A Profecia Do Paraiso - Robert Browne
A Profecia Do Paraiso - Robert Browne
A Profecia Do Paraiso - Robert Browne
Sobre a obra:
Sobre nós:
Browne, Robert
A profecia do paraíso / Robert Browne ; tradução Éric R. R. Heneault e
Francisco José M. Couto. -- São Paulo : Editora Planeta do Brasil, 2011.
Título original: The paradise prophecy
ISBN 978-85-7665-718-7
11-08683 CDD-813
Para meu pai
e para Brett, Bill, Tasha e Andrew,
antigos e novos amigos.
A morte é a chave de ouro
que abre o palácio da eternidade.
—John Milton
A priori
Antes de se encontrarem, ele não sabia nada a respeito do livro, nem da história
criada em torno dele.
Não sabia de seu tamanho ou conteúdo, nem da textura enegrecida de suas
páginas ou da caligrafia ornada e quase perfeita que as enfeitava. Não sabia que
se encontrava em Praga, numa das coleções de um dos soberanos do Sacro
Império Romano-Germânico, patrono das artes e praticante da alquimia. Não
sabia que 160 burros haviam sido abatidos para sua fabricação.
E não fazia ideia alguma de que lhe faltavam sete páginas.
As páginas que levariam à sua ruína.
Mas, para seu arrependimento, o poeta fora informado disso e de outras
coisas numa visita a Florença – lá, em uma pequena villa em Arcetri –, onde,
pela primeira vez, encontrara o astrônomo, um homem idoso, pálido e barbudo,
que fora condenado a passar os últimos anos de vida confinado em sua própria
casa.
Isso acontecera muito tempo antes dos dias de desgraça, antes que a
escuridão permeasse a luminosidade do meio-dia. Numa época em que a vida do
poeta era realmente abençoada, quando o dia a dia não era apenas prazeroso,
mas também frequentemente divertido, e quando se sentia tomado pelo frescor
do espírito que caracteriza a juventude e o intelecto, e por uma inexorável fé nos
ideais recém-formados.
Ficara bastante surpreso ao receber o convite do velho homem, e, após
meses de uma penosa viagem – que o levara primeiro de Londres a Calais, e
depois a Paris, Nice e Gênova –, seu primeiro instinto fora apresentar desculpas e
regressar à Inglaterra.
Mas o astrônomo, além de possuir uma das mais requintadas mentes que se
conhecia, era, em vários aspectos, uma espécie de alma gêmea. Um seguidor de
Deus, ainda que de espírito livre. Acreditava no livre-arbítrio e abominava todo
tipo de tirania, mesmo que ela usasse o manto dos prelados.
E quando o poeta leu a mensagem que o esperava em seus aposentos em
Livorno, soube que seria tolo se deixasse escapar aquela oportunidade de
complementar seus estudos.
Aceitou então o convite e continuou a viagem até Florença.
Uma escolha que o assombraria até o dia de sua morte.
Avilla estava em ruínas e tinha um leve cheiro de míldio; dois guardas vigiavam
o portão de entrada.
Ele foi saudado na chegada por uma jovem e tímida criada que parecia ter
vindo diretamente de um convento até ali para fazer penitência devido a alguma
transgressão pecaminosa. Ela desviou o olhar ao se apresentar, e ele se perguntou
que triste demônio a possuía a ponto de impedi-la de olhá-lo diretamente nos
olhos.
– Por favor, seja gentil com ele – disse ela suavemente, enquanto o
acompanhava por um longo corredor repleto de portas. – Ele não passou bem
estas últimas semanas e se cansa facilmente. E preste atenção: ele tem dias bons
e dias ruins, e nunca sabemos o que nos espera.
Suas palavras surpreenderam o poeta. Ouvira dizer que, apesar da idade, o
astrônomo ainda estava no completo domínio de suas faculdades. Mas talvez os
dias bons dos quais a mulher falara estivessem tão repletos de brilho que
superassem os dias ruins. Os escritos do velho homem com certeza refletiam
essas mudanças de humor.
Chegaram ao fim do corredor, e ela abriu uma porta, convidando-o com
um gesto a entrar na sala em frente. As cortinas estavam fechadas para bloquear
o sol da tarde, porque não havia necessidade de sol.
O velho ficara cego. O poeta sabia que essa era uma atribulação recente.
Mas sua audição era boa, e, no momento em que a porta se abriu, ele se
virou na direção deles e disse:
– Não posso lhe ensinar nada. Posso apenas lhe mostrar o caminho da
autodescoberta. O que vai encontrar e fazer com isso dependerá só de você.
Estava sentado em uma cadeira ao lado de uma lareira acesa, e seus olhos
vazios fixavam o nada. O poeta ficou parado na entrada, um tanto confuso,
sentindo-se como se tivesse entrado no meio de uma conversa e não soubesse ao
certo o que responder.
O velho estava mesmo falando com ele?
Percebeu que a melhor atitude era simplesmente apresentar-se, mas, assim
que começou a formar as palavras, o astrônomo o interrompeu.
– Sei quem você é. Convidei-o a vir aqui, lembra-se?
– Sim, sim. Claro – gaguejou o poeta, sentindo-se como se tivesse acabado
de ser repreendido pelo próprio pai. – Mas, para ser franco, não sei exatamente
para quê.
O velho ficou mais calmo e fez um gesto na direção do poeta.
– Entre, entre. Sente-se. Deve estar muito cansado depois dessa longa
viagem.
Isso decerto era verdade. Viajar a cavalo nunca era fácil. O poeta fechou a
porta e, com a ajuda da luz do fogo, encontrou uma cadeira, arrastando-a para
perto do velho.
Foi nesse exato momento que o arrependimento tomou conta dele. Ao
sentar-se, um inexplicável sentimento de escuridão o invadiu, como se o Diabo
em pessoa pairasse a seu lado, observando-o e esperando com grande
expectativa.
– Li seu trabalho – disse o astrônomo. – Você me parece ser um homem de
sólido intelecto, que acredita firmemente em Deus.
– Eu poderia dizer o mesmo de você.
O velho deu de ombros:
– Existem aqueles que alegam que rejeitei as Escrituras em favor da
ciência, mas mesmo depois da minha detenção e da morte da minha filha, minha
fé em Deus e na natureza permaneceu firme. Não importa o curso que nossa
vida venha a seguir, devemos recebê-la como a maior dádiva das mãos Dele.
Não concorda?
– Claro – assentiu o poeta. – Mas também acredito que a maior liberdade
que Deus nos deu é a de pensar e falar da maneira como a nossa consciência nos
guia.
– Assim como eu, meu filho.
– Motivo pelo qual considero seu confinamento aqui totalmente condenável.
O velho fez com a mão um gesto de desdém.
– Aqueles que me mantêm prisioneiro nesta gaiola têm uma mente pequena
e amedrontada.
– Sim, é o que parece.
– Eles se juntam em busca de proteção e usam a fé como um escudo,
rejeitando aqueles que questionam a santidade da sua insignificante tacanhice.
Ele suspirou pesadamente e continuou:
– Mas chega desta conversa. Não pedi que viesse até aqui para discutirmos
política.
O poeta hesitou.
– Então, por que exatamente estou aqui?
– Logo veremos. Mas, primeiro, deixe-me compartilhar com você a história
da minha descoberta mais recente. Acredito que você, como homem de letras,
mais do que qualquer outra pessoa, saberá apreciá-la.
O poeta levantou as sobrancelhas, pensando em céus noturnos e grupos de
estrelas e imaginando como alguém que não tinha mais visão podia encontrar
algo lá fora.
– Que tipo de descoberta?
O astrônomo deu um sorriso que pareceu um tanto forçado, como se por
trás dele estivesse tentando esconder algum medo secreto. Aquele sentimento de
escuridão tornou-se mais profundo, e por um momento o poeta se perguntou se
não deveria fugir daquele lugar para nunca mais voltar.
– Encontrei as páginas – disse o velho, sem oferecer outra explicação.
O poeta estava confuso, sentindo-se outra vez como se tivesse se intrometido
numa conversa da qual não participara antes.
– Páginas?
Apesar da cegueira, algo chamejou nos olhos do astrônomo como se eles
estivessem vivos.
– As sete páginas que estavam faltando na Bíblia do Diabo – disse ele. – As
sete páginas faltantes que, se colocadas nas mãos certas, mudarão o universo
para sempre.
A ascensão e a queda
de Gabriela Soares
Pelos gritos de Gabriela é que eles perceberam que ela estava em dificuldades.
Antes disso, Alexandre e os outros tinham imaginado que ela quisesse
apenas ficar um pouco sozinha, como sempre fazia. E, apesar do perigo, apesar
da total displicência dela, no momento em que o show acabou ela deu um jeito
de escapar deles e desapareceu.
Alguns devem ter considerado isso um lance de prima donna. Mas Gabriela
Soares não era nenhuma prima donna.
Alexandre sabia disso melhor do que qualquer outro.
Em aproximadamente um ano como seu empresário, e depois de ter
administrado por três anos o Lar do Coração – instituição de caridade que
pertencia a Gabriela –, ele nunca a vira num ataque de mau humor, nunca a vira
elevar a voz com raiva, nunca a vira tomar uma única atitude impulsiva que a
rebaixasse ao nível de algumas dessas efêmeras estrelas da música que surgiam
e desapareciam todo ano.
Mas a mulher apreciava sua privacidade. Principalmente depois de um
show. E Alexandre sabia que os bandos de fãs eufóricos, os paparazzi e todas as
armadilhas do superestrelato às vezes acabavam sendo demais para ela. Então
ele supôs, bem como todo o pessoal da equipe de Gabriela, que tinha sido por
esse motivo que ela desaparecera sorrateiramente.
Ele se virara apenas um momento para fazer uma ligação. Num minuto, ela
estava perambulando ao lado dele; no minuto seguinte, ela havia sumido. Um
truque que ela havia aperfeiçoado após inúmeros meses de prática.
Alexandre não conseguia se lembrar do número de vezes em que
pacientemente lhe explicara que ela não era apenas uma figura pública, mas
também uma pessoa polêmica, e que precisava ficar junto a seus guarda-costas
o tempo todo.
Gabriela, porém, quase nunca o ouvia. Ela podia não ser uma prima donna,
mas definitivamente seguia a própria cabeça.
Aquela era a última noite da Turnê Mundial da Glória Revelada, e Gabriela
sempre sonhara em terminá-la com um show em São Paulo. Certa vez, dissera a
Alexandre, nos tempos em que dividia a cama com ele, que sua terra natal era o
único lugar em que se sentia verdadeiramente segura.
– Foi aqui que Deus escolheu para me colocar nesta terra – dissera ela,
aconchegando-se a ele e pressionando o seio quente contra o braço dele. – Aqui é
onde o anjo dele toma conta de mim.
Alexandre sempre gostara de sentir a pele dela contra a sua. Os seios dela
subindo e descendo enquanto ela lhe sussurrava ao ouvido. Ele ainda sentia falta
daquilo, mesmo após todos aqueles meses.
Ambos sabiam que a relação deles era um pecado, mas haviam sucumbido
à tentação mais de uma vez – dezessete gloriosas vezes, para ser preciso –, até
que a culpa finalmente levou Gabriela a acabar com aquilo.
– Como posso pedir castidade às meninas se eu mesma não sou casta?
Era uma questão justa. Contra a qual Alexandre não podia argumentar.
Mas quando ele trouxe à baila o assunto casamento, Gabriela zombou dele.
Ela não tinha tempo para essas coisas. Não com o ministério finalmente
decolando, não com todo o trabalho que precisava ser feito.
Ela só poderia estar comprometida com o Senhor e mais ninguém. E
precisava servir como exemplo de pureza num mundo poluído pelas fraquezas da
humanidade – sobretudo agora, que o mundo estava se dirigindo rapidamente
para o esquecimento do inferno, as economias estavam declinando e as ruas
estavam cheias de raiva e ódio.
Nunca vira tanta inquietação, dissera ela a Alexandre. Vários meses antes,
num show na Grécia, um novo tumulto estourara simplesmente porque uma
pessoa se sentara por engano no lugar de outra. Tiveram de fazer um apelo a
Gabriela para que ela mesma acalmasse a multidão.
Pouco depois daquela noite, ela acabou rompendo com Alexandre. Ela de
algum modo pusera na cabeça que sua crescente falta de atenção à própria fé
desgastara a dos outros, e que a única maneira que ela tinha de lutar contra o
caos era renovar seus votos junto ao Senhor.
Já era ruim o suficiente, dissera ela, ser forçada a subir ao palco e balançar
os quadris. Algumas pessoas na igreja poderiam ficar intimidadas com seu
desempenho abertamente sensual, mas não poderiam queixar-se dos resultados.
Gabriela trouxera jovens de todos os lugares do globo para o rebanho e
considerava uns poucos movimentos pélvicos uma pequena concessão, contanto
que nunca ofuscassem a mensagem maior de sua música:
Deus é bom.
Deus é grande.
Deus é a luz num mundo de escuridão.
Além do mais, quem iria dizer que os filhos de Deus não podem ser
sensuais? Não terá Ele lhes dado esses ímpetos por alguma razão? E talvez,
apenas talvez, Ele os aprovasse.
Mas Gabriela posteriormente acabou se recusando a continuar dormindo
com Alexandre. Por mais que ela adorasse passar as noites com ele – pelo
menos assim dizia –, não podia mais permitir-se pecar.
– Então vai ser assim – dissera, ao subir em cima dele e guiá-lo para dentro
de si pela última vez. – Amanhã será um novo começo. A partir de amanhã eu
me darei a Deus e a mais ninguém.
Deus é um homem de sorte, pensara Alexandre.
Então fechara os olhos e se deleitara ao sentir aquela pélvis pressionar-se
contra ele, consciente de que experimentara o encanto de Gabriela Soares, o
encanto que o levara a um prazer tão desenfreado que se lembraria dele com
incrível nitidez pelo resto da vida.
E agora, enquanto percorria com um pelotão de guarda-costas o labirinto de
corredores atrás do palco em busca da mulher que amava – labirinto que nunca
lhe parecera tão confuso como naquele momento –, Alexandre mais uma vez
recordou aquela última noite de pecado, saboreando a sorte que teve.
E apesar de ter sido banido dos maravilhosos tesouros daquele corpo – seios
perfeitos, mãos habilidosas, língua envolvente, cabelo negro delicioso... Apesar
de não conseguir encontrar Gabriela naquele lugar extremamente confuso, um
sentimento de calma tomou conta de Alexandre, e ele se sentiu em paz com o
mundo.
Até que o acre cheiro de gasolina penetrou-lhe as narinas e Gabriela
começou a gritar.
4
Dez minutos antes daqueles gritos, Gabriela Soares estava no palco com seus
companheiros de banda, todos de mãos dadas, curvando o corpo pela última vez
em agradecimento.
A multidão de fãs gritava e aplaudia, muitos deles a seus pés, alguns até
entoando “Santa Gabriela, Santa Gabriela, Santa Gabriela…”, enquanto cobriam
o palco de flores e doces.
Ela pegou uma das flores – uma rosa vermelho-sangue – e atirou-a no ar.
Então, erguendo o queixo em direção ao céu, gritou: “Glória a Deus, nosso Pai!”.
A multidão ficou enlouquecida, estendendo as mãos para o céu e repetindo
suas palavras em uníssono, por inúmeras vezes, derramando lágrimas pelo rosto,
lágrimas de alegria, esperança e promessa de salvação.
Naquele momento, Gabriela – exausta, ensopada de suor – pensou:
Eles farão qualquer coisa por você.
Qualquer coisa mesmo.
Então esse pensamento se foi, desaparecendo como um inseto ao acender-
se a luz da cozinha, e Gabriela sentiu um calafrio em seu corpo.
De onde teria vindo aquilo?
Como ela podia pensar em coisa tão horrível?
Era verdade que ela não estava se sentindo muito bem naquela noite. Estava
com medo de ter pegado um resfriado e ficado com febre, o que a teria
impedido de fazer todo o show, mas seria aquilo suficiente para colocar tais
pensamentos em sua cabeça?
Antes que ela tivesse um mínimo de tempo para analisar o momento,
Francisco, Rafael e os outros acenaram para a multidão e se dirigiram para fora
do palco. Gabriela saiu acompanhando o grupo, soprando um último beijo para
os fãs enquanto desaparecia atrás de uma parede de amplificadores.
Na hora em que chegou à rampa atrás do palco, o pensamento já tinha sido
esquecido, engolido pela imediata sensação de que seus pés estavam acabando
com ela. Tudo o que queria era livrar-se daqueles sapatos, entrar na limusine,
percorrer a pequena distância de volta a sua cobertura no coração de São Paulo,
e então tomar um punhado de aspirinas e ir para a cama.
Não era pedir muito, era?
Assim que ela terminou de descer a rampa e entregou o fone de ouvido
para o técnico de som, Alexandre e os guarda-costas a rodearam,
acompanhando-a em direção a uma mal iluminada entrada atrás do palco.
Alexandre estendeu-lhe uma toalha, uma garrafa de Gatorade sabor lima-
limão e seu telefone celular. O ritual de sempre.
O celular fora ideia de Alexandre. Ele achava absolutamente essencial que
ela ficasse com o aparelho o tempo todo. Uma precaução para a segurança dela.
Era verdade que Gabriela tinha irritado algumas pessoas ao falar
abertamente contra os donos do tráfico em São Paulo, mas às vezes sentia que
Alexandre era paranoico demais quando o assunto era o bem-estar dela.
– Excelente show, querida. Terminamos a turnê no auge.
Gabriela enfiou o celular no bolso de trás, enxugou o rosto e o pescoço,
devolveu a toalha a ele e tomou um gole de Gatorade.
– Eu estive fora de sintonia metade da noite. Acho que estou ficando surda.
– Bobagem! – disse, e alcançou a mão dela e a apertou. – Eles amam você.
Todos nós amamos você.
Ela correspondeu ao aperto de mão dele, sentindo uma pequena pontada de
culpa. A história deles juntos sempre seria para ela uma fonte de desconforto, e
ela recolheu rapidamente a mão assim que chegaram à entrada.
Alexandre parecia não ter notado. Ele estava com seu próprio fone colado
ao ouvido agora e pedia que levassem a limusine lá para trás. Estava de bom
humor naquela noite, mas Gabriela sempre se preocupava com ele, receosa de
que se sentisse magoado.
Era fácil para Gabriela admitir que ainda o amava, mas havia coisas sobre
ela que Alexandre nunca poderia saber. Um segredo que ela não podia revelar. E
quanto mais perto ela chegava dele, mais vontade sentia de compartilhar esse
segredo.
Então ela se afastou. Assim como se afastara das ruas. E das festas. E de
seu vício no pó do diabo.
Eles viraram à esquerda, tomando um corredor contíguo para sair, e
Gabriela ficou surpresa com isso. Apresentara-se naquele local muitas vezes
antes, mas a disposição dos corredores lhe parecia de algum modo diferente. De
costas para a frente do lugar, ela podia jurar que da última vez que estivera ali
virara à direita, seguindo uma linha reta até uma porta dupla que levava ao setor
de carga.
Dessa vez, não. E lhe ocorreu que ou ela estava louca ou simplesmente
confusa devido às inúmeras semanas de turnê e às centenas de outras galerias de
palco por onde passara.
À frente e acima, as luzes fluorescentes estavam piscando, e Gabriela foi
tomada pela lembrança de uma época sombria em sua vida. Uma época em que
ela e sua melhor amiga, Sofia, costumavam se drogar no banheiro de um posto
de gasolina, onde a luz de cima do espelho, rachado e todo grafitado, piscava
interminavelmente enquanto elas compartilhavam um cachimbo.
A morte de Sofia foi o que levara Gabriela para Deus. E toda noite, quando
ela falava com Ele, procurava fazer uma oração pela amiga perdida.
Estava se lembrando de uma de suas melhores épocas juntas (as duas
andando de bicicleta pelas ruas da favela), enquanto passava junto com os
colegas sob as desagradáveis luzes piscantes.
Então uma coisa estranha aconteceu.
Gabriela sentiu um curto e abrupto puxão, como se tivesse sido fisgada por
um fio e empurrada para a frente. Por um momento, pensou que ainda estivesse
usando aquela espécie de armadura que vestia no auge de todo show – que lhe
permitia fazer sua entrada mergulhando sobre o público como um anjo alado
enquanto cantava os acordes de abertura da música Paradise City.
Mas aquilo não fazia sentido. Ela tinha tirado a tal armadura para apresentar
o segundo número, e depois ainda fizera mais seis trocas de roupa.
No entanto, ela havia sentido o puxão daquele fio exatamente como sentiu o
aperto da mão de Alexandre. E, sem aviso, cambaleou e caiu para a frente
dentro de uma súbita escuridão – como se estivesse se afogando nela. Ao
emergir do outro lado, viu que se encontrava sozinha, de pé, em outro corredor
escuro.
Gabriela parou, confusa.
– Alexandre?!
Mas Alexandre não estava lá. Também não estava lá nenhum de seus
guarda-costas.
Um minuto antes, ela estava rodeada por eles, ouvindo suas vozes
reverberar nas paredes…
…e agora, nada.
O corredor estava vazio. Silencioso.
O que estava acontecendo ali?
Eles fariam qualquer coisa por você.
Qualquer coisa mesmo.
O pensamento de novo. Penetrando sem aviso em seu cérebro. Mas, assim
como o corredor em torno dela, era diferente agora. Não conseguia ter absoluta
certeza de que o pensamento fosse seu.
Colocou a mão na testa. Quente.
Febre. Estava definitivamente tomada pela febre. Queria sua cama como
nunca agora.
– Alexandre?! – chamou outra vez, imaginando por um momento que ele e
os outros poderiam estar se escondendo em algum lugar e aquilo fosse algum tipo
de brincadeira. Uma retaliação por todas as vezes em que ela havia escapulido
por conta própria.
Mas não, Alexandre nunca faria esse tipo de coisa. Jamais seria tão cruel.
Mesmo depois que ela o rejeitara, ele continuava sendo leal. Sempre delicado.
Sempre amável. Sempre um apoio.
Alexandre era sua rocha.
Ele faria qualquer coisa por você.
Qualquer coisa mesmo.
Gabriela se retesou. Sentiu um aperto no estômago. Não era estranho ouvir
vozes em sua cabeça, mas sempre lhe surgiam em momentos de prece… não
num instante como aquele. Aquela voz não era amigável. Uma voz que ela
pensou reconhecer.
O que você fez por ele, Gabriela?
E o que é que fez por mim?
Sofia. Era Sofia.
Não a jovem e vibrante Sofia que Gabriela havia conhecido no ensino
médio, mas aquele arremedo de garganta rouca de pó que se enfiava com ela
naquele banheiro sujo e fedendo a gasolina, cheirando quantidades infindáveis do
pó do diabo.
Você me deixou morrer.
Por que me deixou morrer?
Sofia estava certa. Gabriela a deixara. Encontrou-a no chão desse mesmo
banheiro e ficou vendo-a se afogar no próprio vômito. Em vez de ajudá-la, em
vez de chamar uma ambulância, Gabriela seguiu as leis da selva e desapareceu.
Abandonou sua melhor amiga, deixando-a morrer numa poça de urina.
Gabriela levara meses para conseguir conviver com aquilo. Para poder
encarar novamente a si mesma e pedir perdão a Deus. Perdão a Sofia. Assim
que sua carreira deslanchou e o dinheiro começou a entrar com facilidade, ela
fundou uma instituição filantrópica em homenagem a Sofia. Várias instituições.
E quando o mensageiro do Senhor falou com ela e a requisitou como um de
Seus soldados, ela prontamente concordou. Sacrificou seu futuro com Alexandre
em virtude disso.
Ainda assim, nada daquilo a absolvia.
Ela sabia disso.
Viveria até o fim com a culpa pela morte de Sofia. Uma constante
recordação de onde ela viera e de quem fora um dia.
Alguém riu, e Gabriela foi novamente empurrada, sentindo o coração
acelerar enquanto se deparava com o fim do corredor.
– Alexandre?
Havia uma porta aberta ali. Uma que ela nunca havia notado antes. Mais
luzes piscando lá dentro.
Convencida agora de que se encontrava em meio a uma espécie de delírio
febril, que passara por um esgotamento e que provavelmente, naquele exato
momento, estaria nos braços de Alexandre, Gabriela dirigiu-se com cuidado para
a porta e entrou, surpreendendo-se com o que via.
O banheiro do posto de gasolina.
Tal como ela se lembrava dele.
As paredes sujas, a privada respingada de fezes, o cheiro de urina e sangue
seco, a pia imunda, o espelho quebrado e com as palavras “Vá se foder”
borrifadas com spray em grandes letras vermelhas.
Abandonado na borda da pia, sob aquela luz bruxuleante, estava um familiar
cachimbo espelhado, que já fora translúcido e agora estava enegrecido por anos
de uso.
O cachimbo de Sofia.
E ao lado dele havia um pequeno isqueiro. Um adesivo desbotado em sua
lateral dizia: “Encontrou Jesus?”.
Gabriela gelou ao ver aquilo. A muito custo, conseguiu conter uma sensação
que brotava em seu íntimo. Uma sensação de desprezo misturada com… teria
coragem de dizer?
Desejo.
Fazia tempo que vencera o vício. Passara meses demais de tormento na
reabilitação para ceder agora, mas o pó era um demônio poderoso que não
abandonava facilmente esse poder.
O que é que você está esperando, meu anjo?
Novamente aquela voz. Não era Sofia dessa vez, mas outra mulher. Suave.
Calma. Carregada de más intenções que fizeram Gabriela tremer dos pés à
cabeça.
Apavorada agora, virou-se para a porta, mas esta bateu com um sonoro
BUM. Então o trinco se fechou, prendendo-a ali dentro.
– Alexandre! – gritou, batendo o punho na madeira, de repente percebendo
que aquilo poderia não ser apenas um pesadelo. – Alexandre, me ajude!
Ele não vai ajudá-la, querida. Ele não a ama tanto quanto eu.
Gabriela deu um giro, esquadrinhando a pequena sala, procurando a fonte
daquela voz.
– O que é que você sabe sobre mim? Quem é você? O que quer de mim?
Apenas que você volte, meu amor.
Gabriela tornou a olhar para o cachimbo. Será que era o pó quem estava
falando? Como seria possível?
Não, não, pensou. Assim como antes, a voz estava dentro de sua cabeça.
Trazida pela febre. O que mais poderia ser?
Diga que me ama, Gabriela.
Gabriela se virou, esquadrinhando a sala novamente.
– Eu amo apenas o Senhor.
Ah, é? Você O vê em algum lugar agora? Ele se preocupa com você ainda
menos do que o doce e atencioso Alexandre.
– Você está errada! – gritou Gabriela. – Ele acredita em mim. Confia em
mim.
E como é que você sabe disso?
– Por que outro motivo Ele mandaria um anjo Seu para…
Ela se interrompeu. De repente, percebeu do que se tratava. E não tinha
nada a ver com febres ou sonhos.
Para quê, querida?
Baixando a voz, ela disse:
– Vá embora. Você está perdendo seu tempo. Eu nunca lhe darei aquilo que
você quer.
E o que seria?
– Trair meu juramento.
A voz riu. Você faz isso parecer tão sério. Mas as pessoas quebram suas
promessas todos os dias. E todas aquelas promessas que você fez a Sofia?
– Deixe-me em paz!
Não até que você me diga o que preciso saber. Não se preocupe com o Pai.
Ele nos abandonou a todos faz tempo. Não há lugar no Seu reino para você. Você é
uma das pessoas esquecidas.
– Você está errada! – gritou Gabriela. – Ele acredita em mim. Confia em
mim. E eu não vou trair essa confiança.
E quanto a todos os rabiscos naquele seu precioso livro? Se isso não é
traição, o que é, então?
Gabriela sentiu dedos deslizarem por sua espinha.
– Como é que você sabe disso?
Sei tudo sobre você, querida. Sou parte de você. Sempre fui. Sou o desejo
que você sente quando olha para Alexandre. Quando olha nostalgicamente para o
cachimbo de Sofia.
Gabriela voltou o olhar para a pia e viu o cachimbo e o isqueiro deixados ali,
apoiados na borda, chamando por ela. Mas sabia que precisava resistir.
– Não. Nunca vou ceder a você. Nunca.
Nunca é uma palavra muito forte, não? Seu patético amiguinho tinha dito a
mesma coisa para mim, mas no fim estava louco por um acordo. Todo mundo quer
um.
– Meu amigo?
O cobrador. Um dos seus irmãos.
A menção ao cobrador espantou Gabriela. Se essa mulher sabia sobre ele e
estava agora vindo até ela, então todos eles estavam em perigo. E também o
segredo que mantinham. Apesar do medo que subia por sua corrente sanguínea,
Gabriela não podia ceder a suas fraquezas. Havia muita coisa em jogo.
– Não… Você não pode me seduzir. Não vou lhe dizer nada.
E que prejuízo isso causaria, minha querida? Quem iria saber?
– Eu iria saber! – gritou Gabriela. – Eu iria saber!
Então ela se virou novamente, batendo com os punhos contra a porta.
– Alexandre! Onde você está? Me salve!
Mas ninguém respondeu.
Lembrando-se de repente do celular no bolso de trás e agradecendo
silenciosamente a Alexandre por sua paranoia, ela o tirou dali e o ajeitou de
qualquer maneira nas mãos, quase derrubando o aparelho. Agarrando-o com
força, digitou depressa um número e o colocou no ouvido, esperando que tocasse.
Mas nada. Foi direto ao correio de voz.
Droga. Por que será que ele estava sempre ao telefone?
Então, sem aviso, Gabriela levou um encontrão. Alguma coisa surgiu diante
dela, batendo no celular que estava em sua mão. Ele voou para o chão, quicou
uma vez e caiu embaixo da pia. Espantada, percebeu que não estava sozinha ali.
Sofia estava lá, parada diante dela, com o cachimbo e o isqueiro nas mãos.
Sua pele estava branca da cor de ossos e expelia pus pelas feridas nas bochechas
e na testa. Uma baba de vômito lhe escorria do queixo.
Era de longe a visão mais horrível que Gabriela já vira. Levou as mãos à
boca, sufocando um grito, e empalideceu.
Então Sofia falou:
– Olhe para você, tão doce e nobre agora. Todos aqueles idiotas clamando o
seu nome. O que você acha que eles diriam se soubessem que me abandonou
aqui, morrendo?
Gabriela sacudiu violentamente a cabeça.
– Foi o pó que me fez fazer isso. Você sabe disso tão bem quanto eu.
– O pó? O pó era nosso amigo, Gabriela. Você se lembra de quanto ele nos
fez feliz? Não se lembra de como nós ríamos? – Sofia ergueu a mão segurando o
cachimbo. – Se você não quer contar seu segredo, então por que não fazer um
acordo? O mesmo acordo que fez o cobrador. Tudo o que queremos é o nome de
um de seus irmãos. Nada mais.
– Fique longe de mim.
Sofia empurrou o cachimbo na direção dela.
– Dê-nos um nome, e isto será seu. Como nos velhos tempos. Você vai
poder ficar junto dos que a amam. Que amam a verdadeira Gabriela, e não a
monstruosidade angelical que você finge ser.
–Não! – gritou Gabriela. E com o braço jogou o cachimbo e o isqueiro no
chão.
Sofia observou que eles rolaram e caíram perto do celular, então abaixou
lentamente a cabeça. Não disse nada por um longo momento. E, quando falou,
havia tristeza em sua voz:
– Eu não esperava que as coisas chegassem a esse ponto.
De repente, o cheiro de gasolina encheu o ar, e Gabriela, virando-se, viu o
líquido fluindo pelas paredes, descendo em ondas, encharcando o chão. O forte
odor que emanava dali a envolveu, e ela começou a sufocar e tossir, sentindo que
aquilo lhe queimava os pulmões.
– Dê-nos um nome, Gabriela. Agora!
– Não – conseguiu dizer ela. – Deixe-me em paz… Deixe-me…
O rosto de Sofia se agitava furiosamente enquanto ela sacudia Gabriela
pelos ombros e a jogava contra a parede mais próxima. Gabriela bateu a cabeça
com força e sentiu uma dor dilacerante, enquanto a gasolina se derramava sobre
sua cabeça, ensopando seu cabelo e suas roupas, colando-as a sua pele.
– Dê-nos um nome! – gritou Sofia, agarrando-a de novo, jogando-a contra a
pia.
Gabriela bateu a cabeça contra o espelho, partindo-o em pedaços. Um caco
de vidro penetrou em sua testa, e o sangue começou a jorrar da ferida,
misturando-se com a gasolina, enquanto rolava por suas bochechas e por sua
boca.
Ela cambaleou para trás, gaguejando e vomitando.
– Por favor… – suplicava, chorando agora, juntando lágrimas àquela
mistura.
Mas Sofia a sacudiu uma vez mais, lançando-a na direção da privada.
Gabriela escorregou, caindo como uma massa inerte no chão, ainda tossindo,
mal conseguindo respirar. Rolou de costas, e seu olhar novamente pousou no
cachimbo e no isqueiro, que estavam a poucos centímetros dela agora,
miraculosamente secos, intocados pela gasolina.
Diga que me ama, meu anjo.
E, sem querer, sentiu aquele conhecido desejo crescer dentro dela
novamente, mais forte do que nunca.
– Dê-nos um nome – disse Sofia. – É tudo o que lhe pedimos. Um simples
nome, e você estará livre.
Gabriela tentou resistir. Tentou com todas as suas forças. Enviou a Deus uma
prece desesperada, mas tudo o que obteve de volta foi silêncio.
– Por favor – soluçou ela. – Por favor… salve-me.
Mas ninguém ouviu. Ninguém estava prestando atenção.
Talvez a voz estivesse certa. Deus não a amava. E talvez Ele tivesse errado
em confiar nela. Em pensar que agora ela estava diferente do que fora outrora,
todas aquelas noites, tanto tempo atrás.
O que Sofia havia lhe dito era verdade. O pó as fizera felizes. Muito felizes.
E que mal haveria em mais um pequeno tapinha?
No momento em que Gabriela pensou nisso, a gasolina parou de vazar,
deixando paredes ensopadas, poças no chão e um ambiente cheio de fumaça.
Gabriela contraiu as entranhas. O pó ainda lhe fazia muita falta.
Diga que me ama, minha querida.
Cedendo, ela estendeu a mão, tentando agarrar o cachimbo. Mas, assim que
seus dedos estavam prestes a envolvê-lo, o pé descalço e putrefato de Sofia
empurrou-lhe a mão, impedindo-a.
– Um nome – disse ela. – É tudo o que queremos.
Vencida, esgotada, não percebendo mais se ainda possuía vontade própria,
Gabriela tentou falar e tossiu de novo, e então finalmente cedeu, dando-lhes o
que eles queriam, deixando o nome esvoaçar através de sua mente como um
pássaro partindo. E, no momento em que o fez, Sofia foi embora, deixando
Gabriela sozinha com o cachimbo, o isqueiro e seu inútil celular.
Erguendo-se nos cotovelos, ainda chorando, ainda tossindo, mas de algum
modo ciente da necessidade que a queimava por dentro, Gabriela apanhou o
cachimbo e o isqueiro com as mãos molhadas e trêmulas.
Ela pensou em Alexandre, em quanto ele devia estar arrasado. Pensou em
quanto era realmente fraca e em como cedera facilmente a eles. Sua única
salvação era que ela não lhes dera tudo o que queriam. Não revelara o segredo
que jurara manter.
Isso já era alguma coisa, não?
Mas ela sabia que não podia manter aquele segredo por muito mais tempo.
E que o pó tinha um forte domínio sobre ela. Consciente disso, ela se inclinou um
pouco para a frente, sussurrando no celular, esperando que alguém lá fora a
ouvisse e compreendesse.
Era tempo de deixar que o Pai a levasse agora. Se ela não havia conseguido
ser útil a Ele neste mundo, talvez pudesse ser algo melhor no Dele.
Prevendo um doce alívio, ela levou o cachimbo aos lábios, apertou o dedo
no isqueiro e enviou um último pedido de perdão, enquanto rolava outra vez o
polegar contra a pedra do isqueiro.
A explosão se deu assim que Gabriela inalou profundamente, tomando para
dentro de si aquilo que faltara em sua vida todos aqueles anos.
Sentiu-se transcendente.
Uma fração de segundo depois, no entanto, quando ela percebeu que a
fumaça que inalava não era o narcótico que almejava, mas a fétida e doce
essência de sua própria carne queimando, seu último pensamento consciente
surgiu junto de uma terrível e inacreditável dor.
Foi então que Gabriela Soares começou a gritar.
LIVRO III
–Toda história tem um herói – disse ele. – Alguém com quem possamos nos
identificar. Mas nem todos esses heróis são obrigatoriamente bons. Ou perfeitos.
E acredito que qualquer debate sobre a obra-prima de John Milton tem de
considerar esses parâmetros.
Sebastian LaLaurie deu uma rápida olhada para a sala de conferências
repleta dos ditos melhores e mais brilhantes sujeitos da Louisiana, quase
desejando que um deles o contradissesse.
Mas ninguém se manifestou.
– Vejam as histórias sobre as quais conversamos nas últimas semanas:
Moisés, Miriam, Davi, Gideão, Elias, Noé, Rute… O Antigo Testamento está
repleto de homens e mulheres heroicos.
Um murmúrio de vozes. Cabeças que acenavam em aprovação.
– Acrescentem a segunda parte de nosso cânone bíblico, e vocês terão o
maior de todos os heróis. Um simples filho de carpinteiro que sacrificou a vida
para salvar cada um de nós.
Um coro de améns encheu a sala, mas Batty levantou a mão para
interrompê-los. A última coisa que queria era que a palestra se tornasse um tipo
de encontro de revivescência religiosa. Estava ali para ensinar, não para
comandar uma reunião de líderes de torcida.
Ele tropeçou de leve e segurou-se firmemente no púlpito para equilibrar-se,
o que provocou uma tímida onda de risos na plateia.
Ignorando-os, ele prosseguiu.
– Mas o que acontece se ajustarmos um pouco a lente, como Milton o fez, e
olharmos as coisas de um ângulo um pouco diferente? E se o verdadeiro herói do
paraíso for outro? Alguém no qual costumamos pensar como o vilão?
Outro burburinho, mas não de risos dessa vez, e não se ouviu nenhum
amém. Em vez disso, várias cenhos franzidos de susto provaram a Batty que ele
havia tocado num ponto nevrálgico. Não era de surpreender, já que o Trinity
Baptist College fora erguido sobre rígidas crenças ortodoxas, e raros eram os
estudantes corajosos o bastante para manifestar um ponto de vista contrário.
Mas Batty sempre gostava de sacudir um pouco as coisas. Esses garotos não
tinham absolutamente nenhuma ideia do que estava acontecendo lá fora.
Ele, por outro lado, tinha – e era justamente por isso que estava levemente
bêbado.
– Milton baseou boa parte de seu poema épico no livro do Gênesis –
continuou. – E nesse livro Deus cria um paraíso perfeito, habitado por um belo e
jovem casal que ele põe para trabalhar em Seu jardim. Passam o dia labutando,
fazendo tudo que Deus manda. Só que ali perto está aquela Árvore do
Conhecimento, carregada de lindos e suculentos frutos, algo que não deixa de ser
tentador.
O fato de que Batty podia beber tanto e ainda assim ensinar Retórica e
Literatura Religiosa sem embolar as palavras nem cair duro era um verdadeiro
milagre. Mas ele tentava não pensar muito nisso. Do contrário, com certeza
acharia que não bebera o bastante.
As imagens de seu pesadelo ainda estavam vivas…
…uma garota gritando, consumida por uma parede de fogo.
Esses gritos o haviam acordado no meio da última noite, desorientado e
preocupado, perguntando-se se o que tinha visto era real, e de repente se lembrou
de seu próprio pavor.
Um pavor que preferia não reviver.
Ele disse para a classe:
– Mas, com tentação ou não, Deus diz para esse belo e jovem casal: “Não,
não, não, vocês não devem tocar naquela árvore. Todo esse negócio de
conhecimento é algo ruim. Vocês tratem de me escutar, deixem os pensamentos
por minha conta, e eu cuidarei bem de vocês”.
Batty tentou dar um sorriso, mas percebeu que mais pareceria uma careta.
– Então chega nossa nova heroína em forma de serpente. Não está gostando
nem um pouco do que vê. Assim, ela diz para Eva: “Quer saber? Não hesite, dê
uma mordida na fruta se tiver vontade. Você merece viver um pouco”.
– Isso é para ser engraçado?
A pergunta viera de alguém sentado algumas fileiras acima, perto do meio
da sala de conferências, e Batty virou a cabeça, tremendo ligeiramente, tentando
focalizar o ponto de onde vinha o som.
Era uma de suas alunas. Uma com cara de pastel e surpreendentes olhos
castanhos.
Os olhos de Rebecca, ele pensou, afastando imediatamente aquele
pensamento para longe como se estivesse impregnado de algo tóxico.
Ele precisava de outra dose de bebida.
– Acho bastante engraçado. Porque, se não fosse por nossa nova heroína,
Eva nunca teria exercitado o livre-arbítrio que Deus lhe dera. E, sem livre-
arbítrio, não há um verdadeiro propósito na vida.
Murmúrios percorreram a sala toda. Nenhum de simpatia.
– Sem livre-arbítrio, apenas seguimos as regras. E qual é o prazer? Nada de
aventuras, de buscas, de glórias, de paixões, de redenção. Todas essas coisas que
nos tornam humanos.
Ele fez uma pausa.
– Felizmente, alguém reconheceu que o paraíso de Deus era uma criação
imperfeita e que o Homem vivia sob um tipo de bem-aventurada tirania. Então
ele decidiu fazer algo a esse respeito.
Batty varreu a sala com os olhos e completou:
– E isso, meus amigos, é a verdadeira definição de heroísmo.
– Ah, é? – disse a moça, agora em pé, uma coisinha feroz, recheada com a
indignação de uma verdadeira crente. – E o que a suposta heroína deu para nós?
O Holocausto? Doenças? Violência urbana?
Batty encolheu os ombros:
– Por que parou? E a pobreza? As crianças morrendo de fome? As eternas
guerras? Os vazamentos de petróleo? O furacão Katrina?
Batty sabia que esse último item era um ponto nevrálgico. O furacão
Katrina era a mais terrível ferida da Louisiana, já que causara a maior dor e
devastação de que as pessoas dali podiam se lembrar, e as feridas ainda estavam
abertas, mesmo depois de todo aquele tempo.
– Alguns podem argumentar que a devastação que o Katrina trouxe tinha
mais a ver com o fato de Deus ter desistido do Homem do que com o Homem
ter abandonado o Éden, e isso não desmente meu ponto de vista. Nenhuma dessas
coisas o desmente... – e continou, olhando para o resto da sala. – Nem tudo na
Bíblia é preto no branco, senhoras e senhores, motivo pelo qual passamos os
últimos séculos discutindo a esse respeito. E acho que o próprio John Milton
entendeu isso. Era um puritano piedoso, mas isso não o impediu de escrever um
épico sobre um aflito rebelde que se levantara contra um todo-poderoso tirano.
Não há dúvida de que seu trabalho veio como uma reação contra sua época e um
forte endosso ao regicídio, mas isso nos leva a perguntar se ele não saberia algo
que não sabemos.
Batty fez uma pausa e então acrescentou:
– Talvez ele fosse capaz de reconhecer um verdadeiro herói ao vê-lo.
E foi aí que o dique se rompeu.
O ambiente se tornou ameaçador, e vários estudantes se juntaram à crente,
martelando com os pés em sinal de protesto, enquanto outros se dirigiam para a
porta de saída. Alguns começaram a gritar contra Batty, chamando-o de louco e
charlatão, além de outros nomes escolhidos a dedo e que fariam corar suas avós.
Não era a primeira vez que ele os aborrecia, mas aquela fora a reação mais
violenta que conseguira obter deles até agora. Estavam visivelmente cheios de
sua aparente falta de respeito para com a fé deles – uma acusação da qual ele
discordava. De qualquer modo, ele não acreditava que o evidente cheiro do
uísque Tullamore Dew, que exalava de seus poros, pudesse ajudar em alguma
coisa.
Batty estava prestes a dizer que apenas tentava estimular a mente inerte
deles, que deveriam voltar para seus lugares e pensar ao menos uma vez naquela
vida inútil e curta, quando uma voz conhecida o chamou:
– Professor LaLaurie. Pode vir até meu escritório, por favor?
Na entrada, com ar nitidamente zangado, estava a reitora da faculdade,
Edith Rose Stillwater, viúva do reverendo Arthur Stillwater, o melhor amigo e
mentor de Batty.
Batty se virou, deu-lhe um sorriso tenso e tentou não titubear.
Não ia ser nada agradável.
Desde que tinha três anos, Batty se habituara a sentar-se na varanda da frente
enquanto sua mãe lia as cartas para amigos, vizinhos e estranhos, ricos ou pobres,
que às vezes vinham de Nova Orleans ou mesmo lá de Baton Rouge.
Todo mundo em Terrebonne Parish sabia que Patsy LaLaurie tinha a Visão,
e todos queriam ver o que ela via. Batty sentia orgulho ao vê-la trabalhar, mesmo
sabendo que metade do que ela dizia só servia para fazer aquelas pessoas se
sentirem bem. Não de forma calculada, não apenas como meio de ganhar
dinheiro (embora ela nunca recusasse uma doação), mas porque ela não queria
que nenhum deles fosse embora com medo no coração.
Que bem isso lhes faria?
– Posso apenas sentir o que está por vir – disse ela uma vez para Batty. –
Não posso mudar as coisas. Então para que deixar um homem sofrer sem
necessidade?
Batty entendia. Principalmente porque ele também podia sentir o que ela
sentia. Essa coisa que sua mãe e sua avó chamavam de Visão também lhe fora
transmitida. Nada mais, de fato, do que um senso agudo de percepção. Ele sentia
coisas, sonhava com coisas e, às vezes, via coisas que os outros não podiam ver. E
sabia que havia escuridão suficiente para amedrontar até os mais durões.
Lembrava-se de ter visto Landry LeBlanc, um homem alto, meio retardado
e briguento, chorar como criança quando sua mãe rompeu com seus hábitos e
disse a ele que tinha câncer. Fizera isso, como disse mais tarde para Batty, porque
queria que aquele velho tolo fosse ao médico na esperança de que este ao menos
adiasse o inevitável e tornasse seus últimos dias mais suportáveis.
– O idiota passa a maior parte do tempo descansando a bunda, esfregando o
dedo no relógio e dizendo para todo mundo que o dia acabou de nascer quando de
fato o sol já se pôs. Mas isso não quer dizer que ele mereça sofrer.
Batty sentia falta da mãe. Sempre sentiria. E se isso fazia dele um tipo de
“queridinho da mamãe” – como as crianças costumavam chamá-lo –, que assim
fosse.
Após ter colocado o copo no corrimão da varanda, ele pegou a garrafa de
Tullamore que segurava nos braços e serviu-se de mais dois dedos do líquido. A
ironia de seu método preferido de medicação emocional residia no fato de que
ele nem gostava tanto assim da bebida. Não do gosto, pelo menos, que parecia
uma mistura de querosene com álcool.
Mas Batty não bebia por prazer. E realmente duvidava que alguém sentisse
prazer naquilo, independentemente do que se dizia. O álcool – em especial o
uísque – era um anestésico, pura e simplesmente. Era destinado apenas a anular
os efeitos da faca quando esta feria fundo demais.
E, para Batty, aquela faca chegara ao osso naquele exato momento.
– Você leva a vida a sério demais – dizia-lhe sempre sua mãe. Geralmente
quando ele voltava da escola coberto de cortes e contusões. Nunca escondera que
também tinha a Visão, e a maior parte das outras crianças tinha medo dele.
Tivera de aprender a usar os punhos para se defender e aguentar sua cota de
insultos.
Foi aí que nasceu seu apelido. No pátio da escola. Durante os primeiros anos
de vida, a maior parte das crianças o chamava de Seb. Mas, como Sebastian
LaLaurie era o filho maluco da mãe doida, um marginal chamado Harley Wilks
começou a chamá-lo de Batty 2, e o apelido pegou.
No começo, ele resistiu. Ameaçou esmurrar quem repetisse aquele nome.
Mas isso só incentivava as outras crianças, e, com o decorrer dos anos, ele
acabou por aceitá-lo. Até achou que era um símbolo de honra.
Sim, ele era o filho maluco da mãe doida.
E o que se podia fazer a respeito disso?
Mas Batty começou realmente a gostar do apelido quando conheceu
Rebecca. A maneira como ela deixava as sílabas correrem pela língua, com seu
doce e sutil sotaque. Era uma garota de Baton Rouge que apareceu nos degraus
do edifício Nassau Hall, prestes a provar para aqueles sabichões da Universidade
Princeton que, apesar de ter chegado depois dos outros, podia dar um chute na
bunda daqueles estudantes empetecados.
Ela roubou o coração de Batty à primeira vista, no momento em que repetiu
o nome dele, com seus olhos negros se abrindo num sorriso enquanto ela falava.
Não importava o fato de Rebecca também ter a Visão – embora ela
estivesse anos-luz à frente de Batty nesse assunto. Anos-luz à frente de sua mãe.
E ele às vezes se perguntava até se ela já não conhecia a escura estrada que
estava destinada a seguir.
Batty suspirou, tomou a bebida de um só gole e pôs o copo sobre o
corrimão, olhando fixamente para a quente noite da Louisiana, pensando que
seria preferível ir para a cama antes de se tornar um velho gordo maluco como
Landry LeBlanc.
Ele não tinha câncer, mas o que tinha podia ser tão debilitante quanto. E,
apesar dessa atual e doentia autodestruição, ele não pretendia se deixar afundar.
Ainda havia algum resquício de luta nele.
Só esperava que fosse o suficiente.
FAVELA TOURS
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1. Suicídio
2. Acidente
3. Assassinato
4. Ato divino (ou “caso de força maior”)
Como Callahan não tinha nenhuma fibra religiosa, a opção quatro foi
imediatamente riscada da lista. As opções um e dois ainda eram possíveis, mas a
prova da autópsia não dava sustentação a nenhuma delas.
E quanto à opção três?
Assassinato.
Callahan pensara brevemente naquilo durante o voo e talvez devesse dar
mais atenção à ideia. Era possível que algum fã enlouquecido tivesse conseguido
se infiltrar no camarim, arrastado Gabriela para longe de sua equipe e matado a
moça usando algum tipo de acelerante indetectável para pôr fogo nela?
Com base na cronologia dos fatos traçada no dossiê, esta parecia ainda mais
inverossímil que as outras possibilidades, mas os relatos de testemunhas
costumam ser notoriamente imperfeitos, e, naquela altura dos acontecimentos,
qualquer tipo de aposta devia ser descartado. Talvez a cronologia estivesse
errada. Talvez, por causa do pânico e da confusão resultantes do fato de terem
encontrado a amada Gabriela totalmente queimada, seus amigos tivessem
calculado mal a sequência e a duração dos acontecimentos.
Não seria a primeira vez.
Mas a ausência de vestígios de substância química nos pulmões de Gabriela
ainda incomodava Callahan. As pessoas simplesmente não pegam fogo do nada.
– Examine o corpo mais uma vez – disse ela para Pereira. – Não há como
ela ter se ferido dessa maneira sem algum tipo de ajuda.
Pereira suspirou:
– Duvido que se possa encontrar algo.
– Continue tentando – disse ela, virando-se então para Martins. – Vamos ver
a cena do crime agora?
De novo aquele sinal de medo permeou os olhos do investigador, e Callahan
se perguntou o que ele estaria reprimindo. Ela percebeu que ele não estava
inclinado a falar espontaneamente e, então, decidiu deixar-lhe algum espaço de
manobra. Permitiria que a coisa se desenrolasse de maneira natural antes de ela
mostrar-se mais agressiva.
De fato, ela precisava ver a cena do crime, mas Martins não parecia nem
um pouco animado com a ideia de ir até lá – como uma criança que reluta em ir
para a cama porque tem medo de que o bicho-papão esteja escondido no
armário.
– Então? Vamos?
– Você é quem decide – disse ele calmamente, antes de dar meia-volta e
sair pela porta.
A sala em que Gabriela havia sido encontrada não era maior do que um closet.
Seis metros quadrados no máximo, e, como fora mencionado, não havia nenhum
vestígio de fogo – exceto, é claro, a marca de queimadura no meio do chão de
linóleo.
Era difícil não vê-la. Impossível, de fato. E, no exato momento em que
Callahan viu a marca, acreditou entender o motivo do humor de Martins.
Contudo, a marca não se encontrava entre as fotos do dossiê. O que sobrara
do corpo de Gabriela aparentemente a cobrira. Portanto, era o único verdadeiro
sinal de que algo anormal acontecera naquela sala, que estava vazia, exceto por
algumas caixas empilhadas, repletas de papel higiênico, toalha de papel, capas
para assentos, além de um esfregão e um balde num canto.
Callahan fez um gesto.
– Por que isso não foi fotografado?
Martins parecia não querer olhar diretamente para a marca.
– Acho que é óbvio.
– É uma prova potencial. Todas as provas devem ser fotografadas e
catalogadas. Não foi mencionado no resumo da cena do crime.
– Nossa fotógrafa já havia ido embora quando o corpo foi removido, e não
vi motivo nenhum para chamá-la de volta. Há alguns… sentimentos envolvidos.
– Sentimentos?
– Você viu a multidão lá fora. Se algo desse tipo fosse revelado, não é
preciso dizer como eles reagiriam. E, enquanto não houver fotografias, não
corremos o risco de vazamento de informação.
Callahan mal conseguia acreditar no que estava ouvindo.
– Você conseguiu subir na carreira por mérito próprio ou teve algum tipo de
apoio político?
Martins a olhou com frieza.
– Você está aqui para nos ajudar na investigação, não para duvidar da
minha integridade.
– Então, investigue, pelo amor de Deus. Prova é prova, e você parece estar
mais preocupado em fazer relações públicas do que em solucionar um crime.
Martins abriu a boca para retrucar, mas se conteve. Por fim, disse:
– Se está tentando me fazer passar por tolo…
– Quero apenas entender o que aconteceu aqui. E isto é um sinal de possível
ação de despistamento.
– Ação de despistamento? – disse ele. – Acredito que seja muito mais do
que isso.
Sem prestar atenção nele, Callahan sacou seu smartphone e tirou várias
fotos do chão, acrescentando-as ao dossiê de Gabriela. Olhou calmamente para a
marca, que era bastante pequena, mas parecia ter sido incrustada no linóleo com
maçarico:
Callahan não era perita, mas sabia que era um símbolo de ocultismo. Do
tipo que é frequentemente pichado nos armários de colégio por adolescentes
rebeldes. Se ela se lembrava bem, aquele A queria dizer “Anarquismo”.
Mas ali não se tratava de armário de colégio. Longe disso.
E a questão era: quem fizera aquilo?
Gabriela?
Ela era uma dessas secretas devotas do Diabo que marcava o chão com
fogo antes de se imolar? E, nesse caso, como fizera isso?
Considerando-se a falta de qualquer tipo de instrumento, ela tinha de ser
mágica para tamanha façanha. E mesmo que Gabriela tenha sido uma talentosa
artista, era muito improvável que soubesse reproduzir truques de prestidigitador.
O que levava Callahan para a opção número 3.
Assassinato.
Apesar da imagem de estrela pop, Gabriela conseguira tornar-se um
renomado ícone religioso não somente em São Paulo, mas também no mundo
todo. A fênix que ressurgia das cinzas, uma inspiração para aqueles que não
encontravam esperança na vida, especialmente em meio à desordem geral
testemunhada nos últimos meses. Então era bem natural que essas pessoas
convergissem para a única coisa que lhes dava alguma sensação de calma.
A fé.
Seria possível que alguém tivesse feito isso contra Gabriela em retaliação à
sua crescente popularidade e influência? Algum lunático que de certo modo vira
nela uma ameaça a sua própria existência? Que quisesse mostrar ao mundo que
ninguém fica imune ao chamado final, não importa quão devoto seja?
Seria essa a assinatura dele? Sua marca? Seu foda-se?
Certa inquietação tomou conta de Callahan, e ela de novo se perguntou por
que a Seção a enviara ali.
O que esperavam que ela fosse encontrar?
Isso?
Ela podia entrar em contato com a Seção e perguntar, claro, mas duvidava
de que chegaria a obter alguma resposta. Nem tinha certeza de que eles tivessem
alguma.
Virou-se para Martins, que havia voltado para o corredor. Ele acendera um
cigarro e, tremendo, erguia-o até os lábios para dar uma tragada.
Callahan se aproximou dele.
– Então, o que acha de tudo isso?
Ele exalou ruidosamente.
– Agora você quer a minha opinião?
– Eu não perguntaria se não a quisesse.
– Acho que fui muito claro na hora em que chegamos.
Callahan franziu o cenho.
– Aquilo a respeito de Gabriela ter um pacto com o Diabo?
Ele fez que sim com a cabeça. E deu outra tragada no cigarro.
– Não pode estar falando sério.
– Qual seria a outra explicação? Testemunhamos algo impossível, agente
Callahan. E o impossível só pode ser explicado por meios sobrenaturais.
– Nenhum de nós testemunhou verdadeiramente coisa alguma que seja,
investigador, e eu tendo a seguir a escola de pensamento segundo a qual sempre
há uma explicação esperando para ser encontrada. A única coisa que devemos
fazer é procurá-la.
– Você não acredita em demônios?
– Da mesma maneira como eu gostaria de levantar as mãos e pôr a culpa
em alguma tenebrosa entidade sobrenatural, posso lhe assegurar que, se há
demônios envolvidos nesse crime, são bem humanos. Em vez disso, temo que
estejamos lidando com algum psicopata. Então, por que não deixamos de lado o
aspecto místico por um momento e nos dedicamos ao verdadeiro trabalho
policial?
Martins não disse nada, e ela soube que não conseguiria fazê-lo mudar de
ideia. Mas o problema era dele, não dela.
– Segundo o relatório, você encontrou um telefone celular na sala.
Ele confirmou com a cabeça:
– No chão. Perto do esfregão e do balde.
– Suponho que pertencesse a Gabriela?
– Sim.
– E suponho que você tenha verificado as chamadas?
Por um instante, Martins pareceu querer esbofeteá-la, mas se controlou.
– Havia apenas uma ligação feita recentemente, pouco tempo antes de sua
morte.
– Para quem?
– Seu empresário. Alexandre Rocha.
Callahan se lembrou de ter lido o nome no dossiê.
– É aquele que sentiu o cheiro de gasolina.
Martins confirmou com a cabeça.
– Sim, foi o que ele disse para os investigadores.
– Vi apenas sua declaração inicial nos arquivos. Você deu prosseguimento?
Fez-lhe perguntas a respeito dessa chamada?
– Por que de repente me sinto como se estivesse sendo julgado?
– Veja bem – disse Callahan. – Sei que não gosta muito de mim e sei
também que não pediu minha presença. Mas tenho um mistério para resolver e
pretendo dar o meu melhor nisso. Então, simplesmente responda às perguntas,
está bem?
Callahan tinha certeza absoluta de que acabara de fazer um inimigo para
toda a vida. Mas, numa competição para saber quem tem mais colhões, é melhor
impor-se rapidamente, de forma agressiva e sem piedade, e ela não podia deixar
que o receio daquele homem tomasse conta da investigação.
– Então? Você deu prosseguimento ou não?
Martins a olhou fixamente por um instante.
– Rocha está recluso, e decidi deixá-lo sozinho por enquanto, por questão de
respeito. Ele e Gabriela eram muito próximos.
– Mais um motivo para irmos interrogá-lo – disse Callahan. – Onde
podemos encontrá-lo?
– Ele tem uma suíte pessoal na cobertura dela.
Callahan levantou as sobrancelhas.
– Posso imaginar o quão próximos eles eram.
10
Bastante verdadeiro, mas quem lhe dera lembrar onde já tinha ouvido essa
frase!
Ao prosseguir com a investigação da mala, ela encontrou mais das mesmas
coisas, então resolveu dar uma rápida olhada nos bolsos das calças, na esperança
de achar algo interessante.
A única coisa que conseguiu encontrar foi uma caixinha de chicletes de
hortelã e alguns fiapos de tecido soltos pelo uso.
Bem, não custou nada a tentativa.
Enquanto fechava as malas, sua atenção foi atraída para o closet. Ela
percebeu um leve brilho de luz na escuridão do lugar, vindo do fundo – como
uma luz atrás de uma porta.
Haveria outro cômodo atrás do closet?
Intrigada, levantou-se, entrou no closet e acendeu a luz. As paredes do
recinto estavam cobertas de placas de madeira branqueadas, com prateleiras,
gavetas e sapateira, porém, curiosamente, havia poucas roupas penduradas nos
cabides. A julgar pelo conteúdo das malas, Gabriela não se preocupava muito
com o que vestia fora do palco.
Callahan esperava encontrar uma porta na parede do fundo, mas, em vez
disso, achou mais fileiras de prateleiras divididas em três colunas.
De onde vinha então aquela luz?
Ela não tinha como saber.
Apoiando-se na parte superior das prateleiras, ela se agachou na escuridão
para encontrar um ângulo diferente, e, como esperava, um filete de luz corria ao
longo do fundo da coluna central, mais ou menos da largura de uma porta.
Uma porta oculta.
Erguendo-se de novo, Callahan aproximou-se da prateleira, colocou nela as
palmas das mãos e a empurrou. Já vira esse tipo de porta antes e não ficou
surpresa quando essa girou para dentro, e um feixe de luz do sol vindo da sala
oculta entrou no closet.
Um pequeno santuário privado. Não muito maior que um banheiro comum.
A luz do sol vinha de uma claraboia no teto e descia diretamente sobre um
antigo genuflexório de madeira – ou púlpito – no centro da sala, que de fato era
essencialmente uma estreita mesa com um estrado acolchoado na frente para se
ajoelhar.
Duas velas de altar meio derretidas ladeavam uma pequena cruz de
madeira situada sobre a mesa, e na parede em frente estava outro símbolo, este
muito mais elaborado que aquele da cena do crime. Fora pintado à mão em azul-
escuro, possivelmente pela própria Gabriela:
Um versículo da Bíblia?
Callahan achava que não.
Lembrou-se da inscrição na camiseta de Gabriela e de novo teve a vaga
sensação de que conhecia o texto de algum lugar. Nem tanto as palavras em si,
mas o som da linguagem. O ritmo e o tom.
Sacando seu telefone, ela tirou várias fotos do cômodo, inclusive closes do
símbolo e dos versos, e as acrescentou ao dossiê de Gabriela.
Sem dúvida, a Seção ia querer vê-las, e ela imediatamente transmitiu com
prioridade essas novas informações para o servidor. Como ela estava operando
com base na necessidade de descobrir novas informações, perguntou-se se
haveria algum tipo de reação.
Com a Seção não havia como saber.
Aproximando-se da mesa, ela examinou o altar que ficava ali em cima.
Uma fina tira de couro estava pendurada na cruz, com um medalhão circular
amarrado nela, do tamanho de uma moeda.
Sentindo uma pontada de dor no peito, Callahan pegou o medalhão e o
segurou entre os dedos. Seu pai lhe dera um colar bem parecido com aquele em
seu quinto aniversário. Ela o usara quase todos os dias, até cerca de três meses
depois da morte do pai, quando sua madrasta o jogara fora, assim como quase
tudo o que Callahan tinha.
Contudo, aquele era antigo e provavelmente mais valioso –
monetariamente, pelo menos. Na superfície do medalhão estava gravada a
figura de um homem carregando uma criança nos ombros.
São Cristóvão. Protetor dos viajantes.
Ao virá-lo ao contrário, Callahan encontrou outra figura: um besouro, com
as iniciais CSP gravadas abaixo.
Quem ou o que era CSP? Apenas outro objeto que Gabriela adquirira, ou
seria algo mais pessoal?
Anotando mentalmente as iniciais para não se esquecer de verificar o que
poderiam significar, Callahan devolveu o medalhão a seu devido lugar e dirigiu o
olhar para uma prateleira atrás do alto do púlpito.
Havia lá uma pequena pilha de livros cuja lombada chamou sua atenção: A
chave menor de Salomão; Ritos proibidos; Anjos, encantamentos e revelação…
Todos pareciam ser escolhas inusitadas – especialmente numa sala de
preces –, mas foi o livro do alto da pilha que mais lhe chamou a atenção. Um
livro de capa mole, bastante gasto, que lhe lembrou uma de suas aulas de
literatura na universidade. E, de repente, ela soube de onde vinham os versos da
parede e a inscrição na camiseta de Gabriela.
Paraíso perdido.
As lembranças de Callahan em relação ao livro eram esparsas. Esse livro
era considerado um clássico e tinha algo a ver com Deus e Satã, mas na época
da faculdade ela achara a obra extremamente difícil de ler, a linguagem tão
impenetrável que fora obrigada a procurar uma versão comentada para poder
entendê-la.
Ao pegá-lo, ela olhou a capa, uma reprodução da mesma gravura de
Gustave Doré que estava pendurada acima do piano. Folheou as páginas e, perto
do fim do livro, descobriu que vários trechos haviam sido destacados com notas
manuscritas na margem.
Olhando para o verso na parede, ela verificou a citação: 11: 204–7. Logo
encontrou a passagem.
Do mesmo modo, as linhas haviam sido destacadas em azul. E, ao lado,
escritas em tinta preta, estavam duas palavras:
Defende eam.
O latim de Callahan não era dos mais perfeitos, e a melhor tradução em que
conseguiu pensar foi “protege-a”.
Uma anotação bastante curiosa, mas o que queria dizer? Quem, segundo
Gabriela, precisaria de proteção? Ela parecia estar preocupada com alguém que
conhecia, ou…
– Este livro era a obsessão dela – disse uma voz.
Surpresa, Callahan se virou e viu um jovem com os olhos vermelhos na
entrada do cômodo. Usava um robe, amarrado na altura da cintura.
Alexandre Rocha.
– Ela o levava aonde quer que nós fôssemos – disse ele. – A todos os países,
todas as cidades. Sempre me dizia que era a obra de um gênio. Uma dádiva de
Deus, superada apenas pela Bíblia. – Seus olhos se mexeram sem fixar ponto
nenhum. – Fez um grande bem a ela.
– Lamento sua perda, senhor Rocha – disse, e em seguida estendeu a mão
para saudá-lo. – Sou a agente Callahan.
Alexandre pareceu não notar a mão estendida. Estava olhando em volta,
observando detalhadamente.
– Ela não sabia que eu conhecia este lugar. Pensou que pudesse escondê-lo
de mim, mas não se preocupou em colocar uma fechadura na porta.
Ele fez uma pausa e continuou:
– O fato de saber de sua existência sempre me pareceu uma traição, e
agora você está aí, expondo os segredos dela.
Callahan ignorou a indireta.
– Ela talvez confiasse em você.
Ele sorriu.
– Gabriela tinha grandes esperanças na humanidade, e muitos planos, mas
sua confiança estava reservada às vozes de dentro de sua cabeça.
– Vozes?
– Deus. Anjos. Era uma verdadeira Joana d’Arc.
– Ela lhe contou isso?
Ele fez que sim com a cabeça.
– Uma noite, bem tarde. Num momento de fraqueza. Porém, quando eu
quis saber mais detalhes, ela se esquivou como se tivesse percebido que revelara
algum segredo de Estado – disse, e fez uma pausa. – As coisas nunca mais foram
as mesmas entre nós desde então.
– E isso não o aborreceu? Você nunca pensou que ela pudesse ter problemas
mentais?
Alexandre negou com a cabeça.
– Muitas pessoas ouvem vozes quando rezam, senhora Callahan.
Especialmente as pessoas abençoadas como Gabriela. Nestes últimos meses, ela
manifestava um ardor difícil de descrever. Uma determinação.
– Posso ver que você a amava muito.
– Desde que ela tinha dezessete anos – disse ele. – Na época em que eu
tinha meu próprio ministério. Lembro-me ainda de quando ela se apresentava
nas esquinas, tocando música por uns trocados, batalhando para superar sua
dependência de drogas. Muitas vezes cheguei a pensar que ela já tivesse ido
longe demais para poder encontrar a luz. Mas ela conseguiu.
Callahan pensou na história de fachada contada por Martins.
– Você acha que a dependência dela pode ter tido algum papel em sua
morte?
– De jeito nenhum. Vi como ela ficou desesperada quando sua amiga Sofia
morreu. Ela não ia querer voltar para aquilo, nunca. Não depois de tudo o que
conseguimos.
– E o que acha que aconteceu com ela?
– Eu gostaria muito de saber. Sei apenas que ela não pode ter feito isso a si
mesma.
Callahan concordou com a cabeça.
– No seu depoimento à polícia, você disse que havia identificado um cheiro
de gasolina, pouco antes de você e o guarda-costas a encontrarem.
– Sim.
– Tem certeza disso?
– Sim.
– Foi exatamente antes de você ouvir os gritos de Gabriela, certo?
Ele fechou os olhos.
– Sim.
– Naquela altura, fazia quanto tempo que ela estava desaparecida?
Ele pensou por um instante. Encolheu os ombros.
– Três… talvez cinco minutos. Não mais do que isso.
– E entre o momento em que você ouviu os gritos e aquele em que a
encontrou no depósito?
– Não mais do que trinta segundos, mais ou menos. E, naquele momento,
ela já estava… – ele interrompeu e olhou fixamente para o chão, como se
estivesse prestes a passar mal.
– Lamento ter de insistir nisso, senhor Rocha, mas quero ter certeza absoluta
de que também sentiu o cheiro de gasolina.
Ele a olhou com dureza.
– Você acha que estou mentindo?
– Acho que poderia estar confuso. A que distância se encontrava quando
sentiu o cheiro?
– Bastante longe. Gabriela estava num longo corredor, depois de uma curva.
Mas não tenho dúvida alguma.
As emanações desses combustíveis têm cheiro forte, pensou Callahan, mas
será que Rocha foi capaz de senti-las daquela distância? E por que nenhum dos
guarda-costas corroborou seu depoimento?
Será que ele imaginou ter sentido o cheiro?
Rocha se apoiou no batente da porta, e ela pôde ver o peso da dor que ele
sentia.
– Podemos parar com isso, por favor?
– Apenas umas últimas perguntas – disse ela, fazendo então um gesto em
direção à parede atrás do púlpito. – Você disse que já esteve aqui antes. Será que
faz ideia do que representa aquele símbolo?
Alexandre deu uma olhada no desenho e negou com a cabeça.
– Eu provavelmente deveria, mas não consigo reconhecê-lo. Tenho certeza
de que isso tinha um significado especial para Gabriela. Sua fé era profunda.
– Acredito que isso seja uma suposição bastante irrefutável – disse Callahan,
mostrando-lhe, então, o trecho marcado do Paraíso perdido. – Você disse que ela
era obcecada por este livro. E essa anotação na margem? É a letra de Gabriela?
– Sim.
– “Defende eam” quer dizer “Protege-a”. Você sabe de quem ela estava
falando?
Outra vez ele deu de ombros:
– Podia ser qualquer um, imagino. Gabriela lidava com muita gente. Fãs.
Voluntários de obras de caridade. Estudiosos da Bíblia.
– E no que diz respeito aos membros da equipe?
– Temos ótimos funcionários.
– Você sabe se algum deles pratica rituais ocultistas?
Ele pareceu ofendido com a pergunta.
– Claro que não. Todos os membros da equipe de Gabriela encontraram o
Caminho, inclusive seus guarda-costas. Por que você faz esse tipo de pergunta?
Então ele não vira a marca no chão.
E ninguém se preocupara em informá-lo.
– Meu trabalho consiste em verificar todas as possibilidades – disse ela. –
Você conhece alguém que tenha as iniciais CSP?
Ele pensou um instante e negou com a cabeça.
Callahan colocou o livro sobre o púlpito e fez um gesto em direção ao
medalhão de São Cristóvão. – Você sabe quem deu isso a ela?
– Certamente deve ser uma de suas bijuterias da casa de leilões –
respondeu, olhando para o objeto. – Terminamos?
– Mais uma coisa. E o seu telefone celular? Você conseguiu encontrá-lo?
Ele confirmou com a cabeça. Procurou no bolso de seu robe e tirou um
iPhone.
– Passo metade de minha vida com essa coisa, mas não o toquei desde a
morte de Gabriela.
– Você nem checou o correio de voz?
Ele fez um movimento com a mão, como se rejeitasse a ideia:
– Tenho certeza de que deve haver dezenas de recados. Pessoas ligando
para dar os pêsames. Mas eu não tive energia…
– E quanto à mensagem que veio do celular de Gabriela?
Ele lançou um olhar ríspido para Callahan.
– Do que você está falando?
– As ligações feitas no celular dela mostram que ela discou seu número
pouco antes de morrer. Ela pode ter deixado um recado.
Alexandre ficou pálido.
– O quê?
Ele olhou para seu celular e, enquanto Callahan o observava, tocou
imediatamente a tela, para ativar a função de correio de voz. Deixou o dedo rolar
sobre dezenas de avisos de mensagens até chegar àquele escrito Gabriela.
Ele parou, olhando-o fixamente.
– Ah, meu Deus! – disse ele em voz baixa. – Ah, meu Deus!
11
Antes que Alexandre ouvisse a mensagem, Callahan lhe pediu que levasse o
telefone até a sala de estar. Ela queria que Martins também escutasse. Parecia
ser a coisa certa a fazer, considerando-se que supostamente a investigação era
dele.
Depois que todos se sentaram no sofá e em duas cadeiras perto do meio da
sala, Alexandre colocou o telefone sobre a mesa de centro, tocou no ícone viva-
voz e apertou o play.
O que ouviram foi uma surpresa para todos.
Começou com um forte estrondo, como se o telefone tivesse batido no chão
e rolado. Então ecoou a voz de Gabriela, mas suas palavras eram ininteligíveis.
Ela parecia balbuciar algo incoerente, impossível de decifrar. E começou a
chorar; sua voz estava abafada pelas lágrimas, mas ficava cada vez mais alta e
intensa…
– Não… Fique longe de mim!
Aquela súplica fora dirigida a alguém, embora não se ouvisse nenhuma
outra voz na sala.
Ela começou então a tossir violentamente, soluçando, lutando para
conseguir respirar. Seguiu-se de repente uma certa confusão – pés se arrastando,
alguém tropeçando, batendo em algo, e Gabriela chorava, tossia e engasgava,
ainda suplicando.
Outro barulho de batida foi seguido por um longo silêncio, apenas
interrompido pelo som de uma respiração ofegante acompanhada de tosse.
Agora ela se encontrava perto do telefone e, depois de um instante, disse
algo, que repetiu duas vezes. Mas as palavras não pareciam mais do que um leve
lamento, inaudível, e seus suspiros de angústia eram abafados demais para serem
compreendidos.
Então, após outro longo silêncio, ela começou a gritar.
Terra da perdição
No orbe vagam,
Quer dormindo estejamos, quer despertos,
Invisíveis espíritos sem conto.
—Paraíso perdido, IV:677-78
13
Ele observou a garota sair do ônibus na estação Grey hound. Os pequenos olhos
dela observavam os arredores com ar de óbvio desapontamento.
Não era, imaginou ele, o que ela esperava encontrar. A cidade não era tão
limpa quanto parecia na televisão – avenidas engarrafadas, bueiros entupidos de
lixo, a neblina não mais tão densa quanto já fora e com vago cheiro de lixo,
umidade e enxofre.
Ali não havia um céu azul digitalmente produzido. E as únicas palmeiras que
ainda restavam haviam se tornado vítimas de uma lenta deterioração.
Uma sem-teto se acomodara na calçada perto da saída da estação, e a
garota se desviou dela, segurando firmemente a mochila enquanto avançava,
com visível receio de que a velha se levantasse de repente e lhe impedisse a
passagem, como um duende à porta do Purgatório.
Mas a velha não se mexeu. Apenas olhou para a garota quando esta passou
diante dela e seguiu seu caminho em direção ao Holly wood Boulevard, onde
com certeza as coisas deveriam estar melhores.
Afinal de contas, ali era a terra dos sonhos. O lar das estrelas.
Mas ele sabia que as coisas não estariam melhores. E, à medida que seguia
a moça, mantendo uma pequena distância entre eles, pôde ver mudanças na
atitude dela conforme aumentava seu desapontamento. Os passos da garota
ficaram mais lentos, seus ombros se encolheram, sua cabeça girava à procura de
algo – qualquer coisa – que lhe parecesse no mínimo atraente.
A barraquinha de frango da esquina? A financeira? O pronto-socorro com
grades de ferro nas janelas? O estúdio de tatuagem?
Não havia nada. E ele sabia que de repente ela ficara aterrorizada,
perguntando-se se não cometera um erro.
Naquela época e naquela idade, ela deveria ter se informado melhor. Mas
as garotas de quinze anos não costumam ter senso crítico, sobretudo quando
querem desesperadamente abandonar o lar.
Há coisas que nunca mudam.
Já fazia alguns dias que ele a observava. Seguiu-a por todo o caminho desde
Lawton, no Arizona. Ela desaparecera de casa, mas ele a encontrara numa
parada de ônibus, contando o dinheiro que escondera na gaveta de sua cômoda e
guardando-o perto dos seios nascentes, esperando que ninguém estivesse
prestando atenção a ela.
Mas ele estava.
E, durante todo o tempo em que esteve observando a garota, do Arizona à
Califórnia, ficou se perguntando se seus instintos não estariam errados.
Já errara antes. Várias vezes, aliás.
Houve o caso daquele estudante de intercâmbio no leste da França. O pintor
de Hammersmith, na Inglaterra. O filantropo da Macedônia. O missionário do
norte da Tailândia…
Ele procurara por todo o globo, ano após ano, e pensou que enfim tivesse
ouvido o chamado. Mas, na verdade, o que ouvira tinha sido seu próprio desejo.
Nada mais. E aí ele começou a se perguntar se tudo não passaria de uma
mentira. Uma cruel decepção, perpetrada por um pai que não se importa mais.
Mas aquela era diferente.
Aquela lhe trouxera esperança.
O tipo de esperança de que ele nem se lembrava mais. O tipo de esperança
que ele sentira outrora, quando tomara a decisão de parar com a matança, com a
devassidão, com o narcisismo interesseiro que norteava tantos de seus pares.
Talvez ele estivesse louco, mas daquela vez as circunstâncias pareciam
finalmente favoráveis. A quarta lua já estava chegando, e ele poderia ouvir a
alma da garota chamá-lo, muito mais alto do que qualquer um de seus
antecessores.
Ele sabia que ela era diferente. Especial.
Uma dádiva de um pai ausente.
Seu recado para Deus.
Após andar vários quarteirões a esmo pelo Holly wood Boulevard, a mochila
começou a pesar-lhe nas costas, e a garota foi até um pequeno café na esquina
da Gower Street, o tipo de lugar que devia ter preços adequados ao minúsculo
orçamento dela.
Ele esperou enquanto ela comprava um muffin e uma xícara de chá. Ela se
sentou perto da janela, olhando na direção de que viera com seus olhos
provincianos, cheios de apreensão e confusão, vagamente melancólicos e
lacrimosos. Ele sabia que ela estava desmoronando e que logo começaria a sentir
pânico, e então estaria pronta para ser levada pela primeira “boa alma” que
aparecesse.
Ela estava muito mais segura antes, em Lawton. Apesar de seu padrasto
repugnante, o mundo à sua volta era bem menor, mais fácil de controlar. Mas
tente convencer uma adolescente de que a melhor coisa que pode fazer é ficar
onde está para ver no que dá. Especialmente quando o dito padrasto começa a
querer ficar mais próximo e fazer comentários a respeito das mudanças no corpo
dela. Sobretudo, quando mamãe está no trabalho.
E mamãe sempre estava trabalhando.
Ao entrar no café, ele se dirigiu para uma mesa no fundo, tomando cuidado
para não perdê-la de vista.
Ainda era cedo demais. Ele não queria assustá-la.
A garota o olhou de relance quando ele entrou, sem prestar-lhe muita
atenção, o que lhe convinha perfeitamente. Ela manteve o olhar fixo na rua,
tomando pequenos goles de chá, mordiscando nervosamente o muffin, talvez se
perguntando se teria dinheiro suficiente para encontrar um lugar onde pudesse
dormir e ainda ficar com algum trocado. Havia um abrigo gratuito pouco menos
de um quarteirão abaixo, na Gower Street, mas ele duvidava de que ela soubesse
disso. A única coisa que ela planejara antes de tomar o ônibus fora comprar a
passagem.
E, como ele ainda não estava pronto para estabelecer contato com ela, sabia
que precisava encontrar um meio de guiá-la até lá.
O que, claro, era a parte mais difícil.
Uma das coisas que ele aprendera em todos esses anos de “sobriedade”,
como os chamava, era que as pessoas tinham cada uma sua própria mente, e que
levá-las a fazer o que ele queria sem recorrer à trapaça – o que o levaria a
desrespeitar seu código – requeria muita inventividade. Mas ele também
descobrira que, ao serem colocadas diante da oportunidade, elas costumavam
fazer a escolha certa.
Porém, como ele bem sabia, não era a decisão em si que importava. Era a
intenção que havia por trás que contava.
Desligar os aparelhos de um ente querido à beira da morte para poder
herdar seus bens é muito diferente de desligá-los para interromper seu
sofrimento. De um lado, um assassino; do outro, um humanitário; mas não há
como ser ambos ao mesmo tempo.
E a primeira atitude nunca lhe trará uma passagem direta para o céu,
independentemente da maneira como as coisas possam ser vistas de fora, como
um todo.
Ela já tinha comido metade do muffin quando um jovem passou diante da janela
do café. Vinte e cinco anos, magro, porém musculoso, cabelo castanho
despenteado e barba de alguns dias no queixo. Um belo rapaz de Holly wood –
como tantos outros lá fora –, e um predador, sem dúvida.
Ele percebeu isso antes mesmo que o rapaz desaparecesse da vista.
Alguns instantes depois, o rapaz bonito estava de volta. Ele olhou a garota
pela janela, deu-lhe um sorriso e foi até a porta.
Ao entrar, ele chamou a atenção dela dizendo:
– Carrie?
A garota pareceu confusa e um pouco nervosa, e o rapaz andou em direção
à mesa dela dando seu melhor sorriso no estilo Jack Nicholson, mas sem
nenhuma travessura nem malevolência por trás.
– Carrie Whitman, certo? Você estava na minha aula de teatro para
iniciantes, no ano passado. Você fez aquela improvisação. A cena de amor, você
se lembra?
A garota, visivelmente constrangida, disse:
– Acho que está me confundindo com outra pessoa.
– Não, não, não – respondeu ele, pegando então uma cadeira e sentando-se.
– Nunca vou esquecer o beijo que você me deu. E você continua tão atraente
quanto antes.
A garota começou a corar.
– Sério, não sou essa Carrie, e nunca tive aulas de teatro na vida.
O rapaz franziu o cenho.
– Será que você não está querendo me fazer de bobo? Porque juro por Deus
que vocês duas poderiam ser… – Ele fez uma pausa, olhando-a ainda mais de
perto. – Sim, sim, acho que está certa. Agora, pensando bem, você é
definitivamente mais atraente do que ela.
Ele se levantou e ajeitou a cadeira.
– Desculpe por ter sido tão tolo.
Ah, como ele era bom nisso.
– Não se preocupe – disse a garota.
O rapaz lhe lançou outro sorriso, então a saudou com a cabeça e caminhou
em direção à saída. Ela já havia caído na armadilha, pois girou a cabeça,
seguindo-o com o olhar, enquanto ele passava de novo diante da janela.
Então ele parou, deu meia-volta e entrou de novo no café.
Agora ele olhava para a mochila dela.
– Você acabou de chegar aqui, na cidade?
A garota era inocente, mas não de todo ingênua, e hesitou antes de
responder:
– Sim. Há pouco tempo.
Ele estendeu a mão:
– Eu me chamo Zack.
Ela olhou a mão dele fixamente por alguns instantes, como se estivesse
ponderando sua decisão, até enfim apertá-la.
– Jenna.
– Está procurando um lugar para ficar hoje à noite?
– Hã… – disse, num outro momento de hesitação. – Sim, estou.
– Eu e alguns amigos dormimos num lugar lá em Burbank. Tem um monte
de quartos, se quiser se juntar a nós… Não é grande coisa, mas é melhor que
qualquer um desses hotéis vagabundos que existem por aqui.
Enquanto isso, uma mulher entrou e pediu um café. Zack não estava falando
propriamente num tom de voz de conversa, o que chamou a atenção da mulher
antes mesmo que ela tivesse tempo de guardar a carteira.
Zack ainda estava no meio de suas explicações, e a garota começava a ficar
interessada com a perspectiva de não ter de dormir numa alameda ou num ponto
frequentado por drogados, quando a mulher se virou e disse:
– Bobby, dê o fora daqui antes que eu chame a polícia.
Seu tom de voz era neutro, pragmático, prático.
Ele se virou, irritado com a interrupção. Mas sua atitude mudou assim que
ele percebeu quem ela era. Pelo visto, ele e aquela mulher se conheciam.
Jenna franziu a testa.
– Pensei que tivesse dito que se chamava Zack.
– Meu nome do meio – disse ele, que, é claro, estava mentindo. Todos em
Holly wood tentavam reinventar-se. – E não gosto que as pessoas me chamem de
Bobby – disse, olhando agora para a mulher.
A mulher não olhou de volta.
– E não gosto quando você caça garotas que têm em média dez anos menos
que você. Acredite em mim, Bobby, saia agora ou vou mesmo chamar a polícia.
Ela mostrou o celular para intensificar a ameaça. Zack pareceu se irritar,
mas, antes que ficasse furioso e talvez perdesse a cabeça com ela, olhou para as
duas mulheres, murmurou a palavra “vadia” e acabou se retirando furtivamente
em direção à porta.
Jenna parecia assustada.
– Quem era esse cara?
– Alguém com quem você não deve se envolver, querida. Ele aparece de
vez em quando no abrigo para amolar as garotas, e sempre tenho de expulsá-lo.
– Abrigo?
– Cuido de um abrigo para sem-tetos no final da rua – disse, dando uma
olhada na mochila de Jenna. – É bem provável que fique lotado esta noite, mas
logo vai escurecer e você vai precisar de um lugar para pernoitar. Eu ficaria feliz
em improvisar uma cama no meu escritório.
– Verdade?
– Claro. Mas você precisa se decidir antes que chegue o café que pedi,
porque há muitas garotas lá fora que poderiam usar o espaço.
Logo que o pedido ficou pronto, Jenna pegou a mochila e seguiu a mulher
para fora do café.
Ele pensou em segui-las, mas achou que não seria necessário. Jenna estava
em boas mãos naquela noite, e isso era tudo o que importava. O belo Zack com
certeza ia arrumar encrenca – tinha a sensação de que Jenna ia se deparar com
ele de novo –, mas isso também poderia ser resolvido na hora certa.
Enquanto as duas mulheres desapareciam de vista, ele ainda continuou a
ouvir o canto de sereia da alma de Jenna. Aquelas notas suaves e agudas lhe
diziam que finalmente ele encontrara quem estava procurando havia tantos anos.
Pena que ela teria que morrer.
14
Batty estava sentado naquele lugar havia cerca de uma hora, com os braços e as
pernas dormentes, quando ouviu um som: uma porta se abrindo e fechando em
algum lugar acima dele. Estava tão fraco que por um momento se perguntou se
não seria sua imaginação, mas então seu instinto lhe disse que não estava mais
sozinho – fosse onde fosse.
Logo depois, ele ouviu passos descendo uma escada, e uma porta se abriu
bem na sua frente, deixando entrar uma leve corrente de ar fresco.
– Meu Deus – disse alguém.
Não o turista, mas uma mulher. E ela não parecia nem um pouco feliz.
– Quem é você? – perguntou ele. – O que quer de mim?
– Certamente não isso.
Então ele ouviu os passos enquanto ela se movia atrás dele. Ficou mais tenso
quando ela agarrou a venda e a tirou de repente.
Uma crua luz fluorescente lhe agrediu os olhos, e ele piscou para proteger-
se, vislumbrando um pequeno porão com chão e paredes de cimento e uma
bancada cheia de ferramentas.
A mulher se posicionou na frente dele, e ele fez o possível para focalizá-la.
Não era tão bonita quanto Rebecca nem quanto a ilusória ruiva, mas seu aspecto
geral era bem atraente, e ele não teve dúvida de que em seu tempo ela já partira
alguns corações.
E colhões.
Não era especialmente grande ou musculosa, mas seu corpo mostrava uma
robustez bem definida, e havia uma ferocidade em seu olhar que o fez acreditar
que ela seria capaz de derrubá-lo mesmo sem querer.
Felizmente, essa não era a intenção dela.
– Quero lhe pedir desculpas pela maneira como foi tratado, professor. Às
vezes, as pessoas para as quais trabalho confundem brutalidade com eficiência.
– As pessoas para as quais você trabalha?
Ela tirou uma carteira do bolso traseiro da calça e a abriu, mostrando-lhe
seu cartão de identidade com o que parecia ser um selo oficial.
– Agente Bernadette Callahan. Departamento de Estado.
Batty ficou boquiaberto. O documento parecia bastante real, mas mesmo
assim ele tinha dúvidas. Que diabo o governo dos Estados Unidos queria com ele?
– Desde quando o Departamento de Estado sequestra pessoas?
– Você nem imagina – respondeu ela.
A julgar pela energia que pairava na sala, bem que ele podia imaginar.
Olhou para o chão, viu um ralo e se perguntou quanto sangue já escoara por
aquele buraco.
– Esse seu pedido de desculpas – disse ele, mexendo os pulsos amarrados –
não inclui me desatar?
Callahan não se mexeu.
– Isso depende.
– Do quê?
– De saber se posso ter certeza de que você não vai fazer nenhuma
bobagem.
– É muito tarde para isso – disse Batty. – Você terá de ficar de olho em
mim.
– É por isso que hesito. Já li seu dossiê. Sei que às vezes você gosta de agir
primeiro e perguntar depois… E suponho que foi assim que conseguiu essas
contusões no rosto.
– Confesso que sou culpado.
– Então, veja bem, se você tentar qualquer coisa, terei de machucá-lo –
disse, e em seguida sorriu. – E não quero machucá-lo.
– Mas me deixar amarrado como um porco é perfeitamente normal.
– Não fui eu que tomei essa decisão. Se você me der sua palavra de que vai
se comportar direitinho, vou soltá-lo, e podemos resolver isso como dois seres
civilizados.
– Já é um bom começo – disse ele. – E o que é exatamente isso?
– Tenho sua palavra?
Ele deu de ombros.
– Tenho outra escolha?
– Vou considerar sua resposta como um sim.
Ela foi até a bancada e voltou com um pequeno alicate. Agachando-se na
frente dele, ela lhe desatou as pernas. Depois, foi para trás e novamente cortou as
tiras de plástico que seguravam os pulsos dele.
Batty soltou os braços, olhando para ela enquanto esfregava os pulsos.
– E agora?
– Agora vamos subir e tomar algo.
– Acho que gostei desse plano.
– Uma bebida não alcoólica, professor. Quero que fique sóbrio como uma
freira para essa conversa.
– Você não deve conhecer muitas freiras.
17
Ele nem precisava lê-las. As palavras lhe eram tão familiares quanto o
Antigo Testamento. Talvez mais.
– Paraíso perdido – disse ele. – Qual é o problema?
– É isso o que espero que possa me dizer. Ouvi dizer que você é a maior
autoridade em John Milton.
– Depende da pessoa a quem você for perguntar. O que isso tem a ver com
a Barbie cristã?
– Você não vê as notícias? Não lê os jornais?
– Se eu posso evitar, não os leio.
Callahan acenou com a cabeça e mostrou a folha de papel.
– O que pode me dizer a respeito desse trecho?
Batty deu outra olhada no texto.
– Nada especialmente revelador. Você pode procurar esse assunto no
Google e encontrar tudo que quer saber.
– Não sou uma grande fã da internet, professor. Há muita desinformação.
Gosto do fator humano. Alguém com quem eu possa conversar. Trocar ideias.
Há algo nesse trecho que lhe pareça estranho?
– Em que sentido?
– Num sentido que possa explicar por que a vítima de um assassino tinha
essas palavras pintadas em sua parede.
Batty olhou para ela.
– Me diga exatamente em que está me envolvendo.
– Os detalhes virão em seguida. Por enquanto, responda às perguntas.
Batty leu de novo os versos.
– Primeiro, estão incompletos. Tem muito mais antes e depois. Acredito que
você saiba que é um trecho do Livro XI, quando o sol é eclipsado e Adão e Eva
veem uma nuvem descendo do céu.
Callahan confirmou com a cabeça.
– Achei tudo isso nas edições comentadas.
– Mas se estiver procurando algum tipo de sentido oculto, temo que esteja
perdendo seu tempo. Visto como um todo, Paraíso perdido é obra de um gênio,
mas algumas linhas soltas não têm muito sentido além do simples fato de que sua
vítima pudesse ter algum tipo de atração por anjos. O que, é claro, me leva a
crer que esteja falando de Gabriela Soares, e isso é minha deixa para me
despedir.
Ele pôs o copo e a folha de papel sobre a mesa de café à sua frente e se
levantou.
Callahan não se mexeu.
– Sente-se, professor. Não acabamos ainda.
– No que me diz respeito, sim.
– Quer que eu o leve de volta para baixo e o deixe amarrado?
Batty olhou para ela. Ele podia ter um bom golpe de esquerda, mas não
duvidava que ela fosse perfeitamente capaz de executar aquela ameaça sem o
mínimo esforço.
Ele se sentou de novo.
– Sabe, provavelmente eu seria muito mais cooperativo se você me
contasse do que se trata.
Então ela lhe contou.
Explicou-lhe que estava ali para ajudar a polícia local a investigar a morte
de Gabriela Soares. Que havia muitas perguntas sem resposta, inclusive possíveis
sinais de rituais satânicos. Que, aparentemente, Gabriela era obcecada pelo
Paraíso perdido e deixara uma mensagem misteriosa que talvez tivesse alguma
relação com o livro.
Batty mostrou a folha de papel.
– Estes versos?
– Isso é apenas uma parte do que encontramos. A mensagem que me
interessa está escrita na margem do livro, e ela a repetiu no telefone pouco antes
de morrer.
– E o que era?
– Defende eam. Protege-a.
– Proteger quem?
– É isso que estou tentando descobrir. Quando a vítima diz algo desse tipo
pouco antes de ser assassinada, você tende a pensar que deve ser importante.
Seja qual for a pessoa que ela queira proteger, trata-se de outra vítima potencial,
ou de uma possível testemunha. Então você pode entender por que nós queremos
localizar essa pessoa.
– Temo não poder ajudá-la muito nisso.
– Sei que se trata de um tiro no escuro, professor, mas você não vê
nenhuma possibilidade de a mensagem estar relacionada a esses versos?
Batty negou com a cabeça e suspirou.
– O Paraíso perdido gira em torno da queda de Satã e da corrupção dos
homens, e, apesar de sua vítima ter sido obcecada por ele, não consigo vincular
nenhuma parte da obra a um assassinato ou a rituais satânicos.
– Você se importaria de dar uma olhada nas fotos da cena do crime?
– Se eu me recusar, você ainda assim me soltará?
– Nem pensar.
– Não sei em que isso lhe poderá ser útil.
– Dê apenas uma olhada e me diga se algo lhe parece estranho.
Ela pegou o celular e manuseou-o por alguns instantes antes de entregá-lo a
Batty.
– Basta tocar na seta para fazer as fotos deslizarem.
Batty seguiu as instruções, e a tela se iluminou com uma foto publicitária de
Gabriela Soares. Antes disso, ele tinha apenas uma vaga ideia da aparência da
moça, mas, no momento em que viu o rosto dela, seu coração disparou.
Ele a vira antes. E não na televisão.
Era a moça que aparecera em seu pesadelo na noite anterior. Aquela cujos
gritos o despertaram. Aquela consumida por uma parede de fogo.
Ele ficou parado, olhando fixamente para a foto, e então, com relutância,
tocou de novo na tela, avançando para as demais fotos.
O que ele viu foi um corpo calcinado. Além de qualquer possível
identificação. E depois fotos de um chão com chamuscados escuros que
formavam um círculo com um “A” no centro.
Batty sentiu arrepios na nuca.
Ele olhava mudo para a tela e, de repente, foi levado para um lugar aonde
não queria ir. E para um momento no tempo que ele passara os dois últimos anos
tentando apagar.
Lutando para se recompor, ele disse:
– Onde encontraram o corpo?
– Num depósito, nos bastidores do espaço em que ela se apresentava.
– Preciso ir até lá. Agora mesmo.
Callahan franziu a testa.
– Não é uma boa ideia, professor. Tenho certeza de que você pode nos
ajudar sem ter de…
– Não está entendendo. Não estou pedindo. Estou lhe comunicando. É
imperativo que eu veja esse depósito. Você está correndo perigo. Um grande
perigo. Assim como todos os que estão envolvidos nessa investigação.
– Perigo? Do que está falando?
Batty se levantou de novo. Ela até poderia tentar impedi-lo, mas dessa vez a
adrenalina estava com ele.
– Não se trata de uma negociação – disse ele. – Leve-me até a cena do
crime ou saia do meu caminho.
18
LaLaurie estava ferido, tudo bem. Em algum ponto perto do lobo temporal
esquerdo.
Isso poderia explicar por que estava de licença por tempo indeterminado do
Trinity Baptist College.
Callahan deixara o homem falar o que bem quis, e nenhuma das palavras
que ele proferira poderia expressar quão desapontada ela estava. Ou contrariada.
Talvez fosse ela que tivesse de juntar-se aos malucos por tê-lo deixado ir tão
longe.
Estava na hora de parar com essa maluquice e colocar o sujeito num avião
de volta para casa antes de ir dormir.
– Obrigada por seus esclarecimentos, professor. Tenho apenas uma última
pergunta. Que talvez suscite uma resposta racional.
– Você não quer ouvir o resto?
– Vou deixar isso para você e seu psiquiatra. Mas você parece ter muito
conhecimento dos objetos cristãos, então talvez possa me dizer o significado de…
Ela parou de falar ao olhar para a cruz de madeira que ficava acima do
genuflexório e perceber que a correntinha havia sumido.
– Que diabo aconteceu com ela?
LaLaurie se sentiu perdido.
– Com o quê?
– A medalha de São Cristóvão. Estava pendurada aqui ontem.
A aparência do rosto de LaLaurie passou da leve confusão para a repentina
surpresa.
– Que tipo de medalha de São Cristóvão?
– O que quer dizer com que tipo?
– Como era? Havia alguma coisa no verso?
Callahan confirmou com a cabeça:
– Umas iniciais e a figura de um besouro.
LaLaurie enrijeceu.
– Tem certeza disso?
– Por quê? Isso quer dizer alguma coisa?
– Poderia mudar tudo.
– Como?
– Preciso vê-la. Agora mesmo.
– Já lhe disse, alguém a pegou.
– E você não faz ideia de quem possa ser?
De fato, ela pensava em alguém. Duvidava que Alexandre tivesse energia
emocional para fazer alguma coisa àquela altura, então sobrava apenas a
empregada, Rosa.
Virando-se, Callahan saiu, atravessou o quarto e voltou para a entrada, com
LaLaurie atrás dela. Chamou Rosa, e logo depois a mulher apareceu pela porta
da cozinha, com um olhar esquisito.
Callahan disse:
– Gabriela tinha uma medalha de São Cristóvão na sala de preces. Você a
pegou?
– Sim, senhorita. Para preparar o enterro.
– Para o enterro?
– Sim. Ela me disse que, se alguma coisa acontecesse com ela, queria ser
enterrada com a medalha.
– Por que disse isso?
– Acho que era muito importante para ela. Muito pessoal.
Parecia brincadeira. Callahan disse para a empregada trazer a medalha, e
Rosa desapareceu por outro corredor, voltando alguns minutos depois com a
correntinha na mão.
– Vocês não vão ficar com ela, vão?
– Só por enquanto, queremos apenas dar uma olhada – disse Callahan. –
Mas, nesta altura, não posso fazer nenhuma promessa.
Rosa lhe deu a corrente, e Callahan passou-a para LaLaurie.
Ele quase ficou paralisado ao pegá-la, olhando-a intensamente. Então girou
a medalha entre os dedos, para ver a gravação no verso, com as mãos tremendo,
o rosto passando por uma dúzia de mudanças antes de ficar completamente
atônito.
– CSP – disse ele, calmamente. – Eu estava errado a respeito de Gabriela.
Isso é muito mais do que uma invocação que deu errado.
– Você sabe o que querem dizer essas iniciais?
O rosto de LaLaurie voltou a empalidecer, mas havia algo como uma
estranha excitação em sua expressão, como se ele tivesse tropeçado num cofre
que escondesse joias.
– Ela era Custodes Sacri – disse ele suavemente. – É a única explicação.
Ninguém mais teria isso. Ninguém. Nem mesmo um colecionador. E é por isso
que ela estava tentando invocar Miguel. Provavelmente, eles se falavam com
regularidade.
– Que diabo é Custodes Sacri?
Ele girou de novo a medalha entre os dedos, observando-a, e então levantou
a cabeça em direção a Callahan.
– Acho que está na hora de tomar outro drinque – disse ele. – Algo muito
mais forte do que suco de laranja.
19
Batty nunca contara aquela história antes. Ele a repassara na tela de cinema de
sua mente inúmeras vezes até ficar permanentemente enjoado, mas nunca a
contara em voz alta. Nunca dera voz a seu terror.
– Vivíamos em Ithaca naquela época. Meu livro sobre Milton havia sido
publicado com boas críticas uns dois anos antes, e eu aceitara ser professor
associado na Universidade Cornell enquanto preparava o próximo livro.
– É bastante longe do Trinity Baptist College.
Pode crer, pensou ele. Muitas coisas haviam mudado nos dois últimos anos.
– Nem pensávamos em voltar para a Louisiana. Tínhamos uma vida
bastante regular, e Rebecca se sentia um pouco impaciente. Era formada em
filosofia e estudos religiosos, mas não queria trabalhar, e, mesmo que eu tenha
vergonha de admiti-lo, devo confessar que andava ocupado demais para lhe dar
muita atenção.
Ele frequentemente se culpava por não ter percebido isso naquela época.
Talvez, se não tivesse negligenciado Rebecca, hoje ela estivesse viva.
– Isso me parece um típico casamento – disse Callahan. – Como vocês se
conheceram?
– Num sonho.
Demorou um momento para que ela entendesse aquela resposta. Então,
levantando as sobrancelhas, ela perguntou:
– E como isso funciona mesmo?
– Às vezes, sonho com coisas. Vejo pessoas.
– E sua esposa era uma dessas pessoas?
Ele confirmou com a cabeça:
– Eu estava estudando em Princeton. No sonho, vi Rebecca no alto dos
degraus do Nassau Hall e fiquei um tanto surpreendido quando ela se virou e me
olhou fixamente. Disse meu nome. Mais tarde, descobri que ela também era
médium.
Callahan parecia confusa.
– Não estou entendendo.
– Estávamos compartilhando o mesmo sonho.
Batty se lembrava desse sonho com muita clareza, e da repentina exaltação
que mais tarde sentiu ao ver Rebecca nos mesmos degraus e ao perceber que ela
o reconhecera.
O compartilhamento de sonhos não era algo incomum entre sensitivos, mas
em geral era preciso um esforço coordenado para que isso funcionasse, e este
fora espontâneo e divertido. Ainda mais que a garota com quem compartilhara o
sonho era linda de tirar o fôlego.
Callahan não disse nada, mas Batty soube que ela estava acrescentando
mais um item à sua crescente lista de absurdos.
O garçom finalmente lhe trouxe a bebida, e ele tomou um gole antes de
prosseguir.
– Pois bem, vamos voltar para Ithaca. Rebecca e eu nos instalamos lá, e ela
estava impaciente. E, como sempre tivera uma imensa curiosidade, outro traço
que compartilhávamos, começou a se interessar por ocultismo e angelologia.
– Angelologia? Isso é novidade.
– Não exatamente. As pessoas estudam os anjos há séculos.
– É daí que vem todo esse negócio sobre anjos bons e anjos maus?
Batty confirmou com a cabeça.
– Miguel, Rafael, Uriel… todos eles. Houve uma época em que estavam lá
embaixo, no fogo, junto com Belzebu, Mamon e Moloque. A única diferença é
que Miguel e os outros decidiram ignorar o chamado de Satã para pegar em
armas e foram embora. Decidiram honrar seu criador em vez de lutar contra
ele. Assim nasceu o mito, que os promoveu a arcanjos. O mesmo mito que é
vendido aos alunos todo domingo. Mas a verdade é que não há muita diferença
entre eles. Estão apenas lutando pelo que acham certo.
Callahan tomou um bom gole de vinho e suspirou.
– Acho que meu cérebro está prestes a implodir.
– Imagine como me sinto. Rebecca tornou-se cada vez mais obcecada com
esse negócio e me disse que tinha começado a ouvir vozes em sua cabeça.
Callahan retesou-se ligeiramente.
– Foi exatamente isso que o namorado de Gabriela me disse. Mas ele
afirma que muitas pessoas ouvem vozes quando rezam.
– Muitos sensitivos as ouvem também. Então não dei muita importância a
isso até uma noite em que ela disse que sentia que podia estar correndo perigo.
Ela experimentara fazer conjurações e tinha receio de ter invocado um anjo
malévolo.
– Ou talvez atraído um psicopata que pensava ser um deles.
– Pode continuar acreditando nisso se isso a faz se sentir melhor. Mas eu
estava lá, e estou aqui para lhe dizer que quem a perseguia não tinha nada de
humano. Havia uma presença na casa. Algo nos espiando.
Ele se lembrava de quando acordava ao lado de Rebecca e sentia aquela
presença bem ali, na escuridão do quarto, um leve cheiro de enxofre no ar. Mas,
estranhamente, a malevolência não parecia ser dirigida a ele. Apenas a Rebecca.
E, enquanto ele a olhava dormir, sabia que algo precisava ser feito.
– Então mergulhamos de cabeça na literatura especializada – disse ele para
Callahan. – Procuramos um encantamento para livrar a casa dos espíritos negros.
Mas estávamos trabalhando com o texto original em latim, e nosso conhecimento
dessa língua estava um tanto enferrujado.
– Então vocês entenderam errado – disse ela.
Ele concordou com a cabeça.
– Entendi errado, e Rebecca pagou o preço.
Ele ficou calado por uns instantes, revivendo mentalmente aquela noite. O
anjo negro que perseguia Rebecca se tornara mais agressivo nas horas finais,
deixando-a confusa e quase incoerente, levando-a a implorar que ele a deixasse.
Ele contou isso para Callahan e então acrescentou:
– Não posso imaginar que tenha sido diferente com Gabriela.
Callahan não respondeu, mas, por sua expressão, era óbvio que ele
provocara uma reação.
– Devia ser por volta de duas da manhã. Eu continuava tentando o
encantamento e até alguns ritos católicos de exorcismo, mas aquela coisa a
estava agarrando com firmeza e não pretendia soltá-la antes que ela se
entregasse.
– Se entregasse?
– É assim que eles operam. Eles não obrigam você a fazer coisas que não
queira. Então trabalham por dentro de você – tentando, seduzindo, manipulando
psicologicamente, criando alucinações, aterrorizando você… E agem como se
estivessem afogando seu cérebro até que você, por fim, se entregue. E quanto
mais fraco ficar, mais rápida será sua queda.
Batty soubera que Rebecca estava prestes a se render e tentara
desesperadamente impedir isso. O que ela estava vivendo não era igual a um
sonho, mas ele tentou compartilhá-lo com ela, entrar em sua cabeça, e, quando
enfim conseguiu, ele ouviu sua própria voz gritando para ela, dizendo-lhe quanto
ele a desprezava – que queria que ela morresse.
O quarto à volta deles começou a tremer, as janelas batiam, a cama girava
sobre si mesma e, antes que Batty pudesse se esquivar, uma gaveta foi expelida
da cômoda, atingindo-o na cabeça, e ele desmaiou.
– Quando acordei – disse ele para Callahan –, o quarto havia voltado ao
normal. Como se nunca tivesse acontecido nada, exceto o corpo dela na cama, e
o símbolo queimado no colchão debaixo dela.
Ele fechou os olhos, tentando então afastar a imagem de sua mente,
torturado pelo fato de saber que os últimos momentos de Rebecca tinham sido
preenchidos por palavras de ódio, proferidas pela voz dele. Será que ela tivera
tempo de descobrir que fora um engano? Só lhe restava esperar que sim.
Batty pegou o copo a sua frente e tomou o líquido de um só gole.
– Não sei por que eu fui poupado, mas fui – disse, e riu em voz baixa,
tristemente. – Se é que “poupado” é o termo mais apropriado.
– Suponho que tenha havido uma investigação.
– Não muito. Eu sabia que minha história parecia uma loucura. Então
chamei a polícia e declarei que eu a havia encontrado daquele jeito ao chegar
em casa, sabendo muito bem que eles me considerariam um possível suspeito do
assassinato. Mas sem um motivo ou uma teoria aceitável para explicar como ela
ficara daquele jeito, eles nunca tentaram me culpar. Deram uma olhada nos
livros que ela estava lendo, concluíram que fora um acidente esquisito e
encerraram as investigações.
– A Seção devia saber disso – murmurou Callahan. – Então, por que não me
disseram nada?
– A Seção?
– Deixe pra lá – disse ela. – Mas você precisa saber que estou prestes a
pular do barco agora mesmo… Aquele que tem a expressão “Que diabos?”
pintada na lateral.
– Como eu já disse, não posso culpá-la. E você pode pensar que sou louco,
mas sei muito bem o que vi. Pode colocar uma maldita camisa de força em
mim, trancar-me num hospício, e mesmo assim minha história não vai mudar.
Ele pensou em pedir outra bebida, mas acabou desistindo. Pela primeira vez
em muito tempo, não queria beber. Como se, de certo modo, o fato de finalmente
ter contado sua história o tivesse livrado daquela necessidade.
Observou Callahan enquanto ela acabava sua própria bebida e pôde ver que
ela estava lutando com todas aquelas informações. Será que devia correr o risco
de acreditar nele? Ou simplesmente voltar para o que sabia, assim como os tiras
de Ithaca haviam feito?
Mas Batty ainda não havia acabado:
– Com Gabriela, tivemos um caso similar. Ela era um dos Custodes Sacri, e,
se esse anjo veio atrás dela, é bem provável que também vá atrás dos outros
guardiões, na esperança de conseguir o segredo que eles detêm. Então, todos
estão correndo perigo.
– Quantos são?
– Não tenho certeza. Só conheço um deles.
– Quem?
– Um negociante de antiguidades chamado Koray Ozan. Mas, até hoje,
pensei que seu envolvimento não passasse de um rumor.
– O que o fez mudar de ideia?
– Recebi seus catálogos trimestrais e reconheci algumas das peças da
coleção que vi no apartamento de Gabriela. Não acredito que seja mera
coincidência. A meu ver, isso confirma que ele é um dos Custodes Sacri. O que
quer dizer que esse homem está correndo perigo.
– Então, onde encontramos esse cara?
– Em Istambul.
Os olhos de Callahan se dilataram ligeiramente, e ela concordou com a
cabeça.
– Ontem, havia uma caixa da Casa de Leilões Garanti, de Istambul, no
quarto de Gabriela. A imagem sobre a qual lhe fiz perguntas estava ali dentro…
Miguel lutando contra o dragão.
– Essa imagem pode ter sido um aviso para ela. De que problemas estavam
por vir.
– Essas pessoas não têm e-mail?
Batty deu de ombros:
– Não sei exatamente como eles se comunicam. Nem mesmo se o fazem.
O importante é que enviemos um recado para ele antes que seja…
Foi interrompido pelo celular de Callahan. Depois de pescá-lo em sua
mochila, ela o colocou no ouvido.
– Callahan.
A mulher virou as costas para Batty e escutou por uns instantes, então
murmurou algo antes de desligar. Quando se voltou de novo para ele, seu rosto
estava pálido.
– Era a Seção. Recebi a ordem de interromper tudo e ir embora
imediatamente.
– Por quê?
– Estão me enviando para Istambul.
Ela olhava para ele como se estivesse começando a pensar que talvez,
talvez apenas, houvesse alguma verdade em tudo o que Batty havia lhe contado.
– Koray Ozan está morto.
LIVRO V
Amsterdã, Holanda
Q uando Kovalenko e a garota saíram da sala, aquele que dizia chamar-se Radek
pegou um cigarro Black Devil de um maço em cima da mesa e, após acendê-lo,
exalou uma nuvem de fumaça.
– Coisinha desagradável – murmurou ele.
Aquele que se chamava Vogler recostou-se na cadeira.
– O russo ou o cigarro?
Radek sorriu e negou com a cabeça.
– Nossa intrusa secreta – disse ele, dirigindo sua atenção para um canto
escuro da sala. – Sei que está aqui. Você pode se mostrar.
A escuridão se moveu e, como esperado, a intrusa saiu da sombra com o
mesmo ar radiante de sempre, sua pele quase translúcida brilhando na luz
artificial. Ela parecia ainda mais bonita do que naquela noite em Istambul. Se
Radek não soubesse o que se escondia por sob aquela superfície, até poderia
achá-la atraente.
Ela respondeu com outro sorriso.
– Cavalheiros, pensei em dar uma passada aqui para ver como estão
progredindo.
– Está tudo correndo às mil maravilhas sem você – disse ele. – Como
sempre.
– O que está acontecendo, meu querido? Está aborrecido comigo? Vocês
dois saíram daquela casa de chá com tanta pressa que cheguei a me perguntar se
não havia ferido seus sentimentos.
Vogler respondeu, irônico:
– Não se gabe. Não estávamos interessados em olhá-la enquanto seduzia seu
brinquedinho.
Achando graça, ela sacudiu a cabeça e se acomodou na cadeira diante da
mesa.
– Mas não é disso mesmo que se trata? – perguntou ela. – Não é exatamente
o que fizeram com aquele russo e tantos outros?
Ela se debruçou para a frente, pegou um cigarro Black Devil e continuou:
– Pegar uma nova pele e se vestir como aspirante a soldado não muda o
fato. Tudo consiste em conseguir que esses insetos façam exatamente o que
queremos.
– Um meio para atingir um fim – disse Vogler, acompanhando suas
palavras com um gesto de mão. – Temo que nenhum de nós tenha tanto prazer
nisso quanto você parece ter.
Ela acendeu o cigarro.
– É verdade. Realmente tenho prazer nisso. Muito prazer. O fato de
manipulá-los garante metade da diversão. Depois, basta colocar uma música e
olhar enquanto os macaquinhos dançam.
– Mas a dança em si é a única coisa que importa – disse Radek. – Conseguir
deles que façam o que precisamos. E nossos métodos sempre deveriam ser
simples e diretos. Não tem sentido chamar a atenção sobre nós mesmos.
Obviamente, você não aprendeu essa lição.
– O que quer dizer?
– A garota do Brasil. Você fez um verdadeiro estardalhaço.
Ela deu de ombros.
– Eu queria informações. Ela as deu para mim.
– E você escolheu a maneira mais espetacular que podia imaginar, quando
deveria ter se aproximado por intermédio do namorado dela. Você deveria ter
trabalhado com ele para obter essa informação.
– Vocês dois agem como se tivéssemos todo o tempo do mundo – disse ela.
– A quarta lua é daqui a alguns dias, e não haverá outra tétrade lunar durante
décadas. Fiz o que tinha de ser feito.
– E o que obteve com isso? Enquanto estamos ocupados em conseguir
progressos reais, você perde seu tempo caçando um mito.
Ela suspirou.
– Precisamos ter essa discussão de novo?
– Se eu achar que vale a pena, sim.
– Essa partida é minha, vocês se lembram? Vocês dois concordaram em me
deixar fazer do meu jeito.
– Não se isso nos levar ao fracasso – disse-lhe Radek. – Você me conhece
muito bem.
– De fato, Radek – disse ela, e depois levantou da cadeira e deu a volta na
mesa, parando a alguns centímetros dele. – Pelo seu tom, você parece me
considerar um tipo de ameaça. Vamos fazer isso de forma aberta. Estou farta de
termos de agir furtivamente e fingirmos ser algo que não somos.
Deu uma tragada no cigarro e exalou a fumaça no rosto dele:
– Eu o estou ameaçando, meu querido Mamon? Está com medo da pequena
Belial?
Vogler lhe disse rispidamente:
– Não aqui nem agora. Não sabemos quem pode estar ouvindo.
Belial se virou para ele.
– E daí, Moloque? Está com medo de que esses vermes ouçam seu
verdadeiro nome? Você acha que eles olham nos seus pequenos olhos
esbugalhados e não percebem o que você é de verdade, mesmo que o covarde
coração deles os impeça de admitirem a verdade? Não me obrigue a chamar
nosso irmão para me apoiar, você bem sabe quais são os sentimentos dele.
Vogler não recuou.
– Não pense que pode me intimidar, Belial! E Bel também não me assusta.
Não mais. Não desde que perdeu tempo tentando conquistar essas criaturas
manipulando a dita cultura delas. Quando tudo estiver resolvido, poderemos
acertar nossas diferenças, e não acredito que você ficará muito feliz com…
Uma repentina batida na porta o interrompeu.
– Komm rein – gritou ele.
A porta se abriu, e o assistente de Vogler, Heindrich, entrou na sala,
segurando uma mala preta de náilon que encontrara no quarto de hotel de Dimitri
Kovalenko. Colocando-a ao lado da maleta sobre a mesa, abriu o zíper.
Todos olharam atentamente seu conteúdo: cinco cilindros de chumbo
contendo vinte quilos de urânio U-235 altamente enriquecido, para armamentos.
Aquele que se chamava Radek olhou com ar satisfeito:
– Veja, minha cara, é assim que se deve fazer. Esse é o tipo de dança que
pode ser útil para nós. Sem mitos, sem ideias fantásticas. Apenas a boa
criatividade humana à moda antiga – e nós puxando as cordas.
Ele olhou para Belial, e um sorriso de autossatisfação se espalhou por seu
rosto.
– Bem-vinda ao fim do mundo.
22
Ele estava sentado à mesa, comendo o jantar, quando o rapaz bonito passou
diante da janela da frente e olhou para dentro.
Zack, o servo.
O delinquente estava apenas andando à toa – como fizera na outra noite –,
mas deu uma visível parada quando percebeu Jenna, e então seguiu adiante.
Ele voltaria. Não havia dúvida sobre isso. Esperaria que a mulher que
gerenciava o abrigo entrasse em seu escritório, ou fosse até o café para tomar
algo, então ele entraria rapidamente e tentaria abordar Jenna de novo. Faria todo
o possível para desmentir as declarações da mulher e lançaria seu charme para
que Jenna fosse até a casa dele.
Será que ele também podia ouvir a canção dela?
Não. Os servos não têm esse tipo de sintonia. Mas talvez alguém o tivesse
mandado ali. Ele parecia ser do tipo pelo qual Belial sentia atração, o perfeito
espécime que ela tinha tanto prazer em corromper, de maneira que sua presença
ali podia bem ser obra dela.
E isso não era nada bom.
Fosse qual fosse o motivo, Zack era um aborrecimento que precisava ser
detido antes que pudesse colocar de novo as mãos sobre Jenna. Algo que deveria
ter sido feito duas noites antes, bem na saída do café.
Antes tarde do que nunca.
Aquele que se denominava Jonathan Bel não estava a fim de dar entrevista, mas,
no momento em que viu a jornalista, mudou de opinião.
Ela era bastante atraente.
Era óbvio que ela se arrumara para aquela ocasião, e ele não queria
desapontá-la fingindo uma polida indiferença diante de sua aparência. Pensou
em descruzar as pernas para que ela tivesse uma visão indisfarçável do efeito
que causava nele, mas decidiu que isso seria um pouco demais. Ele não queria
assustá-la.
Em vez disso, ofereceu-lhe seu olhar mais admirador, e ela se deleitou
como uma gatinha sedenta diante de uma tigela de leite.
– Então, para os poucos leitores que ainda não assistiram ao programa –
disse ela –, por que não explica do que trata Santos e pecadores?
Estavam sentados em cadeiras de diretor, à direita da cabine de som. Ele
lhe proporcionara uma visita pela nova casa que estavam construindo, e ela
parecera bastante impressionada com o que vira. Na verdade, era a primeira vez
que Bel também a visitava. Ele não costumava passar muito tempo no set de
filmagem. Possuía um império para supervisionar, e isso era apenas uma
pequena parte dele.
– É simples – disse-lhe ele. – Colocamos vinte pessoas numa casa e as
obrigamos a conviver. Dez delas são o que a maioria de nós chamaria de gente
virtuosa, enquanto as outras dez já passaram por vários tipos de problemas, por
assim dizer. Santos contra pecadores. Depois de oito semanas de inúmeros
desafios para o coração e a mente do pessoal, quem ainda restar ganha um
milhão de dólares.
– Bem, obviamente é uma fórmula de sucesso.
Bel acenou com a cabeça.
– Ficou em primeiro lugar durante seis semanas. O canal já renovou o
contrato por mais uma temporada, motivo pelo qual estamos construindo este
cenário. Agora estamos selecionando os candidatos.
– Ótimas notícias. Mas o que você responde aos que dizem que o programa
é forjado?
– Em que sentido?
– Os santos parecem nunca vencer os desafios. Apenas os pecadores.
Bel riu, varrendo a acusação com um gesto de mão.
– Não é assim que o mundo normalmente funciona?
Istambul, Turquia
Enquanto tomava seu chá, Batty não pôde deixar de sentir que havia algo errado
com a garçonete. Percebeu que estava ficando obcecado com aquilo.
Realmente, o fato de estar sóbrio tinha seus inconvenientes.
Ele tinha certeza de que centenas ou até milhares de garçonetes da cidade
despertariam a mesma sensação – assim como motoristas de táxi, tiras, médicos,
pedreiros, secretárias e muita gente mais. Mas isso não tornava as coisas mais
leves.
Havia muitas delas lá fora. Sempre haveria. Um batalhão de almas
comprometidas, desejando fazer tudo o que lhes fosse solicitado em nome de seu
protetor. E, apesar de seu mal-estar, ele sabia que ficar obcecado não lhe traria
nenhum benefício.
Entretanto, o fato de saber que aquela garçonete se encontrava tão perto da
casa de leilões o levava a acreditar que ela também pudesse estar juntando e
fornecendo algum tipo de informação. E, se isso fosse verdade, ela poderia
perfeitamente estar vinculada à entidade negra que atacara e matara Ozan. E
Gabriela Soares.
E Rebecca.
Ao terminar o chá, ele pôs a xícara sobre o pires, levantou-se e colocou uns
trocados na mesa.
Chega de ficar parado. Estava na hora de fazer aquilo que o levara até ali.
Atravessando a rua, ele passou ao lado dos carros de polícia e dos homens
fardados e subiu os degraus até a entrada da casa de leilões. As portas de vidro se
abriram quando ele se aproximou, e na hora em que penetrou no prédio ele
sentiu…
…um persistente resíduo de morte.
Havia um balcão de atendimento na frente, com uma mulher bem-vestida,
mas de ar sombrio, que, sem dúvida, ainda sentia a dor da perda.
À direita ficava a sala de exposições. Os mostruários de vidro contra as
paredes continham vários objetos e esculturas antigas. Pinturas a óleo estavam
penduradas acima em trabalhadas molduras – nos estilos barroco, bizantino e da
Alta Renascença. Paisagens celestiais repletas de querubins alados contrastavam
com obras mais violentas, entre as quais, uma que representava a decapitação de
Holofernes pela viúva Judite.
A visão da espada cortando o pescoço dele fez Batty sentir calafrios.
À esquerda, havia um conjunto de portas duplas abertas que levavam à sala
de leilões propriamente dita, onde várias fileiras de cadeiras encaravam um
pódio e uma mesa de mostruário. Mais à esquerda ainda, ficava um elevador,
com um guarda fardado ao lado, e, atrás dele, havia uma escada coberta com
carpete que levava para dentro do prédio e que era vigiada por outro guarda.
Batty olhou para o quadro de informações pendurado na parede entre eles.
Também estava escrito em turco e inglês e indicava que os escritórios e arquivos
ficavam no final daquela escada.
Segundo o relatório da agência de Callahan, era lá que o corpo de Ozan
havia sido encontrado, numa sala de arquivos raramente usada. Mas Batty não
precisava de nenhum sinal para perceber isso. Podia sentir, vindo da escada em
sua direção, uma implacável e gritante violência que era difícil ignorar.
Ele duvidava de que existissem janelas ou outras entradas lá para dentro, e,
se esses guardas ficassem no local a noite toda, Callahan não conseguiria passar
por eles.
Um deles estava justamente olhando para Batty, que sorriu, fez-lhe um sinal
com a cabeça e atravessou o saguão em direção à sala de exposições, fingindo
olhar sem compromisso, enquanto secretamente perscrutava o resto do saguão.
Os sanitários e telefones ficavam em frente à escada. Os extintores de
incêndio e os alarmes estavam estrategicamente colocados ao longo das paredes.
No vidro escuro de uma janela perto da porta estava escrito GUVENLIK –
SECURITY.
Ele estava meditando sobre a futilidade de sua tarefa quando as portas do
elevador se abriram e vários homens saíram de dentro: policiais à paisana, junto
com três peritos criminais que carregavam seu material dentro de caixas de
ferramentas de plástico.
Todos pareciam cansados, o que queria dizer que haviam trabalhado a noite
toda e grande parte do dia. E, se as provas que haviam juntado fossem tão
escassas quanto as encontradas em São Paulo, eles teriam um árduo mistério
para resolver.
Batty sacudiu a cabeça com ar sombrio.
Eles não sabiam com que estavam se deparando.
E ele não podia deixar de sentir inveja deles.
–Eu lhe fiz uma pergunta – disse o rapaz que vestia a roupa do pessoal do
laboratório. – O que está fazendo aqui?
Callahan fingiu ficar irritada e voltou a dedicar sua atenção ao que sobrara
do cadáver de Ozan.
– O que parece que estou fazendo? – disse ela em turco. – Estou catalogando
os restos da vítima.
– Pensei que fosse Leila que estivesse encarregada disso.
Ela ajustou a máquina fotográfica.
– Leila teve de se encarregar de outro serviço e me pediu para substituí-la.
– Mas acabo de vê-la indo para o banheiro.
Callahan o olhou duramente.
– Então é você que vive atrás dela?
– O quê? – disse ele, fazendo um movimento para trás.
– Ela me disse que alguém do laboratório a estava assediando. Ela está indo
para o departamento de pessoal agora mesmo.
Ele a olhou com espanto:
– E você acha que sou eu?
– Não sei dizer, sou nova aqui… – disse Callahan, dando de ombros. – Onde
estão os objetos pessoais de Ozan?
Ele piscou os olhos, confuso pela repentina mudança de assunto.
– Os objetos pessoais – disse ela, impaciente. – Onde estão?
– Não… Não tenho certeza – balbuciou o rapaz. – Suponho que já tenham
sido guardados. Esse caso não é meu.
– Então, por que me faz perder tempo?
A boca do rapaz se abriu como se ele estivesse prestes a dizer algo mais, e
então se fechou, e ele foi-se embora, sacudindo a cabeça, espantado.
Callahan suspirou. Contudo, tinha a impressão de que logo ele estaria de
volta.
Voltando para o computador, ela constatou que já copiara todos os arquivos
e retirou rapidamente o cartão de memória, que enfiou dentro do bolso.
Menos de um minuto depois, estava no corredor, em direção aos
elevadores.
–Então você acredita em mim agora? Acredita que ele era um dos Custodes
Sacri?
– Considerando o que ele escreveu aqui, é certamente uma possibilidade.
– Não brinque. E no que diz respeito ao resto?
– Aquele negócio místico? – disse Callahan, e negou com a cabeça. – Não
se precipite, professor. Ainda penso que se trata do caso de um louco que pensa
que é um tipo de anjo negro vingador.
– E se eu conseguisse fazê-la mudar de ideia? Fazê-la enxergar do meu
ponto de vista?
– Não é exatamente o que vem tentando fazer desde que nos conhecemos?
LaLaurie foi até o centro da sala e se agachou perto do símbolo no chão.
– Dê-me sua mão.
– O quê? Por quê?
– Faça apenas o que digo.
Callahan hesitou, com medo do que ele queria fazer, mas finalmente lhe
deu a mão como ele pediu.
– Não se empolgue. Percebi muito bem a maneira como ficou me olhando
hoje à noite.
Ele ignorou o comentário.
– Quando eu era jovem – disse ele –, antes que eu conseguisse por mim
mesmo, minha mãe fazia isso para que eu pudesse ver o que ela via. E me
preparava para o que estava por vir.
– O que você quer dizer?
– Deixe-me lhe mostrar.
Ele olhou para o símbolo e parou um instante como se estivesse prestes a
abraçar a si mesmo. Então, baixando uma das mãos, pressionou a palma contra o
chão e fechou os olhos.
Callahan suspirou:
– Isso de novo? Se eu quisesse ver uma sessão espírita…
Ela sentiu um calor irradiar-se por seu braço e seguir direto até o cérebro –
um raio fervente de energia que lhe subia tão rápido e furioso que ela nem teve
tempo de reagir.
Suas narinas se encheram de um odor quase opressivo de enxofre, enquanto
o chão parecia se abrir, e Callahan sentiu como se estivesse caindo. Ela gritou e
tentou escapar, mas aí percebeu que não tinha braços nem corpo. Era apenas
uma presença em queda livre, despencando num profundo e escuro lugar
nenhum.
Então uma luz a agrediu, uma luz ofuscante, que passou a seu lado, através
dela, à sua volta, e ela teve a impressão de estar girando descontroladamente. No
meio de tudo isso, ela viu o rosto de Koray Ozan, desfocado, porém
inconfundível, com lágrimas rolando pela face enquanto suplicava por piedade
para uma entidade invisível.
De repente, ela se encontrou dentro da cabeça de Ozan, e o silvo de
milhares de vozes imiscuía-se em seu cérebro, falando uma língua que ela não
entendia, proferindo palavras que, pelo que ela sentia, eram terríveis e vis. A
única coisa da qual tinha certeza era de que se tratava de vozes indesejadas, que
haviam invadido a mente de Ozan – a mente dela – como um exército de
gafanhotos enfurecidos.
Foi então que a sala a seu redor pegou fogo, e Ozan gritou.
Callahan também deu um berro, largando a mão de LaLaurie enquanto
desmoronava no chão, e as chamas sumiram, assim como as vozes.
Tremendo descontroladamente, ela fixou os olhos em LaLaurie com ar de
terror e confusão.
– Que diabo você acaba de fazer comigo, seu filho da puta?
Mas LaLaurie não respondeu. Ele não podia responder. Tinha desmaiado, e
parecia que o sangue havia sido drenado para fora de seu corpo, que se mantinha
de olhos fechados, com o rosto pálido como se estivesse morto.
Será que ele estava vivo?
Ao longe, além das paredes de pedra dos túneis e do som abafado do
alarme de incêndio…
…ouvia-se o som de sirenes se aproximando.
Os degraus levavam a uma parte menor e mais estreita do túnel, que fora isolada
do resto dos arquivos e virava abruptamente à esquerda. Depois de Callahan ter
recuperado sua bolsa, Batty assumiu o comando, seguindo a curva do túnel até
encontrar uma porta arqueada que se abriu para uma sala muito iluminada, com
aspecto de porão e um teto abobadado.
Batty parou, espantado pelo que descobrira:
– Com certeza, isso não é Nárnia.
– Outro amante dos livros – murmurou Callahan, mas suas palavras não
condiziam com o que estava diante deles.
Era uma pequena biblioteca, com dez ou mais estantes, todas elas
abarrotadas de livros perfeitamente encadernados. Segundo Batty, nenhum deles
tinha menos de duzentos anos.
Ozan não somente era amante dos livros, como bibliófilo, no sentido mais
nobre e tradicional da palavra.
Batty avançou cuidadosamente, como se sua simples presença ali pudesse
danificar aquele tesouro. A vista da sala o deixara eletrizado, totalmente vivo,
como nunca estivera desde a morte de Rebecca. Mais vivo do que naquela noite
com a ruiva.
E isso não era pouco.
Chegando à estante mais próxima, ele percorreu a primeira fileira de livros,
deixando seus dedos correrem sobre as lombadas, sentindo a idade de cada um,
sua importância. Então, começou a pegá-los e examiná-los, um por um.
Demonomanie des sorciers, de Jean Bodin. A compleat history of magick,
sorcery and witchcraft, de Richard Boulton. Basilica chymica, de Oswald Croll.
Disquisitionum magicarum, de Martino Del Rio. Manuale exorcismorum, de
Maximiliani ab Ey natten.
Todos em primeira edição. Cada um, imaculado. Inestimável.
E isso era apenas uma pequena amostra da coleção de Ozan. Batty nunca
antes vira tantos volumes sobre o paranormal e o ocultismo num único lugar.
– Olhe isto – disse Callahan.
Ele se virou e viu que ela estava ao lado de uma mesa atravancada no meio
da sala. Num canto da mesa, havia uma pequena imagem de pedra de São
Miguel alado, segurando a espada.
– Estou sentindo que se trata da mesma obsessão – disse ela, mostrando a
bagunça sobre a mesa. – Parece que ele estava tentando decifrar um código,
assim como Gabriela.
Batty se aproximou e apontou para um caderno de espiral em que estavam
anotados vários versos em inglês, com algumas palavras e letras riscadas e outras
circuladas…
…todos tirados do capítulo onze de Paraíso perdido.
Aberta ao lado do caderno, havia outra primeira edição impecável, de
cerca de quinhentos anos.
Batty pegou o livro.
– Steganographia – disse ele, folheando a obra com o maior cuidado. As
páginas continham listas de nomes de espíritos, tabelas repletas de números,
signos zodiacais, símbolos planetários. – Ele deve ter usado isto como um guia.
– O que é?
– Um tratado em três volumes que conclamava os espíritos a enviar
mensagens secretas.
– Pode repetir?
– Foi escrito por um abade do século XV chamado Johannes Trithemius. É
uma espécie de livro didático que ensina a se comunicar com colegas por meio
de mensagens angelicais. Mas, quando seus amigos descobriram no que ele
estava trabalhando, a comoção foi tamanha que ele resolveu não publicar a obra.
Ele até destruiu algumas partes que achava particularmente revolucionárias.
– Que tipo de comoção?
– Ele foi acusado de lidar com magia negra e pactuar com demônios.
– Parece haver muita coisa sobre isso por aqui.
– Mas aí é que está a questão – disse-lhe Batty. – Não é exatamente um livro
sobre magia. Tudo o que se refere a espíritos está escrito em códigos, e
Trithemius afirma claramente no prefácio que se trata apenas de um exercício
sobre criptologia e esteganografia. Mas ninguém acreditou nele, e sua fama
como ocultista se espalhou.
– E, pelo visto, o livro acabou sendo publicado.
– Cerca de cem anos após a morte dele – disse Batty, fechando o livro e
repondo-o sobre a mesa. – Os dois primeiros volumes foram decifrados
imediatamente, provando de forma quase infalível que os encantamentos eram
justamente o que Trithemius dissera que eram: inofensivos exercícios de
criptografia. Mas a chave para o terceiro volume só foi desvendada no século
XVII por um homem chamado Heidel, e ele escondeu a solução em sua própria
mensagem codificada. Dessa forma, o livro foi decifrado há cerca de uma
década apenas.
Callahan apontou para o bloco de anotações:
– E você acha que Ozan estava usando as mesmas chaves de criptografia
para procurar mensagens secretas nesses versos?
– É isso o que parece.
– Mas por quê? O que ele sabe que você não sabe?
Batty deu de ombros.
– Milton era uma pessoa polêmica para sua época, que se meteu numa série
de encrencas por dizer o que lhe passava pela cabeça. Talvez Ozan estivesse
trabalhando sobre a hipótese de que Milton tenha utilizado os métodos de
criptografia de Trithemius para ocultar seu trabalho tardio… Embora se possa
considerar, na verdade, que o material de Polygraphiae teria sido uma escolha
melhor.
– Polygraphiae?
– Outro livro de Trithemius. Sua verdadeira obra-prima sobre criptologia.
Callahan suspirou:
– Estou começando a ficar com enxaqueca.
– Bem-vinda ao meu mundo. Seja qual for o motivo, Ozan e Gabriela me
parecem ter sido, mais do que tudo, ingênuos amadores, já que ambos pareciam
convictos de que há algo na poesia de Milton que nenhum de nós nunca…
Batty suspendeu o raciocínio, enquanto seu olhar se fixava na imagem de
pedra de São Miguel no canto da mesa. Ele a estudou por um momento e de
repente percebeu que havia algo de errado ali.
A aparência da peça lhe parecia familiar; ele já a vira no catálogo da
Garanti, mas a profundidade e o padrão das marcas de cinzel não pareciam
precisos. Ele estava prestes a apostar tudo o que tinha que a peça não era original.
De fato, nem era uma boa cópia.
– O que há de errado? – perguntou Callahan.
– Provavelmente, nada. Mas me parece estranho que alguém com o gosto
de Ozan tenha colocado uma peça tão obviamente falsa sobre a mesa de
trabalho. Especialmente numa sala como esta. E mais especialmente ainda de
São Miguel.
Callahan deu de ombros.
– Talvez ele gostasse da obra, não?
Batty se aproximou e pegou a imagem.
– É como se um apreciador purista de jazz gostasse de Kenny G. Além do
mais, há algo neste objeto…
– Deixe-me adivinhar. Você sente uma energia.
Batty olhou para ela:
– Pode tirar sarro de mim quanto você quiser, senhora Broussard, mas, a
menos que eu esteja errado, você também a sentiu com toda a força na sala de
arquivos.
Mas ela estava errada, era mais uma questão de instinto do que de energia.
Virando a imagem de ponta-cabeça, ele examinou a base, que era esférica e
tinha quase a mesma circunferência de uma lata de refrigerante. Segurando-a
firmemente, pressionou-a e tentou girá-la até que finalmente ela cedeu, e a
metade inferior da base deslizou de lado, revelando um estreito compartimento
secreto.
Dentro, havia uma chave com haste oca. Um modelo antigo.
Ele olhou para Callahan.
– Você estava dizendo…?
– Sorte. Nada mais.
Havia certa verdade naquilo, mas Batty nunca poderia admiti-lo. Retirou a
chave, colocou a imagem de volta sobre a mesa e inspecionou a sala,
examinando mais particularmente as estantes de livros.
– Quanto quer apostar que alguns desses livros não são reais?
– Acredito que seja bem provável.
Batty voltou para a primeira fileira e começou a passar as mãos sobre os
livros, procurando um painel disfarçado em lombadas de livros. Seguindo seu
exemplo, Callahan foi até outra fileira, e os dois passaram a percorrer as
estantes, até que, alguns minutos depois, Callahan chamou Batty.
– Professor, venha cá.
Ele a encontrou junto a uma estante situada na parede mais distante. Ela já
havia removido o painel de falsos livros – uma suposta coleção de catorze
volumes sobre neopaganismo e bruxaria – que revelara um compartimento de
madeira trancado.
Batty experimentou a chave na fechadura, e ela se encaixou perfeitamente.
Ele girou a chave, sentindo o mecanismo responder, e abriu a porta do
compartimento, que revelou um grande cofre retangular, com sistema de leitura
LED e teclado numérico eletrônico.
– Merda – resmungou ele.
– Calma – disse Callahan. – Apesar das aparências, não é complicado entrar
nessas coisas.
Tirando a bolsa do braço, ela fuçou dentro até encontrar um pequeno estojo
de náilon, do qual, após abrir o zíper, retirou uma chave de fenda em miniatura.
Aproximando-se do cofre, ela desparafusou uma placa de identificação
retangular que se encontrava abaixo do teclado numérico e a colocou de lado.
Atrás da placa, estava o cilindro de uma fechadura.
– Esta é a fechadura secundária, caso você esqueça seu código.
Colocando a chave de fenda de volta no estojo, ela procurou de novo na
bolsa e retirou um molho do que pareciam ser chaves, porém menos definidas.
Escolheu uma.
– Chaves-mestras – disse ela. – Um pouco antigas, mas ainda funcionam.
– Você é uma verdadeira escoteira – disse ele. – Só que muito mais bonita.
Ela levantou uma sobrancelha.
– Cuidado, professor. Eu não estava brincando quando falei de matar um
homem com uma única mão.
– Já cheguei à conclusão de que você nunca está brincando.
– Estou feliz por ver que chegamos a um entendimento.
Ela inseriu a chave na fechadura e girou-a, mas nada aconteceu. Escolheu
outra chave e tentou de novo, mais uma vez sem sucesso. A terceira e a quarta
chaves não entraram, e a quinta também fracassou.
Só restava uma chave.
Ela a inseriu na fechadura e a fez girar, e Batty viu pelo ar de seu rosto que
ela finalmente conseguira. Não era um sorriso de fato, mas um vago ar de
satisfação. Quando ela girou a chave, o mecanismo eletrônico fez um ruído surdo
e o leitor LED informou: A-B-E-R-T-O.
– Impressionante – disse ele.
– Não exatamente – respondeu ela, abrindo a porta do cofre. – Mas espero
que tenha valido a pena.
Havia uma única coisa dentro: um antigo manuscrito em uma capa de
couro desgastada.
Batty o retirou com precaução, olhando surpreso para a fina tira de couro
que o envolvia, onde brilhava o conhecido medalhão de São Cristóvão.
Callahan também o olhava fixamente:
– Custodes Sacri; acredito que não haja mais dúvida.
Batty não disse nada, já que sua atenção estava focada no manuscrito e nas
iniciais J. M., discretamente gravadas no canto inferior direito da capa. Sentindo o
coração disparar, ele removeu rapidamente a tira e abriu o manuscrito,
revelando páginas cinzentas e envelhecidas, escritas à mão com letras roxas
ilegíveis.
– Santo Deus! – murmurou ele. – Não pode ser. O único exemplar
conhecido é uma transcrição. Feita por um impressor. E apenas trinta e três
páginas sobraram.
– Trinta e três páginas do quê?
Sua pergunta não era mais do que um zumbido na cabeça de Batty.
– Parece ser o manuscrito inteiro, pelo amor de Deus, exatamente como ele
o ditou. Onde Ozan encontrou isto? Tem de ser falso.
– O que tem de ser falso? – perguntou Callahan. – O que é isso?
Os olhos de Batty estavam fixos nas páginas cuidadosamente encadernadas.
Mesmo que fosse falso, o livro era de ótima qualidade.
Suas mãos tremiam quando ele virou a primeira página e olhou o título.
Então, levantou os olhos em direção a Callahan, sentindo-se tomado por uma
incontrolável vertigem, como se fosse um arqueólogo que tivesse acabado de
descobrir a cidade perdida dos incas.
– Pela última vez, professor. Que diabo é isso?
Batty tentou controlar o tremor da voz.
– É o original do Paraíso perdido, de John Milton.
27
Ao descobrir uma bolsa de couro no meio dos objetos que ocupavam a mesa,
Batty rapidamente foi até ali e a apanhou. Esvaziou-a, jogou seu conteúdo sobre
a mesa – óculos escuros, chaves de carro e iPad – e pôs dentro o manuscrito de
Milton.
– O que está fazendo? – perguntou Callahan.
– Não vou deixar isto aqui, pode ter certeza.
Ao que parecia, Ozan resolvera trabalhar a partir do original, e Batty queria
examiná-lo mais detalhadamente. Se fosse autêntico, ele talvez encontrasse algo
que não existia na versão impressa. Um verso ou uma estrofe que pudesse ajudá-
lo a entender o que Ozan e Gabriela estavam procurando.
Ele juntou o caderno de anotações e o exemplar de Steganographia e
também os colocou na bolsa. Então, olhou para o iPad e decidiu pegá-lo. Podia
ter algo útil nele.
– Precisamos voltar ao hotel para eu poder estudar tudo isto.
– Não sei se você percebeu, professor, mas há algumas pessoas lá fora
procurando por nós neste exato momento. Como você sugere que saiamos daqui?
– Esse túnel servia para o contrabando, lembra? Você quer apostar que há
outra saída?
Callahan pareceu gostar da ideia.
– Nada mau, senhor Broussard. Você acaba de ganhar pontos.
– Ora! Obrigado, querida. Quer dizer que vou poder dormir numa deliciosa
cama quente hoje à noite em vez de deitar no sofá?
Ela sorriu.
– Escolha o hospital, e faço questão de levá-lo até lá.
Enquanto se apressavam para sair, Callahan ia pensando que era ela que
precisava de cama de hospital.
Sem contar aquele mergulho na mente de LaLaurie – cujos efeitos ainda se
faziam sentir –, ela estava completa e irremediavelmente exausta. Conseguira
dormir por algumas horas no avião. O bastante para recarregar um pouco as
baterias. Mas os acontecimentos do dia agora estavam pesando, e seu corpo
implorava para que ela deitasse sem mais tardar. E a ideia de sair daquele lugar
para reencontrar o conforto do quarto de hotel era seu principal pensamento.
Ela esperou que LaLaurie colocasse a bolsa com o livro no ombro e o
seguiu para fora da biblioteca de Ozan, por um caminho que logo se tornou um
labirinto de túneis interconectados, projetados, segundo ela, para dissuadir
qualquer intruso que quisesse descobrir o lugar. Viraram à esquerda, depois à
direita, desceram degraus em corredores abobadados, viravam de novo à direita,
à esquerda, à direita mais uma vez… E, depois de vários minutos, Callahan teve
de reconhecer que estava totalmente perdida.
Aquilo acabou deixando-a aborrecida. Ela conseguia desmontar e remontar
uma SIG Sauer P226 de olhos fechados, mas era incapaz de se orientar numa
rede de túneis de contrabandistas?
Era patético.
O bom professor, por sua vez, parecia saber exatamente aonde ia. E, depois
da viagem pelo país de Ozan, Callahan quase desistira de tentar discutir consigo
mesma sobre a realidade do que sentira na própria pele. Ela podia se mostrar
reticente em admitir isso diante de LaLaurie, mas ele não precisava mais tentar
convencê-la de qualquer coisa que fosse.
O que acontecera com Ozan estava longe de ser o que qualquer um
classificaria como normal. E, a julgar pela mensagem no telefone de Gabriela,
ela passara exatamente pela mesma coisa. O que queria dizer que aquela teoria
do maluco adorador de Satã à qual Callahan tanto se agarrara tinha acabado de ir
embora pelo ralo.
Afinal de contas, ela devia sinceras desculpas a LaLaurie e também ao
tenente Martins.
Fosse qual fosse a coisa com a qual estavam lidando, possuía a capacidade
de imiscuir-se na mente e enlouquecer a todos.
E essa ideia deixava Callahan completamente apavorada.
Batty tinha certeza de que, após mais algumas curvas e outras séries de degraus,
eles emergiriam em alguma rua de Istambul.
Mal podia esperar para voltar ao hotel e olhar o manuscrito detalhadamente.
Ele já quase sentia o livro vibrar dentro da bolsa, como se estivesse vivo. O que
dava certo crédito à afirmação de Milton de que as palavras do livro eram de
inspiração divina.
Mas, ao entrar numa curva, ele parou de repente.
Callahan disse:
– Que diabo está…
Ele levantou a mão, fazendo um sinal para que ela ficasse calada.
Mais à frente, um dos pontos de luz estava quebrado, deixando o final do
túnel na escuridão, e ele pressentiu que alguém estava lá, espreitando na sombra.
Ele podia sentir o calor. A fome.
Falando baixo, disse para Callahan:
– Não se mexa.
Ela perscrutou em direção à escuridão e sussurrou:
– Você vê algo lá no fundo?
– A garçonete da casa de chá do outro lado da rua.
Callahan fez uma pausa, como se estivesse esperando a graça de uma
piada. Então, disse:
– Está tirando sarro de mim, certo?
– Eu gostaria que fosse o caso. Ela me serviu quando parei lá, hoje à tarde.
– E daí? Você se esqueceu de deixar gorjeta?
– Na verdade, eu lhe dei uma boa gorjeta, mas não acho que seja essa a
questão agora. Se eu estiver certo, e acredito mesmo que esteja, ela poderia
acabar conosco em cerca de trinta segundos.
Callahan pensou alguns instantes antes de responder:
– Normalmente, eu lhe pediria que explicasse o que acaba de dizer, mas
acho que vou acreditar nas suas palavras. O que sugere que façamos?
– Vamos ficar parados – disse-lhe Batty. – Acredite se quiser, mas ela
precisa de um convite para atacar. Um sinal de ataque.
– Tudo bem… A pergunta deve ser provavelmente estúpida, mas como
diabo você sabe tudo isso?
– Eu achava que já havíamos discutido isso. Leio muitos livros.
Ela olhou para ele:
– Nunca pensou em ler romances?
– Nem passou pela minha mente – disse ele.
As sombras se mexiam à frente deles, e Batty tinha a sensação de que o
fato de eles terem percorrido aqueles túneis fora visto como suficientemente
invasivo para representar uma ameaça. Ou talvez ele já tivesse provocado isso
na hora em que foi até a casa de chá.
Tanto num caso como no outro, era tarde demais.
As sombras se alteraram, e Ajda avançou pela luz – não uma serva, como
ele esperava, mas uma verdadeira sicofanta, capaz de mudar de forma e de
cortar gargantas.
E isso era muito, muito pior do que aquilo que qualquer servo pudesse
alcançar.
Por falar em pior, ela já se modificara, parecendo mais animal do que
humana. Um misto da filha desaparecida de Freddy Krueger com uma boa dose
de rato de esgoto, os dentes à mostra, as garras afiadas e olhos verdes
fosforescentes. Nem feroz nem selvagem eram palavras suficientes para
descrever aquela coisa.
Batty sentiu Callahan titubear atrás dele, e sacou que qualquer dúvida que
ela ainda tivesse sobre fenômenos do outro mundo acabara de ser engolida pela
deusa que estraçalhava tudo.
Ela era durona – provavelmente uma das pessoas mais duras que ele já
conhecera, fosse homem ou mulher –, mas não havia nada em seu manual que a
tivesse preparado para algo como aquilo.
– Acho que vou vomitar – disse ela, ofegante.
E como a besta tivesse deixado escapar um longo e grave rugido, Batty
disse:
– Só tenho um conselho a lhe dar.
– Qual é?
– Corra.
–O que estamos fazendo aqui? – perguntou Callahan. – Não acha que deveríamos
verificar como está seu braço?
Ela ainda devia estar um pouco em estado de choque, mas parecia estar se
recuperando da aventura nos túneis. Talvez o fato de ter dado uma surra numa
sicofanta enfurecida tivesse tido um efeito terapêutico – embora Batty achasse
que, mesmo que fizesse terapia pelo resto da vida, nunca tiraria a imagem de
Ajda de sua cabeça.
Ele despira o paletó, que agora servia de faixa para seu antebraço. As
feridas latejavam, mas não pareciam sangrar muito.
Foram para uma ruela adjacente à casa de chá, onde Batty encontrou uma
porta que, a seu ver, levava à cozinha. Do outro lado da rua, um caminhão de
bombeiros e várias viaturas de polícia estavam estacionados diante da casa de
leilões, pois muitos participantes do evento ainda estavam lá com seus trajes de
festa. Ele e Callahan haviam saído dos túneis por uma daquelas ruelas, a três
quarteirões dali, mas Batty insistira para que eles voltassem à casa de chá.
Ele mexeu na maçaneta.
– Você consegue abrir esta fechadura?
– Olhe – disse Callahan. – Faça-me um favor.
– O quê?
– Quando eu lhe fizer uma pergunta direta, você poderia ter a cortesia de
também responder diretamente?
Ele fez um gesto em direção à porta.
– E minha pergunta?
– Vamos fazer um acordo – disse ela. – Você responde à minha pergunta e
eu respondo à sua. Deu para entender como funciona? Do jeito como estão as
coisas, você sempre dá alguns passos para trás, e eu ficaria muito feliz se você
pudesse ir direto ao ponto de vez.
Afinal de contas, talvez ela não tivesse se recuperado totalmente. Ela
parecia um pouco mais suscetível do que de costume.
– Tudo bem – disse ele. – É bastante justo. Você quer saber por que estamos
aqui?
Ela acenou com a cabeça, e ele fez um gesto em direção à casa de leilões:
– Como eu lhe disse, aquela coisa dos infernos que você derrotou (e estou
dizendo isso literalmente, não de maneira figurada) era garçonete desta casa. E
quando ela me serviu, à tarde, percebi que havia algo diferente nela.
– Puxa, é mesmo?
– Ela era o que eles chamam de sicofanta – disse Batty. – Um ser humano
que foi transformado.
– Transformado em quê?
– Em que mais? Num anjo. Um anjo negro. Eles entram na sua cabeça,
brincam com suas emoções, seus desejos e medos, mas, em vez de transformar
você em pó, como no caso de Gabriela, Ozan ou Rebecca, eles o transformam
em servo.
– Acho que preciso me sentar.
– Foi você quem perguntou – disse Batty, dando de ombros.
Callahan suspirou.
– Então o que mais preciso saber?
– Interagir com anjos é algo bem complicado. Eles existem em outra esfera
que não é a nossa. E, para poder agir em nosso mundo, precisam de substitutos.
Estes existem de três maneiras: como pele, sicofanta e servo.
– E o que são?
– A pele é um hospedeiro físico. Pessoas que autorizaram os anjos a usar
seu corpo em troca de um tipo de recompensa. Não importa qual seja essa
recompensa, porque no final ela raramente é dada. É apenas um truque que
usam para obter o que querem, e, uma vez que não precisam mais do corpo, ele
é descartado e a alma que o ocupava é aniquilada.
– Tenha cuidado para não desejar muito alto.
– Exatamente – disse Batty. – Os servos e os sicofantas, por outro lado, são
basicamente lacaios. O servo é mesmo o que parece. Um subalterno que não
pensa muito e faz o trabalho mais pesado. Pense nas brigas durante as partidas de
futebol ou nos soldados aceitando freneticamente todo e qualquer tipo de ordem,
fazendo exatamente o que seus significantes lhes dizem.
– Significante?
– O anjo que os transformou. Quer que eu continue?
– Claro. Que diferença faz um ou dois pesadelos a mais?
– Então, vêm os sicofantas – disse ele. – Como Ajda. Ao transformá-los, os
significantes lhes inoculam alguma coisa do outro mundo, transformando-os no
que você viu no túnel. São de alguma forma uns superlacaios que têm certa
independência. Mas não costumam se mostrar com são, a não ser que se sintam
ameaçados.
– Então éramos uma ameaça porque estávamos vasculhando o porão de
Ozan?
– Talvez – disse Batty. – Mas, no túnel, Ajda me escolheu como alvo. Então,
tenho a impressão de que eu era o motivo de sua preocupação. Acho que isso
começou quando me sentei aqui e lhe pedi uma xícara de chá.
– Mas por quê?
– É exatamente o que vamos tentar descobrir aqui. Então, você consegue
abrir essa fechadura ou não?
Sem hesitar, Callahan levantou o pé e deu um chute que fez a porta se abrir,
rachando a madeira e quebrando a fechadura.
– O que é isso?
Batty olhou para ela boquiaberto e então deu uma olhada em direção à casa
de leilões, na esperança de que ela não tivesse chamado a atenção
indevidamente.
– Não era exatamente nisso que eu estava pensando.
– Mas funcionou, não é?
Ela o deixou passar na frente, e Batty entrou na cozinha da casa de chá, que
não tinha muito mais do que um fogão e umas duas bancadas. Juntos, eles
passaram pela porta que levava à sala principal, ocupada por cadeiras e
pequenas mesas retangulares.
Imediatamente, ele sentiu a energia. Sabia que seu instinto estava certo.
– Foi aqui que tudo começou – disse ele, indo até o centro da sala.
Agachando-se, colocou a mão no chão e fechou os olhos. Não teve
dificuldade para obter a visão. Um vento escuro se levantou, começando a girar
em sua volta, e ele viu duas figuras no chão, naquele exato lugar…
…duas mulheres, meio despidas, contorcendo-se de prazer, e uma delas era
nitidamente Ajda.
Então Batty entrou na mente de Ajda, que não era mais do que um
redemoinho confuso. Ela se sentia ao mesmo tempo excitada e assustada, mas,
acima de tudo, livre. Era algo que ela nunca sentira antes, e era maravilhoso. Ela
queria mais. Tanto quanto pudesse ter.
Mas o rosto da mulher que lhe fazia isso – o rosto do anjo negro – escapava
da visão de Batty. Era apenas um borrão. Ele sabia por experiência que sua visão
era limitada à quantidade de energia que podia sentir na sala, e, mesmo que fosse
bastante, não tinha certeza de que fosse suficiente para conseguir focalizar aquele
rosto.
Mas ele precisava tentar.
Concentrando-se ainda mais, dedicou sua atenção à outra mulher. À
significante de Ajda. Sua própria energia, sua energia física, começou a ser
sugada. Ele sabia que não seria capaz de aguentar aquilo por muito tempo e
acabaria deitado na cama de hospital em que Callahan ameaçara deixá-lo.
Mas não renunciou. Ao contrário, concentrou-se ainda mais.
A lente pela qual ele tentava enxergar começou a se mexer, e o rosto do
anjo negro aos poucos tomou forma, ficando mais nítido. E, quando ele
finalmente conseguiu focalizar a imagem, foi como se tivesse levado um chute
nas partes íntimas. Batty sentiu o ar escapar de seus pulmões e um gosto de bile
lhe subiu à garganta.
Era a ruiva.
A mulher que ele conhecera no Bay ou Bill’s.
A mulher com quem dividira sua cama e seu corpo e que não saíra de sua
mente desde a noite que haviam passado juntos.
Ela olhava para ele, sorrindo, e de repente a lembrança lhe invadiu a mente.
Aquele pensamento impreciso que ele não conseguira segurar quando falara
para Callahan do envolvimento de Ozan com os Custodes Sacri. Ele se lembrava
de estar deitado na cama com a ruiva, os dois conversando noite afora – sobre
política, história, espiritualidade e Deus sabe o que mais. Mas agora ele se
lembrava também, mais claramente do que nunca, do que ele lhe dissera sobre
Ozan. Sobre o colar e sua conversa telefônica com o colecionador.
Sobre os Custodes Sacri.
O que queria dizer apenas uma coisa.
Que fora ele quem dera início a tudo aquilo. Ele era o motivo da morte de
Ozan. Era também por causa dele que Gabriela havia morrido. Aquela vadia,
aquele anjo negro, os destruíra sem nenhuma piedade…
…da mesma forma que deve ter destruído Rebecca.
Olhando para o rosto sorridente, quis alcançá-lo para arrancar sua cabeça e
enviá-la diretamente de volta ao inferno. E se amaldiçoou por tê-la deixado
enganá-lo. Por tê-la deixado seduzi-lo. E a amaldiçoou por ter ido até sua casa
em Ithaca e ter tirado dele a única mulher que ele amara.
Livrando-se daquela visão, Batty desmoronou no chão, tão esgotado que
mal podia se mexer.
Então levantou os olhos para Callahan.
– Tire-me daqui – murmurou ele. – Tire-me daqui agora mesmo.
29
Belial estava na cama com a namorada de José de Souza quando ouviu aquilo.
Ela estava apreciando a sensação da língua da moça – qual era o nome dela
mesmo? –, que lambia sua barriga e subia em direção a seus seios. Souza, por sua
vez, estava sentado numa cadeira ao lado, olhando-as com muito interesse,
exibindo o dente preto do qual parecia ter muito orgulho.
Belial fechou os olhos, concentrando-se no calor úmido da língua contra sua
pele. Ela ainda não havia decidido se queria transformar aqueles dois ou não,
embora Souza e seu bando de anões pudessem ser muito úteis durante a noite da
quarta lua. Mas Souza não lhe parecia ser alguém que precisasse ser
transformado. Não imediatamente, pelo menos. Já era motivado por si só. Um
convertido autodidata.
Um fã.
E o fato de ter alguém como ele a seu lado sem ter de sacrificar seu
intelecto – que a transformação sempre acabava por enfraquecer – era uma
proposta muito tentadora.
Mas ela já estava muito acostumada àquele tipo de tentação.
Belial voltara para São Paulo depois que um de seus contatos na polícia local
lhe dissera que uma mulher de Manessa estava bisbilhotando a cena do crime e
fazendo perguntas sobre a morte da cantora.
Embora isso não a preocupasse tanto assim, ela se sentia curiosa. Então
resolvera voltar para São Paulo e descobrira que a mulher agora fora para Esaú.
Isso a deixou duplamente curiosa, já que ela mesma estivera lá havia pouco
tempo.
Será que o interesse da mulher em relação a essa cantora – e agora,
obviamente, em relação ao negociante de antiguidades – era puramente
profissional? Apenas uma junção das peças de um quebra-cabeça?
Ou ela era um dos Custodes Sacri?
Ao refazer o percurso da mulher pela cidade, Belial chegara à favela
Paraisópolis, com toda a sua gloriosa depravação (o que era irônico,
considerando-se o que aquele lugar já tinha sido), e fora apresentada a seu
autoproclamado rei, um pequeno roedor inteligente, porém ávido demais, com
uma provocante namorada de pele cor de cacau.
No fim das contas, a noite fora bem previsível.
Isso não era necessariamente ruim, mas era uma distração, enquanto o
relógio não parava e ela tinha coisas para fazer. A cólera de Belzebu por seu
fracasso em localizar os membros restantes do exército de seu teimoso irmão era
justificada, mas não significava que ela tivesse abandonado o projeto. Seus filhos
estavam trabalhando lá fora para ela. Sempre alertas.
E qual era o problema de alguns momentos roubados ao lado de uma deusa
de língua dourada? Com certeza, Belial tinha direito a ter alguns prazeres…
Mas então, do nada, no momento em que a garota colocava os lábios sobre
um mamilo enrijecido, levando-o à boca…
…Belial o ouviu. O som que ela tanto detestava. O grito inconfundível de
uma alma se tornando pó.
Uma alma que lhe pertencia.
Ela se retesou de repente e empurrou a deusa para o lado, sentando-se na
beira da cama.
– Há algo errado? – perguntou Souza, com olhar amedrontado. – Ela a
machucou?
O quarto estava escuro exceto por algumas velas acesas na prateleira acima
deles, e Belial gostava disso, porque não queria que esses humanos pudessem ver
seu rosto. Ao contrário de seu irmão, que não tinha medo de mostrar seu
tormento (quando isso acontecia), Belial preferia manter sua dor como algo
privado.
E a perda de uma alma era sempre dolorosa.
Pelo menos, para ela.
Especialmente quando não era a primeira que perdia naquele dia. Seu
irmão cuidara disso.
– Não é nada – disse ela para Souza. – Estou aborrecida, só isso. Está na
hora de eu ir embora.
Nesse tipo de circunstância, os outros líderes do clã – Belzebu, Mamon e
Moloque – pareciam ter mais orgulho de sua capacidade de manter-se estoicos,
assim como Souza se orgulhava de seu dente esmaltado. Mas, para Belial, uma
perda era uma perda. Cada alma que ia embora era uma peça faltante, um
buraco na trama que demorara tantos séculos para tecer.
E não eram apenas simples posses para ela. Eram seus filhos.
E o fato de perder um deles a deixava entristecida.
Enquanto ela se vestia, Souza se debruçou na cadeira, com um ar
preocupado no rosto:
– Tem certeza de que não quer ficar? Temos tantas coisas para conversar.
Essa ideia era absurda.
– Como o quê, por exemplo?
– Os próximos dias. Precisamos saber como nos preparar.
Belial olhou para ele e se segurou para não rir. Era divertido ver quão
ingênuos podiam ser esses egocêntricos convertidos. Ele realmente achava que
podia se preparar para o que estava por vir?
Nem ela mesma tinha certeza do que esperar.
– Olhe para a lua – disse ela, categórica. – Então, siga a própria natureza.
O segundo choque aconteceu menos de uma hora depois. Belial vinculara sua
perda a Ajda, a jovem garçonete que encontrara em Esaú, e ela sabia que não se
tratava de uma coincidência. A mulher da qual ouvira falar estava de certo modo
envolvida. Ela tinha certeza disso.
Ajda devia ter sentido algo errado em relação àquela mulher e, de maneira
insensata, resolvera cuidar daquilo sozinha. E agora, que Ajda não existia mais, o
buraco da trama parecia maior que nunca.
Ela tinha sido uma das favoritas de Belial.
Então Belial decidiu parar de perder tempo e ir até Esaú sem mais tardar.
Não para enfrentar, mas para observar. Se essa estratégia não funcionasse, ela
poderia mudá-la, pois até agora a confrontação direta trouxera poucos resultados.
E, mesmo que essa mulher não fosse membro dos Custodes Sacri, ainda assim
podia ser muito útil.
Mas, enquanto se preparava para partir, Belial de repente sentiu uma
pontada de dor no peito. Alguém tentando alcançá-la, tentando sugá-la para fora
de sua pele, na turbilhante escuridão do outro mundo.
Ao perceber de quem se tratava, não resistiu. Abandonou-se.
E como poderia resistir?
Ela investira tanto tempo e tanta energia naquele homem... Era um
preguiçoso e um bêbado, mas, desde que o vira pela primeira vez – muito antes
de ele seguir esse rumo –, ela se sentira inexplicavelmente atraída por ele.
Sua capacidade mental. Seu intelecto. A complexidade de sua mente. A
capacidade de ver coisas que os demais não viam.
Ela se lembrou do que Moloque lhe dissera naquela noite na casa de chá.
– É bastante evidente que você tem um fraco por essa patética criatura.
Moloque era um tolo presunçoso, mas falara a verdade. Ela tinha mesmo
um fraco. E sua decisão de não transformar aquele preguiçoso tinha menos a ver
com estratégia – como no caso de Souza – do que com…
Ela ousaria dizê-lo?
Seus sentimentos.
Da mesma forma que não conseguia controlar a tristeza que tomava conta
dela toda vez que perdia uma alma, ela não conseguia subjugar o que sentia por
esse homem. Um estado de espírito ao mesmo tempo perturbador e perigoso. Ela
sabia que precisava transformá-lo imediatamente, mas não conseguia nem
tentar. Não suportava a ideia de perder as qualidades que o haviam tornado como
era.
E, depois daquela gloriosa noite em Manessa – um momento que ela havia
adiado por dois longos anos –, ela fizera o possível para tentar esquecê-lo.
Distraíra-se com o corpo de outros na esperança de que suas lembranças daquela
noite logo desaparecessem.
Nunca voltara à casa dele. Nem à sua cama. E quase se convencera de que
ele não era mais importante para ela.
Mas agora ele estava tentando alcançá-la. Flutuando na frente dela no éter.
Juntando-se às persistentes lembranças daquela noite na casa de chá com Ajda.
E isso a intrigava.
Ele estava lá agora? Naquela casa de chá?
Ele tinha ido para Esaú?
Antes que pudesse avaliar a gravidade desses acontecimentos, ela o viu
agachado perto do chão, com o rosto aparecendo de maneira nítida, e percebeu
que ele não estava feliz. Longe disso.
Havia ódio naqueles olhos. Fúria.
E ela de repente soube, com toda a clareza, que – fiel a seu intelecto – ele
agora estava perfeitamente ciente de quem ela era e do que ela fizera com
aquele saco de ossos, aquela vadia arrogante que ele chamava de esposa.
E pela primeira vez tanto quanto se lembrava…
…Belial estava com o coração partido.
30
Istambul, Turquia
Depois da quinta dose de uísque, Batty ainda não estava totalmente anestesiado,
mas já se sentia melhor. Levou a garrafa para o quarto de hotel e planejava
esvaziá-la antes do fim da noite.
Estava deitado sobre um sofá perto da janela que tinha vista para a cidade,
com o antebraço enfaixado e o manuscrito de Milton sobre uma almofada a seu
lado. Mas ainda não o abrira. Sua excitação em relação à obra enfraquecera.
Morrera, para melhor dizer. Ele estava ocupado demais em ficar bêbado.
E em pensar naquela ruiva.
Amaldiçoava-se por não ter reconhecido o que ela era no momento em que
a levara para a cama. Mas o cheiro do pântano fora muito forte naquela noite,
não é? Assim como a tentação.
Contudo, isso não era desculpa. Fosse qual fosse a tentativa desesperada de
racionalização que elaborasse, o resultado seria sempre o mesmo.
Tinha dormido com a criatura que matara sua mulher.
Tivera relações íntimas com o anjo negro – um maldito demônio, certo? –,
que foi até sua casa, infiltrou-se na mente de Rebecca e levou a mulher que ele
amava à destruição, usando a voz dele o tempo todo para espalhar seu veneno.
A voz dele.
Agora, apesar de saber disso, e apesar do imenso desdém que sentia por
aquela criatura, o desejo que Batty sentia por ela – o instinto animal – ainda não
desaparecera. O fato de tê-la visto no chão com Ajda despertara nele um desejo
que mal conseguia apagar.
E isso lhe dava nojo.
Por isso, a garrafa de uísque.
– Está disposto a falar sobre isso agora?
Callahan estava sentada na poltrona com o iPad de Ozan no colo. A cópia de
Steganographia e as notas de Ozan ocupavam a mesa ao lado. Com Batty tão útil
quanto uma lanterna sem pilhas, ela tomara conhecimento dos documentos e
passara as duas últimas horas trabalhando, fazendo anotações, verificando
referências, consultando a internet, enviando mensagens de texto… Ele não fazia
ideia do que ela estava fazendo, mas com certeza andava bem ocupada.
Batty, por sua vez, estava apenas matando o tempo entre duas doses de
bebida.
Ele se lembrava de que Ajda fora mais especificamente atrás dele naquele
túnel. Seria possível que o cheiro da ruiva estivesse impregnado nele? Seria por
causa disso que ele fora visto como uma ameaça? Ela o atacara por ciúme ou
algo parecido?
– Terra chamando LaLaurie.
Ele piscou os olhos.
– Não há nada para conversar.
– Responda só a uma pergunta. Todo aquele discurso sobre anjos, servos e
sicofantas não foi tirado apenas de livros, não é?
Ele olhou para ela. Percebeu que começara involuntariamente a esfregar a
cicatriz do pulso esquerdo, como se soubesse de antemão o que ela estava prestes
a perguntar.
– Não – disse.
Ela pôs o celular e o iPad de lado, olhando-o com toda a atenção.
– Veja bem. Você não precisa me contar a respeito disso se não quiser. Não
fui exatamente a pessoa mais receptiva do planeta – disse Callahan, fazendo um
gesto em direção à garrafa. – Mas me parece que está num trem rumo ao
esquecimento, e na verdade estou sentada ao seu lado. Pode me chamar de
egoísta, mas eu não gostaria que isso acontecesse.
– Faz alguma diferença?
– Para mim, sim – disse ela. – Vi meu pai beber até quase morrer pouco
antes de colocar uma bala na cabeça. E não estou a fim de ver isso acontecer de
novo.
Batty não costumava fazer isso sem autorização, mas ela tinha acabado de
abrir uma pequena janela, e ele decidiu dar uma espiada na mente dela. Havia
muita angústia infantil ali dentro, e ele soube que, em geral, ela mantinha a
janela trancada.
– Não vou aborrecê-la com detalhes – disse ele. – Deixaremos isso para
outro dia. Vamos apenas dizer que o que eu sei sobre esse assunto vem de duas
coisas: minha maldição e minha estupidez.
– Vou precisar de um pouco mais que isso.
– A maldição com a qual nasci. Essa coisa que minha mãe chamava “A
Visão”… – disse ele, e então levantou as mãos, mostrando as cicatrizes. – E
minha estupidez.
– Suponho que você tenha feito isso depois que sua mulher foi morta.
– Depois do que vi em nosso quarto, pensei que soubesse exatamente para
onde ela estava sendo levada, e fui suficientemente tolo para achar que podia ir
atrás dela. E, quando cortei os pulsos, fui levado para um lugar que não desejo
que ninguém conheça.
Para dizer a verdade, sua lembrança dessa viagem perdera a força nos
últimos dois anos, tornando-se pouco mais que uma onda de terror num canto de
sua mente, como um escuro fragmento de pesadelo. Mas ele voltara com a
cultura e a história daquele lugar gravadas no cérebro como dados num
microchip.
E esse tipo de conhecimento não era fácil de esquecer.
– Sei que eu não deveria ficar surpresa com isso – disse Callahan –, mas
está dizendo que o inferno existe mesmo?
– Inferno, Lazaa, Tártaro, Kalichi... Cada religião lhe dá um nome
diferente, e, pode crer, você nunca vai querer ir até lá se puder evitá-lo. Tive
apenas uma amostra, mas já foi mais do que suficiente. E tenho quase certeza de
que trouxe um pequeno pedaço de lá comigo.
Batty podia ver que, apesar de tudo o que Callahan já vira naquela noite, ela
ainda tinha dificuldade em aceitar aquela ideia. Mas ele precisava dar-lhe crédito
por ela pelo menos não rejeitá-la por completo.
Ela estava progredindo.
– O que quer dizer com pedaço de lá?
– Não sei se você reparou – disse ele –, mas nem sempre estou com a
melhor disposição.
Callahan não disse nada.
– Acho que em parte é em consequência do que eu vi, mas há também algo
dentro de mim, como se um pedaço vivo daquele lugar tivesse grudado na minha
alma antes que eu voltasse. Como um parasita. Pelo que sei, foi por pouco que
não me tornei servo também.
Motivo pelo qual, a seu ver, ele ainda sentia atração pela ruiva.
– Isso é ridículo – disse Callahan.
– Já fomos além do ridículo há muito tempo. E por que não dizer também
absurdo, cômico, risível? Infelizmente, nada disso é muito engraçado.
– Então, que solução você propõe? Sentar aqui e chafurdar em sua própria
miséria? Ou quer fazer algo de produtivo?
– Os dois não são incompatíveis, não é?
– Olhe, professor, preciso que você fique sóbrio. Do jeito que está não me
serve para nada. Que tal chamarmos o serviço de quarto e pedir um bule desse
horrível café de que os turcos gostam tanto?
– O convite parece tão agradável...
– É melhor do que convite nenhum, não é?
Ele pensou naquilo e então suspirou.
– Tudo bem. Eu me rendo.
– Muito bom – disse ela. – Tenho algo para lhe mostrar.
O café era tão forte e espesso que Batty quase sufocou na hora em que ele tocou
sua língua. Ainda faltava muito para ele ficar sóbrio, mas sabia que precisava
despertar e prestar atenção ao que Callahan estava dizendo.
– Estudei a lista de clientes de Ozan – disse-lhe ela. – Ele tinha mais de
seiscentas contas ativas, e a casa de leilões vai de vento em popa. Nos últimos
dois meses, enviaram setecentos e vinte e sete pacotes mundo afora.
– Então essa base de dados não serve para nada. E no que diz respeito ao
iPad?
– É exatamente o que quero lhe mostrar.
Callahan pegou o iPad de Ozan sobre a mesa e apertou a tecla home, e a
tela se iluminou.
– Seu aplicativo de e-mails está conectado a duas caixas postais diferentes.
Profissional e pessoal, ambas vinculadas ao mesmo servidor, administrado por
um provedor de internet aqui em Istambul – disse, e então tocou a tela e acionou
o navegador. – Mas quando comecei a explorar, encontrei uma página da Web
salva. Um serviço anônimo de e-mails, funcionando em nuvens.
– Nuvens?
– Em algum lugar da internet. Como o Google ou o Sky tap, onde tudo é
centralizado.
– O que quer dizer?
– Em si, não muito. Mas, quando o encontrei, eu me perguntei por que Ozan
precisava ter uma conta de e-mails separada, mais especialmente anônima? Será
que acessava sites pornôs e tentava esconder seus passos? Isso não parece muito
provável.
Batty de repente entendeu:
– Ele estava se comunicando com outros guardiões.
Callahan acenou com a cabeça:
– Não com frequência, mas, quando invadi a conta dele, encontrei quatro
destinatários diferentes, para os quais Ozan mandou mensagens um dia antes de
morrer. Ele já os jogara na lixeira, mas não se preocupou em esvaziá-la. Um
erro que os amadores sempre fazem. Acham que, quando deletam uma
mensagem, ela desaparece de vez.
– Então, quem são esses destinatários?
Callahan bufou.
– Eu gostaria que fosse fácil assim. Mas todos também têm contas de e-mail
anônimas.
– Então, chegamos a um impasse.
– Não exatamente. Dei um jeito de invadir essas contas, gerar um
rastreamento de IP, e descobri que foram acessadas pela última vez em quatro
cibercafés diferentes. São Paulo; Washington, D.C.; Londres; e Chiang Mai, na
Tailândia.
– Já sabemos quem era o destinatário em São Paulo.
Callahan confirmou com a cabeça.
– Mas Gabriela não tinha acessado a conta desde que começara sua última
turnê, de maneira que nunca recebeu a mensagem.
– O que é essa mensagem?
– É aqui que encontro dificuldades. Não é nada mais que um spam. Viagra
com preços de internet, blablablá. O tipo de coisa que as pessoas deletam, o que,
claro, é o objetivo. Na verdade, é bastante engenhoso.
Ela tocou a tela do iPad e o passou para Batty, e, de fato, a mensagem que
ela recuperara era um longo parágrafo sem recuo de um anúncio mal escrito.
Do tipo que, ao receber, você imediatamente aperta a tecla para apagar. Mas ele
sabia que era muito mais do que isso.
– Não é um spam – disse ele. – É uma mensagem escondida.
– Muito bem. Comecei a pensar no que você me disse na biblioteca de
Ozan. Sobre Trithemius… e esse pequeno filhote… – disse, afagando a capa do
exemplar de Steganographia que estava na mesa a seu lado. – Mas, se examinar
o negócio que está no caderno de anotações de Ozan, você verá que ele era tão
bom em esteganografia quanto em segurança de e-mails. Então ele escolheu o
caminho mais fácil e utilizou um atalho para codificar as mensagens.
Batty olhou para o spam na tela.
– Que tipo de atalho?
– Verifiquei o cache do navegador dele e encontrei um site que permite
escrever uma frase inteira na caixa de texto e codificá-la para que se pareça
com isso. Imagino que os guardiões, do outro lado, usem o mesmo site para
decifrar as mensagens.
– É o fim das velhas tradições. Presumo que você já tenha decodificado a
mensagem também?
Ela confirmou com a cabeça e tocou de novo a tela, mostrando-lhe o
resultado:
Turbulência a caminho
do esclarecimento
Istambul, Turquia
Batty não gostava de aviões pequenos. Todos nos quais já viajara pareciam
desenvolver uma paixão por turbulências, e aquele não fazia exceção à regra.
Mas, pelo menos, os assentos eram confortáveis. Para quem tinha de passar
horas atravessando o céu num minúsculo tubo de metal, não havia nada melhor
do que desfrutar de um assento do tamanho de uma poltrona.
Como sempre, Callahan – que estava sentada do outro lado do corredor –
não desgrudava os olhos do celular. Parecia tranquila, mas ele sabia que a mente
dela devia estar a mil, assim como estivera a dele a primeira vez em que tivera
de lidar com as realidades do mundo. O fato de ela aguentar tudo aquilo tão bem
mostrava quanto era tenaz.
Callahan era o que sua mãe teria chamado “uma mulher sem limites”. Em
outras palavras, sem marcha a ré. Sempre andando para a frente, como um
tubarão. E, depois de ter visto o que ela fizera com Ajda, ele não tinha inveja de
quem se colocasse no caminho dela.
Esperava que essa viagem não fosse inútil. Embora Ozan e o monge
tivessem tomado o maior cuidado na troca de e-mails, Batty sabia que, se
Callahan conseguira decifrá-los, outras pessoas também poderiam fazê-lo.
E isso queria dizer que o irmão Philip corria perigo.
Claro, eles não podiam garantir que Philip fosse um guardião. Praticamente
não tinham informações a respeito dele. Para Batty, o monge não se encaixava
num típico perfil cristovense de redenção espiritual, mas eles não sabiam qual
fora o percurso do irmão Philip. Callahan solicitara que o escritório de
Washington verificasse seus antecedentes, mas ainda não obtivera nenhum
retorno.
Todo aquele envolvimento do governo aborrecia Batty.
No hotel, ele pensara em Washington, D.C. e no e-mail que Ozan havia
mandado para um cibercafé de lá. Sabendo que se tratava do lugar predileto de
Callahan, uma pergunta lhe surgira à mente.
– Como é que você se viu envolvida neste caso pela primeira vez?
– Da mesma maneira de sempre – dissera ela. – Eles me deram uma
missão, e peguei um voo. Ela tinha um grau de prioridade maior que o de
costume, mas não fui contratada para fazer perguntas, apenas para executar
ordens.
– Você já parou para se perguntar por que motivo foi enviada para
investigar a morte de uma estrela pop?
– Claro que sim.
– E qual é sua conclusão?
– Que eles sabem mais do que eu. Mas é sempre assim.
– Talvez alguém tenha ficado com a pulga atrás da orelha.
– Quem?
Batty deu de ombros.
– Alguém que saiba o suficiente para reconhecer um sinal vermelho ao vê-
lo. Talvez alguém que tenha recebido uma mensagem de e-mail que dizia “Fique
alerta”. Eles ouvem falar de Gabriela, acontece de seus colegas estarem
próximos o suficiente para exercer alguma influência, e logo depois, você sabe,
já está a bordo de um avião.
Por um instante, Callahan pareceu avaliar o peso de uma decisão, e então
disse:
– Estou quebrando o protocolo ao lhe dizer isto, mas acho que a ordem pode
ter vindo diretamente da Casa Branca.
– Você acha que nosso presidente pode ser um guardião?
Callahan riu:
– Duvido muito, mas ele já foi acusado de coisas bem piores. Talvez alguém
de seu governo seja. E, se for verdade, então por que essa pessoa solicitou meu
serviço? Por que não avisou diretamente aos demais?
– Talvez ele tenha se sentido comprometido. Pode achar que está sendo
vigiado e não quer fazer alarde.
– Ninguém nos explica o que está na base de tudo isso. Por que Milton, entre
tanta gente? Por que Paraíso perdido e a procura de mensagens ocultas? Por que
todas essas perguntas sobre páginas faltantes e livros gigantescos? Odeio agir às
cegas.
– Talvez o irmão Philip possa responder.
– Supondo que o encontremos – disse Callahan.
Foi aí que pararam a conversa, pegaram um táxi para um aeroporto
longínquo no meio da noite e alugaram os serviços de um piloto que os levasse,
pelo céu sem nuvens, dentro de um minúsculo tubo de metal.
Mas, no final das contas, não era a turbulência que aterrorizava Batty.
Era a descida para o pouso.
O lugar que o irmão Philip chamava de lar era o único mosteiro cristão de
Chiang Mai.
Callahan não estivera ali muitas vezes e estava francamente surpresa com o
fato de que também houvesse igrejas cristãs num país predominantemente
budista.
Como sempre, LaLaurie ficou feliz em poder ensinar a ela.
– Os portugueses trouxeram o cristianismo ao então reino do Sião no século
XVI – disse ele.
Estavam atravessando a cidade a bordo de um tuk tuk, um riquixá
motorizado, com três rodas. O motorista usava fones de ouvido e parecia prestes
a matar alguém enquanto voava nas ruas tomadas pela multidão.
– O rei Narai aceitou os católicos porque queria saber mais sobre eles e o
mundo de onde vinham. Infelizmente, essa curiosidade não era compartilhada
por todos os membros do governo, e, quando Narai morreu, os europeus foram
exterminados ou expulsos.
– Não é sempre assim?
– Então, no final do século XVII, Taksin autorizou alguns missionários
franceses a ficar, seguidos por batistas e presbiterianos no começo do século
seguinte. Nunca representaram grande coisa se comparados aos budistas, mas
mesmo assim deixaram sua marca.
Enquanto LaLaurie falava, seus olhos piscavam um pouco, o que acabou
por aborrecer Callahan. Agora, ela sabia o que ele estava pensando toda vez que
olhava para ela. Mal se lembrava do que acontecera no avião, só queria deixar
aquilo para trás e cuidar de seu trabalho. Mas não conseguia.
Quando Callahan voltara a si, com LaLaurie praticamente montado sobre
ela – algumas vagas imagens desse encontro dançavam em meio às teias de seu
cérebro –, a ideia de ela não ter completo controle de seu corpo a aterrorizara.
Mas era algo com o qual ela podia lidar. LaLaurie a assegurara de que,
embora de certa forma ela tivesse autorizado aquela coisa a usá-la, não haveria
sequela permanente. Ele dera um jeito de afastar a intrusa antes que ela se
apossasse de Callahan e lhe sugasse a alma.
O que era mais do que bom, pensou ela, mas mesmo assim havia ainda um
pequeno e insignificante detalhe que a aborrecia…
…LaLaurie a vira despida.
Esse sentimento era irracional. Louco. Ela não tinha dúvida disso. Nunca
fora especialmente recatada. Mas, pela maneira como LaLaurie continuava
olhando para ela, Callahan não podia deixar de se sentir violentada.
– Há muitos turistas e expatriados na Tailândia – continuou ele –, por isso
ainda existem várias igrejas e hospitais cristãos neste país que…
– Levante os olhos – disse-lhe Callahan, tocando o próprio nariz.
– O quê?
– Você está falando comigo, professor, não com meu sutiã.
LaLaurie lhe lançou um vago sorriso.
– Você ainda está pensando nisso? Pode acreditar, Callahan, não tenho mais
catorze anos. Embora eu deva reconhecer…
– Pode parar – disse ela. – Se não quiser perder a vida, pode parar.
O mosteiro não era bem como Callahan esperava. Parecia igual a qualquer outra
estrutura de madeira e barro que existia nos arredores de Chiang Mai, mas em
tamanho maior, com vários andares e um muro em volta.
Contudo, quando Callahan pensava em mosteiros, ela imaginava uma
construção maciça, com igreja e alojamentos para dezenas de monges. Mas
naquele lugar mal cabiam uma capela e uma dúzia de aposentos.
Um pouco decepcionante.
– O irmão Philip não está mais aqui – disse-lhes o monge que os atendeu na
entrada. Era francês, e Callahan sabia que a maioria dos monges não era nativa
da Tailândia. – Ele foi embora há dois dias.
Ela esperava por isso. Depois do e-mail de Ozan, não ficaria surpresa se
todos os guardiões remanescentes estivessem se escondendo.
– Temos como contatá-lo? Alguém morreu na família dele e estamos
tentando localizá-lo.
Não era exatamente uma mentira.
O monge os olhou com ar interrogativo.
– Família? Eu não sabia que ele tinha família.
– Seu avô. Morreu de repente e mencionou o irmão Philip em seu
testamento. Sabemos que não terá interesse no dinheiro, mas precisamos que ele
assine alguns documentos.
– Como eu lhes disse, ele não está aqui.
– Você se importa se dermos uma olhada nos aposentos dele?
– Por quê?
– Pode ter deixado algo que nos leve até ele – disse Callahan. – É muito
importante.
O monge olhou fixo para eles por um longo momento, e Callahan se
perguntou se ele não estava olhando diretamente através dela. Mas o fato de
dedicar a vida a Cristo não transformava as pessoas em videntes.
– Não temos nada a esconder – disse ele, convidando-os a entrar.
–Com todo o respeito – disse Callahan –, você não age exatamente como um
monge.
Eles estavam numa sala adjacente, sentados diante de uma mesa comprida.
Philip acampava ali, sua mochila e as provisões estavam empilhadas num canto.
Uma lamparina a querosene brilhava a seu lado, enquanto ele dispunha três
copos de papel e servia chá de uma garrafa térmica.
Era um homem nervoso e cheio de energia, que demorava certo tempo
para começar a relaxar.
– E como um monge deveria agir?
Callahan deu de ombros:
– Eu esperava que se comportasse mais como… um padre.
Philip concordou com a cabeça como se entendesse o que ela queria dizer.
– Fiquei bastante abalado a primeira vez que vi um padre fumar um cigarro
e tomar uma dose de uísque. Temos preconceitos em relação ao que significa
entrar para a ordem e, quando vemos alguém que não vive de acordo com o
estereótipo, ficamos espantados.
– Você tem de admitir que um monge armado é algo um tanto incomum –
disse Batty.
Philip acabou de servir o chá e distribuiu os copos.
– Bem, o que posso dizer? Cresci na ilha de Jersey e não passei a vida inteira
num mosteiro. Mas, quando sua vida está correndo perigo, os velhos hábitos
voltam à tona, sabe como é? Não está escrito em lugar nenhum do manual que
eu devo ser um herói.
Callahan franziu as sobrancelhas.
– Tem certeza de que é o irmão Philip?
Ele a olhou de volta, furioso.
– O que você quer? Ver minha carteira de identidade? Acho que a deixei na
outra calça – disse, e então fez um gesto na direção do copo. – Você não vai
tomar seu chá?
Callahan olhou a bebida com ar suspeito e não pegou o copo.
– Por que não nos conta sobre o e-mail?
– E-mail?
– Aquele que você mandou em resposta para Koray Ozan há umas duas
semanas.
Philip estava prestes a tomar um gole de chá. E parou.
– Você sabe disso?
– Ozan não era um gênio da segurança na informática.
– Muito bem – disse ele, tomando um gole rápido. – E o que mais sabe?
– Quem são os Custodes Sacri – disse-lhe Batty. – E aposto que está usando o
medalhão neste momento.
Philip olhou-o fixamente por alguns segundos, como se estivesse avaliando
se podia confiar nele. Então, deu de ombros, pegou o colar e mostrou a medalha
de São Cristóvão pendurada num espesso laço de couro que ele usava no
pescoço.
– Estou começando a achar que essa coisa acaba me custando mais do que
realmente vale.
– Há quanto tempo está na ordem?
– O tempo suficiente para saber que eu não deveria conversar sobre isso
com estranhos.
– Vamos voltar ao e-mail – disse Callahan. – Por que Ozan perguntava a
respeito das sete páginas faltantes da Bíblia do Diabo?
– Porque era um velho tolo e curioso demais. E os curiosos como ele
acabam sendo mortos.
– Ou ficam cegos – disse Batty. – Como Milton.
– Milton, Galileu e sabe-se lá quem antes deles.
Batty o olhou com surpresa.
– Galileu?
– Foi assim que Milton foi “fisgado”. Galileu o informou a respeito das
páginas faltantes, e ele foi procurá-las. Pelo menos é o que conta a lenda. Na
verdade, não sei se isso é mesmo verdade. Com o decorrer do tempo, os fatos
acabam destorcidos.
– O que há nessas páginas? – perguntou Callahan.
– Uma maldição. Pelo que sei. Foi isso que deixou Galileu e Milton cegos.
Mas, que eu saiba, as páginas do Codex não existem mais. Quando Milton se deu
conta do perigo que representavam, ele as queimou.
– Então qual é a conexão com o Paraíso perdido? – perguntou Batty. – O que
Ozan e Gabriela Soares tanto procuravam no Livro XI?
Philip olhou para Batty e Callahan.
– Vocês fizeram o dever de casa. É melhor tomarem cuidado para não
acabar como Milton. Ou Ozan. Embora, nessa altura, isso não seja mais
relevante.
– Por quê?
– Vocês deram uma olhada lá fora nos últimos dias? O que acontece no
mundo agora é suficiente para assustar o Jesus que reside em cada um de nós. Os
demônios de cada um andam muito ocupados: manipulação do mercado de
ações, cidades tomadas pelas drogas, sem contar aquelas prestes a entrar em
guerra. E, quando a quarta lua chegar, poderão enfim libertar todos os seus
servos – que são muito mais do que já tiveram – e será o nosso fim.
– A quarta lua? – disse Callahan.
– A quarta lua da tétrade. Daqui a dois dias.
Ela franziu o cenho.
– Do que está falando?
– Um eclipse – disse-lhe Batty. – O quarto eclipse deste ano.
– Prestem atenção – disse o irmão Philip. – A melhor coisa que podem fazer
é voltar para casa e ficar com seus familiares, porque, do jeito como as coisas
estão andando, os vilões já ganharam. E, daqui a uma semana, ou estaremos
mortos ou num estado tão parecido que desejaremos morrer.
– Está falando do Apocalipse? – perguntou Callahan.
Philip bufou.
– O Apocalipse é um conto de fadas. Mas acaba sendo a mesma coisa.
Nenhum de nós estará aqui para ver o Arrebatamento.
– E você afirma que não há como parar isso.
– Não do jeito como vejo as coisas. Este trem não está sem freio. Estamos
na idade moderna, com comunicação global, informação instantânea e
oportunidades para praticar a corrupção sete dias por semana, vinte e quatro
horas por dia, no mundo inteiro. A bomba nunca esteve tão bem armada. A
menos que Miguel possa fazer algum tipo de milagre, vamos afundar. E, se os
vilões conseguirem contatar o Telum antes dele, chegaremos a um novo patamar
de…
– Telum? – disse Batty. – O que é o Telum?
Philip negou com a cabeça.
– Já contei demais a vocês.
– Então, não vai mudar nada se contar um pouco mais. O que é? Algum tipo
de arma?
Philip hesitou. Parecia emocionalmente desgastado. Então disse:
– Uma alma errante. Um viajante sagrado que renasce a cada geração na
forma humana.
– Aquele que vocês juraram proteger.
Ele confirmou com a cabeça.
– Houve um tempo em que Miguel pensou que eu pudesse ser o escolhido e
Ozan antes de mim, assim como o resto dos guardiões. Mas ele estava errado.
– Então, quem é?
– Essa é a questão crucial, não é?
– Mas se vocês não sabem quem é – disse Callahan –, como podem
proteger alguém?
– Protegendo a chave. A chave que o libera.
– E onde está essa chave?
Philip negou com a cabeça e mostrou os copos com a mão.
– Chega de amabilidades. Acho que está na hora de vocês tomarem esse
chá e saírem daqui. Deixem-me passar minhas últimas horas em paz.
Mas Batty ainda não se considerava vencido.
– Conte-nos o que sabe a respeito da chave, irmão.
Philip tomou um último gole de chá e se levantou.
– Desculpem-me, mas é só isso que posso lhes dizer. A partir de agora
pretendo apenas me proteger – disse, e pegou a arma da mesa. – Eles podem vir
atrás de mim, mas não vou morrer sem lutar. Então, se vocês não se incomodam,
eu gostaria de…
Um trovão estrondeou lá fora, e o chão do templo começou a tremer.
Abruptamente, Batty e Callahan seguraram suas cadeiras, enquanto o irmão
Philip caía para trás, com o rosto lívido.
– Ela está aqui – disse ele.
Batty sentiu uma escuridão espalhar-se de repente através dele.
– Quem está aqui?
Mas já podia senti-la.
– Quem você acha que é? Aquela que vem a mando deles. O anjo da
confusão.
Callahan franziu a testa.
– O anjo do quê?
– Foram vocês que a trouxeram até aqui…
Belial, pensou Batty. O Demônio da Luxúria. O Senhor da Arrogância. Um
dos protagonistas de Paraíso perdido. E Batty estava convicto de que ele agora
morava na Terra, no corpo de uma ruiva gostosa de cair o queixo, perita no uso
da língua.
Era com isso que ele se envolvera?
O trovão se fez ouvir de novo, e o chão se deslocou sob seus pés. O teto
começou a rachar, pedaços dele caíram, e Callahan gritou:
– Vamos sair daqui agora!
Mas o irmão Philip ficara parado, imobilizado, enquanto o templo
desmoronava ao redor deles. Callahan agarrou Philip pelo braço, arrastando-o
em torno da mesa e pela porta enquanto Batty pegava a bolsa com o livro e os
seguia. O chão tremeu e rachou, e ele cambaleou, quase caindo; mas conseguiu
ficar em pé e saiu depressa pela porta, esquivando-se dos pedaços de pedra que
caíam.
Quando chegaram à sala principal, pararam de repente, olhando fixo a
mulher que aparecia no vão da entrada, cuja silhueta se destacava contra o céu
furioso.
Ela sorriu, olhando diretamente para Batty.
– Tenho algumas pendências para resolver com você.
A ruiva. E, contra sua própria vontade, Batty sentiu certo formigamento
abaixo da cintura.
Ela era fascinante.
– Não foi muito simpático o que fez comigo no avião – disse ela. – Depois
de tudo o que fomos um para o outro, pensei que pudesse mostrar um pouco mais
de consideração.
Imagens da noite que passara com ela lhe vieram à mente, e ele soube que
era ela que provocava isso. Alimentava seu cérebro com aquelas visões. Tentou
resistir, mas ela era forte demais, e ele sentiu que estava se entregando.
Ela fez um gesto em direção à bolsa com o livro.
– Você pode começar me dando esse manuscrito. Acho que é exatamente o
que eu estava procurando.
O templo balançou de novo, parte da parede desmoronou, e Batty,
segurando a bolsa contra o flanco, juntou todas as suas forças e disse:
– Pode esquecer.
– Vamos, Sebastian. Eu lhe prometi que seria recompensado…
Callahan se virou para ele.
– Quem é essa garota?
Belial olhou para ela.
– Não me reconhece, Bernadette? Sou aquela que cantou para fazê-la
dormir ontem à noite. Cantei para que seu pai dormisse também.
Ela exibiu um amplo sorriso.
Enquanto Batty observava, a expressão de Callahan mudou da confusão
para o entendimento, e do entendimento para uma desvairada fúria.
Então ela disse:
– Você só pode estar gozando da minha cara.
Com um grito de raiva, ela se precipitou impetuosamente na direção de
Belial, mas esta pareceu ter previsto o movimento de Callahan. Afastou-se de
lado e estendeu o braço, atingindo Callahan com um golpe invisível. Ela foi
projetada de lado, bateu contra um pilar e deu um grunhido, antes de cair ao
chão.
As nuvens escuras rufavam atrás de Belial.
– O manuscrito, Sebastian. Dê-me o manuscrito.
– Por que quer este livro? O que tem nele?
– Uma garantia – disse ela. – Mas não é problema seu, certo? Apenas me
entregue esse livro ou vou ter de machucar sua…
Um tiro ecoou, seguido de outro.
Batty fez um movimento com a cabeça e viu que o irmão Philip segurava a
pistola e, tremendo, apontava para Belial. As balas ricochetaram em volta dela.
Ele ajustou a pontaria e atirou de novo. A terceira bala foi diretamente na direção
de Belial, que ergueu a mão e pegou o projétil em sua palma.
– Fantástico – disse ela, abrindo de repente a mão e lançando a bala de volta
para o irmão Philip. Um buraco vermelho-escuro abriu-se entre seus olhos, e ele
caiu de joelhos, enquanto a arma escapava de suas mãos.
Ele gemeu uma vez antes de cair, com o rosto contra o chão.
O trovão rufou, e o chão tremeu de novo, obrigando Batty a lutar para
equilibrar-se enquanto olhava aterrorizado para o corpo de Philip.
– Que pena! – disse Belial. – Eu queria tanto me divertir com ele.
E então olhou para Batty.
– Última chance, Sebastian. Dê-me o manuscrito ou…
Callahan surgiu do nada e agarrou com toda a força o tronco de Belial. A
ruiva deu um grito quando Callahan a segurou com os braços, e as duas caíram
pela porta e pelos degraus, desaparecendo de vista.
O chão tremeu e balançou, enquanto novos pedaços de teto desabavam em
volta de Batty. Cambaleando, ele se aproximou do irmão Philip, pegou a arma e
correu para fora do templo.
Callahan e Belial estavam no pé da escada, Callahan montada sobre a ruiva,
segurando-a pelo pescoço. Mas, de repente, num piscar de olhos, Belial
desapareceu, e Callahan caiu para a frente. Menos de um segundo depois, Belial
estava atrás dela, dando-lhe um soco nas costelas.
Callahan gemeu de dor e caiu de lado. Porém, para a surpresa de Batty,
ficou em pé no instante seguinte, colocando-se em posição de combate. Batty já
vira o que ela fizera com Ajda, mas Belial não era uma sicofanta, e não seria tão
fácil vencê-la. Mesmo assim, o corpo que ela ocupava era humano – e feito para
seduzir, não para lutar –, e ela podia sentir dor como qualquer outra pessoa.
Ele pensou em usar de novo o manuscrito contra ela, mas ela estava tão
entranhada à pele que usava que ele duvidava que isso pudesse ter algum efeito.
E ele não queria correr o risco de deixar que ela o arrancasse dele, já que o livro
tinha um poder especial – uma garantia, como ela dissera –, e seria abominável
se ele pusesse esse poder nas mãos dela.
Na hora em que ela ia atacar Callahan de novo, ele levantou a pistola e
mirou as costas da mulher. Então apertou o gatilho. A bala atingiu Belial, que
gemeu, caindo para a frente, jorrando sangue do buraco logo abaixo da
omoplata. Batty pensou que ficaria feliz em acertar a criatura que matara sua
esposa, mas não foi o caso.
A única coisa que sentiu foi desprezo.
Belial se virou e olhou com furor para ele, mais irada do que ele jamais a
vira – seus olhos brilhavam num amarelo quente, luminescente. Então o chão
começou a tremer ainda mais. Pedaços das paredes do templo desmoronavam e
eram projetados como se por um morteiro, batendo forte no chão em volta de
Batty. Ela lançou um braço na direção dele, e o impacto no peito do professor foi
tão duro e doloroso quanto se ela o tivesse atingido fisicamente. A pistola lhe
escapou da mão quando ele caiu para trás nos degraus do templo, sentindo o ar
escapar-lhe dos pulmões.
Aproveitando o momento, Callahan avançou na direção de Belial e girou o
corpo, dando-lhe um violento soco na garganta. Belial emitiu um som surdo e
cambaleou para trás, segurando o pescoço…
…mas Callahan continuou avançando. Posicionando-se de lado, ergueu a
perna, e a sola de sua bota atingiu Belial no meio da barriga.
Do outro lado da clareira, o piloto – McNab – estava saindo do helicóptero,
olhando para eles com ar incrédulo.
Mesmo àquela distância, Batty podia ver que ele estava em pânico, e
presumiu o que ia acontecer. Tentou chamar McNab, mas mal conseguia
respirar, e nenhuma palavra saiu de sua boca.
Então McNab subiu de volta no helicóptero e, logo depois, o ruído dos
motores encheu o ar, ao mesmo tempo que as hélices começavam a girar.
– Pare! – gritou Batty, conseguindo finalmente respirar, mas sua voz foi
abafada pelo rugido dos motores e dos trovões no céu.
Pedaços do templo continuavam chovendo em volta deles, enquanto
Callahan, enfurecida, prosseguia com o ataque, dando chutes e socos, obrigando
Belial a recuar.
Mas Belial estava longe de se render e desapareceu de novo… para
reaparecer mais uma vez atrás de Callahan.
Então foi a vez de Belial começar a avançar, mexendo a mão como se
estivesse segurando uma varinha, enviando a cada movimento uma descarga de
energia para Callahan, que gemia e cambaleava, tentando se reequilibrar,
sentindo a dificuldade aumentar a cada novo golpe.
Batty percebeu onde a pistola havia caído e, gritando com veemência, subiu
os degraus para alcançar a arma. Pondo-se em pé, ele apontou de novo e apertou
o gatilho…
…mas a arma fez um clique. Estava vazia.
Merda.
E agora Callahan estava no chão, e ele percebeu que ela ficara mais fraca.
Ela tentou rebater, mas Belial a golpeou de novo com outro soco invisível. Então
a ruiva avançou e se posicionou diante de Callahan, com o sangue escorrendo do
ferimento da omoplata.
Levantando a voz para poder ser ouvida acima do ruído dos motores do
helicóptero, ela disse:
– Dê-me o manuscrito, Sebastian, ou vou arrancar a cabeça dela e beber
seu maldito sangue.
E Batty não teve dúvida de que ela faria isso mesmo. Dúvida alguma.
Mas então algo imprevisto aconteceu.
Batty ouviu um som, um ploc abafado logo abaixo do ruído das hélices do
helicóptero. Os olhos de Belial ficaram brancos, e ela cambaleou um pouco para
a frente, como se tivesse sido esbofeteada por um repentino sopro de vento.
Ela então se virou, e Batty pôde ver perfeitamente o buraco na parte de trás
da cabeça, com sangue escorrendo aos poucos, fazendo seu cabelo ruivo tomar
uma cor vermelho-escura. Ele não vira a bala sair do outro lado da cabeça, o que
permitia supor que estivesse alojada no cérebro – ou no que sobrara dele. O
impacto com certeza repercutira até o crânio, destruindo tudo em seu caminho.
Então, ouviu-se outro tiro, que atingiu-a no rosto, fazendo-a girar sobre si
mesma, transformando metade do rosto em carne moída. Seguiu-se ainda um
terceiro tiro, que a atingiu na base do pescoço, e ela caiu de joelhos, com o olhar
chocado, enfurecido e desesperado.
Batty demorou um momento para entender de onde vinham os tiros.
Virando a cabeça, olhou na direção do helicóptero.
Do outro lado da clareira, McNab estava deitado de bruços, com uma
espingarda nas mãos. Ele sorriu, com ar de satisfação pela missão cumprida,
mas Belial de repente gritou e lançou um braço no ar.
Um pedaço do templo se desprendeu, voou através da clareira como um
cometa e atingiu o tanque de gasolina do helicóptero.
Ao mesmo tempo que McNab se levantava, o helicóptero explodiu numa
bola de fogo atrás dele. Ele gritou enquanto as chamas o cercavam,
transformando-o num churrasco humano instantâneo. Então, ele desmoronou no
chão e ficou imóvel.
A explosão fez o helicóptero levantar-se no ar, antes de cair de volta, deitado
de lado, com as hélices partindo-se enquanto o fogo tomava conta da fuselagem.
Diante do incêndio, Belial cambaleou um instante, virando-se para Batty,
com os olhos cheios de tristeza, uma fonte de sangue jorrando do buraco no
pescoço e outra lhe cobrindo o rosto. Então, Belial caiu de costas, e o sangue se
espalhou no chão debaixo de seu corpo.
À medida que recuperava os sentidos, Batty tentou reequilibrar-se, em
estado de choque, sem poder acreditar no que acabara de testemunhar.
Cambaleou até o pé da escada e se aproximou do corpo destroçado de Belial,
perguntando-se mais uma vez como conseguira levar aquela mulher para a
cama.
Depois de um momento, Callahan se levantou e ficou ao lado dele, com os
punhos involuntariamente fechados, como se estivesse esperando que a filha da
mãe voltasse a se mexer.
Então a boca de Belial se abriu, e o sangue borbulhou para fora quando ela
tentou falar, sem conseguir.
Mas Batty ouviu sua voz dentro da cabeça.
Ainda não acabou, meu querido. Estamos conectados, você e eu.
Esse foi o presente de Rebecca para nós.
Então o ar escapou por entre os lábios da mulher ao mesmo tempo que a
vida deixava seus olhos, e seu corpo de repente ficou imóvel, abandonado por seu
ocupante. Depois de tudo o que dissera e fizera, não restava mais nada além de
um envelope humano, uma pele, o meio para uma meta final que, para Belial,
não significava mais do que um carro quebrado ou um vestido rasgado. Não tinha
mais utilidade e fora abandonado.
Logo depois, os trovões cessaram.
O céu se abriu.
A terra parou de tremer.
Mas não o coração de Batty.
37
Ele encontrou a mulher que dirigia o abrigo enquanto ela fazia uma pausa para
fumar na ruela de trás. No momento em que ele se aproximou, ela lhe deu uma
olhada. Viu um homem saudável, porém idoso, de cabelo grisalho, barba e
vestindo roupas de brechó – entre as quais uma jaqueta militar bem gasta –, e
imediatamente lhe mostrou seu telefone celular.
– Tenho uma tecla programada para chamar a polícia – disse ela.
– Quero apenas lhe fazer umas perguntas.
– Não tenho dinheiro. E, se quiser comida, pode voltar à noite. Abrimos às
seis horas.
– Obrigado, mas não é por isso que estou aqui.
Ela se retesou levemente.
– Então, por quê?
– Eu a vi naquele café um pouco mais adiante, umas noites atrás. Você
estava lá com uma moça.
Os olhos da mulher se estreitaram.
– E?
– Sei que essa moça ficou no seu abrigo, mas não a vi hoje de manhã. Ela
dormiu aqui esta noite?
– Por que está interessado?
– Acho que ela pode ser a filha de uma amiga minha – mentiu Miguel. –
Uma mulher do Arizona.
Ultimamente, ele estava disposto a fazer qualquer tipo de acordo. E
continuou:
– Pensei em abordá-la antes, mas precisava ter certeza de que era ela
mesmo. A mãe dela está morrendo.
Os olhos da mulher se abriram um pouco, embora ela continuasse
desconfiada. Tinha o hábito de ser muito protetora com suas garotas.
– Que engraçado – disse ela. – Tivemos uma longa conversa naquela noite,
e ela não me disse que sua mãe estava doente. A única coisa sobre a qual falou
foi do seu padrasto perverso. Não seria você, por acaso?
A mulher o olhou fixamente, analisando a veracidade da história dele,
avaliando-o, e então negou com um movimento lento da cabeça.
– Desculpe-me. Eu gostaria de acreditar em você, mas não consigo.
– Então, o que pode me dizer a respeito do rapaz que estava com ela?
Aquele que usa o nome de Zack?
Os olhos da mulher se estreitaram de novo.
– Como sabe de tudo isso? Não me lembro de tê-lo visto naquela noite.
– Eu estava lá, sentado no fundo.
– E daí? Você não é um tipo de maníaco?
– Já lhe disse. Só quero fazer a coisa certa. Levar Jenna de volta para casa.
Agora me conte mais sobre Zack.
– Acho que é melhor você ir embora.
– Não quero problemas. Diga-me o que quero saber e vou embora.
Ela suspirou.
– Contar o quê? Ele é um vagabundo. Usa a sua aparência como isca.
Esteve lá e depois sumiu. Não o vi mais desde então, e espero que ele não
apareça, se é que ele sabe o que é melhor para ele.
– Você faz ideia de onde ele mora?
– De jeito nenhum – disse ela, e então ergueu o telefone de novo. – Vou ter
de fazer aquela chamada? Sim ou não?
Miguel passou o dia perambulando por Holly wood, esperando perceber a mais
ínfima vibração, mas o mundo à sua volta era caótico, e ele não conseguia ouvir
nada.
Voltara ao café e à estação Grey hound, caminhando pelo Holly wood
Boulevard, pela Sunset Strip e por várias ruas intermediárias, mas Jenna havia
desaparecido.
Ele se perguntou se sua nova pele não lhe dificultava a percepção da
canção. Mas isso parecia bastante improvável, e aquela ausência repentina o fez
duvidar de si mesmo.
Será que se enganara a respeito dela desde o início?
Ou deixara seu desejo dominar a razão, os sentidos?
Afinal de contas, ele era diretamente relacionado a Belial, e ela era mestra
nesse tipo de comportamento.
Mas não. Ele não achava que estivesse errado.
De fato, sabia que não estava. Mais cedo ou mais tarde, ouviria de novo a
canção tão radiante e claramente quanto antes.
Pelo menos, esperava que isso fosse acontecer.
Porque o tempo estava se esgotando.
Os três anjos negros assistiam a tudo aquilo de uma sala de reuniões que se
debruçava sobre a Strip, em uma das inúmeras filiais da L4 que existiam no
mundo inteiro. A criação de uma companhia de segurança fora ideia de
Moloque…
…L4 ou Lúcifer Quatro…
…o que mostrava quanto ele era criativo.
Moloque, o Senhor da Guerra – que agora usava o nome de Vogler –,
observava as ruas abaixo, balançando a cabeça com desdém.
– Basta espalhar alguns servos pela multidão, e todos seguem o mesmo
comportamento. É incrível como essas criaturas são previsíveis.
– Só podemos ficar agradecidos – disse Mamon. – Como sabem, as coisas
nem sempre foram tão fáceis.
Neste mundo, Mamon – o Senhor da Cobiça – usava o nome de Radek.
Todos preferiam usar nomes humanos quando tinham de lidar com os
humanos.
Todos, exceto Belial.
Lembravam-lhe com frequência que sua meta era passar despercebido, o
que dificilmente poderia acontecer se usasse nomes tão conhecidos, graças em
parte ao poeta, que roubara a história deles. Mas Belial era extremamente
arrogante. Decidira viver na Terra como mulher, o que explicava tudo o que se
precisava saber a seu respeito.
Jonathan Bel, ou Belzebu, o Senhor das Moscas, disse:
– Ainda não está na hora de comemorarmos. A lua é daqui a dois dias e,
embora os esforços de vocês tenham sido admiráveis, nada garante que serão
bem-sucedidos.
– Belzebu, sempre do contra, não é?
– Preciso lembrá-los de seus fracassos anteriores? Não importa o que
tenhamos dado a essas criaturas nem o que fizemos para tentar seduzi-las; elas
sempre deram um jeito de sobreviver.
– Não desta vez – disse Mamon. – Moloque e eu espalhamos essas sementes
pelo mundo afora. O que estamos presenciando é apenas o começo.
– Veremos.
– O fato, como devo lembrar a vocês, é que o mundo nunca esteve tão
corrupto nem tão cheio de mortais sem força de vontade, que culpam uns aos
outros por seus fracassos. Não consigo me lembrar de outra época em que vimos
tantas pessoas prestes a explorar a dor dos outros ou matar por causa de
diferenças insignificantes, ou ainda declarar sua fé para aquele que chamam de
pai, enquanto se espojam na própria hipocrisia. Conseguimos juntar almas
corrompidas em número suficiente para fazermos exatamente o que precisa ser
feito.
– Lindo discurso – disse Belzebu. – Mas não muda nada. Sem o poder do
Telum, podemos fracassar por um triz.
Mamon riu e então falou em tom de deboche:
– Há poucos minutos, você estava empolgado com o fato de Belial ter
declarado que encontrara o viajante sagrado. O que aconteceu com aquela
confiança?
– Você sabe muito bem que o Telum é apenas metade da batalha.
– Você me surpreende, Belzebu. Para quem se mostra tão ansioso para
libertar o Mestre de sua prisão, você parece depender incrivelmente desse conto
de fadas. Moloque e eu lhe trouxemos resultados concretos, e Belial continua
perdendo tempo com o pequeno fã-clube de Miguel, procurando algo que talvez
nem exista.
– Ela encontrou a garota, não é verdade?
– O irmão dela encontrou a garota, e ela é ingênua o suficiente para achar
que isso faz algum sentido. Mas a irrelevância de Miguel neste planeta nunca foi
tão claramente demonstrada.
– Concordo com ela – disse Belzebu.
Mamon balançou a cabeça com ar de desgosto.
– Armas milagrosas, almas cantando… Vocês dois são tão crédulos quanto
aqueles que acreditam que o homem que pusemos na cruz era algum tipo de…
– Chega – disse Moloque, aproximando-se deles. – Vocês dois brigam como
alunos da pré-escola. Eu pensei que já havíamos superado esse absurdo.
– Eu apenas não gosto da ideia de que o fruto do trabalho árduo que tivemos
seja descartado em prol de algo que ainda precisa ser provado – disse Mamon.
– Ninguém está descartando nada – disse-lhe Moloque. – Mas Belzebu está
certo. Não devemos ser arrogantes a ponto de acreditar que a partida já está
vencida. Com ou sem o Telum, ainda temos muita coisa a fazer.
– É isso mesmo – disse Belzebu.
– Então, por que não deixamos a comemoração para a noite em que todos
poderemos brindar com Lúcifer?
Os outros dois concordaram com a cabeça, e os três ergueram as mãos.
– A posse ad esse.
40
Ao abrir os olhos, estava em pé. Mas, ao mesmo tempo que percebeu isso, não
conseguia saber onde. A única coisa que via era uma cascata de cores, azuis
vibrantes, verdes e amarelos tão brilhantes que feriam a vista.
Ele semicerrou os olhos, tentando focar as luzes, protegendo-se com a mão
enquanto sua visão se ajustava progressivamente à luminosidade. E então, diante
dele, apareceu o lugar mais lindo que poderia imaginar.
Colinas ondulantes. Céu azul e sem nuvens. Campos de flores amarelas a
perder de vista. E árvores, carregadas de frutas perfeitas – que estranhamente o
faziam lembrar-se da tigela com maçãs e peras de plástico da mesa de jantar de
sua mãe.
Aquele mundo vibrava nele, infiltrava-se sob sua pele, liberando algum tipo
de droga em seu sistema, uma droga que produzia um prazer tão intenso que ele
se perguntou se poderia manter-se em pé.
– Este é o mundo como poderia ter sido – disse uma voz atrás dele.
Voz de homem, britânico, culto.
Batty se virou e viu uma imagem bruxuleante, espectral, que vinha em sua
direção, andando com graciosa fluidez. E, ao conseguir focar a imagem, viu que
o homem tinha cabelo comprido, de corte antigo, e que sua roupa e gola eram de
outro século.
Seus olhos estavam embaçados pela catarata.
O homem – e Batty agora sabia que se tratava do poeta – virou-se para as
árvores a seu lado e pegou uma romã vermelha brilhante.
– Mas, por causa da fraqueza humana – continuou ele –, logo nosso mundo
será isso.
Ele mordeu a fruta e, no momento em que o fez, a árvore a seu lado pegou
fogo e começou a derreter. Batty se virou e viu que todas as árvores estavam se
queimando, e as frutas, murchando. Então o céu escureceu, as flores definharam
e morreram, e as colinas verdes se tornaram áridas. E logo tudo a seu redor ficou
cor de ardósia, enquanto o vento escuro e frio soprava através dele, aturdindo sua
alma.
Em poucos segundos, ele foi levado para o centro de um furacão negro;
uma cacofonia de sons se elevava em sua mente ao mesmo tempo que o vento
em volta dele se tornava mais denso a cada giro. Batty abriu a boca para gritar,
mas nada saiu, enquanto o furacão ganhava velocidade e a escuridão cada vez
maior ameaçava engoli-lo de vez…
Então, de repente, tudo desapareceu.
Ele se encontrava no topo de uma colina cuja vista dava para uma pequena
villa em mau estado, com o poeta a seu lado. Abaixo, um rapaz saiu pela porta da
frente, atravessou rapidamente o pátio e montou a cavalo.
– Na primeira vez em que ele me contou sobre a Bíblia do Diabo – disse o
poeta –, pensei que o pobre Galileu tivesse ficado louco. Um veneno negro e
maligno parecia ter se espalhado por todo o lugar, impedindo-me de respirar.
O rapaz levou o cavalo até o portão principal, pedindo a um guarda que o
abrisse.
– O astrônomo quisera me usar como se eu fosse seus olhos, já que não
podia mais enxergar. Ele pensou que eu entenderia, mas eu apenas vi um velho
debilitado que se deixara possuir por uma imaginação sem limites.
Um raio de luz cegou momentaneamente os olhos de Batty, e, quando ele
pôde ver de novo, eles estavam numa sala de estudos, com fileiras de estantes de
livros, e o rapaz – agora um pouco mais velho – estava sentado diante de uma
escrivaninha, atarefado, com papel e caneta.
– Logo depois de sua morte, eu apenas fiz menção desse encontro, incapaz
que era de dizer ao mundo que uma das mentes mais celebradas da época ficara
tão debilitada em seus últimos anos de vida.
De novo a luz agrediu Batty, e eles agora estavam numa sala iluminada por
velas, com vários homens – entre os quais, o poeta – sentados em volta de uma
mesa, conversando animadamente.
– Mas imagine minha surpresa quando, pouco tempo depois do fim da
Guerra dos Trinta Anos, ouvi dizer que o exército sueco saqueara o tesouro de
Rodolfo II e trouxera o livro sobre o qual o astrônomo falara: o Codex Gigas. A
Bíblia do Diabo.
Agora Batty estava diante de um grande salão circundado por estantes de
livros, no centro do qual um mostruário de vidro continha um enorme livro aberto
numa página que representava o elaborado retrato colorido de um demônio
chifrudo, e o poeta estava em pé com outro homem, olhando-o fixamente, com
ar de pavor.
– Menos de um ano depois, fui para Estocolmo, onde o livro estava à mostra
na Biblioteca Real da Suécia. O curador não apenas confirmou a história sobre
sua criação, mas também disse que realmente faltavam sete páginas, como o
astrônomo me contara.
Novo raio de luz, e eles voltaram para o campo de flores amarelas. O olhar
vazio do poeta continuava fixo em Batty.
– Logo fiquei obcecado em encontrar essas páginas, querendo saber o
segredo que guardavam. Os herdeiros do astrônomo não sabiam nada a respeito,
e decidi viajar até Roma, para visitar o arquivo privado onde ele dissera tê-las
visto. Mas, antes de partir, recebi uma correspondência me informando que o
acervo do qual faziam parte fora vendido para um negociante de antiguidades de
Londres. Já fazia um bom tempo que elas estavam perto de mim.
O poeta fez uma pausa, refletindo por uns instantes, e então disse:
– O negociante de antiguidades já havia morrido, e as suas aquisições mais
recentes estavam armazenadas no porão de sua loja em Londres, enquanto seus
filhos brigavam pela herança.
A luz brilhou de novo, e agora Batty se encontrava numa pequena sala
abobadada, apenas iluminada por uma luz bruxuleante. O poeta estava sentado a
uma mesa, retirando com o maior cuidado enormes páginas de pergaminho de
uma grande pasta. Suas mãos tremiam, e Batty tentou ver o que havia nas
páginas, sem, no entanto, conseguir focalizá-las.
– Não consigo lhe explicar o que senti na hora em que as vi. Alegria, júbilo,
sim, mas também um poder, um poder tão avassalador que as páginas pareciam
me atrair, envolvendo-me num afetuoso abraço, e eu soube que se tratava do
poder de Deus. Essas eram Suas páginas, que um dia Ele escondera nesse
enorme livro concebido pelo Diabo.
Mas agora o poeta estava esfregando os olhos, aproximando de si a
lamparina.
– O astrônomo me avisou que apenas quem manifestasse intenções puras
poderia ler as páginas sem temer a maldição, mas eu o ignorei completamente,
acreditando que sua cegueira fosse fruto do uso constante do telescópio.
Entretanto, eu estava errado, e em alguns minutos minha visão começou a
definhar.
Agora Batty observava o poeta andando na rua, com a pasta debaixo do
braço, cambaleando em direção a uma carruagem.
– Mas eu tinha visto o bastante para saber que aquelas páginas continham
uma antiga profecia, chave de uma milagrosa dualidade de poder, um poder tão
absoluto que, se caísse em mãos erradas, toda a humanidade correria perigo. As
portas das insondáveis profundezas – do próprio Abadom – seriam abertas,
libertando todos os horrores de Pandemônio e mais além.
De repente, Batty estava vendo uma cidade destruída pela guerra, a terra
rachando e se abrindo entre os prédios, expelindo jorros de lava no ar.
Agora o poeta estava de volta à sua sala de estudos, cercado de velas
tremeluzentes: seus olhos estavam embaçados; as mãos, estendidas, com as
palmas para cima, enquanto seus lábios se mexiam numa prece silenciosa.
– Mas o que me deixou mais assustado foi meu repentino desejo de invocar
eu mesmo esse poder, na graça de Deus, mesmo sabendo que essa invocação
seria impossível sem sua fonte. O viajante sagrado. Então comecei a procurar
essa fonte, e logo me envolvi nas artes negras, na esperança de poder ouvir a
canção da alma errante… O astrônomo havia me informado do próximo eclipse,
e eu sabia que, se pudesse liberar essa alma durante a escuridão da quarta lua,
poderia dar ao mundo um novo paraíso, e seria o governante desse paraíso, o
novo criador. Porém, num momento de lucidez, entendi que o que eu procurava
era fruto de meu falso orgulho e de meu desejo egoísta de controlar meu mundo.
Vi que o que eu estava tentando fazer só podia levar a um desastre. Então, num
momento de coragem, destruí aquelas páginas.
Agora o poeta estava diante de uma fogueira, jogando a pasta nas chamas.
A luz do fogo cintilou, e Batty e o poeta se encontraram de novo no topo da
colina, sob um céu azul imaculado.
Finalmente, Batty conseguiu falar.
– Mas esse não é o final da história.
O poeta negou com um lento movimento de cabeça.
– Anos depois, eu finalmente tinha mudado, sabia como lidar com minha
cegueira e renovara minha devoção a Deus e ao presente que Ele me dera.
Minha poesia. Havia muito tempo que eu queria escrever um poema épico, mas
pensava: e se eu escrevesse algo não somente para celebrar a graça de Deus,
como uma prece de contrição, por assim dizer, mas examinasse a corrupção do
homem? Corrupção que eu conhecia bem demais. Pedi então a Deus que me
ajudasse, mas nunca recebi resposta. Invoquei uma musa divina, mas a verdade
é que nenhuma musa veio me visitar até muito tempo depois que o último
capítulo de meu poema estivesse escrito. E uma noite recebi uma visita em meu
sono. Apesar de minha cegueira, de repente pude ver, e, antes que eu
percebesse, várias páginas estavam diante de mim, e meu dedo corria por elas
como se fosse controlado por outra pessoa. Então eu soube no mais profundo de
mim que eram as mesmas páginas que eu havia destruído. Estavam vivas e
queriam ser vistas…
E continuou:
– Então o anjo Miguel apareceu diante de mim e me disse que eu tinha de
ser o primeiro guardião dessas páginas. Que eu me mostrara digno de confiança
ao tentar destruí-las, e que agora eu precisava escondê-las, de maneira que
nunca caíssem em mãos erradas. Até o momento em que pudessem ser usadas
para servir a Deus. A versão original do meu poema ainda estava sobre a minha
escrivaninha. Uma transcrição final já fora preparada e enviada ao editor, e,
como eu era cego, o manuscrito ainda tinha um valor sentimental para mim. Na
manhã seguinte, juntei essas novas páginas, acrescentando-as no fim da pilha de
papéis – meu capítulo onze particular, por assim dizer –, e pedi a minha filha que
chamasse um encadernador. Fiquei ao lado dele na sala enquanto ele
encadernava as páginas; então, guardei o livro em meu cofre. Lá ele ficou por
cerca de dez anos. E, enquanto Miguel prosseguia com sua incessante busca ao
viajante sagrado, ele pediu para outros se juntarem a mim para proteger o
segredo.
O poeta baixou a cabeça, como se estivesse exausto pela história, e Batty
disse:
– Mas as páginas foram removidas depois de sua morte. Quem as retirou?
– Um dos novos guardiões, claro.
– E para onde foram levadas?
– Para um lugar onde eu pudesse continuar a vigiá-las.
– Não estou entendendo.
– Deixe-me lhe mostrar – disse o poeta, passando a mão diante do rosto de
Batty.
De repente, tudo ficou escuro e, de novo, Batty se encontrou no centro de
um turbilhão cujas paredes se aproximavam dele. Então, com surpreendente
brusquidão, o vento parou e o professor ficou flutuando – acima de um caixão de
madeira aberto, olhando o corpo do poeta, cujos leitosos olhos cegos o fitavam.
– Estão comigo – disse o poeta com voz estridente.
Então, com a mesma brusquidão, Batty acordou. Estava sentado na cadeira
da livraria, com a palma da mão contra a encadernação do manuscrito, enquanto
Callahan o olhava com ar preocupado. Ele se recostou na cadeira, sentindo como
se toda a energia tivesse sido sugada para fora de seu corpo.
Mal conseguia mexer os lábios.
– Você estava certa – arfou ele. – Precisamos ir para Londres. Agora
mesmo.
LIVRO X
Orgia da desordem
Miguel encontrou o velho Malibu azul estacionado numa vaga atrás do prédio.
O prédio em si, de tijolos vermelhos caindo aos pedaços, era uma antiga
fábrica têxtil com janelas tampadas por tábuas. A porta de trás parecia vir
diretamente de uma câmara de tortura medieval, e ele supôs que se tratasse de
um toque decorativo de seu velho amigo. Durante a Idade Média, Belzebu
passara vários anos na pele de um tenente da Torre de Londres, o orgulhoso
inventor de uma máquina em forma de roda que comprimia o corpo das vítimas
até que o sangue saísse pelos ouvidos e pelo nariz.
A porta não estava trancada, e Miguel entrou. Com as janelas vedadas, a
única luz que penetrava era a que se filtrava através das fendas e rachaduras da
madeira. O lugar era enorme, cheirava a mofo e estava quase vazio, com
exceção de uma fileira de antigas máquinas de costura de um lado, cobertas por
teias de aranha, a maior parte delas ainda com enormes carretéis de fio. Vários
rolos de tecido desbotado estavam empilhados num canto próximo.
Do outro lado da sala, havia uma porção de tubos de canalização, e, no
fundo, outra porta. Miguel foi até lá e a abriu, ouvindo então o baque surdo e
constante da música.
Alguns degraus desciam na escuridão, entre duas paredes cobertas de
grafites pretos e inscrições talhadas – signos e símbolos que Miguel conhecia
muito bem, entre os quais o selo de Belzebu, esculpido sob uma fileira de
profanações.
Pelo jeito, alguém o conhecia muito bem.
Descendo a escada, seguiu por um lúgubre corredor até outra porta,
guardada por um servo quase do tamanho de um gigante, que o olhou como se
ele fosse um marciano.
Miguel tentou passar por ele, mas o rapaz pôs a mão em seu ombro.
– Quem é o seu significante?
– O próprio homem – disse Miguel.
O escravo riu com desdém.
– Sim, posso crer.
Então se afastou de lado, deixando Miguel entrar em outro corredor com
paredes cobertas de grafite. Enquanto andava até o final, procurou ficar atento
para ver se conseguia ouvir Jenna.
Sua canção ainda estava fraca, mas ele não tinha dúvida de que ela estava
ali, em algum lugar.
Miguel passou por algumas portas vaivém e entrou numa sala do tamanho de um
armazém. O lugar estava tomado por corpos se mexendo, ombro contra ombro,
ao ritmo de uma música alta o suficiente para quebrar a barreira do som.
Luzes estroboscópicas vermelhas, amarelas e brancas piscavam, seguindo
perfeitamente o ritmo, e Miguel achou que nunca antes vira tantas pessoas
aglomeradas num único lugar. Era um mar de couro escuro, calças jeans, saias
curtas e meias arrastão, e mulheres seminuas que, rindo, jogavam a cabeça para
trás, enquanto os homens – e outras mulheres – grudavam-se nelas, corpo contra
corpo, apalpando-as com as mãos.
Ele começou a olhar a multidão, observando-a mais detidamente enquanto
se concentrava na canção de Jenna. Mas estava muito escuro, e havia gente
demais. Além disso, se Jenna tivesse sido levada ali à força, havia pouca chance
de que estivesse pulando na pista de dança.
Então, onde ela podia estar? Trancada numa sala? Num escritório?
Miguel perscrutou o clube, à procura de uma escada ou um elevador. Olhou
por onde entrara e viu um conjunto de sofás e cadeiras em que as pessoas,
esgotadas de dançar, descansavam os pés e bebiam cerveja importada. À direita
ficavam as portas vaivém pelas quais ele havia passado.
E mais à direita havia um elevador.
Miguel andou direto até esse ponto. Um casal de dançarinos estava em seu
caminho, mas ele não diminuiu os passos; empurrou-os para o lado. Ainda estava
a alguns metros de distância quando uma luz piscou acima do elevador e as
portas se abriram.
E dentro do elevador estavam Zack e Jenna.
Zack a segurava pela mão, e, quando a puxou para fora do elevador, ela
cambaleou ligeiramente. Drogada. Ficaram um instante olhando como se
estivessem prestes a entrar na pista de dança, então Zack fez um movimento
brusco para a esquerda, entrou pela porta vaivém e arrastou Jenna atrás de si.
Estavam saindo rapidamente.
Miguel correu, precipitando-se através das portas até o corredor. Não havia
sinal deles. Abriu rápido a porta mais próxima, e não havia ninguém. Voou pelo
corredor, subiu a escada coberta de grafite e viu-se na sala onde estavam as
máquinas de costura…
…ali, ele parou.
Congelado em seu movimento.
Zack e Jenna estavam no meio da sala, olhando para ele. Zack abriu um
grande sorriso, com ar presunçoso.
– Qual é a pressa, Miguel? Não gosta de dançar?
Havia mais quatro servos com ele. Dois de cada lado. Três homens e uma
mulher. E um deles era o tal gigante. Espalharam-se para bloquear o caminho de
Miguel.
– Sim – disse a mulher. – Venha dançar conosco.
Ela estava coberta de tatuagens e piercings e tinha o ar de quem podia
arrancar-lhe a cabeça e enfiá-la de volta sem mostrar um mínimo sinal de
remorso. Havia uma suástica na lateral de seu pescoço, e seu cabelo era preto e
repicado.
Os outros três não tinham tantas tatuagens nem metal espetado no rosto, mas
exibiam músculos suficientes para fazer uma apresentação de gladiadores.
Ele caíra numa armadilha. O carimbo na mão da garota morta fora
colocado deliberadamente para ver como ele reagiria. E sua presença ali
provara para Belzebu que Jenna era especial. Que ela era quem eles estavam
procurando.
Miguel tirou a adaga da cintura, mantendo o olhar em Zack.
– Afaste-se da garota.
– Lamento, seu babaca. Mas não posso fazer isso.
– Acho que deveria pensar duas vezes. Do pó ao pó, e tudo mais.
A garota tatuada moveu-se de lado, indo em direção à pilha de tubos a sua
esquerda:
– Espero que você tenha uma pele de reserva em casa, porque a gente vai
se divertir muito com essa.
Ela catou alguns tubos e lançou-os aos demais servos. Erguendo-os nas
mãos, eles se espalharam pela sala, esperando que Miguel começasse a atacar.
Zack obrigou Jenna a dar meia-volta e puxou-a em direção às maquinas de
costura.
– Sente-se e observe, vadia.
Jenna cambaleou e agarrou firmemente uma das máquinas.
– Vocês não devem fazer isso – disse Miguel, avançando na direção deles. –
Deixem-me levar a garota, e vamos guardar a briga para outra ocasião. Não
estou nem aí para um bando de servos inúteis.
– Inúteis? – disse Zack. – Está tentando nos ofender?
– Isso exigiria que tivessem coração, mente e alma. E estão longe de…
O gigante rugiu e se precipitou em direção a Miguel, girando o tubo,
tentando atingir a cabeça dele. Miguel mergulhou, mas o gigante voltou a atacar,
tentando de novo atingir-lhe a cabeça. O tubo chegou sibilando, e ele pulou para
trás, vendo a arma quase raspar-lhe o queixo, um pouco perto demais para seu
gosto. Então ele deu um passo de lado, girou o corpo e abriu a barriga do gigante
com a adaga.
Uma fração de segundo depois, o gigante evaporou, espalhando
violentamente poeira no ar, que atingiu o rosto de Zack e dos outros, enquanto o
tubo que ele segurava caía ruidosamente no chão.
Mas Miguel não baixou a guarda. Sem esperar que eles voltassem a atacar,
girou e balançou o braço, arrancando sem dificuldade o tubo da mão da garota
tatuada. Então voltou a atacar, erguendo a adaga, cuja lâmina fez um corte
através da suástica do pescoço da serva. Ela explodiu e virou cinza fina, e seus
piercings se espalharam pelo chão como pedrinhas no asfalto.
Vendo que não tinha tempo a perder com aquela situação absurda, Miguel
tirou a Glock da cintura e abriu fogo, matando os dois musculosos remanescentes
com dois tiros rápidos.
Então, ele apontou a arma para Zack.
Zack deu uma olhada para os anéis, o anel de nariz, os brincos em forma de
estrela, os piercings transversais, os de mamilo e Deus sabe o que mais que agora
se encontrava no chão à frente dele e cambaleou para trás, largando a arma e
levantando as mãos.
– Tudo bem, calma, calma, cara! Eu me entrego! Eu me entrego!
Miguel parou e abaixou a arma.
– O que você faz quando encontra uma barata no chão da cozinha, Zack?
– O quê? – disse Zack, confuso.
– Apenas responda à pergunta. O que faz ao encontrar uma barata?
Zack continuava recuando.
– Não sei, cara, não sei… Eu… Eu piso nela. E você, o que faz?
Miguel sorriu.
– Não tenho piedade.
Então levantou a arma de novo e atirou. A bala atingiu o peito de Zack,
transformando-o em poeira.
Uma boa maneira de se livrar do lixo.
Miguel foi até as máquinas de costura, onde Jenna estava em total estupor.
Apesar das drogas, ela parecia tão atordoada quanto incrédula.
Será que vira mesmo tudo aquilo acontecer diante dela?
– Qu… Quem é você? – murmurou. – O que aconteceu?
– Vou lhe explicar mais tarde – disse ele, agarrando-a pelo punho. – É bem
provável que um verdadeiro exército surja nessa escada a qualquer momento,
por isso precisamos sair daqui.
Ela sacudiu o braço, tentando escapar.
– Você é louco. Não vou a lugar nenhum com você.
Miguel segurou-lhe o braço firmemente e debruçou-se sobre ela.
– Escute, Jenna. Não queria que as coisas acontecessem desse jeito, mas se
você ficar aqui estará correndo perigo. Você precisa ir embora. Agora mesmo.
Ele podia perceber que as drogas ainda a deixavam confusa, e ela não sabia
o que fazer, mas parou de resistir, e ele a segurou ainda mais firme, puxando-a
em direção à porta. Sem olhar para trás, eles correram até o Buick e entraram no
carro.
– Coloque o cinto de segurança – disse ele, ligando o motor. Então, o carro
saiu num arranco.
Londres, Inglaterra
St. Giles Cripplegate era uma das poucas igrejas medievais de Londres. Fora
erguida num solo que, segundo a lenda, tinha sido considerado sagrado mais de
mil anos antes. Situada no meio do Barbican, o agora próspero centro cultural e
artístico de Londres, era a única construção que ainda restava em pé – embora
tivesse sido consideravelmente danificada – após os bombardeios sofridos pela
cidade, conhecidos como Blitz, durante a Segunda Guerra Mundial.
Também sobrevivera ao Grande Incêndio de 1666, e Batty não achava que
aqueles fatos fossem desprovidos de significado.
A igreja tinha uma estrutura imponente, construída com pedras de Kent no
século XIV em nome do eremita Giles, padroeiro dos aleijados – embora,
ironicamente, o nome Cripplegate4 não tivesse nada a ver com aquilo. Era
caracterizada por um alto campanário, e ao lado do terreno havia um trecho de
uma antiga muralha romana, que fora erguida séculos antes para proteger dos
invasores a cidade portuária de Londinium.
Pisar em seu solo era como penetrar através de um espelho em outro tempo
e espaço.
Batty e Callahan haviam chegado a Londres logo cedo e tinham sido
obrigados a esperar o anoitecer para se aproximarem do terreno da igreja. Ali as
ruas pareciam apenas um pouco menos agitadas que as de Chiang Mai, e, como
a falta de controle era total, a polícia fazia o possível para tentar conter a
multidão.
Passaram o dia trancados num pequeno hotel dos arredores, e Batty estava
inquieto como uma criança, incapaz de dormir ou comer, ansioso para fazer o
que havia de ser feito. Tentou passar o tempo lendo trechos do manuscrito de
Milton e da Steganographia – livros que ele carregava na bolsa –, mas sua mente
cismava em vaguear, recordando a visão que tivera.
Apenas quem manifestasse intenções puras poderia ler as páginas sem temer
a maldição, dissera-lhe Milton. Mas seriam puros os motivos de Batty ?
Existia alguém puro?
Parte do que o motivara, o que o conquistara primeiro em São Paulo, fora
seu desejo de saber quem havia tirado a vida de Rebecca. E, ao descobrir, fora
tomado por uma raiva e cólera que não sentia desde o dia em que ela havia
morrido.
E quando atirara nas costas de Belial e vira o trabalho que McNab fizera
como franco-atirador, Batty sentira o mais profundo alívio. O alívio de ter
conseguido impedir Belial – mesmo que temporariamente – de destruir outras
vidas.
Então, eram puros seus motivos?
Não sabia dizer, infelizmente.
Agora, no meio da noite, ele e Callahan estavam atravessando o terreno da
igreja até a entrada principal. Estava trancada, como era de esperar, e, mesmo
que houvesse algum tipo de guarda, ele não se encontrava ali, certamente
assustado pela confusão que havia tomado conta das ruas nos dois últimos dias.
Ou talvez estivesse participando do agito.
Callahan procurou alarmes e não os encontrou, então atacou a fechadura
com algum esforço. Felizmente, não usou os pés dessa vez.
Eles haviam levado lanternas para se guiar. Batty já estivera ali antes, à
procura de tudo o que fosse relacionado a Milton, e notou que nada mudara
muito. Mesmo à pouca luz, a igreja era impressionante, com seus bancos de
madeira polida alinhados de cada lado e suas arcadas e colunas de pedra
esculpida.
À direita, atrás das arcadas, ficava uma estátua de bronze de John Milton.
Callahan dirigiu o feixe de luz para ela.
– Isto é um bom sinal.
– Aqui existe outro ainda melhor – disse Batty, mostrando com sua lanterna
uma parede próxima com o busto de Milton sobre uma placa em que estava
escrito:
JOHN MILTON
Autor de Paraíso perdido
Nascido em dezembro de 1608
Morto em novembro de 1674
Era uma galeria abobadada. Uma cripta funerária localizada abaixo da igreja e à
qual se tinha acesso por meio de uma longa e estreita escadaria, oculta atrás de
uma porta de metal trancada.
Mas era óbvio que a cripta não sofrera nenhuma modificação desde sua
construção, séculos antes, e aquela visão causou um verdadeiro calafrio de
repulsa em Callahan na hora em que entrou no lugar. Ela já se deparara com a
morte várias vezes, mas lugares como esse sempre lhe davam arrepios.
O local começava por um estreito ossário. Uma parede de pedra à esquerda
deles era revestida por longas prateleiras de madeira – nas quais, colocados lado
a lado, estavam centenas de crânios, amarelados pelo tempo. À direita, havia
dois grandes estrados com pilhas perfeitamente alinhadas de ossos.
– A peste – disse Grant, sem oferecer outra explicação. Não que Callahan
precisasse de mais detalhes. Ela estava surpresa diante da perfeita calma do
homem. Seu comportamento era muito mais parecido com o de um monge do
que o de irmão Philip.
LaLaurie, por outro lado, mostrou certa agitação no momento em que
entraram na cripta, e ela se perguntou se o fato de estarem cercados por aquele
ambiente de morte tivera algum efeito sobre o homem. Aquelas suas percepções
deviam estar a mil por hora.
– Por aqui – disse Grant, mostrando o caminho com a luz da lanterna.
Passaram por uma arcada à direita e entraram na câmara principal. Ela
tinha o tamanho de um pequeno armazém, e Callahan instantaneamente se
lembrou daquele depósito de Istambul. Porém, em vez de caixas cheias de
antiguidades, essa continha uma fileira de caixões, e alguns no centro eram feitos
de pedra esculpida, enquanto os alinhados na parede – em perfeitas fileiras
horizontais – eram simples caixões de madeira empenada e desgastada por anos
de abandono.
O local tinha um cheiro que não passava despercebido. Um cheiro de mofo.
E por trás dele, fraco, porém inconfundível, um rastro de corpos apodrecendo.
Callahan não sabia quanto tempo fazia que aqueles corpos estavam ali – ela
imaginou que o lugar não recebia nenhum novo defunto havia muito tempo –,
mas o cheiro estava lá, e ela o reconheceu imediatamente.
Ou era isso, ou sua imaginação não tinha limites.
Grant parou ao lado de um caixão de pedra no centro da sala.
– É este – disse ele. – John Milton.
LaLaurie acenou com a cabeça e se aproximou, pondo as mãos sobre o
caixão, tentando sentir a energia dele. Callahan quase esperava que a tampa se
abrisse debaixo dele, deixando escapar um vampiro ou outra criatura implacável.
Mas nada aconteceu, e LaLaurie abriu os olhos, negando com a cabeça.
– Está errado – disse para Grant.
Os olhos de Grant se arregalaram levemente. Para Callahan, essa era a
maior manifestação de emoção que ele manifestara até agora.
– Como pode ser? Este é o caixão que venho guardando nos últimos quinze
anos.
– Bem, lamento ter de lhe informar que você guardou o caixão errado.
LaLaurie olhou para aquela fileira e, durante vários minutos, moveu-se de
caixão em caixão, colocando as mãos em cada um deles, parecendo mais fraco
a cada nova tentativa, e Callahan entendeu que esse procedimento lhe custava
muito.
Grant coçava a cabeça.
– Não acredito que tenhamos errado. Durante todo este tempo estivemos
errados.
– Talvez você não tenha atendido aos telefonemas tanto quanto deveria –
disse Callahan.
Depois de ter tocado todos os caixões da sala, LaLaurie parecia bastante
pálido. Não encontrara o que estavam procurando.
Virou-se para Grant:
– Suponho que haja outra galeria para indigentes.
– Galeria para indigentes? – disse Grant. – Não acredito que Milton tenha…
– Talvez um dos guardiões anteriores tenha achado que era prudente
escondê-lo onde houvesse pouca chance de alguém procurá-lo.
Grant concordou com a cabeça e apontou com a lanterna para o fundo da
sala. Havia ali uma porta de madeira, e ele fez um sinal, convidando-os a segui-
lo. Aproximaram-se dele, que abriu a porta, revelando outra escada que levava a
um subporão, e mais uma vez Callahan se lembrou da casa de leilões.
Contudo, esses degraus eram tão antigos e instáveis, e rangiam tanto quando
eles desceram, que ela teve certeza de que iam acordar alguém.
Ao chegarem ao final, encontraram outra sala, menor e mais estreita, sem
sepulturas no centro. Em vez disso, as paredes eram repletas de nichos que
continham pequenas caixas de madeira, a maior parte delas em péssimo estado,
com ossos de braços, pernas e pés aparecendo através das rachaduras.
Entretanto, havia uma caixa que não parecia pertencer àquele lugar. Um
verdadeiro caixão ocupava um canto escuro, patinado pelo tempo, mas que
obviamente parecia deslocado ali.
LaLaurie deu uma olhada para Grant e Callahan; então, se aproximou do
caixão e pressionou as mãos contra a tampa. Fechou os olhos, mas não por muito
tempo.
– É este – disse ele. – É John Milton.
– Tem certeza? – perguntou Grant.
– Sem dúvida.
– Então, o que estamos esperando? – disse Callahan. Ela colocou a lanterna
debaixo do braço e se aproximou da tampa do caixão, abrindo-a, sem mostrar
surpresa ao encontrar outro crânio e ossos, só que dessa vez em bom estado. A
roupa que os cobrira desaparecera havia muito tempo.
De repente, ela se deu conta de que aquele era nosso fim.
De todos nós.
Alguns deixam para trás um legado, como fizera Milton, um pedaço de si
que será lembrado por séculos. Mas a maioria de nós morre na escuridão. Uma
pilha de ossos esquecidos em algum túmulo, resquícios de uma vida de tão pouca
importância para o mundo que se resume a uma pequena placa, anunciando
nossa partida.
Um dia estamos aqui, e no dia seguinte não mais. E, a menos que sejamos
sortudos, daqui a duzentos anos ninguém saberá quem fomos.
Ela dirigiu a luz da lanterna para dentro do caixão. Parte do forro ainda
estava intacta, mas não havia sinal das páginas.
– Procure debaixo dos ossos – disse LaLaurie.
Callahan olhou para ele.
– Você primeiro.
Ele franziu o cenho e debruçou-se para dentro do ataúde, mexendo com as
mãos debaixo do corpo e apalpando o forro esfarrapado. Pela expressão dele, ela
podia ver que a busca não fora bem-sucedida.
Foi aí que ela reparou em algo, do lado direito do caixão, onde o forro
estava rasgado. Dirigiu o feixe de luz para o lugar e notou uma minúscula fenda
na madeira.
Outra porta escondida?
Esticando-se, ela arrancou o forro, que revelou um estreito painel
retangular. Cravando as unhas na fenda, removeu a tampa e descobriu um nicho
atrás, com um saco de tecido de juta escondido ali dentro.
Callahan levantou os olhos para LaLaurie, viu a excitação no rosto dele e fez
um gesto na direção do saco.
– Fique à vontade.
Com as mãos trêmulas, ele pegou o saco, desatou a tira de couro e, enfiando
a mão dentro, retirou uma medalha de São Cristóvão cuja aparência já lhes era
familiar. Custodes Sacri. Entregou-a para Callahan e enfiou a mão outra vez, e
então extirpou dali um rolo de páginas envelhecidas pelo tempo, atadas por outra
tira de couro.
– Cuidado – disse Grant. – Lembre-se da maldição.
Batty concordou com a cabeça.
– Vocês dois talvez queiram fechar os olhos.
– E você?
– Vou me arriscar.
Grant não hesitou, mas Callahan negou com a cabeça.
– Por enquanto, estou bem.
Fechando a tampa do caixão, LaLaurie retirou o manuscrito de Milton da
bolsa e o colocou sobre a madeira, abrindo-o no último capítulo. Então, enquanto
Callahan segurava o feixe de luz, ele desatou a tira em volta das páginas.
– Agora, é melhor que feche os olhos – disse ele.
Callahan acenou com a cabeça e, mantendo firmemente a lanterna, fechou
os olhos. Ouviu-o alisar as páginas, pondo-as no final do manuscrito. Percebeu
que ele estava verificando se elas se encaixavam nas bordas dos rasgos.
Mas então ele parou.
– Isto não faz nenhum sentido.
– O quê? O que está errado?
– As páginas…
– O quê? O que têm elas?
LaLaurie fez uma pausa. Então disse:
– Estão completamente em branco.
44
O outro mundo
Embora o lugar lhe parecesse familiar, não tinha nada a ver com qualquer coisa
que Callahan já conhecera. Eles pareciam estar em outro tipo de cânion, com
paredes escuras e cavernosas, mas sem que houvesse um céu.
Nem lua, nem estrelas.
Contudo, havia algo pairando acima. Algo opressivo. Hostil. Uma
turbulência maléfica – como se um espectro negro os estivesse vigiando.
Uma longa fileira de tochas acesas pontilhava o estreito caminho, e as
paredes de ambos os lados pareciam enormes, com cortiços enegrecidos
emergindo da pedra escura.
Casas, pensou Callahan, construídas de qualquer jeito.
Ela não queria imaginar o que poderia habitar aquilo. E esperava nunca ter
de verificar.
Mais à frente, ficava o que parecia ser o centro da “cidade” – se é que se
podia chamar aquilo de cidade: um agrupamento de antigas construções de pedra
com pilares e arcadas que cercavam uma praça aberta.
Contudo, uma cidade normal estaria fervilhando, e essa não estava. De fato,
estava deserta. Uma cidade fantasma. Ninguém à vista. Nenhuma luz nas
janelas. Nenhum ruído. Nada.
E Callahan se perguntava por quê.
– Onde estão as pessoas?
– Dormindo – disse Miguel em voz baixa. – E seja grata por isso. Daqui a
algumas horas este lugar vai fervilhar de criaturas que você não vai querer ver.
Do contrário, talvez não volte para o outro mundo com toda a sua sanidade.
Tarde demais, quis dizer Callahan, mas ficou calada.
Ela já visitara cidades do mundo todo, viajara para alguns dos mais
perigosos lugares que se pudesse imaginar, mas, à medida que se aproximavam
da praça vazia, ela foi ficando nervosa como nunca antes ficara. Jamais sentira
um peso como aquele. Uma inquietação tão profunda que parecia arrastá-la para
baixo.
A ameaça era mais interna do que externa. E ela de repente entendeu que o
que sentia era desespero. O desespero de milhares de almas perdidas todas
agrupadas num único lugar, zumbindo dentro dela como abelhas numa colmeia.
Se o seu pai tivesse sentido apenas uma fração disso antes de colocar a
arma na cabeça, ela teria entendido o motivo de seu gesto.
Ninguém podia viver muito tempo com aquele sentimento.
Ela olhou para LaLaurie e soube que ele estava sentindo a mesma coisa. Ele
já havia provado o gosto do inferno antes, e ela tinha certeza de que já tinha sido
o bastante.
Pararam, e Miguel indicou um lugar à sombra de uma arcada.
– Esperem aqui – murmurou ele. – E falem em voz baixa. Vocês realmente
não vão querer acordar ninguém.
Callahan franziu a testa.
– Pensei que tivesse dito que aqui era um território neutro.
– Para os anjos – respondeu ele. – Para os demais, a caça está aberta. É por
isso que chamam o lugar de Pandemônio.
Esperaram até que o céu ficasse completamente escuro. Isso lhes dava maior
cobertura, mas dificultava a visão e os movimentos.
O castelo era rodeado por uma pequena floresta, e Batty soube que, assim
como a Floresta do Nunca, havia ali criaturas a observá-los, esperando que
dessem um passo em falso.
– Como antes – disse Miguel. – Eles não vão atacar se não os provocarmos.
E não estão nem aí com o que está acontecendo nesse castelo.
Os três haviam se separado: Batty e Miguel seguiam por um lado, ao passo
que Callahan ia por outro. Enquanto avançavam cautelosamente por entre as
árvores, Batty manteve os olhos na janela reluzente, sabendo quanto a pobre
garota devia estar aterrorizada.
Protege-a.
Era isso mesmo que ele pretendia fazer.
Ao se aproximarem do castelo, Batty viu que havia várias entradas. Em
geral, os castelos são construídos para serem defendidos, mas aquele era tão
velho e decrépito que existiam grandes rachaduras nos muros da frente e nos
laterais.
Porém, não estava sem proteção. Havia dois homens de guarda num muro
baixo, na frente, fumando – o que, para Batty, parecia um tanto incongruente,
considerando-se o lugar em que estavam.
– Servos – murmurou Miguel. – Deve tê-los trazido com ele.
– E quem é ele?
– Belzebu.
Batty conhecia bem esse nome. Diretamente das páginas de Paraíso
perdido. O segundo-tenente de Satã. Articulado. Educado. Mortal.
Ele olhou para os dois servos, que, aparentemente, eram exatamente o
oposto.
– O que você quer fazer?
– Espero que sua amiga esteja pronta – disse Miguel.
– Por quê?
– Preciso lhe confessar algo.
– O quê?
– Nunca fui muito bom nessa coisa de operação secreta.
Então Miguel se levantou, tirou a pistola e a adaga da cintura e se precipitou
por entre as árvores como um anjo possuído. Seus longos cabelos prateados
esvoaçavam atrás dele enquanto se dirigia aos dois servos.
A expressão o inferno vai ferver nunca pareceu tão apropriada.
Batty viu aquela coisa se aproximando e pensou que seu fim tinha chegado.
Então ouviu um tiro atrás de si e viu Miguel no pé da escada. Miguel tirou a
espada da bainha e a lançou em direção a Batty.
Para sua própria surpresa, o professor conseguiu agarrá-la sem muito
esforço. Aquela coisa estava acima dele, mas ele fez um movimento brusco,
cortando o torso do sicofanta, que, num grito, explodiu, espalhando uma espessa
poeira negra e oleosa em seu rosto.
Aquela poeira queimava, e Batty tossiu e esfregou freneticamente os olhos.
Quando conseguiu enxergar de novo, precipitou-se pela escada e finalmente
alcançou o topo.
Havia um corredor escuro à frente, e uma luz trêmula vinha de uma porta
aberta. Lá, com os olhos espantados, estava uma garota de cerca de quinze anos,
vestindo uma túnica cerimonial marrom. Parecia estar esperando outra pessoa, e
seu olhar se fixou na espada na mão de Batty.
Ele viu que ela estava prestes a fugir.
– Espere! – gritou Batty. – Pare! Sou um amigo de Miguel.
Mas ela não parou. Fugiu como uma gata amedrontada, atravessou o
corredor e no final virou, desaparecendo de vista. Batty a chamou de novo,
pronto para correr atrás dela, quando a ouviu gritar de terror.
Então, um homem de cabelo comprido e óculos escuros saiu do final do
corredor, com uma mão sobre a boca da garota e uma adaga na outra. Mas
Batty não precisou de um manual ilustrado para saber quem era.
Belzebu.
A garota estava se contorcendo, tentando escapar, e seus gritos eram
abafados pela palma da mão de Belzebu, que a segurava firmemente. Ele sorriu
para Batty e disse:
– Quod apertum est, id aperiri non potest.
“O que foi aberto não pode ser fechado.”
O encantamento sagrado.
Batty sentiu um golpe no estômago quando Belzebu cortou o ar com a
adaga, abrindo um buraco na atmosfera.
Então eles desapareceram.
50
Dessa vez foi para valer. A terra oscilou, e tudo ao redor deles começou a
balançar. De repente, a estrada rachou e uma fenda se abriu diante deles.
Miguel pisou no freio e virou o volante, e os pneus deixaram marcas no
asfalto quando o carro parou, num chiado…
…no mesmo instante que um jorro de lava era projetado no ar.
Os três saíram depressa do carro e cambalearam para trás, mal
conseguindo desviar-se dos pedaços de lava que caíam a seus pés.
O calor era insuportável, e eles recuaram ainda mais quando a terra tremeu
de novo.
Batty olhou para a Lua e viu que o eclipse já havia alcançado metade do
percurso. Não tinham mais um minuto a perder.
– Chega dessa brincadeira – disse ele para Miguel. – Aonde estamos indo?
Onde ela está? Para onde a levaram?
Miguel se aproximou dele, bem perto, olhando-o diretamente nos olhos.
– Está pronto para fazer o que deve ser feito?
Batty não pôde desviar o olhar. E nem conseguiu mentir.
– Não – disse ele. – Não posso fazer o que quer. Não posso matar um ser
humano inocente.
– Então, o que planeja fazer? Como pretende parar tudo isto?
– Não vão conseguir nada sem ela. Sei que não podem. Então podemos dar
um jeito. Já fizemos isso antes.
– Veja o que está acontecendo a seu redor, Sebastian. Isto é apenas o
começo. O que está prestes a testemunhar é a chegada do inferno na Terra. É
isso o que você quer?
A cabeça de Batty estava girando. Tudo o que ele queria era gritar.
O mundo estava desmoronando ao redor deles, mas ele precisava acreditar.
Precisava ter fé. E não conseguia dizer o que o anjo queria ouvir.
– Diga-me apenas para onde eles a levaram.
Miguel o observou, examinando-lhe os olhos, então recuou e apontou para
uma direção.
– Lá – disse ele. – Eles a levaram até lá.
Batty olhou para o outro lado da rua. Miguel estava apontando para um
amontoado de barracos periclitantes. Uma favela de madeira compensada e
paredes de alumínio.
Em um dos barracos estava pintada uma palavra em verde fluorescente:
Paraisópolis.
– Puta merda – resmungou Callahan. Ela estava atrás dele, boquiaberta
diante da favela. – Você deve estar brincando! A favela? Isto é o Éden?
– O que está escrito? – perguntou Batty.
Ela olhou para ele.
– Cidade do Paraíso.
51
–Q uod apertum est, id aperiri non potest – cantava a multidão, enquanto a garota,
ajoelhada, olhava fixamente a adaga em sua mão. – Quod apertum est, id aperiri
non potest.
– Está tudo bem – disse Belzebu. – Vai doer apenas um instante. Apenas
uma picada na carne, e tudo será seu.
A garota oscilou levemente, ainda olhando fixamente para a faca. Então, ela
a levantou no ar e Belzebu sorriu.
– Sim, sim… Entregue-se a Lúcifer.
Ele podia ver que agora ela era sua. Que estava prestes a fazê-lo.
– Quod apertum est, id aperiri non potest.
Ele deu uma olhada para Belial, que havia saído do círculo e observava a
cena em êxtase.
Agora o eclipse da Lua estava completo, tudo alinhado e perfeito, e ele
soube que tudo pelo que trabalhara, séculos após séculos, finalmente seria seu.
Seu querido irmão logo seria libertado, e eles reinariam juntos sobre o mundo.
A garota levantou a adaga mais alto, mais alto, na direção da
garganta.
Batty estava a alguns metros do bunker quando viu a garota levantar a arma.
Não, pensou ele, não…
Ele precisava detê-la.
Enfiando a arma na cintura, ele largou a espada e correu depressa.
Passando por cima de um pequeno muro de cimento, pulou sobre uma laje e
saltou para o bunker, agarrando o beiral do telhado.
Suas pernas se debatiam, e ele lutava para conseguir erguer-se acima da
saliência, mas não conseguia o vigor suficiente, e sentiu a força de seus dedos
começar a sumir rapidamente.
Um dos servos do telhado o viu e rosnou, e foi em direção a ele. Porém, no
exato momento em que o servo ia alcançá-lo, ouviu-se um tiro, e um buraco
vermelho e sangrento se abriu em sua testa.
Ele caiu para trás, explodindo numa nuvem de poeira negra.
Batty fechou os olhos quando a poeira atingiu-lhe o rosto. Ouviu gritos e
choros vindos do telhado e percebeu que outros começaram a vir atrás dele. Seus
dedos estavam prestes a se soltar, e, enquanto ele lutava para se manter firme,
sua arma caiu no chão abaixo dele.
Merda.
No exato momento em que acreditou que ia seguir o mesmo destino, sentiu
uma explosão de energia atrás de si, uma corrente de ar quente que o levantou
acima do beiral do telhado, e ele notou que era Miguel, dando um golpe invisível.
Ele rolou e se pôs em pé…
…e diante dele, a alguns metros de distância, estava a viajante sagrada,
fixando com os olhos vítreos a adaga na mão.
Embora Belzebu tenha percebido vagamente o agito em sua volta, não deu a
mínima atenção. Aquela bruxinha não estava fazendo o que era preciso.
Ele deu uma olhada para a Lua.
– Vamos lá, meu anjo. É agora.
Mas a garota não se mexia. Continuava olhando fixamente para a adaga.
– Você quer se entregar a Lúcifer, não é?
– Lúcifer… – murmurou ela.
– Apenas uma picada e o mundo será seu.
– Meu… – disse ela.
Então, no exato momento em que ele estava prestes a perder a esperança,
ela agarrou a arma mais firmemente, levantando-a ainda mais alto, prestes a
cravá-la.
– É isso aí, meu anjo. É isso! Está na hora de você se livrar do sofrimento.
E, de repente, algo mudou no olhar da garota. Ela fixou Belzebu, gritou e
abaixou a arma…
...fincando-a diretamente na garganta do anjo negro.
Os olhos de Belzebu se arregalaram, enquanto ele segurava o pescoço e
cambaleava para trás, com o sangue escorrendo entre os dedos. Colocando-se
em pé, Jenna deu-lhe um chute violento que o fez cair para trás.
– Vá para o inferno, seu filho da puta!
Belial avançou, agarrando a garota, enquanto anjos ao seu redor
começavam a gritar, vários se precipitando em direção a Belzebu quando este
caiu no chão.
Batty correu para a frente, enquanto uma multidão de servos e anjos negros
vinham na direção dele. Ele girava e virava os braços, acertando cada golpe,
sabendo, contudo, que não poderia resistir por muito tempo diante do número de
inimigos.
Fez o possível para contê-los, olhando desesperado para a garota, aliviado ao
ver que ela estava de pé, dominando uma silhueta deitada no chão, com a adaga
na mão e um olhar assassino.
Uma brasileira de tez escura estava chegando perto dela, e, quando Batty
também se aproximava, alguém o acertou por trás, empurrando-o para o lado.
Girando o corpo, passou a dar socos cegamente e derrubou outro servo.
Foi então que se ouviu um tiro, e ele viu Callahan vindo na direção dele,
atirando em servos por todos os lados. As nuvens de poeira negra explodiam
como fogos de artifício a seu redor.
No entanto, quando ele se virou para ver a garota, a brasileira a segurava
pelo braço, lutando para arrancar-lhe a adaga. A mulher deu uma olhada para
Batty e, quando seus olhos fizeram contato, algo quente e úmido se remexeu no
estômago do professor.
Instintivamente, ele soube quem era ela.
Belial.
Era Belial. Já perfeitamente adaptada à nova pele.
Ela conseguira soltar a adaga, que caíra no telhado, e agora Belzebu estava
sendo ajudado a ficar em pé, com os olhos cheios de fúria.
Batty tentou novamente ir adiante, mas seu caminho foi bloqueado por um
servo alvoroçado. Novos tiros foram ouvidos, e o servo se desintegrou. Batty
atacou, indo firmemente na direção de Belzebu e Belial.
Q uando Batty atacou, Belzebu deu meia-volta e ergueu a mão na direção dele.
Prevendo o movimento, Batty mergulhou, achatando-se contra o telhado
quando uma onda mortal de energia passou por ele, quase acertando-o no alto do
crânio. Então se pôs novamente em pé, e uma voz atrás dele gritou:
– Sebastian.
Batty se virou e viu Miguel perto do beiral do telhado, com a espada na
mão. Repetindo o gesto que fizera no palácio de Lúcifer, Miguel jogou a mão
para a frente e soltou a arma.
Ela deu um giro, e Batty a pegou no ar. Então ele se virou sem hesitação e
avançou em direção a Belzebu, cuja atenção se voltara para a garota.
– Cuidado! – gritou Belial, e Belzebu deu meia-volta, levantando de novo a
mão.
Batty ergueu a espada, bloqueando o ataque, sentindo-a vibrar em suas
mãos, a força da energia quase arrancando a arma delas. Mas ele segurou firme
e voltou a avançar, fazendo movimentos amplos com a lâmina.
Quando o gume da lâmina ia abrir o estômago de Belzebu, os olhos do anjo
negro se arregalaram…
…e de repente ele desapareceu.
Uma fração de segundo depois, ele estava atrás de Batty, mas, antes que
pudesse fazer um único movimento, Miguel chegou, acertando Belzebu com sua
faca. A lâmina entrou nas costas no anjo negro, e ele caiu para a frente, enquanto
Miguel avançava até ele.
Voltando sua atenção para Belial, Batty viu que ela conseguira pegar a
adaga e estava recuando, enquanto a garota se debatia para escapar de suas
garras.
– Estou realmente começando a pensar que sente atração por mim,
Sebastian.
– Solte a garota, sua vadia.
– Como pode falar assim comigo depois de tudo o que significamos um para
o outro?
Batty sentiu que ela estava tentando se infiltrar em sua cabeça e usar seu
poder contra ele. Mas ele se recusou a deixá-la entrar. Pensou em Rebecca e em
como agora ela fazia parte dele, e soube que nunca mais ela deixaria Belial
aproximar-se dele.
– Solte a garota – disse ele, levantando a espada.
Belial o ignorou e agarrou a mão da garota, que se debatia. Abrindo-a à
força, ela colocou a adaga em sua mão e obrigou a garota a ficar ajoelhada.
Por um instante, tudo em volta de Batty pareceu mover-se em câmera
lenta…
…Belial, segurando firmemente a mão da garota, que mais uma vez estava
levantando a adaga.
…Miguel e Belzebu travando um combate corpo a corpo, um ágil balé de
golpes.
…Callahan atacando um mar de servos e anjos negros como uma
verdadeira guerreira, usando o próprio punho e a arma.
…a Lua ainda em eclipse total, sua ardente superfície carmesim vibrando
com força.
…e a poeira, sempre a poeira, explodindo no ar.
Tudo isso parecia surreal para Batty. Como num sonho. Não deste mundo. E
ele desejou poder abrir os olhos e encontrar-se dois anos antes, de volta a sua
cama em Ithaca, com Rebecca – a doce Becky – dormindo tranquilamente a seu
lado.
Mas o sonho foi estraçalhado por outro grito, o de Miguel a apenas uns
metros de distância:
– A Lua, Sebastian! A Lua! Ainda dá tempo! Faça o que tem de ser feito!
Batty olhou de novo para a lua de sangue e depois para a garota, ainda
ajoelhada à frente de Belial, debatendo-se para se soltar da vadia, com o olhar
aterrorizado, e a adaga balançando-se acima de sua garganta.
Mas quando os olhos deles entraram em contato, ele sentiu que havia algo
diferente neles. Algo mais do que o medo, que vinha das profundezas de sua
alma. Ela parecia compreender – saber – o que ele deveria fazer.
– Faça-o, Sebastian! Agora!
Agarrando a espada mais firmemente, Batty avançou para elas, mas algo
dentro dele ainda resistia.
Ela era humana.
Carne e sangue.
Quem era ele para decidir quem devia viver e morrer? Quem era ele para
decidir o destino do mundo?
Ele não era um deus. Longe disso. Houve um tempo em que ele mal se
sentia humano.
– Faça-o! – gritou Miguel, sentido sua hesitação.
Batty olhou de novo para a adaga pairando acima de Jenna, para o furor nos
olhos de Belial. Sentiu de novo que ela tentava entrar em sua mente, mas resistiu
mais uma vez. Não estava mais ligado a ela. Podia rechaçar qualquer coisa que
ela lançasse contra ele.
Fortalecendo sua resolução, ele levantou a espada, sabendo que a decisão
que tomasse poderia mudar o mundo para sempre. Então, fechou os olhos,
deixando sua visão guiá-lo, e girou a espada, sentindo que ela entrara na carne,
cortando-a até o osso.
E, quando abriu os olhos, viu a linda cabeça brasileira de Belial cair sobre o
telhado e rolar de lado.
53
Q uando o corpo sem cabeça de Belial caiu no chão atrás dela, a garota titubeou
para a frente e começou a chorar.
Batty largou a espada e abraçou-a. E, enquanto ela soluçava contra seu
peito, ele sentiu Rebecca sorrir dentro dele.
Mas nem tudo havia acabado.
A seu redor, a batalha ainda era violenta. Callahan lutava contra os últimos
servos, e Miguel e Belzebu ainda trocavam golpes. Então a Lua começou a
escurecer, o vermelho, a ficar mais profundo, ao mesmo tempo que o chão
abaixo deles tremia e balançava.
Batty se perguntou o que estaria acontecendo.
Teria ele cometido um erro ao decidir poupar a vida da garota?
Será que as portas de Abadom estavam prestes a se abrir, de uma vez por
todas?
Mas então, para sua surpresa, a garota começou a tremer violentamente em
seus braços e se afastou dele. Recuando vários passos, ela o olhou sem sinal de
medo nem confusão nos olhos.
Algo mudara nela.
Seu olhar parecia mais maduro. Consciente. Ela não era mais aquela garota
presa nas garras de Belial.
Então seu corpo começou a vibrar e tremer, sua pele nua foi saindo, como
se fosse um casulo, e um ser maior, mais seguro, mais radiante se elevou de
dentro dela, expandindo as asas, que se abriram, até quinze metros de extensão,
ou mais.
Certamente, era a criatura mais linda que Sebastian LaLaurie já vira. Ela se
elevou alguns metros acima do chão e sorriu para ele.
– Você tomou a decisão certa, Sebastian. Deus me mandou para observar
vocês. Todos vocês. Sou sua segunda chance.
– Mas não entendo – disse timidamente LaLaurie. – Eu deveria tê-la
matado.
O anjo negou com a cabeça.
– Não, Sebastian. Era a terceira escolha que importava. A escolha oculta.
Aquela não revelada na profecia que demonstrava sua humanidade para Deus e
lhe dizia que ainda havia esperança nos humanos. Aquela que veio da razão e da
emoção, sem promessa vinculada. Foi a escolha certa, Sebastian. A única
escolha.
Livre-arbítrio, pensou Batty. É a isso que finalmente tudo se resume. E o que
tantas pessoas pensavam ser uma fraqueza – a capacidade de compreender, de
se preocupar, o que parecia tão ausente no mundo ultimamente – era realmente
a força do homem. Seu sangue vital.
O anjo estendeu o punho, e a espada aos pés de Batty de repente se ergueu
no ar e se colocou em sua mão.
Então ela se movimentou, deslizou, fazendo movimentos circulares com a
espada, e uma onda de energia se espalhou pelo telhado, desintegrando os servos,
fazendo com que os anjos negros abandonassem a pele onde estavam e sua
aparência vaporosa fugisse aterrorizada.
Com um grito de raiva, Belzebu escapou de Miguel e soltou um braço,
atirando uma bola de energia em direção ao peito do anjo guerreiro. Mas este a
desviou com a espada, devolvendo-a diretamente para ele, e o impacto o
projetou no chão.
Atônito, ele aterrissou no beiral do telhado, com o corpo retorcido,
irremediavelmente quebrado. Levantou os olhos com ar incrédulo até ficarem
brancos – e tudo acabou.
Enquanto os últimos demônios abandonavam a pele em que estavam e
fugiam para a escuridão, o anjo girou mais uma vez a espada. Um trovão
ressoou, e por toda a cidade as chamejantes rachaduras do inferno estalaram e
se fecharam, sumindo diante dos olhos de Batty.
Então, o anjo olhou para ele e pôs a mão no coração.
– Vá com Deus, Sebastian…
Antes que Batty pudesse dizer uma única palavra, ela deixou suas asas levá-
la para cima, até os céus. Enquanto desaparecia de vista, um raio de luz dourada
surgiu da escuridão e banhou a paisagem, repondo tudo em seu lugar.
Batty teve a impressão de ver um filme de trás para a frente; imóveis
erguiam-se dos escombros, à medida que a cidade estava sendo reconstruída
como era antes.
A seu redor, a favela começou a mudar de aparência – os antigos barracos
de alumínio tornaram-se casas; árvores e gramados brotavam e cresciam; flores
desabrochavam, enquanto a lua desaparecia e o céu ficava brilhante e
imaculadamente azul.
Batty olhou para Callahan e Miguel, ambos atônitos, cobertos por uma fina
camada de poeira negra, as armas ainda nas mãos, boquiabertos…
…enquanto olhavam admirados o mundo a seu redor.
54
Este livro não poderia ter sido escrito sem a orientação criativa de Brian Tart e
Peter Harris, e sem o gênio editorial de Ben Sevier, que me deu um empurrão
toda vez que eu precisava e me ajudou a escrever o melhor livro que eu poderia.
Obrigado a todos eles.
Quero também agradecer a Brett Battles, a Toni McGee Causey e a meu
filho, Matthew, por me escutarem pacientemente e me darem algumas sugestões
incríveis que consolidaram a história, tornando-a mais profunda. E a Lee Child,
que generosamente respondeu a um pedido de ajuda e me trouxe as informações
de que eu precisava.
Como sempre, quero agradecer a Scott Miller e ao Trident Media Group,
que trabalharam incansavelmente a meu lado – o melhor agente na melhor
agência do mundo.
E, finalmente, a Leila e Lani, minha esposa e minha filha, que aguentaram
minha loucura e tornam minha vida completa.
Robert Browne é um premiado roteirista com grande conhecimento de
anjos, demônios e histórias sobrenaturais. Ao escrever A profecia do paraíso, ele
se inspirou nas obras clássicas de John Milton, especialmente em Paraíso perdido,
e também em documentos, como a Bíblia do Diabo e o livro Steganographia. É
autor de Kiss her goodbye e Down among dead men, o qual foi indicado ao
prêmio de melhor romance da International Thriller Writers. Browne vive na
costa oeste dos Estados Unidos.
Sumário
Abertura
Créditos
Dedicatória
Epígrafe
Livro I - A priori
1
2
Livro II - A ascensão e a queda de Gabriela Soares
3
4
Livro III - O menino que não conseguia esquecer e a menina que não conseguia
dormir
5
6
7
8
9
10
11
12
Livro IV - Terra da perdição
13
14
15
16
17
18
19
20
Livro V - O sol também brilha para os malvados
21
22
23
Livro VI - Uma viagem com o senhor e a senhora
24
25
26
27
28
29
30
Livro VII - A quarta lua da tétrade lunar
31
32
Livro VIII - Turbulência a caminho do esclarecimento
33
34
35
36
37
Livro IX - O mal que o homem faz
38
39
40
Livro X - Orgia da desordem
41
42
43
44
45
46
Livro XI - A estrada para o paraíso
47
48
49
50
51
52
53
54
Sobre o autor