Escola Sem Partido E Sociedade Sem Ideologias: Sergio Lessa

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SERGIO LESSA

ESCOLA SEM PARTIDO E SOCIEDADE


SEM IDEOLOGIAS
Diagramação: Fernanda Beltrão
Revisão: Sidney Wanderley
Capa: Fernanda Beltrão

Catalogação na Fonte
Departamento de Tratamento Técnico Coletivo Veredas
Bibliotecária responsável: Fernanda Lins de Lima – CRB – 4/1717
__________________________________________________
L638e Lessa, Sergio.
Escola sem partido e sociedade sem ideologias / Sergio
Lessa. – Maceió : Coletivo Veredas, 2019.
25 p.

ISBN: 978-85-92836-33-7

1. Educação. 2. Política. 3. Ideologia. 4. Bolsonarismo.


5. Brasil. I. Título.

CDU: 37.014.5(81)
_______________________________________________

Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Com-


mons Atribuição 4.0 Internacional. Para ver uma cópia desta
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da, que outros remixem, adaptem, e criem a partir deste traba-
lho, desde que atribuam o devido crédito ao autor(a) pela criação
original.
1º Edição 2019
Coletivo Veredas
www.coletivoveredas.com
SERGIO LESSA

ESCOLA SEM PARTIDO E SOCIEDADE


SEM IDEOLOGIAS

1º Edição
Coletivo Veredas
Maceió 2019
Escola sem Partido e sociedade sem ideologias

A palavra ideologia, nos lábios dos bolsonaristas,


representa algo pecaminoso, demoníaco e ruim. Para
eles, o mundo ideal seria aquele em que não have-
ria ideologias. O que precisamente querem dizer com
“ideologia de gênero”, “ideologia de raça”, “ideologia
cientificista”, “ideologia marxista”, “ideologia globa-
lista”, “ideologia socialista”, “ideologia comunista”
etc.? Ninguém, nem eles, sabe ao certo. O que sabe-
mos é que ideologia, para eles, seria algo ruim, dano-
so, até mesmo pecaminoso. Algo a ser evitado com o
mesmo empenho com que o diabo foge da cruz.
Essa não é a primeira vez que se identifica ideo-
logia a algo ruim, como uma coisa a ser eliminada da
vida social. E também não é a primeira vez que essa
identificação é tão ideológica quanto as ideologias que
se propõe a combater. Foi assim com o nazismo, foi
assim com o positivismo e o neopositivismo, foi as-
sim com o stalinismo… e, agora, a mesma tese volta
por obra e graça dessa confusa ideologia que é, por
falta de um termo melhor, o “bolsonarismo”.
Se isso fosse verdade, se ideologia fosse mesmo
algo ruim, danoso e pecaminoso no plano das ideias,
o que seria, então, “a verdade”?
Os positivistas e os neopositivistas diriam: a ci-
ência.
Os nazistas diriam: a teoria do nacional-socialis-
mo.
Os stalinistas diriam: a ciência marxista.
Os bolsonaristas diriam: a fé no Deus cristão.
Examinemos cada uma dessas respostas.

Positivistas e neopositivistas

A ciência, dizem os positivistas e neopositivistas, é


um conhecimento verdadeiro porque não é, como se-
riam as ideologias, influenciada por nenhum interesse
político, de classe, cultural ou preconceitos. Argumen-
tam que 2 + 2 = 4 é uma verdade para todos os huma-
nos, sejam eles chineses ou brasileiros, proletários ou
burgueses, homens ou mulheres, negros ou índios etc.
Isto é uma verdade. Há, de fato, conhecimentos
que não são ideologias nem são influenciados pelas
ideologias. Não apenas no conhecimento científico,
mas também no conhecimento cotidiano, na religião,
na filosofia e na arte podemos encontrar conhecimen-
tos que não são ideológicos.
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Contudo, se examinarmos mais de perto este argu-
mento dos positivistas e neopositivistas, veremos que
sua validade é limitada, mesmo para a ciência exata.
Há conhecimentos que são verdadeiros independen-
temente das ideologias, interesses de classe, valores
e assim por diante: o Sol nasce a leste, o teorema de
Pitágoras, a sequência histórica das formações sociais
(sociedades primitivas, escravismo, feudalismo, capi-
talismo, por exemplo).
Mas muitos dos conhecimentos científicos mais
importantes são fortemente marcados pelos interes-
ses de classe, pelas lutas sociais do momento em que
são produzidos, pelas tradições e mesmo pelos pre-
conceitos. Mesmo quando se trata do conhecimento
da natureza.
Pensemos na afirmação por J. Kepler e por Gali-
leu Galilei de que a Terra gira ao redor do Sol e não,
como queriam a Igreja e os senhores feudais, que se-
ria o Sol a girar ao redor da Terra. Foi a necessidade
de orientar em alto-mar as caravelas que levou a bur-
guesia às descobertas científicas, entre as quais a de
que a Terra gira ao redor do Sol. O desenvolvimento
da astronomia, da física e da matemática produziu,
poucas décadas depois de Galileu, a primeira explica-
ção científica do funcionamento da gravidade, a lei da
gravitação universal de Newton. A astronomia mo-
derna é uma realização da burguesia tal como foram
as Grandes Navegações (1430-1650) e as Revoluções
Francesa (1789-1815) e Industrial (1776-1830).
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A passagem do mundo fechado em uma esfera,
que predominou na concepção de universo da Idade
Média, ao universo infinito de Newton tem a marca
indelével de nascença da burguesia revolucionária. Tal
como os corpos celestes se movimentam em constan-
tes repulsão e atração, os indivíduos humanos vive-
riam em sociedade em constantes repulsão e atração
marcadas pelo nascente mercado mundial. O merca-
do, com suas leis, faria de cada um de nós o concor-
rente de todos os outros: o homem seria o lobo do
homem. Tal como as leis que regem o cosmos são
eternas, a disputa universal de todos com todos seria
igualmente eterna. A sociedade burguesa seria, por
isso, não apenas a melhor possível aos humanos, mas
também corresponderia à sua eterna essência de pro-
prietários privados. A sociedade burguesa seria, por
isso, o eterno futuro da humanidade.
A concepção do universo de Newton, uma enor-
me e gigantesca realização da ciência moderna, rela-
ciona-se, por esta via, com a justificação da sociedade
que então nascia, a sociedade burguesa. A natureza e a
sociedade seriam igualmente formadas por partes que
se repelem e se atraem. Na natureza, pela lei da gravi-
tação universal. Na sociedade, pelas leis do mercado
capitalista. Se na natureza, toda parte possui massa
e, portanto, sofre a ação da gravidade, na sociedade,
toda parte possuiria a qualidade de ser proprietário
privado e, portanto, sofre a ação das leis do mercado.
De modo semelhante, toda a ciência do Mundo
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Antigo, além de explicar o mundo, também explicava
por que a humanidade seria para todo o sempre divi-
dida entre senhores de escravos e escravos: a ordem
universal do universo, a ordenação do Cosmos pelo
Logos (Aristóteles), assim o determinaria. A pedra
afunda na água porque seu lugar natural na ordem
universal seria sob a água; o senhor de escravo será
sempre senhor de escravo (e o escravo, escravo) por-
que esta seria a ordem natural de todo o universo.
Hoje em dia, o que impulsiona o desenvolvimento
da ciência não é apenas a própria ciência, isoladamen-
te. Os interesses econômicos na criação de uma medi-
cina lucrativa para o capital levou ao desenvolvimento
da ciência que está na base do complexo médico-hos-
pitalar. E também, na base da produção e “descober-
ta” de novas doenças que tornam lucrativas as des-
cobertas de remédios e terapias feitas pela ciência da
saúde. Os burgueses levaram ao desenvolvimento do
complexo industrial militar: toda a ciência da morte,
das bombas atômicas às tecnologias das armas mo-
dernas, é atravessada do começo ao fim pela busca in-
cessante de lucros. Praticamente todo o impulso que
o desenvolvimento de tecnologias confere às ciências
é determinado pelos interesses das classes dominan-
tes - acima de tudo, o interesse de manter as relações
de produção que as fazem classes dominantes. Isto
vale para todas as sociedades de classe, para a nossa
inclusive.

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Hoje em dia, a maioria dos cientistas da nature-
za tende a voluntariamente reduzir o alcance das suas
descobertas. O mundo se origina de um ato de Deus?
Não há nada na ciência que o indique; tudo indica
exatamente o oposto, isto é, que não houve criação
divina alguma. Mas a ciência se cala ante essa questão:
isso nada tem a ver com uma questão científica; é, an-
tes, uma questão diretamente ideológica. Para não en-
trar em choque com a religião e com os poderes esta-
belecidos (que financiam o fundamental das pesquisas
científicas), os cientistas se calam quando a questão é
a origem do universo. E esta postura não é uma de-
corrência de nenhuma metodologia científica; antes,
as metodologias científicas que justificam tal silêncio
é que são decorrências ideológicas da submissão da
ciência ao capital.
A ciência, portanto, ao contrário do que querem os
positivistas e neopositivistas, acha-se longe de estar livre
das interferências dos valores, dos interesses de classe, das
lutas de classe de cada momento e, portanto, das ideolo-
gias. O fato de que um ou outro conhecimento, científico
ou não, seja, de fato, isento de ideologias não significa que
isto seja válido para a ciência no seu todo. E o fato de a
ciência ser permeada pela ideologia não reduz, por si só,
a sua qualidade de ciência. O que faz um conhecimento
científico superior ou inferior é a sua capacidade de re-
produzir na consciência aquilo que a realidade é de fato.
E esta sua capacidade pode ser tanto dificultada quanto
facilitada pelas ideologias, como veremos.
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Nazismo, ciência e ideologia

Isto quanto aos positivistas e neopositivistas.


Quanto aos nazistas, a questão é diferente. Pois
a tese dos positivistas e neopositivistas de que a ci-
ência é um conhecimento independente de qualquer
ideologia é correta, como vimos, em casos isolados.
O nazismo, ao contrário, jamais está correto, nem no
geral, nem nos casos isolados. Tudo nele é falsidade,
sem exceção alguma.
Peguemos sua tese da superioridade racial da raça
ariana. Nem antes, nem depois do nazismo, foi pos-
sível descobrir sequer um argumento científico que
fosse favorável a essa tese.
Ainda assim, essa falsidade foi assumida como
verdade por uma enorme parcela do povo alemão. Se
o absurdo que foi o nazismo não pode ser justificado,
ele pode ser explicado. Na vida cotidiana, uma boa
parte do conhecimento tem sua origem em constata-
ções que, em geral, não são questionadas. Tudo que
sobe tem de cair, depois do dia vem a noite, da se-
mente vem a árvore etc. são conhecimentos verdadei-
ros que emergem da vida cotidiana de modo muito
direto. São constatações que permanecem em larga
medida irrefletidas. Também em larga medida elas
são, no mais imediato da vida, verdadeiras.
Mas há constatações que têm a força da verdade
sendo, de fato, meras falsidades. Quantos milênios a
humanidade “constatou” que as enfermidades vinham
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de espíritos malignos e a saúde de espíritos benignos?
Por quantos milênios a constatação de a Terra ser
plana foi assumida como verdade inquestionável? A
maior parte dessas constatações falsas é superada pelo
próprio desenvolvimento da humanidade, pela evo-
lução da ciência, da nossa capacidade produtiva, das
formações sociais e assim por diante.
Mas há constatações que brotam da vida cotidiana
e que, por necessidades coletivas, assumem a aparên-
cia de uma verdade que – mesmo que sejam absoluta-
mente falsas – leva massas inteiras de seres humanos
a se comportarem de uma determinada maneira. Isto
é o “falso socialmente necessário”. O nazismo é um
claro exemplo de um “falso socialmente necessário”:
uma ideia absurda levou milhões a morrerem nos
campos de batalha da Segunda Grande Guerra para
impor a supremacia da raça ariana!
No Velho Testamento, os judeus fugidos do Egito
precisaram acreditar na providência divina para supe-
rar aquele terrível momento histórico por que passa-
vam. Deus, ao ter aberto o Mar Vermelho e ao dar a
Moisés a tábua de salvação com os dez mandamentos,
mostrava serem os judeus o povo escolhido. E a cren-
ça nessa fábula fantástica ajudou os judeus a atraves-
sar o Sinai até a Terra Prometida.
Também o povo alemão, destruído pela Primeira
Guerra e pela crise de 1929, precisava crer que era
um povo superior, com um messias, para superar as
suas misérias de então. Hitler, naqueles anos, soube
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se identificar com essa necessidade do povo alemão.
Não demorou nada para a burguesia alemã descobrir
a utilidade da ideologia nazista. A crença na superio-
ridade da raça ariana poderia auxiliá-la a manter dó-
ceis e submissos os trabalhadores que ela explorava.
E não apenas isso, pois poderia fazer esses mesmos
trabalhadores morrer aos milhões na Segunda Gran-
de Guerra (que essencialmente foi, na Europa, uma
ofensiva militar da burguesia alemã contra os seus
principais concorrentes econômicos, a Inglaterra e a
França).
Com os nazistas, portanto, a identificação de ide-
ologia à falsa consciência, a um falso conhecimento
da realidade, apenas lhes servia para argumentar que
o nazismo, por não ser uma ideologia, não seria uma
falsidade. Na verdade, sabemos hoje, o nazismo era
tão falso quanto a mais falsa das ideologias. Ele foi
apenas o “falso socialmente necessário” para a bur-
guesia alemã manipular seu povo e conduzi-lo à Se-
gunda Guerra Mundial (1939-1945). Como o que é
verdade para os nazistas não passa da mais pura fal-
sidade, a sua denúncia das ideologias como falsos co-
nhecimentos terminou perdendo quase toda sua for-
ça de convencimento.

O stalinismo e a “ciência marxista”

O stalinismo, sabemos, foi a deformação do pen-


samento original de Marx e Engels que serviu para
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justificar o regime político ditatorial que vigorou na
URSS. E o stalinismo, apesar de toda a sua pregação
contra a ideologia burguesa, terminou fazendo com o
conceito de ideologia o mesmo que os neopositivistas
fizeram: colocaram a ciência de um lado e, do outro
lado, a ideologia. Como se um fosse a negação do ou-
tro. Nisso, os stalinistas e os neopositivistas andavam
de braços dados.
A diferença entre eles, não desimportante, é o que
consideravam ciência e o que consideravam ideologia.
Para os neopositivistas, o marxismo seria uma ide-
ologia, e as ciências da natureza, “o” conhecimento
da verdade. Para os stalinistas, o marxismo seria “a”
ciência, e todo o resto seria ideologia. Ao tentar pro-
duzir uma ciência que não fosse permeada por ideo-
logias, nem pudesse servir de ideologia, o stalinismo
nada mais fez do que produzir propaganda. A ciência
stalinista tinha por critério de verdade as necessidades
políticas diárias de justificação da ordem vigente na
URSS – e esse critério de verdade é tão falso que levou
rapidamente a ciência lá produzida a absurdos. O mais
conhecido desses absurdos é a negação das leis da ge-
nética porque elas não seriam “dialéticas”!
Por outro lado, também por desconsiderar o papel
ideológico do pensamento de Marx e Engels conduziu
os stalinistas à mais profunda, sistemática e completa
falsificação não apenas do fundamental do seu pen-
samento, mas mesmo de muito do secundário. A co-
meçar pelos conceitos de socialismo e de comunismo.
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Para Marx e Engels, o socialismo seria a supera-
ção do Estado, da família patriarcal (monogâmica), da
propriedade privada e da exploração do homem pelo
homem. Por isso o socialismo conduziria ao comu-
nismo, uma sociedade em que todos trabalham e, por
isso, ninguém vive explorando o outro – e também
por isso, uma sociedade em que todos, coletivamente,
decidem o destino comum. Os stalinistas identificam
o socialismo e o comunismo à URSS, uma ditadura
que não apenas manteve o Estado e a exploração do
homem pelo homem, como ainda aprofundou e de-
senvolveu mecanismos ainda mais perversos de do-
minação e controle dos trabalhadores.
Tratar o marxismo como ciência oposta à ideolo-
gia é um absurdo tão grande quanto reduzir o marxis-
mo apenas e tão somente à ideologia – tal como seria
um absurdo reduzir a gravitação universal de Newton
e o pensamento econômico da burguesia em sua fase
revolucionária (a Economia Política de Adam Smith
e David Ricardo) apenas e tão somente à ideologia,
como se não contivessem nenhum conhecimento
científico. Neste sentido preciso, a física newtoniana,
a Economia Política e o marxismo são igualmente
ideologias – ainda que, enquanto ideologias, não se-
jam idênticos. Os primeiros defendiam a revolução
burguesa, o segundo, a revolução proletária.
Isso com os neopositivistas, os nazistas e os sta-
linistas. Com os “bolsonaristas” as coisas são apenas
parecidas.
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Os bolsonaristas e as ideologias

Com o projeto da Escola sem Partido e com a se-


guida pregação pelos bolsonaristas da necessidade de
uma abolição “das ideologias”, o conceito de ideolo-
gia voltou a ganhar importância política. Tal como no
passado, ideologia é identificada como tudo de ruim,
tudo que teria de ser eliminado para que o país pros-
perasse.
Contudo, entre os bolsonaristas, o conceito de
ideologia é imediatamente valorativo. O que se con-
traporia à ideologia, para eles, é a fé no Deus cristão e
a crença nos valores tradicionais da sociedade: a famí-
lia monogâmica, patriarcal; a moral conservadora nos
costumes, a disciplina na vida cotidiana, a proprie-
dade privada burguesa como núcleo da liberdade; o
Estado como ordenador da sociedade – e os deveres
dos cidadãos como a aceitação desta ordenação social
imposta pelo Estado.
Diferentemente dos neopositivistas e diferente-
mente dos stalinistas, para os bolsonaristas a ideologia
não seria combatida pela ciência, mas sim pelos valo-
res da religião e da moral conservadora e burguesa.
Para eles, haveria uma “ideologia cientificista” que co-
locaria a ciência acima da fé que deverá ser combatida.
“A verdade” é que os seres humanos vieram de Adão,
e não, como diz a ciência, do desenvolvimento da na-
tureza. Para os bolsonaristas, a disputa se dá entre a
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fé católica e os valores nela inspirados contra todas as
outras formas de conhecimento, seja a arte, a ciência,
os costumes, a moral, a ética – e mesmo, contra as
outras concepções religiosas que não a cristã. Nisso
eles diferem dos neopositivistas e dos stalinistas e se
aproximam dos nazistas: o que apresentam como “a
verdade” não passa da mais completa falsidade.
É assim que, para eles, tudo se passa no plano va-
lorativo. Devem-se separar e distinguir os valores que
seriam verdadeiros dos que seriam falsos. Os verda-
deiros seriam aqueles da tradição cristã, os falsos se-
riam aqueles valores que expressam a igualdade entre
as raças, a igualdade entre homens e mulheres, a liber-
dade de opções sexuais, a liberdade de expressão na
arte, na ciência, na filosofia e na religião; o falso seria
o conhecimento científico que explica o universo sem
Deus e explica a origem do ser humano sem o mito
da Gênese bíblica… – e não é preciso muito para per-
cebermos que os bolsonaristas são tão ideológicos
quantos as ideologias que pretendem combater.
Contra a “ideologia de gênero”, a ideologia de que
os homens devem comandar, e as mulheres, obedecer;
contra as “ideologias socialistas e comunistas”, a ideo-
logia liberal segundo a qual não há nada mais justo do
que o mercado e que o capital é o que nos faz huma-
nos; contra a “ideologia de liberdade de expressão”, a
ideologia de que apenas os valores conservadores são
os verdadeiros. E assim por diante.

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O quanto a luta contra as ideologias dos bolso-
naristas não passa de ideologia mostra bem o fato de
que eles nada viram de errado em o Partido Repu-
blicano Brasileiro, base do governo Bolsonaro, criar
uma faculdade com cursos de Ciência Política, Polí-
tica Contemporânea e Direito Eleitoral. Uma Escola
sem Partido em uma faculdade de um Partido!!! Nada
de errado, desde que o Partido seja da base de apoio
do governo! A Faculdade chama-se “Faculdade Re-
publicana” e deverá começar a funcionar já em 2019!
O que, então, é a ideologia?

Na vida cotidiana dos seres humanos, desde as


formações sociais mais primitivas até as dos nossos
dias, o conhecimento e as ideias cumprem diversas
funções.
Uma dessas funções é a de ciência. O conheci-
mento científico é aquele que sistematiza o que já co-
nhecemos do mundo de tal modo que possamos pro-
duzir o que necessitamos com menos esforços e em
menor tempo. Sistematizar qual o tipo de pedra ideal
para se fazer um machado, ou como deve ser calcula-
da a resistência do concreto para construirmos casas
e prédios, esta é a função social da ciência da natureza.
A função social das ciências humanas é a mesma, o
que altera é o seu objeto: não mais a natureza, mas as
formações sociais. Quais são as tendências históricas
mais universais do desenvolvimento da humanidade?
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Como identificar e explorar na prática as mais eleva-
das possibilidades para satisfazer as necessidades mais
humanas geradas pela história? Como superar as de-
sumanidades que a sociedade contemporânea gera de
modo cada vez mais intenso?
Em outras palavras, para que possamos construir
conscientemente nosso futuro, é preciso que as ciên-
cias humanas produzam um conhecimento que reve-
le as causas e as consequências das ações humanas,
como essas ações se convertem em nossa história co-
letiva, como elas determinam nosso destino comum.
Esta função das ciências humanas, repetimos, é uma
função similar à da ciência da natureza: se esta deve
revelar o que a natureza é, para que dela possamos
retirar o que necessitamos com menor esforço e em
menor tempo, as ciências humanas devem revelar o
que é a sociedade, o que é o ser humano, para que
possamos conduzir nosso futuro com consciência e,
portanto, de modo cada vez menos desumano.
Uma segunda função do conhecimento é a função
da arte. O conhecimento artístico também revela o que
os seres humanos são, o que nós somos. Mas o faz de
uma perspectiva e com uma função bem distinta da ci-
ência. O indivíduo humano, e não mais a sociedade ou
a natureza, está no centro da obra de arte. Sua função
é promover uma emoção tão gigantesca e avassaladora
nas pessoas que elas se desenvolvam enquanto seres
humanos mais sensíveis, mais capazes de perceber o
que é o mundo em que vivem. Ao perceberem melhor
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o mundo em que vivem, também o conhecem melhor
e, assim, podem reagir à realidade com atos mais apro-
priados às finalidades que venham a possuir.
Uma terceira função é a da religião. O conheci-
mento religioso, em sua origem mais primitiva, tinha
a função de explicar e justificar a vida humana. Nas
sociedades mais primitivas, a pergunta pela razão do
destino humano era respondida por mitologias e mi-
tos religiosos. Ao fim e ao cabo, a resposta era sempre
algo como “é assim porque Deus (ou os Deuses) de-
seja”. Com o desenvolvimento da arte e da ciência, a
religião foi perdendo esse espaço e o conhecimento
religioso foi deixando de ser uma explicação, para se
tornar apenas uma justificação do mundo.
Ou seja, a ciência e a arte vão crescentemente ex-
plicando o mundo, enquanto a religião vai crescente-
mente justificando o mundo. Como surgiu o universo,
de onde vem o ser humano, por que vivemos em so-
ciedades tão desumanas?
Há não muitos séculos, a explicação última seria
sempre: porque Deus assim determinou. Hoje essa
resposta não tem mais validade prática nenhuma.
Para investigar a origem do universo, os cientistas
criaram um acelerador de partículas e investigam as
ondas gravitacionais. Para descobrir como os seres
humanos surgiram no planeta Terra, investigamos os
hominídeos mais primitivos, tentamos precisar onde
surgiu o trabalho e, com ele, a humanidade. E assim
por diante. Para descobrir as causas de nossas mazelas
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sociais, estudamos a economia, a história, a política, a
sociologia etc. etc. Em nenhuma dessas investigações
a Bíblia ou o Alcorão ou a Torá jogam qualquer papel
ou sequer são mencionados.
Ao conhecimento religioso cabe cada vez mais ex-
clusivamente o papel de justificador do mundo: por
isso um papel conservador. É essa perda da função
explicativa do mundo pela religião uma das explica-
ções últimas para a decadência da religião e de suas
instituições (a pedofilia no catolicismo e as igrejas
evangélicas nada mais são que manifestações super-
ficiais dessa crise).
A quarta função do conhecimento é o da ideo-
logia. A ideologia é aquele conjunto de ideias que os
grupos humanos utilizam para se organizar e atuar
nos conflitos sociais de todos os tipos. Em tese, qual-
quer conjunto de ideias pode cumprir essa função,
pode auxiliar na organização e na atuação de grupos
de pessoas sobre os conflitos que surgem incessante-
mente na sociedade. Há ideologias mais importantes
e significativas, e outras menos importantes – e isso é
determinado pela importância dos conflitos nos quais
atuam. Mas em todos os casos, as ideologias são co-
nhecimentos e ideias que cumprem a função social de
organizar como conjuntos de indivíduos atuam sobre
os conflitos de seu dia a dia.
Esse conjunto de conhecimentos, de ideias, pode
ser mais ou menos científico, religioso, artístico ou,
mesmo, meramente uma falsidade. Na Idade Média,
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a ideologia dos grupos e classes sociais em conflito
era fundamentalmente religiosa. Isto, contudo, não
significa que no interior dessa ideologia religiosa não
encontremos elementos de ciência tanto da natureza
quanto da sociedade, de concepções artísticas e, ain-
da, de puras falsidades. No período moderno, quando
a burguesia se constituiu em classe revolucionária e
derrubou o feudalismo, a ideologia tinha nas concep-
ções políticas um centro decisivo, muito mais decisivo
que na Idade Média. O quanto o liberalismo político
que então surgiu, com sua proposta de um Contra-
to Social e de uma economia regida pela proprieda-
de privada burguesa, era ao mesmo tempo ciência e
ideologia, concepção artística e ideologia, religião e
ideologia (Calvino etc.), é demostrado por qualquer
estudo mais sério deste período histórico.
O mesmo para o pensamento de Marx e Engels. Ao
revelarem como se reproduz a sociedade burguesa pela
acumulação de capital, e como tal acumulação implica
sempre a produção de uma maior riqueza para a bur-
guesia e de maior miséria para os trabalhadores, os dois
pensadores revelaram a lei que rege o mundo burguês.
Fizeram, por isso, a mais pura ciência. Contudo, ao mos-
trarem a desumanidade inseparável do mundo burguês,
mostraram também a possibilidade e a necessidade da
superação revolucionária do capital. Nisto seu pensa-
mento é a mais pura ideologia, isto é, um conjunto de
ideias que por décadas tem auxiliado os trabalhadores
do mundo todo a lutar contra as injustiças do presente.
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As ideologias, portanto, podem ser mais falsas ou
mais verdadeiras, podem ser mais científicas ou reli-
giosas, mais próximas do mundo real ou meramente
veladoras da essência do mundo. Podem ser revolu-
cionárias ou conservadoras. O que as faz, todas elas,
ideologias, contudo, não é se são mais ou menos fal-
sas, científicas, religiosas, conservadoras ou revolucio-
nárias. O que as torna ideologias é que são sempre
conjuntos de ideias que auxiliam os indivíduos a se
organizar e a atuar sobre os conflitos sociais de seus
dias.
O marxismo e o “bolsonarismo” são ideologias.
O que os diferencia, no essencial, é que o marxismo
é uma ideologia que auxilia no combate às desuma-
nidades do nosso mundo e, por isso, é uma ideologia
revolucionária. O “bolsonarismo” é uma ideologia
que quer preservar o fundamento das desigualdades
sociais: a propriedade privada, o Estado e a família
monogâmica, patriarcal. É, por isso, uma ideologia
conservadora.
O fato de o marxismo ser uma ideologia revo-
lucionária e o “bolsonarismo” uma ideologia con-
servadora tem vastas consequências ideológicas. O
marxismo, para revelar a essência do mundo, precisa
desenvolver a ciência. O “bolsonarismo”, para velar
a essência do mundo, precisa lançar mão dos dogmas
da fé e das crenças religiosas cristãs não apenas contra
a ciência e a filosofia, mas também contra as outras
fés religiosas. O primeiro tem a força dos argumen-
tos; o segundo necessita do poder do Estado para se
reproduzir socialmente… E assim por diante.

Uma sociedade sem ideologias?

Tal como jamais houve na história uma sociedade


que não produzisse algum conhecimento científico e
alguma religião (ainda que suas formas tenham varia-
do enormemente), também não pode haver uma so-
ciedade sem ideologias. A sociedade sempre produz
conflitos – e os seres humanos apenas podem enfren-
tá-los pensando sobre eles. Do pensamento (o que
fazer para resolver este ou aquele conflito?) nascem as
ideologias. Não há sociedade sem ideologias!
O discurso contra as ideologias dos bolsonaristas
nada mais é que outra ideologia!
Mas isso não é surpreendente, pois eles não têm
ideia do que é ideologia. A única coisa que sabem é
que têm de tachar tudo o que não concordam como
ideologia, para considerar correto e verdadeiro aquilo
que eles não podem demonstrar ser correto e verda-
deiro. Sem argumentos, só lhes resta desprestigiar as
ideias com as quais não concordam e empregar a for-
ça do Estado para impor o que afirmam ser verdade.
Para eles o que se contraporia às ideologias seria…
a fé! A fé em Deus, a fé no Poder Divino. Sem Deus
e seu Poder (tudo com letra maiúscula) não haveria
salvação – nem para as pessoas, nem para o país. Por
isso, “Deus acima de todos”. E esta concepção, para
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nossos bolsonaristas, não seria uma “ideologia”, mas
o seu oposto: “A Verdade”! Não seria uma ideologia
afirmar que apenas a Fé poderia nos salvar, que sem
Deus ficariam ameaçados valores fundamentais como
a “família”, a “propriedade”, a “disciplina”. Não seria,
para eles, parte de uma ideologia afirmar que bandido
bom é bandido morto, que o problema da segurança
se enfrenta armando a população e que os males do
Brasil se vencem com “mitos” como Bolsonaro. Tudo
indica que pelo menos alguns deles de fato acreditam
que Bolsonaro foi enviado para salvar o Brasil pelo
Deus cristão, aquele da Santíssima Trindade!
Todo o discurso bolsonarista não passa de mais
uma ideologia. Eles falam e pensam ideologicamente,
ainda que sua ignorância os impeça de perceber isso!
Os nossos conservadores no Planalto são ideólogos,
ainda que não o reconheçam.
Por isso, a Escola sem Partido nada mais é do que
a Escola do Partido bolsonarista!
Por isso, a sociedade sem ideologias nada mais
significa que uma sociedade regida pela ideologia bol-
sonarista!
A isso, e nada mais, se reduz a essência da con-
cepção predominante entre os bolsonaristas acerca da
ideologia.

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