Capítulo 1 Safari de Estratégia
Capítulo 1 Safari de Estratégia
Capítulo 1 Safari de Estratégia
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“E Aqui, Senhoras e Senhores, a Fera
da Administração Estratégica“
© The New Yorker Collection 1983 W.B. Park from cartoonbank.com. All Rights Reserved.
18 Safári de Estratégia
OS CEGOS E O ELEFANTE
por John Godfrey Saxe (1816-1887)
Moral
Com frequência em guerras teológicas,
Os disputantes, suponho,
Prosseguem em total ignorância
Daquilo que cada um dos outros quer dizer,
E discutem sobre um Elefante
Que nenhum deles viu!
S
omos os cegos, e a formulação de estratégia é nosso elefante. Como
ninguém conseguiu enxergar o animal inteiro, cada um tocou numa ou
noutra parte e “prosseguiu em total ignorância” a respeito do restante.
Somando as partes, certamente não teremos um elefante. Um ele-
“ Somos os cegos,
e a formulação de
estratégia é nosso
fante é mais que isso. Contudo, para compreender o todo, também
precisamos compreender as partes.
elefante.
” Os dez próximos capítulos descrevem dez partes do nosso animal
de formulação de estratégia. Cada um representa uma “escola de
pensamento”. Esses dez capítulos são estruturados por este primeiro capítulo,
que introduz as escolas e algumas ideias a respeito da estratégia em si, e um
último capítulo, que retorna ao animal inteiro.
1
Na verdade, Miller defende um limite desta ordem para o número de bits com que podemos lidar naqui-
lo que ele chama de “julgamento absoluto” e o número de “pedaços” – combinações desses bits – na
“memória intermediária”.
20 Safári de Estratégia
As escolas
Assim, em cada um dos dez capítulos subsequentes, apresentamos uma das
escolas a partir da sua perspectiva. A seguir, nós a criticamos, a fim de salientar
suas limitações e contribuições. Tais escolas, junto com o adjetivo que melhor
parece captar a visão que cada uma tem do processo de estratégia, estão rela-
cionadas a seguir:
Cada uma das quatro escolas a seguir procurou abrir o processo de formulação
de estratégia além do indivíduo, para outras forças e outros agentes. Para a es-
cola de aprendizado, o mundo é demasiado complexo para que as estratégias
sejam desenvolvidas de uma só vez como planos ou visões claros. Portanto, a
estratégia deve emergir em passos curtos, à medida que a organização se adap-
ta ou “aprende”. Semelhante a esta, mas com um ângulo diferente, é a escola
do poder, que trata a formulação de estratégia como um processo de negocia-
ção, seja por grupos conflitantes dentro de uma organização, seja pelas próprias
organizações enquanto confrontam seus ambientes externos. Em comparação
com esta, há outra escola de pensamento, que considera a formulação de es-
tratégia como enraizada na cultura da organização. Portanto, ela vê o processo
como fundamentalmente coletivo e cooperativo. E também há os proponentes
2
Em um interessante mapeamento alternativo, Martinet (1996) dividiu o campo em teológico, sociológi-
co, ideológico e ecológico. (Lauriol, 1996, mapeou nossas dez escolas sobre essas quatro.) Ver também
Bowman (1995) para outra perspectiva interessante sobre o campo.
22 Safári de Estratégia
Como ficará claro à medida que prosseguirmos, algumas dessas escolas incli-
nam-se para a arte, o trabalho ou a ciência (no sentido de análise) da administra-
ção. Por exemplo, a escola empreendedora é muito mais orientada para a arte;
a escola de aprendizado e talvez as escolas políticas sejam mais orientadas para
o trabalho; e as escolas de planejamento e posicionamento, para a ciência.
Observe que todas essas escolas podem ser encontradas na literatura, com
frequência em locais claramente delineados: publicações acadêmicas, revistas
especializadas, certos tipos de livros. Mas, em sua maioria, elas são, ou foram,
igualmente evidentes na prática, tanto dentro das organizações quanto nas em-
presas de consultoria que as utilizam. Os praticantes leem e são influenciados
pela literatura, assim como esta é influenciada pela prática. Este é um livro da
escola de pensamento sobre a formulação de estratégias, tanto na publicação
quanto na prática.
“ A formulação
de estratégia não
tem a ver apenas
tura, capaz de produzir todos os tipos de ideias. No limite, a for-
mulação de estratégias não trata apenas de valores e da visão,
de competências e de capacidades, mas também de militares e
com valores e visão,
competências e de religiosos, de crise e de empenho, de aprendizado organiza-
cional e de equilíbrio interrompido, de organização industrial e
capacidades.
” de revolução social.
Faz parte da natureza humana buscar a definição de cada conceito. A maior par-
te dos livros-texto sobre estratégia oferece essa definição, normalmente apre-
sentada no capítulo introdutório, mais ou menos assim: “planos da alta gerência
para atingir resultados coerentes com as missões e objetivos da organização”
(Wright et al., 1992:3). Sem dúvida, tais definições têm sido memorizadas por
gerações de estudantes, que mais tarde as usaram em milhares de relatórios
corporativos. Aqui, não oferecemos uma definição fácil. Ao contrário, afirma-
mos que a estratégia (para não mencionar dez escolas, tão diferentes a seu
respeito) requer uma série de definições, cinco especificamente (com base em
Mintzberg, 1987).
Estratégia
pretendida
Estr
atég
ia d
elib
erad
Estratégia a
não realizada
Estratégia
realizada
te
rg en
eme
ia
ég
t rat
Es
“ As estratégias
emergentes não são
necessariamente
ao passo que os detalhes são deixados para emergir no percurso
(quando, onde e como). Assim, as estratégias emergentes não são
necessariamente más, nem as estratégias deliberadas são sempre
más, nem as
estratégias boas; os estrategistas eficazes as misturam de maneira que reflitam
deliberadas são as condições existentes, especialmente capacidade para prever e
também a necessidade de reagir a eventos inesperados.
sempre boas.
”
Estratégias como posições e perspectiva
Ao plano e ao padrão, podemos acrescentar mais duas palavras com “p”. Alguns
anos atrás, o McDonald’s lançou um novo produto, chamado Egg McMuffin – o
breakfast americano em um bolo. O objetivo era estimular a frequência em seus
restaurantes pela manhã. Se você perguntar às pessoas se o Egg McMuffin era
uma mudança estratégica para o McDonald’s – pare um momento e faça essa
pergunta a si próprio –, irá ouvir duas respostas: “Claro que sim: ele colocou a
empresa no mercado de breakfast” e “Ora, é tudo a mesma coisa – à maneira
McDonald’s –, só que em uma embalagem diferente”. Em nossa visão, a verda-
deira diferença entre essas pessoas está em como elas definem implicitamente
o conteúdo da estratégia.
– para o “x” que marca o ponto em que o produto encontra o cliente – e para
fora – para o mercado. Em comparação, como perspectiva, a estratégia olha
para dentro – dentro da organização, dentro da mente dos estrategistas –, mas
também para cima – para a grande visão da empresa.
Mais uma vez, precisamos das duas definições. O McDonald’s introduziu o Egg
McMuffin com sucesso porque a nova posição estava em conformidade com
a perspectiva existente. Os executivos da empresa pareceram entender bem
(embora não necessariamente nestes termos) que não se ignora casualmente
a perspectiva. (Alguém quer um McDuckling à l’Orange?) Mudar de posição
dentro da perspectiva pode ser fácil; mudar a perspectiva, mesmo procurando
1 ■ A Fera da Administração Estratégica 29
Todos os Ps
Temos, assim, quatro definições diferentes de estratégia. Uma quinta tam-
bém está em uso: estratégia é um truque, isto é, uma “manobra” específica
para enganar um oponente ou concorrente. Um garoto pode pular uma cerca
para atrair um brigão para seu quintal, onde seu cão dobermann está à espera
de intrusos. Da mesma forma, uma corporação pode adquirir terras para dar
a impressão de que planeja expandir sua capacidade, para desencorajar um
concorrente de construir uma nova fábrica. Neste caso, a verdadeira estraté-
gia (como plano, isto é, a intenção real) é a ameaça, não a expansão em si;
portanto, trata-se de um truque.
Cinco definições e dez escolas. Como veremos, as relações entre elas são va-
riadas, embora algumas das escolas tenham suas preferências – por exemplo,
plano na escola de planejamento, posição na escola de posicionamento, pers-
Antiga
Estratégia como posição
Nova
© M. Mintzberg
Pode não haver uma definição simples de estratégia, mas existem hoje algumas
áreas gerais de concordância a respeito da natureza da estratégia. O Quadro 1.1
apresenta um resumo de tais áreas.
Quadro 1.1
■ A estratégia diz respeito tanto à organização quanto ao ambiente. “Uma premissa básica
para pensar a respeito de estratégia diz respeito à impossibilidade de separar organização e am-
biente... A organização usa a estratégia para lidar com as mudanças nos ambientes.”
■ A estratégia afeta o bem-estar geral da organização. “... decisões estratégicas... são consi-
deradas importantes o suficiente para afetar o bem-estar geral da organização...”
■ As estratégias não são puramente deliberadas. “Os teóricos... concordam que as estratégias
pretendidas, emergentes e realizadas podem diferir entre si”.
“ A coerência
tola é o espírito
malígno das mentes
uma simplificação que necessariamente distorce a realidade. Es-
tratégias e teorias não são realidades, mas apenas representa-
ções (ou abstrações) da realidade nas mentes das pessoas. Nin-
pequenas.
” guém jamais tocou ou viu uma estratégia. Isso significa que cada
estratégia pode ter um efeito de informação falsa ou distorção. Esse é o
preço de ter uma estratégia.
É claro que o problema com isto é que as situações acabam mudando – ambien-
tes se desestabilizam, nichos desaparecem, oportunidades se abrem. Então,
tudo aquilo que é construtivo e eficaz a respeito de uma estratégia estabelecida
passa a ser uma desvantagem. É por isso que, apesar de o conceito de estra-
tégia estar baseado em estabilidade, grande parte do estudo de estratégia fo-
caliza mudanças. Embora as fórmulas para mudanças estratégicas possam sair
facilmente, seu gerenciamento, em especial quando envolvem mudanças de
perspectiva, é difícil. O próprio encorajamento da estratégia para lidar com elas
– seu papel na proteção das pessoas da organização contra desvios – prejudica
a capacidade para reagir às mudanças no ambiente. Em outras palavras, mudar
as ferramentas é dispendioso, em especial quando elas são mentes humanas, e
não apenas máquinas que precisam ser reprogramadas. A estratégia, como es-
tado mental, pode cegar a organização, levando-a à sua própria obsolescência.
Assim, concluímos que as estratégias são, para as organizações, aquilo que os
antolhos são para os cavalos: eles os mantêm em linha reta, mas dificilmente
encorajam a visão periférica.
1 ■ A Fera da Administração Estratégica 33
Este livro afasta-se dessa visão tradicional em sua tentativa de apresentar uma
avaliação mais equilibrada do campo, com todas as suas contradições e contro-
vérsias. Muito espaço é dedicado às escolas não racionais/não prescritivas, as
quais sinalizam outras formas de olhar para a administração estratégica. Algu-
mas dessas escolas têm uma visão menos otimista a respeito da possibilidade
de intervenção estratégica formal. É em nossas críticas às diferentes escolas
Quadro 1.2
■ … A ausência de estratégia não precisa ser associada ao fracasso organizacional… A criação deli-
berada da ausência de estratégia pode promover flexibilidade em uma organização... Organizações
com controles rígidos, altamente dependentes de procedimentos formalizados e uma paixão pela
coerência podem perder a capacidade de experimentar e inovar.
■ A administração da empresa pode usar a ausência de estratégia para enviar sinais inequívocos aos
interessados internos e externos da sua preferência por não se engajar em cerimônias que conso-
mem recursos... Para [uma empresa], a ausência de muitos dos supostos elementos de estratégia
é emblemática da organização enxuta e não-burocrática que [ela] se esforça muito para ser.
■ A ausência de um padrão rígido de tomada de decisão estratégica pode garantir que o “ruído” seja
retido nos sistemas organizacionais, sem o que a estratégia pode tornar-se uma receita especializa-
da que reduz a flexibilidade e bloqueia o aprendizado e a adaptação...
34 Safári de Estratégia
que nos tornamos algo parciais. As três escolas prescritivas têm dominado
de tal forma a literatura e a prática que achamos apropriado incluir discussões
um tanto extensas, que colocam em questão grande parte dessa sabedoria
convencional. É claro que criticamos todas as dez escolas, uma vez que cada
uma tem suas fraquezas. Mas quando as pessoas estão sentadas em um lado
da gangorra, não faz sentido tentar mantê-las em equilíbrio puxando pelo cen-
tro. Em outras palavras, manter o equilíbrio entre nossas críticas das dez esco-
las só ajudaria a perpetuar o desequilíbrio que, acreditamos, existe atualmente
na literatura e na prática.
“ Empresas de
alto desempenho
parecem capazes de
ses ex-alunos, bem como para os gerentes na prática. Como notou
Hart, “empresas de alto desempenho parecem capazes de misturar
quadros de referência concorrentes na formulação da estratégia.
misturar quadros de
referência concor- Elas são, ao mesmo tempo, engenhosas e incrementais, diretivas e
participativas, controladoras e delegadoras, visionárias e detalha-
”
rentes.
das” (1991:121). Ou, como colocou F. Scott Fitzgerald em termos
mais diretos: “o teste de uma inteligência de primeira classe é a capacidade de
ter em mente duas ideias opostas e ainda manter a capacidade de funcionar”. É
claro que funcionar como estrategista não significa somente ter essas visões
opostas, mas também, como observou Spender (1992), ser capaz de sinteti-
zá-las. Pedimos a você, leitor, que tenha em mente dez dessas visões!
Mas a síntese não pode ocorrer em termos gerais. Ela deve ter lugar na mente
específica do observador, isto é, você, o leitor. Ajudaremos onde pudermos,
mas a tarefa cabe àqueles que lidam com estratégia em suas funções. Todos
sabemos o que é um elefante inteiro; contudo, muitas vezes precisamos des-
crevê-lo por suas partes. Isso está na natureza da descrição verbal: palavras em
ordem linear, capítulos em um livro.