiros.
Mas o tempo está violento, encoberto, frio e úmido. A montanha ergue seu picos e
suas gargantas diante deles assim como outras tantas provações destruidoras. Parece
elevar-se sempre mais alto, envolvendo-se nas brumas e no ar gelado. Um concerto
de tosses e gemidos, de gritos e imprecações mistura-se à percussão espaçada dos
cascos.
Quase no meio da coluna, pouco atrás do pelotão de cavaleiros que cerca o
Governador dom Francisco Pizarro, vem a liteira de Chalkuchimac. De longe,
mesmo na claridade cinza, ela é idenƟficável pela variedade de plumas que a
decoram. Desde os primeiros passos da manhã até o esgotamento da noite, uma
barreira cerrada de soldados da infantaria espanhola o cerca, trocada a cada cinco
horas. As torturas enfraqueceram o general inca, mas a lenda de sua coragem não
perdeu intensidade entre os guerreiros índios. Não há dia em que o Governador e os
seus não temam um ataque para libertá-lo.
***
***
***
***
Por onde quer que passe, Gabriel encontra os grupos de homens, mulheres e
crianças saindo das casas e das kallankas chorando e gritando palavras de
agradecimento. Isso lhe dá um mal-estar que ele exprime repelindo-os sem
delicadeza.
Alguns conseguem arrastá-lo para uma cancha onde jaz um soldado inca, de perna
quebrada e empunhando um machado, cercado por um grupo de jovens huancas
xingandoo aos berros mas sem ousar se aproximar. Uma criança puxa a bainha de
sua espada.
- Não tenho tempo! - grita ele.
Parte novamente a galope pela planície, recusando-se a perder tempo com a
imagem do homem que vai morrer. Não enxerga nenhum vesơgio de Agüero nem de
Candia. Dirige-se para a ponte. A lembrança de Anamaya o transpassa, mas ele a
afasta para bem longe, para onde o sangue não corre.
Do outro lado do rio, mais de 200 combatentes naƟvos se reuniram protegidos na
retaguarda por 15 outros que procuram incendiar a palha e as cordas da ponte.
Agüero e Candia já tentam em vão abrir passagem no meio da tropa para impedi-los.
Agüero luta com valenƟa, girando a espada, esquivando-se das pedras e aparando
os golpes de tacape, usando seu cavalo com destreza; Candia é mais comedido nos
movimentos, mas igualmente eficaz. Porém, o que impressiona Gabriel e o congela
quando se reúne aos dois companheiros, são esses índios que os enfrentam e, como
os de Cajamarca, ainda estão prontos a morrer sem um grito, sem um protesto para
permiƟr que os companheiros incendeiem a ponte, impedindo assim a passagem dos
espanhóis.
Como para se encorajar e apagar suas dúvidas, ele se esgoela e lança o cavalo na
confusão. A risada de Candia soa, incongruente e reconfortante.
- Você demorou! - sussurra o gigante grego.
Gabriel desfere seus golpes com tanta violência, decepando braços, furando
peitos, dilacerando caras, que é tomado pela febre da morte. Nenhuma das proteções
tradicionais dos incas é própria para resisƟr ao fio do ferro. São dez, depois 20 a
cair, quase impotentes. Alguns morrem sufocados sob o peso dos combatentes que
caem em cima deles, outros se arrastam até o rio, feridos, muƟlados, e se afogam
ali. Mas seus companheiros voltam à carga, brandindo a maça, machado em riste,
olhos loucos.
Na confusão, um combatente mais audaz chamou a atenção de Gabriel. É mais
alto e mais forte, de porte mais nobre, e em nenhum momento o desânimo parece
aƟngi-lo, ao passo que não pára de falar aos companheiros. Por diversas vezes o
ferro de uma espada ou o casco de um cavalo roçam nele. Ele evita a morte como se
dançasse. Depois, com um movimento ágil, salta a garupa do cavalo de Candia,
agarra o grego pelo ombro enquanto a outra mão procura o machado para golpear as
costelas do cavaleiro.
Fazendo seu cavalo saltar, Gabriel já está atrás deles. Seu braço parte orno um
Ɵro de besta, ele sente na mão o ferro ranger entre os tecidos coloridos e as carnes.
O combatente inca dá um grito e se levanta, pondo todo o peso na espada. Por um
instante, parece que nada vai acontecer. As pernas do índio conƟnuam apertando o
cavalo e Gabriel julga sustentá-lo com seu ferro. Depois abraço se desfaz. O índio
cai sob os cascos do cavalo.
- Raios me partam - diz Candia massageando as costelas -, você é bem vindo, dom
Gabriel!
- A ponte está destruída, vai arder completamente - responde Gabriel, mostrando
as labaredas que sobem.
Aliás, os índios retrocedem, deixando os cadáveres e os feridos para trás.
combate cessa como por magia. Agüero e seu companheiro se unem a eles, lhos
esgazeados, botas e calções ensangüentados. Apeiam do cavalo e levam os
morrióes. Os rostos estão banhados de suor, de sangue, as faces e os lábios ainda
contraídos pelo medo.
- Senhores - resmunga Candia -, tenho uma boa notícia: estamos vivos!
***
Soto e seus cavaleiros reuniram-se a eles; depois, por volta do meio-dia, Pizarro e
o resto da coluna. Em toda parte na cidade só se ouvem gritos de alegria, mas os
espanhóis não perdem tempo com a festa nem com os presentes que lhes são
oferecidos.
Pizarro chega à beira do rio, ladeado por seus irmãos Gonzalo e Juan, o capitão
Soto e Almagro.
- Em que pé estão as coisas, Gabriel?
Gabriel aponta para o outro lado do rio, onde há cerca de 600 combatentes incas a
enfrentá-los.
- Nós os perseguimos, dom Francisco, e como vê, desencorajamos alguns. Mas
eles conseguiram destruir a ponte.
- Covarde! Poltrão!
O grito de desprezo irrompe dos lábios de Gonzalo.
Gabriel limpa o suor que conƟnua em sua testa e se aproxima do diabo de cachos
castanhos, um sorriso mau nos lábios. Um sorriso que lhe veio há pouco, quando
matou, e continua nele ainda, como um lanho.
Gonzalo recua três passos e volta à carga:
- Já sabemos como você combateu, covarde, deixando o chefe dele fugir...
Gabriel fica surpreso. Hesita um instante antes de compreender que se trata de
Guaypar.
- Chega, Gonzalo! - ordena Pizarro.
O tom peremptório do governador não admite réplica, e Gonzalo e Gabriel ficam
se desafiando um instante, o desprezo e o ódio deformando seus traços.
Dom Francisco olha com indiferença para o monte de víƟmas, depois para o rio
profundo e rápido que os separa da estrada onde desapareceram os agressores da
aldeia. Sem se virar, pede voluntários para uma carga suplementar.
- É preciso lhes dar uma lição - diz. - Não vamos deixá-los acreditar que podem
sair dessa com facilidade.
Por que Gabriel é um dos primeiros a se oferecer? Nem ele sabe. A raiva faz seu
coração bater mais rápido. Ele mal ouve os outros. - Eu também! - diz Juan.
- Eu também! - diz Soto.
- E eu! - resmunga Almagro, como se despertasse de um longo sono.
Pizarro sorri. Os quatro cavaleiros seguidos de alguns homens descem a
ribanceira até o rio. Gabriel é o primeiro a se lançar na travessia. Jovens huancas,
entusiastas na vingança, lançam-se atrás deles nas águas geladas, admirando os
cavalos que empinam as ventas acima dos redemoinhos.
***
A corrente é forte. Eles precisam descrever um arco de círculo para não esgotar
as montarias. Mas a encosta da margem oposta é suave, fácil de subir. Tão logo
chegam à estrada, Almagro e os seus partem para a montanha para esperar um revés,
enquanto Juan e um pequeno grupo costeiam o rio. Cabe a Soto e a Gabriel irem
atrás dos guerreiros nativos e abatê-los na praia.
Gabriel já não sente cansaço algum. O insulto de Gonzalo gira em seu cérebro
como uma verruma. Suas coxas seguram firmemente o baio e sua ao, apertando o
punho da espada, pesa sobre sua coxa direita como se toda realidade do mundo
estivesse ali.
Um primeiro grupo de combatentes surge diante deles. Parecem agitar braços
idiotamente. Mas na hora que Soto grita "Cuidado!", uma chuva de pedras de funda
se abate sobre eles. O cavalo, aƟngido no ombro, tropeça e abre as pernas. Os
guerreiros índios já se espalham, compreendendo que não deviam permanecer em
grupo.
Mas, 100 passos adiante, outros aƟradores de funda se posicionam e, dessa vez,
descarregam uma saraivada de pedras sobre o grupo de Pizarro, que m que
retroceder.
É então que Gabriel tem essa idéia louca. Arremete seu cavalo enquanto outros
guerreiros, numa linha impecável, recarregam suas fundas. Com um uivo de
demente, investe a galope sobre eles. Isso não leva mais que uma fração de segundo,
enquanto os combatentes índios, fascinados, ficam paralisados. E ele grita ainda:
- Santiago! Santiago!
O desejo de morte galopa em suas veias, seu espírito é apenas um fogo violência.
Ao ver os primeiros rostos, as primeiras bocas abertas, ele se uca escorregar para o
lado, agarrando a cabeça da sela com a mão esquerda.
machado de bronze passa zunindo por cima dele, mas ele não vê. Só olha a as
gargantas dos guerreiros. Só sente o balanço ritmado do baio em seus
Seu braço direito é mais duro que carvalho. Meio dobrado, segura a ma da espada
inclinada para trás. E está em cima deles.
- Santiago!
O ferro mergulha nas gargantas. Uma a uma! Uma a uma, com a velocidade de um
raio, a lâmina de Gabriel ceifa o fôlego e a vida de 12 homens que nem têm do que
gritar.
Quando ele se ajeita na sela para se levantar e faz seu cavalo girar, vê 12 meus
homens tombando, braços e pernas grotescamente agitados, inundando a relva de
sangue.
Parece-lhe que um silêncio estranho cai no vale. Uma luz branca o atordoa. Ele
precisa se agarrar à crina do cavalo para não cair da sela. Lá embaixo, à esquerda,
apavorados, os índios fogem sob a cobertura do arvoredo.
- Covarde e poltrão - murmura ele, como se não compreendesse as palavras que
saem de sua boca.
Gritos irrompem atrás dele, Almagro e os huancas partem no encalço dos
fugiƟvos. Gabriel passa uma das mãos no rosto.
Soto alcançou-o. Eles se observam. O capitão balança a cabeça com um respeito
no qual Gabriel julga ver uma espécie de medo. Eles voltam, ao mesmo tempo,
como homens esgotados.
Uma hora mais tarde, há mais de 600 cadáveres na margem do rio. Do batalhão de
Guaypar, não restam mais que alguns vultos que tentam, o mais das vezes em vão,
fugir mergulhando na espuma lamacenta.
Capítulo 11
Hatun Sausa, 15 de outubro de 1533
***
Quando anoitece, Gabriel chama finalmente seu cavalo e atravessa o rio. A água
gelada borbulhando contra suas botas lhe faz bem. Ao chegar à outra margem, faz
seu cavalo andar num trote curto. Evita os olhares, ignora os gritos exuberantes e
roucos do entusiasmo da vitória que o chamam de todos os lados.
Chega à praça central da cidade enquanto os companheiros de Almagro, na
presença do próprio Governador e do cacique de Hatun Sausa, Ɵram os tesouros da
kallanka que continua fumegando.
Como sempre, dezenas de pratos e copos, máscaras e estatuetas de ouro se
amontoam. Apesar da fuligem do incêndio, tudo isso reluz à luz das tochas. Os olhos
dos espanhóis brilham mais ainda. Eles riem, jogam para cima com a ponta da
espada Ɵgelas de ouro deformadas pelo calor, que os escravos conseguiram salvar
do fogo. De longe, os índios os observam, intrigados.
O semblante de dom Francisco permanece imperturbável. Ele olha ouro se
amontoar como se não esƟvesse vendo. Ligeiramente escondidos pela barba
impecável, seus lábios apenas murmuram. Gabriel, mesmo sem escutar, sabe que ele
está rezando à Sanơssima Virgem Maria. Dom Francisco nunca abandona os hábitos
anƟgos. Oferece à Sanơssima com o Menino o sangue, os mortos, o sofrimento e a
alegria do ouro, sabendo assim purificar-se dele. Gabriel o inveja por alguns
instantes.
Finalmente, dom Francisco se vira e vê Gabriel junto dele, a pé e segurando ainda
as rédeas do cavalo na mão crispada.
- Ah! Você está aí... - diz com urra brilho de ternura nos olhos.
Examina Gabriel dos pés à cabeça, passa em revista seus calções encharcados e
rasgados, seu gibão imundo com a manga direita aberta, preta de sangue seco.
Quando chega ao rosto encovado pelas sombras, às faces arranhadas, ao olhar
embrutecido, a afeição se apaga e é o divertimento que faz o Governador franzir os
olhos.
- Você está num estado incrível, meu rapaz! Não é tão mau assim para um covarde...
Gabriel ignora o cumprimento e a negação implícita das palavras ofensivas de
Gonzalo. Tremendo de frio e cansaço, desvia o olhar para os homens que amontoam
os objetos de ouro em grandes cestos de vime trazidos por nativas.
Depois, de repente, o Governador faz um sinal para o corneteiro Alconchel.
- Execute o toque de reunir!
Alconchel leva seu instrumento à boca. Os índios da aldeia, surpresos, dão um
passo atrás. Os que vêm seguindo os espanhóis desde Cajamarca acham graça e
explicam de onde vem o lamento que sobe e se propaga pelo ar denso e ruidoso do
vale.
- O que está acontecendo, dom Francisco? - pergunta Gabriel.
- Aqueles que você esquartejou eram só um destacamento. O grosso do exército
deles, com 15 mil guerreiros, está a seis léguas ao sul. Agora que os homens e os
cavalos estão descansados, quero que 50 cavaleiros partam à procura deles.
Gabriel fica desorientado.
- Não estou falando para você, filho. Você deve descansar, agora. O seu dia
acabou... Divirta-se, aproveite das iguarias e das mulheres que nossos novos amigos
nos oferecem...
Pizarro o abraça.
Uma risada azeda ecoa atrás deles enquanto eles se afastam emocionados.
- Que cena agradável!
O busto excessivamente arqueado, o gibão aberto em cima de uma camisa suja e
rasgada, um bafo de cerveja, Gonzalo Pizarro conƟnua rindo, cheio de desprezo,
macaqueando uma saudação de cerimônia.
- Com certeza, meu irmão, você está abraçando um verdadeiro herói!
- Mas você também é, Gonzalo! - replica o Governador abrindo os braços
ostensivamente. - E se a sua felicidade puder estar num abraço do eu Governador, é
de muito bom grado que lhe dou um.
Ignorando as mãos estendidas, Gonzalo volta-se para os cavaleiros que o odeiam
e goza ainda mais:
- Tirem o chapéu, senhores! Por ter finalmente estripado um punhado e índios, dom
Gabriel é dos nossos. Seja bem-vindo, bastardo!
O Governador empalidece ao ouvir o insulto. Seus traços ficam tão gelados como
se a afronta fosse dirigida a ele. Sua mão esquerda agarra o punho e Gabriel e o
contém, enquanto sibila entre os dentes:
- Gonzalo, um dia você ainda vai se envenenar com seu próprio veneno. E não
garanto que então eu sinta pena de você!
O sorriso presunçoso de Gonzalo se apaga imediatamente. Ele olha para dom
Francisco com estupefação. Abre a boca para replicar, mas se cala quando Gabriel,
desvencilhando-se do Governador, dá um passo à frente para olhar para ele de alto a
baixo.
- Tem razão, dom Gonzalo: alguns aqui são bastardos. Mas nenhum fede tanto a
merda quanto o senhor.
Quando gira nos calcanhares, Gabriel não ouve uma risada, só as primeiras ordens
de marcha. A voz de dom Francisco está novamente calma, como se nada tivesse
acontecido.
Com um andar afetando indiferença, o corpo ainda dolorido das violências da
tarde, ele atravessa a praça. Só um pouco mais tarde, ao preparar-se para ir até as
tendas fora do vilarejo, vê a liteira de Chalkuchimac, rodeada de guerreiros. Uma
meia dúzia de nobres idosos a seguem, cercando Anamaya com seu olhar severo.
Num reflexo, Gabriel entra depressa numa ruela minúscula que cheira a água
estagnada. Por nada no mundo gostaria que ela o visse, os calções, o coração e o
olhar ainda sujos de sangue dos índios que ele matou naquele dia.
As tochas plantadas no pé da escada do ushnu tornam seus traços trêmulos e
indisƟntos. Com uma piscadela, Chalkuchimac ordena que tragam as hastes
besuntadas de pez.
Em silêncio, sem que se ouça o atrito de si as sandálias nas lajes, dez jovens
correm. Como não há argolas de pedra nos muros mais próximos, eles param em
volta dos Poderosos Senhores, segurando as tochas com o braço estendido.
Agora Anamaya vê melhor o rosto deles.
Formando uma espécie de círculo em volta de um defumados onde ardem folhas
de coca, há nove pessoas. Quatro velhos cansados da viagem, dois Poderosos
Senhores de Cuzco, um governador da região nomeado por Atahualpa, Chalkuchimac
e ela, a Coya Cama quen.
O general Chalkuchimac é o mais impressionante. Nem uma ruga de seu rosto
demonstra as dores de que vem padecendo há semanas. Não consegue andar, nem
sequer levar o alimento à boca. As extremidades de seus membros, queimados
durante as torturas que sofreu em Cajamarca, ainda estão em carne viva. As
mulheres que o tratam aplicam ungüentos nas chagas de manhã e à noite, trocam os
panos que as cobrem, mas as queimaduras não param de sorar e se aprofundar mais
ainda, como se procurassem devorar todo o corpo do poderoso guerreiro.
No entanto, sentado ali na esteira, encostado num banco de liteira, enrolado numa
grande manta que só lhe deixa o rosto de fora, ele parece a
Anamaya mais robusto e determinado que qualquer um daqueles homens
presentes. Foi ele quem convocou essa assembléia enquanto os estrangeiros agora
festejam e se esbaldam nos páƟos internos da cidade para celebrar a vitória e rir dos
mortos que apodrecem no rio.
O olhar de Chalkuchimac percorre um a um os rostos graves e calados. Fixa-se,
penetrante, no de Anamaya. No clarão das tochas, o branco de seus olhos se Ɵnge
de vermelho. Por um breve instante, ela julga encontrar à sua frente o olhar de
Atahualpa. Mas as pupilas de Chalkuchimac se desviam e sua voz explode:
- Estamos avançando como crianças com os olhos vendados. Não temos mais
coragem nem discernimento. Os estrangeiros querem entrar na idade Sagrada, e nós
lhes damos a mão para conduzi-los até lá! No entanto, abemos o que eles querem
fazer ali. Olhem em volta de vocês: eles vão pilhar s páƟos dos clãs, tomar o ouro
dos templos. No entanto, Poderosos Senhores, ao ver a expressão de vocês e ouvir
suas palavras, parece-me que isso lhes indiferente. Que todo o destino do Império
lhes é indiferente!
Um dos mais velhos Senhores levanta a mão para interrompe-lo e diz com uma
voz ácida:
- Você sempre pensa e age como guerreiro, Chalkuchimac. Só conhece as palavras
da força. Isso foi bom para você enquanto a força de InƟ estava com você. Hoje,
que você é fraco e submisso à vontade dos estrangeiros, só ala a língua da derrota.
Olhe o que aconteceu hoje! Centenas de seus bravos guerreiros morreram pela mão
dos estrangeiros que não foram mais que um unhado a lutar! Que isso lhe agrade ou
não, os cavalos dão aos braços deles ma força que você não tem...
- Chalkuchimac, ouça a alegria dos habitantes de Hatun Sausa! – diz outro Ancião,
furioso. - Ouve-os cantar e dançar? Os seus soldados vieram incendiar esse vale
para que os estrangeiros só encontrassem cinza e fumaça no ninho! Ouça como os
habitantes dessa província estão felizes agora que os
estrangeiros esvaziam as reservas do inca e tomam as mulheres como se elas lhes
pertencessem! É isso que você quer por todo o Império das Quatro Direções?
- Basta! - ordena com uma voz calma o mais poderoso dos Senhores Cuzco. - É
inúƟl discutir.
Por um instante, o silêncio os envolve a todos, quebrado pelos gritos e risadas
agora
provenientes das tendas em volta da cidade, na beira do rio.
O Poderoso de Cuzco é um homem redondo, de maçãs muito salientes pele tão
acobreada que seu rosto se parece com algumas cerâmicas pintadas.
Sob seu olhar, Chalkuchimac permanece impassível. Seus brincos de ouro pesam
em seus ombros e faíscam. Ele não pestanejou sob os ataques, e sua mandíbula
agora parece larga como a de uma fera.
- Chalkuchimac enuncia parte da verdade - retoma o Poderoso de Cuzco. - E eu,
Tisoc Inca, concordo com ele quando diz que avançamos como crianças de olhos
vendados. Está na hora de designar um Único Senhor. Está na hora de InƟ encontrar
de novo um filho entre nós.
Anamaya vê os velhos abaixarem a cabeça. Chalkuchimac sorri, desdenhoso:
- Suponho que o Poderoso Tisoc queira que um de seus irmãos de clã seja
designado!
- A raiva está fazendo você se exaltar em vão, Chalkuchimac. Quem for designado
deverá ter o apoio de seu pai Sol como dos ancestrais do Outro Mundo. É só o que
peço.
- Para mim, é de espantar que você não tenha ninguém em mente - diz
Chalkuchimac contraindo as feições.
- Como vamos designar um Único Senhor, se não temos nem sacerdote nem
adivinho para nos dizer qual é a vontade de InƟ e de Quilla? - pergunta um Ancião
que até agora estava calado. - Como vamos escolhê-lo se o Único Senhor Atahualpa
antes de morrer não transmitiu a mascapaicha real a nenhum de seus filhos?
- Ele não Ɵnha que fazer isso - replica secamente Chalkuchimac. - Todos sabem
que o filho preferido de Atahualpa é Atoc Xopa. É ele que deve usar sobre a testa
as duas plumas de curiguingue, como seu pai.
Mais uma vez, as palavras de Chalkuchimac mergulham cada um deles no
silêncio. Mas este é pesado. Olhares voltam-se para Anamaya. Ela sabe o que eles
esperam, mas prefere que todas as palavras e segundas intenções dos Poderosos se
despejem e se confrontem antes que ela diga o que precisará dizer.
- Atoc Xopa é uma criança - observa o Poderoso de Cuzco. - Ainda por cima, está
morando atualmente na capital do norte, bem longe daqui e dos estrangeiros. Como
poderia fazer ouvir a sua vontade?
- Tisoc, você não entendeu as palavras de Chalkuchimac! - ridiculariza um dos
Anciãos. Tem razão: o filho preferido de Atahualpa é uma criança. Mora no norte e
ninguém aqui conhece a cara dele. Ele nunca entrou em Cuzco. Mas é isso mesmo
que agrada ao general Chalkuchimac!
- Se o nomearmos - reforça outro -, ele será uma sombra frágil sob a influência de
Chalkuchimac, que será o verdadeiro senhor do Império, embora não seja filho de
Inti!
Todos os rostos viraram-se para Chalkuchimac. Ele enfrenta as acusações sem
mover um músculo do rosto. Anamaya não consegue evitar admirar essa força e essa
calma. No entanto, a tensão é tão grande que ela vê as mãos dos velhos Poderosos
tremerem. O mais idoso diz ainda, levantando a mão de dedos tortos:
- Ouvi o que Chalkuchimac dizia ao Machu Kapitu dos estrangeiros através do
intermediário que fala a língua deles. Propunha, sozinho e sem o nosso
consentimento, que Atoc Xopa fosse nosso Único Senhor.
- É verdade, Chalkuchimac?
Estranhamente, antes de responder a Tisoc Inca, o velho guerreiro volta seu olhar
para Anamaya. Fita-a intensa e demoradamente, como se quisesse ver dentro dela.
Depois se endireita, sorri e diz:
- É.
Um rugido de cólera escapa das bocas dos Poderosos. Mas Chalkuchimac parece
agora dirigir-se apenas a Tisoc Inca:
- O que está acontecendo com vocês todos? São como Atahualpa, que achava que
os estrangeiros pegariam o ouro que ele lhes oferecia e iriam logo embora?
Atahualpa se foi e nenhum de nós sabe se ele pode se reunir ao Pai no Outro
Mundo!
De novo, um rugido faz vibrar o peito daqueles homens. Então, num gesto de
fúria, Chalkuchimac afasta a manta que o cobre. Todos vêem as mãos que ele
estende. Estão em carne viva, e nelas brilha um sangue escuro. Seus pés e suas
pernas estão cobertos de chagas onde se formaram crostas que dessoram uma
secreção amarela:
- Por que acham que aceitei isso? - pergunta Chalkuchimac vermelho. - Minha
carne queimada empesteis o ar do Império das Quatro Direções. Minha dor sobe até
o negro do céu para que InƟ, ao amanhecer, encontre seu caminho! E ele não quer
que eu sare, para que cada um de nossos guerreiros sinta esse cheiro e saiba que eu
jamais me prosternarei diante dos estrangeiros. Tisoc! Eles não são doces nem bons!
Eles comem ouro e o estômago deles não tem fundo! Tisoc Inca, você não
compreende que quando eles chegarem a Cuzco tomarão sem dar nada em troca?
Tomarão suas terras, suas mulheres, seus filhos, seus servos... Tomarão, tomarão
sempre, pois estão aí para tomar! Eu, Chalkuchimac, lhes digo: é preciso matá-los
enquanto eles são poucos.
- Nesse caso, por que designar uma criança sem experiência? - pergunta um velho
asperamente.
O sorriso de Chalkuchimac parece o de um demônio do Mundo de Baixo, e
Anamaya não consegue conter um arrepio:
- Porque os estrangeiros se julgarão os senhores do Único Senhor. Dirão a ele:
faça isso, faça aquilo! Vamos sorrir para eles. Lhes dar ouro. Mas, enquanto isso, eu
serei livre. Poderei conduzir nossos guerreiros numa grande batalha, onde eles
morrerão todos!
- Como hoje? - brinca Tisoc.
- Vocês são uns poltrões! - exclama Chalkuchimac brandindo as mãos feridas. -
InƟ os reduzirá a cinzas!
- InƟ não escuta você, Chalkuchimac! - replica secamente Tisoc. - Você esquece
que quem tem fome acaba sempre morrendo ou se saciando. A sua escolha não é
sábia nem judiciosa. Sabemos todos a quem devemos designar como Único Senhor.
É Manco, filho de Huayna Capac, Poderoso do clã De Cima. Ele é o mais sábio dos
que ainda estão vivos. Com ele, teremos a paz e a unidade do Império...
O rugido de desagrado de Chalkuchimac é quase uma risada. Ele se vira para
Anamaya. Seu olhar é tão duro que daria para quebrar uma pedra de funda.
- Foi você quem sugeriu essa escolha, Coya Cama quen? Você está muito calada!
Era mais tagarela junto de Atahualpa!
- Chalkuchimac! - diz um dos Anciãos. - Como ousa zombar da Coya Cama quen?
Chalkuchimac contrai o rosto, pois suas mãos feridas esbarraram em sua roupa.
Balança a cabeça e diz mais baixo:
- Não! Não, Poderoso Ancião, não estou zombando. Sei quem é a Coya Cama
quen...
- Chalkuchimac - retoma Tisoc Inca num tom conciliador -, a querela não leva a
nada. Urge escolhermos um Único Senhor. Aqui não há adivinhos nem um servo de
InƟ para nos fazer conhecer os oráculos. A Coya Cama quen pode fazer isso. Ela
soube designar o Único Senhor Atahualpa antes que o cometa passasse no céu de
Quito. Ele sempre confiou nela em todas as decisões que tomou, você sabe. Todos
sabemos que ele comparƟlhou suas únicas palavras do Mundo daqui com ela, como
havia feito seu pai Huayna Capac, em Quito...
- Sim! - aprova ruidosamente um velho. - É isso que precisa ser feito.
- Aceite, Chalkuchimac! Que a Coya Cama quen designe o Único Senhor, que ela
escolha entre Manco e Atoc Xopa!
O olhar de Chalkuchimac não deixou Anamaya, que, pela primeira vez, vê ali
medo, dúvida e quase um brilho de amizade. Ele bufa de repente como uma forja,
fecha as pálpebras e pergunta:
- Então, qual é a sua palavra, poderosa Anamaya?
Anamaya não consegue impedir seu coração de bater tão forte que abafa suas
palavras. Sabe o peso do que vai dizer. Todos os seus músculos e seus ossos ficam
duros como pedra. Mas as frases sobem em sua garganta e saem de sua boca como
que livres. Embora as pronuncie, elas não vêm de sua boca.
- Na noite antes do Grande Massacre de Cajamarca, o Único Senhor Huayna
Capac veio me ver do Outro Mundo. Tinha a aparência de uma criança. Ele me
disse: " O que é velho se quebra, o que é grande demais se quebra, o que é forte
demais não tem mais força... É isso o grande pachacuti. O mundo se comprime e
recomeça. Tudo mudou..."
Um murmúrio de espanto a envolve. Ninguém pensa em pôr sua palavra em
dúvida: é como se, por sua boca, o próprio grande Huayna Capac esƟvesse falando.
Ela vê os rostos tensos que parecem colher suas palavras como brasas. E diz ainda:
- O Único Senhor Huayna Capac acrescentou: "Cuide de meu filho que salvou da
serpente, pois ele é o primeiro nó das cordas do futuro... " Há muito tempo, quando
eu era ainda uma menina inexperiente, assisƟ à cerimônia onde o poderoso Manco
tornou-se um homem. Nesse dia, ele ganhou a corrida. Mas, enquanto ele corria, uma
víbora ficou atravessada no meio do caminho dele para picá-lo quando ele passasse.
Vi isso a tempo. Pude afugentar a cobra e Manco continua vivo.
O silêncio é absoluto. Agora não há mais clamores na planície, nem risos e
cantoria na noite.
- Assim, Coya Cama quen, Manco é a sua escolha - murmura Chalkuchimac.
- Poderoso Chalkuchimac - responde Anamaya com uma audácia que surpreende a
ela própria -, a escolha não é minha: há muito tempo os ancestrais do Outro Mundo
designaram Manco. Mas permita-me dizer que ele é nobre e direito. É justo e não é
covarde, você sabe disso. Saberá reunir todas as partes do Império sem se submeter
aos estrangeiros como uma criança. E para fazer a guerra que deseja, se ela Ɵver
que ser feita, é preciso primeiro paz. É preciso limpar as feridas da guerra entre os
irmãos que tanto enfraqueceu o Único Senhor Atahualpa. Sim, Chalkuchimac, você é
um grande guerreiro. Mas hoje a guerra tem a forma da paz. Só ela nos permiƟrá ser
fortes, quando chegar o dia, se Inti e Quilla quiserem.
- Ela tem razão! Falou bem! - aprovam dois dos velhos.
- Chalkuchimac - diz Tisoc -, todos aqui concordamos com a Coya Cama quen.
Confiamos nela. Amanhã, quando o dia raiar, ela parƟrá ao encontro de Manco para
lhe comunicar nossa escolha...
Franzindo um pouco as pálpebras, Chalkuchimac olha um instante para seus
ferimentos. Depois levanta o rosto para encarar Tisoc, amargo:
- O que aconteceria se eu não fosse da opinião da Coya Cama quen? - pergunta.
Tisoc não responde. O silêncio é atravessado por suspiros cansados desses
Senhores que só extraem suas forças dos lábios e da memória de uma jovem.
Anamaya olha para Chalkuchimac com admiração e pena.
- O que aconteceria? - pergunta Chalkuchimac com uma voz mais baixa e
ameaçadora.
Anamaya fita Tisoc por um breve instante, mas não espera sua aprovação para
responder afinal, com uma doçura tremenda:
- Nada, poderoso Chalkuchimac. Não vai acontecer nada. Eu parto amanhã.
Os olhos de Chalkuchimac mergulham nos seus. Pela primeira vez, ela vê ali um
sentimento que não é de raiva nem revolta: é de resignação. E uma tristeza infinita.
***
O dia nasce numa névoa espessa que cobre de umidade as rochas e as lonas das
tendas. O ar recende ainda a cinzas frias. Não há mais barulho senão o do rio
correndo e um guincho esporádico de algum pássaro.
Envolto em sua longa capa de cavalo, Gabriel está sentado num cepo meio
afastado do acampamento dos senhores incas. Dormiu mal a noite, acordando a toda
hora, enfrentando ainda o combate da véspera como se este não Ɵvesse fim. Tinha o
coração batendo com o desejo brutal, violento, de correr até a tenda de Anamaya.
Imaginou-se tomando-a nos braços, afogando-se em suas carícias e em seu ventre
para apagar o fogo de sua memória num prazer de amor que não teria fim. Não
ousou fazê-lo.
Como não ousa ir encontrá-la agora que ela se prepara para a partida.
Dom Francisco avisou-o da parƟda: os Senhores incas escolheram um novo rei.
"Com a minha concordância", indicou Pizarro, sem mais detalhes, antes de
acrescentar: "A sacerdoƟsa deles foi designada para ir comunicar ao eleito e
autorizei-a a deixar a coluna." A palavra "sacerdoƟsa", o olho negro de Pizarro
cruzou numa fração de segundo com o olhar de Gabriel, que desviou o olhar, quase
envergonhado.
Agora, nessa aurora úmida e silenciosa, junto ao rio, carregadores preparam a
liteira da Coya Cama quen. Um pouco afastados, sob o comando de um jovem
oficial, dez guerreiros formando a escolta aguardam. Mas Gabriel só tem olhos para
o grupo reunido entre as tendas dos Senhores.
Lá, diante dos velhos que a saúdam com respeito, Anamaya está resplandecente.
Envolta numa capa de vicunha com moƟvos entrelaçados em azul, púrpura e
amarelo vivo. Uma espécie de diadema de ouro com três plumas amarelas cinge sua
testa. Seus punhos estão cobertos de placas de ouro. Ela leva na mão uma haste de
milho de ouro também.
Jamais Gabriel a viu com um traje tão imponente. Ela lhe parece realmente uma
estrangeira, princesa de um mundo ainda distante para ele, tão inacessível que ele
sente um ciúme idiota.
- Vai pelo menos se despedir dela? - pergunta ao seu lado uma voz que o
sobressalta.
- Frei Bartolomé!
O rosto estranhamente pálido de frei Bartolomé sorri. Ele tem uma espécie de
ternura nos olhos cinzentos. Estende a mão com os dedos colados na direção de
Anamaya, enquanto os velhos se inclinam diante dela.
- Sei o que essa mulher é para você, amigo Gabriel. Nenhuma indiscrição de
minha parte: tudo se sabe, tudo se cochicha na coluna. As menƟras vicejam ali
como as verdades, mas basta pouca luz para discerni-las...
Gabriel hesita um instante antes de responder.
- Não sei julgar se se trata de um desses casos onde é melhor guardar silêncio, frei
Bartolomé, segundo suas próprias recomendações. O que acha?
- Mihi secretum meum, não é? Faça como achar melhor, meu amigo. Mas não vai
me
impedir de ler em seus olhos as respostas que seus lábios não me dão.
Gabriel balança lentamente a cabeça e seus olhos perscrutam a cena, lá embaixo.
Cercada pelos soldados índios e os três senhores, com um séquito de um punhado de
servos, Anamaya aproxima-se da liteira. Gabriel sabe que ela já o viu.
- Dizem que é uma princesa diferente das outras - diz apenas Bartolomé, olhando
Gabriel.
Gabriel descontrai-se pela primeira vez e contém um sorriso de lado. É mais
agradável ceder à inteligência que à maldade.
- Ela tem dons que fazem com que seja temida e amada pelos índios - diz ele. - O
falecido rei Huayna Capac lhe teria confiado segredos dos quais eles julgam que seu
desƟno depende.
Gabriel se interrompe, hesita.
- Talvez para o senhor, frei Bartolomé, isso poderia parecer diabólico...
O frade sorri:
- Não sou propenso a ver o diabo em toda parte, Gabriel. Por outro lado, sei ver a
beleza quando ela se impõe a mim. E a beleza não é sempre obra de Deus?
Gabriel sente uma alegria autênƟca em encontrar de novo a habilidade suƟl e
amiga do monge. E é como se seu sorriso Ɵvesse atraído a atenção de Anamaya. Ela
está só a algumas toesas da liteira. Seu passo é hesitante. Mas seu caminho está tão
bem traçado quanto o da cerimônia. Um velho Senhor indica com um gesto a liteira,
os carregadores, a escolta...
A mão de Bartolomé pousa no braço de Gabriel:
- Deixe-me perguntar de novo: por que não vai lhe desejar boa viagem?
- Ontem - responde ele com uma voz surda -, ontem matei muitos homens. Muitos
índios.
- E tem medo que ela o censure por isso?
- Não sei. Mas tenho essa lembrança estranha de que os matava com vontade; até
com prazer...
Bartolomé dá uma leve risada.
- Isso você devia dizer era a mim, não a ela.
Os olhos cinzentos de frei Bartolomé desviam-se do rosto de Gabriel para
observar o cortejo indígena. Ele se cala um instante, o bastante para ver Anamaya se
instalar no banco da liteira. Quando começa a falar, sua voz é viva e clara:
- Ontem, Gabriel Montelucar y Flores, você cumpriu seu dever. Tornou-se um
herói para seus companheiros e hoje de manhã muitos o admiram. É provável que
você não de importância a isso, pois é muito orgulhoso e os considera meio
selvagens. Não importa. Se isso conta para você, diga a si mesmo que as vidas que
tomou, você já devolveu a Deus...
Quanto ao amor que existe em seu coração, não conte comigo para chamá-lo de
pecado...
A surpresa de Gabriel é tamanha que ele se vira para procurar o olhar do frade.
- É o senhor que está me dizendo isso, frei Bartolomé? Essa mulher nem é
baƟzada! Se eu escutar frei Vicente Valverde...
Bartolomé corta com impaciência:
- E se escutar a mim, pecado é ignorar a força do amor. O apóstolo Paulo não fala
outra coisa e Santo Agostinho...
- Mas eles falam do amor de Deus!
- Veja só o espírito forte teologizando! É a mim que você quer ensinar a força do
amor divino? Vou lhe dizer que há uma centelha divina em seu amor...
As úlƟmas palavras de Bartolomé são quase abafadas pelo som da trompa de
bronze que anuncia a partida do cortejo.
- Vá! Ande logo! - insiste frei Bartolomé.
E Gabriel, como aliviado do peso que o entravava desde a véspera, afasta
soldados e senhores para ir ver sua amada.
***
O homem é baixo. Brincos de ouro pendem de suas orelhas, e ele usa a túnica dos
governadores de pontes. Enquanto a liteira conƟnua nos ombros dos carregadores,
ele se ajoelha nas pedras do caminho e se inclina. O oficial dos guardas, tacape na
mão, observa-o circunspecto.
- Seja bem-vinda ao vale do Apurimac, Coya Cama quen. E uma honra para mim
fazê-la atravessar esse rio!
Anamaya sorri de tanto que o homem parece temê-la. Não há dia, desde sua
parƟda de Hatun Sausa, em que ela não veja até que ponto sua fama e seu cortejo
impressionam tanto os modestos habitantes das cidades como os funcionários do
Império.
O governador da ponte tem algumas razões para estar preocupado. A 200 passos
embaixo deles, as águas furiosas do Apurimac correm entre enormes rochedos. Seu
ronco ecoa no vale que se alarga para o sul. Mas onde deviam estar penduradas as
cordas de uma ponte, só se vê vazio.
- Levante-se - ordena Anamaya. - E me explique por que a ponte desapareceu.
- Há dez noites, Coya Cama quen, vieram uns soldados queimá-la. Eu quis impedi-
los e ordenei a meus guardas que os repelissem. Mas éramos só dez enquanto o
pelotão do general Quizquiz tinha mais de 100 homens!
- Quizquiz? - espanta-se Anamaya.
- Sim, Coya Cama quen. Foi assim que eles se apresentaram: como soldados do
grande general do Único Senhor Atahualpa. - Disseram por que queimavam a ponte?
- Para impedir os estrangeiros ladrões de ouro de chegarem a Cuzco.
O homenzinho estende o braço para o sul do vale e acrescenta:
- Dizem que há tropas por toda parte na montanha até Cuzco.
- Agora como se atravessa esse rio? - pergunta Anamaya com um tom seco para
cortar a tagarelice que ela sente vir.
Sua pergunta parece arrebatar o homenzinho. Ele se curva novamente num
movimento de respeito.
- Um mensageiro anunciou sua vinda já há três dias, Coya Cama quen. E nós
preparamos o que era preciso. Balsas...
- Balsas?
- Sim, Coya Cama quen. Mas não aqui, na passagem normal da ponte, as
correntes são muito fortes e muito perigosas. Há um lugar mais propício aqui perto.
Se me permite levá-la até lá.
- Coya Cama quen - intervém o jovem oficial da escolta. - Não é prudente se
afastar do caminho real. Isso poderia ser uma cilada!
- Como está vendo - replica Anamaya -, o caminho real já não existe sobre o rio. E
eu preciso continuar minha viagem, apesar de tudo. Trate então de me proteger!
***
Precisaram caminhar quase uma hora por uma trilha às vezes diİcil e íngreme até
chegar a um ponto em que as águas do rio de repente ficavam mansas.
Surgindo entre duas encostas arborizadas, o Apurimac de repente fica mais lento e
mais regular. Descreve uma longa curva entre os campos, atravessando um vale
curto. No outro extremo, torna a quebrar, levantando uma nuvem de espuma de
encontro a uma pedra alta e cinzenta que anuncia uma nova sucessão de corredeiras.
Ali, o rio, senƟndo-se à vontade, se alarga. No entanto, perto da margem, basta
olhar para compreender que a correnteza ali é apenas um pouco menos perigosa que
mais abaixo.
- Está vendo - explica o governador da ponte -, as balsas devem ser postas na água
naquele ponto. É preciso se deixar ir na correnteza e chegar à outra margem antes da
pedra grande.
- Onde estão as balsas? - pergunta Anamaya.
- Guardadas na mata ali embaixo, Coya Cama quen. Não queríamos que os
soldados as descobrissem e as destruíssem antes de sua chegada.
- Já atravessou o rio? - pergunta o oficial, desconfiado.
- Já, uma vez! - responde com um sorriso largo o governador da ponte. - Ida e volta.
- Bem, esta será a segunda vez - diz ela tranqüilamente.
O homenzinho, lisonjeado com o esơmulo, se alvoroça todo nos instantes
seguintes. Seus ajudantes puxam da borda da mata duas pesadas balsas de toras e
varas. Com a ajuda de outras toras menores, habilmente fazem-nas atravessar os
campos até o Apurimac, e deixam a maior delas deslizar para a água.
Dez homens seguram-na com cordas enquanto outros seis depositam ali a liteira
de onde Anamaya saltou. Uma vez que a cadeirinha está bem escorada, os ajudantes
do governador da ponte prosternam-se e aguardam a Coya Camaquen se instalar na
balsa para se levantarem. Então, munidos de longas varas, mantêm como podem a
estabilidade da embarcação.
A correnteza é tão violenta que Anamaya sente a liteira vacilar. Os troncos,
amarrados uns aos outros com uma certa folga, mexem de maneira impressionante.
Enquanto os homens têm cada vez mais dificuldade para segurar a balsa perto da
margem, começa uma discussão violenta entre o oficial da escolta e o governador da
ponte.
- Tenho que acompanhar a Coya Cama quen com no mínimo cinco soldados - diz o
oficial.
- Impossível! Será muito peso para a balsa, oficial. Não poderemos mais dirigi-la
com segurança. Dois homens no máximo. Olhe: as toras já estão afundando...
- É que você não fez direito o seu trabalho!
- É que a liteira está mais pesada do que o previsto. E, depois, há a segunda balsa.
Seus soldados poderão seguir ali a Coya Cama quen...
- Isso basta! - intervém Anamaya. - Oficial, venha nesta balsa com o governador
da ponte. Se a balsa dele estiver malfeita, ele sofrerá as conseqüências como nós!
Na verdade, desde que a embarcação é largada na correnteza, Anamaya
compreende a preocupação dos homens que procuram dirigi-la. Além de jogar cada
vez mais, ganha uma grande velocidade ao chegar ao meio do rio. Em alguns
segundos, a força das águas parece arrastá-la, vencendo a força dos homens que
afundam suas varas com uma rapidez espantosa.
De repente, um deles grita. Surge um redemoinho inesperado e fundo. Os seis
homens vão para o mesmo lado da balsa para empurrar para a direita.
Mas tudo acontece muito rápido. O choque levanta Anamaya uma primeira vez.
As toras pulam e raspam a pedra escondida pela água. A liteira levanta-se de novo e
cai de lado. O oficial da escolta joga-se na cadeirinha para segurá-la. Anamaya
agarra-se aos pés do banco, o tronco dobrado para contrabalançar sua inclinação.
A liteira cai pesadamente, mas um dos pés corta uma das amarrações já
enfraquecida pelo choque. A tora central da balsa que se soltou afunda
perigosamente enquanto a balsa inteira começa a rodopiar.
A pedra cinza, ali à frente, que anuncia a correnteza e parecia bastante longe, se
aproxima agora com uma rapidez louca. É então que o governador da ponte lança
uma espécie de uivo, depois outro. E mais outro. Então, numa sintonia perfeita, os
seis homens das varas remam juntos.
Parece um balé. As varas sobem e descem, envergam e deslizam, tornam a subir,
descem e se inclinam. O suor poreja nas nucas, mas a balsa se estabiliza. Melhor,
afasta-se do centro da correnteza. Os uivos conƟnuam, as varas envergam tanto que
parecem prestes a quebrar. Mas, finalmente, enquanto o ronco das corredeiras
ribomba no ar como uma ameaça iminente, a balsa vai mais devagar. Começa a
deslizar para a margem.
O governador da ponte sorri. Vira-se para Anamaya e cumprimenta-a. Cada um de
seus homens se dá conta de que a Coya Cama quen não disse uma palavra, não deu
um grito de medo durante o perigo.
Ela sorri também, surpresa pela delicadeza do contato das toras com a margem.
Enquanto a liteira é depositada na relva, ela observa os homens alternadamente,
senƟndo o frescor do ar e esse prazer recente e ainda tão estranho: os olhares
pousados nela estão cheios de admiração e de um novo respeito.
- Estamos longe de Rimac Tambo? - pergunta ela ao governador da ponte.
- A menos de um dia de marcha. Se quiser nos dar a honra de aceitar nossa
hospitalidade por esta noite...
Anamaya não o deixa terminar.
- Eu lhe agradeço. Falarei com o Senhor Manco sobre sua eficiência. Mas temos
que estar hoje à noite em Rimac Tambo.
O ronco do rio sobe como um suspiro tranqüilizador. No crepúsculo, as acostas
das montanhas, ao redor da cidade, parecem pétalas protetoras. De fronte à cancha,
um vale profundo e estreito abre-se para o leste. Na noite que chega, ainda
encoberto pela névoa translúcida, o vale adquire uma palidez estranha.
Hoje, Anamaya sabe aonde esse vale leva: à cidade sagrada cujo nome ninguém
deve pronunciar. Picchu!
Nada mudou em Rimac Tambo. É uma sensação estranha.
Há anos, ela estava ali, num crepúsculo semelhante. Os belos muros que
sustentam a esplanada das cerimônias, com juntas perfeitas, Ɵnham essa mesma
calma tranqüila dessa noite. As ladeiras íngremes que encerram o vale, lembrando
triângulos e retângulos encaixados no chão, já faziam pensar nos desenhos
geométricos feitos diariamente pelas virgens dos acllahuasis. Já possuíam essa
mesma força um tanto preocupante. Só Anamaya era diferente. Era apenas uma
menina aflita que o sábio Villa Oma esforçava-se para tornar vigilante e segura de si.
Foi ali mesmo, para grande espanto deles, que, num crepúsculo como aquele,
aparecera-lhes, dentro do vale proibido, o cometa designando o Único Senhor
Atahualpa.
Basta Anamaya fechar os olhos para tornar a vê-lo. Uma bola de fogo amarelo
clara, como um sol da noite. Subia no horizonte negro, entre as primeiras estrelas.
Atrás, flutuava sua imensa cabeleira levantada pelo vento do Outro Mundo.
Basta evocar suas lembranças para ouvir a voz do sábio: "Deixe seu medo para
trás, Coya Camaquen. Deixe seu espírito conduzi-la. Lembre-se de sua viagem à
pedra dos ancestrais. Abandone o medo..."
O pio de uma ave a faz estremecer e ela abre os olhos sobressaltada.
Ao seu redor, a esplanada está deserta. Anamaya sente um pouco de frio. Sua
capa de gala não é suficientemente quente para essas montanhas. Apesar de tudo, ela
se obriga a usá-la há dois dias, para receber o Único Senhor Manco quando ele
chegar. Mas, quando a noite cai, arrepios congelam sua nuca e seus rins.
Ouve-se mais um pio, mais perto do rio. E outro ainda, atrás do tambo.
Anoitece rápido. O vale de repente parece mais escuro e ameaçador. As pedras
do
caminho real, reto na ladeira íngreme que fecha o vale ao sul, aparecem no meio da
vegetação. Formam uma estranha imagem, como se a montanha fosse cortada por
uma linha clara, fria, dura.
Anamaya contém um estremecimento que dessa vez se deve mais à preocupação
que ao frio do crepúsculo.
Muitos camponeses de Rimac Tambo confirmaram as palavras do governador da
ponte. Nas montanhas ao redor, há centenas de soldados rondando, pilhando as
canchas, maltratando as cidades. Seus oficiais recusam-se a se submeter às ordens
de paz com os estrangeiros dadas pelos Poderosos Senhores. Alguns afirmam que só
respeitam a vontade do General Chalkuchimac, que jamais aceitará que os
estrangeiros cheguem a Cuzco. Enquanto Manco demora a chegar, Anamaya receia
ser informada que ele esteja nas mãos dessas hordas de guerreiros.
Será que vai ser sempre assim? Violência, ódio e lutas fratricidas apesar da
vontade dos Ancestrais numa época tão grave e tão conturbada?
Na verdade, esse vale aparentemente tão calmo guarda até em seu solo tantas
recordações dramáƟcas que se torna ameaçador. Anamaya se lembra muito bem do
massacre dos velhos que acompanhavam o Corpo Seco do Único Senhor Huayna
Capac ocorrido exatamente ali!
De novo as aves guincham na floresta que escurece. Na escuridão crescente, o
rumor do rio correndo torna-se mais lancinante e misterioso. Anamaya aperta a capa
em volta dos ombros gelados mas se recusa a entrar na cancha, como se sua
paciência pudesse proteger Manco no caminho que o conduz até ela.
***
Desde o crepúsculo, ela não se mexeu. Agora, é noite fechada. Colocaram junto
dela um braseiro onde ela pode esquentar as mãos e o rosto. O tempo passa devagar
enquanto ela acompanha a subida das estrelas.
De quando em quando, guinchos e laƟdos ecoam no escuro da montanha. Embora
esteja atenta, só no úlƟmo momento é que ouve o barulho de passos no capim. Não
tem tempo de se virar antes que uma mão grande e forte lhe tape a boca, impedindo-
a de dar um grito. Um corpo se abraça a ela e a levanta como uma boneca.
- Manco!
- Ah! - murmura Manco soltando-a. - Você me reconheceu logo!
Eles se encaram. A emoção brilha em seu olhar. Anamaya esquece a saudação
oficial que ela se prometera fazer ao avistar Manco. O homem que está à sua frente
irradia força e disƟnção. Ela sente um grande prazer em revelo, em avaliar a
passagem do tempo no rosto dele desde o primeiro encontro dos dois, em
Tumebamba. Ele também se sente perturbado diante dela. Dá um passo atrás para
admirá-la melhor.
- Está quase noite, mas você brilha como uma estrela, minha irmã - diz ele com
ternura.
- É um prazer revê-lo, Manco. Um prazer muito grande também ver que...
Ela tropeça na palavra e se interrompe. Gostaria de lhe dizer que ele adquiriu a
beleza e a imponência que convêm a um Único Senhor. Que ele tem, no desenho dos
lábios e no brilho dos olhos, a determinação e a segurança de um Filho do Sol. Mas
não ousa. Por uma fração de segundo, sente a perturbação de seu amor por Gabriel.
O pachacuƟ transtorna não só o mundo, como também seu coração. Em sua
perturbação, ela não queria que Manco se enganasse e entendesse suas palavras
como um desejo de sedução.
- Estou feliz que você tenha chegado aqui sem problema - acaba dizendo ela.
- Sim, há tropas de Quizquiz e de Guaypar rondando por toda parte. Mas essa
gente do Norte não conhece a montanha tão bem como eu!
Ele sorri com uma ponta de desdém antes de acrescentar ternamente:
- Como você não teve medo e me reconheceu tão rápido? A Coya Cama quen
agora teria tantos poderes que tem dois olhos nas costas?
- Eu esperava você há horas! SenƟa medo por você, prestava atenção nos barulhos
da noite aguardando você...
Ela se interrompe com um sorriso e acrescenta:
- ... e uma vez você me surpreendeu assim mesmo, neste mesmo lugar. Eles riem
juntos, felizes e ao mesmo tempo embaraçados.
- Venha - diz Manco. - Vamos entrar no tambo. Será melhor para conversarmos, e
estou com fome.
***
O naƟvo observa Gabriel com um sorriso conƟdo tão curioso quanto receoso.
Repete sua resposta lentamente, para que o estrangeiro possa entedê-la melhor:
- Sim, ela estava aqui há três dias. Eu a vi.
- A Coya Cama quen?
- Eu sou apenas um hatunruna. Não sei o nome das princesas incas.
- Então, como pode ter certeza que era ela?
- Os olhos. Você disse que os olhos dela eram da cor do céu. Eu nunca i outra
princesa com olhos como aqueles.
Gabriel aprova com um gesto de cabeça. Esboça um sorriso e se contém para não
dizer que também nunca viu princesa alguma com um olhar mo aquele.
É de manhãzinha, as encostas abruptas das montanhas que cercam a aldeia de
Rimac Tambo estão envoltas numa bruma leve que já se levanta em Ɵras
transparentes. As encostas e os cumes formam uma imagem bela e enganadora de
pétalas protetoras. Gabriel percorre-as com um breve olhar decepcionado que se
afoga no ronco do rio. Anamaya não deve estar muito longe. m algum lugar na
floresta. Nos dias precedentes, enquanto cavalgava ao do de Soto no caminho real,
ele estava sempre esperando ver sua liteira voltando da embaixada. Em vão. De
modo que sua decepção misturou-se m preocupação. Teria acontecido alguma
infelicidade com ela? A não ser que ela tenha conƟnuado a viagem até Cuzco? Mas
não era o que estava revisto.
- Ela estava lá com um Poderoso de Cuzco - diz ainda o homem, como se lesse os
pensamentos de Gabriel.
- Sabe em que direção ela foi?
O homem não tem tempo de responder. Uma voz os sobressalta: - Boas ou más
notícias?
Soto sorri amigavelmente. Gabriel repara que ele vesƟu a casaca de algodão
acolchoado por cima do gibão. Sua mão esquerda, que repousa no punho da espada,
também está protegida pela grande luva de couro forrada de chapinhas de metal que
Soto gosta de usar nos combates.
Gabriel responde amuado:
- Nem boas nem más, por enquanto.
Torna a virar-se para o índio. Aponta para as montanhas em volta e pergunta:
- Sabe se há guerreiros na floresta?
O homem hesita. A chegada de Soto em traje de guerra o impressiona. Gabriel
insiste:
- Soldados do Norte, dos que pilham, que destroem suas pontes e suas aldeias?
O índio se decide. Com os dedos de homem da terra, aponta para as encostas
abruptas ao sul.
- Há duas noites, pouco antes da chegada de vocês, havia muitas fogueiras lá em
cima. Mas, depois, mais nada.
Soto não precisa que Gabriel traduza.
- Claro que estão por lá - murmura. - Eles devem estar alguns dias à nossa frente
para destruir as últimas pontes antes da capital!
Por um instante, os dois homens olham ainda na direção indicada pelo índio. A
menos de uma légua da aldeia, a estrada real se transforma numa subida íngreme
como eles nunca viram. O caminho não é mais calçado e é tão puxado que, sob a
bruma que se levanta, no coração da floresta, seu traçado claro parece a prumo.
- Essa ladeira vai ser dura para nós, porém mais ainda para os cavalos - observa
Gabriel. - Pois eles ainda não descansaram do ritmo em que estamos
andando nesses úlƟmos dias. Talvez fosse melhor esperarmos o Governador aqui.
Com o rosto franzido, Soto balança a cabeça. - Não gosto desse vale. Não gosto
desse rio, não gosto disso - diz. Com o indicador nu, Soto aponta para a garganta
estranha e estreita que se abre para leste, em frente a poderosas construções incas.
Uma garganta estranha e funda. Enquanto por toda parte o nevoeiro se dissipa,
deixando entrever o azul do céu, ali ele permanece. Denso, imóvel e ameaçador.
Suas volutas translúcidas lhe dão em alguns pontos o aspecto de um animal
monstruoso mas vivo.
- Ontem, o dia todo - acrescenta Soto -, a cerração não saiu dessa garganta. Parece
que ela não leva a lugar nenhum, ou então vai dar direto onde mora o diabo!
Gabriel não contém um sorriso divertido.
- Eu não sabia que você era tão supersƟcioso a ponto de ter medo até das formas
da natureza, dom Hernando!
- Um efeito do clima, sem dúvida... Você faz mal em caçoar, Gabriel! Observe a
composição da paisagem. Esses bugres índios são capazes de passar dias
escondidos nesse vale enevoado para cair em cima de nós quando menos
esperarmos.
- É um risco contra outro. Estaremos à mercê deles quando subirmos essa ladeira.
Os cavalos não nos ajudarão em nada, muito pelo contrário.
- Então precisamos andar logo. Será bem pior se esperarmos o mau tempo. Olhe
esse céu, o dia vai ser deslumbrante, quente e salutar!
- Na verdade - resmunga Gabriel, a quem a serenidade do céu não convence muito
-, o capitão é você!
- Basta, amigo! - exclama Soto, zombeteiro, agarrando o braço de Gabriel. - Já vi
você mais entusiasmado diante da aventura. Será que, como
nosso caro dom Francisco, você desconfia que eu esteja muito apressado ara
chegar a Cuzco?
- Desconfio, sim - responde Gabriel no mesmo tom. - E acho que, esta vez, minha
desconfiança tem fundamento, Soto! Mas, pouco importa.
essa encosta que não me diz nada que preste.
- E eu lhe garanto que é esse vale que não me diz nada!
- Então, um de nós está errado - sorri Gabriel.
- Não, meu amigo! Reze antes para que nós dois estejamos enganados!
Enquanto os dois voltam para os dois prédios onde os espanhóis estão em
polvorosa, o índio chama Gabriel. Aponta para uma montanha que domina o vale, a
norte:
- Senhor estrangeiro - diz -, a princesa dos olhos azuis foi para essa montanha há
dois dias.
***
Não é preciso muito tempo para que os 60 cavaleiros selem os cavalos, vistam
uma sobrepeliz de algodão acolchoado ou, em alguns casos, uma cota de malha. De
fato, o dia está muito bonito para que se possa achar que vai chover.
Os três arcabuzes estão carregados de pólvora bem seca e colocados num cavalo
sem cavaleiro. Os cavaleiros que possuem escudos prenderam-nos às suas selas. As
cordas de tripa das pequenas bestas com cardenal foram lubrificadas na véspera,
tendo sido trocadas as que pareciam mais fracas. Algumas já estão retesadas,
prontas para disparar, e a agulha à mão na aljava da sela.
O mais demorado é designar 12 homens para guardar o ouro de Rimac Tambo até
a chegada do Governador. Finalmente, como ninguém quer se submeter a isso, Soto
designa um punhado de homens sem cavalo e os dois mais jovens cavaleiros. Com
ele, virão Gabriel e os bons cavaleiros, a começar por Rodrigo Orgoñez e sobretudo
um dos mais valentes deles todos, o nobre Hernando de Toro.
É com uma expressão fechada de raiva e decepção que eles ouvem, pouco antes
do meio-dia, ser dada a ordem da parƟda. O sol é pesado como um fogo de forja.
Pesa tanto nos capacetes quanto neles reflete.
O início da subida é feito com prazer e entusiasmo. Por duas ou três vezes, Soto
grita para os companheiros diminuírem o passo e não forçarem demais os animais.
Mas todos entendem logo. A terra sucede às lajes do caminho. Escorrega, muito
barrenta ou muito arenosa, dependendo do lugar, mas sempre íngreme demais! Os
animais às vezes parecem tão pesados que nem se agüentam. De vez em quando, só
avançam aos pulos, como cabras, perdendo logo o fôlego.
Transposto um quarto da encosta, o caminho se encolhe entre os arbustos
enquanto a floresta se espaça. Cada vez há menos sombra e mais calor. Os homens,
como os cavalos, vão de boca aberta, a língua pastosa e com falta de ar. Soto dá
ordem de só avançarem em grupos de quatro.
Gabriel e seus três companheiros se afastam do caminho. As botas escorregam no
mato, ficam presas nos galhos frondosos das amoreiras e dos algodoeiros silvestres,
mas os animais se sentem mais à vontade ali e penam menos.
Os homens abrem as sobrepelizes acolchoadas embaixo das quais sufocam.
Desatam os cinturões, desapertam as camisas. Os olhos piscam, tamanha é a
claridade do sol. As mãos estão molhadas segurando as rédeas dos cavalos.
Ninguém fala, mas não há silêncio. O atrito das botas, o impacto dos cascos, as
respirações curtas ecoam no ar cristalino. Os corações batem pesado nos peitos
oprimidos. As veias intumescem nos pescoços e nas têmporas. Gengivas e tocos de
dentes aparecem entre as barbas e desenham ríctus cadavéricos nas caras
deformadas pelo esforço.
Ninguém pensa mais nos índios, mas apenas nos metros de montanha que é
preciso galgar e que não param de aumentar diante deles.
***
***
Há quanto tempo estão lutando? Gabriel já não sabe mais nada. Suas sombras são
longas e estão ensangüentadas.
O tumulto não pára, os uivos dos índios não param. As pedras, os golpes, as
flechas não param. O sangue brilha nos flancos dos cavalos. Os animais só haviam
subido meia légua quando as bestas foram descarregadas a queima-roupa, matando
às vezes dois índios com o mesmo Ɵro. Mas os guerreiros incas, em vez de se
inƟmidarem, ficaram mais furiosos. Eles aprenderam a conhecer essas máquinas.
Sabem que é preciso tempo para recarregá-las e baixam sobre os cavaleiros
desmontados com gritos de espanto.
Após tê-lo feito transpor a vala com os chuços, Gabriel solta seu cavalo, com
uma forte palmada na garupa. Aos pinotes furiosos, mordendo ao passar, o cavalo
abre um caminho morro acima. Ao lado de Gabriel, um grupo de índios se agarra ao
rabo de um animal para segurá-lo e derrubar o cavaleiro. Com um grito de fúria,
Gabriel investe e decepa uma mão e o rabo. O índio cai para trás, berrando de dor.
Gabriel vê disƟntamente o medo nos olhares. Apara uma machadada com o punhal e
a espada cruzados, e com um chute na barriga repele o agressor que cai na encosta.
Hernando de Toro grita acima dele:
- Soto está lá em cima! Ele chegou!
Ele queria falar mais, porém o ataque de um grupo de índios os obriga à vigilância.
Gabriel e ele defendem uma passagem perto da vala de chuços para que os
retardatários possam passar. Pulando para a direita e para a esquerda, cada vez mais
esbaforidos, repelem os golpes de tacape e as machadadas sem nunca conseguir
contraatacar.
Hernando de Toro dá um grito de dor. Gabriel o vê cambalear, uma ponta de lança
na coxa. Corre para seu companheiro girando a longa espada no ar, dando-lhe tempo
para tirar a lança da carne.
- Suba - grita Gabriel -, suba, eu protejo você!
Sua voz é abafada pelos tiros de arcabuz. Dois.
Mas os únicos índios que as balas atingem estão a dez passos de Soto.
Restam centenas ao longo da encosta, tão numerosos que se derrubam e se
pisoteiam a si mesmos.
E é como se a pólvora desencadeasse a loucura deles.
A retaguarda da coluna progride passo a passo. Os úlƟmos cavalos não agüentam
mais. Hernando de Toro só sobe se arrastando no chão, agarrando-se às pedras e aos
galhos dos arbustos, enquanto Gabriel no flanco direito mantém os índios à distância,
aƟngindo braços e peitos. O sangue zune em as têmporas e perturba sua visão. Sua
espada começa a pesar tanto que suas tocadas encontram mais ar do que carnes. Um
cansaço inominável o vence, mo se ele também andasse de rastros. O fedor do medo
e do sangue o foca. Ele mal percebe que um índio dá um salto espetacular e cai de
pés tos em cima de Hernando de Toro.
O combate e rápido. Toro lança seu punhal num derradeiro esforço exatamente na
hora em que a maça em forma de estrela penetra em sua face e lhe quebra a
mandíbula. Hernando de Toro, os olhos arregalados, pôde ver o guerreiro índio
levantar sua arma e lhe lançar a morte na testa.
Sem pensar, Gabriel gira, curvado, para a frente. Sua lâmina chata irrompe no ar
cheia de sangue. A ponta do ferro corta a nuca do índio. Mas a pada, com a
violência do golpe, lhe escapa das mãos.
Estranhamente, ele perde o medo. O tempo parece andar mais devagar.
Seu esgotamento e seu cansaço de sangue são absolutos.
Ele se endireita lentamente, o punhal pendendo na ponta de seu braço. No meio
do tumulto, ele entrevê os olhares dos guerreiros do Império das Quatro Direções. Já
não são as caras resignadas daqueles que eles massacraram em Cajamarca, nem em
Hatun Sausa. São combatentes que encontraram o orgulho perdido.
Como vindo de muito longe, ele ouve os gritos de Soto chamando-o. Mas a pedra
de funda, vindo de cima, vai mais rápido que seu nome.
Ele ainda ouve o impacto surdo em seu capacete e mergulha finalmente no vazio.
***
Eles só param para ganhar fôlego. Pouco importa que os índios e os espanhóis
tenham marchado sem descanso para chegar a Rimac Tambo, pouco importa a noite
e o tempo que se deterioram, e a umidade pegajosa que atravessa as roupas,
grudando-as na pele.
Enquanto vai subindo, Anamaya é invadida pela lembrança da terrível cilada que,
exatamente ali, há alguns anos, custara a vida dos Poderosos Anciãos, valorosos
servos de Huayna Capac e víƟmas da loucura de Huascar. A medida que ela vê os
primeiros vesơgios do combate, as armas quebradas, os feridos gementes, cadáveres
com os membros abertos, parece-lhe que as atrocidades se repetem e se
correspondem.
Chegando à vala de chuços onde jazem os cadáveres de um cavalo e de dois
homens brancos, o rosto esmagado por maças de pedra, os gritos de raiva dos
estrangeiros fazemna temer que eles se virem contra ela. Mas Almagro já discursa
para seus homens ordenando que prossigam.
- Não podemos fazer mais nada por esses! Vamos subir até o topo, Soto deve estar
nos esperando lá em cima, e os desgraçados desses índios sem dúvida querem
recomeçar a luta.
Na montanha, próximo dali, ecoam os gritos de triunfo e os cantos abafados, o
rufar dos tambores e as trompas dos soldados vitoriosos de Guaypar. Anamaya sabe
que os incas não lutam à noite. No entanto, com um chefe como Guaypar, tudo é
possível. Quem sabe se, embriagado por esse primeiro sucesso, ele não sonhe com
um massacre final que desencorajaria os estrangeiros?
Atrás, ela ouve as reclamações esbaforidas dos soldados espanhóis que, puxando
seus cavalos, penam para avançar nas pedras da encosta.
Por vezes, ela fecha os olhos, conƟnuando a subida como se fosse conduzida
unicamente pela presença de Gabriel, lá em cima, pelo violento desejo de encontrá-
lo, de tocá-lo. De certificar-se que ele esteja vivo.
Quando aƟngem o topo, a algazarra dos guerreiros de Guaypar se acalma. Talvez
tenham se afastado, já adverƟdos da presença dos reforços espanhóis. Os cavalos
estão tão cansados que não levantam a cabeça na direção dos que chegam. Mas os
soldados de Soto acorrem ao encontro deles com gritos de alegria. Afastando-se dos
abraços, Anamaya mais sente do que vê sombras reunidas, coladas umas às outras,
na extremidade da plataforma, imóveis. Escuras na noite, parecem não ser desse
mundo nem do outro.
O que resta do grupo do capitão Soto não acendeu nenhuma fogueira para evitar
formar um alvo demasiado fácil na noite. Um cavalo jaz sobre o flanco, dois homens
esgotados deitados na terra lamacenta se levantam e tentam penosamente se pôr de
pé. Adiante, um gemido fraco rasga a noite. Almagro corre para junto do capitão:
- Soto!
Soto se vira. A boca cansada, cumprimenta apenas com um gesto. A parte
superior de sua cota de malha está rasgada, seus calções duros de sangue
testemunham a fúria do combate. Mas sobretudo a cólera e a dor formam uma
máscara gelada em seu rosto.
- Quantos dos nossos? - pergunta Almagro.
- Cinco, que eu saiba - suspira Soto. - Marquina, SoyƟna, Hernando de Toro, Ruiz
e Rodas. Mas o sexto não passará desta noite. Se é que já não se foi...
- Quem?
- Gabriel.
- Montelucar y Flores? - precisa Almagro com o esboço de um sorris . - O
protegido de Francisco?
Soto faz que sim com a cabeça, mas se assusta quando Anamaya lhe agarra o braço:
- Onde está ele?
- O que faz aqui? - pergunta Soto desvencilhando-se.
- Foi a escolta dela que nos avisou do ataque - diz Almagro.
- Por favor - insiste Anamaya. - Onde está ele?
Com o queixo, Soto aponta para o grupo de sombras que ela notou há pouco.
- Com os outros feridos, ali.
Ela corre. Para surpresa dos índios de sua escolta, a Coya Cama quen corre de
um estirão só até os corpos deitados e gementes que parecem querer se fundir na
noite.
Nenhum dos espanhóis que tratam dos feridos diz qualquer coisa quando ela os
afasta e se ajoelha diante de Gabriel. Uma manta o cobre até o pescoço. Outra está
enrolada embaixo de sua cabeça, envolta em Ɵras de camisa. Ele tem uma palidez
estranha, e a mancha de sangue do lado parece ainda mais opressiva e terrível com
isso. Seus lábios estão entreabertos, deixando passar uma respiração impercepơvel.
A febre agita suas pálpebras. Quando Anamaya toca em seu rosto, seus dedos se
molham num suor gelado.
Ela respira fundo, procurando calma dentro de si mesma, recusando-se a ceder ao
medo. No entanto, quando uma mão pousa delicadamente em seu ombro, ela se
sobressalta com um grito de medo.
- Deixe comigo...
Ela reconhece a voz doce antes de encontrar os olhos cinzentos de Bartolomé.
- Vou tratar dele - diz ainda o frade.
- O que vai fazer? - pergunta ela em voz baixa.
- Meu dever: ajudá-lo a passar para o outro mundo como cristão... Anamaya olha
para ele balançando a cabeça. Levanta as mãos e o empurra:
- Se é para isso, vá tratar de outra coisa e deixe-me com ele.
Há uma secura em sua voz, mas uma firmeza que fecha a boca de Bartolomé. Ele
a vê inclinando-se sobre o rosto de Gabriel, debruçando-se sobre ele e murmurando
em seu ouvido. Ouve um murmúrio estranho onde se misturam o quíchua e o
castelhano. Depois ela leva as mãos ao peito do ferido, por baixo da manta. Lenta e
regularmente, massageia o tórax de Gabriel, no lugar do coração. Sem levantar a
cabeça, pede em espanhol:
- Acendam uma fogueira de cada lado dele e tragam outra manta.
Ela não se preocupa em ser ouvida ou obedecida. Repete sua ordem em quíchua e
os soldados de sua escolta que se mantêm afastados olham com uma expressão tão
incrédula quanto os espanhóis.
- Façam o que ela diz - ordena Bartolomé.
Pouco depois, quando as primeiras labaredas oscilam entre as ramagens, Soto
acorre gritando:
- Vocês estão doidos? Eu disse: nada de fogo.
Anamaya, que despiu o torso de Gabriel e o esfrega com a lama fina, responde-
lhe sem interromper seu movimento:
- A batalha acabou, senhor Soto. Vocês não serão mais atacados, nem hoje nem
amanhã. Não viram que os tambores de guerra se calaram?
E sem esperar resposta, dá mais umas ordens em quíchua antes de se deitar em
cima de Gabriel como se o abraçasse para um corpo a corpo de amor. Correndo, os
índios trazem mantas com as quais os cobrem até faze-los desaparecer.
A estupefação de Soto vence sua ira. Bartolomé levanta aquela mão de dedos
estranhos e diz:
- Ela tem razão, capitão Soto. Vamos deixar isso com ela, por favor...
Logo dois grandes braseiros ardem ao lado deles inundando de luz a plataforma,
tirando do escuro as caras espantadas e esgotadas.
Embaixo das cobertas, Anamaya não pára de acariciar o corpo inerte de Gabriel.
Ela sopra em sua carne nua como se quisesse aƟçar as brasas da vida. Tira do cinto
sua bolsa de coca, masca as folhas avidamente e deixa o sumo escorrer entre os
lábios ardentes de seu amante. E conƟnua massageando seu peito, obrigando seu
coração a bater. Finalmente, depois que os barulhos do acampamento estão calmos
há algum tempo, ela ouve um estertor fraco na garganta de Gabriel. Logo depois, ele
tem a barriga sacudida por espasmos.
De novo, ela o faz engolir um pouco de sumo de coca. A respiração dele fica
mais pesada, mais rouca e mais funda. Seu coração bate nos ossos do peito.
Anamaya pousa ali os lábios, depois as faces quentes. Uma alegria ơmida e terrível
surge dentro dela, como se a vida renascesse por inteiro nela como nele.
Capítulo 15
Vilcaconga, 10 de novembro de 1533
***
***
***
Só com o ímpeto de sua fúria, frei Vicente Valverde correu para o meio
esplanada. Dá uma parada diante do pano antes de pisoteá-lo, depois enrolá-lo como
uma bola e aƟrá-lo longe.
- Paganismo! - cospe entre dentes. - Espírito de idolatria...
Os dois jovens estão imóveis. Viram-se para Anamaya. Manco, arregalando os
olhos de surpresa, Katari, quase fechando os seus, puxados como olhos de gato.
Antes de ter Ɵdo tempo de responder, Anamaya vê Gabriel chegar com
Bartolomé, o jovem frade dos dedos colados.
- Frei Vicente - diz Bartolomé com um tom apaziguador. - Adivinhações,
sacrifícios...
- Não ouço nenhum grito de crianças sendo degoladas - diz Bartolomé com uma
ironia impercepơvel. - Frei Vicente, acalme-se, por favor. Anamaya sente a
autoridade na voz doce do homem, mas está ainda sob o impacto da irrupção do
dominicano e da chegada de Gabriel.
- Foi dado o alerta há pouco - diz Gabriel com uma voz impassível.
- Vocês tinham desaparecido... O Governador mandou procurá-los. - Estávamos...
Anamaya se interrompe. Outra história que não pode explicar a ele - ainda. Os
Apus, as folhas de coca, a pedra que pára o tempo... O silêncio instala-se entre eles
e a confusão do rapaz a perturba. Um dia, em breve...
Bartolomé aproximou-se de Katari. O contraste entre o monge de olhos cinzentos
e o jovem sábio de cabelos longos não poderia ser mais impressionante. No entanto,
uma mesma serenidade, uma mesma luz emana de suas figuras tão contrastantes.
- Vamos aprender a conhecer os costumes de vocês - diz Bartolomé com uma voz
suave. - E orientá-los no conhecimento de seus Todo poderoso, pelo amor e não pela
espada...
Katari ouve essas palavras sem compreender, mas sorri. Bartolomé vira-se para
Valverde.
- Frei Vicente, compreendo seu zelo e acredite que estou tão empenhado quanto o
senhor no progresso da verdadeira fé, mas...
- ... mas tem um interesse exagerado pelo que chama de costumes deles!
- Conhecer melhor, para orientar melhor, meu irmão.
Valverde se cala, talvez incomodado de repente com o acesso de violência que
tomou conta dele. Apesar dos gritos que ecoam na noite, apesar dos soldados que se
aproximam, volta a calma.
Gabriel aproxima-se de Manco, o coração agitado.
- Por sua própria segurança, não é prudente se afastarem assim...
Embora ele tenha falado em quíchua, Manco não lhe responde diretamente. Vira-
se para Anamaya:
- Diga a ele que os Apus que velam sobre mim bastam para minha segurança e
que não preciso dos soldados estrangeiros.
- Eu achava - atalha Gabriel - que vocês precisavam de nós para expulsar
Quizquiz e Guaypar. Não foi o que disse ao nosso Governador? - Diga a ele que as
noites são nossas.
Anamaya sente as palavras dos dois homens colocando-os em confronto,
insƟnƟva e violentamente. São como dois felinos se desafiando, ambos jovens e
fortes, tão seguros da vitória e tão cheios de fúria.
- Estamos voltando, Gabriel. Por favor, diga ao Governador que não queríamos
criar esse problema. Que todos terminem sua noite tranqüilamente. Gabriel olha para
ela - um olhar cheio de uma súplica muda que a aflige. Depois, leva. para a cidade
Valverde, Bartolomé e os soldados que ficaram atrás.
Ela fica só com Katari e Manco, no silêncio que torna a se instalar. Mas não
encontra paz - a maravilhosa paz que desceu quando ela senƟu o alinhamento dos
picos, quando a pedra subiu da mão de Katari. E Manco quem quebra o silêncio. -
Quem é? - pergunta. E ela não chega a lhe responder.
Capítulo 18
Jaquijaguana, 14 de novembro de 1533
***
TERCEIRA PARTE
Capítulo 19
Cuzco, 15 de novembro de 1533
***
***
A rua por onde eles entram na cidade acompanha um rio cuja água límpida desce
entre os muros de alvenaria perfeita. Embora as vias sejam largas, eles só podem
avançar aos pares, através de uma mulƟdão que ruge como mil tambores rufando ao
longo dos palácios de pedra.
Quando vêem a liteira do Inca, os índios erguem as mãos para o céu em sinal de
veneração e oferenda.
Pouco a pouco, o medo deixa Gabriel, assim como sua tristeza por estar separado
de Anamaya, seu senƟmento do desconhecido. Talvez ele não sinta a embriaguez
que toma conta do impávido Pizarro, mas é levado por esse fervor, essa fé que se
dirige ao novo Inca e ao mesmo tempo aos que o ladeiam e o protegem. Agora são
centenas ao redor deles, comprimindo-se e evitando cuidadosamente tocá-los. Nem
uma palavra, somente murmúrios, e o barulho dos passos.
- Está sonhando, amigo?
Bartolomé surgiu sabe-se lá de onde e caminha ao lado de seu cavalo. Pousa a
mão com os dedos deformados em sua coxa, ergue os olhos sorridentes para ele e
acrescenta:
- Parece que você foi longe. Aquela sua masmorra de Sevilha ficou bem para trás...
- Está enganado! Aqui ela está sempre muito perto.
Como todas as vezes que fala com ele, Gabriel sente uma mistura curiosa de
impressões diante de Bartolomé. Uma forte inƟmidade os aproxima e ao mesmo
tempo os separa; um movimento quase irresisơvel o impeliria a lhe confiar todos os
tormentos de sua alma e uma voz secreta manda que ele tome cuidado.
Eles vão dar na vasta praça cujo chão, em vez de ser de pedra como as ruas, é de
uma areia fina que range sob os cascos dos cavalos. No centro da raça, há uma
elegante fonte em forma de pedra redonda, de onde saem riachos que descem até o
rio que corta a praça em dois.
De um lado do rio - o que eles acabam de atravessar -, não há quase construção
alguma, somente um muro que está começando a ser construído. as, do outro, abrem-
se as fachadas de palácios como eles não viram igual no império. Um deles parece
ser feito de um mármore de veios vermelhos, brancos e verdes; uma torre maciça e
redonda encimada por um teto cônico esconde uma parte de seu largo portal
revesƟdo de chapas de prata e outros metais preciosos...
Sob a espetacular verga, sentado num trono extraordinariamente cinzelado, um
Senhor velhíssimo observa imóvel a chegada dos espanhóis. Sua aƟtude é de uma
nobreza e uma impassibilidade que os inƟmida. Dez mulheres, todas vesƟdas de
branco, azafamam-se suavemente ao redor dele, num balé cuja graça e comovente.
Duas delas o abanam com plumas resplandecentes, duas outras alimentam um
braseiro que arde a seus pés.
A cena transmite uma impressão de uma força inaudita e a passagem dos
capacetes de aço e dos cavalos é um detalhe que em nada afeta a ordem do
universo.
O povo vai chegando calado à praça, colocando-se nas laterais. - Meu Deus!
Gabriel ouviu a exclamação escapar dos lábios de Bartolomé e volta-se para ele.
- O que há?
- Não está vendo? - pergunta Bartolomé dirigindo a mão para o trono onde está
sentado o velho.
O suor escorre da testa de Gabriel para seu rosto, turvando-lhe a vista.
A cena toda lhe chega através de +ima névoa. Ele não vê nada além de um
senhor absolutamente imóvel, cercado de servos dedicados. - Ele está morto - diz
Bartolomé.
- Morto?
- É uma múmia.
Capítulo 20
Cuzco, 15 de novembro de 1533
***
- Eu me espanto com o sol cada vez que ele se levanta - diz o Anão -, mas não
estou morto.
Anamaya não pára de sorrir.
- Você me fez falta, meu amigo.
- E você, princesa, e você! Lembra-se do dia em que o abominável sacerdote me
abandonou na montanha?
- E você gemia "Princesa! Princesa!", com uma voz triste.
- Eu podia morrer, era indiferente para você.
- Não diga bobagens! - diverte-se Anamaya. - Pensei em você mil vezes desde
então...
Ela observa o aposento onde eles se refugiaram. Pobre por fora, na verdade é
confortávelmente montado, com suas esteiras e seus cobertores de plumas ou de lã.
Nas paredes, há nichos onde se alinham delicadas estatuetas, em pedra, de animais -
pumas, condores, serpentes.
- Você não está mal instalado, para um miserável...
- Guardião de puma é uma ocupação que nenhum inca saudável quer!
O Anão está vesƟdo com um de seus longos hábitos vermelhos que vão até os
pés e cujas franjas varrem o chão. Ele não chega a ficar parado e não pára de fazer
estranhos passos de dança ao redor de Anamaya.
- Como você chegou a ocupar esse alto posto?
- Não lhe disseram nada?
- Que você estava vivo...
- Vivo, é modo de falar... Quando entramos na cidade com o Corpo Seco de meu
senhor Huayna Capac, para vencer o medo, pus-me à frente do cortejo para gritar e
dançar: "Eis me aqui, sou Chimbu, o filho do Grande Huayna Capac! Para trás, para
trás!" Mas não adiantou nada: os Poderosos do local agarraram-me para fazer
picadinho de mim. "Aborto! Gnomo!", gritavam eles, "como o Sol pode nos Ɵrar o
nosso Senhor e nosso Pai que Ɵnha tanto amor por nós e nos fazia tanto bem, para
nos dar em seu lugar um ser tão vil como você..." E eles me insultavam, me cuspiam
e me baƟam até não poder mais, por mais que eu chorasse e suplicasse. Felizmente
para mim, as pessoas do cortejo vieram me defender e conseguiram que eu fosse
posto com os outros prisioneiros...
Ao se lembrar disso, o rosto do Anão se entristece.
- Conhece a prisão de Sanca Cancha?
- Não.
- É uma visão saída direto do pesadelo do Mundo de Baixo. Aliás, é um
subterrâneo cheio de labirintos, crivado de portas e cantos. Suas paredes são
revesƟdas de pedras pontiagudas e sobretudo...
- Sobretudo?
- Não há guardas nessa prisão, só Ɵgres, leões, ursos, cobras e serpentes de todo
Ɵpo... Eles nos deixaram ali três dias. Três dias de uivos e terror, três dias de
pranto, três dias tão perto da morte como se já estivéssemos mortos... Mas
sobrevivemos.
- E eles libertaram vocês.
O Anão faz que sim com a cabeça.
- De todos esses costumes espantosos, esse é o único do qual posso me alegrar. Já
morri muitas vezes na vida, mas essa vida é mais cara para mim do que todas as
outras...
Durante todo o relato do Anão, Anamaya permaneceu imóvel, fascinada,
compartilhando sua terrível viagem. Ela murmura: - E depois?
- Segui os passos dos dois irmãos Manco e Paullu, e prestei serviços a eles, só isso.
- Serviços?
- É - diz o Anão com uma vaidade cômica -, serviços. Escondi Manco aqui
mesmo, antes
que ele pudesse deixar a cidade. E ainda arrisquei minha vida miserável para levar
mensagens a Paullu quando ele estava preso...
- Paullu preso!
- Não por seus feitos militares, garanto-lhe. Foi só porque se engraçou com uma
das favoritas de Huascar... Quando a gente do Norte chegou, ele habilmente disse
que Ɵnha sido perseguido por causa de sua simpaƟa por eles. Eles o libertaram
desconfiados, mas ele teve a prudência de não esperar que mudassem de opinião e
foi se deixar esquecer algum tempo para o lado do lago Titicaca...
Anamaya fica pensaƟva. Ela se lembra dos dois rapazes que ajudou no
huarachiku. Hoje, um deles é o Sapa Inca, ao passo que o outro está fugindo.
- Manco falou-me de você com afeição. Foi ele que me disse como se chegava à
sua casa.
- Ele me dá medo, também. E quem sabe no que ele vai se transformar agora que é
o Único Senhor?
- Não se preocupe, meu amigo. Esqueceu que devemos velar um pelo outro?
- Caso eu esquecesse, princesa, uma personagem importante encarregou-se de me
lembrar isso sempre com o olhar...
- Quem?
O Anão acaba de se plantar na frente de Anamaya e ergue os olhos redondos para
ela.
- Não me diga que não sabe, princesa.
***
Gabriel vê o homem de boca verde chegar tão perto do Governador que quase
encosta nele:
- Eu me chamo Villa Oma, sou o sumo sacerdote deste Coricancha, o Templo do
Sol criado por nosso ancestral Manco Capac. Aqui, não se admite nenhum
estrangeiro...
Gabriel traduz. Pizarro replica, com um gesto tranqüilizador:
- Diga a ele que viemos dar proteção a ele e à gente dele, contra os crimes da
gente do Norte...
- E diga também - acrescenta Gonzalo - que viemos fazê-los conhecer o verdadeiro
Deus e acabar com essas práticas pagãs!
- Isso, meu amigo, você vai deixar com os homens de Deus - intervém Bartolomé.
Gabriel não consegue conter um sorriso enquanto traduz para o sacerdote as
palavras do Governador.
O sacerdote não se acalma nem um pouco e com seu longo corpo magro, os
braços abertos como um Cristo índio, continua barrando-lhes o caminho.
- Como ousam entrar aqui, quando quem quer fazer isso tem primeiro que jejuar
um ano inteiro e entrar no templo com uma carga nos ombros e descalço?
Gonzalo desata a rir.
- Diga ao emplumado que jejuamos muito mais que isso e nossos ombros estão
pesados, pesadíssimos... Quanto a nossos sapatos...
Enquanto o grupo de espanhóis começa a rir, Gonzalo Ɵra uma de suas botas e a
sacode diante do sacerdote.
- Veja, frei Bartolomé, temos o maior respeito pelos costumes desses...
Um seixo cai de sua bota e ele torna a calçá-la com caretas que arrancam mais
risadas da platéia.
- ... bárbaros. E se deixarmos as coisas de Deus aos homens de Deus, das coisas
dos homens, trataremos... como homens.
Com um safanão, ele afasta o sacerdote e entra no templo.
O grupinho de espanhóis o segue até o meio do claustro. Sentem-se reflexos
através das aberturas dos prédios distribuídos em volta. Um friso de chapas de ouro
corre no alto em volta do pátio, formando uma coroa de ouro.
Nas paredes propriamente ditas, há quatro nichos que parecem tabernáculos,
entalhados com molduras extremamente requintadas e revesƟdos de ouro por dentro.
Nos cantos, há pedras preciosas engastadas, esmeraldas e turquesas. O Governador
vira-se para Villa Orna:
- Ouvimos o rumor das ameaças que pesam sobre seus palácios e seus templos, e
nós mesmos fomos testemunhas, em outras cidades, das desƟtuições de que seus
inimigos são capazes. Estamos aqui com um espírito de paz.
O sacerdote Villa Orna franze os olhos com severidade.
Olha para eles em silêncio, depois suas palavras ecoam no claustro: - Não
acredito em você.
Pizarro não pestaneja enquanto Gabriel traduz as palavras do sacerdote. Sorri.
- Assegure-o que conquistaremos a confiança dele. Enquanto isso, e para garanƟr
a proteção dele e a dos bens deste Templo, amos fazer um reconhecimento do local.
Dom Diego?
O olho solitário de Almagro brilha com todas as riquezas que se escondem ali
dentro.
- Conto com a sua autoridade para dividir comigo o cuidado de fazer com que
nenhuma placa de ouro deste Templo escape do quinto real.
Almagro responde com um muxoxo. O grupinho dos espanhóis dirige-se à porta
do
prédio situado defronte, enquanto o sacerdote Villa Oma, que ficou atrás deles,
esƟca o braço e diz:
- O Poderoso Sol, mostre a todos, por um sinal tangível, a sua força!
De cada lado do sol, sentadas em seus tronos com uma dignidade de seres vivos,
estão as múmias, parecidas com a que eles viram há pouco na praça. Estão vesƟdas
com uma túnica de lã fina com lantejoulas de ouro e pedras preciosas incrustadas.
Têm na testa a franja real e as plumas de cor. Os discos de ouro pendem de suas
orelhas. Numa delas, falta apenas a ponta do nariz - uma esquisiƟce que provoca
mais um ataque de riso nos jovens irmãos Pizarro.
De sala em sala, eles dão a volta no páƟo, descobrindo uma sala de prata
consagrada à lua onde Moguer se contém para não invocar Vênus, depois um prédio
cujas paredes são revesƟdas com as placas de ouro habituais, mas também com um
arco-íris cujas cores correm de uma parede à outra.
Eles começaram a visita com uma espécie de alvoroço, como um bando de
rapazes que Ɵvessem ido beber e encontrar mulheres. Em cada prédio, desce o
silêncio, um pouco mais pesado.
Quando terminam a visita das seis salas e voltam ao páƟo, o sumo sacerdote e
seus acólitos sumiram. Moguer se cala, o olho de Almagro está estranhamente
pensaƟvo e os jovens irmãos do Governador estão provisoriamente calmos.
Por uma passagem aberta a leste, eles vêem que o terreno do Templo é muito
maior do que haviam imaginado. Os ediİcios e os quartos se sucedem, abrigando
servos que escondem o rosto ao vê-los aparecer, contendo provisões suficientes para
agüentar semanas de sítio.
Gabriel sente um peso no coração ao ver essas belezas e ao senƟr os hares
ávidos dos companheiros...
- Quando estivemos aqui - diz Moguer -, havia uma história...
- Qual? - pergunta Pizarro, impaciente.
Mas Moguer não lhe responde. E nenhum deles pensa em lhe perguntar que história.
Sem se dar conta, eles acabam de entrar no jardim de ouro.
***
***
***
***
Na grande praça, dom Francisco Pizarro deu suas ordens. Para ele, o ócio ao
norte, ao longo do rio, e cujo aposento principal é tão vasto que poderia receber
facilmente 60 cavaleiros para jogar "a cañas"; para seus irmãos Gonzalo e Juan, o
palácio vizinho. Do outro lado da praça, um palácio os muros são ornados de
serpentes de pedra receberá Soto.
- Armaremos as tendas - diz o Governador.
Gabriel olha para ele, confuso, apontando para os prédios.
- Quero que continuemos todos em guarda e não quero desordem.
Não quero ninguém nas casas sem minha ordem. Quero paz com o jovem. - O
jovem?
- Manco. O Inca. Quero a confiança dele para nossa tranqüilidade. Almagro, Soto,
meus irmãos... eles terão tudo que querem. Mas nenhum deles compreende que
estamos aqui para ficar e agora é o momento mais perigoso para nós. Se relaxarmos,
se eu os deixar começar a pilhar, estamos mortos. Amanhã estarei com o rapaz.
Montarei com ele uma expedição contra o exército do Norte.
Os olhos de Pizarro brilham e Gabriel sente em si esse misto de calma e excitação
que é sua marca nos momentos diİceis. Ele dá suas ordens aos capitães, e Gabriel
logo vê a pequena floresta de tendas se erguer na praça.
- E depois? - pergunta.
Pizarro olha para ele com um sorriso irônico.
- Não me faça perguntas cujas respostas você não gostaria de ouvir. Gabriel vai se
afastar, mas Pizarro o retém pousando sua mão fina e seca
em seu ombro.
- Preciso falar com você sobre uma coisa - diz.
***
***
- Qual deles você quer? - pergunta Pizarro a Gabriel, mostrando um palácio cujos
muros sólidos se alinham na rua.
- Nenhum. Quero minha tenda.
Pizarro ri com doçura.
- Você sempre vai me surpreender, filho. Deus o expulsou da Espanha e você não
veio cá pelo ouro...
- Eu achava que queria a mesma coisa que o senhor, dom Francisco... - Só Deus e
a Virgem Santíssima sabem o que eu quero. Eu mesmo às vezes me pergunto...
O barulho das botas deles ecoa no calçamento do chão. Ouve-se um choro de
criança na noite, e a doçura do fio d'água a separá-los. - Queria me perguntar alguma
coisa, dom Francisco? - Alguma coisa?
O Governador parece sair de um devaneio.
- Ah, sim, filho, alguma coisa... Alguma coisa importante... Gabriel prende a
respiração.
- Não é nenhum mistério que você dormiu com essa moça, essa moça de olhos
azuis. Não o estou censurando, veja bem, mesmo um velho como eu tem o sangue
aquecido por essas nativas.
Gabriel está com o coração aos pulos e sente a boca seca de repente. Pizarro
finge não notar sua perturbação.
- Por uma razão que desconheço, o jovem parece gostar muito dela. O que ele
quer com ela, não sei... que seja uma de suas mulheres, ou sua concubina real, ou a
nova sacerdoƟsa do culto dele... não gosto dessas feiƟçarias, você me conhece,
mas, como diz o Eclesiastes, há um tempo para tudo. Em resumo...
Pizarro se interrompe, olha rapidamente para Gabriel, que não consegue controlar
seus tremores.
- Em resumo, meu filho, parece-me que, de todas as mulheres, você não escolheu a
certa.
- É a que eu amo, dom Francisco.
As palavras escaparam da boca de Gabriel, e ele se arrepende imediata
mente de as ter dito. "Amar"... o que isso pode significar para o Governador? -
Você já amou para empregar essa palavra tão levianamente?
- Eu nunca Ɵnha amado, dom Francisco, e é por isso que agora compreendo seu
sentido...
- Então esse é um assunto sério...
Não há nenhuma ironia na voz do Governador, antes uma espécie de tristeza
inesperada.
- E, no entanto, é preciso terminar, Gabriel... Ou, em todo caso, ser tão prudente
que eu não tenha nenhuma preocupação com o rapaz. Está me intendendo?
Gabriel não responde. Sente a mão de Pizarro segurar-lhe o braço e apertá-lo a
ponto de machucá-lo.
- Está me entendendo, filho? - Estou tentando.
- Tente direito. E para fazê-lo esquecer essa preocupação... Gabriel riu.
- O senhor me arranjou uma outra mulher? - Bem melhor que isso, filho! Uma
missão. Qual?
- Encontre essa estátua, esse Irmão Duplo a que eles dão tanta importância. Eu
gostaria de vê-lo.
Gabriel espera que o Governador não tenha reparado na palidez súbita seu rosto.
***
A tocha ilumina o rosto de Manco.
Ele se aproxima de Anamaya e olha para ela em silêncio.
Anamaya custa a recobrar o fôlego, transtornada com uma raiva que ela tenta a
repelir.
- Seu pai me falava - diz ela simplesmente. - Sinto muito.
Há tanta sinceridade e simplicidade nessa frase que Anamaya se deixa amolecer.
- Ele estava silencioso há essas luas todas... desde a noite da Grande batalha.
Havia uma solidão em mim...
- Você o encontrou de novo.
- Ele nunca me deixou. Eu é que tenho de protege-to. As vezes tenho a impressão
de que ele só fala comigo para me lembrar do que já me disse, o se eu ainda fosse
uma menina a quem educam, no acllahuasi.
- Ele lhe fala de mim?
A voz de Manco é de uma ingenuidade comovente. Ele também é uma criança,
pedindo para ser tranqüilizado.
- Eu já lhe disse, ele escolheu você há muito tempo como o primeiro nó dos
tempos futuros. Nada do que está acontecendo agora é novo: tudo está na ordem do
universo tal como seu pai me transmiƟu. Você não deve ter medo. Deve prosseguir
com determinação, deixando-se guiar pela força do Sol, como no dia do huarachiku.
- Não posso deixar de ter medo.
- O seu medo não é nada. Não existe. Seu pai não me falou de seu medo, e eu não
falei nada sobre ele com os Poderosos quando eles escolheram você. Seu pai Ɵnha
medo? E Tupac Inca Yupanqui antes dele, e Pachacútec? Talvez...
- E Manco Capac?
O nome do fundador da dinasƟa inca deixa Anamaya silenciosa. Eh sabe a que
ponto Manco é inspirado por ele.
- Venha - diz ele.
Ela apresenta as mãos abertas ao Irmão Duplo antes de deixá-lo.
- Preciso voltar com a chicha, o milho, a coca...
- O Anão o alimentou e lhe deu de beber regularmente. Mas você tem razão, ele
precisa de você.
Eles deixam rapidamente a passagem. Manco faz o muro girar com facilidade
simplesmente pousando as mãos sobre ele. Os dois se encontram outra vez numa
noite talvez ainda mais escura do que o breu de onde acabam de sair.
Na esplanada de Colcampata, Manco segua Anamaya pelo braço. Leva até a beira
do parapeito de pedras que domina a cidade e o vale. A noite quase negra é por
vezes rasgada pela luz da lua e das estrelas para deixar que se adivinhem os
poderosos cumes, os Apus.
- Manco Capac, meu ancestral, chegou com Mama Occlo por essa montanha, o
Huanacauri. Eles haviam percorrido um longo caminho desde as origens, as águas do
TiƟcaca, de cujas profundezas o deus Viracocha fez surgir tudo. Ele viu esse vale;
rico, profundo, fértil...
Manco se interrompe, vira-se para Anamaya. .
- Você tem razão, talvez ele Ɵvesse medo, mas isso não importa muito. Havia
muitas razões para se viver no medo: o cansaço da viagem, a certeza de seu desƟno
que ele era o único a ver, a própria dúvida, esse inimigo terrível que corrói o nosso
interior e nos deixa esgotados antes de ter lutado. A lenda não diz quais desses
medos Manco Capac teve certamente que superar para se apoderar de seu facão de
ouro, sua tacha, e fender essa terra pela primeira vez. A lenda não fala, mas alguma
coisa, no entanto...
De quando em quando, as nuvens negras se rasgam e deixam aparecer o esplendor
de um trecho do grande rio estrelado. E, num piscar de lhos, as luzes do céu se
harmonizam com as da terra e o mundo é perfeito. Depois, o vento muda, úmido, e a
noite torna a se fechar, fria, hostil, inquietante.
- A história diz que ele estava com Mama Occlo. A história diz que ele mandou
seu império com a ajuda de uma mulher...
De repente, finalmente, o senƟdo das palavras de Manco aƟnge Anamaya. Ela se
censura pela fraqueza de sua compreensão. - Acompanhei você tanto quanto eu
podia, Manco, e continuarei acompanhando, você bem sabe.
- Não falo disso.
- Você quer mais uma esposa? Não é possível: eu não tenho sangue al. Quer mais
uma concubina em sua cama? Já há dezenas aí, e posso lhe garanƟr que minha arte
nesse assunto é bastante pobre...
- Sei disso, Anamaya, você já me disse e não quero lhe menƟr com as palavras.
No entanto, parece-me que você não falaria desse modo se...
- Se?
Há desafio na voz de Anamaya. Manco aceita-o com uma entonação baixa, sibilante.
- ... se seu coração já não tivesse sido tomado por outro homem.
O silêncio da noite se apodera deles. Anamaya respira devagar, esforçam-se para
expulsar o medo que a invadiu ao ouvir a violência conƟda nas auras daquele que
foi um rapaz que ela protegeu, mas que é também o Único Senhor.
- É verdade - diz afinal -, eu amo um deles.
- Um estrangeiro?
- É.
A mão de Manco há muito tempo já soltou seu braço. No entanto, ela te sua
respiração pesar como se essa mão esƟvesse em seu próprio ar. O perfil ave de
rapina do rapaz se destaca na noite, pronto para saltar, a arranhar as garras...
- A vinda dele me foi anunciada há muito tempo por seu pai...
- Ah!
O muxoxo de raiva escapou da garganta de Manco e sua mão veio bater
violentamente no parapeito.
- Manco!
A indignação faz vibrar a voz de Anamaya.
- Você sabe que sou incapaz de menƟr. Acha que poderei ter a audácia ímpia de
invocar o nome de seu pai Huayna Capac para esconder não sei que amores
vergonhosos?
- Não. Só que...
A raiva de Manco passou rápido como uma tempestade. Ficou apenas uma
tristeza infinita e tocante.
- Seu Pai disse que eu aguardasse a vinda do puma. E esse homem é o puma. - É
um estrangeiro. Um estrangeiro não pode ser o puma. - Isso é tão estranho para mim
quanto para você, Manco. Mas é assim.
Em meu coração, tentei tudo para achar que não fosse. E cada vez que eu me
afastava, a voz de seu pai ecoava ordenando que eu confiasse no puma. Manco não
responde.
- Ele é generoso, Manco, bom... Você viu, ele já fala nossa língua, não é como os
outros, não gosta de ouro... E, depois, eu sei, fui testemunha, ele quer sinceramente
nos ajudar...
Manco deixa o silêncio absorver na umidade a lista das qualidades de Gabriel.
Anamaya sente-se um pouco idiota e se cala. - E agora? - pergunta Manco.
- Agora?
- Sim, agora que a aliança do Inca é indigna de você, e que você prefere um puma
surgido sabe-se lá de onde...
- Sua raiva não é melhor que seu medo, Manco. Talvez seja pior...
- Falo muitas vezes com ela, sabe, como com uma inimiga conhecida, e peço que
me deixe em paz. Como criança, achei que ao me tornar o Sapa Inca ficaria curado
disso... Agora sei que não é assim.
Sua risada sem alegria ecoa na noite.
- Você não pode pertencer a ele - diz.
- Eu sei.
- Você é a esposa do Irmão Duplo, a Coya Cama quen, e não pode ser mulher de
mais ninguém, puma, condor, estrangeiro ou inca...
- Eu sei, Manco. Não escolhi o meu destino, mas o aceito.
Sem que ela quisesse, sua voz fraquejou nas úlƟmas palavras. O rosto de sua
mãe, aquele rosto espantado que não diz mais nenhuma daquelas palavras de infinita
ternura que lhe aqueciam o coração, aquele rosto se debruçou fugazmente sobre ela
e a fez tremer com todo o seu sofrimento antigo. Ela se controla com altivez.
- Eu estava ao lado de seu pai e nunca faltei a Atahualpa. Salvei você da
serpente e, por
minha voz, você vai se tornar o Inca... Precisa de novas provas e minha fidelidade?
- Confio em você, Anamaya - diz Manco, apaziguador. - Não duvido de você e sei
o caminho que percorreu. Sou grato a você por isso, e todos são comigo. Além do
mais, continuamos precisando de você nos tempos que se anunciam...
- O que é deve ser.
- O que é deve ser.
A voz de Manco fez coro com a de Anamaya e a ordem voltou ao universo. Mas
ele estende a mão para pousá-la novamente em seu braço, como tantas vezes, e
interrompe o gesto. Dá um nome à sua dor: o que é deve r, mas o que não é não
deve ser, não será - isso é bastante cruel.
Capítulo 22
Cuzco, fim de novembro de 1533
***
O Anão esperou uma noite escura envolver a cidade para ousar sair na rua.
Quando ouve o bater dos cascos de um cavalo, esconde-se no vão de uma porta ou
simplesmente encosta-se num muro. Não acompanha o Huatanay que o levaria
diretamente à Aucaypata. Pega as ruelas desertas parando freqüentemente para virar-
se e escutar.
Ao chegar à praça, fica um bom tempo paralisado no escuro, diante da aldeia de
tendas que conƟnua abrigando os soldados espanhóis. Por que disse sim a
Anamaya, por que arriscar a vida de novo? Ele suspira e se adianta um pouco. Ela
lhe indicou a tenda como a mais perto da Amaru Cancha. "Ele a quíchua", precisou
ela, "e lhe contei sobre nossa amizade. Quando ele o ir, saberá logo que você e meu
enviado."
Os soldados com quem ele cruza quase não reparam nele, ou, quando o vêem, se
cutucam ou dão uma gargalhada. A medida que se aproxima da tenda, sente as
pernas lhe faltarem. No momento em que vai transpor a corƟna da entrada, uma voz
bem próxima ecoa em seus ouvidos e ele rola para entro da tenda.
Reina ali um estranho ambiente. O espetáculo dos homens seminus, o corpo
coberto de pêlos negros ou ruivos, é também assustador. Ele vê armas que são mais
altas que ele e as carcaças de metal que as tornam invulneráveis. Incapaz de
pronunciar uma palavra - que de toda maneira eles não compreenderiam - olha de um
para outro, procurando colocar a maior distância entre eles e esperando o milagre de
que aquele a quem procura se mostre.
Mas, gritando e gesƟculando, os estrangeiros aproximam-se dele, e ele recua
agitando os braços. Quando quer sair da tenda, embaraça-se na lona e cai no chão.
As risadas recomeçam mais ruidosas, e ele pensa, achando alguma graça, que dessa
vez nenhum grande Huayna Capac estará lá para protege-lo.
- O que faz aí?
O estrangeiro que entrou na tenda chutou-o sem querer. Tem os cabelos claros e o
olhar igualmente claro, e menos aspecto de animal selvagem que os outros...
Levanta-o sem delicadeza especial.
- O seu nome é Gabriel?
Gabriel olha para ele, perplexo, depois seus olhos se iluminam. Murmura alguma
coisa para os outros que estão rindo.
Segue-o por entre as tendas sem dizer mais nada, até La Cassava. Quando estão
na ruela que leva a Colcampata, segura o nativo pela gola e lhe diz no, ouvido:
- Vai finalmente me dizer aonde me leva?
- Não, não posso... Basta me seguir.
Gabriel o empurra à frente com um movimento de irritação, mas acompanha-o
sem sentir as sombras que os seguem.
***
Na umidade do nevoeiro que brinca com seus vultos, Anamaya às vezes custa a
ver as duas sombras tão díspares que a precedem - a de Villa Oma e a de Katari. O
nevoeiro alonga desmedidamente o corpo seco do sábio, enquanto parece achatar a
massa já compacta do jovem kolla.
Ninguém dá uma palavra.
Eles estão relaƟvamente perto de Cuzco, mas o tempo está tão mau que bem
poderiam estar perdidos na montanha, no coração da cordilheira mais selvagem. É o
sábio quem os guia por um caminho estreito, ladeado por muretas, para o templo
onde Manco se reƟrou há três dias para fazer seu jejum ritual antes de receber a
mascaipacha.
Quando se viram, eles vêem as casas, a cidade e todo o vale como que engolidos
pelo nevoeiro. No entanto, jogos de luz atravessam o céu enviando ao encontro deles
sombras de penedos, animais e guerreiros cujos gritos indisƟntos às vezes são
trazidos pelo vento que sobe em rajadas.
O que quer Viracocha?
Finalmente, a massa do templo se desenha diante deles, com sua vasta esplanada
e seus blocos regulares, cuja perfeição lembra a de Coricancha. É cercado de
terraços de milho cuja largura corresponde exatamente à altura dos muros.
Quando Villa Orna se apresenta aos guardas que vigiam a única entrada aberta no
muro, Anamaya se vira e se deixa impressionar pela harmonia do
local. Majestosa e quase desaparecendo, a imagem do mundo deles jamais esteve
tão próxima da do Outro Mundo...
O nevoeiro pesa também no páƟo do templo. Parece vir do chão, salpicado de
lantejoulas de prata leves como penas de beija-flor, e abafa o barulho constante do
chafariz de onde sai uma engenhosa rede de calhas.
Na entrada de seu quarto, Manco está só.
Amanhã, vesƟrá o traje do Inca, com um unku cerimonial tecido por l00 virgens
no acllahuasi, para que ouro e cores resplandeçam em cada uma de suas fibras, com
um colar feito de milhares de chaquiras, com o llautu e o curiguingue, os pesados
brincos de ouro, o peitoral... Por ora, está usando apenas um simples unku branco
com sandálias de palha, e está sentado em sua tiana, olhos voltados para o céu
opalescente.
Anamaya, Katari e Villa Oma vêm se colocar diante dele silenciosamente, a
cabeça ligeiramente abaixada. Seus olhos deixam o céu e pousam neles. Ele esboça
um sorriso que não suaviza seus traços crispados.
- Parece que o Filho do Sol está confuso - diz Katari.
Anamaya se surpreende, Villa Oma quase se sufoca. Há um momento de silêncio,
depois Manco começa a rir, uma risada que o sacode inteiro e o faz tossir. O rosto
de Katari se ilumina e Anamaya também se deixa ir, enquanto o sábio de boca verde
permanece impassível, severo, desaprovados.
- O Filho do Sol confuso... Só a você, Katari, posso perdoar esse sacrilégio. Não
é, sábio Villa Oma?
O sacerdote não responde, mas sua desaprovação é palpável. Anamaya
encontrou-o mais calado e soturno do que nunca, como se uma raiva profunda lhe
contorcesse as entranhas.
- Venham comigo - diz Manco.
Ele os leva a uma das salas em volta do esƟo. Diferentemente do que aconteceu
em muitos templos, esta ainda não foi despojada; além do seu friso de ouro que
corre no alto da parede, Mais abaixo da fina viga que sustenta o teto de ichu, há
espessas chapas de ouro sobre as quais, numa única linha de contraste, estão
desenhadas figuras de animais. Nos nichos, também, os ídolos ainda estão presentes,
estátuas dos deuses cujos olhos de pedras preciosas - turquesas e esmeraldas -
fitam-nos de todos os cantos do aposento.
Mas, sobretudo, há as pinturas.
Anamaya fica sem ar. Estão executadas em painéis de madeira distribuídos pelas
paredes em volta do aposento. Sem nunca os ter presenciado, ela reconhece num
piscar de olhos os episódios mais célebres da história dos Incas: a fundação de
Cuzco por Manco Capac, a construção de Coricancha por Pachacutec, a batalha
contra os Chancas... Fascinada, não consegue se deter exclusivamente numa cena.
Tudo é tão presente, tão forte, as cores, tão vivas, as personagens, tão próximas
deste mundo, que é de se perguntar se o pintor não está ali em algum lugar,
escondido entre eles.
Até Villa Oma parece impressionado com a solenidade do local. E toda a lenda
do mundo inca que foi pintada ali entre imagens simples e fortes, mais fortes que as
palavras, mais duráveis que o vento e o barulho das armas. De repente, ela recebe
um choque no peito.
Numa das pinturas, é o rosto indecifrável, rachado como um pau velho, do grande
Huayna Capac que ela descobre, com a niƟdez fulgurante de uma visão. Ele está
deitado numa esteira, o corpo escondido pelos cobertores de lã e de plumas que o
protegem do frio que o invade. E a seu lado, o rosto meio oculto na penumbra, uma
menina olha, os olhos azuis tímidos e apavorados, enquanto a mão do velho rei está
pousada nela.
Manco olha para Anamaya cujos olhos se enchem de lágrimas. Ela não pode
ignorar o papel que representa no império desde a morte de Huayna Capac. Mas
nada melhor que essa pintura pode lhe fazer sentir a que ponto ela entrou agora em
sua lenda.
- Amanhã - diz lentamente Manco - será um grande dia para os Incas...
Os olhos de Anamaya, deixam a pintura e se fixam no nobre rosto de seu amigo,
em seu perfil de águia, em seus olhos tristes vibrando com uma energia vital sem
limites.
- Mas o amanhã - prossegue ele com a mesma solenidade - está carregado de
perigos. O jejum me aliviou de muitas preocupações inúteis. Mas não dissipou todas
as confusões. Preciso de vocês para ver com clareza.
Seu olhar pousa em Villa Oma, que não pestaneja, depois em Katari, cujo rosto
está iluminado por um sorriso imperceptível.
Finalmente, detém-se em Anamaya e permanece ali.
***
A alguns dias do Natal, dom Francisco Pizarro finalmente deu ordem para que se
levantassem as tendas da praça e que os homens fossem para seus quartéis. Gabriel
está alojado com ele - e não do outro lado da praça com a maioria dos homens - no
palácio de La Cassana. Está sozinho num aposento de dimensões modestas,
regozijando-se com o único luxo oferecido a ele: uma abertura para a rua, um
pequeno trapézio de luz que ele não cobriu, como os outros fizeram, com papel
encerado a fim de poder aproveitar a toda hora o espetáculo da rua, o fluxo variado
de homens que segue o curso do Huatanay.
- Gabriel?
No escuro, ele adivinha o vulto de Bartolomé e mal reprime a preocupação sem
moƟvo que o aflige.
- Então?
O monge aproxima-se dele, sorri-lhe sem falar, passa de raspão por ele. Posta-se
diante da janela e olha por sua vez o movimento da rua. - Eles esperam - diz num
tom displicente.
- Esperam o quê?
- O que os homens esperam. Paz, comida, as coxas de uma mulher... E para os
nossos, ouro, prata e todo esse tipo de coisa.
- É verdade. O Governador prometeu que as distribuições começariam logo após a
coroação.
- Você diz isso sem entusiasmo.
- Você bem sabe que o ouro me é indiferente. E a prata. E todo esse tipo de coisa...
Bartolomé olha curioso para ele.
- Então você só pode estar aqui por uma razão. - E qual é?
- A mesma que eu: a maior glória de Deus.
Alguma coisa vibra no olho de Bartolomé, fazendo os dois homens começarem a rir.
- Palavra de honra, meu frei, em vista 4as circunstâncias em que nos
encontramos, acho que é muita caridade de sua parte me dar esse crédito de zelo
religioso.
- Estou errado?
Gabriel contém a ironia, amua.
- Você é que vai dizer. Veio para pedir minha ajuda na preparação da missa?
- Não, meu amigo. Para esse oİcio, você sabe que o reverendo padre Valverde é
insubsƟtuível. Ele já dedicou o palácio que o Governador lhe deu a Nossa Senhora
de la Concepción depois de ter expulsado dali não sei que demônios que fugiram
aos uivos só de vê-lo.
- A igreja estará construída para o Natal?
- Certamente não. Mas é só porque nós não acreditamos muito em milagres...
- Você não acha que eu possa fazer um, acha?
- Eu gostaria que você deixasse de suspeitas e confiasse em mim, Gabriel. Você
está com problemas e eu posso ajudá-lo. Venha.
Os dois homens atravessam o vasto páƟo, onde os soldados de armaduras
patrulham dia e noite. É aqui, em pleno palácio do Governador, que vêm parar os
tesouros Ɵrados dos palácios e dos templos, sob a supervisão do tesoureiro,
aguardando serem fundidos, subtraídos do quinto real e finalmente repartidos.
Eles saem na praça que, com o desaparecimento da cidade de tendas, retomou o
aspecto normal, e Bartolomé leva Gabriel para o chafariz central. Depois do
nevoeiro cerrado do amanhecer, o céu limpou, e um sol quente os ilumina.
- Eles viram você - diz Bartolomé.
- Dá para me falar um castelhano que eu possa compreender? Bartolomé ergue os
dois dedos grudados num gesto tranqüilizador.
- Há alguns dias, você foi guiado à noite por um naƟvo até um dos templos deles.
Você, perdoe-me a expressão, "sumiu dentro de um muro" antes de aparecer algumas
horas mais tarde. - E aí? - desafia Gabriel.
Bartolomé faz uma pausa.
- Pode me responder como quiser. Mas acho que não vai dar a mesma resposta ao
Governador.
Gabriel fica lívido.
- Creio ter uma idéia precisa do que você via naquela noite, e, acredite, mão iria
censurá-lo, pense você o que pensar.
Gabriel perscruta a testa glabra do monge e seus olhos cinzentos para detectar a
cilada. Vê apenas as rugas de uma preocupação sincera. - Seu problema é que os
irmãos Pizarro pensam de outra maneira. E seu problema é que estão convencendo o
Governador de que têm razão.
- E o que pensam esses dois cães?
- Pensam que você encontrou essa famosa estátua de ouro que o Governador o
encarregou de procurar e que a guardou num lugar seguro para garanƟr o lucro só
para você.
Gabriel sente o chão lhe fugir sob os pés. Bartolomé mergulha os olhos cinzentos
nos seus.
- Por Deus, meu castelhano agora está suficientemente bom para Você?
***
A discussão é longa, áspera, diİcil. Em geral, Manco e Villa Oma é que se opõem,
sob o olhar de Katari. Anamaya tem às vezes a sensação estranha de mergulhar em
sua própria lembrança quando, quase sem querer, perscruta o painel representando a
morte de Huayna Capac.
- É preciso fazer a guerra agora - martela Villa Orna. - Não se deve recomeçar o
erro de seu irmão Atahualpa. É preciso destruí-los enquanto ainda podemos. É
preciso reunir tropas em todas as aldeias. Chamar seu irmão Paullu, talvez até se
entender com Quizquiz, Guaypar...
Manco ruge.
- Esses eu vou perseguir até o Outro Mundo, se preciso for... Eu os persegui e
botei para correr...
- Com a ajuda dos estrangeiros! Você acredita no sorriso falso e nas palavras
simpáƟcas deles? Acredita mesmo nas histórias que eles lhe contam para enganá-lo,
que você vai reinar sob o rei deles, fazer seus deuses viverem sob os deuses deles?
Vai servir a eles como um escravo...
- Villa Orna!
- Você está indo longe demais, sábio - intervém Anamaya.
- Não acuso Manco de ser covarde - esbraveja Villa Orna. - Digo simplesmente
que conhecemos os estrangeiros, sabemos que eles só querem nos despojar, tomar
nossa prata depois do nosso ouro, nossas esmeraldas depois de nossas turquesas, e
destruir nossos templos... De que mais precisamos? Quanto tempo temos que
esperar para nos preparar para a revolta?
- Não estamos prontos, sábio Villa Oma - diz simplesmente Anamaya, fazendo um
gesto para Manco se calar. - Só isso.
O sábio observa a jovem a quem ensinou, há muitas luas, os ritos do mundo inca.
Um sorriso triste se acende em seu rosto cinza, sulcado de rugas.
- Você mudou bastante, jovem Anamaya.
- Ouvi - diz ela -, e aprendi. Conheço os estrangeiros - ela evita o olhar de
Manco ao
dizer isso - e conheço as intenções deles. Mas o recado de nosso pai Huayna Capac
é que Manco deve reinar... Seu reino começará como o reino da serpente, que
desliza entre as pedras, some entre as folhas, e não como o do condor, que é o
senhor dos céus.
Manco vira-se para Katari:
- O que acha?
O rapaz balança os cabelos longos.
- Anamaya tem razão. - E você, Villa Oma?
O sábio não responde, mas faz um impercepơvel movimento afirmaƟvo com a
cabeça, reconhecendo a derrota. Por ora.
- O Irmão Duplo está em local seguro?
A pergunta de Manco saiu como uma acusação.
- Ele deixou Colcampata e Cuzco e se dirige para outra morada secreta
- diz simplesmente Anamaya.
- Será que esta também será mostrada ao estrangeiro?
Anamaya não imagina como ele sabe, mas a vergonha a faz empalidecer.
- Não.
Katari e Villa Oma ficam calados. O sábio tem o olhar severo, desdenhoso, dos
dias ruins. Anamaya sente um acesso de revolta subir dentro dela,
mas Katari intervém antes:
- Você está errado, Manco.
O jovem inca hesita um instante. Sua confiança em Katari é infinita,
mas sentimentos confusos se agitam dentro dele.
- A Coya Camaquen sempre serviu ao Império - diz Villa Orna.
As palavras são ditas com a rudeza habitual do sábio, mas Anamaya sente que
elas surtem efeito. Manco toca o ombro dela com um gesto furƟvo. - Preciso de
você, Anamaya. O Império das Quatro Direções precisa de você.
Sua voz é tão ơmida de repente que Anamaya fica comovida. Revê o adolescente
paralisado diante da cobra, a quem ela teve de abrir o caminho. - Tudo está
preparado para a capa cocha.
Anamaya fica gelada e olha para o sábio que acaba de sibilar essas palavras entre
seus lábios verdes.
- É impossível! - exclama, virando-se para Manco que permanece impassível.
- Impossível? - ironiza o sábio. - De todas as direções do império já chegam os
filhos das famílias mais nobres para receber a honra de ser sacrificados para a glória
do Filho do Sol... Anamaya tenta controlar o nervosismo e a fúria que se apoderaram
dela.
- Os estrangeiros jamais aceitarão isso. - Os estrangeiros!
É a vez de Villa Oma tomar Manco como testemunha. Mas o jovem Inca conƟnua
sem se manifestar.
- Quem são os estrangeiros - reclama Villa Oma - para mudar as tradições que
reinaram entre os Incas desde a fundação do império? Quem são eles para nos impor
as leis e os deuses deles?
Anamaya fita o sábio, e sua raiva é subsƟtuída inexplicavelmente por uma calma
soberana.
- Você se engana, sábio.
Durante toda a altercação entre a jovem e o sacerdote, Katari não abriu a boca,
não se mexeu mais que Manco. Mas a essas úlƟmas palavras, ele simplesmente vem
se colocar ao lado de Anamaya, os longos cabelos tocando os ombros da Coya
Camaquen.
Villa Orna cospe de desprezo.
- Então, Manco?
Anamaya colocou toda a doçura possível em sua voz, mas não conseguiu evitar
um tremor. A imagem passou diante dela num piscar de olhos - a daquela
meninazinha que o condor levou, há muitas luas, ao topo da montanha que domina a
Cidade Secreta.
Manco desvia o olhar.
- Os estrangeiros não devem ver nada - diz. - Mas... - Mas?
- ... mas meu reino não pode começar sem a capa cocha.
Anamaya não responde. Tenta fitá-lo, mas ele desvia obsƟnadamente o olhar. Ela
reprime as palavras de irritação e desagrado que lhe vêm à boca. A expressão capa
cocha ressoa em sua cabeça como um eco terrível enviado num estreito semicírculo
de montanhas.
Enquanto eles deixam o templo, sob um céu enfim azul, o eco não pára de ressoar
dentro dela.
***
***
O dia cai.
Pizarro e Gabriel não trocaram uma palavra desde que tomaram o caminho de
Colcampata; eles entraram sozinhos na passagem.
Na esplanada, Sebastian e Pedro de Candia aguardam, também quase sem falar.
- E aí? - diz o grego.
Sebastian não responde, a princípio. Depois: - Estou esperando.
Ò grego masca um pedaço de mecha que acaba cuspindo.
Quando Pizarro e Gabriel saem finalmente da passagem, os dois gigantes - o preto
e o branco - viram-se para eles, o olhar interrogaƟvo. Os semblantes de Gabriel e
Pizarro estão impenetráveis. Candia é o primeiro a não conseguir conter a
impaciência:
- Então, Gabriel?
Gabriel aponta para Pizarro.
- Não há nada - diz o Governador. - Nada além dos degraus impossíveis que
descem até uma passagem murada, alguns ratos e algumas cobras. - A estátua?
- Não tem estátua.
Os dois amigos contêm o suspiro de alívio que lhes sobe no peito. - Deixem-nos -
diz Pizarro.
Candia e SebasƟan se afastam. O silêncio entre o Governador e seu protegido
ainda não foi quebrado. Gabriel deixa seu olhar se perder nas montanhas ao longe,
douradas pelo poente.
- Não o censuro por ter me desobedecido, encontrando-se com ela - diz Pizarro
com doçura.
Gabriel vira-se para ele sem responder.
- Não o censuro talvez nem por me menƟr sobre essa estátua. Eu casƟgo os
ladrões que apanho, mas sei que se Ɵvesse que afastar os ladrões e os menƟrosos
do meu exército, eu teria partido sozinho.
Ele se interrompe com uma risadinha seca. - Eu nem teria parƟdo. Um sorriso
passa pelo rosto de Gabriel.
- Não lhe censuro nada, afinal. Simplesmente tive um pouco de pena.
Não gosto de ninguém nesse exército, você sabe. Quer dizer, gosto desses homens
em conjunto, quando falo com eles, quando eles lutam, quando ouço as vozes deles
unidas para rezar. Mas, individualmente...
Um assobio desdenhoso sai de seus lábios.
- Ladrões e menƟrosos, hipócritas, bêbados, criminosos, todos ou quase todos,
começando por meus irmãos. Acha que não sei?
Gabriel balança a cabeça.
- Mas você - diz Pizarro com um pouco de paixão, mas sem olhar para ele - eu
reconheci e escolhi e... adotei!
A palavra quase faz Gabriel, que conƟnua calado, se sobressaltar. Mas, no fundo
de suas entranhas, a hostilidade acumulada começa a derreter.
- E você mentir, me esconder alguma coisa, isso me..
Ele gesƟcula com as mãos finas e brancas como para desenhar no ar a palavra
que não encontra.
- Olhe, dom Francisco!
Com um instante de atraso, Pizarro acompanha com os olhos o braço de Gabriel.
- E aqui! E ali!
O braço de Gabriel gira como o ponteiro nervoso de uma bússola. O que os dois
homens vêem no crepúsculo são colunas inteiras que, vindo de todas as direções ao
mesmo tempo, convergem lentamente para Cuzco, desenhando no espaço inteiro das
montanhas e do vale uma espécie de imensa rosados ventos humana.
- O que é? - pergunta o Governador estupefato. - Um exército?
Nunca se viu um exército avançar com essa ordem... - Nem com cães, lhamas,
mulheres, crianças... - Então o que é?
Gabriel deixa seu ombro tocar o de Pizarro.
- É um espanto, dom Francisco.
Os dois homens voltam a mergulhar no silêncio, finalmente interrompido por Pizarro.
- Você achou a palavra, filho - diz com sua voz baixa. - Você me esconder alguma
coisa também é um espanto.
Capítulo 25
Cuzco, 25 de dezembro de 1533
***
Durante toda a missa, Gabriel não Ɵrou os olhos de Bartolomé, que celebra ao
lado do bispo Valverde. Esteja ele abrindo o livro santo para ele, oferecendo-lhe o
cálice, por mais profundas que sejam sua discrição e sua humildade, não se pode
deixar de reparar em sua autoridade na calma precisão de seus gestos bem como na
luz que emana de seus olhos cinzentos.
Há uma curiosa mistura de recolhimento e excitação na grande sala de La
Cassava, transformada por ora em nave de igreja. Nos preparaƟvos, Gabriel viu
soldados trazerem dois lhamas de ouro: cobertos com uma tábua, depois com uma
discreta toalha branca, eles fazem um altar bastante apresentável. O bacharel de
idéias livres não consegue deixar de pensar, com um sorriso, que o bezerro de ouro
passeia até o fim do mundo.
Todos os espanhóis estão reunidos, e também muitos índios - os que já se
converteram por medo ou oportunismo ou os que vieram por uma espécie de
curiosidade ver de perto a que deuses os estrangeiros devem sua força.
Ao fundo da grande sala, na linha desse altar improvisado, foram fabricadas as
primeiras portas e as primeiras fechaduras de Cuzco para guardar a sala do tesouro.
Atrás do ouro, mais ouro e prata... Nas paredes, dezenas de tochas foram acesas,
evocando a imagem da iluminação de uma catedral da Espanha. A direita do altar, a
única imagem religiosa do lugar é uma Virgem de madeira policromada - a que
Pizarro já Ɵnha em Cajamarca e que o acompanha por toda parte.
Os olhos dos homens também brilham. Estão felizes de cantar os salmos cujas
palavras eles repetem sem compreender nada. E rogam com um fervor único que
Deus lhes dê uma boa, uma grande parte na porra desses tesouros que lhes escorrem
entre as mãos há tantos dias enquanto o Governador - paz a sua Grandeza! - só diz:
"Amanhã, amanhã..." Bem, amanhã começa hoje.
Alonso diz a si mesmo que merece mais que Diego, e Cristobal, o cavaleiro,
acha que
deveria ter o dobro de Pedro, o soldado de infantaria... No entanto, por mais que
eles sejam gananciosos, olhando para seus rostos iluminados pelas chamas das
tochas e do desejo, Gabriel entende o que Pizarro quis dizer ao falar de sua
admiração por eles. Brutos e grosseiros, sem dúvida, mas cheios de coragem,
incansáveis, animados por uma fé de criança.
Quando Valverde dá a bênção final, o olhar de Gabriel procura Pizarro. Toda a
mulƟdão olha para o bispo, mas dom Francisco tem o olhar perdido na direção da
Virgem. Sem ver seus lábios, Gabriel sabe que, mais uma vez, ele reza para ela e lhe
rende graças.
Nesse instante, sente os olhos cinzentos de Bartolomé pousados nos seus, e se.
perturba como se Ɵvesse sido flagrado cometendo um pecado, feliz com o pretexto
da onda que leva seus companheiros para a saída.
Pizarro à frente, eles saem do palácio numa confusão alegre. Espanhóis e índios,
fidalgos e yanaconas, ricos e pobres. Abrindo caminho entre a mulƟdão dez, l00
vezes maior que veio receber o Inca, dirigem-se para o centro da praça. Gabriel fica,
por acaso, alguns passos atrás de dom Francisco, espremido entre Candia e
Sebastian.
O sol é magnífico e o céu de um azul puro, intenso e profundo.
O que todos vêem é Manco no traje do Inca, sentado em sua Ɵana, esperando o
Governador como um rei espera um vassalo; é o conjunto das múmias que voltaram,
em cima de seus pedestais de ouro; é o sacerdote Villa Orna e seu comprido vulto
rígido e hostil; são os braseiros que começam a fumegar e as jarras de chicha.
Gabriel vê isso tudo, mas seus olhos fascinados seguem com obsƟnação uma
borboleta branca perdida na cerimônia e que vem voar sobre as cabeças dos
poderosos antes de ir embora numa espiral de fumaça.
Ele procura Anamaya, mas não a encontra.
- Lembra-se, Vossa Graça?
Ele não precisa se virar para reconhecer a voz. Não precisa responder para deixar
as lembranças fluírem. Sente na boca o gosto acre e delicioso de uma Ɵgela de
vinho ruim, vê a tabuleta "Ao pichel livre" e dois gigantes sentados à mesa
esperando uma aventura que veio e arrastou todos eles para mais longe do que
jamais haviam sonhado.
De repente, sente uma forte mão procurar e segurar a sua. É a de SebasƟan.
Gostaria de ver seus olhos, mas o gigante negro teima em olhar para a frente, para o
grupo dos senhores Incas.
Tudo o que consegue surpreender é um sorriso oblíquo, amigável, caloroso,
enquanto essa mão tritura a sua.
***
O olhar de Bartolomé abraça num só movimento a assembléia dos nobres Incas
Manco, naturalmente, em sua Ɵana de ouro, recostado em almofadas, os pés
esƟcados em cima de preciosos tecidos, mas também o sacerdote de rosto comprido
cujo banco é de prata, e todos os caciques que estão sentados em níveis
decrescentes, em tronos de estanho, depois de madeira, de bambu e, finalmente, de
palha.
Ele não pode deixar de se impressionar com a beleza desta ordem do mundo,
cheio de uma harmonia de cores e de metais preciosos, com a nobreza e a altivez
dos rostos.
Bem à sua frente, Pizarro, em seu traje de veludo de seda, a espada de gala ao
lado, parece-lhe quase ter o porte rúsƟco de um funcionário de província. Está
espremido dentro de roupas apertadas demais para ele, e o cabeção de renda branca
não esconde a magreza de seu pescoço.
No entanto, não há insegurança nenhuma no tom de sua voz quando ele se dirige a
Manco.
- Poderoso Senhor, viemos aqui como amigos, guiados pelo Verdadeiro Deus...
Enquanto Felipillo traduz, Bartolomé procura entre os índios o rosto de seu novo
amigo. Não o vê, e essa ausência lhe provoca no estômago uma desagradável
sensação.
- ... e como reza a nossa lei, agora vão ouvir a leitura do requerimento. Pedimos
que diga que compreendeu e acata essa leitura, você e os nobres de seu conselho.
Depois disso, seremos amigos para sempre, e você terá conquistado nossa proteção
contra seus inimigos.
Manco balança impercepƟvelmente a cabeça em sinal de compreensão, e Pizarro
faz um sinal a Pedro Sanchez de la Hoz.
Pedro é famoso entre os espanhóis por sua voz azeda e sem força. É um mistério
e moƟvo de chacota entre eles o fato de Pizarro o ter escolhido para ler uma
proclamação dessa importância. Seu tom ainda está mais apagado que de costume.
Para garanƟr que as palavras sejam ouvidas? Para que os Índios tenham fugido
antes do fim da leitura?
As palavras são como pedras pesadas e majestosas. No entanto, a voz que as
transmite lança-as como se fossem pequenos seixos ridículos.
- Da parte do Imperador e rei dom Carlos e de doña Juana sua mãe, reis de
Castela, Leão, Aragão, das Duas Sicílias, de Jerusalém, Navarra, Granada, Toledo,
Valença, Galícia, Majorca...
A cada novo nome, a voz de Pedro tenta em vão se encorpar, carregar-se de todas
essas províncias, de todas essas regiões...
- ... condes de Roussillon e Cerdanha, marqueses de Oristano e GóƟa,
arquiduques da Áustria, duques de Borgonha e Brabante, condes de Flandres e do
Tirol. A vós, soberanos dos povos bárbaros do Peru e a vós seus súditos,
noƟficamos e fazemos saber como melhor podemos que Deus Nosso Senhor, Único
e eterno, criou o céu e a terra.
A voz de Pedro não é mais solene que a de Felipillo, desagradável e rouca.
Bartolomé é acometido de uma vontade que o perturba e à qual é difícil resistir.
Tem vontade de rir.
- ... por causa do grande número de gerações nascidas desde que o mundo foi
criado há mais de cinco mil anos, tornou-se necessário que alguns homens fossem de
um lado para o outro da terra, e que se dividissem em muitos reinos e províncias.
Dentre toda essa gente, Deus Nosso Senhor encarregou um homem que se chamou
São Pedro de ser o Senhor de todos os homens do Mundo...
Quando seus olhos encontram finalmente os de Katari, Bartolomé se dá conta de
que o índio já o observa há algum tempo, sorrindo. Não é um sorriso de mofa, antes
de interrogação, como que pedindo: "Você me dirá o que significam essas palavras
estranhas..."
- Por conseguinte, e como melhor podemos, rogamo-vos e inƟmamo-vos a bem
compreender o que acabamos de dizer...
Interminável, o requerimento se arrasta, e as palavras "fé católica" e
"tergiversações maliciosas", "majestades" e a promessa da ajuda de Deus repicam
nas paredes dos palácios, escorrem com a água do chafariz.
Por diversas vezes, quase constrangido, Bartolomé desvia o olhar de Katari; mas
quando torna a encará-lo, vê que o índio conƟnua fitando-o com um olhar amigável
e cheio de dúvida.
- ... mas se não o fizerdes, cerƟficamo-vos que com a ajuda de Deus vos
enfrentaremos com força e vos faremos guerra em toda parte. Submeter-vos erros ao
jugo e à obediência da Igreja e de Suas Majestades; apoderar-nos emos de vossas
pessoas, de vossas mulheres e vossos filhos e os escravizaremos; vende-los emos
como tal; tomaremos os vossos bens e vos faremos todo o mal e todo o dano que
pudermos, como vassalos que não obedecem, que não querem aceitar o Senhor,
resistem e se opõem a ele. Declaramos com veemência que os mortos e os prejuízos
daí decorrentes seriam culpa vossa e não de Suas Majestades, nem nossa, nem dos
cavaleiros que estão conosco.
Ao longo da tradução, Bartolomé vê o to de Katari se entristecer e sua expressão
mudar, até ficar marcada por uma profunda incredulidade. Quando, por sua vez,
deseja enviar-lhe um sinal de amizade que limite a violência que emana dessas
palavras, já não encora mais o olhar do amigo.
Pizarro aproxima-se de Manco e se inclina como se para banco, mas o Inca
permanece imóvel em seu banco.
Enquanto o porta-estandarte ergue por duas vezes o estandarte real, as trombetas
começam a tocar.
Finalmente, Manco se levanta.
***
"Ela não está ali."
Durante toda a cerimônia, Gabriel se sente perdido na imensa praça, perdido no
meio dos seus, perdido diante dos rostos impenetráveis dos índios, enquanto
zumbem em seus ouvidos as palavras do requerimento.
Ela não está, e ele não consegue pensar em mais nada, nem senƟr, ver ou ouvir
mais nada.
O úlƟmo abraço conƟnua nele como uma queimadura que não se apaga, um
sofrimento que não cessa, uma vontade que o faz lamentar não ter sido ainda mais
violento, mais do que ela pedia, mais violento que seu medo... Violento? Ele se
espanta e se emenda: antes terno, de uma ternura infinita, com carícias pelo corpo
todo, dizendo aquelas palavrinhas que não têm nenhum sentido e no entanto fazem
toda a recompensa do amor.
De quando em quando, uma brisa faz esvoaçarem os panos das túnicas, os
suntuosos adereços de plumas, os grandes leques...
De quando em quando, uma trompa ecoa pelo vale...
De quando em quando, um raio de sol vem pousar no ídolo do Sol que foi
descoberto pelo sacerdote Villa Oma no centro da praça, bem ao lado do chafariz.
De quando em quando, ele julga surpreender um movimento na impassibilidade
das múmias que, uma a uma, majestosas em seus tronos de ouro, cada qual cercada
por uma mulƟdão de riquezas, chegaram à praça, como se todo o passado pudesse
presidir ao presente.
Mas Gabriel só sabe de uma coisa: quem ele ama não está ali, e sua solidão é
extrema, seu sangue ferve de impotência. Ele fita Manco com uma espécie de ódio
frio, murmurando silenciosamente palavras de provocação e desprezo, xingando-o,
convocando-o a duelos atrozes. Mas Manco não olha para ele, como não olha para
Pedro Sancho de la Hoz a declamar, como não olha para Felipillo: seus olhos não
deixam Pizarro.
Quando Manco se levanta e Anamaya finalmente aparece atrás dele, sua boca se
abre como para gritar, e ele precisa morder os lábios para não fazê-lo.
Pizarro cumprimenta cada um dos Senhores Incas, e começam a irromper gritos e
cantoria de toda parte, de cada canto da praça, das ruas e dos palácios, do vale
inteiro, das montanhas e talvez de mais longe ainda.
É uma alegria, uma alegria absurda, uma esperança não se sabe de que - mas, no
tremor que se apoderou de seu corpo, Gabriel também está cheio de alegria e de
esperança, ainda que o ciúme continue dentro dele como um veneno poderoso.
A terra inteira começa a se movimentar para uma festa que deve durar várias
noites e vários dias, uma festa que deve engolir todos os medos e todas as guerras.
Quem está sendo coroado? Quem triunfa?
Que importância isso tem?
Tudo começa a dançar.
Gabriel e Anamaya estão imóveis, cara a cara, sozinhos e juntos. Não sabem
nada, mas seu amor tudo sabe.
Capítulo 26
Cuzco, janeiro de 1534
***
A cancha está às escuras, mas ouve-se a voz das mulheres escapando dos
aposentos como cantos de pássaros.
Gabriel faz um movimento de recuo, mas seus dois amigos o arrastam com uma
palmada nas costas e ele se deixa levar, como que entorpecido.
O aposento onde eles entram é caloroso. Não há ali, como no interior das casas
Incas, nenhum móvel, mas uma riqueza de corƟnas, de esteiras, de cobertores de lã e
plumas coloridas. Há sob tudo três jovens que se calam quando eles entram, mas
cujos sorrisos largos em que já conhecem seus dois companheiros e que não têm
medo de ser apresentadas a ele.
Estão vesƟdas com túnicas coloridas que cobrem jovens formas promissoras.
Suas pernas nuas até os joelhos mostram clarões dessa pele de mel que agrada aos
espanhóis.
- Estamos em campanha - diz SebasƟan com uma falsa solenidade - contra a
barbárie que em nossas fileiras leva o vulgo a forçar as jovens... Tendo ouvido que
o requerimento foi bem recebido pelo Inca e sua gente, iniciamos um movimento
visando ensinar a verdadeira galanteria do caballero à população local...
Gabriel não consegue deixar de sorrir. Pelo alvoroço das jovens em volta deles, a
lição rendeu frutos precoces. Mãos macias pousam em seus ombros convidando-o a
sentar-se com seus amigos em uma das esteiras cujas mantas prometem uma
indolência deliciosa.
- Eu não... - começa ele timidamente.
- Fique quieto e deixe a coisa por nossa conta - diz Pedro.
De fato, é muito agradável deixar as coisas correrem. Por que querer se esgotar
numa luta incessante e vã com um desƟno adverso? Reina no aposento um calor
suave, as jovens se agitam em volta deles num balé bem sincronizado, trazendo-lhes
bebida em copos de ouro e murmurando em suas línguas que os estrangeiros são
bem bonitos e rijos, entreolhando-se e soltando risadinhas como todas as jovens do
mundo, com uma espantosa liberdade.
- Não quero ser sacrílego - comenta Candia persignando-se - e o reverendo
Valverde que me perdoe, mas acho que o paganismo tem qualidades.
- Disso, meu amigo - replica SebasƟan -, eu sabia desde que nasci. - Sim, mas os
anos entre nós, o serviço de dom Diego Almagro, o ?baƟsmo, uma espada... tudo
isso transforma você em homem... Olhe essas vens. Não se pode dizer que alguma
espécie de interpretação errada dos livros sagrados as incitasse a resistir a nós...
- Eu diria mais, meu caro Pedro, parece que elas leram outro Ɵpo de livro onde se
dizia que deviam nos encontrar e nos conhecer...
Sorrindo sem querer, Gabriel os ouve. O cansaço, a decepção, a ligeira
embriaguez que se apodera dele - tudo o arrasta para um mundo onde dei-se estar
nos braços de uma jovem que lhe sorri é a única filosofia, a única rança que vale.
Mãos hábeis já desabotoam os gibões e as camisas de seus dois amigos ficam de
torso nu. Ele entrevê a musculatura forte de SebasƟan e a de Pedro de Candia, esta
mais fina porém não menos imponente. Depois, sente par de olhos negros fitando-o,
olhos jovens, inocentes, interrogaƟvos, cheios de uma promessa que não dá margem
a nenhuma dúvida. - Você é bonita - diz ele em quíchua. A jovem não manifesta
nenhuma surpresa ao ouvi-lo falar sua língua. olhar só fica mais intenso, mais
carinhoso, e seus lábios entreabertos deixam entrever uma fileira de dentes brancos
delicadamente cinzelados, dentes que tanto podem dar mordidinhas leves como
morder realmente.
Ela desliza, agachada, para a esteira, até tocá-lo, mas detém-se sem que ele tenha
esboçado um gesto, quando está quase encostando nele. Ele sente um aroma de
árvores e flores, e fecha os olhos para melhor absorver o perfume, deixá-lo penetrar
em seu corpo e irrigá-lo.
O crepitar de um pedaço de lenha ardendo no fogo, uma risada abafada, só há o
silêncio dos prazeres, cheio de paz e abandono. A mão da jovem toca sua testa,
desce péla aresta de seu nariz, onde pára na impercepơvel cicatriz de uma anƟga
discussão, demora-se em sua boca... Ele fica de olhos fechados, e seus lábios,
apesar do desejo que sobe dentro dele, não a beijam. Sua respiração acelera, e
parece-lhe que seu peito e seu corpo todo crescem brutalmente quando ela
desabotoa sua camisa e pousa as mãos em sua pele que esquenta, queima, pede...
Meu Deus, diz ele para si mesmo com espanto, como a desejo...
Mas que em meio a suas sensações, ao abandono de seu insƟnto, uma palavra,
uma idéia tenha vindo se insinuar é algo que o perturba. Ele tenta espantar essa idéia
como se espanta uma mosca, mas, ao contrário, ela se instala e ressoa, chama outras.
Anamaya, Anamaya, você foge de mim, mas não foge, você me escapa, mas não me
escapará... Enquanto ela descobre seus ombros e ele sente, sabe que está rijo e
retesado de desejo e até quer estar assim, abre os olhos.
Vê o aposento, seus dois amigos já mergulhados numa onda de carícias - e essa
jovem sempre olhando para ele, os olhos semicerrados, como observando através de
persianas. Segura as mãos dela, e ela deixa. Sempre essa ausência de espanto,
sempre esse abandono... O que você quiser você vai ter, qualquer coisa... Essa
liberdade, essa força o fazem sorrir e lhe parecem violentamente ridículas.
Ele a levanta da esteira e a coloca à sua frente. Afaga seus cabelos e ela ronrona
como um gato, fechando os olhos também. Ele se levanta, ajustando a camisa nos
ombros, e a deixa aconchegar se a ele.
Ele balança.
Dança uma música silenciosa que o arrasta a violência do desejo para a ternura,
suavemente, sem apressá-la mais do que ela apressou. "Quero você", murmura para
si mesmo, "mas não tanto quanto quero e era-la... Ah, como essa espera é terrível!
Mas, graças a você, sei que nada é mais do que essa espera..."
Lentamente, seu corpo relaxa, e quando ele a afasta de ela lhe sorri.
- Você é bonita - repete, e seus olhos terminam a frase e ele interrompeu -, você é
bonita, mas...
Com a mão, joga-lhe um beijo que ela recebe com o mesmo olhar sem espanto, e
ele sai do aposento, atravessa a cancha, entra na rua onde sorve o ar dos Andes a
plenos pulmões.
É nesse instante que começa a apanhar.
***
Por um breve instante, seu corpo se recusa a senƟr qualquer outra coisa senão o
calor do aposento que ele acaba de deixar, o toque das carícias, a intensidade do
desejo e essa doce e maravilhosa leveza que se apoderou dele. Depois, com a
sucessão de socos, a violência o abala, e sua impotência faz a raiva subir dentro
dele e as lágrimas lhe brotarem nos olhos.
São quatro homens - dois agarrando-o por trás e se contentando em segurá-lo,
apesar de seus esforços furiosos para se desvencilhar, e dois batendo, desferindo
socos e pontapés, com regularidade e método.
Não há nenhuma palavra, nada a não ser a respiração e os gemidos dos
contendores, com esse barulho estranho que ele custa um pouco a idenƟficar: é o
estertor que já lhe sobe do peito, o estertor de sua fraqueza, o esgotamento inúƟl de
seus esforços para fugir ou escapar do sofrimento da surra que está recebendo.
A noite protege a cara de seus agressores, que ainda por cima Ɵveram o cuidado
de cobrir o nariz e a boca com um lenço; ele só vê intermitentemente o turbilhão de
olhos negros.
Na lassidão que se apodera dele, uma névoa vermelha passa diante de seus olhos:
é o sangue que escorre de sua cabeça e o cega, misturando-se às suas lágrimas, a
seu suor, à secreção de seu nariz... Alguma coisa de imbecil e vital, no fundo de
suas entranhas, o impele a não desfalecer, a conƟnuar lutando... Lutando? Alguns
movimentos desordenados, alguns gestos tão eficazes quanto os de uma rã - no
entanto, uma recusa que os deixa mais encarniçados.
Pedaços de frases, lembranças de lógica passam por sua mente. "Se quisessem
me matar..." Se quisessem matá-lo, ele já estaria morto, a cabeça rachada, a espada
a quatro passos dele.
É assim, lutando mesmo quando já não se mexe mais, que desmaia. Julga ver,
pairando sobre seu rosto como um anjo do mal, os traços encantadores e sorridentes,
os cachos louros e bem arranjados de Gonzalo.
Mas essa visão precede mesmo sua perda de consciência? Ou é a primeira
imagem do pesadelo que o leva?
Ele jaz, como um bêbado no meio da rua.
Mas o que escorre do canto de seus lábios para o riacho e sangue.
Capítulo 27
Cuzco, janeiro de 1534
***
O dia passa.
Ele não se mexe.
A umidade, o frio, o calor que volta, a dores instáveis - nada o afeta realmente
senão essas palavras que ecoam em sua memória.
O crepúsculo se aproxima.
Camaradas passam, olham para ele com pena ou escárnio. Alguns o chamam. Ele
ignora os sussurros. Fica obsƟnadamente olhando para cima: as montanhas, a
fortaleza, cuja sombra que vai se pondo c m o sol ele acompanha.
Ele desliza, sempre imóvel, para o frio da noite.
Uma tocha se aproxima dele e ilumina seu rosto. Ele levanta a mão para se
proteger do ofuscamento.
- Quem me quer bem? - brinca ele.
- Eu.
- Você é como o outro querendo me salvar?
Bartolomé não responde. Pega seu braço delicadamente e o puxa. Gabriel não
resiste; desde ontem não fez outra coisa senão resisƟr. ResisƟr aos olhos negros da
jovem, resisƟr aos socos e pontapés, às palavras do Governador. Está farto de lutar
contra tudo e contra todos.
Atravessam o palácio de La Cassava com passos lentos e, como se guiasse um
enfermo, Bartolomé o leva até seu quarto.
Uma vela magra os ilumina, deixando reflexos de um amarelo pálido dançarem em
seus rostos. Gabriel deita-se com todo o cuidado, contendo os gemidos que sobem
de seu corpo dolorido. Bartolomé senta-se na cama e pousa os dois dedos colados
em seu peito. Gabriel deixa. Quando sua respiração se acalma, Bartolomé finalmente
abre a boca.
- Então? - pergunta.
A tristeza de repente sufoca Gabriel, apertando-o dos pés à cabeça. Ele gostaria
de falar, mas não consegue, e toda sua solidão, sua impotência, sua raiva, tudo se
empurra entre seu coração e seus lábios. Ele se sente uma torrente de soluços
incoerentes.
Bartolomé o deixa chorar sem uma palavra. Só sua mão e seus olhos cinzentos
pousados nele, amigáveis e curiosos, o acalmam.
- Que guerreiro! - diz finalmente Gabriel.
- Quem diz que os guerreiros não choram?
- Você fala bem, irmão...
Bartolomé contenta-se em sorrir.
- Ele disse que eu devia segui-lo. Que logo deixaria Cuzco para fundar a capital
do reino e que precisava de mim. Disse que, se ficasse em Cuzco, eu morreria e que,
morto, eu não serviria para ninguém. Disse que, se eu ficasse em Cuzco, ela
morreria porque seus irmãos não recuariam diante de nada ata saciar sua sede de
vingança... Disse que isso era uma ordem para mim.
disse que voltaríamos um dia...
- O que vai fazer?
- Você é engraçado, irmão. Vou obedecer, claro. Porque ele tem razão, porque
achou palavras detestáveis e justas. Ele sabe que não tenho medo de seus irmãos
malditos. Mas também sabe que temo mais por ela que por minha vida.
- O que posso fazer por você?
Gabriel ergue um olho espantado para Bartolomé. - Por mim? Nada. O que queria
fazer por mim? - O que me pedisse...
- Só isso! Meu irmão, o Senhor lhe dá acesso a esses caminhos mais impenetráveis...
- Diga.
Bartolomé conƟnua sorrindo. Gabriel sonha em voz alta. - O que eu queria... O
que eu queria...
- Vou tentar - diz Bartolomé.
Gabriel abre a boca estupefato.
- Como...
- Não é isso que você quer? Eu vou tentar, pode acreditar.
O frade se levanta e desaparece com a vela antes que Gabriel tenha Ɵdo tempo
de dizer o que quer que seja.
Capítulo 28
Kenko, janeiro de 1534
***
QUARTA PARTE
Capítulo 29
Cuzco, julho de 1535
***
- Você nos mentiu - protesta Gonzalo. - Prometeu-nos ouro, e onde está esse ouro?
Ele anda e gesticula ao sol. Manco permanece sentado em sua tiana, sem abrir a
boca. A um canto, Anamaya, contraída e gelada, conƟnua fitando os espanhóis. Do
outro lado do páƟo, um pouco afastado dos estrangeiros que formam uma fila
ameaçadora, aglomeramse os Poderosos Senhores que acorreram à cancha real.
- Há três meses, Sapa Inca - prossegue Gonzalo apontando para Manco -, três
meses que nos prometeu ouro. E assumiu esse compromisso em sinal de amizade e
respeito por nosso Rei, que é também o seu, e para nos provar que os boatos de
rebelião eram infundados. Passaram-se dias. Passaram-se semanas. E só recebemos
alguns pratos e algumas bugigangas que você roubou de suas servas!
Quando ele se cala, o pátio fica de novo em silêncio.
Um bando de aves passa piando no alto da cancha. Suas sombras, rápidas como
flechas, correm entre os espanhóis e os senhores índios. Juan Pizarro procura com
insistência o olhar de Anamaya. Mas ela não lhe concede mais atenção que aos
demais. Manco finalmente sorri e aponta para o páƟo do palácio, as paredes dos
prédios, a entrada de seu quarto:
- Está vendo ouro aqui, meu amigo? - pergunta com uma voz estranhamente doce.
Passaram-se dois invernos desde que entraram na Cidade do Puma. Lembra-se? No
dia em que chegaram, havia ouro por todas essas paredes, em cada aposento de
minha cancha, em meus jardins, em casa dos nobres de minha corte! Havia ouro nos
cabelos de minhas concubinas e de minhas esposas! Você brincou há pouco com uma
delas. Eu lhe pergunto: viu alguma coisa de ouro nela? Vire-se, irmão de meu amigo
o Governador: olhe os nobres Senhores de minha casa. Olhe as orelhas deles. Está
vendo algum brinco de ouro ali? Não, só de madeira. Veja os seus peitos, seus
braços. Estão nus, nus como braços de camponeses, pois eles já lhes deram tudo!
Onde eu poderia lhe arranjar mais ouro, quando o ouro está nas mãos de vocês?
Como eu poderia esconde-lo, quando vocês são os senhores deste país?
Gonzalo olha para ele com um sorriso mau.
- Você está menƟndo - diz destacando as palavras, dedo em riste. - Sei que ainda
há ouro neste país. Muito ouro.
- Você viu, amigo estrangeiro? Diga-me onde e imediatamente mandarei buscar
para você!
Gonzalo assobia entre os dentes e aproxima-se de mansinho de Manco. Parece
prestes a lhe cuspir na cara, mas ergue os olhos para encarar Anamaya:
- Você sabe a que ouro nos referimos... Onde está a grande estátua de ouro que
meu irmão o Governador dom Francisco exigiu? Sua paciência se esgotou e a minha
mais ainda. Há meses você nos vem com histórias. Em três dias, quero vê-la em
minha casa!
Há um silêncio. Juan aproxima-se por sua vez.
- Isso não e possível - responde Anamaya distintamente.
- Ah? E por que, senhora? - pergunta Gonzalo com o tom mais cortês. - Porque
essa estátua não está mais neste mundo. Vive perto dos Poderosos Ancestrais, no
país onde o sol não se põe.
Gonzalo observa-a um instante em silêncio. Tem o olhar espantado, sobrancelhas
erguidas, como se procurasse compreender o senƟdo dessas palavras. Levanta a
mão como se fosse bater, e um estremecimento percorre as fileiras de naƟvos. Mas
é com uma delicadeza calculada que sua mão pousa no ombro de Manco.
- Meu amigo Inca não e o Filho do Sol? - começa ele. - Não tem poder sobre os
vivos e os mortos?
- O senhor não tem o direito de tocar no Único Senhor! - diz secamente Anamaya.
- Ora vamos, meu amigo Inca há de permiƟr um instante essa inƟmidade que
acompanha a amizade do homem de bem... Entre nós, sabe, isso é um senƟmento
caloroso expresso com naturalidade, sorrisos, abraços, presentes...
Sem parar de sorrir, Gonzalo larga Manco tão bruscamente quanto o tocou. O Inca
tenta encontrar uma pose digna enquanto Gonzalo vira-se para um de seus soldados.
Com um gesto de cabeça, ordena que ele se aproxime. O homem tem no ombro um
grande alforje de couro. Abre-o e Ɵra uma corrente com ferros e um cadeado de aço
grosso. Gonzalo pega uma das pontas e a deposita aos pés de Manco.
- Não sou como você, está vendo? Trouxe-lhe um presente de alto preço.
Manco e Anamaya olham a corrente.
- Imagine, amigo Inca, que essa corrente é a mesma com a qual seu irmão
Atahualpa, o finado Inca, foi protegido da afeição dos seus por meu irmão, o
Governador dom Francisco Pizarro. Achei que essa peça ficaria bem entre os seus
tesouros e encontraria um lugar de destaque ali. Não tive razão?
O silêncio é completo no pátio.
- Espero em troca que me ofereça o modesto presente de que lhe falei.
Nem Manco nem Anamaya estremeceram diante da ameaça. No entanto os
Poderosos Senhores e os guardas da cancha se aproximaram bastante dos espanhóis.
Lentamente, estes se comprimem, formando uma fila protetora em volta de seus
chefes. Juan pousa uma das mãos no punho do irmão e sorri com um ar desolado
para os Índios.
- Um instante, meu irmão... Lembra-se que temos outra proposta para fazer ao
Sapa Inca?
Ele Ɵra o chapéu curvando-se para Manco com uma reverência que pretende ser
respeitosa.
- Sapa Inca - diz Juan com uma expressão conciliadora -, é verdade que estamos
decepcionados porque ainda não vimos essa belíssima estátua que todos dizem ser
mais bela e mais magnífica que todas as outras. Dizem que preferimos ouro a
amizade, e isso é uma injusƟça. Pois o que nos entristece não é a posse dessa
estátua. É a desconfiança que sua aƟtude demonstra... Alguns de nós acham que
talvez isso seja sinal de que você quer nos fazer guerra! Obviamente, não
acreditamos nisso. E é por esse moƟvo que tenho uma proposta a lhe fazer, uma
proposta que, se você aceitar, manifestará de forma gritante para o mundo que somos
amigos, amigos para sempre...
Juan fica em silêncio por um momento para que suas palavras calem. Sua voz é
tão tranqüila, tão conciliadora, que a tensão se acalma. O próprio Manco relaxa.
Balança a cabeça e olha com um certo espanto o chapéu que Juan agita à sua frente.
- Hoje, Sapa Inca, coloquei uma fita de seda em meu chapéu. No país de onde
venho, isso significa que quero uma esposa...
Juan vira-se para Anamaya. Examina-a por alguns segundos insistentemente,
ergue uma sobrancelha sobre seu olhar inflamado e, com um pequeno movimento do
peito, declara alto e bom som:
- Eu a escolhi, bela dama. Disseram-me que você não Ɵnha esposo, mas que em
seus costumes a grande estátua de ouro era como seu marido e lhe proibia qualquer
outro casamento. Pois você diz que a estátua não está mais neste mundo. Triste
noơcia, mas boa também! Ei-la então livre para me acompanhar ao altar e
comparƟlhar uma bênção que a protegerá para sempre!
Anamaya empalidece, pasma. Juan dá mais um passo à frente, procurando pegar
sua mão que, num reflexo, ela encosta no ventre. Mas Manco já está em pé, o rosto
escarlate, as veias do pescoço intumescidas de raiva.
- A Coya Camaquen pertence a meu Pai - exclama. - Ninguém porá a mão nela!
- A outros! - ladra Gonzalo.
Após um olhar de desafio a Manco, acrescenta com uma voz surda:
- Ela e tão virgem quanto uma puta do Panamá. E todo mundo sabe para quem ela
abre as pernas...
Manco já se colocou na frente de Anamaya. Afasta Juan com um empurrão tão
violento que o espanhol tropeça e tem que colocar um joelho no chão.
Então, em alguns segundos, a confusão inflama o páƟo. Gonzalo pula e agarra o
braço de Manco, enquanto guerreiros Incas correm para acudir o Único Senhor.
Os capangas se interpõem e a breve luta desvia a atenção de Anamaya. As
mulheres agora fogem de um páƟo para o outro com gritos estridentes enquanto
Juan, por sua vez, tenta agarrar Manco.
De repente, uma sombra negra surge, não se sabe de onde, paralisando o gesto de
Juan, que imediatamente solta Manco, enquanto a mão de Gonzalo permanece
crispada no braço do Inca.
- Vocês enlouqueceram todos?
Anamaya reconhece Bartolomé, o frade amigo de Gabriel. Ele está branco como
cera. Aponta aquela mão estranha com dois dedos colados para o rosto de Gonzalo e
grita de novo:
- Ficou louco, dom Gonzalo? De onde lhe vem o direito de agredir esse Senhor
índio?
- Do direito que me cabe. Não é da sua conta.
- Largue-o!
Os olhos cinzentos de Bartolomé têm o brilho que se costuma imaginar no olhar
dos lobos. Porém o mais impressionante é a força de sua calma.
Um ríctus vibra na boca de Gonzalo. Ele descerra os punhos. Juan lhe segura um
braço e o obriga a recuar antes de ele se desvencilhar. - Esse bárbaro zombou de nós
- cospe Gonzalo com desprezo. - Viemos pedir essa mulher - diz apontando para
Anamaya com o queixo como se ela fosse uma peça de cerâmica - em casamento
para meu irmão, e ele afirma que ela e intocável. Intocável!
Bartolomé. olha rapidamente para Anamaya, como se a descobrisse. Vem colocar-
se entre Anamaya e Manco.
- O Sapa Inca Manco é o Senhor dos Índios deste país - replica com ma voz que
todos podem ouvir. - O Imperador Carlos Quinto colocou-o sob a proteção de seu
irmão o Governador! Será que se esqueceu disso?
- Poupe-nos o sermão, frei Bartolomé, ainda não é domingo! - diz Gonzalo rindo. -
Meu irmão é governador, estou lembrado, sim. E meu irmão está bem longe daqui,
fundando capitais e construindo reinos. Enquanto isso, foi a nós que ele confiou esta
cidade...
- E é a ele que lhe prestarão contas dela, assim como do modo como trataram esse
homem.
- Nós é que decidimos aqui - esbraveja Gonzalo - quem é homem e quem não é...
Acho que meu irmão Francisco não está parƟcularmente bem colocado para vir nos
dar lições sobre isso...
- A Espanha está olhando vocês!
- A Espanha? Onde fica isso? - ironiza Gonzalo. - E já chega, seu apóstolo! De
onde lhe vem a autoridade para me fazer sermão?
- Gonzalo! - sussurra Juan. - Por favor...
- Não tenho nenhuma autoridade sobre você, dom Gonzalo - replica Bartolomé
calmamente.
- Você disse isso - sibila Gonzalo. - Então, agora, vá salvar as almas se puder e
poupenos das suas sentenças...
Gonzalo lança um olhar de desprezo para o frade e recolhe seu chapéu, que caiu
na confusão. Juan tem uma expressão triste. Bartolomé esboça um sorriso olhando
para eles.
- Não tenho, efeƟvamente, nenhuma autoridade sobre vocês, Senhores, mas
nosso
Deus tem. O julgamento supremo pertence a ele. Ele é Deus de misericórdia para os
humildes e Deus de vingança para os orgulhosos.
- Meu irmão... - começa Juan com uma voz miserável. - Cale-se - corta Gonzalo.
O úlƟmo olhar que Gonzalo lança para Bartolomé ao sair do páƟo é um olhar de
desafio.
Durante a cena toda, Anamaya não parou de tremer.
***
- Taypa a acabou! - exclama. - Olhe em volta de você e verá que tudo está
quebrando! Aqueles que você vai encontrar voltaram a ser como animais. Matam,
grunhem em e lutam como animais! Roubam mulheres, velhas ou jovens, sem
disƟnção, para copular como bichos! Voltou a ser como antes, estrangeiro: antes de
Viracocha pôr humanos na terra. É um novo pachacuti. Taypikala acabou.
Não é mais o vento que faz Gabriel tremer, mas sim o riso do velho louco atrás
dele. Após um úlƟmo gesto de adeus, ele faz o cavalo trotar. Por mais um instante,
escuta os gritos e as risadas vibrando no ar frio:
- Taypikala acabou! Viracocha tem que recomeçar!
***
- Venha, Senhor!
- Vou furá-lo!
- Ai, caballero!
- Titu! Lloque! Cuidado com esses paus, vocês vão se machucar!
Por um instante, os dois garotos, de apenas cinco ou seis anos, contêm os braços
armados com um pedaço de pau transformado em espada pela imaginação. Olham
para a mãe. Com as outras servas, ela está ocupada cuidando da grande sala comum,
sacudindo as mantas cias camas. Ao ver que depois de repreendê-los ela já virou as
costas, os dois meninos estouram na gargalhada. Pulando como cabritos, recomeçam
a brincadeira com mais ímpeto. Uma brincadeira magnífica e nova: lutar como os
estrangeiros e com armas de estrangeiros!
Parada no escuro, Anamaya vê os meninos brincarem. Há um sorriso em seus
lábios, porém um sorriso sério, melancólico, que não ilumina seus olhos.
- Em que está pensando, Coya Camaquen? - murmura ao seu lado uma voz leve.
- Inguill!
Anamaya vira-se com um pequeno gesto de surpresa e vê o rosto terno de sua
jovem amiga.
- Não ouvi você chegar! Você conƟnua andando como uma brisa - acrescenta com
ternura.
- Mais ou menos! Estou atrás de você há muito pouco tempo. Mas não ousava
abordála, de tal forma que parecia apaixonada por esses garotos. Eu disse a mim
mesma...
Inguill hesita, morde os lábios antes de sussurrar:
- Estava pensando nele olhando os meninos, não?
Anamaya faz que sim balançando a cabeça uma vez, olhando novamente para as
crianças. Correndo, perseguindo-se de um lado para outro no páƟo, eles brincam até
ficar sem ar, misturando aos gritos e às risadas algumas palavras roubadas da língua
dos estrangeiros.
- Ele lhe faz falta - diz Inguill sem que isso seja exatamente uma pergunta. - Há
tantas luas não o vê! Quase dá para esquecer o rosto dele e até como ele é. Eu não
tenho a sua força. Há muito tempo já teria morrido de tanto chorar...
Anamaya reprime seu desejo de mandar a menina se calar. A afeição de Inguill é
sincera, mesmo que ela não perceba a crueldade de suas palavras. E, depois, ela tem
razão. Há, efeƟvamente, muito tempo que Anamaya tem que calar seu amor por
Gabriel! Tanto tempo que confia seu sofrimento e sua solidão apenas à escuridão da
noite e ao silêncio da montanha.
- Isso é assim - diz baixinho. - As vezes, consigo esquecê-lo durante o dia inteiro.
As vezes, durmo a noite inteira sem acordar para pensar nele. As vezes, você tem
razão, tenho medo de esquecer o rosto dele, a forma da boca, a doçura das mãos...
Mas volto a pensar nele, sem saber por quê. Nada é esquecido, nunca. Agora
mesmo, eu atravessava esse páƟo e vi esses meninos brincando. De repente, era
como se o estivesse vendo.
- Mas por que conƟnuar pensando nele, se não sabe se ele voltará? Pior ainda:
você sabe que ele nunca poderá ser seu verdadeiro esposo. Você se faz sofrer em
vão, Coya Camaquen.
Os olhos brilhantes, piscando para segurar o formigamento que anuncia as
lágrimas, Anamaya dá uma risadinha. Segura a mão que Inguill lhe estende com
ternura.
- Você certamente tem razão. Mas é assim... O que posso fazer? Penso nele porque
ele está no meu coração. Penso nele porque ele está na minha alma daqui e talvez
até na alma que me espera no Outro Mundo. Penso nele porque meu corpo espera as
caricias dele e não quer outro...
- Deve ser terrível!
- Não, nem sempre...
Elas se calam um instante, pois a mãe dos dois meninos torna a chamá-los. Dessa
vez, confisca-lhes os paus espadas, provocando lágrimas.
- Gabriel não está aqui e, no entanto, está tão próximo, tão próximo que há um
lugar para ele entre minha respiração e minha pele! - murmura Anamaya
acompanhando a cena com os olhos. - Em alguns dias, isso é tão forte, tão violento,
que eu poderia acreditar que ele acaba de deixar Cuzco. Nesses dias, parece que
basta eu me virar para poder tocar no rosto dele e ele me abraçar. Mas você tem
razão: há muitos outros dias em que sei a verdade. Ele está longe, tão longe que eu
poderia ter dúvidas de que ele ainda viva neste mundo.
Uma lágrima solitária saiu das pálpebras de Anamaya. Ela a enxuga furƟvamente.
Sorridente, quase jocosa, pega o braço de Inguill e a leva para a porta da cancha.
- Vamos - diz com uma voz mais firme. - Vamos parar com essa tagarelice de
mulher! Venha comigo até a praça Aucaypata. Hoje de manhã levaram para lá o
Corpo Seco dos antigos Senhores do clã de Manco. Quero saudá-los.
Inguill, as faces coradas de emoção, concorda com um gesto de cabeça e segue
Anamaya, com o olhar pensativo.
Quando se aproximam do muro que cerca a cancha, ecoa o som breve de uma
trompa. Sem que nenhuma ordem seja dada, seis guardas munidos de lanças
decoradas com plumas nas cores do Único Senhor Manco acorrem para o lado de
Coya Camaquen, para escoltá-la.
Enquanto elas tomam a ladeira íngreme que leva a Aucaypata, Inguill pergunta de
repente baixinho:
- Anamaya, me diga: é possível amar um estrangeiro como amamos um homem de
nossa raça?
Surpresa, Anamaya quase fica imóvel. Antes de responder, olha para os homens
da escolta para se assegurar de que não podem ouvir.
- Gabriel não é um estrangeiro como os outros. Isso seria diİcil de lhe explicar: há
nele uma força que o torna diferente de todos os homens. Tanto os daqui como os do
país de onde ele vem.
Inguill balança a cabeça com um sorriso travesso e ao mesmo tempo embaraçado.
Pergunta ainda num sussurro quase inaudível:
- Eu queria dizer: eles fazem amor como os homens daqui? Ouvi algumas
mulheres dizerem que os estrangeiros dão mais importância a isso do que os homens
daqui! Que gostam mais de fazer e que para nós mulheres, bem...
Inguill não ousa terminar a frase. Anamaya dessa vez pára mesmo. De onde elas
estão, avista-se a praça principal das cerimônias, as múmias alinhadas do lado
esquerdo, cada qual tendo à sua frente um braseiro mantido por um sacerdote.
- Por que me pergunta isso, Inguill?
- Eu queria ajudar Manco. Acho que posso, se você me ajudar, Anamaya. Sei que
os Senhores estrangeiros voltaram ontem a atormentar Manco para que ele lhes dê o
seu esposo, o Irmão Duplo de ouro. Eles gritaram e ameaçaram tanto! Não consegui
dormir a noite inteira pensando no que pediram a ele...
Anamaya sabe muito bem em que Inguill está pensando. As ameaças dos dois
irmãos do Governador Pizarro, Juan e Gonzalo, ainda ecoam dentro dela. Esses dois
demônios que são a causa do afastamento de Gabriel!
Mais uma vez, Manco recusou corajosamente lhes ceder a estátua de ouro. Mais
uma vez, eles o insultaram, a ele, o Inca, o Filho do Sol, como se ele fosse um cão
vadio! Antes de lhe propor uma troca ignóbil: que a Coya, a própria esposa dele, o
Rei, deixasse seu leito para entrar no de Juan!
- Não deixarei que isso seja feito! - murmura Anamaya tremendo de fúria.
Os homens da escolta começam a observá-las. Ela segue seu caminho, leva Inguill
para a praça. Em voz mais baixa mas igualmente violenta, diz:
- Manco não deve mais aceitar que o tratem com tanto desprezo! Ele não pode
ceder a Coya, assim como não aceitou que eu fosse entregue a eles. Curi Ocllo é a
Rainha. O Sol e a Lua abençoaram o ventre dela para que o Único Senhor gerasse ali
sua descendência. Ela é ainda mais sagrada que eu. Que vergonha seria se esse
estrangeiro a tomasse para si! Nenhum dos Poderosos Senhores acreditaria mais em
Manco. Ele não teria mais nenhuma autoridade!
- Anamaya, ele não tem mais escolha - protesta Inguill, o semblante de repente
transtornado. - Manco não pode recusar de novo! Os estrangeiros vão acorrentá-lo.
Vão, sim... Ó, que Viracocha nos ajude!
O rosto endurecido, com um gesto breve, Anamaya faz sinal à escolta para se
afastar pois elas chegaram aos úlƟmos degraus calçados que dão na praça. Não há
muita gente, somente alguns Senhores Incas, sacerdotes e rapazes em volta das
múmias. Alguns espanhóis, afastados, observam-nos com uma curiosidade um tanto
cansada. Vai longe o tempo em que essa cerimônia os fascinava.
- Não, Inguill - retoma Anamaya com clareza de frente para a menina. - Não se
deixe invadir pelo medo. Ele é sempre mau conselheiro. Devemos sair de Cuzco. É
melhor. Não é mais possível dividir esta cidade com os estrangeiros.
- Anamaya! Isso é loucura. Só vai trazer guerra!
- É um risco a correr - replica Anamaya com calma. - Você viu os meninos ainda
há pouco? Eles brincavam de estrangeiro, usavam palavras estrangeiras. Seus paus
não representavam nem os tacapes dos guerreiros fincas, nem lanças ou arcos, mas
sim as armas dos estrangeiros! O que serão quando crescer se não fizermos nada?
Vão parar de amar a InƟ e Mama Quilla. Vão parar de ser os filhos dos humanos a
quem Viracocha concedeu o Império das Quatro Direções. Serão escravos dos
estrangeiros que desprezam nossos anciãos do Outro Mundo e chamam nosso país
de "Peru". Você sabe, Inguill: fiz tudo para manter a paz quando Chalkuchimac
queria a guerra. Era preciso isso para que Manco pudesse se tornar nosso Único
Senhor. Mas hoje, o Único Senhor Manco deve saber fazer a guerra.
- Ele não pode! - reage Inguill. - Perdoe-me por me meter em coisas que uma
menina como eu ignora, Coya Camaquen. No entanto, dizem por toda parte e até no
adllahuasi que não temos forças suficientes, nem sequer guerreiros para fazer guerra
aos estrangeiros.
- Em algumas luas, será diferente.
- Em algumas luas, Manco estará com os pés e o pescoço acorrentados como o
Único Senhor Atahualpa! - exclama Inguill. - Em três dias os estrangeiros vêm
buscar a Coya!
Anamaya vira as costas com um muxoxo de despeito. Por um instante, para
acalmar as baƟdas de seu coração e evitar dirigir a Inguill palavras demasiado
duras, ela olha os sacerdotes com longas túnicas franjadas fazerem oferendas. Em
gestos precisos, eles jogam pedaços de carne e grãos de milho nos braseiros. Em
seguida, erguem vasos de chicha diante dos Corpos Secos, como se os convidassem
a beber.
Sem olhar para Inguill, sem poder esconder a ironia, pergunta:
- Muito bem, já que parece ter pensado sobre tudo isso, talvez tenha uma solução
melhor...
- Sim! Não fique zangada comigo, Anamaya. Só quero ajudá-la, a você e a Manco.
- E como pretende conseguir isso?
A jovem se crispa antes de dizer de um fôlego só: - Os estrangeiros podem
escolher a mim.
- A você? Inguill! Não diga bobagens. Você não é a Coya, que eu saiba! - Não,
mas eles não sabem! E todo mundo diz que pareço muito com Guri Ocllo...
Pasma, Anamaya observa por alguns segundos o rosto doce e inocente de Inguill,
suas maçãs salientes, sua boca pequena mas delicadamente delineada, seu nariz um
pouco adunco... É verdade que ela se parece com a esposa de Manco. Todavia,
Anamaya recusa com um gesto de cabeça, comovida: - Não, Inguill, é loucura. Você
não sabe o que diz. Anamaya, me escute! Você sabe que amo Manco mais do que
tudo.
Tanto quanto você ama o seu estrangeiro. Eu devo tudo a ele, a começar pela
vida, lembra-se! E hoje, embora ele não tenha me querido na cama dele, vou-lhe
mostrar meu amor...
- Tornando-se a esposa de um estrangeiro?
- Evitando que ele faça uma guerra que não pode ganhar. Abalada, Anamaya olha
perplexa para sua amiga. - Mas você compreende o que isso significa para você?
- Pensei bem sobre isso - garante Inguill com um sorriso pálido.
Por isso lhe perguntava há pouco como os estrangeiros amavam. Serei a mulher
do mais velho, o que se chama Juan. Observei-o bem: acho que ele não tem a
crueldade do irmão.
Anamaya balança a cabeça incrédula. Lágrimas nos olhos, Inguill ri e acrescenta:
- E depois, assim serei rainha por um momento! Ajude-me, Coya Camaquen! Leve-
me até Manco para que eu lhe explique meu plano.
***
***
***
- É preciso parƟr esta noite, Único Senhor - diz Anamaya tão logo os guardas e as
servas se retiram. - É preciso ir para longe de Cuzco.
- Você não deveria ter-me impedido de matá-lo há pouco - reclama Manco sem ouvi-
la.
- Amanhã, o irmão dele viria matá-lo também. Você deve manter seu ódio na
coleira, como uma fera, e não deixá-lo explodir...
Como se não conseguisse extravasar toda a violência conƟda, Manco dá um grito
e, com os punhos cerrados, golpeia a noite onde finalmente já não chove mais.
- Você devia ter-me deixado matá-lo! Ele a desonrou e você o poupa? Onde está
seu orgulho, Coya Camaquen?
Anamaya o enfrenta, o olhar seco e frio:
- Matá-lo significa guerra. A parƟr de amanhã! Você não está em estado de fazer
guerra aos estrangeiros, Único Senhor. Para isso é preciso primeiro sair de Cuzco,
depois reunir nossas forças. Sabe que não temos ainda guerreiros suficientes! Os
estrangeiros conƟnuam sendo mais fortes que nós...
Manco perscruta seu rosto com atenção.
- Acha que chegou a hora da guerra?
- A hora de prepará-la chegou. Temos que parƟr esta noite. Você não pode
conƟnuar neste palácio.
Por um instante, Manco a observa, como se de repente considerasse todo o
senƟdo das palavras de Anamaya.
- Preparar a guerra... Mas como? Villa Orna e meu irmão Paullu estão a caminho
para a província do Sul com Almagro. Dividimos nossas forças para obrigar os
estrangeiros a se dividirem também, já que não são mais amigos. Hoje, Villa Oma e
Paullu devem estar no mínimo a duas luas de Cuzco. Não me restam cinco mil
soldados nas montanhas do vale sagrado. Se fujo de Cuzco sem poder tomar a frente
de um exército de verdade, o Império das Quatro Direções não terá mais esperança.
Quem acreditará suficientemente em minha força para querer se unir a mim?
- Se você for acorrentado, se for feito prisioneiro dos estrangeiros, correrão
lágrimas em seu reino, mas não haverá revolta, Único Senhor. Ficaremos sozinhos e
sem mãos para nos conduzir. Se você for para nossas montanhas, seus ancestrais vão
ajudá-lo. A maioria dos chaskis conƟnua fiel a você. A uma palavra sua, eles
mobilizarão todas as províncias. Formaremos ali o exército de que precisa. Villa
Orna e Paullu aguardam seu chamado e voltarão com milhares de homens. Todos
hão de ajudá-lo, pois se orgulharão de você.
- Foi meu pai quem lhe disse isso?
Há uma ponta de ironia na voz de Manco que faz Anamaya estremecer. Mas ela
não desvia o olhar.
- Manco - sussurra -, você sabe que há muito tempo seu pai Huayna Capac não me
chama mais para junto dele. Sou como você: não há dia ou noite em que eu não
deseje ouvir sua voz. Esta noite, tive um sonho e achei... achei que ele ia me
chamar.
Ela se interrompe um instante, as lágrimas turvando seus olhos. As imagens da
violência de Gonzalo passam em sua mente, sujando seu corpo enquanto ali se
mistura a lembrança de Gabriel.
Ela sente o peso da atenção de Manco e prossegue com ênfase:
- Confie em mim, Manco. Conheço o espírito dos estrangeiros. O que acaba de
acontecer mostra que nada mais vai detê-los agora. O irmão do Governador lhe
disse: ele fará tudo para humilhá-lo. É preciso fugir agora. Esta noite, sem perder
tempo. Antes que seja tarde demais para que possa reunir em volta de você o povo
dos Filhos do Sol. Por favor, Manco, ouça-me! Eu sinto, a aurora que vem está cheia
de ameaças.
Manco hesita ainda. Com as pontas dos dedos, toca no añaco rasgado que
Anamaya conserva por baixo da capa, toca seu rosto marcado pelas unhas do
espanhol. Finalmente, balança a cabeça resignado:
- Sim, confio em você, Coya Camaquen. Mande avisar quem deve ser avisado.
Deixaremos Cuzco pela escada secreta da Torre do Sol...
***
No alto das montanhas do leste, a aurora já clareou o céu quando eles saem afinal
do interminável labirinto secreto que liga os terraços de Colcampata à alta Torre do
Sol de Sacsayhuaman. No escuro, as enormes muralhas da fortaleza que domina
Cuzco desenham a cabeça de um monstro adormecido.
Eles são apenas 30. Manco só quis algumas esposas e alguns servos, cinco ou
seis dos Poderosos Senhores de sua corte. Todos os outros têm ordem de
permanecer na cancha real e de se ocupar normalmente com as tarefas para que os
estrangeiros só percebam a fuga deles o mais tarde possível.
Com a respiração ruidosa e o peito dolorido pelo esforço da subida, os fugiƟvos
espalham-se pelo terraço na base da Torre. A testa molhada do esforço, as coxas
contraídas pela subida rápida da escadaria, Anamaya vê o Anão saltar com uma
agilidade surpreendente nas muretas que levam a um terraço de vigilância. Seu
pequeno vulto pára um instante, como engolido pela escuridão.
Quando ele volta, ela ouve o barulho das liteiras que os carregadores depõem.
- Está tudo bem - anuncia o Anão com uma risadinha. - Nenhum
barulho! Os estrangeiros sonham com ouro. Sobretudo, não vamos acordá-los. Sua
risada se interrompe ao ver o rosto de Anamaya. - Alguma coisa errada? - pergunta
segurando-lhe a mão. - Sim... a subida deixou-me sem fôlego...
Na verdade, de quando em quando lhe vêm as imagens de seu sonho com Gabriel
e a horrível visão de Gonzalo rasgando suas roupas, excitando-se em cima dela
como se ela fosse um bicho. Ela já vomitou duas vezes, e sua fraqueza só fez
aumentar na subida até Sacsayhuaman.
- Venha - diz o Anão levando-a para as liteiras. - Pelo menos, você vai descansar
um pouco. E precisa comer alguma coisa. Peguei isso para você antes de partir.
Quando ela se instala em sua liteira, o Anão Ɵra da pequena bolsa de tapeçaria
que carrega a tiracolo uma espiga de milho novo assado no fogo e uma goiaba.
Anamaya sorri, comovida. Pega a fruta e o milho acariciando as mãos do Anão,
mas deixa os alimentos de lado.
- Não poderei comer nada agora! Mas daqui a pouco...
A alguns passos deles, a voz clara de Manco se faz ouvir e os surpreende: -
Coma insiste Manco. - O Anão tem razão: você tem que comer e recuperar as
forças. O dia será longo e precisarei de você.
Ela faz um esforço para sorrir, mas sente-se exausta e enjoada. Está ali para dar
apoio como sempre - quando Manco precisa dela. Mas quem lhe dá apoio quando
ela precisa?
A solidão, a antiga e terrível solidão, a invade como uma sombra fria.
Quase sem ruído, eles contornam pelo leste a cidade adormecida. Com o passo
rápido, mas sem correr, seu cortejo passa ao longo dos muros de algumas canchas de
Senhores antes de entrar nas ruelas do bairro dos ourives. Alguns fornos ainda ardem
nos páƟos diante das casas de barro. Depois, eles atravessam na parte da cidade
próxima à planície e onde se alojam os que não são naturais de Cuzco. As casas são
mais espaçadas, cercadas de jardins cuidados, mas sem muros para protegê-los. As
vezes, aparece uma mulher ou um homem, braços carregados de lenha. Eles param,
olham com espanto a estranha coluna se afastar na escuridão do fim da noite.
Depois de passar pelos grandes armazéns da cidade, encontram o caminho real
bem calçado que vai para o sul. Durante quase uma hora, até o céu tornar-se leitoso
acima deles, não se ouve uma palavra, somente o arrastar das sandálias nas lajes e a
algazarra dos pássaros despertando.
Anamaya fez um lugar a seu lado para o Anão a fim de que ele não se esgotasse
correndo. Ela, que passou meses praƟcamente sem sair da cancha, fica surpresa de
encontrar os campos tão ricos e as montanhas tão lindas. A chuva da noite realça os
verdes dos campos no dia que está nascendo. Trabalhadas em terraços que se
superpõem numa exposição cinƟlante, parece que as encostas das montanhas estão
cobertas por uma espécie de unku gigantesco com moƟvos tão bem combinados
quanto um tecido cerimonial. Em direção aos cumes e nas reentrâncias dos vales,
deslizam e se misturam bancos de névoa, leves e cambiantes. SenƟr à sua volta essa
beleza da Terra mãe alivia-a um pouco do peso que lhe oprime o peito. Ela fica
esperando que este seja o sinal que os Ancestrais lhes enviam, felizes de vê-los
afastar-se da cidade desonrada pelos estrangeiros como ela mesma quase foi.
Sua esperança dura pouco.
Quando o primeiro raio de sol bate nos cumes, um soldado sobe o cortejo
correndo até a altura das liteiras, revirando os olhos apavorados: - Único Senhor!
Único Senhor!
Manco afasta a cortina e ordena que o rapaz fale.
- Único Senhor, um chaski acaba de nos alcançar. Os estrangeiros já
viram que seu palácio está vazio. Sabem que você não está mais em sua cancha.
Eles destruíram tudo ali...
- Então já estão no nosso encalço! - conclui o Anão com um olhar para Anamaya.
- Com aqueles cavalos, eles vão nos alcançar! - geme um velho Senhor apalpando
seus brincos de madeira dourada como se já senƟsse alguém os arrancando. - Que
Viracocha nos ajude!
- Não é hora de gemer! - corta Manco.
Em poucas palavras, ele dá ordem aos Senhores, às mulheres e aos servos de
prosseguir na estrada real em direção ao sul.
- É inúƟl se apressarem. Se eles os alcançarem, digam que eu lhes pedi para
encontrarem meu irmão Paullu e seu amigo Almagro... Vou desaparecer nos vales do
leste. A Coya Camaquen vem comigo.
- Eu também, por favor, Único Senhor! - exclama o Anão prosternando-se.
- Deixe-o vir - insiste Anamaya vendo Manco contrair o rosto. - Sabe que ele
morrerá por você se for preciso.
- E, melhor ainda - murmura o Anão -, vou teimar em ficar vivo para que você
possa viver livre!
Encolhendo os ombros, Manco concorda, de. Dois dá ordem aos carregadores de
tornar a parƟr. Com uma resistência impressionante, eles correm, apesar da carga.
Quando saem da estrada real, os caminhos de terra são cheios de poças e
escorregadios, mas seus pés parecem ter garras. Levam pouco tempo para chegar
aos limites do vale na aurora cada vê mais luminosa. De repente, um dos
carregadores grita e esƟca um braço. O Anão, que há algum tempo perscruta o
horizonte, exclama na mesma hora:
- Ei-los!
Por cima do cinza esverdeado dos campos de quinoa, Anamaya e Manco avistam
a tropa dos estrangeiros. Parecem insetos gigantes cujas carcaças negras deslizam
com uma velocidade sobrenatural rente à vegetação. Graças a seus cavalos, eles não
vão apenas depressa: vêem longe na planície.
- Estão na estrada real - observa Manco com esperança. - Estão correndo atrás das
mulheres, não vão nos ver.
Anamaya balança a cabeça:
- Acho que vão. As liteiras são muito visíveis nos campos.
- Ela tem razão, Único Senhor - concorda o Anão sem se constranger com a
etiqueta. - Se os vemos, isso significa que eles podem nos ver!
Por um instante, crispados com a própria impotência, eles vêem o bando de
espanhóis galopar. Berros ecoam pela planície como ganidos de animais na caçada.
Mas, de repente, o Anão bate palmas e pula no chão.
- Único Senhor, há pântanos ali - exclama indicando uma pequena mata no limite
da planície e dos terraços. - Os estrangeiros têm medo desses lugares, pois não são
bons para os cavalos deles. Que os carregadores prossigam pela picada da
montanha, enquanto nós nos escondemos!
Manco aquiesce.
O Anão estava certo. A alguns passos dos primeiros terraços que esculpem a
montanha,
a mata delimita um pântano ao comprido, coberto de juncos.
Com uma rapidez impressionante, o Anão quebrou os juncos, misturando-os a
outros, secos ou podres. Ali há paus secos e lama para fazer um grande murundu
que parecia lá estar há várias estações. Mas, quando convidou Manco a se esconder
dentro daquilo, este assobiou entre os dentes com desprezo.
- Acha que sou um porquinho-da-índia?
- Único Senhor...
- Não! - gritou Manco com raiva. - Não há hipótese de o Filho do Sol se esconder
embaixo desse monte de galhos podres! O que meu pai diria de mim?
- Manco, é só para escapar dos estrangeiros por algum tempo! - tentou convence-lo
Anamaya com doçura.
Manco encarou-a furioso:
- Coya Camaquen! Quer que eu comece minha guerra contra os estrangeiros
escondendo-me como um covarde? Quer que Illapa e InƟ me vejam encolhido como
uma criança embaixo desse monte malcheiroso? Quer que o irmão do Governador
tenha razão quando me chamou de covarde?
- Quero que não o peguem - respondeu Anamaya.
Em vão. Manco virou-se, declarando com orgulho:
- Meu pai e Viracocha é que decidirão, e eu ficarei em pé enquanto eles não
Ɵverem tomado a decisão!
E foi se esconder mais ou menos no meio das canas de junco, os pés dentro d'água.
Anamaya não encontra as palavras para lhe explicar que não é a Gonzalo que ele
se dirige então, que sua vergonha pode ser resgatada pela astúcia e não por palavras
de arrogância inútil.
Já estão há um bom tempo assim, Anamaya e o Anão junƟnhos embaixo do
monte de galhos, e Manco esperando no meio dos juncos que não o escondem bem.
Mas a umidade fria os deixou gelados. Anamaya precisa cerrar os punhos para não
tremer.
Então ela diz a si mesma que, enfim, eles conseguiram. Os gritos e os chamados
dos estrangeiros estão longe e quase já não se ouvem. Depois, de repente, os dedos
curtos do Anão apertam seu ombro.
O que ela percebe primeiro é o barulho dos cascos batendo na terra. Depois,
ouvem-se chamados. Suficientemente próximos para que ela consiga entender o
sentido:
- Lá, Beltran! Vá dar uma espiada no mato... - Eles estão vindo para cá.
O Anão só, responde com outro aperto em seu ombro.
Através do emaranhado de galhos, ela vê dois cavaleiros surgirem lado a lado.
Eles fazem seus animais andarem mais devagar, olham para todos os lados. A passo,
avançam em direção ao monte de paus. Um deles abaixa-se no cavalo para melhor
explorar o murundu. Anamaya fecha os olhos. Mas ouve as baƟdas dos cascos
afastando-se de seu esconderijo. Os estrangeiros não viram nada e prosseguem pelo
pântano.
Então, se ouvem gritos mais ao longe, na direção da montanha.
- Ah! Pelos pêlos negros do grande lhama! - exclama o Anão. - Eles alcançaram os
carregadores... Vão encontrar as liteiras vazias!
Novamente, ecoam gritos. Olhos grudados nos juncos onde Manco se esconde,
eles ouvem os cavalos patearem dentro d'água enquanto um espanhol grita:
- Ah! Dom Pedro! Grego! Vocês o encontraram?
Como não há resposta, eles retornam, passando junto do murundu outra vez. É
então que um estrangeiro enorme surge do outro lado do pântano.
Espumando, seu cavalo espalha água para todos os lados.
- Achamos as liteiras - anuncia. - Ele não deve estar muito longe. Na hora que
Anamaya reconhece-o como um dos raros amigos de Gabriel, o homem puxa a rédea
de seu cavalo que empina.
- Ei! Aqui! Ele está aqui, meus amigos!
- Não! - murmura Anamaya - Não!
- Shh... Não fale nada! - sussurra o Anão.
Os cavalos pisoteiam a lama, os juncos se envergam e quebram. Manco, digno e
empertigado, aparece com as panturrilhas pretas de lama como se estivesse usando
botas à espanhola.
- Não se mexa - implora ainda o Anão agarrado ao braço de Anamaya, que ouve o
estrangeiro alto dar suas ordens.
- Beltran! Vá avisar a dom Gonzalo que o encontramos. E mande trazer aqui a
liteira do Sapa Inca.
Por alguns instantes, Anamaya julga ver através dos galhos o olhar de Manco
procurando o seu. Não consegue mais respirar e, não fora a presença
do Anão, já teria se levantado.
Mas Manco vira para o outro lado, a expressão tão indiferente como se esƟvesse
saindo do banho. Os carregadores chegam correndo; o Grego, com um sorriso e
sinais de respeito, convida-o a subir. Manco, afastando sua capa, instala-se ali.
- Tenho que ir com ele - sussurra Anamaya. - Está maluca?
- Não podemos deixá-lo sozinho!
- E o que vai poder fazer quando os estrangeiros Ɵverem você com eles? - Tenho
que ir...
A mãozinha do Anão tapa sua boca:
- Cale a boca, eu lhe imploro! Esqueceu o que aconteceu esta noite?
O que acha que o espanhol vai fazer com você, agora?
Na mesma hora, como se o pensamento do Anão o Ɵvesse feito surgir de um
pesadelo, Gonzalo aparece perto do pântano, ao lado de três cavaleiros galopando
alucinadamente como ele. Vai até bem perto da liteira, tão perto que um dos cascos
de seu cavalo bate na coxa de um carregador que cai gemendo.
Puxando secamente as rédeas de sua montaria, o irmão do Governador o faz dar
uma volta na água estagnada, inundando tudo à sua volta. Uma faixa púrpura lhe
cinge a cabeça, escondendo o olho ferido.
- Prazer em vê-lo, meu grande Rei, meu único Sapa Inca molhado.
Sua voz está calma e sibila com uma ironia má. Voltando para junto da liteira,
abaixando-se bruscamente na sela, ele pega Manco pelos cabelos, puxando-o do
assento.
- Manco - sussurra Anamaya.
- Cale a boca! Cale a boca e não olhe - repreende o Anão.
- Dom Gonzalo - insurge-se Candia -, não pode tratá-lo assim... Sem lhe dar a
menor atenção, obrigando seu cavalo a andar de lado,
Gonzalo arrasta Manco para fora da liteira.
- Dom Gonzalo!
- Grego, vá ver se a sua mãe não está precisando que você lhe limpe o rabo! -
berra Gonzalo, largando Manco, que cai de joelhos. - Mandem trazer as correntes
para botar a ferros esse rei dos macacos!
Anamaya não olha mais. Não consegue mais olhar e se espanta que seu coração
ainda esteja batendo. Ouve o Ɵnido das correntes, os gritos e os insultos, e tudo nela
adquire peso de pedra. Aconchegado a ela, o Anão arfa como se fosse sufocar.
- O Poderosos do Outro Mundo, ó Viracocha! Por que nos abandonam? Por quê?
- Cale a boca - sussurra o Anão -, cale a boca, por favor. Enquanto os espanhóis
se afastam com Manco prisioneiro, eles deixam o silêncio cair novamente.
Quando não há mais nenhum ruído além da brisa e o marulho da água, o Anão
abraça-a com uma força insuspeitada.
- Agora, só tem você, princesa. Então, não se deixe pegar por eles, está
entendendo? Nunca.
Capítulo 33
Tupiza Grande Salar, novembro, dezembro de 1535
***
De um galope só, a boca ainda amarga, Gabriel sobe a coluna até as liteiras dos
grandes Senhores Incas. Sob a autoridade do sábio Villa Orna e de Paullu, o irmão
preferido do Sapa Inca Manco, eles acompanham a coluna e, supostamente, até
podem conduzi-la.
Ali, não há mais correntes nem caras moribundas. Alguns guardas, com túnicas
tão impecáveis como se esƟvessem na praça de Cuzco, tentam lhe barrar a
passagem com suas lanças. Ouve-se uma ordem. Os guardas se transformam em
escolta até a liteira de Villa Oma. A corƟna é afastada, como a da liteira vizinha.
Gabriel reconhece ali a cara fina e matreira de Paullu.
Os dois senhores Incas o observam com um espanto comedido. Acalmando o
impulso e dominando a voz, Gabriel tem o cuidado de saudá-los antes de dizer:
- Sábio Villa Oma, em nome do Governador dom Francisco Pizarro, venho lhe
pedir que ponha fim aos sofrimentos impostos à gente de seu povo nessa coluna! É
impossível conƟnuar assim até o Sul. Esses homens de seu povo morrerão antes de
chegar! Posso lhes garanƟr que dom Francisco, se esƟvesse aqui, jamais autorizaria
tamanho horror! Tudo isso acontece contra a vontade e as ordens dele.
O olhar do jovem Paullu brilha fugazmente e desvia-se. O do Sábio fica parado.
Ele somente passa a bola de coca para o outro lado da boca. Mas não dá nenhuma
resposta.
- Vocês sabem do que estou falando - insiste Gabriel. - Devem intervir junto a dom
Diego! Exijam que os carregadores não sejam mais acorrentados. Peçam que as
mulheres e as crianças possam deixar a coluna! Em nome do Único Senhor Manco...
As pupilas escuras do sábio pesam tanto sobre ele que Gabriel se cala. A sua
volta, só há silêncio.
Aflito, batendo os cascos, o cavalo bufa. Gabriel é obrigado a faze-lo
girar sobre si mesmo antes de recomeçar com um tremor na voz:
- Sábio Villa Oma! Sei quem você é e você me conhece. Eu estava em Cuzco
quando o Único Senhor Manco pôs a mascapaicha na testa. Sei que ele
o escolheu como o segundo Poderoso do Império das Quatro Direções! E eu...
Eu sou amigo da Coya Camaquen. Peço que me ouça: não é desejo do
Governador Pizarro que o seu povo seja tão maltratado! E vocês... Ah! Senhor
Paullu, sábio Villa Oma, como podem aceitar isso?
Apesar da raiva e da frustração, Gabriel sente que o silêncio cala fundo sob suas
palavras. Todas as caras estão viradas para ele, indecifráveis. Os olhos atentos dos
nobres, dos carregadores e dos guardas brilham. Mas a resposta é só silêncio.
Depois, de repente, enquanto o silêncio ainda conƟnua, o Sábio cospe um sumo
de coca, verde e espesso, entre os cascos do cavalo. Estalando a
língua, dá ordem de prosseguir aos carregadores e abaixa a cortina da liteira.
***
A noite se aproxima, e faz frio. Anamaya estende as mãos para o fogo que o Anão
acendeu. No pote de barro, a sopa aquece lentamente. O perfume acre das cebolas
silvestres e dos tomates mistura-se ao ar úmido.
FurƟvamente, Anamaya olha para seu fiel amigo. Quando ele chegou à cidade
ainda há pouco, enregelado depois de dois dias caminhando debaixo de chuva, ela
quase não o reconheceu. Seu rosto ainda conƟnua deformado por uma dor que
parece lhe devastar as entranhas.
No alto, no crepúsculo, os muros vermelhos das canchas de Huchuy Qosgo
parecem se iluminar nos verdes ardentes dos campos de milho e batata que cobrem o
platô até sua caída verƟginosa para o vale. Em época normal, Anamaya gosta da
regularidade tranqüila dessa cidade suspensa entre o céu e a terra. Mas, desde de
manhã, parece que Pacha Mama, a Terra mãe bemamada, sofre do mesmo mal que o
Anão.
Ao amanhecer, uma tempestade terrível fez estremecer todo o Vale das Cidades
Reais.
Enquanto havia apenas uma bruma encobrindo o céu, volutas negras e cinzentas
se concentraram no limite do platô, até as bordas dos campos. Em pouco tempo, o
vale inteiro transformou-se num caldeirão, deixando escapar um vapor vindo do
Mundo de Baixo. Os terraços de milho e quinoa, superpostos como asas de
borboletas nas margens do Willkamayo, desapareceram, depois as encostas mais
íngremes e, finalmente, o caminho quase a prumo para Huchuy Qosgo.
E, de repente, uma onda de prata líquida espalha-se pela nuvem baça. Todos
ouviram o rugido de Illapa, embora o ronco da trovoada viesse do coração do vale e
não do céu, como de hábito.
Houve murmúrios entre os camponeses. As mulheres mandaram as crianças
voltarem para dentro de casa. Os Poderosos e os sacerdotes de Huchuy Qosgo
aproximaram-se dos muros que margeiam o limite extremo do platô. Todos pensaram
a mesma coisa: de repente, viam o mundo pelo avesso!
A luz de InƟ, filtrada pela bruma, banhava os campos e ruelas de Huchuy Qosgo.
Do outro lado do Vale das Cidades Reais, iluminava as grandes montanhas do leste.
Mas, entre as duas, essa mãe das nuvens, nascida de modo tão prodigioso, não
parava de ferver, atravessada de um lado ao outro por ondas de luz prateada.
Depois, isso parou. As nuvens levantaram-se molemente, enrolando-se umas nas
outras em volutas que logo se rasgavam. Uma bruma morna invadiu os campos.
Misturado à garoa, o nevoeiro laqueou os muros de barro das canchas. O céu
escureceu. Choveu sem cessar até o meio da tarde.
Foi então que chegou o Anão, imundo e esgotado depois de um dia inteiro de
caminhada pelas estradas ruins da montanha.
Agora não há uma nuvem no céu. Só o rosto do Anão está atormentado. A própria
Anamaya pega a tigela de terracota e a enche de sopa fumegante.
- Coma - ordena com doçura. - Coma, você está tremendo de frio e de fome.
Depois me contará.
Maquinalmente, o Anão estende as mãos com dedos de criança para segurar a
Ɵgela. Por um breve instante, olha para a sopa avermelhada e cheirosa. Depois,
balança a cabeça e levanta as pálpebras grossas.
- Não - diz. - Não posso comer. Primeiro preciso lhe contar...
Mas ele se interrompe. Seus olhos brilhantes de febre procuram Anamaya. Ela
estende a mão. Com as pontas leves dos dedos, ela toca na têmpora do Anão. Ele
pousa a Ɵgela numa pedra ao lado do fogo e pega a mão dela, encostando-a na testa
como se pudesse encontrar ali a força que lhe falta.
- Primeiro - murmura -, arrastaram-no através de toda a cidade baixa. Ele, o Único
Senhor Manco, foi obrigado a passar diante do Coricancha com correntes no
pescoço. Depois, durante três dias, ficou no alto da praça de Colcampata, o ferro
dos estrangeiros em volta do pescoço e dos tornozelos...
O Anão já se cala, como se as palavras que lhe saíssem da boca o envenenassem
um pouco mais a cada frase. Empurra a mão de Anamaya e se encolhe:
- Ali... Sim, eles deixaram nosso Único Senhor ali. Acorrentado, o unku sujo e
rasgado. Ó, Anamaya, ele passou três dias com a mesma túnica!
Ele, o filho de InƟ, se apresentou assim diante dos Corpos Secos de nossos
ancestrais, diante dos olhos dos habitantes de Cuzco! De manhã à noite, os
estrangeiros vinham rir dele.
De novo, o Anão se cala. Anamaya não ousa mais olhar para ele. Fixa os olhos
nas montanhas distantes. Os picos de neve se elevam na escuridão da noite, ela julga
senƟr seu gelo por todo o corpo.
- Quando o Ɵraram de Colcampata, toda a cidade do Puma gemeu - prossegue o
Anão. Ele foi levado para a casa do demônio estrangeiro que quis violentá-la. As
servas gritaram de espanto vendo como o tratavam. Algumas fugiram, outras usaram
as armas dos estrangeiros para se degolar ou se abrir o peito. As concubinas vieram
implorar que tratassem melhor o Único Senhor. Em resposta, os estrangeiros
tornaram a rir. Prenderam as concubinas num páƟo, levaram para lá Manco todo
acorrentado e, na frente dele, despiram as mulheres. Na frente do Único Senhor,
durante toda a noite, forçaram e violentaram as mulheres. No dia seguinte, muitas
estavam mortas: o coração delas se esvaía por entre as pernas.
O Anão está ofegante. Treme tanto que precisa se apoiar na esteira para não
perder o equilíbrio. Não ousa olhar para Anamaya. Ela está tão imóvel que parece
que vai quebrar ao primeiro movimento.
De repente, com um grito igual a um soluço, o punho do Anão derruba a Ɵgela de
sopa que se quebra. Com um chiado, o fogo apaga.
- Meteram-no dentro de um buraco e, em 12, foram urinar em cima dele! - sussurra
o Anão.
- Chega! - ordena Anamaya já de pé.
Parece que seu rosto acaba de ser talhado num bloco de calcário.
Até aquele momento, a guerra foi como um estrondo distante, o espetáculo
sempre estrangeiro de milhares de guerreiros se enfrentando.
Agora, a guerra está dentro dela.
***
***
A aurora já não está muito longe quando ela decide sair do templo. As tochas se
apagaram ali, mas ninguém ousou vir tornar a acende-las.
A noite conƟnua fechada e opaca; no entanto, na hora de sair, Anamaya precisa
piscar bruscamente para não se ofuscar com a luz.
Isso se passa muito rapidamente.
Parece que o platô, o Vale das Cidades Reais e as montanhas do leste, de repente
foram inundados por um sol inclemente. Que tudo fica liso e poeirento como uma
infinita planície de sal branco. Parece que o universo inteiro, de repente, virou um
deserto! Que a terra é apenas uma pele morta e gretada. Não há mais sombra, nem
planta nem árvore, não há mais sopro de vida. Não há sequer um inseto.
Anamaya sente apenas seus joelhos se dobrarem. Percebe a mão pequena mas
sólida do anão que vem acudi-la. Não ouve os murmúrios quando desaba. Só vê
como será o mundo dos humanos quando estiver morto para sempre.
E é então que vê Gabriel.
Ela o vê, moreno de pele e com as roupas esfarrapadas. Ele está longe, na
planície infinita, depois preơssimo, tão perto que ela sente sua respiração rouca e vê
suas faces rachadas como um couro velho, seus lábios inchados e gretados. Vê suas
pupilas comidas pela brancura do mundo morto. O suor escorreu em seus cílios, o
sol transformou-o em minúsculos cristais de sal. Ela vê suas mãos com os dedos
cheios de sangue coagulado. E ele arfa como um homem nos estertores. Como um
homem que já não leva a sombra junto de si. Tem o olhar perdido da inconsciência.
µ
No imenso deserto em que se transformou o mundo, cada um de seus passos
levanta uma poeira minúscula que apaga seu rastro. E depois, de repente, ele vacila
e cai.
Ela grita.
Compreende ao mesmo tempo que Gabriel está morrendo e que os poderosos do
Outro Mundo a ouviram.
Capítulo 35
Deserto do Grande Salar, dezembro de 1535
***
Uma hora depois, a água desapareceu. Deu lugar a um mar tão parado como se o
mundo não fizesse um único movimento. É seco e range, rachado em milhares de
blocos duros como pedra que se estendem a perder de vista.
A bruma também evaporou, subsƟtuída por um céu cujo azul profundo reaviva a
preocupação de Gabriel. E seus passos escandem as sílabas bem amadas ao ritmo
dos cascos do cavalo.
As sombras das montanhas reƟraram-se há muito. O ar está parado. O índio se
desloca sem olhar para os lados. Durante muito tempo, eles passam por uma ilha
rochosa, à esquerda, eriçada de cactos tão gigantescos que por um instante Gabriel
julga ver neles uma tropa de guerreiros vindos do outro mundo. Depois, de um lado
e do outro do mar branco, as encostas das montanhas se afastam. Fogem e flutuam
no horizonte, trêmulas e diluídas pela névoa de calor.
Antes de chegar ao zênite, o sol virou uma lâmina incandescente. No queixo, nas
faces, embaixo da barba que ele não raspa há dias, em toda parte onde a pele não
está protegida pela atadura, Gabriel sente a queimadura da reverberação que fica
violenta como queimadura de fogo. A tentação de pegar um pouco d'água numa das
bilhas é grande. Mas ele consegue afastá-la todas as vezes.
E, de repente, sem avisar, o índio estaca. Tão de repente que Gabriel tem que
desviar para o cavalo não bater nele.
Sem uma palavra, o homem gira sobre si mesmo, lentamente, como se verificasse
todos os pontos do horizonte. Afinal, olha para Gabriel. Levanta um pouco o gorro e
balança a cabeça.
- O que há? - pergunta Gabriel, a boca pastosa. - Não estamos na direção certa?
O homem aponta para o céu:
- Lloc! Sol demais.
- Como assim, sol demais? - exclama Gabriel, aumentando a fenda da atadura.
- Não tem nuvens suficientes. O sol vai nos comer.
Gabriel ainda não parece compreender, enquanto as mãos negras d homem
mostram toda a extensão do deserto e depois o céu de um azul impecável.
- Hoje e amanhã e amanhã ainda - diz -, haverá sol demais. Na vamos atravessar o
deserto. O sol vai nos comer. Ainda podemos voltar par a montanha antes que
anoiteça.
- Não! - resmunga Gabriel. - De jeito nenhum! Não posso voltar
O índio dá dois passos para trás e ergue os ombros.
- Seu animal também vai morrer - diz baixinho. - Se não houve nuvens, ninguém
pode atravessar o mar de sal.
- Você tem medo, só isso! Eu vou atravessar.
O homem observa-o um instante.
- As vezes, é preciso ter medo - murmura.
Abaixa o gorro sobre os olhos e acrescenta:
- Amanhã, se InƟ quiser, ele lhe mostrará uma montanha como duas mãos unidas
pelos dedos. Ela se chama Apu Thunupa. AnƟgamente, antes d ser montanha, era
um homem humano, feito como os Poderosos Senhores de Cuzco. É ele que indica o
fim do mar de sal. Mas é preciso ainda ter olho para ver a montanha.
Tão de repente quanto parou, sem uma saudação, ele prossegue. Dessa vez,
dirige-se para as montanhas do leste, mais próximas.
Gabriel hesita. Sabe que o índio tem razão. Sabe que, sozinho, será ainda mais
diİcil para ele atravessar o mar de sal. Mas repete para si mesmo sua única verdade:
para que estar vivo se ela não estiver mais?
A sombra do homem que parte é muito curta. Gabriel se pergunta com ele pode
caminhar assim descalço nessa crosta de sal quando seus próprios pé já parecem
ferver dentro das botas.
Depois que o índio caminhou l00 passos sem se virar, Gabriel afagou suavemente
o pescoço do cavalo e murmura:
- Venha, meu lindo, venha. Sairemos desta sozinhos!
Mas não se dá tempo de perguntar a si mesmo se acredita nisso.
***
***
Mais uma noite passou. Agora, ele já não sabe há quanto tempo es caminhando.
O sangue do cavalo o cobre todo, coagulado como uma crosta que preserva do
sol. Pois o sol está de volta, e quer devorá-lo. Gabriel sabe q chegou a hora.
Seus lábios estão tão secos e tão inchados que ele nem sempre consegue respirar.
Pensa que se Anamaya o encontrasse agora desviaria a vista para não vê-lo.
Mas ele caminha, e não tem mais dor nas pernas. Caminha como se seu corpo
Ɵvesse apenas essa função. Suas mãos pendem, inchadas como balões ardendo
como se ele as tivesse posto num forno.
De quando em quando, ergue uma pálpebra e afasta a faixa com o punho. Então,
julga ver o pico recortado do Thunupa, a montanha que foi um homem humano! Mas
sabe que não vai aƟngi-la. O couro de suas botas se abriu contra as lâminas de sal e
seus pés vão ficando como os do índio que soube não acompanhá-lo na estrada para
a morte.
"Você é mais louco que eu", repete ele de vez em quando, já sem saber do que
fala.
Então, coloca o rosto e o corpo de Anamaya à sua frente e caminha.
Olha para ela sorrindo e ela sorri também para ele. Ele lhe diz:
- Não posso encontrá-la agora, mas vou esperá-la o tempo que for necessário.
Nunca se esqueça que a amo.
Ela balança a cabeça e lhe responde que vai bem, que ele não precisa se preocupar.
Diz:
- Não se esqueça que você é o Puma!
Ele ri, e de repente a vê na relva bem verde do monte Thunupa. Agora ela está
longe, e ele não vê direito seus olhos enquanto ela lhe estende os braços na frente de
uma pequena casa de barro ocre. Ela ainda grita para ele:
- Não se esqueça que você é o Puma e que pode sempre se libertar!
Ele diz a si mesmo que está louco e que deveria fazer uma oração para que Deus
os salve, a ela como a ele. Que ainda tem tempo para fazer uma prece e não deixar
Deus zangado!
Mas torna a ouvir o grito de Anamaya chamando-o, agora muito mais perto, como
se ela só estivesse a 50 passos dele. Não quer acreditar nisso, mas acredita.
Seu coração começa a bater devagar, como se ele esƟvesse em paz. Então, cessa
enfim sua marcha tão longa e tão inútil. Com suas mãos de monstro, ele levanta a
faixa dos olhos.
Como pressenƟa, não está num campo nas encostas do Thunupa, mas no Mundo
branco e infinito. Com espanto, avista todavia, ao longe, no calor fluido, um longo
cortejo de vultos negros que parece vir ao seu encontro. Vultos que dançam, cantam
e rodopiam.
Ele sorri e compreende. São anjos.
Sente enfim em seu rosto o sopro do beijo de Anamaya e, quando cai, sabe que
ela estará no paraíso para onde ele vai.
Capítulo 36
Huchuy Qosgo, fevereiro de 1536
O Viracocha, O Inti,
Pais poderosos do Universo,
Pais amados do devir,
Ouvi nosso apelo!
Ó Viracocha,
No céu abaixo, podes estar!
Ó Inti,
No céu acima, podes estar!
Ó Viracocha, Ó Inti,
Pais amados da Origem,
Senhores de todos os Poderosos,
Baixai os olhos para nós!
Concedei-nos vossa força!
Ó Viracocha, O Inti,
Não temos outro desejo
Senão sentir vossa presença
No dia que segue a noite.
***
Ele escuta barulhos de vidro quebrado, cristais Ɵnindo, gritos, risadas. Depois,
seu corpo fica preso no gelo. Tudo fica vermelho. A dor é violenta, como se ele se
achasse preso no torno de uma bancada. Ele quer protestar, mas sua voz não produz
som nenhum.
A noite volta e, com ela, a paz.
Mais uma vez, há vermelho por toda parte, como se ele nadasse em seu próprio
sangue. Talvez esteja nascendo, pois um líquido o leva, o envolve e o protege. O
vermelho fica mais intenso. Ele ouve as risadas e os cristais. O frio lhe aperta
brutalmente as têmporas e é então que ele abre os olhos.
Está batendo queixo e acha que não vai conseguir respirar. No entanto, após um
primeiro longo sorvo de ar, a angúsƟa acalma. Seus olhos enxergam de verdade. O
que ele vê é maravilhoso. Espantoso demais para ser verdade.
Tudo é azul à sua volta. O que ele julgava serem cristais é uma água límpida.
Está mergulhado num mar gelado e imenso, inserido entre montanhas tão altas que
ele nem chega a ver o pico.
Gabriel respira de novo, tremendo, e vê 20 rostos a perscrutá-lo, crianças e
mulheres, diverƟdos e encantados. Uns estão mergulhados na água com ele, outros
estão em pé sobre a água. Caminham, vão de um lado para outro debruçam-se e lhe
estendem a mão. Ele julga ter chegado a um mundo sobre natural e quer se levantar
para fugir.
No fundo da água gelada, seus pés topam com pedras e areia, ele consegue se
levantar, cambaleando. As crianças desatam a rir alegremente, nu crescendo. Gabriel
se vira. Vê a curva harmoniosa de uma praia de areia, uma enseada dominada por
algumas casas. Há algumas árvores parecidas com pinheiros e até com oliveiras. Por
um instante, julga estar sonhando, de volta à sua Espanha natal. Seu coração bate
alegremente. Quer correr para a praia, mas seus músculos estão fracos demais. Dá
três passos e cai, espalhando muita água e provocando acessos de riso.
Reunindo todas as forças, fica de quatro, arrastando a barba na marola que se
formou. Mas algumas mãos o acodem e o amparam. São jovens mulheres de cabelos
longos untados de óleo e perfumados. São muito reais e muito lindas, e ele percebe
que está nu em pêlo. Debate-se, quer cobrir o sexo e provoca novas gargalhadas
enquanto é levado para a praia de areia fina.
Ali, um homenzinho forte o observa. Seu olhar é pacífico e amigável. Seus
cabelos longos ondulam em seus ombros. Suas mãos são estranhamente grandes e
fortes. Ele faz um pequeno gesto de saudação com a cabeça quando as mulheres
deitam Gabriel na areia. Gabriel finalmente o reconhece.
- Katari! - exclama com uma voz que ele próprio não reconhece.
- Bom dia, amigo da Coya Camaquen - responde Katari com doçura.
- Por favor, me diga em que mundo estamos.
Katari, sem responder, abre a mão direita, revelando uma pedra negra. Com um
pequeno movimento do punho, joga a pedra na verƟcal. Durante alguns segundos, a
pedra parece ficar suspensa no ar, sem querer cair. No entanto, volta para sua mão.
Gabriel olha para ele e abraça a paisagem com os olhos.
É um lugar daqui e de fora, um tempo de agora e de então. Katari sorri para ele:
- Bem-vindo ao mundo - diz com doçura.
***
Gabriel está deitado sobre diversas mantas finamente tecidas que lhe fazem uma
cama macia. Uma mulher unta pacientemente seu corpo com um ungüento que
umedece sua carne e aquece seus músculos que derreteram como neve ao sol.
Eles estão instalados ao ar livre, pouco acima da praia onde ele voltou a si. O que
vê provoca nele uma emoção profunda. Uma baía que seria parecida com uma
pequena enseada mediterrânea se dezenas de terraços de muros perfeitos não
esƟvessem encaixados nas encostas e reentrâncias.
Estranhas barcas estão agora protegidas do vento. Algumas são pequenas e
outras, grandes o bastante para levar 20 pessoas de uma vez, concebidas como
jangadas. Pescadores andam de um lado para outro ali em cima, como se andassem
em cima d'água, o que, em sua semiconsciência, Gabriel acho que acontecia. Porém
o mais estranho são os cascos e as velas. Não são nem de madeira nem de lona, mas
de feixes de junco amarelo engenhosamente amarrados.
O que Gabriel julgou ser o mar, na verdade é um lago. Mas um lago tão imenso
que, em alguns pontos, as praias se perdem de vista. Ao norte, apagando-se numa
brancura de bruma, o horizonte esboça uma curva como u oceano. A leste, as
encostas vivas das montanhas mais altas que Gabriel jamais viu traçam um limite
árido enquanto os picos de neves eternas refletem-se tranqüilamente em sua
superİcie. A oeste e ao sul, até onde a vista pode alcançar, as encostas estão
cobertas de milhares de terraços de cultura.
Até os cumes mais altos, sem interrupção nenhuma, formam uma fabulosa
tapeçaria de verdes cujas pregas, sedosas e fluidas, mergulham suavemente no
abismo azul do lago. Na verdade, parece que esses montes não nascera de uma
vontade divina, mas que, terraço após terraço, muro após muro, u formigueiro de
homens os ergueu no céu.
Essa grandeza e essa beleza são tão assombrosas que Gabriel, alheio à carícias
da massagem que reanimam seu corpo, contempla-as fascinado, ainda sem ter
certeza de estar completamente desperto.
- Esse lago se chama TiƟcaca- explica Katari agachado a alguns passos dele. - Foi
aqui que o mundo desejado por Viracocha nasceu. Essa montanhas que você vê, as
mais fortes, as mais altas, Apu Ancohuma, Ap Illampu, são os primeiros entes vivos
a nascer aqui. Hoje, os Senhores Montanhas assistiram à sua volta à vida. Estão
felizes com isso.
Gabriel observa Katari um instante para cerƟficar-se de que este não está
zombando dele. Mas o Mestre das Pedras dos Incas contempla os pico nevados com
a maior seriedade. Maquinalmente, seus dedos brincam com pedra negra que ele
continua segurando.
- Aqui - prossegue ele -, você está numa ilha. A mesma em que InƟ, no dia em que
nasceu, saiu do Rochedo Sagrado antes de pular para céu. Há uma outra ilha, ali
atrás da colina. Uma ilha menor: a Mãe Lu descansou também no dia em que nasceu.
Como você agora!
Pela primeira vez, Gabriel sente um pouco de ironia no tom e no olho de Katari. A
jovem que cuida dele, sem se embaraçar com pudores supérfluos, massageia suas
nádegas com tanta firmeza que ele se sente um bebê sendo preparado para as
fraldas.
- Ela tem mesmo que me apalpar assim? - pergunta.
- É melhor - diverte-se Katari. - Você passou luas sem andar, sem mover um
membro. Se quiser poder ficar de pé logo sem senƟr muita dor, primeiro precisa ser
massageando. Mas não fique com pudores, essa serva o vê nu há muito tempo...
Gabriel repele o sorriso e a mão da serva que quer confirmar o que acaba de ser
dito:
- Katari, preciso parƟr o quanto antes para Cuzco! O Mestre das Pedras dá uma
risadinha:
- Você não poderá antes de uma lua, no mínimo. Não tem mais o seu cavalo para
leválo. Terá que andar. Precisará de todas as suas forças. - Não é possível, eu teria
que parƟr antes...
- Se está preocupado com a Coya Camaquen - diz docemente Katari -, fique
tranqüilo. Ela está bem. Vive numa cidade da montanha que os estrangeiros de
Cuzco não conhecem.
Gabriel ergue-se para vê-lo melhor. A jovem pára um instante de massagear.
- Você diz "os estrangeiros de Cuzco", Katari... Será para me poupar e não ferir
meu orgulho? Ninguém mais do que eu sabe a que ponto essa gente é má. Os que
foram trazidos até aqui pelo Governador Pizarro agora estão loucos. Ouro e sangue
tornaram-se o único desejo, o único pensamento, a única razão de viver deles! Eles
já não sabem mais o que é bem e mal. Não sabem o que é humano ou besƟal. É
uma loucura que me apavora e, garanto a você, não é a minha.
- Eu os observei - diz sobriamente Katari. - Eles são piores que os animais, pois os
animais não sabem o que é a crueldade inúƟl, os animais desconhecem a escravidão
e só matam para se alimentar... Mas é verdade, você não é como eles. Se fosse, não
seria o que é para a Coya Camaquen!
- Obrigado.
- Sei o que é bom ou mau para o Mundo daqui que é o meu. - Vai haver guerra, não?
- Sem dúvida.
- Anamaya deve se afastar de Cuzco - murmura Gabriel. Katari balança a cabeça.
- Não! A Coya Camaquen não pode se afastar do Único Senhor Manco. Ela vai
libertá-lo. Depois, vai ajudá-lo a guerrear. Hoje, Anamaya é a única referência neste
mundo para o Filho do Sol. Só ela sabe ouvir a vontade dos Poderosos Ancestrais.
Villa Oma, que você perseguia, agora não e mais um sábio: é apenas um guerreiro
sedento de vingança.
Por um instante, Gabriel fica calado, procurando compreender todo o senƟdo das
palavras do Mestre das Pedras. Uma coisa pelo menos o acalma: Anamaya está viva
e longe dos irmãos do Governador!
- Como você me salvou? - espanta-se de repente. - Como fez para me achar nesse
inferno de sal?
A risada de Katari é quase terna.
- Isso, você poderá agradecer a ela! Foi ela quem viu onde você estava e que o sal
ia fazer você morrer. Um chaski me avisou e fui ao seu encontro. Quando o achei, o
seu sono o conduzia ao Outro Mundo. Foi preciso segurá-lo aqui durante várias luas
para que sua alma não o deixasse.
- Dormi durante luas? - murmura Gabriel, incrédulo. - Tenho a impressão de só ter
fechado os olhos desde ontem. Lembro-me do momento em que caí. Lembro-me da
morte do meu cavalo e da minha sombra que não queria mais avançar! Lembro-me
também da sede e depois das queimaduras, mas...
Ele olha para as mãos, os braços. Sente os ombros que a jovem conƟnua
massageando, deixando-os lustrosos ao sol. E não acredita no que vê!
- Minha pele está intacta - ri um tanto nervosamente. - Estou intacto. Parece que
tudo foi um sonho e não atravessei esse monstruoso deserto de sal!
As pupilas escuras de Katari brilham, achando graça. Mais uma vez, ele abre a
mão e lança a pedra negra no ar. Mais uma vez, Gabriel julga vê-la ficar suspensa
antes de cair na mão do Mestre das Pedras.
- Você dormiu muitas luas - confirma. - Isso foi necessário para o seu tratamento,
pois o sal Ɵnha começado a secar seu corpo de dentro para fora, e o transformava
em Corpo Seco. Se você Ɵvesse acordado, a dor teria ficado tão insuportável que
você teria morrido como se seu coração explodisse. Então, o fiz beber algumas ervas
que fazem dormir. Lentamente, lentamente, o reidratamos. Até hoje, quando foi você
que saiu da água!...
A risada de Katari é a de um homem orgulhoso de ter salvado uma vida. Ele faz
um gesto e a serva pára finalmente de massagear. Ela estende um unku amarelo para
Gabriel. Ele veste a túnica. Sua barba passando com dificuldade na abertura do
pescoço, a jovem o ajuda com algumas carícias eficazes.
- Vou ter que me barbear - resmunga Gabriel, constrangido. Detesto usar barba.
- Então, todas as mulheres da ilha vão chorar - brinca Katari. - Elas gostam muito
de seu rosto coberto de fios de ouro. Imaginam que você é um dom das Montanhas e
que todos os homens delas logo serão como você. Se você perder os seus pêlos, vou
ter que tratá-las de um mal muito mais grave que o seu!
Gabriel sorri afinal. Estende a mão para o Mestre das Pedras.
- Eu lhe devo muito, amigo Katari. Não sei se poderei retribuir... Katari segura
firmemente sua mão.
- Não há nada a retribuir neste Mundo aqui, nem no Outro. É só dar, meu amigo,
dar sem parar.
***
O Sol,
A Lua,
O dia e a noite,
A primavera e o inverno,
Apedra e as montanhas,
O milho e a cantuta.
Nada existe em vão, ó Viracocha.
Cada qual vai, das margens do Titicaca,
Tomar o lugar que designaste para ele.
O Universo é teu desejo, Viracocha,
E teu desejo se realizou nas margens do Titicaca.
Aqui, ó Viracocha, seguraste o bastão da origem, Aqui, no TiƟcaca, estou com
minha alma dupla,
A do embaixo e a do em cima,
Ó Viracocha, é tua vontade,
Aquele que se afasta do Titicaca
Já está no caminho da volta.
Quem pronunciou essas palavras não é outra senão a serva que tão bem cuidou
dele
durante essas úlƟmas semanas. Ela lhe sorri, mas seu olhar e triste. Aponta para o
céu de onde os raios verdes já se retiram.
- Quando o céu fica verde - diz -, é que Viracocha faz o dom da Paz aos seres
humanos. Viracocha ama você e lhe diz isso.
Ela segura a mão de Gabriel e a aperta ternamente.
- Está na hora de você parƟr, estrangeiro. O lago começou a lhe ensinar o que seus
olhos ainda não conseguem ver. Um dia, você terá o desejo de voltar, pois, embora
sua pele seja branca e seus cabelos sejam dourados, Viracocha reconheceu-o. Você
sai do Bastão de origem dele e uma alma de baixo o aguarda aqui.
Após essas palavras estranhas, apertando a mão do perplexo Gabriel na sua, ela
ainda recita:
O Sol,
A Lua,
O dia e a noite,
A primavera e o inverno,
A pedra e as montanhas,
O milho e a cantuta.
O Viracocha, e tua vontade,
Aquele que se afasta do Titicaca
Já está no caminho de volta.
Capítulo 38
Calca, abril de 1536
***
- Anamaya!
A primeira vez que ele chama, Anamaya não ouve o sussurro do Anão.
A lua está há muito tempo no meio do céu. Os barulhos fesƟvos ecoam na cancha
real. Os Senhores bebem muito para prometerem a si mesmos fidelidade e força no
combate. Bebem outro tanto para zombar do inimigo. Gritam mais do que falam,
sobretudo quando contam as antigas batalhas e as grandes vitórias dos Ancestrais.
ReƟrada num canto do páƟo, Anamaya só os vê de longe mas, na claridade das
tochas, seus rostos ora são infantis, ora, terríveis.
- Anamaya!
Ela se vira enfim e vê o pequeno vulto na esquina do prédio. Com a mão, o Anão
faz sinal para que ela se aproxime.
- Por que se esconde? - pergunta ela.
- Não vale a pena que me vejam - murmura o Anão segurando a borda de sua
capa. Abaixe-se para me ouvir.
- Por que tanto mistério?
- Abaixe-se!
Ela obedece com um suspiro meio cansado. Quando seu rosto chega à altura do
Anão, ele sussurra:
- Ele está aí.
Anamaya estremece. Fica com raiva de si mesma por causa da idéia que lhe
passou pela cabeça. As têmporas pulsando, obriga-se a franzir o cenho para
perguntar:
- De quem está falando?
- Dele. Ele está aí.
O Anão ri com malícia, mas como ela teima em não querer entender, diz: - Não
se faça de boba! Ele está aí: o Puma.
Ela aperta a mão do Anão como se suas pernas não fossem mais sustentá-la.
Fecha os olhos para perguntar mais, num suspiro: - Onde?
- Botei-o num armazém de lã. É o lugar mais seguro. Levo você lá. O Anão se vira
para uma espécie de cesto colocado no pé do muro.
- Trouxe-lhe uma capa preta. Vão vê-la menos quando sair da cancha. Anamaya
segurao pelo braço.
- Chimbu...
- Princesa, deve ser grave para você me chamar por esse nome!
- Estou com medo.
***
***
Mais tarde, eles encontram uma Ɵmidez juvenil e se confortam entre as carícias
com palavras, cada qual contando os meses passados e os sofrimentos enfrentados.
A gravidade lhes pesa no peito, mas cada qual ainda deseja conservar a leveza de
sua felicidade.
Finalmente, é Gabriel que declara:
- O Anão me contou tudo que se passou em Cuzco. Por Manco e por você...
Ela não responde e fecha os olhos, entrelaçando os dedos nos dele para
acompanhar e se dar melhor às carícias em seus seios oferecidos, sua barriga e suas
coxas.
Gabriel deixa-a fazer isso um instante. De repente, fecha a mão segurando a mão
de Anamaya:
- Sei de Gonzalo - sussurra. - Sei o que ele ousou fazer. Prometo-lhe que vou matá-
lo.
- Isso está apagado até em meu espírito - responde ela. - Está esquecido. Nunca
existiu.
Mas lágrimas se formam sob suas pálpebras. Gabriel as bebe com pequenos beijos.
- Acho que sei quem é o puma - diz ele, a emoção atravessada no peito. - Eu o vi...
Anamaya se cala.
- Eu o vi nas sombras e no sol, na noite e em cima das pedras. Eu o vi nesse lago
onde nasceram as lendas e as histórias do seu povo e onde conheci meu segundo
nascimento. Caminhando para você, compreendi que o puma estava em mim, que eu
era o puma... Parei de ter medo.
Anamaya prolonga o silêncio. Nada do que poderia dizer pode contribuir para o
universo. No entanto, nada do que ele diz acalma verdadeiramente essa solidão que
agora está dentro dela, como desde sempre.
- Vamos parƟr - garante ele, os olhos brilhantes. - Voltei para levá-la comigo e
fugir desse caos. Vamos nos instalar na ilha do TiƟcaca, ali encontraremos a paz e
ninguém vai destruir nossa felicidade, nem Pizarro, nem Manco...
Ela se retesa, desvia brevemente os olhos para o escuro. Depois, uma risada
esquisita faz vibrar sua garganta, como um soluço. Sem uma palavra, segura o rosto
de Gabriel, beijao demoradamente até o desejo voltar. Oferece-se a ele dessa vez
com mais lenƟdão, como
se pudesse abolir todas as realidades do mundo visível e tornar-se um lago de
promessas.
***
A noite se arrasta, mas depois da noite virá a aurora no topo das colinas. A noite
não acabará, mas a noite terminará logo. Eles estão deitados lado a lado, rostos
colados, nus e perfeitos. - Tenho que ficar ao lado de Manco - diz finalmente
Anamaya.
- Não!
O grito irrompe de sua boca e ela o abafa com sua mão macia.
- Gabriel, vamos fazer a guerra. Devemos faze-la, senão logo não sobrará nada dos
Filhos do Sol.
Gabriel não olha para ela. Ela diz ainda:
- Você não pode ficar aqui perto de mim, pois Villa Oma vai querer matá-lo.
Gabriel balança a cabeça, com uma ironia cruel que faz brotarem lágrimas em
seus olhos.
- Venho para você cheio de amor e você me expulsa! Fiz todo esse caminho, esse
caminho longuíssimo, e você me expulsa! Digo-lhe essas palavras que são o que há
de mais profundo em mim e elas nada significam para você. Você fala da sua guerra
e você responde à loucura dos meus com a loucura dos seus...
Ela hesita. Puxa a capa preta e cobre com ela os ombros dele.
- Você é o puma, você é o único homem que pode me tocar neste Mundo, como no
Outro.
- Mas você me amará mais se eu partir para o Outro!
- Eu lhe imploro, pare!
Gabriel é acomeƟdo de um tremor incontrolável, seus movimentos são os
movimentos de uma criança inconsolável. Ela quer abraçá-lo, mas ele a repele com
raiva. Quando ela o deixa, ele pega seu pescoço e o arranha, o aperta, o acaricia...
Depois, empurra-a com brutalidade, como se Ɵvesse necessidade dessa violência
para se desfazer das palavras que lhe queimam o peito.
- Vocês não podem ganhar essa guerra! São fracos e o mundo de vocês está se
acabando. Nossa conquista é injusta, eu sei. Ela vem acompanhada de horrores que
me envergonham, eu sei também. Mas vocês vão perder, como perderam em
Cajamarca e em outros lugares... Não entende isso?
- Devemos travar essa guerra, pois as Montanhas e nossos Ancestrais precisam
de nós para não serem levados pelo nada. E eu devo estar ao lado de Manco quando
ele combater, pois é o meu lugar.
Gabriel se levanta com um rugido de raiva. Vai empurrar a corƟna pendurada na
abertura do armazém. O frio o faz tremer.
- Então, vamos ter que lutar um contra o outro.
- Você não é obrigado a isso - murmura ela.
- Se seu lugar for ao lado de Manco e não ao meu lado - responde Gabriel com
uma doçura súbita -, é que sou um "estrangeiro" como os outros. Então, meu lugar é
entre os estrangeiros.
Eles se observam por um bom tempo, imóveis, cada qual espreitando a esperança
no olhar do outro.
- Tenho que fazer essa guerra - murmura afinal Anamaya, a voz endurecida. -
Tenho, sim! Senão, não valeria a pena o Único Senhor Huayna Capac me dar a mão.
Uma calma invade Gabriel, toda a raiva sai dele como o mar em sua hora.
- Eu entendo - diz ele com extrema doçura. - Não sei o que isso quer dizer, mas
compreendo profundamente e aceito.
Essa doçura abala Anamaya mais que os gritos, mais que as palavras de revolta.
Nesse instante, ele é mesmo o puma, aquele que ela esperava. Nesse instante em
que se separam, eles estão tão próximos quanto dois seres que eram um só no lago
das origens e tornam a se encontrar depois de ter atravessado os mares de vagas e
estrelas.
- Espero - diz ele -, espero contra a razão e contra essa guerra... Só que é diİcil,
tão difícil...
Sua voz foge e ele precisa pigarrear para recomeçar:
- ... tão diİcil me separar de você depois de ter percorrido todo esse caminho para
encontrá-la...
- Amo você.
Gabriel balança a cabeça, o olhar turvado pelas lágrimas. Aproxima-se dela, e é
ele que agora segura seu rosto para beijar-lhe a boca demoradamente.
Mais tarde, nas horas sombrias, no fragor das batalhas, com pedras e flechas
zunindo em volta, quando Ɵver perdido até o senƟdo da vida, ele guardará para
combater a solidão e o desespero a doçura de seus lábios ao dizer essas palavras - a
certeza sem lógica de que atrás do fim, mais uma vez, havia outro nascimento.
GLOSSÁRIO