Victor LaValle - A Balada Do Black Tom
Victor LaValle - A Balada Do Black Tom
Victor LaValle - A Balada Do Black Tom
Tradução
Petê Rissatti
Para H. P. Lovecraft, com todos os meus sentimentos conflitantes.
PARTE 1: TOMMY TESTER
1
AS PESSOAS QUE SE MUDAM PARA NOVA YORK sempre cometem o mesmo erro. Não conseguem
enxergar o lugar. Essa é a verdade para Manhattan, mas também para bairros mais distantes, seja
Flushing Meadows, no Queens, ou Red Hook, no Brooklyn. Elas vêm em busca de magia, seja
boa ou má, e nada vai convencê-las de que a tal magia não está aqui. Porém, isso não era de todo
ruim. Alguns nova-iorquinos aprenderam como ganhar a vida com essa ideia equivocada. Charles
Thomas Tester, por exemplo.
A manhã mais importante começou quando Charles saiu de seu apartamento no Harlem.
Tinha sido contratado para uma entrega em uma casa no Queens. Dividia o cafofo no Harlem
com seu pai doente, Otis, um homem que estava à beira da morte desde que sua mulher, com
quem fora casado por 21 anos, falecera. Tiveram um filho, Charles Thomas, e, embora ele
estivesse com vinte anos, exatamente a idade da independência, cumpria o papel de filho zeloso.
Charles trabalhava para sustentar o pai moribundo, se virava para lhe dar comida, abrigo e
conseguir um extra para fazer uma fezinha. Deus sabe que não fazia mais que isso.
Pouco depois das oito da manhã ele saiu do apartamento com seu terno de flanela cinza; as
calças estavam bem surradas e as mangas eram nitidamente curtas. Tecido fino, mas puído, o que
dava a Charles um certo visual. Como um cavalheiro sem a conta bancária de um. Pegou os
sapatos brogue de couro marrom com bico marcado e depois o gorro marrom com orelhas feito
de pele de foca em vez do chapéu fedora. A aba do gorro mostrava sua idade e uso, e era bom
para seus esquemas também. Por fim, pegou o estojo do violão, essencial para completar o visual.
Deixava o violão em casa com o pai acamado. Dentro do estojo carregava um livro amarelo,
pouco maior que um baralho.
Quando Charles Thomas Tester estava saindo do apartamento no lado oeste da 144th Street,
ouviu seu pai dedilhar as cordas no quarto dos fundos. O velho conseguia passar metade do dia
tocando o instrumento e cantando junto com o rádio ao lado da cama. Charles esperava estar de
volta antes do meio-dia com o estojo do violão vazio e a carteira cheia.
— “Quem escreveu isso?” — cantou o pai com a voz rouca, mas ainda mais bonita por isso. —
“Mas quem escreveu isso?”
Antes de sair, Charles cantou a última linha do refrão.
— “João, o Revelador”.
Ele ficou envergonhado por sua voz, nada afinada, ao menos quando comparada à de seu pai.
No apartamento, Charles Thomas Tester atendia por Charles, mas na rua todo mundo o
conhecia como Tommy. Tommy Tester, sempre carregando o estojo do violão. Não porque
aspirasse a ser músico; na verdade, mal conseguia se lembrar de um punhado de canções, e sua
voz cantando podia ser gentilmente descrita como vacilante. Seu pai, que ganhara a vida como
pedreiro, e a mãe, que passara a vida trabalhando como doméstica, amavam música. O pai tocava
violão, e a mãe sabia tocar piano direitinho. Natural que Tommy Tester acabasse atraído pela arte
de se apresentar, mas sua única tragédia era a falta de talento. Pensava em si como um artista das
ruas. Alguns o chamavam de golpista, trapaceiro, vigarista, mas ele nunca pensava em si dessa
forma. Nenhum bom charlatão jamais pensa assim.
Com as roupas que havia escolhido, parecia estar vestido como um músico fascinante e falido.
Era um homem que chamava a atenção e gostava disso. Andou até a estação de trem como se
estivesse indo tocar em uma festinha de arrecadação de fundos para aluguel junto com Willie
“The Lion” Smith. E Tommy já havia tocado com a banda de Willie. Depois de uma única
música, Willie expulsou Tommy. E, ainda assim, Tommy carregava aquele estojo de violão como
os empresários carregavam com orgulho suas pastas quando saíam para o trabalho. As ruas do
Harlem tinham virado uma confusão em 1924, com negros chegando do Sul e das Índias
Ocidentais. Uma parte já apinhada da cidade viu-se com mais gente para acomodar. Tommy
Tester gostava bastante daquilo tudo. Caminhar pelo Harlem logo de manhã era como ser uma
gota de sangue dentro de um corpo enorme que desperta. Tijolo e cimento, trilhos elevados e
quilômetros de tubulação subterrânea, aquela cidade vivia; dia e noite ela vicejava.
Tommy ocupava mais espaço que a maioria das pessoas por causa do estojo de violão. Na
entrada da 143th Street, precisou erguê-lo sobre a cabeça enquanto subia as escadas até os trilhos
elevados. O livreto amarelo lá dentro fazia barulho, mas não pesava muito. Ele iria até a 57th
Street e lá faria a baldeação para a Linha Roosevelt Avenue Corona da BTM. Era a segunda vez
que saía para o Queens, a primeira tinha sido quando aceitou o trabalho especial que seria
concluído naquele dia.
Quanto mais Tommy Tester avançava no Queens, mais em evidência ficava. Em Flushing
moravam muito menos pretos que no Harlem. Tommy afundou levemente o gorro na cabeça. O
condutor entrou no vagão duas vezes, e nas duas parou para conversar com Tommy, uma vez
perguntando se ele era músico, batendo no estojo de violão como se fosse dele, e na segunda vez
para questionar se Tommy havia perdido a estação. Os outros passageiros fingiram desinteresse,
embora Tommy tivesse visto como ouviam a conversa. Ele foi direto nas respostas: “Sim, senhor,
eu toco violão” e “Não, senhor, ainda faltam algumas estações”. Tornar-se imperceptível,
invisível, pertencente – havia truques úteis para um negro em uma vizinhança toda branca.
Técnicas de sobrevivência. Na última parada, na Main Street, Tommy Tester saiu com todos os
outros – imigrantes irlandeses e alemães em sua maioria – e desceu até o nível da rua. Uma longa
caminhada a partir dali.
Durante o caminho inteiro, Tommy ficou maravilhado com as ruas amplas e os apartamentos
ajardinados. Embora a vizinhança tivesse crescido, se modernizado muito desde seus dias de
território agrícola holandês e britânico, para um rapaz como Tommy, criado no Harlem, tudo
aquilo parecia rústico e confusamente espaçoso. Os braços abertos da natureza preocupavam-no
tanto quanto gente branca, os dois muito estranhos a ele. Quando passava por brancos na rua,
mantinha os olhos baixos e os ombros caídos. Homens do Harlem eram conhecidos por seu
andar empertigado de leão, mas ali fora ele escondia esse caminhar. Era observado, mas nunca
parado. Seu disfarce, o arrastar dos pés, funcionava bem. E, por fim, em meio a quarteirões e
mais quarteirões de prédios de apartamentos ajardinados recém-construídos, Tommy Tester
encontrou seu destino.
Uma casa pequena e quase perdida em meio a um pequeno bosque, o restante do quarteirão
era tomado por um necrotério. Um lar crescia como um tumor junto à casa dos mortos. Tommy
Tester virou na entrada e nem teve que bater. Antes que subisse os degraus, a porta da frente se
abriu em uma fresta. Uma mulher alta e esquelética estava na entrada, meio nas sombras. Ma
Att. Era o nome que ela lhe dera, o único pelo qual respondia. Ela o contratou assim. Naquele
batente, através de uma porta entreaberta. Correu o boato no Harlem de que ela precisava de
ajuda, e Tommy era o tipo de homem que podia conseguir o que ela precisava. Foi convocado à
sua porta e recebeu a missão sem sequer ser convidado a entrar. O mesmo aconteceria agora. Ele
entendia, ou ao menos podia adivinhar o motivo. O que os vizinhos diriam se aquela mulher
tivesse pretos entrando livremente em sua casa?
Tommy desabotoou a fivela do estojo de violão e o segurou aberto. Ma Att inclinou-se para
frente até a cabeça se esticar à luz do dia. Lá dentro estava o livro, menor que a palma da mão de
Tommy. A capa e a contracapa eram de um amarelo pálido. Três palavras estavam gravadas nos
dois lados. Zig Zag Zig. Tommy não sabia o que significavam aquelas palavras, nem se importava
em saber. Não tinha lido aquele livro, nem mesmo o tocara com as mãos nuas. Fora contratado
para transportar o livreto amarelo, e foi tudo o que fez. Era o homem certo para aquela tarefa, em
parte porque sabia que não deveria fazer nada além disso. Um bom trambiqueiro não é curioso.
Um bom trambiqueiro só quer o seu dinheiro.
Ma Att olhou o livro lá no estojo e depois para ele novamente. Pareceu levemente
decepcionada.
— Nem teve a tentação de dar uma olhada? — perguntou ela.
— Cobro a mais por isso — disse Tommy.
Ela não achou engraçado. Só bufou uma vez e pronto. Em seguida, estendeu a mão para
dentro do estojo de violão e de lá tirou o livro. Moveu-se tão rápido que o livro mal teve a chance
de pegar um único raio de sol, mas, ainda assim, quando o livro foi puxado para a escuridão da
casa de Ma Att, um filete tênue de fumaça apareceu no ar. Mesmo o contato de relance com a luz
do dia tinha feito o livro se incendiar. Ela bateu na capa uma vez, extinguindo a faísca.
— Onde o encontrou? — perguntou ela.
— Tem um lugar no Harlem — disse Tommy, sua voz sussurrada. — Chamam de Sociedade
Victoria. Mesmo os gângsteres mais durões no Harlem têm medo de ir até lá. É onde pessoas
como eu negociam livros como o seu. E coisas piores.
Nesse momento, ele parou. O mistério pairou no ar como o aroma do livro chamuscado. Ma
Att inclinou-se mesmo para frente, como se ele tivesse enroscado um anzol em seu lábio. Mas
Tommy não disse mais nada.
— Sociedade Victoria — sussurrou ela. — Quanto cobraria para me colocar lá dentro?
Tommy examinou o rosto da velha. Quanto ela poderia pagar? Imaginou o valor, mas ainda
assim fez que não com a cabeça.
— Me sentiria péssimo se a senhora se machucasse lá dentro. Desculpe.
Ma Att observou Tommy Tester, calculando o quanto podia ser ruim um lugar como esta
Sociedade Victoria. Afinal, uma pessoa que traficava livros como aquele amarelinho em sua mão
não era mesmo um sujeito frágil.
Ma Att estendeu a mão e bateu com o dedo na caixa de correio presa à parede externa.
Tommy a abriu e encontrou seu pagamento. Duzentos dólares. Contou o dinheiro ali mesmo, na
frente dela. Suficiente para seis aluguéis, água e luz, comida e tudo o mais.
— Você não deve ficar nesta vizinhança depois que o sol se puser — disse Ma Att. Ela não
parecia preocupada com ele.
— Vou voltar para o Harlem antes do almoço. Não aconselho a senhora a visitar o lugar, seja
de dia ou de noite. — Ele inclinou a boina, fechou de uma vez o estojo de violão e se afastou da
porta de Ma Att.
No caminho de volta ao trem, Tommy Tester decidiu encontrar seu amigo, Buckeye. Buckeye
trabalhava para a Madame St. Clair, a rainha da loteria ilegal do Harlem. Tommy tinha que jogar
o número da casa de Ma Att naquela noite. Se desse seu número, teria dinheiro suficiente para
comprar um estojo de violão melhor. Talvez até mesmo comprar o próprio violão.
2
BUCKEYE, O MELHOR AMIGO DE TOMMY, chegou ao Harlem em 1920, quando tinha dezesseis
anos. Aos catorze, saiu da pequena ilha caribenha de Montserrat para trabalhar no Canal do
Panamá, e do Panamá tomou seu rumo para os Estados Unidos, para o Harlem. Chegou
esperando fazer o mesmo trabalho que fazia no canal – construção –, mas logo descobriu o que
Otis Tester já sabia havia muito: pretos não tinham proteção. Buckeye quebrou o tornozelo aos
dezessete e se viu afastado do trabalho por dois meses. Quando estava pronto para voltar, sua
vaga tinha sido preenchida, e, além disso, o tornozelo nunca sarou direito. Não podia ficar em pé
por muitas horas, não podia carregar muito peso sem fazer uma pausa. Logo deparou com
Madame St. Clair e sua famosa loteria. Ela o contratou porque precisava de homens do Caribe
que conhecessem e atraíssem a confiança dos imigrantes recém-chegados das Índias Ocidentais.
Madame St. Clair evoluiu em tempos de mudança, e por conta disso prosperou. Os subornos
regulares para a polícia local também ajudavam. Buckeye conheceu Tommy Tester nesse
ambiente. Tommy tocava em um clube onde Buckeye fazia negócios. Numa noite, Buckeye se
sentou ao lado de Tommy no balcão e perguntou onde ele havia aprendido a cantar tão mal.
Tinha feito aula ou era um dom natural? Rapidamente se tornaram amigos.
Agora, Tommy Tester estava levando seu pai para fora do prédio e caminhando pelo
quarteirão. Tinha voltado para casa do encontro com Robert Suydam, Malone e o detetive
particular, e sentiu a necessidade de dar uma saída à noite. Levou tempo para convencer Otis a
sair, pois ele nunca deixava o apartamento. Era como um cão que procura a escuridão para poder
morrer sozinho, mas Tommy tinha planos diferentes para ele. Ou talvez precisasse demais do pai
para deixar que fosse embora com tanta facilidade.
Buckeye deixou um convite em aberto para Tommy na Sociedade Victoria. Ficava na 137th
Street. A caminhada era só de sete quarteirões, mas, por conta da saúde do pai, levaram meia
hora para chegar.
A Sociedade Victoria consistia em três salas modestas no segundo andar de um prédio de
apartamentos. Era um clube social caribenho. No fim da rua, Tommy e Otis estavam no Harlem
negro; na Sociedade Victoria, entravam nas Índias Ocidentais Britânicas. A bandeira de cada
nação caribenha estava afixada nas paredes do longo corredor. Uma bandeira dos eua muito
maior pendia ao fundo. Na entrada do emaranhado de cômodos, Tommy Tester teve que dar o
nome de Buckeye três vezes. O porteiro permaneceu imóvel até Tommy dar o nome de batismo
de Buckeye, George Hurley. Funcionou como um feitiço.
Tommy e Otis seguiram o porteiro a uma distância. Uma das salas da sociedade era reservada
para homens jogarem carteado ou dominó; a segunda tinha homens recostados em poltronas,
fumando e ouvindo música tocada em volume respeitável; e a terceira tinha mesas de carteado
com toalhas e cadeiras para refeições. Buckeye convidara Tommy para ir à Sociedade Victoria
muitas vezes ao ano desde que travaram amizade, mas Tommy nunca tinha entrado ali até aquele
momento. Sentiu uma pontada, como um tapa na cara. Aquele lugar era o que havia descrito para
Ma Att? A epítome de um covil de crime e pecado? O lugar ao qual os piores criminosos do
Harlem tinham medo de ir?
Ele imaginou que soubesse que tipo de lugar seria. Buckeye cuidava das loterias para a maioria
das gângsteres famosas da cidade de Nova York, então por que a Sociedade Victoria não seria
como aqueles lendários esconderijos do ópio? Ou Tommy simplesmente supôs coisas terríveis
sobre aquela onda de imigrantes das Índias Ocidentais? Os pretos norte-americanos do Harlem
levantavam fofocas sobre os recém-chegados de um jeito horrível. E agora ele tinha achado a
Sociedade Victoria mais parecida com um salão de chá britânico. Ficou um tanto decepcionado.
Levara o pai até ali porque queria lhe mostrar uma noite escandalosa. Tinha ouvido falar de
mulheres dançando quase sem roupa, tão próximas que praticamente se sentavam no colo. Estar
ali dentro, ver aquele lugar de verdade, era como descobrir que existia outro mundo dentro – ou
paralelo – do mundo que sempre conhecera. Pior, durante todo aquele tempo tinha sido
ignorante demais para percebê-lo. A ideia o perturbava como um nervo pinçado.
Tommy e o pai sentaram-se, e o homem mais velho suspirou fundo. Otis passou um bom
tempo ajustando-se à cadeira para minimizar a dor nas costas. Movia-se como um ancião. Otis
Tester tinha 41 anos de idade.
Uma mulher magra veio até a mesa oferecer o jantar que tinha feito em sua cozinha e trouxera
para vender. Era de Trinidad. Eram pratos feitos, e ela os empurrava pela sala de jantar em um
carrinho. Saheena, abacaxi cozido e torta de macarrão. Uma tigela de sopa de osso de vaca. Copos
altos de suco de maracujá. A refeição completa, para os dois homens, por um dólar. Tommy
pagou.
— Não sei o que é essa confusão toda — disse Otis, observando o prato à sua frente como se o
objeto fosse atacá-lo. — Por que não vamos lá no Bo’s?
Tommy se flagrou observando a mulher trinitina porque ela lembrava sua mãe. Aquela
compleição magra e o pé chato. Irene Tester, falecida há quatro anos. As pessoas que a
conheciam bem costumavam chamá-la de Michigan, porque ela nunca parava de falar sobre o
lugar de onde seus pais tinham vindo. Teve um colapso em um ônibus, morreu entre estranhos
aos 37 anos. A vida como doméstica a desgastou tanto quanto a construção fez com Otis.
Tommy olhou para seu pai, imaginando se ele também estava pensando que a trinitina parecia
Irene, mas o velho apenas encarava os pratos, assombrado.
— Ora essa — disse Tommy. — Deve ter algo aqui de que o senhor vá gostar.
Otis observou a mesa, procurando algo que reconhecesse. Ele ergueu um garfo e cutucou a
torta de macarrão.
— Isso aqui é só queijo e macarrão, não é?
Tommy Tester afundou garfo e faca em sua porção. Levou-a à boca e mastigou. Depois de
engolir, fez que sim com a cabeça, mas o pai ficou cutucando o prato de qualquer forma, como se
não confiasse no filho. Deixou o garfo de lado, sem comer.
— Agora, quanto você disse que o branco vai te pagar?
— Quatrocentos dólares.
— Tudo isso só para tocar na festa dele? — perguntou Otis. Pegou o copo de suco de
maracujá, cheirou, deixou o copo de lado. — Tudo isso para você tocar na festa dele?
Tommy estava mastigando um pouco do cozido de abacaxi. Era doce, mas o gosto do sumo
de limão e da pimenta forte veio logo depois. Ele engoliu o suco para resfriar a garganta.
— Foi o que ele disse.
Otis ergueu as mãos e as manteve separadas no ar o máximo que pôde.
— Essa é a distância entre o que um homem branco diz a um preto e o que ele realmente quer
dizer.
Tommy sabia disso, claro. Já não tinha vivido vinte anos nos Estados Unidos? Aquele
esquema todo – entretenimento – baseava-se na ideia de que as pessoas tinham motivos velados
para contratá-lo.
Quando se vestia naquelas roupas esfarrapadas e se fazia de homem do blues ou do jazz ou
mesmo de preto dócil, sabia que o papel lhe conferia um tipo de poder. Dê às pessoas o que elas
esperam e pode conseguir delas tudo o que precisa. Elas não percebem que você as sugou até
estarem secas. Ma Att basicamente lhe pagou para receber um item inútil, não foi? Se tivesse
feito o papel de quase-gângster para receber, e daí? Ele assumia os papéis que precisava para
encher sua conta no banco. Mas tudo isso parecia criminoso para Otis. Ou degradante. O
homem tinha uma opinião descomunal sobre dignidade. Nobreza não pagava tão bem a ponto de
fazer Tommy se dar ao trabalho de tê-la.
— Vou ter cuidado, pai.
Otis Tester observou o filho em silêncio. O restante da sala de jantar ficou cada vez mais
barulhento à medida que as mesas se enchiam, mas uma espécie de quietude, uma bolha
reservada, cercava a mesa dos dois. Otis era pai de um rapaz negro de vinte anos que explicava
alegremente que sairia para Flatbush, no meio da noite, para a casa de um branco. Era a mesma
coisa que dizer ao pai que planejava brigar com um urso.
— Quando saí da cidade de Oklahoma — disse Otis Tester —, percorri as ferrovias. Fiquei
desempregado até chegar aqui, no leste.
Não era a primeira, nem a quingentésima vez, que Tommy Tester ouvia aquela história.
Tommy comeu para não expressar sua decepção. Otis não tinha ouvido o detalhe mais
importante? Quatrocentos dólares.
— Evitei cruzar o Arkansas — continuou Otis. — Fosse você preto, branco ou índio, eles
eram bem duros com a vagabundagem em Arkansas. Tinham trabalhos forçados, sabe? Fui para o
leste de St. Louis, até Evansville. Me tiraram do trem uma vez em Decatur. Eu era muito jovem,
então tinha a necessidade de ver muito mais do que meu destino final.
Por fim, Otis Tester comeu a torta de macarrão, como se a contação de história tivesse
aguçado seu apetite. Ele comeu uma porção, mastigou com cuidado, mas depois de engolir a
primeira, deu mais duas garfadas.
— Como eu disse, eles me tiraram do trem em Decatur. E foi quando eu descobri que
precisava usar minha cabeça. — Agora, ele arriscou a bebida. O suco de maracujá claramente o
agradou. Ele bebericou devagar, em seguida deixou o copo de lado. — Tive que usar isso aqui.
Otis Tester desabotoou os dois botões da camisa bem ali na sala de jantar. Tommy ficou
tenso, sentindo-se como um menino de cinco anos cujo pai estava prestes a envergonhá-lo em
público. Mas antes que pudesse repreender o pai, ou estender a mão e tentar cobrir a pele exposta
de Otis, o velho puxou uma coisa do pescoço. Pendia ali, de um cordão rústico. Ele o tirou e
envolveu com a mão calosa enquanto voltava a abotoar a camisa de novo. Tommy inclinou-se
para frente para ver o que o pai segurava. Otis estendeu a mão e a abriu.
Uma navalha jazia na palma de sua mão.
— Carreguei isso comigo o tempo todo que viajei de trem — disse Otis. — Nenhum branco,
preto ou índio ia se engraçar comigo.
Ele bateu uma ponta da navalha na mesa, alto.
— Em Decatur, fiz algumas pessoas entenderem isso — disse Otis.
Tommy olhava da navalha para o pai. Durante toda a vida ele soube que o pai e a mãe eram os
pilares que seguravam o teto do mundo de Tommy de forma sólida e impassível. Gente confiável,
solidária, mas não especialmente notável. Pensar em Otis agora, de repente, como um
adolescente que se defendeu com aquela arma… aquele passado abria mais um mundo, uma nova
dimensão, que Tommy tinha acabado de conhecer. De novo, a pinçada, a dor de uma revelação
dessas.
Tommy Tester pegou a navalha da mão do pai. Quando o fez, percebeu que os dedos grossos
do homem tremiam.
— Você é adulto e não posso te impedir de fazer suas coisas — continuou Otis. — Eu nem ia
querer fazer uma coisa dessas. Mas você não vai até a casa desse branco desarmado ou alheio. Se
qualquer coisa der errado, você sai de lá e volta para mim.
Tommy Tester assentiu com a cabeça, mas não disse palavra. Simplesmente não conseguia.
— Não me importo se vai ter que derramar sangue para isso, mas vai sair daquela casa no fim
do serviço e voltar para mim.
Otis quis soar sério, determinado, exigente, mas Tommy percebeu que nunca tinha visto seu
pai tão assustado assim antes.
— Você me ouviu? — perguntou Otis.
— Sim, senhor — finalmente Tommy respondeu.
Comeram em silêncio e, quando a comida acabou, foram embora da Sociedade Victoria.
Desceram um lance de escadas e voltaram ao Harlem. Em três noites, Tommy visitaria a mansão
de Robert Suydam. Entendia a jornada agora como uma viagem a outro universo. Não era
surpresa que o pai sentisse medo; o filho estava prestes a ir bem longe.
— Por que trouxe essa navalha com o senhor? — perguntou Tommy. — Nunca soube que o
senhor tinha isso.
— Você me disse que estava me trazendo para essa maldita Sociedade Victoria — disse Otis,
quase rindo. — Pensei que ia precisar dela afiada se esses caribenhos ficassem loucos. Mas acho
que você e eu somos os pretos mais perigosos do lugar!
Tommy tomou o braço do pai para ajudar o velhinho a andar. A outra mão estava no bolso
das calças, segurando a arma.
— Se vai tocar nessa festa — disse Otis Tester enquanto caminhavam com desajeito para casa
—, tem mais uma música que precisa aprender. É velha, mas tem uma coisa nela. Sabe o que
estou tentando dizer? A navalha é só um jeito que quero armar você. Essa canção é outra. Sua
mãe me ensinou. Canto de conjuração. Vamos praticar nos próximos três dias até você aprender.
— Certo, pai — disse Tommy Tester.
Tarde da noite no Harlem em uma sexta-feira, e as ruas mais cheias que na hora de pico.
Tommy Tester alegrou-se com a proximidade de seu pai e de todos aqueles corpos nas calçadas,
nos carros, dentro dos ônibus, encarapitados nos alpendres. O tráfego e as vozes humanas
mesclavam-se ao zumbido tremendo que parecia estimular Tommy e Otis, uma canção que os
acompanhava – e os levava – até em casa.
4
TRÊS DIAS SE PASSARAM, aquela era a terceira noite, e Tommy Tester saiu da segurança do
Harlem. Fez o mesmo trajeto até Flatbush que fizera quando conheceu Robert Suydam, mas
agora a jornada parecia mais ameaçadora, porque o sol estava se pondo. Se ele havia se destacado
entre os passageiros do trem no início da manhã, naquele momento era como se estivesse
carregando uma estrela em uma das mãos em vez do violão. Homens brancos perguntaram aonde
exatamente ele estava indo quatro vezes. E não eram ofertas de ajuda para chegar até o local. Se
não tivesse a localização precisa – a mansão de Robert Suydam, na Martense Street –, acreditava
que teria sido jogado para fora do trem. Ou embaixo dele.
Quando chegou à estação, foi seguido por três jovens que falavam alto. A conversa barulhenta
preocupou Tommy. Ele se esforçou bastante para não a ouvir, porque sabia que estavam tentando
assustá-lo. Se gritasse com eles, viraria briga, aquele seria o fim da noite, não ganharia dinheiro,
apenas uma viagem até a cadeia. As ruas de Flatbush estavam ficando menos cheias, mais
residenciais, e os jovens apressaram o passo. Tommy usava a navalha do pai ao redor do pescoço
como um amuleto, mas mesmo ela não ajudaria contra três homens.
Quando Tommy chegou ao bosque que cercava a casa de Suydam, os três jovens estavam tão
próximos que Tommy sentia seu bafo no cangote. Um deles caminhava tão perto que os dedos do
pé chutavam repetidamente o fundo do estojo de violão de Tommy. Ele via a mansão agora, com
seus dois andares e a luz fraca que brilhava dentro do bosque. Se estivesse sozinho, teria achado
aquela visão assustadora, mas por causa de sua escolta, Tommy correu naquela direção. Cruzou a
propriedade de Robert Suydam; se chegasse até a porta, talvez o deixassem entrar antes que os
garotos brancos o golpeassem. Só percebeu que estava correndo quando se viu sem fôlego.
Assim que olhou para trás, os três rapazes não estavam mais no seu encalço. Ficaram na linha
da cerca da propriedade. Por mais estranho que fosse, não estavam mais olhando para ele. Em
vez disso, estavam olhando a casa de Suydam. Encolheram-se de pavor diante dela. Tommy
finalmente viu que eram garotos mais jovens que ele. Talvez tivessem quinze ou dezesseis anos.
Crianças. Examinando a casa de Suydam com medo.
O alívio percorreu o corpo de Tommy dos pés à cabeça. Ele se agachou, procurando uma
pedra. Encontrou uma do tamanho de uma bola de beisebol e a sopesou na palma da mão.
Deixou o violão no chão. Queria acertar o maior dos três rapazes. Ainda não tinham voltado a
olhar para ele. Era como se a casa os tivesse hipnotizado. Não havia momento melhor para mirar.
Desejou que a pedra arrancasse um olho deles.
Então, a porta da mansão se abriu. Mal se ouviu um rangido por trás de Tommy, mas foi
suficiente para fazer os três rapazes terem um sobressalto. Saíram em disparada, como gatinhos,
esquivando-se e miando. De trás de Tommy veio um grunhido quando alguém saiu pela porta da
frente e pisou nas tábuas de assoalho do grande alpendre da casa.
— Se cegar um deles, vão chamar a polícia.
Aquelas palavras não foram ditas com seriedade, mas quase com um tom divertido. Tommy
Tester virou-se para ver Robert Suydam descendo os degraus, uma das mãos estendida. Tommy
entregou-lhe a pedra, e Robert Suydam a sopesou como Tommy fizera. Em vez de jogá-la na
terra, enfiou a pedra no bolso do casaco. Agora, olhou para Tommy com expectativa. O
momento estendeu-se. Suydam esperou. Tommy levou um minuto para se lembrar da palavra
que foi instruído a usar.
— Asmodeus — disse Tommy por fim, baixinho.
Robert Suydam meneou a cabeça, virou-se e subiu os degraus do alpendre. Quando entrou na
mansão, deixou a porta aberta para Tommy segui-lo.
5
O MANTO DE ÁRVORES ao redor da mansão conseguia esconder bem sua idade, sua falta de
firmeza, mas por dentro não havia cobertura. As tábuas do assoalho eram velhas e mal
preservadas, pareciam lascadas e ressequidas. Quando Tommy entrou na casa, o corredor estava
iluminado por uma única lâmpada elétrica, e ele viu que era assim em todos os três cômodos do
primeiro andar, o que fazia com que as laterais de cada sala ficassem às sombras, e isso dificultou
para Tommy realmente compreender as dimensões de cada espaço. Como se o interior da
mansão fosse maior que seu exterior. O cheiro de idade, que vinha de um tempo indiscernível,
reinava pela casa toda, um odor bolorento, como se os ventos do presente nunca houvessem
soprado por ali.
Robert Suydam levou Tommy pelo longo corredor do primeiro andar, e Tommy agarrou a
alça do estojo de violão como se fosse a linha que o levaria de volta até a porta da frente, pelos
degraus, para fora do jardim, por Flatbush, de volta ao trem e até o Harlem, ao lado de seu pai.
Enquanto caminhavam, o velho quase trotando, Tommy sentiu o estojo de violão sacudir como
havia feito quando os garotos brancos o chutaram enquanto o seguiam. Aquilo trazia a suspeita
de que outra pessoa – outra coisa – o seguia naquele momento. Por duas vezes o estojo quase
voou de sua mão, mas Tommy não conseguia se virar para olhar a escuridão do longo corredor.
Em vez disso, apenas apertou o passo.
Suydam abriu um par de portas e entrou em um cômodo tão brilhante que Tommy estreitou
os olhos quando o seguiu. Assim que entrou, Suydam fechou uma das portas, depois a outra.
Pouco antes de fechar a segunda, ele espreitou o corredor. Tommy sentiu nitidamente que havia
outra presença vindo atrás dele. Em seguida, Suydam realmente falou – uma única palavra
murmurada, um comando? – antes de fechar a porta e trancá-la.
Somente então Tommy pôde se virar e observar aquele cômodo de pé-direito alto. Era do
tamanho do apartamento inteiro que Tommy dividia com Otis. Talvez fosse maior. Tinha três
paredes enormes com estantes embutidas, cada uma cheia de livros. Além dos livros nas estantes,
havia outros espalhados no chão, torres de tomos empilhados que chegavam aos ombros de
Tommy.
— Li todos eles — comentou Suydam. — E ainda assim há tanto que preciso aprender.
Tommy pôs o estojo do violão em pé ao lado como uma carabina.
— Eu diria que o senhor merece um descanso.
Suydam balançou a cabeça de leve.
— Se houvesse tempo para descansar.
Suydam foi até o fim da sala, na direção das janelas altas que cobriam uma parede. Uma única
grande poltrona estava ao lado do peitoril. Suydam sentou-se nela. Seus pés ficaram pendurados,
sem tocar o chão. Uma visão estranha, porque não era um homem baixo. A poltrona também não
parecia grande demais. Os sapatos do homem balançavam a uns dez centímetros das tábuas do
assoalho, e Tommy os observava, confuso pela incongruência. Então, como se Suydam tivesse
percebido o interesse de Tommy, os pés tocaram o chão. Mas Suydam não moveu o restante do
corpo. Em vez disso, foi como se o velho tivesse, por algum poder, feito as pernas crescerem pela
sua vontade. Foi visualmente tão estranho que Tommy se sentiu nauseado. Desviou os olhos,
voltou a olhar e, sem dúvida, os pés de Suydam estavam plantados no chão. O velho acenou com
a mão para chamar a atenção de Tommy.
— Não vai tocar agora? — perguntou ele. Havia um nervosismo em seu tom, como se tentasse
fazer a mente de Tommy prestar atenção em outra coisa que não na estranheza, na mudança de
forma que o rapaz jurava ter visto.
Tommy olhou ao redor da biblioteca. Os únicos convidados pareciam ser os livros.
— A festa é amanhã à noite — comentou Suydam. — Mas quis encontrar você hoje primeiro.
Não achou que eu pagaria aquele tanto de dinheiro para você tocar apenas uma noite, achou?
— Não, senhor — disse Tommy. — Como o senhor quiser. — Ele abriu o estojo do violão e
tirou o instrumento.
Na verdade, ele esperava receber para tocar por uma noite, porque foi exatamente o que o
homem havia prometido três dias antes. Mas a realidade de um homem rico é recriada a seu bel-
prazer.
Suydam enfiou a mão no bolso do casaco e revelou uma carteira de dinheiro tão gorda que
abafou todo o orgulho de Tommy Tester. Suydam deixou-a no peitoril da janela, em seguida
sorriu para Tommy. Tommy dedilhou o violão e tocou conforme esperado. O velho encarava as
janelas.
Felizmente, o homem queria falar mais do que queria que Tommy tocasse. Afinal, Tommy
tinha apenas quatro canções em seu repertório, incluindo aquela que seu pai lhe ensinara pouco
tempo antes. Depois de tocar por quase trinta minutos, os dedos e ombros, a lombar de Tommy,
tudo doía horrivelmente. Ele diminuiu o ritmo, dedilhou de leve, até ficar apenas cantarolando na
antiga e cavernosa biblioteca. Por fim, Suydam – que não havia tirado os olhos das grandes
janelas – pigarreou e falou.
— E eu acredito que um saber fatídico ainda não está morto — disse ele.
Suydam não estava falando com Tommy, apenas recitando algo que havia lembrado. Mas
Tommy, levemente perturbado pela estranheza daquelas palavras, ainda assim respondeu.
— Perdão, senhor? — perguntou ele e, no mesmo instante, se arrependeu.
Robert Suydam virou as costas para as janelas com irritação e encarou Tommy como se tivesse
flagrado uma invasão em sua casa. Normalmente, quando um homem branco olhava Tommy
daquele jeito, ele tinha uma série de defesas úteis. Olhar para baixo, como se humilhado, com
frequência funcionava; um sorriso também, às vezes. Tommy tentou este último.
— Ora, por que você está rindo? — questionou Suydam.
Uma terceira opção, considerada em uma situação de pânico, era pegar a navalha de seu pai e
cortar a garganta do velho, pegar o dinheiro e fugir. Mas naquele momento, já depois das onze da
noite, Tommy não conseguia se imaginar indo até a estação de trem. Um preto caminhando por
aquela vizinhança branca quase perto da meia-noite? Seria como Satanás caminhando pelo
Paraíso. E se o encontrassem com aquele bolo de dinheiro, bem, teria sorte se a polícia fosse
chamada. Talvez apenas o espancassem, depois o levassem à cadeia. Muito pior seria se ele fosse
flagrado por uma turba. Então, nada de navalha. Ele estava, em princípio, preso ali até de manhã.
— Te fiz uma pergunta — disse Suydam. — E quando eu falo, espero uma resposta.
Como não restavam mais subterfúgios, Tommy Tester ergueu a cabeça e devolveu o olhar de
Suydam. Talvez fosse hora de tentar a sinceridade.
— Estou confuso — disse ele.
— Claro que está — falou Suydam. — O véu da ignorância tem sido posto sobre seu rosto
desde o nascimento. Devo retirá-lo?
Tommy apertou os lábios, tentando decidir pela melhor resposta. Até então a sinceridade
havia funcionado. Ao menos o velho não o encarava com raiva.
— O dinheiro é seu — respondeu Tommy.
Robert Suydam bateu uma palma.
— Sabe por que contratei você? Por que fui atraído até você três dias atrás? Eu consegui
enxergar você. E não estou falando dessa farsa. — Suydam estendeu a mão e apontou as botas
gastas de propósito, o terno puído e o violão. — Vi que você compreende a ilusão. E que você, do
seu jeito, estava lançando um feitiço poderoso. Eu o admirei. Senti uma ligação com você, acho.
Porque eu, também, entendo a ilusão.
Suydam ergueu-se da poltrona e encarou a parede de janelas altas. O velho bateu de leve em
um dos vidros. Por causa de todas as luzes dentro da biblioteca, era impossível ver a noite lá fora.
As janelas tinham se transformado em uma espécie de tela que refletia Tommy, Suydam e a
extensa biblioteca. Suydam acenou para Tommy se aproximar e, enquanto caminhava, Tommy
pensou ter visto movimentos atrás dele. A imagem refletida das portas duplas da biblioteca
curvou-se duas vezes, como se alguém estivesse no corredor, tentando empurrá-la até abrir.
Tommy virou-se rapidamente, mas as portas não estavam se movendo agora. Tommy ainda não
conseguia se virar de volta a Suydam.
— Seu povo — começou a falar Robert Suydam. — Seu povo é forçado a viver nos labirintos
de uma sordidez híbrida. É tudo som e corrupção e putrescência espiritual.
Foram aquelas palavras que conseguiram tirar a atenção de Tommy Tester da porta.
Ele se virou para Robert Suydam, esperando encontrar o homem com olhar de desprezo, mas
ele estava com uma das mãos sobre a barriga, batendo nela suavemente. Ele ergueu os olhos à
direita, como um homem que tentava se lembrar de um discurso.
— Os policiais perderam a esperança de ter ordem ou melhorias e buscam, em vez disso,
erguer barreiras que protejam o mundo lá fora do contágio — continuou ele.
Tommy segurou o braço do violão com força.
— O senhor está falando do Harlem?
O encanto quebrou-se.
— Quê? — perguntou Suydam. — Ah, maldito! Por que interrompeu?
— Estou tentando entender de que lugar desgraçado o senhor está falando. Não parece com
nenhum lugar onde eu já vivi.
Nada de aplausos para a sinceridade dessa vez.
— Cuidado com seu tom — retrucou Suydam. Ele cobriu o dinheiro com uma das mãos. —
Você não recebeu ainda.
Esse filho da puta, pensou Tommy Tester e deu um passo para mais perto do velho.
Mesmo Robert Suydam, com toda a sua autoridade, sentiu uma mudança na sala. Por um
momento pareceu um homem que havia percebido que um meteorito estava prestes a se chocar
com seu planeta. Ergueu a mão aberta em um gesto de paz.
— Amanhã à noite você vai tocar na minha festa — disse Suydam. — E os convidados serão
homens como você. Negros do Harlem, sírios e espanhóis de Red Hook, chineses e italianos de
Five Points, todos estarão aqui a meu convite. Todos ouvirão o que agora estou dizendo a você.
O temperamento de Tommy resfriou-se com a curiosidade. A casa de um homem branco
lotada de pretos e sírios e de todo o resto. Suydam talvez fosse o trabalho mais estranho com o
qual havia deparado até agora.
— Então, por que estou tendo essa prévia? — perguntou Tommy.
— Preciso praticar minhas palavras — respondeu Suydam. — Para ver como elas afetam um
homem do tipo adequado. Também admito que você foi conveniente — disse Suydam. —
Precisava que aqueles policiais me dessem um pouco de espaço. O tempo que passaram com você
foi suficiente para eu escapar. Agradeço por isso.
— O senhor sabia que estava sendo seguido?
— Minha família tem dúvidas sobre minha sanidade… é o que dizem. Mais provavelmente
tem dúvidas sobre meu testamento e para quem, exatamente, deixarei esta casa e tudo que há
nela. Qual deles vai herdar a terra na qual isso tudo está. Mas eles não veem desse jeito. Ninguém
jamais se vê como vilão, não é? Mesmo os monstros têm a si próprios em alta conta.
“Minha família tem certeza de que estou em perigo. Fizeram a polícia acreditar nisso também.
Contrataram aquele detetive particular também, o brutamontes. Seu nome é senhor Howard. O
senhor Howard e o detetive Malone estão coletando provas sobre minha inferioridade mental.
Para o meu próprio bem, claro!”
Tommy deu uma risada.
— Falar com um preto na rua não vai ajudar a parecer são.
Suydam tirou a mão do dinheiro e virou-se totalmente na direção da janela. Recostou-se com
as duas mãos no peitoril.
— Sei que sou bem-nascido. Digo, o dinheiro antigo da minha família, e sua postura na
história, deveriam me oferecer todo o conforto de que preciso. Mas o conforto pode ser uma
jaula, sabe. Certamente pode atrofiar a mente. O tempo gasto com minha família, com meus
antigos amigos endinheirados, começou a assemelhar-se a um banho em mingau, como se eu me
afogasse em papinha de criança.
“Então, procurei outros, totalmente diferentes de mim, e quando falaram da sabedoria secreta,
eu ouvi. O que homens como eu ignorariam como superstição ou, pior, como maldade pura, eu
aprendi a adorar. Quanto mais eu lia, quanto mais ouvia, mais certo ficava de que uma
apresentação grande e secreta estava se passando em toda a minha vida, em toda a nossa vida,
mas a massa que nós somos era ignorante demais, ou assustadiça demais para olhar adiante e
assistir. Porque assistir seria o mesmo que compreender que a peça não está sendo representada
para nós. Saber que simplesmente não valemos de nada para os atores.”
Nesse momento, ele tocou a janela, batendo de leve nela, e o reflexo pareceu – por um
instante – ondular, como se estivessem encarando uma poça d’água e não vidros.
— Há um Rei que dorme no fundo do oceano.
Quando Suydam disse aquilo – contra todas as possibilidades – os vidros da janela assumiram
a cor e, aparentemente, a profundidade do mar. Era como se Tommy Tester e Robert Suydam,
em pé naquela sala, naquela mansão, naquela cidade, também estivessem espreitando águas
distantes em outro lugar do globo. O violão caiu da mão de Tommy quando a imagem apareceu.
O baque surdo produzido, a nota amarga que tocou uma vez, mal foram registrados. Uma
corrente fria pareceu entrar não apenas na sala, mas também nos ossos de Tommy.
Suydam disse:
— O retorno do Rei Adormecido significaria o fim da calamidade de seu povo. O fim de toda
a desgraça e imundice de um bilhão de vidas. Quando ele despertar, vai desaparecer com todas as
tolices da humanidade. E é apenas um entre muitos. São os Grandes Anciões. Seus passos farão
montanhas tombarem. Um olhar fará dez milhões de corpos tombarem, mortos. Mas imagine a
fortuna daqueles de nós que tiverem permissão para sobreviver? A recompensa para aqueles de
nós que ajudarem o Rei Adormecido a despertar?
Suydam bateu de novo no vidro e o oceano – realmente Tommy estava vendo um mar vasto e
distante nas janelas – rodopiou, elevou-se e, de suas profundezas, uma forma, gigantesca demais
para ser real, moveu-se. A garganta de Tommy apertou-se. Não queria ver aquilo. Pensou que
poderia estilhaçar a parede de janelas com as próprias mãos se aquela coisa nas profundezas do
mar ficasse visível, nítida.
Mas então a imagem mudou, a perspectiva se ergueu, deixando o mar bem lá embaixo.
Mas então a imagem mudou, a perspectiva se ergueu, deixando o mar bem lá embaixo.
Deixaram os continentes para trás. Era possível? Saíram do mundo. Elevaram-se pelo céu
noturno. Realmente parecia que os dois homens em uma casa de Flatbush estavam pairando no
espaço distante. Tommy Tester agarrou-se ao caixilho da janela para se equilibrar.
— Daqui talvez você entenda — falou Robert Suydam em voz baixa.
Mas Tommy não entendia, apenas queria estar em casa, desesperadamente. Soltou o caixilho,
virou-se, pegou seu violão e correu pela biblioteca, na direção das portas trancadas da biblioteca.
Robert Suydam gritou com ele. Palavras indecifráveis. Tommy trombou em uma pilha de livros
no chão, fazendo-os voar. Queria estar em casa com seu pai a qualquer custo. Se encarasse aquela
janela por mais um segundo, algo terrível aconteceria com sua alma. Por mais que confiasse
muito em seus esquemas, compreendeu que Robert Suydam estava jogando com uma força mais
potente. Estendeu a mão para a porta dupla da biblioteca e as abriu.
E Malone, o oficial de polícia, estava em pé no corredor.
Malone e seu revólver apontado para frente.
— Quê? — perguntou Tommy. — Quê?
Tommy agarrou a maçaneta. Na outra mão, segurava o violão. Esperou pela morte assim que
Malone apertasse o gatilho. Era ele quem estava lá atrás quando havia entrado na casa de
Suydam? Era Malone que estava chutando seu violão?
Por outro lado, Tommy percebeu algo de estranho em Malone, ou ao redor de Malone.
Enquanto Tommy estava na biblioteca da casa de Robert Suydam, Malone estava no que parecia
o saguão de um prédio de apartamentos e, com muita certeza, não no corredor da mansão de
Robert Suydam. Que diabos estava acontecendo? Era como se os dois locais – a mansão e o
saguão do edifício – tivessem sido costurados por um alfaiate descuidado, Tommy Tester e o
detetive Malone encarando-se por conta de uma junção ruim no tecido da realidade. E, na
verdade, os dois homens pareciam assombrados. Em um momento, Robert Suydam – sem fôlego
– estendeu a mão para as portas da biblioteca e as fechou de uma vez. Em seguida, deu um tapa
no rosto de Tommy Tester.
— O que você viu? — gritou Suydam. — Me diga!
— Não entendo — disse Tommy em voz baixa.
— Era Ele? — berrou Suydam. Ele enfiou a mão no bolso do casaco, tirou a pedra que havia
tirado de Tommy. Ergueu-a com a intenção de rachar o crânio de Tommy Tester. — O Rei viu
você?
— O policial — disse Tommy, quase sem fôlego. — O magrelo.
Suydam segurou a pedra no alto por mais dois segundos.
— Malone? — Em seguida, abaixou a pedra. — Apenas Malone — disse ele em voz baixa a si
mesmo.
— Não entendo aonde fui parar — insistiu Tommy.
Suydam respirou fundo, engolindo em seco.
— Não podemos sair desta sala ainda — explicou ele. — Não até de manhã.
Se Tommy parecia perplexo era porque estava perplexo.
— Se tentássemos abrir aquela porta de novo, os resultados seriam ainda mais estranhos do
que o que você acabou de ver. E potencialmente mais perigosos.
Tommy olhou de novo para as portas. Sua testa ficou gelada.
— Malone estava em pé no corredor, mas não era seu corredor lá fora.
— Eu acredito em você — disse Suydam. — Mas acredite em mim, poderia ter sido pior.
Você poderia ter aberto aquela porta e encontrado…
Suydam pôs-se entre Tommy e as portas e ficou lá pelo resto da noite.
6
CHARLES THOMAS TESTER saiu da casa de Robert Suydam às sete horas da manhã seguinte.
Quando o sol nasceu, puderam espreitar pelas janelas e ver as ruas de Flatbush de novo, quando
Suydam disse que era seguro abrir as portas da biblioteca. Antes disso, durante toda a noite,
Suydam explicou, sua casa estivera no Exterior. O termo, a ideia, parecia um lugar-comum para o
velho, mas Tester teve dificuldades terríveis para compreender. A mansão estava no Exterior?
Mas claro que estava. Onde mais uma mansão poderia estar? No entanto, não era o que o velho
queria dizer. Finalmente, Suydam descreveu dessa forma:
— Imagine um pedaço de esparadrapo com cola adesiva de um lado. Então, uma pequena
bola de tecido cai no meio desse esparadrapo. Minha biblioteca é essa bolinha de tecido que
chamamos de tempo e espaço normais. Ela está afixada em um local, um plano. Imagine, por
outro lado, você fechando o punho até amassar a fita adesiva. Aquela bola de tecido agora toca
não apenas uma, mas muitas superfícies. Dessa forma, minha biblioteca viaja além das percepções
humanas, das limitações humanas de espaço, e até de tempo. Essas são restrições sem sentido em
uma escala cósmica. Nesta noite viajamos bem longe, embora parecêssemos estar o tempo todo
em Flatbush. Não estávamos. Estávamos no Exterior, povoado por sombras.
“Um dos lugares aos quais viajamos foi o limiar do Rei Adormecido. Seu local de descanso no
fundo do mar. Ficamos tão próximos que, com um pouco de esforço, poderíamos até ter
estendido a mão e tocado seu rosto, visto seus grandes olhos. Mas, na noite passada, não era o
momento adequado. Não muito. Quando você correu até as portas da biblioteca e as abriu, temi
que meus anos de planejamento tivessem ido por água abaixo por causa de um preto em pânico!
Mas tivemos um pouco de sorte. Tudo que você viu foi o cadavérico detetive Malone.”
Houve muito mais dessas explicações. Por horas. Suydam recitando nomes, ou melhor,
entidades, de forma tão tranquila quanto os pastores que recheavam certas esquinas do Harlem.
Mas Tommy se concentrou na ideia do fiapo da bolinha de tecido perdida dentro do esparadrapo
amassado. Essa imagem concreta facilitava compreender o impossível. Não tinha visto o oceano
pelas janelas? Não tinha testemunhado o planeta do ponto de vista das estrelas? Não tinha visto
Malone do outro lado das portas duplas, parecendo desesperado e confuso?
Durante toda a noite, Robert Suydam voltou ao Rei Adormecido. Como o planeta gira em
torno do sol. O Rei Adormecido. Em algum momento, Suydam lhe deu outro nome, seu
verdadeiro nome, mas Tommy Tester não conseguia lembrá-lo. Ou talvez sua mente tenha
escolhido esquecer.
Quando o sol nasceu, Robert Suydam concluiu com uma pérola de sabedoria. Pegou
novamente a pedra do bolso. Dessa vez, apertou a pedra na palma da mão de Tommy.
— Quanto essa pedra importava para você, para sua existência, antes de você pegá-la para usar
naqueles garotos que seguiram você? Isso é quanto as briguinhas tolas da humanidade importam
ao Rei Adormecido. Quando ele voltar, todas as insignificantes maldades humanas, como aquelas
que afligiram seu povo, serão varridas por sua mão poderosa. Não é maravilhoso? E em que se
transformarão aqueles de nós que sobrarem? Aqueles que o ajudaram. Pense nas recompensas.
Sei que você é um homem que acredita nessas coisas, e é esperto o bastante para garantir que
venham até você.
Então, Suydam entregou duzentos dólares e levou Tester para fora de sua casa. Tommy
permaneceu no alpendre por um bom tempo depois de Robert Suydam ter fechado a porta. Uma
manhã clara em Flatbush, foi o que Tommy viu, mas teve dificuldades para descer os degraus e
andar pelo caminho ladeado por árvores até a calçada. Ficou esperando que, assim que pusesse
um pé fora do alpendre, cairia direto no oceano, onde o Rei Adormecido aguardava. E por que
não poderia acontecer? Foi o que o paralisou. Se todo o resto poderia ser verdade, então por que
isso não poderia?
Por fim, a sensação das notas enroladas nas mãos o devolveu ao alpendre. Olhou para o
dinheiro e disse a si mesmo que bastava. Duzentos dólares sustentariam Tommy e Otis por quase
meio ano. Retornaria ao Harlem agora para nunca mais voltar ali. Robert Suydam nunca o
encontraria, pois ele nunca dissera ao velho onde morava. Fosse o que fosse que Suydam
planejasse significava menos que nada para ele. Que o velho ficasse com sua magia. Otis e
Tommy passariam a noite na Sociedade Victoria, conversando e comendo bem. Ele voltaria ao
seu pai, conforme prometido. Já bastava. Tommy apertou as notas mais uma vez, em seguida
jogou o rolinho no buraco do violão. Caiu com um baque gratificante. Ele devolveu o violão para
o estojo e enfiou uma das mãos no bolso do casaco. A pedra que Suydam tinha lhe devolvido
estava lá dentro. Em vez de jogar a pedra de volta na terra, Tommy levou-a consigo. No fim das
contas, ele gastaria o dinheiro, mas a pedra serviria como uma lembrança da noite em que esteve
no Exterior.
No trem de volta ao Harlem, Tommy não percebeu ninguém mais e, se eles o notaram, ele
nem atentou. O condutor não veio de conversinha dessa vez. Talvez Tester estivesse estranho.
Um preto em roupas puídas com um violão aos pés e a atenção concentrada em uma pedra nas
mãos. Deve ter parecido débil mental, por isso inofensivo e, assim, invisível.
7
HARLEM. APENAS UMA NOITE LONGE DELE, mas sentiu falta da companhia. Os corpos próximos
dele na rua, garotos correndo entre os carros no trânsito antes de os semáforos virarem, a
caminho da escola e desafiando-se a serem ousados. Quando desceu as escadas da estação, sorriu
pela primeira vez desde que havia saído da mansão de Suydam.
Tommy caminhou na direção de casa, mas percebeu que estava tão faminto que parou
primeiro para comer em um balcão na 141th Street. O momento mais estranho aconteceu quando
teve que pagar e precisou enfiar a mão no buraco do violão para pegar as notas. A mulher do
balcão olhava sem interesse até o rolo de notas aparecer, tão grosso quanto o meio de uma píton
birmanesa. Tommy gostou do jeito que ela lhe olhou depois de ter pago daquele bolo de
dinheiro, melhor ainda quando deixou um dólar inteiro de gorjeta. Robert Suydam podia
realmente fazer um homem como Tommy parecer um príncipe em seu novo mundo? Aquilo não
seria muito incrível? Quando saiu da loja, já havia mudado de ideia quanto a voltar à casa de
Suydam. O velho tinha razão. Tommy Tester gostava de uma boa recompensa.
Às dez da manhã, ele se aproximou de seu quarteirão, a luz do sol beijando cada rosto e
fachada. As ruas não estavam tão tranquilas. Não havia percebido o tráfego quando saiu daquele
balcão, mas agora o fluxo estava mesmo congestionado. As ruas ficavam cada vez mais cheias à
medida que ele se aproximava da 144. Seu quarteirão parecia realmente submerso. Três viaturas
policiais – Ford Modelo T Tudor Sedãs – estavam estacionadas no meio do quarteirão, uma
caminhonete dos serviços de emergência da polícia muito maior atrás deles.
Tester avançou lentamente. As calçadas tão cheias de espectadores que as pessoas enchiam
cada varanda também. A única vez que tinha visto o Harlem tão apinhado foi quando o 369o
Regimento marchou por Manhattan em 1919, depois de voltar da guerra.
No meio do quarteirão, a polícia havia erguido uma barricada. Policiais estavam em pares,
mantendo todos os curiosos para trás. Nesse momento, Tommy viu que estavam bloqueando a
entrada de todos em um prédio específico. Seu prédio. Tommy foi até a ponta da multidão, bem
diante das barricadas, e esperou.
Malone apareceu na entrada do prédio. O sr. Howard ao seu lado. Desceram os degraus no
mesmo ritmo, com o mesmo passo, e por um momento o sr. Howard se tornou a sombra do
detetive Malone. Mais dois policiais, de uniforme, saíram segundos depois e cumprimentaram os
dois homens com apertos de mão.
Em seguida, Malone olhou para frente e encontrou Tommy no mesmo instante, como se
fosse sensível ao cheiro de Tester. Apontou, e os dois patrulheiros correram até a barricada. O
primeiro agarrou o pescoço de Tester, como o sr. Howard tinha feito quando se encontraram pela
primeira vez no Brooklyn, e o outro patrulheiro agarrou outro preto que parecia estar por perto.
Levaram os dois homens ao redor da barricada até Malone.
— Esse aí não — disse Malone apontando para o segundo homem.
O patrulheiro pareceu levemente envergonhado, mas aproveitou para revistar rotineiramente
os bolsos do outro preto. Como não descobriu nada ilegal, empurrou o homem de volta à
multidão. Entre os dois não se trocou palavra. Quando o homem chegou de novo à multidão,
simplesmente se virou, como os outros, para observar o que fariam com Charles Thomas Tester.
— Seu pai está morto — disse Malone.
Aquilo não foi relatado com prazer, tampouco com compaixão. De certa forma, Tester achou
melhor assim. Sem fingir preocupação. Seu pai está morto. Por fora, Tester recebeu a notícia com
grande calma. Por dentro, sentiu o Sol aproximar-se da Terra; chegou perto o bastante para
derreter a maioria dos órgãos internos de Tommy. Um fogo correu por seu corpo, mas ele não
conseguia mostrá-lo. Não conseguia abrir a boca para perguntar o que acontecera com Otis,
porque havia esquecido que tinha uma boca. Ficou lá, tão vazio quanto uma pedra.
— Se você me dissesse que meu pai está morto, eu lhe daria um soco — disse o sr. Howard.
— Mas esse povo realmente não tem as mesmas relações que temos uns com os outros. Foi
cientificamente provado. São como formigas ou abelhas. — O sr. Howard acenou uma mão para
o prédio ao lado deles. — Por isso conseguem viver desse jeito.
Tommy sentiu o peso da pedra no bolso. Seu pai está morto. Ele só precisava pegá-la, tirá-la
rapidamente e espalhar o cérebro desse branco na rua. Seu pai está morto. A certeza de seus
próprios momentos de morte na sequência não lhe causava medo. Seu pai está morto. Ele teria
feito isso naquele instante, mas simplesmente não conseguia se mover.
O sr. Howard observou Tommy por um momento maior, mas como não houve reação, falou
em um tom direto, como se estivesse falando com um júri.
— Eu me aproximei da casa mais ou menos às sete desta manhã — começou o sr. Howard. —
Depois de encontrar o apartamento 53, bati várias vezes. Como não recebi resposta, verifiquei a
porta, e ela estava destrancada. Entrei no apartamento, verificando cada cômodo, até que cheguei
ao quarto dos fundos. Naquele quarto, um preto do sexo masculino foi descoberto apontando
uma carabina. Temendo pela minha vida, usei meu revólver.
Tester não conseguia entender como permanecia em pé. Por que não havia despencado? Por
um momento ele sentiu – ao menos sentiu – sua mente deslizar para fora do crânio. Ele não
estava lá. Ele estava no Exterior. Nem precisava estar na biblioteca de Suydam para fazer a
viagem.
O sr. Howard apontou para o prédio.
— Por causa da orientação do apartamento, o quarto dos fundos dá para um canal de
ventilação, o que deixa o quarto na escuridão. Depois de me defender, foi descoberto que o
agressor não estava portando uma carabina.
Malone, que estava observando Tester com firmeza, comentou.
— Era um violão.
O sr. Howard assentiu com a cabeça.
— No escuro, era impossível saber, claro. O detetive Malone foi chamado à cena. Ele fará o
relato exatamente conforme eu expliquei.
Tester olhou de um homem para o outro. Por fim, a voz de Tester voltou para ele.
— Mas por que vocês estavam aqui, no fim das contas? — perguntou ele. — Por que vieram
até a minha casa?
— O sr. Howard foi contratado para rastrear mercadorias roubadas — respondeu Malone.
— Meu pai nunca roubou nada na vida — retrucou Tester.
— Seu pai não — concordou o sr. Howard. — Mas, e quanto a você?
A carranca de Malone aliviou-se, e ele tateou os bolsos do casaco. Por fim, o detetive pegou
um caderninho, um bloco de notas de policial, e folheou uma série de páginas. Símbolos arcanos
e palavras indecifráveis estavam rabiscadas em cada página do caderno de Malone. Tommy
duvidava que as notas de Malone tivessem alguma coisa a ver com trabalho de policial. Pensou na
biblioteca de Robert Suydam, tão cheia de conhecimento esotérico. Talvez o caderno de Malone
fosse um diário com o mesmo conhecimento indescritível.
Finalmente, Malone chegou a uma página quase vazia, com alguns números escritos no alto.
Ele mostrou a página a Tommy, que logo soube. O endereço de Ma Att, no Queens.
— Vou lhe dizer o que eu acho — começou Malone. — Você imaginou ter descoberto uma
brecha no trabalho que fez para a velha. Você seguiu a descrição exata de seu contrato. Imaginou
que isso impossibilitaria Ma Att de vir atrás de você. Porque você não violou as regras. Mas
estamos em 1924, senhor Tester, não na Idade Média. A feiticeira não podia pegá-lo, então
contratou ajuda. Empregou o senhor Howard.
Nesse momento, o sr. Howard tateou seu casaco.
— Quando avancei para pegar a carabina de seu pai, vi que era um violão. Então, descobri a
página de que eu precisava, escondida bem dentro dele.
— O senhor não entende por que escondi a página? — perguntou Tester. — Não entende o
que ela pode fazer com aquele livro?
O sr. Howard riu e olhou para Malone.
— Este homem acabou de confessar um crime?
Malone balançou a cabeça.
— Deixe pra lá — disse ele.
— O senhor entende — disse Tester, olhando para o caderno de Malone. O detetive fechou o
— O senhor entende — disse Tester, olhando para o caderno de Malone. O detetive fechou o
caderno e colocou-o de volta no bolso.
— Entendo que você não estava em casa quando o senhor Howard chegou — disse Malone.
— Como resultado, seu pai ficou vulnerável.
— Então, é minha culpa? — questionou Tommy. — Vai colocar isso no relatório também?
O sr. Howard abriu a boca de leve, uma expressão indisfarçada de surpresa.
— Odeio esses atrevidos — disse.
Enquanto isso, Malone pareceu desconcertado.
— Quer me dizer onde você estava na noite passada? — perguntou Malone. — Ou devo
adivinhar?
Charles Thomas Tester teve um vislumbre repentino, uma imagem de seu pai, meio
adormecido, olhando para frente e encontrando um branco na entrada, na penumbra. O que Otis
Tester pensou no momento? Houve tempo, ao menos, de imaginar sua amada esposa ou o filho
que o adorava? Houve tempo para um suspiro, uma exclamação? Tempo para uma oração? Talvez
fosse melhor imaginar que Otis nunca acordou. Ao menos era mais fácil para Tommy.
— Quantas vezes o senhor atirou no meu pai? — perguntou Tester.
— Senti minha vida em risco — disse o sr. Howard. — Esvaziei meu revólver. Em seguida,
recarreguei e esvaziei de novo.
A língua de Tester pareceu inchada, grande demais para caber na boca, e pela primeira vez
pensou que poderia chorar ou berrar. Sentiu o peso da pedra no bolso do casaco, mais pesada
agora, como se o puxasse para baixo. Sua noite com Robert Suydam voltou até ele, inteira, de
uma vez. O terror ofegante com o qual o velho falava do Rei Adormecido. Um medo da
indiferença cósmica de repente pareceu cômico ou simplesmente ingênuo. Tester olhou de volta
para Malone e o sr. Howard. Além deles, viu as forças policiais nas barricadas enquanto
empurravam a multidão de pretos para trás; viu a fachada decadente do seu prédio com novos
olhos; viu os carros de patrulha estacionados no meio da rua como três grande cães pretos
esperando para avançar em todas aquelas ovelhas reunidas. O que era a indiferença se comparada
com a maldade?
— A indiferença seria um bom alívio — disse Tommy.
8
CHARLES THOMAS TESTER viu-se desgarrado. Primeiro, Malone e o sr. Howard tiraram-no de
seu prédio – ele não podia entrar no apartamento até que o legista terminasse o trabalho, e o
legista nem tinha chegado. Malone e Howard levaram Tommy de volta à multidão. A multidão
abriu-se ao redor dele, engoliu-o e o digeriu. Em minutos, foi expelido para o fim do quarteirão.
Cercado pelos observadores, mas inegavelmente sozinho. Caminhou sem pensar, viu-se diante da
Sociedade Victoria. Subiu as escadas e o porteiro, reconhecendo-o agora, deixou-o passar.
Tommy caminhou até a sala de jantar, meio cheia com uma multidão para o almoço
antecipado, sentou-se a uma mesa em um canto, longe daquela em que havia jantado com Otis
quatro dias antes. Tester encarou-a como se Otis de repente pudesse se sentar ali, e Malone e
Howard tivessem pregado uma peça horrível. Por fim, três homens se sentaram à mesa, então
Tommy desviou o olhar.
Nesse momento, Buckeye chegou. Pareceu sorte, mas na verdade o porteiro da Sociedade
Victoria chamou Buckeye. Um porteiro é tão bom quanto for boa sua memória, então ele se
lembrou do nome que Tester usou para entrar. Antes de Buckeye se sentar com Tester, verificou
outras mesas, pegou números daqueles que queriam jogar e pagou um homem corpulento cujo
número havia saído no dia anterior. Em seguida, Buckeye se sentou e comprou almoço para os
dois – dessa vez feito por uma mulher da Carolina do Sul –, um prato de arroz à moda gullah,
cozido de cabeça de peixe e bolinhos de farinha de milho. Buckeye comeu, mas Tommy nem
conseguia olhar seu prato.
Buckeye não sabia o que havia acontecido com Otis, e Tommy não tinha vontade de falar
disso. Ainda assim, a notícia – seu horror – parecia querer saltar da garganta, um espírito imundo
que queria se fazer conhecido. Para evitar falar do assassinato do pai, falou, em vez disso, de
Robert Suydam. Mesmo o detalhe mais louco parecia menos fantástico que a ideia de que
naquele momento, apenas a sete quarteirões de distância, o corpo de seu pai jazia no apartamento
deles, alvejado até a morte.
Embora Tommy tivesse contado tudo a Buckeye, voltava sempre a três palavras em especial: o
Rei Adormecido, o Rei Adormecido, o Rei Adormecido. Finalmente, ele pôs comida na boca, não
porque tivesse fome, mas porque não conseguia pensar em nada melhor para calar a boca. Devia
estar parecendo louco.
A essa altura, Buckeye tinha parado de comer. Observava seu camarada de infância em
silêncio, estreitando os olhos.
— Quando trabalhei no canal... — disse Buckeye. — Lembra que eu te disse que fiquei lá por
um ano? Quando trabalhei naquele canal, tínhamos rapazes do mundo inteiro. Todos trouxemos
nossas histórias conosco. Sabe como o povo é. E não importa o quanto trabalhem duro, sempre
encontram tempo para contar suas histórias.
“Bem, tínhamos alguns rapazes de longe, de Fiji e Rarotonga. Taiti também. Não conseguia
entender os rapazes do Taiti. Eles falavam aquele francês. Mas os de Fiji, dois irmãos, juro que
eles disseram o que você estava dizendo. O Rei Adormecido. É. Eles, os rapazes de Fiji, disseram
isso mais de uma vez. Mas tinham outro nome para ele também. Não consigo lembrar agora.
Não era difícil de pronunciar se eu tentasse. ‘O Rei Adormecido está morto, mas sonhando.’ É o
que diziam. Agora, que diabo, o que isso significa? Não eram minhas histórias favoritas. Eu
mantinha distância desses rapazes. Não está planejando ir até Fiji, está?”
Buckeye gargalhou, mas foi forçado. Como o amigo do Harlem poderia vir com a mesma
história de dois irmãos de Fiji? Especialmente quando os dois morreram durante a construção do
Canal do Panamá? Como podia ser?
Tommy, se estivesse ouvindo, talvez tivesse gargalhado junto, mas ele se levantou, pegou seu
violão e saiu correndo da sala de jantar. Simples assim. O estojo derrubou a comida de duas
mesas diferentes, e os homens xingaram Tommy pelas costas enquanto ele fugia da Sociedade
Victoria. Tommy seguiu para o trem elevado que o levaria do Harlem até Flatbush. Horas antes
ele havia considerado nunca mais voltar à mansão de Robert Suydam, mas agora, aonde mais ele
poderia ir?
A festa começaria apenas em oito horas, então Tester pagou a tarifa do trem e esperou na
plataforma da estação. Fiji devia ser longe para diabo do Harlem. Sabia que era uma ilha em
algum mar distante. A história de Buckeye serviu como a última corroboração. O Rei
Adormecido era real. Morto, mas sonhando. Tirou o violão do estojo porque precisava fazer algo
para distrair a mente. Praticou a música que o pai lhe ensinara quatro dias antes. Quatro dias
antes seu pai estava vivo para lhe ensinar uma canção! Aquela que Irene ensinou a Otis, e Otis
passou para ele. Música de conjuração, Otis a chamou. Quando começou, sentiu que o pai e a
mãe estavam muito mais próximos dele, bem ali, com ele, tão reais quanto as cordas de seu
violão. Pela primeira vez na vida de Tommy, ele não tocou por dinheiro, não tocou para poder
armar um trambique. Foi a primeira vez na vida que tocou bem.
— “Não ligue se o povo rir da sua cara” — cantou Tommy. — “Não ligue se o povo rir da sua
cara.”
Poucos na plataforma lhe deram atenção; outro tocador de violão no Harlem, tão comum
quanto as luzes de arco voltaico nas calçadas.
— “Eu disse guarde essa verdade: um bom amigo é raridade. Não ligue se o povo rir da sua
cara.”
Até o fim do dia, Tommy tocou na plataforma. Seus dedos não se cansaram, a voz não
vacilou. No início da noite, embarcou no trem para Flatbush. Ou estava cantarolando para si o
caminho inteiro ou o ar estava zumbindo ao seu redor.
9
— ALGUMAS PESSOAS SABEM DE COISAS sobre o universo que ninguém deveria saber, e podem
fazer coisas que ninguém deveria ser capaz de fazer.
Robert Suydam disse essas palavras às dez e meia da noite. A festa estava acontecendo havia
horas, mas Suydam ainda precisava chamar a atenção do grupo. Em vez disso, recebeu Tester
mais cedo e então, uma hora depois, os convidados chegaram, homens e mulheres e alguns
indefinidos, um grupo mais variado do que Suydam prometera. A festa aconteceu na biblioteca.
Todos os seus livros haviam sido tirados do chão. Em seu lugar, estavam as mesas de banquete,
cadeiras de espaldar alto, carrinhos de serviço com garrafas de cristal lapidado contendo bebidas –
nada de beber escondido – e taças combinando. A sala vibrava com os diferentes idiomas. Inglês
e espanhol, francês e árabe, chinês e hindi, egípcio e grego, patuá e pidgin. Mas a única música
vinha do violão de Tester. Suydam pôs Tommy ao lado da parede de janelas altas. Ele tocou em
pé, ao lado da grande poltrona. Cantou para si e evitou o olhar dos outros convidados. Tester
sabia como reconhecer uma sala cheia de gente bruta. Aquele bando qualificava-se. Suydam havia
frequentado zonas portuárias e becos escuros para encontrar aquele grupo de degoladores. O tipo
de lugar que Tommy imaginava que a Sociedade Victoria seria era o que aqueles criminosos
chamavam de lar, doce lar.
Tester tocou, tocou. Era a mesma música que estava cantando desde aquela manhã. Ele a
complicava e rearranjava, cantava as palavras por um tempo, depois cantarolava por outro, e
voltava com as palavras.
— “Você sabe que vão rir da sua cara” — cantava Tester suavemente. — “Vão te sacanear do
começo ao fim. Mentir para você tintim por tintim. Assim que virar as costas, vão te esmagar
sim.”
Sua música foi interrompida apenas uma vez. Robert Suydam aproximou-se e ergueu a mão
para parar o dedilhar de Tester. Ele se inclinou até sua boca ficar a poucos centímetros da orelha
do tocador de violão.
— Então, você está comigo? — perguntou Suydam. — Quero perguntar isso a você antes de
falar com eles. Se sou César, você é Otávio.
Tester falou, mas havia forçado a voz com toda a cantoria, e as palavras saíram em um
sussurro rouco.
— Até o fim deste mundo — disse Tester. — Estou com o senhor.
Robert Suydam recuou e olhou solenemente para o rosto de Tester. O negro não conseguia
dizer que expressões seu rosto mantinha. Tinha dito a coisa certa? Falou a verdade, aquilo
bastaria. Por fim, Robert Suydam se afastou, rindo para o bando, e bateu com força no alto da
grande poltrona. Os homens e mulheres na sala ficaram em silêncio. Quando se sentou na grande
poltrona, os convidados se sentaram às mesas de banquete. Suydam fez um gesto para afastar
Tester. Ninguém podia ficar sob o holofote além dele. Tommy não sabia aonde ir, então foi até o
fundo da biblioteca e se pôs perto das portas duplas. Em seguida, Robert Suydam inclinou-se
para frente e falou.
— Algumas pessoas sabem de coisas sobre o universo que ninguém deveria saber, e podem
fazer coisas que ninguém deveria ser capaz de fazer — disse ele. — Sou uma dessas poucas
pessoas. Deixe-me mostrar para vocês.
Suydam virou-se para as altas janelas. Era noite lá fora, e as luzes da brilhante biblioteca
transformaram os vidros em uma tela, como tinham feito antes. Tester observou o bando de
cinquenta gângsteres. Desejou ver a reação deles quando a mágica de Suydam começasse.
— Seu povo é forçado a viver nos labirintos de uma imundice híbrida — começou Suydam.
— Mas e se isso pudesse mudar?
A imagem nas janelas assumiu um verde profundo, a cor do mar vista do céu. Então, estavam
no Exterior agora? Suydam conseguia fazer aquilo tão rápido? Tester ergueu as mãos e tocou, mal
encostando nas cordas, sem cantar. Suydam olhou adiante e pareceu contente. Ele tocou a música
de conjuração baixinho. O bando de brutamontes não tirava os olhos das janelas, mas a música e
as palavras de Suydam funcionavam juntas, um feitiço ainda mais forte.
Tudo o que o velho dissera três noites antes foi repetido. O Rei Adormecido. O fim dessa
ordem atual, sua civilização de submissão. O fim do homem e de todas as suas tolices.
Extermínio pela indiferença.
— Quando o Rei Adormecido despertar, ele nos recompensará com o domínio deste mundo.
Viveremos à sombra de sua graça. E todos os seus inimigos serão esmagados até virar pó. Ele nos
recompensará! — repetiu o velho, agora gritando. — E seus inimigos serão esmagados!
Eles gritaram de volta. Deram tapinhas nos ombros um do outro. Pais fundadores de uma
nova nação ou, ainda melhor, de um mundo novo para administrarem e controlarem.
— Vou guiá-los para este novo mundo! — vozeou Suydam, levantando-se e erguendo as
mãos. — E em mim vocês finalmente encontrarão um governante justo!
Eles bateram os pés e tombaram as cadeiras. Brindaram ao reinado de Robert Suydam.
Mas Tommy Tester não conseguia celebrar tal coisa. Talvez, no dia anterior, a promessa de
uma recompensa neste novo mundo pudesse ter tentado Tommy, mas naquele dia parecia inútil.
Destruir tudo, então entregar o que restasse a Robert Suydam e a esses capangas reunidos? O que
fariam de diferente? A humanidade não causava problemas; a humanidade era o problema. A
exaustão bateu com tudo em Tommy e ameaçou afogá-lo. Pensar daquele jeito fez com que
Tester tocasse uma série de notas amargas.
Suydam percebeu, embora os outros não percebessem. Olhou para Tester com severidade,
mas rapidamente sua expressão mudou. Seu aborrecimento deu lugar à surpresa quando viu
Tester erguer o caro violão e bater com seu corpo no chão. Estilhaçando-o. Tester virou-se para
as portas duplas fechadas da biblioteca. Suydam gritou. Primeiro uma ordem, em seguida uma
súplica. Ainda não, berrou ele. Ainda não, seu macaco! O velho correu na direção de Tester, mas os
convidados grosseiros entraram no seu caminho. Robert Suydam viu quando Charles Thomas
Tester agarrou as duas maçanetas e puxou as portas, abrindo-as. Em seguida, para horror de
Robert Suydam, Tommy atravessou e fechou as portas da biblioteca atrás de si.
PARTE 2: MALONE
10
MALONE SAIU DO HARLEM RAPIDAMENTE. Não voltaria para a delegacia na Butler Street, no
Brooklyn, à qual dedicou seus últimos seis anos, mas iria ao Queens com o sr. Howard para
devolver o pedaço de papel roubado – era mesmo papel? – que o detetive particular havia sido
contratado para recuperar. Os dois homens observaram o tocador de violão preto sair aos
tropeços após ser informado da morte de seu pai, em seguida Malone fez questão de agradecer
aos detetives do Harlem que o chamaram mais uma vez.
Entraram em contato com Malone assim que pegaram o depoimento do sr. Howard. Era
possível que o sr. Howard tivesse falado o nome de Malone casualmente e também soltado um
punhado de dinheiro para que essa ligação acontecesse, mas Malone acabou não perguntando.
Ele chegou, e lhe fizeram todas as cortesias de um colega detetive de Nova York. Ele atestou o
caráter do sr. Howard, embora, de fato, não o tivesse em tão alta conta, e logo os quatro homens
estavam sentados na cozinha de Tester, compartilhando histórias de crime no Harlem versus as
histórias de crime no Brooklyn. O sr. Howard contou histórias de suas dificuldades como
advogado no Texas, muito tempo atrás. Eles se divertiram. No quarto dos fundos, o corpo do
velho preto permanecia de bruços no chão, onde havia morrido. O homem havia sido alvejado
onze vezes, voado do colchão para a parede, mas seu velho violão não havia sido danificado. O
único sinal de que ele realmente pertencia à cena do crime era o sangue que manchou o braço do
instrumento. Quando os quatro homens se sentaram na cozinha, concordaram que o violão não
precisava ser tomado como prova. Tudo foi resolvido assim, casualmente.
Nesse momento, Malone e o sr. Howard foram para a entrada da 143th Street. Viram-se na
mesma plataforma de trem onde o preto – filho do falecido – estava tocando seu violão. Mesmo o
sr. Howard pareceu perturbado pelo reaparecimento, então os dois esperaram no lado sul da
plataforma. O violonista preto não abria os olhos enquanto tocava. Malone não conseguia
imaginar que o homem estava voltando à mansão de Suydam para uma festa naquela noite. Se
soubesse, ele o teria seguido em vez de ir até a casa de Ma Att.
Malone e o sr. Howard não trocaram palavra na viagem de trem até o Queens, e durante a
caminhada sua conversa foi entrecortada. Um não gostava do outro. Trabalhavam juntos porque
os dois haviam sido chamados para cuidar do caso Suydam. Não que estivessem fazendo muitos
avanços. Malone secretamente sentia uma certa simpatia por Robert Suydam e nojo de uma
família que estava se esforçando tanto para fabricar alguma desculpa e separar o velho de sua
fortuna. Se Suydam quisesse gastar seu dinheiro e tempo procurando o conhecimento mais órfico
do mundo, o que a família tinha a ver com isso? Talvez Malone sentisse essa simpatia especial
porque ele também tinha uma certa sensibilidade. Desde a infância, tinha certeza de que havia
mais neste mundo além do que tocávamos, sentíamos o gosto ou víamos. Seu período como
policial fez com que tivesse mais certeza disso. Motivações ocultas, significados espectrais, um
certo subsistema de crime sempre ofereciam esse tipo de coisa. Grande parte de seu trabalho lhe
permitia ver o desespero e o conluio insignificantes, mas às vezes testemunhava pistas de um
mistério maior.
Por exemplo, o enigma que esperava atrás da porta de um casebre em Flushing, no Queens.
Quando ele e o sr. Howard se aproximaram do lugar, a ansiedade dominou o detetive Malone.
Ele ficou rígido, embora o sr. Howard parecesse tranquilo. Quando chegaram à porta da casa de
Ma Att, o ar ficou úmido e carregado. Enquanto Malone puxava o colarinho e pigarreava, o sr.
Howard permanecia redondamente alheio. Parecia estar de bom humor, como um cão enorme,
alegre e louco. O sr. Howard aproximou-se da porta e, em vez de bater, chutou. A porta sacudiu,
e Malone tremeu também. Cuidado aí, ele quis alertar, mas o sr. Howard não era do tipo
atencioso ou cuidadoso.
Quando o som dos passos se acercou, Malone correu a mão pelos cabelos e tocou o colarinho.
O sr. Howard simplesmente chutou a porta de novo. Ele se virou para Malone, balançou a cabeça
quando viu o detetive olhando em choque. Apertou os lábios como se quisesse começar a chutar
o detetive sensível. Em seguida, a porta se abriu, e uma velha parou na soleira. O sr. Howard
falou rapidamente.
— Não é tão rápida com os pés — disse ele. — Eu já estava indo embora.
Malone quase arfou. O tom do sr. Howard, suas palavras, ou o vislumbre da mulher que abriu
a porta era suficiente? Como Malone estava bem mais longe da casa que o sr. Howard, ele viu sua
silhueta lá dentro. À porta, uma mulher curvada, magra, apareceu, o nariz saliente, os cabelos
bem-puxados para trás. Mas atrás daquela mulher, Malone jurava que tinha visto… o quê? Mais
dela. Um grande volume vinha atrás da senhora, a uma distância do vestíbulo sombrio. Quase
qualquer um – alguém não tão sensível, não tão sintonizado – teria ignorado aquilo como uma
ilusão das sombras, um pouco de luz oblíqua. Mentes insensíveis sempre refutam o conhecimento
verdadeiro. Mas Malone não podia ignorar a noção de altura, de tamanho, por trás da figura
daquela mulher à porta. Não uma segunda presença, mas o restante dela. Malone passou a mão
de novo pelos cabelos apenas para disfarçar o tremor da mão direita.
Enquanto isso, o sr. Howard falava com a mulher em seu tom irritante padrão. Mas,
enquanto falava, a mulher olhou por sobre o ombro do sr. Howard. Quando Malone fitou seu
olhar, ela abriu um sorriso malicioso.
O sr. Howard enfiou a mão no casaco e retirou a página dobrada. Malone não pediu para ver
a página em todo esse tempo. Nem quando se encontraram no Harlem, tampouco quando
esperaram na plataforma. Nem no trem, muito menos na caminhada até ali. As palavras do
violonista preto permaneciam com ele. O senhor não entende por que escondi a página? Não entende o
que ela pode fazer com aquele livro? O que o preto sabia? Essa questão fez com que ele
acompanhasse o sr. Howard. A curiosidade tinha sido sua maldição desde a juventude.
O quadrado de pergaminho saiu do bolso do sr. Howard e, assim que a luz do sol o tocou, um
foco mínimo de fumaça apareceu no ar. Malone sentiu o cheiro antes de vê-la. Um cheiro de
carvão. Ma Att estendeu a mão na luz para pegá-lo. Tinha um braço incrivelmente fino, pele na
cor de areia do deserto. Estendeu a mão para agarrar a página, mas o sr. Howard – para espanto
de Malone – puxou-a de volta.
— Os Estados Unidos são um país de comércio — disse o sr. Howard. — Lembre-se de onde
você está.
Na escuridão da casa, algo enorme se ergueu, em seguida se sacudiu como a cauda de uma
cobra venenosa. Mas Ma Att – a face que ela lhes mostrava – apenas sorriu. Gesticulou para o sr.
Howard verificar a caixa de correio, e lá ele encontrou um envelope. O detetive particular olhou
para trás, fitando Malone com orgulho. Malone de repente esperou que Ma Att agarrasse o
grande homem com sua cauda – podia ser uma cauda? – e o puxasse para dentro. Mas isso não
aconteceu. Em vez disso, o sr. Howard pegou o envelope da caixa de correio e abriu a aba para
espiar o dinheiro. Ma Att inclinou-se para frente, a cabeça e os ombros passando da soleira.
Os lábios dela se abriram, dentes cinza se mostraram, como se fossem cravar-se no pescoço do
sr. Howard.
— Seu nome — disse Malone. — Sei que eu o ouvi antes.
A mulher, assustada, olhou para ele e voltou às sombras do batente. Ela estendeu o braço em
um movimento rápido demais para qualquer um dos homens acompanhar. Tirou a página de
pergaminho dos dedos do sr. Howard com agilidade.
O sr. Howard virou-se para ela e, em um movimento, agarrou o cabo do revólver que trazia
no coldre de ombro. O envelope caiu de sua mão, e o dinheiro se espalhou nos degraus da frente.
Uma brisa carregou algumas das notas pelo gramado da casa. O sr. Howard correu atrás do
dinheiro. Malone e Ma Att estavam sozinhos na soleira.
— É um nome egípcio, não é? — perguntou Malone. — Pelo que sei, a mulher com esse
nome viveu em Karnak.
— Ah, é? — disse ela. — E quanto você realmente entende disso?
— Não o bastante — admitiu Malone.
A velha assentiu com a cabeça, como se estivesse satisfeita com a resposta, a deferência nela.
— Que livro é este? — perguntou ele, tão baixo que mal conseguia ter certeza de que tinha
falado alto.
— O Alfabeto Supremo — respondeu Ma Att.
— Agora a senhora tem todas as páginas — disse Malone.
— Entre aqui na minha casa — arrulhou Ma Att. — Vou lhe mostrar todas as coisas que
— Entre aqui na minha casa — arrulhou Ma Att. — Vou lhe mostrar todas as coisas que
posso encantar com um pouco de sangue derramado.
Malone afastou-se de ré até a calçada. Em nenhum momento virou as costas para Ma Att.
Nem piscou. Ela soltou uma risadinha e bateu a porta com tudo. Ele encontrou o sr. Howard de
joelhos na grama, contando seu dinheiro. Malone correu – realmente em disparada – de volta ao
Brooklyn, de volta à delegacia. O sr. Howard gritou alguma coisa, mas Malone não ouviu, não
conseguia ouvir com o som da própria respiração de pânico.
Malone esperava nunca mais voltar à casa de Ma Att, mas estava errado. Ele voltaria mais
uma vez, mas então seria tarde demais.
11
O CASO SUYDAM foi encerrado, ao menos para aqueles parentes litigiosos. Uma data judicial foi
definida, e Suydam compareceu em juízo, atuando como seu próprio advogado. Os advogados da
extensa família argumentaram que Suydam havia se tornado errático e senil, mas Suydam
explicou que havia ficado fascinado em sua educação, o aprendizado que um homem desdenha
aos vinte, mas anseia aos sessenta. Não há melhor aluno que aquele que chegou à idade da
aposentadoria. O juiz, um homem com seus sessenta anos, achou aquela sugestão lisonjeira e
verdadeira.
Como prova secundária da decadência de Suydam, os advogados da família apresentaram
declarações juramentadas de dez de seus vizinhos de Flatbush, anunciando as horas estranhas e as
figuras mais estranhas ainda que entravam e saíam da mansão de Suydam. Atestaram que, certa
noite, ele havia reunido um exército de pele escura em sua casa. Mas Suydam explicou isso
também. Seus estudos eram nas áreas de religião e mitos, e Nova York oferecia uma abundância
rara de cidadãos de cinco nações diferentes – uma centena de tribos não desenvolvidas – das
muitas chegadas recentemente aos Estados Unidos. Ele não era um maluco, mas um antropólogo
amador. Se era velho demais para viajar o mundo, bem, Nova York trazia o mundo até ele.
Malone compareceu a todos os dias de julgamento e, quando Suydam explicou seus interesses
esotéricos, sentiu afeição pelo velhote. Naquele tribunal inteiro, Malone sentiu que certamente
apenas Suydam continha uma alma tão sensível quanto a dele, tão consciente de mistérios
maiores.
No final, o juiz admitiu que as ações de Suydam, e sua companhia, talvez fizessem hesitar
qualquer membro de sociedade cautelosa, mas dificilmente constituiria razão para levar o homem
a um hospício ou privá-lo de seus bens. Suydam venceu, safando-se de sua família e de seus
advogados. O sr. Howard foi ao tribunal oferecer seu testemunho, mas, como o caso foi decidido,
a família não precisava mais dele. Tinha planos de voltar ao Texas. Ele e Malone trocaram um
adeus nada emocionado, apenas um aperto de mão e “vá com Deus”. Os chefes de Malone
devolveram-no a suas atribuições regulares no Brooklyn, e foi esse retorno à rotina que,
estranhamente, levou a um novo contato de Malone com Robert Suydam. Foi necessário para o
trabalho de Malone na área de imigrantes ilegais.
MALONE TOMOU A INICIATIVA de ir até Flatbush. Uma manhã agradável para a viagem e uma
pequena caminhada até a mansão de Suydam. Malone entrou no terreno e subiu os degraus do
alpendre; bateu por um tempo, mas ninguém veio. Percorreu o perímetro da casa, tentando
identificar uma luz, uma janela aberta, algum sinal de Suydam. Mas a mansão tinha um ar de
abandono, um corpo depois de ter perdido a alma.
Por fim, Malone encontrou as janelas da grande biblioteca. Embora fosse alto, Malone ainda
precisou esticar-se para espreitar lá dentro. As estantes da biblioteca – cada uma delas – estavam
vazias. Nada na sala, exceto uma grande poltrona que estava de costas para Malone. Forçando os
braços, ele se ergueu mais alto no parapeito. À sombra da poltrona, no chão, ele viu um par de
sapatos. Ao menos pensou ter visto. Alguém estava sentado ali, ou encarapitado? Malone grunhiu
como uma fera com o esforço de se manter no alto. Os braços tremiam, as costas estavam rijas.
Uma sombra ou os saltos do sapato de um homem? Queria bater no vidro, mas precisava de duas
mãos para se equilibrar. Em seguida, os sapatos se moveram de leve, como se a pessoa na cadeira
– havia realmente alguém ali? – estivesse se escorando para se levantar. A garganta de Malone
fechou-se. Ele se esforçou, mas segurou firme. Agora, a poltrona na sala se sacudiu – disso ele
teve certeza. O corpo na cadeira estava se erguendo. Malone jogou o cotovelo no parapeito.
Como Robert Suydam poderia não ter ouvido Malone na janela? Que prova tinha de que era
mesmo Robert Suydam? Malone ouviu a voz de um homem – ou, na verdade, mais uma vibração
– ondulando através dos grossos vidros. Malone não conseguiu decifrar as palavras, mas sentiu
um ritmo crescente. Um encantamento.
Então, o detetive Thomas F. Malone foi agarrado.
Uma pegada poderosa nas costas do casaco de Malone. Ele caiu da janela, de costas na grama.
Dois homens muito jovens de uniforme estavam sobre ele. Um deles chutou Malone nas costelas.
O outro agachou-se, encaixou um joelho no peito de Malone, enfiando a mão nos bolsos dele. O
rapaz encontrou o revólver de serviço de Malone, mas, na pressa da descoberta, não o
reconheceu.
— Arma — disse ele ao parceiro. — O que mais você tem aí? — gritou ele para Malone.
O segundo rapaz chutou Malone de novo, berrou sobre “roubo”, “invasão criminosa”. Em
seguida, o outro policial com seu joelho no peito de Malone encontrou o distintivo de detetive.
Isso mudou o tom da conversa. Quer dizer, a conversa começou de verdade. Como também os
pedidos de desculpas.
Os dois patrulheiros ajudaram Malone a se levantar. Aquele que tinha dado os chutes
continuou a se desculpar. Mas Malone só exigiu uma ajuda. Os dois pareciam confusos, mas o
chutador fez o que lhe foi instruído. Alçou Malone, que espreitou para dentro da biblioteca. Não
apenas a figura na poltrona havia sumido, mas a poltrona também desaparecera.
13
NA MANHÃ SEGUINTE, Malone voltou a Red Hook, mas encontrou apenas o silêncio. Quando
apareceu, as ruas ficaram mudas. Uma cortina de silêncio pôs-se entre ele e os residentes. Os
jovens nas esquinas encolheram-se para mais perto um do outro, abriam a boca apenas quando
era sua vez de inalar. As mulheres encarapitadas nas janelas cerravam os lábios quando Malone
passava. Quando se sentava a uma mesa de restaurante, os homens, clientes frequentes do dia
todo, pagavam a conta e fugiam. Parecia que todo o Red Hook tinha sido alertado para ficar
longe de Malone. Por que havia xeretado na casa de Suydam?
Significava que Malone precisava fazer algo que detestava. Tinha que consultar o outro
policial que trabalhava em Red Hook. Malone gostava de ser policial, mas se sentia bem diferente
de quase todos os demais policiais. Tentou, em seus primeiros dois anos de trabalho, fazer
amizade com os outros, mas eles riam quando mencionava os assuntos com que mais se
importava. Alguns até tentaram fazer com que fosse expulso da força. Poetas podiam ser
sonhadores, policiais tinham que ser durões. Esse tipo de pensamento. E assim Malone se retraiu
– uma espécie de existência confinada –, embora fosse às passadas em revista e, às vezes,
compartilhasse informações com outros oficiais de um caso. Mas depois que os moradores de
Red Hook se voltaram daquele jeito contra ele, Malone retornou à delegacia da Butler Street.
Encontrou os policiais da patrulha a pé. Já esperava que o fariam sofrer humilhações antes de
compartilhar quaisquer notícias de Red Hook, mas, na verdade, os dois que encontrou na
delegacia – começando um turno – estavam procurando por ele.
Pareciam assustados enquanto falavam com Malone.
Robert Suydam havia comprado três prédios de aluguel no Parker Place, um dos quarteirões
que ficavam de frente para a orla fedorenta. Havia comprado os prédios?, perguntou Malone. E,
se comprou, como conseguiu assumir a propriedade com tanta rapidez? Os patrulheiros não
tinham respostas, apenas mais notícias surpreendentes para compartilhar. Em uma única noite,
todos os inquilinos fugiram desses três prédios, fugiram ou foram expulsos. Em seu lugar, chegou
Robert Suydam e seus livros, em número suficiente para encher quatro bibliotecas. Chegou
também um exército, talvez os cinquenta dos piores que Red Hook já conhecera. Todo esse
movimento feito sem um único caminhão na rua. Durante toda a noite, cada janela de cada
prédio havia sido tampada com cortinas pesadas. A propriedade fora tomada pelos semideuses
locais do crime e da depravação. Uma coisa pior do que os patrulheiros jamais haviam vivenciado
até então estava sendo tramada naqueles edifícios. Tudo a serviço do sr. Robert Suydam.
Por último, acrescentaram o boato de um subcomandante: o sargento de Robert Suydam, um
preto até então desconhecido nos registros criminais do Brooklyn. Ele agia como porta-voz de
Suydam, dando ordens quando o velho não estava por perto.
— Black Tom é como o chamam — um dos patrulheiros disse. — Em todo lugar que vai,
carrega aquele violão manchado de sangue.
Malone só percebeu que havia desmaiado quando os patrulheiros o ajudaram a se levantar.
14
MALONE DEIXOU OS PATRULHEIROS e foi diretamente para a zona portuária. Conhecia o Parker
Place, encarapitou-se em uma escadaria na esquina. Mas Malone esqueceu que não era mais o
detetive alto e magrelo que os moradores de Red Hook toleravam entre sua gente. O boato havia
se espalhado. Assim que se sentou nas escadas e tirou seu caderninho, os inquilinos daquele
prédio se fecharam lá dentro. Garotos nas esquinas próximas fugiram. Os locais foram evacuados
no tempo que levou para ele pegar sua caneta-tinteiro. Nada podia ser mais óbvio por ali do que
um branco sozinho em uma escadaria. Ele se levantou, mas antes de descer o último degrau da
escada, o grunhido de uma porta de madeira se abrindo ressoou na rua vazia. O preto do Harlem
apareceu de um dos prédios de Suydam. Malone folheou seu bloco de notas. Charles Thomas
Tester. Aquele era o nome.
Apesar do que os patrulheiros tinham dito, ele não estava carregando um violão manchado de
sangue naquele momento, e isso trouxe um alívio mais pleno a Malone do que ele podia explicar.
— O senhor Suydam pediu para que eu viesse cumprimentá-lo — disse o preto. — Lembra-
se de mim?
Sua atitude e até sua voz tinham mudado muito desde o último dia que se encontraram. O
preto falava com nítido desdém e encarou Malone de forma tão direta que o detetive teve que
desviar o olhar.
— Seu pai — disse Malone. — Você já o enterrou?
— Eles não liberaram o corpo — disse o preto. — Não vão liberar até que a investigação
esteja completa.
— Já deve estar liberado — comentou Malone. Abaixou os olhos e percebeu que segurava a
caneta como uma arma. Não abaixou a mão.
— Parei de tentar — disse o preto.
Malone começou a falar, mas o preto o interrompeu.
— O senhor Suydam quer que você e os outros membros da polícia saibam que ele se mudou
para esta vizinhança em caráter permanente. Ele não vai voltar a Flatbush.
Nesse momento, o preto encarou Malone com os olhos vidrados de um gato interessado em
perseguir um pássaro. Malone fitou de novo o bloco de notas para fugir daquele olhar.
— Como não está fazendo nada de ilegal, espera não ser incomodado — disse o preto.
— Nós decidiremos quando não incomodar — disse Malone com frieza. — E decidiremos o
mesmo quanto a você.
Havia rostos em cada janela, em cada prédio, naquele quarteirão e no próximo, observando os
dois homens. Malone sentiu que era importante impor seu papel, sua posição, para o bem dos
espectadores, se não o dele próprio.
— Charles Thomas Tester — disse Malone. — É seu nome. E você é do Harlem, não de Red
Hook.
— Me chamam de outra coisa agora — disse o preto. — E meu nome de nascença não tem
mais poder sobre mim. Morreu com meu pai.
— Black Tom? Você espera que eu o chame assim?
O preto não respondeu. Simplesmente observou Malone com paciência.
— Não quero mais ver você aqui — disse Malone. — Vou avisar à patrulha a pé que, se
encontrar você em qualquer lugar do Brooklyn, que pode recolher. Não posso prometer que
estará em boas condições de saúde quando te liberarem.
Black Tom ergueu os olhos para os dois lados da rua.
— O senhor Suydam necessita de um livro que só pode ser encontrado no Queens — disse
ele, ignorando a ameaça do detetive. — Estou indo para lá agora.
— Eu lhe disse onde você pode ficar — Malone tentou dizer, mas sua voz vacilou.
— Melhor o senhor não estar aqui quando eu voltar — disse Black Tom.
O que aconteceu em seguida foi inexplicável, difícil até mesmo de lembrar. Black Tom fez
alguma coisa; Malone ouviu alguma coisa. Um ruído baixo de repente ficou alto, como se Black
Tom estivesse cantarolando uma nota insistente dentro do crânio de Malone. Os olhos do
detetive perderam o foco. Malone ficou zonzo com o som e perdeu o equilíbrio. Caiu sobre a
escadaria próxima, como se tivesse tomado um tapa. Seu estômago se contraiu; estava prestes a
vomitar. Então, uma brisa tremenda arrancou o chapéu da cabeça de Malone. O chapéu saiu
rolando por Parker Place como se tentasse fugir. Quando os olhos de Malone finalmente
recuperaram o foco, ele estava sozinho na rua. Black Tom havia desaparecido.
Malone tentou se levantar, mas não conseguiu. Abaixou a cabeça entre os joelhos e respirou
lentamente, contando até cinquenta. Quando ergueu os olhos de novo, uma jovem estava na
janela do terceiro andar do prédio da frente, observando Malone.
— O que aconteceu? — perguntou Malone com um grito. Ele conseguiu se levantar, pensar;
agarrou a cabeça, tateou o corpo, verificando se havia sido alvejado ou apunhalado. Não tinha
sido nem um, nem outro. Seu revólver de serviço ainda estava no coldre de ombro, embora o
metal parecesse mais quente do que deveria.
— O que você viu? — gritou Malone para a jovem.
Ela respondeu, mas Malone não compreendia o idioma. A jovem continuou gritando de
verdade, as palavras fluindo mais rápido, mas sem ficarem claras. Por que nunca aprendera a falar
com essas pessoas? Malone saiu às pressas do quarteirão, voltando em disparada para a delegacia
da Butler Street, parando apenas para pegar seu chapéu. Recrutou um patrulheiro e pegou uma
viatura. Black Tom havia lhe dito exatamente aonde ia. Provocou-o com a informação. De volta
ao Queens em busca de um livro especial.
15
QUANDO CHEGOU AO FLUSHING, Malone se inclinou para fora do Ford T com um pé no estribo,
enquanto o patrulheiro seguia a toda velocidade, setenta quilômetros por hora. Malone segurava
o chapéu com uma das mãos para não voar, a outra na porta para que ele próprio não voasse.
Mas quando chegaram ao quarteirão de Ma Att, viram que seria impossível continuar com a
viatura. Ruas e calçadas estavam apinhadas demais. Na manhã em que ergueram barricadas na
144th Street, as hordas do Harlem pululavam. Agora, em vez de rostos negros, ele viu faces
brancas, mas os números eram quase os mesmos.
O patrulheiro buzinou, gritou para o povo abrir caminho, mas era como gritar para a neve
retirar-se sozinha. Malone pulou do carro, abriu caminho pela multidão, homens e mulheres tão
apinhados que pareciam estar trabalhando contra ele. Malone gritava – ele era um detetive! –,
mas sua voz tinha um tom desesperado. E, pior, não importava para a multidão. Ela agia como se
estivesse sob um feitiço. O que chamava sua atenção?
Quando rompeu o círculo de espectadores, teve vontade de cobrir os olhos. Em vez disso, caiu
em um estupor exatamente como o restante da multidão.
— Como? — murmurou ele.
Apenas uma semana antes, ele tinha estado naquele endereço. Havia encontrado Ma Att na
soleira de sua casa. O sr. Howard ficara de joelhos, contando seu dinheiro. E agora parecia que
Ma Att tinha desaparecido. Sua cabana inteira também. As paredes, o telhado, as janelas, a
pequena caixa de correio que pendia na porta da frente. Desapareceram. O gramado da frente
também. Tudo tinha sido arrancado do chão, como erva daninha. Nada permanecera além dos
canos de esgoto e água da casa. Espreitavam do solo como um esqueleto parcialmente
desenterrado. O terreno parecia uma cova aberta.
— Como? — Malone repetiu, mas nada além disso.
Malone varreu a área com os olhos em busca de escombros. Talvez a casa tivesse explodido.
Não havia escombros.
A cabana havia desaparecido.
Malone recuperou-se e percebeu que era o primeiro policial na cena. Ele se virou para a
multidão. “O que eles tinham visto?”, perguntou ele. Ninguém respondeu. Permaneceram
hipnotizados.
Malone sacudiu algumas pessoas à frente da multidão, mas elas não conseguiam explicar o que
havia acontecido com a casa. Em vez disso, cada uma relacionava uma série de sensações –
tontura, náusea, uma nota estranha e baixa tocando dentro da cabeça. A maioria estava em casa,
não estava observando a residência da senhora quando essas sensações vieram. O que os atraiu
para a rua foram os gritos de uma mulher.
— Que mulher? — perguntou Malone, mas ninguém conseguia identificá-la.
Mais policiais chegaram, bem como o departamento de bombeiros, e a multidão foi
dispersada. Quando as pessoas se afastaram, uma mulher se aproximou de Malone. Ela havia
gritado. Viu tudo o que acontecera.
— Um preto entrou na casa — disse ela. — Eu fiquei olhando da minha janela, lá. — Ela
apontou para o outro lado da rua. — Fiquei preocupada, pois tenho dois filhos. Quero que
fiquem em segurança.
— Claro que sim — comentou Malone. — É seu direito.
A mulher assentiu com a cabeça.
— Ele caminhou direto até a casa, e a velha o deixou entrar. Foi uma surpresa para mim. Veja
o senhor, ela nunca foi sociável. Não com ninguém daqui. Mas deixou aquele tipo de gente entrar?
Minha filha começou a gritar na cozinha, mas eu não consegui parar de observar. Fiquei tão
curiosa.
Ela hesitou, olhou de novo para Malone.
— Nenhuma resposta que a senhora me der será estranha — disse ele.
Ela olhou para o terreno vazio.
— Aquele preto saiu da casa com algo na mão, enfiou dentro do casaco, depois foi para a
calçada, olhou para a casa, apenas observando. Talvez não estivesse apenas observando… eu o via
por trás. Então, a porta da frente se abriu, digo, inteira, e aquela velha estava bem ali e estava
gritando com o homem! Ela saiu até os degraus, e eu me afastei da cortina. Nunca tinha visto
aquela mulher, nem por um segundo, fora da casa. Não é estranho? Mas é verdade. Ela pedia
para entregar tudo em casa, há anos. Então, ela estava lá fora. Devia estar furiosa. Foi isso que
pensei. Ela desceu as escadas para dar uma lição naquele preto!
“Agora, não sei o que mais acrescentar à próxima parte, pois vou dizer que gostei do que vi.
Certo? Ela saiu, e o preto ficou parado lá, paciente como ele só, e então foi como se uma porta se
abrisse. Veja o senhor, bem ali, onde o portão da casa funerária encosta na propriedade dela?
Alguma coisa se abriu bem ali. Digo que é uma porta, mas não era mesmo uma porta. Era como
um buraco, ou um bolsão, e dentro do bolsão estava vazio, preto. Não sei o que mais dizer disso.
Como o céu noturno, mas sem nenhuma estrela. E o tempo todo minha Elizabeth ficou gritando
na cozinha.
A mulher abaixou a cabeça, fechou os olhos e os cobriu com uma das mãos.
— Então, aquele preto, ele simplesmente… — Ela olhou para o terreno, estendeu o braço
esquerdo. Ela correu a mão, um gesto como se cobrisse tudo. — Ele fez assim, como alguém
expulsando um gato da casa. Ou quando eu abro a porta dos fundos da cozinha e uso a vassoura
para varrer a sujeira para o exterior.
— O Exterior? — repetiu Malone. Os lábios pareciam secos.
— E então não consegui manter meus olhos concentrados, e me senti bastante enjoada. Ouvi
aquele som profundo atrás dos olhos. Deixei minha filha chorando sem parar. Agora, por que eu
faria isso? Não sou esse tipo de gente. Então, quando consegui me concentrar de novo, digo, sem
ficar zonza, vejo aquele homem na calçada, mas ele está sozinho agora. Digo, a casa desaparece e
a grama desaparece e aquela velha mulher também. Desaparece.
— E a porta? — perguntou Malone. — O buraco que você viu?
Nesse momento, ela apoia o próprio queixo, olhando para o terreno.
— Acho que desapareceu também. Eu não estava pensando muito bem. Corri para fora.
Consegue acreditar nisso? Eu estava indo pegar aquele preto se precisasse. Mas quando abri
minha porta da frente, ele havia desaparecido. Fiquei em pé, na rua, gritando. Era isso, ou achei
que minha cabeça explodiria com o que eu vi.
Black Tom estava com o livro. O que significava que Robert Suydam logo o teria. Pior ainda,
Black Tom havia sumido com Ma Att, de alguma forma, com um movimento de mão. Se um
mero tenente podia deter tanto poder, que devastação Suydam poderia causar? Malone sentiu-se
repentina e totalmente pequeno.
— E sua filha? — perguntou Malone. — Tudo bem com ela?
A mulher abriu um sorriso forçado, balançando a cabeça.
— Chorou até dormir bem ali no piso da cozinha. Ela estava tentando pegar o jarro de
hortelã.
Malone voltou à viatura. Acenou para o patrulheiro seguir, e os dois voltaram à delegacia da
Butler Street. Malone falou sobre o que havia acontecido com a casa de Ma Att em termos vagos.
Danos à propriedade. Pessoas desaparecidas. Grande roubo. Não disse nada sobre o que a mulher
havia testemunhado. Seus superiores teriam passado horas questionando o depoimento, céticos
por dias. E Malone sentia que eles não tinham dias para desperdiçar.
Black Tom provavelmente já havia levado o livro a seu mestre. Malone precisava tramar uma
maneira de entrar junto com a força policial inteira da cidade de Nova York em Red Hook. Foi
até seus superiores. Malone alegou que Suydam e Black Tom estavam produzindo bebida ilegal
nos porões dos três prédios de apartamentos e abrigando imigrantes ilegais das nações menos
desejáveis. Por fim, acrescentou ele, o preto provavelmente havia sequestrado a velha e a arrastado
para um porão escuro para cometer crimes de natureza degradante. Os chefes de Malone ficaram
devidamente motivados. Dentro de uma hora, as forças concentradas de três diferentes delegacias
estavam se reunindo, um exército partindo para a batalha.
16
Black Tom estava sobre Robert Suydam. A navalha ainda estava na mão direita, mas ele
Black Tom estava sobre Robert Suydam. A navalha ainda estava na mão direita, mas ele
ergueu a esquerda, com a qual prendia o item que Malone havia tomado por um pincel de crina
de cavalo.
— Tive que ser criativo! — gritou Black Tom. — O senhor Howard provou ser bem útil
quando chegou a hora de pintar. Ao menos uma parte dele.
Malone aprumou-se e deu um tapinha no joelho do sr. Howard. Nenhum homem merecia
uma morte dessa.
Malone levantou-se. Black Tom aproximou-se da grande poltrona. Malone quis que sua mão
sacasse a pistola. Sobre a cabeça, o gesso desmoronava e caía. Robert Suydam, enquanto isso,
estava agonizando; ficou de joelhos, tombou para frente, agarrando a garganta enquanto sua
essência escorria entre os dedos, uivou mais com a perplexidade do que com a dor.
— Mesmo agora não consigo imaginar que ele vá triunfar — disse Black Tom, apontando
para Suydam. O preto não segurava com firmeza a navalha, agora era um assassino casual. Os
dedos estavam melados de sangue. Olhou para o teto. — Eles vão derrubar esse lugar em cima de
você.
— De nós — disse Malone com a mão ainda dentro do casaco. — Em cima de nós três.
O portal permanecia aberto e, mesmo sem querer, uma parte de Malone ficou embevecida
com a visão. Seus olhos ajustaram-se. Estava olhando uma cidade perdida nas eras, no fundo do
mar. E no meio daquela metrópole arruinada viu uma figura tão grande quanto uma cadeia de
montanhas.
— Ouça agora — disse Black Tom, apontando para o teto, indicando o turbilhão de tiros e
gritos na rua. — Essa é uma canção que minha mãe e meu pai nunca me ensinaram. É toda
minha.
As metralhadoras pesadas continuavam a disparar. Quanto mais de munição poderia ter lhes
restado? Os gritos dos moradores, combinados como se fossem um único instrumento, tocavam
junto com as 1921. E Robert Suydam, pobre diabo, continuava vivo. Berrava, e seu sangue
esguichava pelos dedos agarrados à garganta. Cada um desses sons formava uma camada, uma
sobre a outra, uma com a outra. Uma música demente, orquestração maligna.
— Para mim parece tão suave quanto uma balada — disse Black Tom.
— Você matou a velha — retrucou Malone. — Ma Att.
— Ela não pode ser morta — explicou Black Tom. — Mas foi despachada.
— Sou um oficial da lei. Não entende as consequências de você me ferir?
— Armas e distintivos não assustam todo mundo — respondeu Black Tom.
— Como? — perguntou Malone. — Como você consegue fazer tudo isso?
— Suydam me mostrou que essas coisas eram possíveis. Mas o velho não tinha o caráter para
levar isso a cabo. Precisou ser eu a atravessar as portas e dar boas-vindas ao destino. Suydam
provou ser como qualquer outro homem. Queria poder, mas o Rei Adormecido não honra
pedidos pequenos.
— Então, o que você está fazendo? — quis saber Malone, parecendo uma criança apavorada.
— Se não é por poder, que motivo teria?
Black Tom deu um tapa firme na nuca de Malone, que nunca tinha sentido o Cumprimento
do John. Era doloroso. Black Tom guiou-o para longe da poltrona. Enquanto se moviam, Black
Tom deu um chute nela, e o corpo do sr. Howard estatelou-se no chão.
— Carrego um inferno dentro de mim — rosnou Black Tom. — E quando descobri que
ninguém tinha compaixão por mim, quis arrancar árvores, espalhar o caos e a destruição ao meu
redor e depois me sentar e desfrutar da ruína.
— Então, você é um monstro — comentou Malone.
— Fizeram de mim um monstro.
Foram na direção de Robert Suydam, que continuava a arfar, mas tinha perdido tanto sangue
que havia caído de cara no chão. Gorgolejava como um ralo. Black Tom levou Malone na direção
do portal, e Malone sentiu a repentina convicção de que Black Tom o jogaria lá dentro, o
empurraria através dele. Malone temia menos se afogar naquele mar distante do que ficar perto
daquela velha cidade sombria e condenada e ser largado entre suas ruínas.
— Não — sussurrou Malone. — Não me mande para lá. Não me mande para lá.
— Pensei que você fosse um caçador — disse Black Tom. — Bem, aí está.
Black Tom forçou Malone a ficar de joelhos. Estavam a três metros do portal. O grande vento
que soprava por ele não cheirava a oceano, mas a uma podridão profunda. Uivava, e os sentidos
de Malone vacilaram, golpeados por uma compreensão repulsiva.
— Palavras e melodia — disse Black Tom, falando bem no ouvido de Malone. — É o que se
precisa para esta canção. Consegue ouvir a melodia pairando sobre você, mas as palavras não
estão completas. Mais uma letra precisa ser escrita, mas eu talvez necessite de um pouco mais de
sangue. Gostaria de me ajudar com isso?
Através do portal, em meio às ruínas da cidade afundada, Malone percebeu a figura de
enormes feições – um rosto, ou a distorção de um rosto. As partes superiores daquela face eram
lisas como a cúpula de um crânio humano, mas embaixo dos olhos o rosto pulsava e se
enrodilhava entre tentáculos. As pálpebras do tamanho de velas desfraldadas permaneciam
fechadas, felizmente, mas tremiam como se fossem abrir.
— Chega! — uivou Malone, fechando os olhos. — Não quero ver!
Black Tom levou um braço ao redor do pescoço de Malone e apertou com firmeza.
— O nome do meu pai era Otis Tester — sussurrou Black Tom. — Minha mãe era Irene
Tester. Vou cantar para você a canção favorita deles.
Malone puxou o braço de Black Tom com uma das mãos, e com a outra tentou de novo
encontrar sua arma. Enquanto Black Tom o sufocava, enquanto Black Tom cantava, Malone
manteve uma parte de sua mente racional no meio de tanta loucura.
Encontre a pistola.
Use a pistola.
— “Não ligue se o povo rir da sua cara” — cantou Black Tom, baixinho.
Encontre a pistola.
Use a pistola.
— “Não ligue se o povo rir da sua cara.”
A mão de Malone encontrou o bolso do casaco e deslizou para dentro. Ele agarrou o revólver.
— “Eu disse guarde essa verdade, um bom amigo é raridade” — arrulhou Black Tom.
A mão de Malone saiu com a arma. Ele só precisava erguê-la e puxar o gatilho tantas vezes
quanto pudesse. Daquela distância ficaria surdo, talvez o dano fosse permanente, mas Black Tom
seria derrotado, e isso era o que mais importava.
Black Tom grunhiu. De repente, estava fazendo algo no rosto de Malone, mas o detetive não
conseguia entender o que podia ser. Quando a mão de Malone se ergueu, uma nova sensação o
paralisou. Tinham ateado fogo nele, era o que parecia. Uma dor chamejante, cuja causa ele não
conseguia localizar. Só sabia que era uma agonia tão intensa que o mundo pareceu se inflamar ao
seu redor. Uivou como um animal, e a mão que segurava a pistola atirou contra sua vontade. A
pistola caiu da mão de Malone e voou para dentro do portal, daquele mar distante.
Malone berrou, berrou e soltou o braço de Black Tom. Ele bateu no próprio rosto como se
afastasse seu tormento. Black Tom grunhiu de novo, e os olhos de Malone ficaram úmidos.
Tinha algo sendo feito com os olhos de Malone. Uma sensação de repuxar, como se o rosto dele
estivesse sendo arrancado. Black Tom segurava a navalha com uma das mãos, e ela pingava
sangue.
Black Tom havia cortado as pálpebras de Malone.
— Tente fechá-los agora — disse Black Tom. — Não poderá escolher a cegueira quando
quiser. Não mais.
Através do portal, Malone testemunhou – contra sua vontade – o momento em que a
montanha se virou para encará-lo. Suas pálpebras estavam abertas. Nas profundezas do mar, um
par de olhos reluziu como uma estrela. Malone chorou.
Em seguida, a visão desapareceu. O sangue de Malone turvou sua perspectiva. Pela primeira
vez, os tiros das pesadas metralhadoras foram abafados pela nova destruição. O prédio do meio
veio abaixo, o que fez com que os outros dois tombassem também. Desmoronassem. Para
Malone, o mundo inteiro parecia estar se dividindo ao meio.
Black Tom por fim soltou Malone, e este caiu no chão do porão. Ele sussurrou uma última
coisa no ouvido do detetive. Robert Suydam jazia a meio metro de distância, finalmente morto.
Malone divisou a figura de Black Tom agachando-se ao lado dele, mergulhando um dedo no
sangue do detetive, em seguida escrevendo algo no chão, bem diante do portal. Quando Black
Tom terminou, a entrada se fechou.
As escadas do porão que levavam até o nível da rua ficaram visíveis de novo. A porta no alto
das escadas escancarou-se, e meia dúzia de policiais desceram apressados. Pensaram que estavam
escapando do pior indo para o subterrâneo. Mas esses policiais devem ter pensado que haviam
entrado nos intestinos do inferno mais profundo. Escaparam de um prédio de apartamentos
desmoronando para encontrar um abatedouro. Os cadáveres de dois homens brancos, a forma
torturada do próprio detetive Malone, do Brooklyn, as paredes e o chão melados de sangue, e um
preto alto em pé no meio de tudo aquilo.
Dois dos oficiais voltaram pelas escadas, mas o cimento e os tijolos que caíram impossibilitou
sua saída. Os outros quatro imediatamente ergueram as armas – fuzis e pistolas –, mirando em
Black Tom.
Black Tom caminhou na direção deles com a navalha erguida sobre a cabeça. Mesmo em sua
dor e delírio, Malone gritou para os policiais atirarem. Um grito pelo desejo de derramamento de
sangue. Os dois últimos policiais juntaram-se a seus irmãos nos pés das escadas e sacaram seus
revólveres de serviço. Os seis homens dispararam cinquenta e sete balas em Black Tom.
17
BLACK TOM ENTROU NA Sociedade Victoria e pegou uma mesa na sala de jantar, uma próxima
das janelas que davam para a 137th Street. Assim que chegou, enfiou a navalha no bolso e tirou
casaco e colete. Tinha se lavado um pouco, mas quase não adiantou. Suas calças ainda estavam
duras com terra e escuras de sangue, e a camisa tinha tanta transpiração que grudava na pele.
Ainda assim, sua entrada foi permitida. O porteiro tinha medo dele.
Black Tom sentou-se na sala de jantar e, como já avançava a tarde, o espaço estava vazio.
Sentou-se de costas para tudo, observou o sol brilhando sobre o Harlem e ouviu a colmeia
rumorejante de vida nas calçadas e nas ruas.
Quando Buckeye chegou, um prato de comida estava servido à frente de Black Tom. Ele não
havia comido nada. Buckeye pediu seu prato – refeição feita por uma porto-riquenha dessa vez –,
e ele não olhou para Black Tom até ter comido duas alcapurrias. O porteiro havia espalhado que
o amigo de Buckeye estava na Sociedade Victoria, parecendo realmente estranho.
— Soube do seu pai — disse Buckeye depois de ter engolido.
— Meu pai? — perguntou Black Tom, como se tivesse esquecido que tivera um.
— Onde você esteve, cara? — perguntou Buckeye, deixando o garfo de lado. — O que
aconteceu com você?
— Você vai ouvir falar — disse Black Tom com calma. — Estará nos jornais de amanhã.
Provavelmente a semana inteira. Então, vão mudar de assunto.
Buckeye observou Black Tom em silêncio. Ele já estava por muito tempo na atividade para
saber que havia perguntas que não se faz se quiser evitar ser tragado para um tribunal mais tarde.
Black Tom disse:
— Fiz uma coisa grande, maior do que qualquer um vai entender por muito tempo. Eu estava
tão furioso.
Buckeye assentiu, comeu mais alguns bocados de mofongo e se segurou muito para não fazer as
perguntas seguintes.
— Eu era um homem bom, certo? Digo, eu não era como meu pai, mas nunca fiz mal às
pessoas. Não de verdade.
— Não, não fez — disse Buckeye, olhando o amigo diretamente nos olhos. — Sempre foi boa
gente. Ainda é.
Black Tom abriu um sorriso fraco, mas balançou a cabeça.
— Todas as vezes que eu estava perto deles, eles agiram como se eu fosse um monstro. Então
eu disse “Caramba, vou ser o pior monstro que vocês já viram”!
Os recém-chegados nas mesas próximas viraram-se para olhar Black Tom, mas nem ele
tampouco Buckeye perceberam.
— Mas eu me esqueci — disse Black Tom em voz baixa. — Eu me esqueci de tudo isso.
Black Tom observou as mesas de homens e mulheres que jantavam na Sociedade Victoria.
Apontou para a fileira de janelas que se abria para a 137th Street.
— Aqui ninguém jamais me chamou de monstro — comentou Black Tom. — Então, por que
corri para outro lugar, para ser tratado como um cachorro? Por que não consegui enxergar todas
as coisas boas que eu já tinha? Malone disse que eu pus meu pai em risco, e ele estava certo. É
minha culpa também. Eu o usei sem pensar duas vezes.
Black Tom enfiou a mão no bolso e revelou a navalha. Buckeye deu uma olhada rápida ao
redor da sala, mas o outro não prestou atenção. Abriu a navalha. A lâmina parecia besuntada em
geleia. Buckeye sabia o que era. Black Tom estendeu a faixa de couro para afiar navalha sobre a
mesa, e Buckeye jogou seu guardanapo sobre ela.
— Precisamos nos livrar disso daí — avisou Buckeye, olhando para a forma sob o guardanapo.
— Deveria ter feito isso antes de entrar aqui.
— Os mares vão se erguer e nossas cidades serão engolidas pelos oceanos — disse Black Tom.
— O ar ficará tão quente que não conseguiremos respirar. O mundo será refeito por Ele e por
Sua espécie. Aquele homem branco tinha medo da indiferença; bem, agora ele vai descobrir
como é senti-la.
“Não sei quanto tempo vai levar. Nosso tempo e o tempo deles não são contados da mesma
forma. Talvez um mês? Talvez mil anos? Tudo isso vai passar. A humanidade será eliminada. O
globo será deles de novo, e fui eu quem fiz isso. Black Tom fez isso. Eu lhes dei o mundo.”
— Quem é Black Tom, porra? — perguntou Buckeye.
— Eu — respondeu ele.
Buckeye olhou mais uma vez em volta da sala, em seguida agarrou o guardanapo e a navalha
também. Dobrou o guardanapo ao redor da lâmina.
— Seu nome é Tommy Tester — disse Buckeye. — Charles Thomas Tester. É meu melhor
amigo e o pior cantor que já ouvi.
Os dois homens riram alto e, por um breve momento, Black Tom pareceu ser como era não
muito tempo antes: um rapaz com vinte anos de idade e dono de grande alegria.
— Queria ter sido mais como meu pai — disse Black Tom. — Ele não tinha muito, mas
nunca perdeu a alma.
Buckeye deslizou para baixo da mesa, mexendo na bota direita, tentando deslizar a navalha
para dentro dela por segurança. Ele a descartaria no rio depois de levar Tommy para casa.
— Imagino se eu poderia conseguir a minha de volta — sussurrou Black Tom.
Ele se levantou da mesa, caminhou até uma janela e a abriu. Às 16h13, os cidadãos do
Harlem no raio de três quarteirões relataram um som estranho na cabeça e uma onda repentina
de náusea. Antes que qualquer um dentro da Sociedade Victoria percebesse o que estava
acontecendo, Black Tom atravessou a janela. Buckeye virou-se a tempo de vê-lo saltar, mas o
corpo de Tommy Tester nunca foi encontrado. Zig zag zig.
EXTRAS
DE VOLTA A RED HOOK
A obra que você acabou de ler é uma releitura de “O horror em Red Hook”, um dos contos mais
xenofóbicos, racistas e controversos de H. P. Lovecraft, autor frequentemente considerado o
mestre do Horror Cósmico.
Na juventude, Victor LaValle fascinava-se frequentemente pelos mundos místicos e ocultos
habilmente criados por Lovecraft, tornando-se assim rapidamente uma das suas principais
influências literárias, junto com nomes potentes como Stephen King, Shirley Jackson e Clive
Barker. Mas, conforme foi ficando mais velho, surpreendeu-se, para dizer o mínimo, ao ver que
muitas das histórias que devorou quando criança eram incrivelmente ofensivas e perniciosas à sua
própria pessoa, como homem afro-americano.
À medida que novos fatos emergem, é cada vez mais comum descobrir que artistas por quem
nutrimos grande admiração manifestam opiniões ou agem de maneiras que vão frontalmente
contra o que acreditamos ou até contra o que somos. Então, como separar uma coisa da outra?
Como lidar com sentimentos tão conflitantes?
A resposta de LaValle foi a habilmente construída A balada do Black Tom, ao mesmo tempo
uma homenagem e uma crítica a Lovecraft. E para dar a você, leitor, a experiência completa,
incluímos o conto “O horror em Red Hook” nesta edição.
Você está prestes a voltar para Red Hook, desta vez junto com o detetive Malone – dividido
entre as observações lógicas sobre o caso Suydam e sua abertura ao aspecto místico dos
acontecimentos.
O seu contato com o conto será integral e, ao traduzi-lo, não amenizamos os termos
escolhidos por Lovecraft, buscando seus equivalentes em impacto e intolerância. Assim, a sua
experiência será similar à que levou Victor Lavalle a escrever sua releitura. É importante notar
que os problemas do conto vão além de descrições pejorativas dos que não são brancos, mas em
também atribuir imediatamente a eles a responsabilidade dos males que acometem o bairro, além
de exprimir um desejo xenofóbico de acabar com toda imigração.
O conto e suas ideias controversas foram publicados pela primeira vez em 1927, na edição de
O conto e suas ideias controversas foram publicados pela primeira vez em 1927, na edição de
janeiro da revista Weird Tales. Lovecraft era de fato um homem de seu tempo, um tempo no
qual ideias racistas, xenofóbicas e misóginas eram menos publicamente repudiadas. Não
acreditamos que isso justifique suas escolhas narrativas ou as torne aceitáveis. A responsabilidade
do leitor contemporâneo é interpretar textos sob um olhar crítico.
Acreditamos que uma boa decisão só pode ser tomada com todas as informações disponíveis.
O nosso objetivo é que, com essas ferramentas, você possa complementar a leitura de A balada do
Black Tom e tirar as suas próprias conclusões sobre o que realmente aconteceu em Red Hook.
HÁ POUCAS SEMANAS, EM UMA ESQUINA no vilarejo de Pascoag, Rhode Island, um pedestre alto e
corpulento, de aparência saudável, gerou muita especulação por um lapso singular de
comportamento. Ao que parecia, ele estava descendo a colina ao lado da estrada, vindo de
Chepachet; ao chegar à sua parte mais plana, virou à esquerda na avenida principal, onde várias
quadras comerciais lhe conferiam um toque urbano. Nesse momento, sem motivo aparente, ele
teve seu lapso desconcertante; encarou por um segundo e de maneira estranha o prédio mais alto
à sua frente e, então, com uma série de gritos histéricos e apavorados, disparou em uma corrida
desenfreada – que terminou em tropeço e queda no cruzamento seguinte. Levantado e limpo por
mãos preparadas, viu-se que ele estava consciente, organicamente ileso e evidentemente curado
do seu súbito ataque de nervos. Balbuciou algumas explicações envergonhadas envolvendo um
desgaste pelo qual passara, e, com o olhar baixo, retornou para a estrada de Chepachet,
arrastando-se para fora de vista sem olhar para trás sequer uma vez. Era estranho que um
acontecimento assim se abatesse sobre um homem tão grande, robusto, de aparência tão normal e
capaz. Essa estranheza não foi diminuída pelo comentário de um transeunte, de que o homem
era o inquilino de um pecuarista nos arredores de Chepachet.
Ele era, mais tarde se soube, um detetive da polícia de Nova York chamado Thomas F.
Malone, em longa licença médica depois do trabalho desproporcionalmente árduo em um caso
local tenebroso, tornado dramático por um acidente. Houve um desabamento de vários prédios
antigos de tijolo durante uma batida da qual participara, e algo na perda massiva de vidas, tanto
de prisioneiros como de seus colegas, o impressionou de maneira particular. Como resultado,
adquiriu um medo agudo e anormal de quaisquer prédios remotamente similares aos que
desabaram. Então, especialistas em saúde mental o proibiram de ver esse tipo de prédio por
tempo indeterminado. Um cirurgião da polícia com parentes em Chepachet sugeriu que uma
aldeia pitoresca de casas coloniais de madeira seria o lugar ideal para sua convalescência
psicológica; e para lá foi o doente, prometendo nunca mais se arriscar entre as ruas pavimentadas
de cidades maiores até ser devidamente liberado pelo especialista de Woonsocket que lhe
indicaram. Essa caminhada para comprar revistas em Pascoag fora um erro, e o paciente pagou
por sua desobediência em pavor, machucados e humilhação.
Era isso o que as fofocas de Chepachet e Pascoag sabiam; e também era nisso que a maioria
Era isso o que as fofocas de Chepachet e Pascoag sabiam; e também era nisso que a maioria
dos especialistas eruditos acreditava. Mas Malone contou muito mais a eles, a princípio, parando
apenas quando viu a incredulidade absoluta que lhe devolviam. A partir de então, calou-se, sem
protestar quando seu desequilíbrio nervoso era genericamente atribuído ao colapso de alguns
prédios de tijolos na área de Red Hook, no Brooklyn, e à consequente morte de muitos policiais
corajosos. Ele trabalhou duro demais, com tudo considerado, tentando limpar aqueles ninhos de
desordem e violência; alguns elementos já eram suficientemente chocantes para qualquer um em
plena consciência, e a tragédia inesperada fora a gota-d’água. Essa era uma explicação simples que
qualquer um poderia entender; e por Malone não ser uma pessoa simples, percebeu que ela
bastava. Sugerir para pessoas sem imaginação um horror além da compreensão humana – um
horror de casas e quadras e cidades leprosas e cancerosas por um mal tragado de mundo anciões –
seria meramente convite para uma cela acolchoada em vez de uma aposentadoria restauradora, e
Malone era um homem de razão, a despeito de seu misticismo. Ele tinha a visão de longo alcance
dos celtas para o estranho e o oculto, mas o olhar rápido do lógico para o de aparência pouco
convincente. Uma amálgama que o levou longe em seus 42 anos de vida, e colocou-o em lugares
estranhos para um universitário de Dublin, nascido em uma vila de Geórgia perto de Phoenix
Park.
E agora, enquanto revisitava as coisas que vira e sentira e apreendera, Malone estava contente
por não ter compartilhado o segredo do que podia reduzir um combatente destemido em um
neurótico trêmulo; o que podia trazer velhos tijolos abaixo e criar mares de escuridão, transformar
rostos delicados em matéria de pesadelo e presságio sobrenatural. Não seria a primeira vez em
que suas percepções foram fadadas a ficar sem interpretação – e não era o próprio ato de
mergulhar no abismo poliglota do submundo de Nova York uma aberração além de explicações?
O que poderia dizer aos prosaicos sobre as antigas feitiçarias e maravilhas grotescas, discerníveis
por olhos sensíveis, entre o tóxico caldeirão onde resquícios diversos de eras perigosas misturam
seus venenos e perpetram seus terrores obscenos? Ele vira a chama verde infernal de
maravilhamento íntimo nesse gritante e evasivo turbilhão de cobiça visível e blasfêmia intrínseca,
e sorrira gentilmente quando todos os nova-iorquinos que conhecia zombaram de seu
experimento na polícia. Haviam sido muito astutos e cínicos, ridicularizando sua busca fantástica
por mistérios ininteligíveis e garantindo a ele que nesses tempos Nova York não escondia nada
além de grosseria e vulgaridade. Um deles havia apostado um valor alto que Malone não poderia
– a despeito das muitas coisas comoventes creditadas a ele no Dublin Review – sequer escrever
uma história verdadeiramente interessante sobre a classe baixa de Nova York. E agora, avaliando
o passado, ele percebia que a ironia cósmica justificava as palavras do profeta enquanto
secretamente recusava seu significado petulante. O horror, quando finalmente vislumbrado, não
poderia gerar uma história – pois, como o livro de autoridade alemã citado por Poe diz “es lässt
sich nicht lesen” – ela não se permite ser lida.
II
PARA MALONE, O SENSO LATENTE de mistério existencial sempre esteve presente. Quando
jovem, ele sentira a beleza e o êxtase escondidos das coisas e fora poeta; mas pobreza, amargura e
exílio direcionaram o seu olhar a direções mais sombrias, e o entusiasmaram com as
consequências do mal mundo afora. A vida diária transformou-se para ele em uma fantasmagoria
dos macabros estudos sombrios; cintilando e espiando com uma podridão velada agora, à melhor
maneira Beardsley1, sugerindo terrores atrás dos objetos e formas mais comuns, no trabalho sutil
e menos óbvio de Gustave Doré2, depois. Ele frequentemente considerava piedoso que boa parte
das pessoas de grande Inteligência zomba dos mistérios profundos, pois, argumentava ele, se as
mentes superiores fossem colocadas em contato total com os segredos preservados por cultos
anciões e inferiores, as aberrações resultantes logo iriam não só desolar o mundo, como ameaçar a
própria integridade do universo. Essa reflexão toda era sem dúvida mórbida, mas era bem lógica e
compensada por um senso de humor sagaz e profundo. Malone ficava satisfeito em deixar essas
noções parcialmente consideradas e em brincar despreocupadamente com visões proibidas. A
histeria veio somente quando o dever o lançou em uma descoberta infernal súbita e traiçoeira
demais para que escapasse.
Ele estava encarregado há algum tempo da delegacia da Butler Street, no Brooklyn, quando
ficou ciente da questão de Red Hook. Esse lugar é um labirinto de miséria híbrida perto da
antiga margem oposta a Governor’s Island, suas ruas sujas subindo o morro do cais àquele terreno
elevado onde a parte decadente de Clinton Street e Court Street levam para Borough Hall. A
maior parte de suas casas é feita de tijolo, datando do primeiro quarto do século XIX, e alguns
becos e atalhos mais escuros têm aquele estilo antigo fascinante que a leitura tradicional nos leva
a chamar de “dickensiano”. A população é uma confusão e um enigma; elementos sírios,
espanhóis, italianos e pretos se aglomerando um sobre o outro, com fragmentos próximos de
regiões onde moram escandinavos e americanos. É uma babel de som e sujeira, e envia gritos em
resposta às ondas oleosas em seus píeres encardidos e à litania mostruosa de órgão dos apitos do
porto. Há muito tempo, o lugar formava uma imagem mais brilhante, com marinheiros de olhos
claros nas ruas mais baixas, e casas de gosto e qualidade onde agora casas maiores marcam o
morro. É possível retraçar as relíquias dessa felicidade perdida no formato bem-acabado das
construções, nas poucas igrejas graciosas e nos resquícios da arte e pintura originais aqui e ali –
um lance de escada gasto, um batente surrado, um par decorativo de colunas ou pilastras
corroído, ou um fragmento do que fora um gramado com trilhos de ferro tortos e enferrujados.
As casas são geralmente blocos sólidos, com cúpulas cheias de janelas surgindo aqui ali,
testemunhas dos dias em que as famílias de capitães e donos de barcos vigiavam o mar.
Desse emaranhado de podridão material e espiritual eram lançadas ao céu blasfêmias em
centenas de idiomas. Hordas de vagabundos cambaleantes gritavam e cantavam pelas ruas e
avenidas, mãos furtivas ocasionais apagavam luzes e abaixavam cortinas, e faces morenas,
marcadas pelo pecado3, desaparecem das janelas quando visitantes escolhiam seu caminho.
Policiais desistiram de ordem ou reabilitação, e procuram agora erguer barreiras que protejam o
resto do mundo desse contágio. A sirene da patrulha tem como resposta um tipo de silêncio
espectral, e os prisioneiros que são capturados nunca são comunicativos. Ofensas visíveis são tão
variadas quanto os dialetos locais, e gerenciam do tráfico de rum a itens proibidos em diversos
estágios de ilegalidade, de vício obscuro a assassinato e mutilação em seus pretextos mais
abomináveis. Que essas questões visíveis não sejam mais frequentes não é mérito do bairro, a
menos que o poder de encobrimento seja uma arte digna de mérito. Mais pessoas entram em Red
Hook do que saem de lá – pelo menos de maneira terrena – e aqueles que não são tagarelas têm
mais chances de ir embora.
Malone encontrou nessa situação do bairro um fedor sutil de segredos mais terríveis que
quaisquer pecados delatados por cidadãos e lamentados por padres e filantropos. Estava ciente,
como alguém que unia imaginação com conhecimento científico que, sob circunstâncias sem leis,
pessoas modernas estranhamente tendem a repetir os padrões instintivos mais sombrios da
selvageria semi-símia em suas vidas e rituais de higiene; e vira frequentemente com um
estremecimento antropológico os cânticos, procissões amaldiçoadas de olhos marejados e de
jovens de rosto acneico que abriam caminho pelas pequenas horas escuras da manhã. Via-se
grupos desses jovens incessantemente; algumas vezes a manter vigias mal-intencionadas nas
esquinas, em outras nos batentes tocando de forma sinistra instrumentos baratos, em outras ainda
conversando em sussurros perto de táxis sujos trazidos às ladeiras de casas velhas, decadentes e
amontoadas. Eles o arrepiavam e fascinavam mais do que ele se atrevia a admitir aos seus colegas
da delegacia, pois parecia ver neles uma linha monstruosa de continuidade secreta; um padrão
diabólico, críptico e antigo muito abaixo e além da massa sórdida de fatos e hábitos e
investigações listadas pela polícia com um cuidado tão esmeradamente técnico. Eles deviam ser,
sentia em seu íntimo, os herdeiros de uma tradição chocante e primordial; deviam compartilhar
dos resquícios degradados e distorcidos de cultos e cerimônias anteriores à humanidade. Era o
que a coesão e determinação deles sugeriam, e transparecia na suspeita singular de ordem que
espreitava naquela desordem esquálida. Ele não lera em vão tratados como Miss Murray’s Witch-
Cult in Western Europe; e sabia que nos últimos anos certamente vivera, entre camponeses e gente
furtiva, um sistema assustador e clandestino de encontros e orgias descendentes de religiões
obscuras antecedentes ao Mundo Ariano, mencionadas em lendas populares como Missas Negras
e Sabás de Bruxas. Sabia que não podia supor nem por um momento que esses vestígios infernais
de antigos cultos asiático-turanianos de magia e fertilidade ainda não estavam totalmente mortos,
e ele frequentemente se perguntava quão mais velhas e mais sombrias que a pior de todas as
lendas murmuradas parte desses cultos realmente poderia ser.
III
FOI O CASO DE ROBERT SUYDAM que levou Malone ao centro das questões de Red Hook.
Suydam era um homem recluso e culto de uma antiga família holandesa, originalmente dona de
poucos recursos. Ele morava em uma mansão espaçosa mas mal preservada, construída por seu
avô em Flatbush, quando o povoado era pouco mais que um punhado agradável de casinhas
coloniais cercando a torre coberta por heras da Igreja Protestante e seu terreno cercado, cheio de
lápides em holandês. Em sua casa solitária, afastada da Martense Street em um terreno de árvores
frondosas, Suydam lera e se isolara por seis décadas, exceto pelo período, há uma geração, em que
viajou pelo velho mundo e sumiu por oito anos. Não tinha como manter criados e aceitava poucas
visitas à sua solidão absoluta; evitando amizades próximas e recebendo os raros conhecidos em
um dos três cômodos térreos que mantinha em ordem – uma vasta biblioteca de pé-direito alto
cujas paredes eram totalmente repletas de livros gastos de aspecto solene, arcaico e vagamente
repugnante. Sua cidade crescer e ser absorvida pelo Brooklyn pouco importou a Suydam, afinal ia
cada vez menos à cidade. Os mais velhos ainda o reconheciam na rua, mas para a maior parte da
população recente ele não passava de um homem velho, gordo e esquisito, cujo cabelo branco
desgrenhado, barba por fazer, roupas pretas reluzentes e bengala de topo dourado atraíam um
olhar entretido e nada mais. Malone não o conhecia pessoalmente até o dever convocá-lo para o
caso, mas já havia ouvido indiretamente que Suydam era uma grande autoridade em superstições
medievais e despretensiosamente quisera dar uma olhada em certo panfleto sobre a Cabala e a
lenda de Fausto que o homem possuía e que um amigo citara de cor.
Suydam tornou-se um caso quando seus únicos e distantes parentes deram testemunhos
jurídicos sobre a sanidade dele. Essa atitude pareceu súbita ao resto do mundo, mas foi tomada
apenas depois de uma observação contínua e um debate pesaroso. Foi motivada por algumas
mudanças estranhas em seu discurso e comportamento; referências loucas a assombros iminentes
e buscas irresponsáveis por áreas pouco respeitáveis do Brooklyn. Tornara-se mais e mais
maltrapilho ao longo dos anos e agora vagava como um verdadeiro mendigo. Era visto
ocasionalmente em estações de metrô por amigos constrangidos ou vadiando em bancos perto de
Borough Hall, em conversas com grupos de desconhecidos morenos e de aparência maligna.
Quando falava, era para balbuciar sobre poderes ilimitados quase ao seu alcance e para repetir
com olhar malicioso palavras místicas ou nomes como “Sephiroth”, “Ashmodai” e “Samaël”. A
ação judicial revelou que ele estava gastando toda a sua renda e corroendo seu patrimônio na
compra de volumes incomuns importados de Londres e Paris, bem como na manutenção de um
decadente apartamento subterrâneo no distrito de Red Hook onde passava quase todas as noites
recebendo grupos estranhos de arruaceiros e estrangeiros, e aparentemente liderando algum tipo
de cerimônia atrás de cortinas verdes nas janelas discretas. Os detetives designados a segui-lo
relataram ouvir gritos e cânticos estranhos e o furtivo arrastar de pés saindo desses rituais
noturnos, e estremeciam ao êxtase e abandono peculiares, apesar de serem rotineiras essas orgias
incomuns naquela área torpe. Entretanto, quando a questão chegou a uma audiência, Suydam
conseguiu preservar sua liberdade. Seus modos tornaram-se civilizados e razoáveis perante o juiz,
e ele admitiu espontaneamente a estranheza de sua conduta e no linguajar extravagante no qual
caiu pela devoção excessiva ao estudo e à pesquisa. Estava, segundo ele, dedicando-se à
investigação de determinados detalhes da tradição europeia que exigiam contato próximo com
grupos estrangeiros, com suas músicas e danças folclóricas. A ideia de que alguma sociedade
secreta estava se aproveitando dele, como sugerido por sua família, era evidentemente absurda e
mostrava quão tristemente limitada era sua compreensão sobre ele e seu trabalho. Triunfando
com explicações calmas, foi determinado que Suydam fosse liberado. Os detetives contratados
pelos Suydam, Corlears e Van Brunts foram dispensados com resignada aversão.
Foi assim que entrou no caso uma aliança de inspetores federais com a polícia, e Malone com
ela. Os agentes da lei observaram as ações de Suydam com interesse e foram chamados em
diversas ocasiões para ajudar os detetives particulares. Nesse trabalho conjunto descobriu-se que
os novos colegas de Suydam estavam entre os criminosos mais negros e cruéis das ruas anormais
de Red Hook, e que pelo menos um terço deles era de infratores conhecidos e reincidentes em
roubo, desordem e tráfico de imigrantes ilegais. Na verdade, não seria exagero dizer que o círculo
íntimo do velho erudito coincidia quase perfeitamente com o pior da quadrilha organizada que
traficava algumas drogas asiáticas sem nome nem classificação sabiamente recusadas pela Ellis
Island. Na região fervilhante de – desde então renomeada – Parker Place, onde Suydam tinha seu
apartamento, havia crescido uma colônia bem incomum de gente com olho rasgado que usava o
alfabeto arábe, mas era ostensivamente repudiada pela grande massa de sírios perto da Atlantic
Avenue. Todos poderiam ter sido deportados por falta de documentação, mas a legalidade é lenta
e uma pessoa não perturba Red Hook a menos que a publicidade o force.
Essas criaturas frequentavam uma igreja de pedra em ruínas, usada como salão de baile às
quartas-feiras e que exibia suas colunas góticas perto da parte mais vil da margem. Era
formalmente uma igreja católica, mas padres de todo o Brooklyn rejeitavam a autonomia e
autenticidade do lugar e os policiais concordavam ao escutar os sons ali emitidos à noite. Malone
costumava imaginar que ouvia, quando a igreja estava vazia e escura, terríveis notas graves
desafinadas de um órgão escondido num profundo subsolo, enquanto todos os observadores
temiam os berros e batuques que acompanhavam as cerimônias visíveis. Quando questionado,
Suydam disse acreditar que o ritual era remanescente da cristandade nestoriana pincelado com
shamanismo do Tibet. A maioria das pessoas, conjecturava, era de ascendência mongol; de
origem no Curdistão ou algum lugar próximo – e Malone não conseguia deixar de lembrar que o
Curdistão é a terra dos yezidis, os últimos sobreviventes dos adoradores persas de demônios. De
qualquer maneira, a agitação da investigação de Suydam deu a certeza de que esses recém-
chegados ilegais estavam inundando Red Hook em quantidades crescentes; entravam por meio de
alguma conspiração da marinha, fora do alcance de fiscais e da polícia portuária, tomando a posse
de Parker Place, espalhando-se rapidamente morro acima e sendo recepcionados com curiosidade
fraternal pelos demais habitantes diferenciados da região. Suas silhuetas atarracadas e fisionomias
vesgas características, grotescamente combinadas com roupas norte-americanas chamativas, eram
mais e mais numerosas entre os vadios e gangsters nômades da área de Borough Hall; até o ponto
em que considerou-se necessário computar seus números, determinar suas origens e profissões, e
se possível cercá-los e entregá-los às devidas autoridades de imigração. Malone foi designado para
essa tarefa em acordo entre as forças federais e municipais, e, ao começar sua investigação em
Red Hook, sentiu-se preparado na iminência de terrores inomináveis, com a figura amarrotada e
desgrenhada de Robert Suydam como demônio e adversário.
IV
“Ó, amigo e companheiro da noite, vós que regozijais no ladro de cães e sangue derramado,
vós que vagais em meio às sombras entre as tumbas, que ansiais por sangue e trazeis terror aos
mortais, Gorgo, Mormo, lua de mil faces, estejais favorável aos nossos sacrifícios!”
Quando lera isso estremecera e pensara vagamente nas notas desafinadas do órgão que ele
pensava ouvir sob a igreja em algumas noites. Ele estremecera novamente ao ver a ferrugem ao
redor de um anel na bacia metálica do altar, e parou nervosamente quando suas narinas
pareceram detectar um mau cheiro estranho e sinistro de algum lugar da vizinhança. Aquela
memória olfativa o assombrava e ele explorara o porão com especial zelo antes de partir. O lugar
era muito repulsivo a ele; mas, afinal, eram os painéis e inscrições blasfemos mais do que meras
simplificações perpetradas por ignorantes?
À época do casamento de Suydam, a epidemia de sequestros era um escândalo popular nos
jornais. A maior parte das vítimas era crianças das classes mais baixas, mas o número crescente de
desaparecimentos fortaleceu um sentimento de mais pura fúria. Os jornais clamavam por ação
policial e mais uma vez a delegacia da Butler Street mandou homens para Red Hook atrás de
pistas, descobertas e criminosos. Malone estava contente por voltar ao rastro, e orgulhou-se de
uma batida em uma das casas de Suydam em Parker Place. Ali não havia, de fato, nenhuma
criança roubada, apesar dos boatos de gritos e da faixa vermelha encontrada na entrada externa do
porão; mas as pinturas e inscrições grosseiras nas paredes descascadas da maioria dos cômodos e o
laboratório químico primitivo no sótão ajudaram a convencer o detetive de que ele estava no
rastro de algo imenso. Os quadros eram aterrorizantes – monstros horríveis de toda forma e
tamanho, e paródias do contorno humano que não podem ser descritas. A escrita era em
vermelho e variava do alfabeto árabe para o grego, latim e hebraico. Malone não conseguia
entender muito, mas o que ele decifrou já era portentoso e cabalístico o bastante. Uma
formulação que se repetia frequentemente estava em um tipo de grego helênico hebraicisado e
sugeria as mais terríveis invocações demoníacas do declínio da época alexandrina:
ENTÃO CHEGOU O CASAMENTO EM JUNHO, com grande sensação. Flatbush estava muito alegre
na expectativa pelo meio-dia, e carros com bandeirinhas corriam pelas ruas perto da velha igreja
holandesa, onde um toldo se estendia da porta ao corredor. Nenhum evento local superou o
casamento Suydam-Gerrisen em tom e escala, e os que escoltaram os noivos ao Cunard Pier
eram, se não exatamente os mais inteligentes, ao menos uma página significativa das páginas
sociais. Às cinco da tarde acenaram adeus e a embarcação solene se afastou do longo pier, virando
sua proa lentamente em direção ao mar. Descartou seu rebocador e partiu para espaços marítimos
amplos que o levariam para maravilhas do velho mundo. À noite a saída do porto estava vazia, e
passageiros atrasados assistiam às estrelas piscarem sobre um oceano limpo.
Se foi o navio a vapor ou o grito que primeiro chamou atenção, ninguém saberia dizer.
Provavelmente foram simultâneos, mas não há utilidade em precisar isto. O grito veio da cabine
de Suydam e o marinheiro que arrombou a porta talvez pudesse relatar coisas aterrorizantes se
não tivesse ficado completamente louco de imediato – mas ele gritou ainda mais alto que as
primeiras vítimas e em seguida correu com um sorriso afetado pelo convés até ser pego e contido.
O médico do navio que entrou na cabine em seguida e acendeu as luzes um momento depois não
enlouqueceu, mas não contou a ninguém o que viu até bem depois, quando correspondeu-se com
Malone em Chepachet. Foi assassinato – estrangulamento –, mas não era necessário dizer que as
marcas de garra no pescoço da sra. Suydam não poderiam ser de seu marido ou de qualquer mão
humana, ou que sobre a parede branca piscou por um instante, em um odioso vermelho, letras
que, copiadas de memória depois, revelaram-se nada menos que as temíveis letras da Caldeia
formando a palavra “LILITH”. Não era necessário mencionar essas coisas porque sumiram
rapidamente – no caso de Suydam, podia-se pelo menos barrar a porta da cabine até que se
conseguisse saber o que pensar daquilo. O médico garantiu assertivamente a Malone que não
tinha visto aquilo. A fresta da porta, segundos antes de acender a luz, estava nublada com uma
espécie de fosforescência e por um momento pareceu ecoar pela noite afora a sugestão de uma
risada débil e infernal; mas nenhuma silhueta chegou a ser vista. Como prova, o médico ressalta a
permanência de sua sanidade.
Então o barco a vapor exigiu toda atenção. Ele parou ao lado do navio e uma horda escura de
rufiões insolentes em roupas de oficial enxamearam o convés do temporariamente paralisado
cruzeiro. Queriam Suydam ou o corpo dele – estavam cientes de sua viagem e, por determinados
motivos, tinham certeza de que ele morreria. O convés do capitão estava praticamente um
pandemônio; pois naquele momento, entre o relato do médico que fora à cabine e as exigências
dos homens do barco a vapor, nem mesmo o mais sábio e sério homem do mar saberia o que
fazer. De repente, o líder dos marinheiros invasores, um árabe de detestável boca negroide,
estendeu um papel sujo e amassado para o capitão. Estava assinado por Robert Suydam e tinha a
estranha mensagem a seguir:
Em caso de acidente súbito ou minha morte, favor entregar a mim ou meu corpo sem
questionamento ao portador desta mensagem e seus associados. Tudo para mim, e talvez para
você, depende de absoluta anuência. Explicações podem vir depois – não me decepcionem.
— Robert Suydam
NESSA MESMA TARDE DE DOMINGO, sem notícias do que houvera no mar, Malone estava
desesperadamente ocupado nos becos de Red Hook. Uma súbita agitação pareceu permear o
lugar, e, como se algo incomum tivesse sido transmitido por telefone sem fio, os habitantes
aglomeravam-se ansiosos ao redor da igreja-salão de baile e das casas de Parker Place. Três
crianças tinham acabado de desaparecer – norueguesas de olhos azuis das ruas sentido Gowanus –
e havia rumores de uma revolta de vikings robustos formando-se naquela área. Malone estava
pedindo a seus colegas por uma varredura geral há semanas; e, por fim, motivados por questões
mais óbvias ao senso comum do que pelas conjecturas de um irlandês sonhador, concordaram
com um golpe final. A comoção e perigo desta noite foram o fator decisivo e por volta da meia-
noite um grupo de busca recrutado de três delegacias chegou a Parker Place e arredores. Portas
foram arrombadas, vagabundos foram presos e salas à luz de velas forçadas a vomitarem
amontoados inacreditáveis de estrangeiros diversos em vestes filigrandas, mitras e outros itens
inexplicáveis. Muito foi perdido no tumulto, pois objetos foram prontamente jogados em valas
imprevistas, e os odores disfarçados pela súbita queima de incensos pungentes. Mas havia
respingos de sangue por toda parte e Malone estremecia a cada vez que via um braseiro ou altar
dos quais ainda subisse fumaça.
Ele queria estar em muitos lugares ao mesmo tempo, e decidiu ir para o porão de Suydam
apenas depois de um mensageiro relatar que a igreja-salão estava completamente vazia. O porão,
pensou Malone, devia ter alguma relação com o culto do qual o erudito místico havia tão
obviamente tornado-se centro e líder. E foi com real expectativa que saqueou os cômodos
mofados, notou um cheiro vago de ossário neles e examinou os livros exóticos, as ferramentas, as
barras de ouro e as garrafas de vidro com rolha espalhadas descuidadamente aqui e ali. Em certo
momento um gato malhado magro passou entre seus pés e o fez tropeçar, também derrubando
um recipiente cheio de líquido vermelho.
O choque foi grande e até hoje Malone não tem certeza do que viu; mas, em sonhos ainda vê
esse gato como corria naquele dia, com certas peculiaridades e alterações monstruosas. Então veio
a porta trancada do porão e a procura por algo para abri-la. Havia um banco pesado por perto e
seu assento tosco era mais que suficiente para os painéis antigos. Uma rachadura surgiu e cresceu
e a porta inteira cedeu – mas pelo outro lado. E de lá veio um vento gélido e tumultuoso com
todos os fedores do fosso sem fundo, de lá veio uma sucção que não era terrena ou divina, que,
cercando conscientemente o detetive paralisado, arrastou-o pela abertura e o derrubou em
espaços imensuráveis preenchidos por sussurros e gemidos, e lufadas de risos cínicos.
Obviamente fora um sonho. Todos os especialistas disseram-lhe, e ele não tinha provas do
contrário. De fato, ele preferia que fosse assim, pois, dessa maneira a visão de casebres velhos de
tijolos e escuros rostos estrangeiros não o atormentariam no fundo da alma. Mas no momento em
que aconteceu era tudo horrivelmente real, e nada poderá apagar a memória daquelas criptas
sombrias, aquelas arcadas titânicas e aquelas silhuetas infernais semi-definidas que caminhavam
colossalmente em silêncio, com coisas meio comidas cujas porções ainda vivas urgiam por
misericórdia ou riam em loucura. Os cheiros de incenso e corrupção se aliaram em concerto
doentio e o ar negro estava vivo com o volume semi-visível e nebuloso de coisas elementais
disformes e com olhos. Água escura e pegajosa saltava em píeres de ônix, e, assim que o tilintar
sinistro de sinetes roucos fraquejou para saudar os sons histéricos de uma coisa fosforescente nua
que nadou para a superfície, debateu-se até a margem e levantou-se para perscrutar agachada em
um dourado pedestal ornado ao fundo.
Avenidas de noite ilimitada pareciam irradiar para toda direção e poderia-se pensar que aqui
estava assentada a raiz de uma epidemia destinada a adoecer e engolir cidades e engolfar nações
no fedor de híbrida pestilência. Ali havia entrado o pecado cósmico, espalhado-se por ritos
profanos e começado a marcha ameaçadora da morte que viria nos apodrecer em aberrações
fúngicas horríveis demais para o abraço do túmulo. Satã dispôs aqui sua corte babilônica e no
sangue de juventude imaculada os membros leprosos da fosforescente Lilith eram lavados.
Íncubus e sucubus uivavam glórias a Hécate e cordeiros decapitados baliam para a Magna Mater.
Bodes saltavam ao som de finas flautas amaldiçoadas e Ægi-Pãs caçavam eternamente faunos
deformados em rochas torcidas como rãs inchadas. Moloch e Astaroth não estavam ausentes,
pois essa quintessência de toda danação baixou as barreiras de consciência e abriu à percepção do
reino de horror e de cada dimensão proibida que o mal tem poder de moldar. O mundo e a
Natureza estavam desamparados contra tais ataques dos poços noturnos destampados, e nenhum
sinal ou prece poderia afastar a desordem do horror que se instalara quando um sábio com a
chave detestável esbarrou em uma horda com o cofre fechado e transbordante de tradição
demoníaca herdada.
De repente um raio de luz materializado atravessou esses fantasmas e Malone ouviu o som de
remos entre as blasfêmias de coisas que deveriam estar mortas. Um barco com uma lanterna na
proa singrou à vista de Malone, atracou em um anel metálico no lodoso píer de pedra e vomitou
vários homens de pele escura que carregavam um volume longo enrolado em lençóis. Levaram-no
à coisa nua fosforescente no pedestal dourado, que emitiu um som histérico e apalpou os lençóis.
Então desenrolaram o embrulho e colocaram verticalmente diante do pedestal o corpo
gangrenoso de um homem velho e corpulento com barba por fazer e cabelo branco desgrenhado.
A coisa fosforescente repetiu o som e os homens tiraram garrafas do bolso e as deram para que
bebesse.
De uma só vez, de uma avenida arqueada que parecia seguir infinitamente, vieram os
chocalhos e chiados demoníacos de um órgão blasfemo, engasgando e roncando os escárnios
infernais em graves rachados e debochados. Em um instante cada entidade em movimento estava
eletrizada; e formou-se uma procissão cerimonial súbita, a horda de pesadelos deslizou para longe
em direção ao som – bode, sátiro, Ægis-Pã, íncubus, súcubus e cordeiro, rã deformada e
elemental disforme, uivador com cara canina e caminhante silente da escuridão – todos guiados
pela abominável coisa fosforescente e nua que havia agachado no áureo trono adornado, e que
agora passeava insolentemente carregando em seus braços o cadáver de olhos vidrados do
corpulento homem idoso. Os estranhos homens de pele escura dançavam na retaguarda, e toda a
coluna pulava e pinoteava com fúria dionisíaca. Malone cambaleou em seu encalço, delirante e
confuso, duvidando de seu lugar neste ou em outro mundo. Então ele virou, fraquejou e afundou
na pedra fria e úmida, ofegante e tomado por calafrios enquanto o órgão demoníaco continuava a
coaxar, e os uivos e os tambores e o tilintar da insana procissão se tornavam mais e mais débeis.
De forma vaga, ele estava consciente dos horrores cantados e do coaxar estridente à distância.
Por vez ou outra um lamento ou choramingo de devoção cerimonial flutuava até ele através da
negra arcada, enquanto em certo momento de lá se levantou o encantamento grego pavoroso cujo
texto ele lera sobre o púlpito daquela igreja-salão de baile.
“Ó, amigo e companheiro da noite, vós que regozijais no ladro de cães (aqui um hediondo uivo
se projetou) e sangue derramado (aqui sons inomináveis rivalizaram com guinchados mórbidos),
vós que vagais em meio às sombras entre as tumbas (aqui um suspiro sibilante ocorreu), que
ansiais por sangue e trazeis terror aos mortais (gritos curtos e agudos de uma miríade de
gargantas), Gorgo (repetido em resposta), Mormo (repetido em êxtase), lua de mil faces (suspiros e
notas de flautas), estejais favorável aos nossos sacrifícios!”
Conforme a cantaria cessou, um berro geral se elevou, e silvos quase afogaram o coaxar do
órgão de graves rachados. Então um ofegar como que de muitas gargantas, e uma babel de
palavras latidas e balidas – “Lilith, Grande Lilith, vislumbre o noivo!”. Mais gritos, um clamor de
desordem, e as passadas breves e rápidas de uma figura que corria. As passadas aproximaram-se, e
Malone levantou-se sobre os cotovelos para poder olhar.
A iluminação da cripta, antes bem parca, aumentou levemente; e naquela luz demoníaca, lá
aparecia a forma fugidia daquilo que não deveria fugir ou sentir ou respirar – o cadáver
gangrenoso de olhos vidrados do homem corpulento, agora sem precisar de apoio, animado por
alguma feitiçaria infernal do ritual encerrado há pouco. Então ele correu atrás da coisa nua,
fosforescente e risonha que pertencia ao pedestal adornado, e ainda mais atrás arfavam os homens
escuros, e toda a tripulação temível de repugnância perceptível. O cadáver estava cobrindo a
distância dos que o perseguiam, e parecia focado em um objetivo definido: estendia cada músculo
apodrecido em direção ao áureo pedestal adornado, cuja necromântica importância era
evidentemente imensa. Mais um momento e ele alcançaria seu objetivo, enquanto a multidão
desorganizada se esforçava na velocidade mais frenética possível. Mas não foi o bastante, porque
em um último surto de força do cadáver que o rasgou de tendão a tendão e levou sua barulhenta
massa a chafurdar no chão em um estado de dissolução gelatinosa, o cadáver de olhos arregalados
que um dia fora Robert Suydam alcançou seu objetivo e seu triunfo. O esforço havia sido
excessivo, mas o impulso havia seguido. Conforme o corpo desmoronava em uma poça lamacenta
de corrupção, o pedestal que ele havia empurrado cambaleava, inclinava-se, e, finalmente lançou-
se de sua base de ônix para as densas águas, despedindo-se com um relance do ouro entalhado
enquanto afundava pesadamente aos golfos insondáveis do Tártaro inferior. Também naquele
instante toda a cena de horror desvaneceu para o nada defronte os olhos de Malone; e ele
desmaiou em meio a um desabamento estrondoso que pareceu ofuscar todo o universo maligno.
VII
“Ó, amigo e companheiro da noite, vós que regozijais no ladro de cães e sangue derramado,
vós que vagais em meio às sombras entre as tumbas, que ansiais por sangue e trazeis terror aos
mortais, Gorgo, Mormo, lua de mil faces, estejais favorável aos nossos sacrifícios!”
1 Aubrey Beardsley, autor e ilustrador britânico do final do século XIX, que recebeu grande
influência da estamparia japonesa.
2Pintor francês que frequentemente retratava cenas fantasiosas e cuja obra influencia artistas até
hoje.
3 Referência à sífilis, que em seus estágios secundário e terciário pode gerar lesões na pele.
4 Já houve demônios, íncubus e succubus, e se houve poderiam gerar uma prole?
5Demócrito era um filósofo grego atomista do século V a.C. e a ele se atribui a frase “Na verdade
não sabemos nada, pois a verdade jaz no fundo de um poço”.
SOBRE O AUTOR
VICTOR LAVALLE é autor de quatro livros: Slapboxing with Jesus, The Ecstatic, Big Machine e The
Devil in Silver. Foi agraciado com diversos prêmios, inclusive um Shirley Jackson Award e um
American Book Award. Aprendeu o Alfabeto Supremo com dezoito anos de idade e o tem usado
desde então.
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Copyright © 2016 by Victor LaValle
Publicado em comum acordo com Victor D. LaValle,
The Marsh Agency Ltd e Watkins / Loomis Agency Inc.
ESSA É UMA OBRA DE FICÇÃO. NOMES, PERSONAGENS, LUGARES, ORGANIZAÇÕES E SITUAÇÕES SÃO PRODUTOS DA
IMAGINAÇÃO DO AUTOR OU USADOS COMO FICÇÃO. QUALQUER SEMELHANÇA COM FATOS REAIS É MERA COINCIDÊNCIA.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. PROIBIDA A REPRODUÇÃO, NO TODO OU EM PARTES, ATRAVÉS DE QUAISQUER MEIOS.
OS DIREITOS MORAIS DO AUTOR FORAM CONTEMPLADOS.
ISBN: 978-85-92795-44-3
1. Literatura americana – Romance. 2. Terror. I. Rissati, Petê. II. Bomentre, Giovana. III. Título.
CDD 813
2019