JL-sobre Flores Afonso Cruz
JL-sobre Flores Afonso Cruz
JL-sobre Flores Afonso Cruz
Rui Zink
sesta, o rapaz labuta, partilhando com o escasso punhado de milicianos-juristas
a responsabilidade da proposta de soluções para os desmandos praticados pela O registo é muito próximo do Teatro.
desorientação da soldadesca. Giram sem pausa as ventoinhas de tecto, isto por- Pensou-o como tal?
que tão-só as instâncias superiores auferem de ar condicionado, e erguem-se por Todos os meus livros, quase sem ex-
do terrorista?
ras, sempre que a da véspera não se mostre de caixão à cova, precipitando-o a res- clássicas das partições: lírica, drama,
sonar debaixo das estrelas, e em decúbito dorsal, ao fundo de uma dessas valas, narrativa. As três partes não têm o
destinadas ao escoamento das chuvas. E o rapaz mete-se no jeep, e apeia-se dele, mesmo número de carateres, o mesmo
desistindo de estabelecer diálogo com o condutor peso em quilos? Mas têm exatamente
indígena que afecta não entender seja o que for, e a mesma importância. O título, Osso,
que masca numa obsessão a bolinha de cola que designa conteúdo e forma. Aqui que
lhe enegrece os dentes branquíssimos. Encharcado ninguém nos ouve, acho que encontrei
em suor, e de estômago atulhado do caril de frango, um modo de contar mui adequado ao
obrigatório menu diário da messe, cai de fadiga Com Osso, Rui Zink dá por de contraditórios e de enganos. Um mundo de hoje, e aguardo emocio-
na tarimba do contentor que lhe designam como encerrada a tetralogia que dedi- retrato de uma sociedade em que nem nadamente uma menção honrosa do
casamata, e donde a meio da noite rompe o esparso cou à crise, iniciada com O Destino tudo o que parece é. Ministério da Economia, porque é um
berro de um camarada que não aguenta mais, e que Turístico, A Instalação do Medo e A livro como deve ser: limpo de gorduras
exige o seguinte, Metametamorfose e Outras Fermosas Jornal de Letras: Este livro é um osso excedentárias. O dinheiro e o tempo
«Tirem-me daqui!», Morfoses. Agora, os protagonistas são duro de classificar. Como o define? que não poupei aos contribuintes, ao
ou que descarrega a sua acrimónia contra um terrorista, preso à entrada do país, Diálogo, parábola, farsa? abdicar dos «naquela manhã», «en-
quanto o rodeia, expelindo esta frase com que › Mário Cláudio e um interrogador, que a certa altura Rui Zink: Um romance. Em tom de tretanto», «retorquiu», «inquiriu»,
desabafa a incoercível urgência de privacidade, ASTRONOMIA confundirá as suas fidelidades, aca- farsa. A tetralogia sobre a crise que «murmurou», «pigarreou», «coçou o
«Vai para o mato, malandro!» D. Quixote, 472 pp, 17,90 euros bando igualmente preso. Um romance agora chega ao fim, começou com queixo», «mordeu o lábio», «franziu
em jeito de farsa, como descreve o uma tragédia (O Destino Turístico), o sobrolho». E olhe que tenho alguma
escritor, que atendendo à austeridade seguiram-se-lhe um drama (A pena, porque «franziu o sobrolho» é
que grassa no nosso quotidiano cortou Instalação do Medo) e uma comédia (A uma das minhas expressões favoritas.
de um poeta com quem privei, duplo, ou um irmão gémeo, se bem no livro todas as "gorduras excedentá- Metametamorfose). O epílogo tinha de
terminaria eu por me apegar a ele, que empolgado por uma propensão rias". Uma obra, portanto, em forma ser uma farsa, claro, além do mais 2015 A certa altura lê-se: “Tempos desgra-
mas apenas depois da sua morte. libertária que jamais possuí, mas de diálogo contínuo, que sublinha a também o exigia, e quem sou eu para çados pedem desesperos engraçados”.
Ficaria em mim em suma como um que sempre cobicei. JL arte de Zink para o jogo de palavras, contrariar 2015? No riso está a raiz da reflexão?
J 30 de setembro a 6 de outubro de 2015 * jornaldeletras.sapo.pt NOVOS ROMANCES
letras * 11
Flores
casa e te abraçava, confuso pela tua presença breve, Este parece ser o seu romance mais preciso despertar os homens?
delicada, como uma brisa. Se um dia vier a acreditar político, no sentido de incluir, Não acho que esteja a ficar
em Deus, não quero relâmpagos e trovões, quero um refletir e recriar assuntos da mais esquecida, mas acho que
sorriso delicado como aquele que aparecia no teu rosto. atualidade. A crise bateu à porta da uma boa parte dos cidadãos
O mundo, quer-me parecer, é muito mais um sorriso ou sua literatura? mais informados não sente
uma flor a abanar ao vento do que um terramoto, um É uma história que se desenrola qualquer pressão para agir. Não
monumento de pedra ou um grand canyon. E agora, pai, nos dias de hoje e por isso seria desconsidero as indignações
Pai, estou frente ao espelho. tenho de ir buscar a Beatriz aos tempos livres. inevitável comentar a atualidade. momentâneas, mas creio
Relembro-te um momento em que estavas de cócoras Mas encontrar-nos-emos aqui no espelho, ou num Tenho tido essa preocupação em que é possível fazer mais e
ao meu lado e me ajudavas a montar um lego, tenho golo do Sporting, em quatro letras. livros ilustrados como Assim, mas melhor. Repensar o sistema
de te agradecer isso, de te debruçares sobre as minhas Até já. sem ser assim, Capital ou A Cruzada democrático tornando-o mais
brincadeiras, cresci com a tua sombra. Tenho de agrade- (...) das Crianças. Neste caso, achei justo, verdadeiro e, sobretudo,
cer-te o hálito a café pela manhã, quando me acordavas Nós tínhamos uma ameixeira no quintal. O pai pegava mais do que pertinente, senão hierarquizar os valores: ou
para ir para a escola, e, claro, o primeiro after-shave numa ameixa, metia-a toda na boca, dizia que era um dever, apontar episódios, seja, remeter a pecúnia para o
que me deste, depois de rapar o buço incipiente que me assim que a devíamos comer, depois cuspia o caroço, circunstâncias ou situações que seu lugar, que é o de servir e
pautava o lábio superior. Pai, ainda uso a mesma marca, baixava-se e cuspia. Era um gesto de reverência, de julgo, para não usar o calão, serem não o de ser um anelo per se.
não consigo imaginar outra, se a fábrica deixar de pro- totalidade, mas mais do que isso, perpetuava a árvore, de extrema injustiça. Mudar pequenas coisas pode
duzir desisto de fazer a barba. Tenho de te agradecer o pois ao cuspir plantava-se. Era a reprodução da amei- ter um resultado estrondoso.
primeiro jogo do Sporting que vi no estádio de Alvalade, xeira, cuspir fazia nascer uma árvore. E o pai, quando A memória, no entanto, é o grande São flores no cabelo. Mas por
o Manuel Fernandes, o Oliveira, o Damas, mas acima se erguia, com as calças de fazenda a apertarem-lhe os tema. Sem ela, até o pior dos vezes precisamos mesmo de
de tudo o facto de gritares golo como se reclamasses a testículos, de tão puxadas para a barriga, os suspensó- homens se torna inofensivo. O que nos olhar ao espelho, ver um
eternidade, nunca me esquecerei da tua voz a fazê-lo, rios lassos, concluía: é assim que se come uma ameixa. resta ao senhor Ulme, agora que golem e revoltarmo-nos. Se
era a única que eu ouvia no delírio do estádio, era o grito É isso, pai, não é só o fruto que comemos, são as frá- esqueceu quase tudo, sobretudo ficamos zangados com um café
que eu seguiria como se fosse o messias, eu, com sete geis pegadas dos pássaros que nele pousaram, os raios o que de mais pessoal há na sua mal servido, também temos a
anos a correr atrás da revelação, da religião, de sol, o grito dos mochos, o luar mais vida? obrigação de nos enfurecermos
da vida eterna que era uma palavra de quatro furtivo, a chinfrineira das cigarras. Os A memória é o grande tema porque com a permanente injustiça que
letras, como o impronunciável nome de Deus frutos são o resultado de tudo. O caroço também é um grande tema. Ao vemos à nossa volta ou a que
era para o judeus. Dizias golo, pai, mas eu que se cospe é a vida. senhor Ulme resta uma virtude somos submetidos. Se vamos
ouvia a mais alta conquista do ser humano, É isso, pai, é a vida. que é comum a todos os humanos a um restaurante e nos servem
uma espécie de divinização da lama de que É o caroço que temos de encontrar e desde que Pandora abriu a tal comida estragada mandamos
somos feitos. Tremia por dentro, pai, tremia perceber que isso somos nós, prontos a caixa: a esperança. Sabendo que para trás. Se nos servirem uma
com o teu grito eterno, que se projectava do ser cuspidos, esse lugar desprezível é o a vida não acaba bem, tendo realidade estragada devemos
passado mais longínquo, desde o big bang mais importante. consciência de que a morte é uma fazer o mesmo: desculpem, mas
ao fim dos tempos, um grito que percorria Senhor UIme, encontrarei o seu caroço ameaça constante e que, mais tarde eu não quero este croquete.
a história e refazia a vida, montava os ossos e dar-lhe-ei um motivo para ser cuspido ou mais cedo, sairá vencedora,
dos homens num esqueleto, dava-lhes poe- e, desse gesto, farei nascer uma nova essa mesma esperança mantém a Mesmo para um escritor tão
sia, ou alma, se preferires, ressuscitava todos › Afonso Cruz árvore, maior, mais alta, frondosa, etérea, possibilidade de nos mantermos variado, os leitores vão encontrar
os mortos, o teu grito. Quatro letras, como FLORES conclusiva, uma árvore da vida, cabalísti- otimistas e continuarmos a algumas novidades neste livro. A
o nome de Deus. Tenho de agradecer-te, pai, Companhia das Letras, ca, perfeita, um ramo de pão e outro de procurar a felicidade. A nossa e a escrita, como a vida do narrador,
o modo como sorrias quando eu chegava a 272 pp, 17,50 euros alma, um fruto de maresia, outro barro. dos que nos rodeiam. não pode cair na rotina?
Pode cair na rotina, claro. Mas o
A sociedade também está a ficar trabalho de qualquer criador, em
cada vez mais esquecida? O qualquer profissão, é entrar "mais
têm filamentos, raízes, sementes que é algo que me fascina meus livros, Isaac Dresner, e que que fazer diante dos horrores dentro na espessura" e garantir que
e esporos que vem de outros e por todas as implicações que é para mim, mais do que ficção perpetrados pela Humanidade, tudo o que faz é um caminho, uma
partem para novos lugares. Volto convoca. Há uma personagem (e anda tantas vezes a coxear ao que enchem os recortes de jornal descoberta, um passo além dos
ao tema do golem, por exemplo, que deambula por quase todos os meu lado), como um amigo. guardados pelo senhor Ulme? É seus limites.J LUÍS RICARDO DUARTE