2019 Tese Crpinheiro

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

CHARLES RIBEIRO PINHEIRO

RODOLFO TEÓFILO POLEMISTA:


A CRÍTICA POLÊMICA COMO ESTRATÉGIA DE GLORIFICAÇÃO LITERÁRIA

FORTALEZA
2019
CHARLES RIBEIRO PINHEIRO

RODOLFO TEÓFILO POLEMISTA: A CRÍTICA POLÊMICA COMO


ESTRATÉGIA DE GLORIFICAÇÃO LITERÁRIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará, como parte dos requisitos para
obtenção do título de Doutor em Letras. Área
de concentração: Literatura Comparada.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Odalice de Castro
Silva

FORTALEZA
2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)

P718r Pinheiro, Charles Ribeiro.


Rodolfo Teófilo polemista: a crítica polêmica como estratégia de glorificação literária/Charles
Ribeiro Pinheiro. – 2019.
333 f.: il. color.

Tese (doutorado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-


Graduação em Letras, Fortaleza, 2019.
Orientação: Prof.ª Dr.ª Odalice de Castro Silva.
1. Rodolfo Teófilo. 2. Polêmica. 3. Crítica. 4. Campo literário. 5. Glorificação. I. Título.
CDD 400
CHARLES RIBEIRO PINHEIRO

RODOLFO TEÓFILO POLEMISTA: A CRÍTICA POLÊMICA COMO


ESTRATÉGIA DE GLORIFICAÇÃO LITERÁRIA

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade Federal
do Ceará, como requisito para obtenção do
título de Doutor em Letras. Área de
concentração: Literatura Comparada.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Odalice de Castro
Silva.

Aprovada em: __/__/__.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Odalice de Castro Silva (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará – UFC

______________________________________________
Prof. Dr. Francisco Agileu de Lima Gadelha
Universidade Estadual do Ceará – UECE

_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Denise Noronha Lima
Universidade Estadual do Ceará – UECE

_____________________________________________
Prof. Dr. Marcos Vinicius Medeiros da Silva
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN

_____________________________________________
Prof. Dr. Wesclei Ribeiro da Cunha
Universidade Federal do Ceará - SME
Dedico esta pesquisa à memória de minha
amada mãe: Rosa Maria Ribeiro Pinheiro
(1952 – 2014).
AGRADECIMENTOS

A Jesus Cristo, que me deu e me dá forças para combater o bom combate.


À Sâmya, que me deu o privilégio de construir uma família, durante essa jornada,
pelo seu amor, carinho, cuidado, e, principalmente, paciência.
Em particular, à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Odalice de Castro Silva, pela honra
e paciência de orientar essa pesquisa e pelos quinze anos de amizade e convivência. Obrigado
por sua paixão pela literatura e por sua disposição em compartilhar essa paixão com seus
alunos. Como sempre, desfia-me a prosseguir e a estudar mais.
Aos professores Dr. Francisco Agileu de Lima Gadelha, Dr.ª Denise Noronha
Lima, Dr. Marcos Vinicius Medeiros da Silva e Dr. Wesclei Ribeiro da Cunha, pela
disposição e cordialidade em participar da minha banca, além dos importantes apontamentos e
sugestões.
Aos meus sinceros amigos e amigas do Grupo de pesquisa “Espaços de leitura:
cânones e bibliotecas”, em especial à Deislania Lima Braga, à Hyana Jessica Silveira Rocha,
à Antônia Dalete Viera Gomes, à Luciana Bessa Silva, à Mylla Cristinne Amaral de Sousa, à
Juliane de Sousa Elesbão, ao André Barbosa Damasceno e ao Francisco Wilton Lima
Cavalcante, principalmente, aos hermeneutas, companheiros(as) queridos(as) de vários
projetos: Rafaela de Abreu Gomes, Lídia Barroso Gomes, Terezinha Peres e Wesclei Ribeiro.
Aos alunos de PPGLetras-UFC, tanto os de mestrado, quanto os de doutorado,
que tive a honra de ser colega e de ter uma rica convivência, em especial, a Luciana Sousa.
Aos professores do PPGLetras-UFC que contribuíram para a minha formação
intelectual.
Aos amigos da secretária do PPGLetras-UFC Diego Marques Ribeiro e Victor
Matos de Almeida.
Aos meus alunos do curso de extensão “O entre-lugar na literatura cearense” que
me auxiliaram na arte da docência.
À Diretora da Biblioteca de Ciências Humanas da UFC, Ana Elizabeth
Albuquerque Maia, pelo apoio na realização de projetos e eventos.
À Prof.ª Dr.ª Maria Neuma Barreto Cavalcante que participou de minha banca de
qualificação e contribuiu de modo crítico e rigoroso para a construção da tese.
Às amigas Lídia Barroso Gomes e Ana Paula Magalhães pela tradução dos
resumos.
À minha Mãe, Rosa Maria Ribeiro Pinheiro (in memorian), ao meu pai, irmãos
(Alexandre e Rosemary), sobrinhos, primas e tias, em particular à Ana Lúcia. E à família de
minha esposa, parentes e amigos (D. Fátima, Cleyton, Lívia, Jânio, Maria Luísa).
À CAPES-DS pelo incentivo a esta pesquisa.
“Custa-se entender que o escritor não é um
homem destinado a evadir-se do mundo, e sim
a mergulhar profundamente no mundo”.
(LINS, Osman, O Estado de S. Paulo,
24/05/1969).

“Escrever é abalar o sentido do mundo, aí


fazer uma interrogação indireta, que o escritor,
em vista de um suspense derradeiro, abstém-se
de responder. A resposta é dada por cada um
de nós, que para aí transporta sua história, sua
linguagem, sua liberdade; mas como história,
linguagem e liberdade mudam infinitamente, a
resposta do mundo do escritor é infinita: não
se para jamais de responder ao que foi escrito
longe de toda resposta. Afirmados, a seguir
postos em confronto, depois recolocados, os
sentidos passam, a questão permanece”
(BARTHES, Roland. Racine. 1987. p. 5).

“Um duelo - seja considerado uma cerimônia


de culto à honra, seja reduzido, em sua
essência moral, a uma mocidade de esporte
viril - requer a absoluta sinceridade das
intenções, uma homicida austeridade de
ânimo” (CONRAD, Joseph. Os duelistas.
2010. p. 23).

“A minha vida foi uma luta sem tréguas pela


verdade. Raros foram os que me
compreenderam. Nessa amorosa tenda tive
inúmeras vezes de combater os presumidos, os
viciados. Não escapei por isso ao dente da
inveja, da maledicência: desprezei-o. Estive
sempre ao lado dos fracos, dos oprimidos. O
que por eles senti, reflete-se em meus escritos.
Convivi com o povo, chorei com ele as suas
desventuras e cantei as suas glórias. Quanto
mais cultivava o espirito, mais piedade tinha
dos desgraçados. Nunca ri das jogralidades de
um bêbado nem das astúcias de um ladrão.
Eram infelizes, dignos somente de compaixão.
Descobri-me sempre diante da desgraça”
(TEÓFILO, Rodolfo. 1910. p. 43).
RESUMO

Rodolfo Teófilo (1853-1932) foi um intelectual multifacetado, que se destacou como cientista
e homem de letras. Produziu obras historiográficas, de divulgação científica, crônicas,
memórias, ficção, poesia e, esporadicamente, crítica. Como não foi um crítico profissional, os
textos que escreveu foram reações aguerridas contra juízos desfavoráveis à sua obra, tal como
a famosa contenda com Adolfo Caminha, em virtude da recepção de seu primeiro romance, A
fome (1890). Por meio de dois artigos no jornal O pão (1895), da Padaria Espiritual, ele
defendeu a sua missão literária e desqualificou Caminha como romancista. Constatamos que
não existe polêmica sem a leitura conflitiva do outro, pois é oriunda do espírito crítico da era
moderna. Os jornais e revistas serviam de ‘cenário’ (MAINGUENEAU, 2001) para as
interações polêmicas entre os escritores, tanto para conquistar a opinião pública, quanto para
transformar a palavra em arma para demolir o adversário. Ruth Amossy (2005) considera que
todo ato de tomar a palavra implica a configuração de uma imagem de si, que colabora na
construção de uma reputação literária. O choque entre opiniões antagônicas dissimula várias
tensões entre projetos estéticos e civilizatórios, entre gerações artísticas, entre instituições
literárias (coteries) e entre indivíduos que almejam a perduração de seus nomes, ou seja, a
“mortal imortalidade” (CASTAGNINO,1969). A presente pesquisa pretende investigar as
polêmicas literárias de Rodolfo Teófilo, enfatizando os textos críticos publicados na imprensa
cearense, como estratégias para atingir a glorificação literária. O escritor confrontou Adolfo
Caminha, José Veríssimo, Rodrigues de Carvalho, Gomes de Matos, Osório Duque Estrada e
Meton de Alencar em textos estampados em diversos periódicos, posteriormente reunidos na
obra Os meus zoilos (1924). O livro dialoga intensamente com os debates da inteligência
nacional do final do século XIX, os quais revelam tensões entre vários centros literários, tais
como o Rio de janeiro, Recife e Fortaleza. O escritor integra uma tradição de polemistas
brasileiros, a qual teve como importantes representantes José de Alencar e Silvio Romero.
Para o desenvolvimento da pesquisa, situamos Rodolfo Teófilo na agitada vida cultural de
Fortaleza, bem como a sua participação em várias agremiações literárias. Para o exame da
ideia de glorificação literária, apoiamo-nos em O que é a literatura?, de Jean Paul Sartre (1ª
ed. 1947), e O que é literatura?, de Raul Castagnino (1969); além de T. S. Eliot com o ensaio
“Tradição e talento individual” (1989) e Pierre Bourdieu, com a categoria “consagração”
(1996). Para o estudo do caráter discursivo da polêmica utilizamos Ruth Amossy, Apologia
da polêmica (2017), Dominique Maingueneau, com a perspectiva da polêmica como
interincompreensão, em Sémantique de la polemique, (1983), O contexto da obra literária
(2001) e Gênese dos discursos (2005), a teoria de campo literário de Pierre Bourdieu, em As
regras da Arte (1996) e a interpretação da literatura como um ‘esporte de combate’ (2017) de
Antoine Compagnon. O embasamento historiográfico para o estudo da crítica e polêmica no
Brasil: de Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2 volumes (1888), José Veríssimo,
História da Literatura Brasileira (1916) e Estudos de literatura brasileira, 6 séries (1901-
1907) e Araripe Jr. Júnior, Obra Crítica (1958-1966) 5 volumes. Também contribuíram para
o enriquecimento dessa pesquisa: Alfredo Bosi (1992) e (2002); Roberto Ventura (1991);
Antônio Cândido (1959) e (1988); Luiz Roberto Veloso Cairo (1996); Hans Robert Jaus
(2004); Alberto Ferreira (1988); João Alexandre Barbosa (1974), (1996) e (2002); João Cezar
de Castro Rocha (2011) e (2013) e Sânzio de Azevedo (1976), (1982), (1999) e (2011).

Palavras-Chave: Rodolfo Teófilo; Polêmica; Crítica; Campo literário; Glorificação.


RESUMEN

Rodolfo Teófilo (1853-1932) fue un intelectual de múltiples faces, que se destacó como
científico y hombre de letras. Produjo obras historiográficas, de divulgación científica,
crónicas, memorias, ficción, poesía y, ocasionalmente, crítica. Como no fue un crítico
profesional, los textos que escribió fueron reacciones aguerridas contra juicios desfavorables a
su obra, tal como la famosa contienda con Adolfo Caminha, en virtud de la recepción de su
primera novela, A fome (1890). A través de dos artículos del periódico O Pão (1895), de la
Padaria Espiritual, él defendió su misión literaria y descalificó Caminha como novelista.
Constatamos que no existe polémica sin lectura conflictiva del otro, puesto que es oriunda del
espíritu de la era moderna. Los periódicos y revistas servían de ‘escenario’
(MAINGUENEAU, 2001) para las interacciones polémicas entre los escritores, tanto para
conquistar la opinión pública, como para transformar la palabra en arma para demoler el
adversario. Ruth Amossy (2005) considera que todo acto de tomar la palabra implica la
configuración de una imagen de sí, que colabora en la construcción de una reputación
literaria. El choque entre opiniones antagónicas disimula varias tensiones entre proyectos
estéticos y civilizador, entre generaciones artísticas, entre instituciones literarias (círculos) y
entre individuos que anhelan la perduración de sus nombres, o sea, la “mortal inmortalidad”
(CASTAGNINO,1969). El presente trabajo pretende investigar las polémicas literarias de
Rodolfo Teófilo, enfatizando los textos críticos publicados en la prensa de Ceará, como
estrategias para alcanzar la glorificación literaria. El escritor confrontó Adolfo Caminha, José
Veríssimo, Rodrigues de Carvalho, Gomes de Matos, Osório Duque Estrada y Meton de
Alencar en textos estampados en diversos periódicos, posteriormente reunidos en la obra Os
meus zoilos (1924). El libro dialoga intensamente con los debates de la inteligencia nacional
del final del siglo XIX, los cuales revelan tensiones entre varios centros literarios, tales como
Rio de Janeiro, Recife y Fortaleza. El escritor integra una tradición de polemistas brasileños,
la cual tuvo como importantes representantes José de Alencar y Silvio Romero. Para el
desarrollo de la investigación, ubicamos Rodolfo Teófilo en la agitada vida cultural de
Fortaleza, así como su participación en varias agremiaciones literarias. Para el examen de la
idea de glorificación literaria, nos apoyamos en O que é a literatura?, de Jean Paul Sartre (1ª
ed. 1947), y O que é literatura?, de Raul Castagnino (1969); además de T. S. Eliot con su
ensayo “Tradição e talento individual” (1989) y Pierre Bourdieu, con la categoría
“consagración” (1996). Para el estudio del carácter discursivo de la polémica utilizamos Ruth
Amossy, Apologia da polêmica (2017), Dominique Maingueneau, con la perspectiva de la
polémica como interincomprensión, en Sémantique de la polemique, (1983), O contexto da
obra literária (2001) y Gênese dos discursos (2005), la teoria de campo literario de Pierre
Bourdieu, en Regras da Arte (1996) y la interpretación de la literatura como un ‘deporte de
combate’ (2017) de Antoine Compagnon. La base historiográfica para el estudio de la crítica
y polémica en Brasil: de Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2 volúmenes
(1888), José Veríssimo, História da Literatura Brasileira (1916) y Estudos de literatura
brasileira, 6 series (1901-1907) y Araripe Jr. Júnior, Obra Crítica (1958-1966) 5 volúmenes.
También contribuyeron para el enriquecimiento de esta investigación: Alfredo Bosi (1992) y
(2002); Roberto Ventura (1991); Antônio Cândido (1959) y (1988); Luiz Roberto Veloso
Cairo (1996); Hans Robert Jaus (2004); Alberto Ferreira (1988); João Alexandre Barbosa
(1974), (1996) y (2002); João Cezar de Castro Rocha (2011) y (2013) y Sânzio de Azevedo
(1976), (1982), (1999) y (2011).

Palabras-clave: Rodolfo Teófilo; Polémica; Crítica; Campo literario; Glorificación.


RÉSUMÉ

Rodolfo Teófilo (1853 – 1932) était un intellectuel aux multiples facettes, qui s’est distingué
en tant que scientifique et homme de lettres. Il a produit des œuvres historiographiques, des
diffusions scientifiques, des chroniques, mémoires, fictions, poésies et, sporadiquement, des
critiques. N’étant pas un critique professionnel, les textes qu’il a écrits étaient des réactions
féroces contre des jugements défavorables à son œuvre, comme la fameuse querelle avec
Adolfo Caminha, en vertu de la réception de son premier roman, A fome (1890). À travers
deux articles dans le journal O pão (1890), de la Padaria Espiritual, il a défendu sa mission
littéraire et il a disqualifié Caminha en tant que romancier. Nous constatons qu’il n’y a pas de
polémique sans la lecture conflictuelle de l’autre, car elle vient de l’esprit critique de l’ère
moderne. Les journaux et les magazines ont servi de « scénario » (MAINGUENEAU, 2001)
aux interactions polémiques entre les écrivains, à la fois pour gagner l’opinion publique et
pour transformer le mot en une arme pour démolir l’adversaire. Ruth Amossy (2005)
considère que tout acte de prise de parole implique la configuration d’une image de soi, qui
contribue à la construction d’une réputation littéraire. La confrontation d’opinions
antagonistes dissimule diverses tensions entre projets esthétiques et civilisateurs, entre
générations artistiques, entre institutions littéraires (coteries) et entre individus qui aspirent à
la perduration de leurs noms, à savoir, la ‘mortelle immortalité” (CASTAGNINO, 1969). La
présente recherche a pour objectif d’enquêter sur les polémiques littéraire de Rodolfo Teófilo,
en mettant l’accent sur les textes critiques publiés dans la presse cearense, en tant que
stratégies pour atteindre la glorification littéraire. L’écrivain a confronté Adolfo Caminha, à
José Veríssimo, à Rodrigues de Carvalho, à Gomes de Matos, à Osório Duque Estrada et à
Meton de Alencar dans les textes imprimés dans plusieurs périodiques, réunis ensuite dans
l’œuvre Os meus zoilos (1924). Le livre dialogue de manière intense avec les débats de
l’intelligence nationale de la fin du XIXe siècle, qui révèlent tensions entre divers centres
littéraires, comme Rio de Janeiro, Recife et Fortaleza. L’écrivain intègre une tradition de
polémistes brésiliens, qui a eu comme importants représentants José de Alencar et Silvio
Romero. Pour le développement de la recherche, nous avons situé Rodolfo Teófilo dans la vie
culturelle trépidante de Fortaleza, ainsi que sa participation à diverses associations littéraires.
Pour l’examen de l’idée de glorification littéraire, nous nous sommes appuyés sur Qu’est-ce
que la littérature ? (1er éd. 1947), et O que é literatura?, de Raul Castagnino (1969), et en
outre sur l’essai de T. S. Eliot “La tradition et le talent individuel” (1989) et Pierre Bourdieu,
avec la catégorie « consécration » (1996). Pour l’étude du caractère discursif de la polémique,
nous avons utilisé Ruth Amossy, Apologie de la polémique (2017), Dominique Maingueneau,
avec la perspective de la polémique comme intercompréhension dans Sémantique de la
polémique, (1983), Le contexte de l’œuvre littéraire (2001) et Genèse du discours (2005), la
théorie du champ littéraire de Pierre Bourdieu, dans Les règles de l’art (1996) et
l’interprétation de la littérature comme un « sport de combat » (2017) d’Antoine Compagnon.
Les bases historiographiques pour l’étude de la critique et de la polémique au Brésil
s’appuient sur : de Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2 volumes (1888), José
Veríssimo, História da Literatura Brasileira (1916) et Estudos de literatura brasileira, 6
séries (1901 – 1907) et Araripe Jr. Júnior, Obra Crítica (1958 – 1966), 5 volumes. Ils ont
aussi contribué à l’enrichissement de cette recherche : Alfredo Bosi (1992) et (2002) ;
Roberto Ventura (1991) ; Antônio Cândido (1959) et (1988) ; Luiz Roberto Veloso Cairo
(1996) ; Hans Robert Jaus (2004) ; Alberto Ferreira (1988); João Alexandre Barbosa (1974),
(1996) et (2002) ; João Cezar de Castro Rocha (2011) et (2013) et Sânzio de Azevedo (1976),
(1982), (1999) et (2011).

Mots-clés: Rodolfo Teófilo; Polémique; Critique; Champ littéraire; Glorification.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - La Promenade au bois de Boulogne (Guache sobre papel). .................................... 48


Figura 2 - L'Avenue des Champs-Elysées, voitures et promeneurs. ......................................... 49
Figura 3 - Foto do Passeio Público, 1910. Arquivo Nirez........................................................ 51
Figura 4 - Cartão-postal do cruzamento da Rua Guilherme Rocha com Major Facundo,
1911 – Arquivo Nirez. .............................................................................................. 52
Figura 5 - O Café Java, de Manuel Pereira dos Santos (Mané Coco), na Praça do Ferreira, ... 93
Figura 6 - Famosa foto da segunda fase da Padaria Espiritual, onde Rodolfo Teófilo
está destacado no centro. .......................................................................................... 97
Figura 7 - Fac-símile da capa da primeira e única edição de Meus Zoilos, 1924. .................. 237
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO OU AQUECIMENTO ANTES DA LUTA ................................... 17

1 ROUND - RODOLFO TEÓFILO E A VIDA LITERÁRIA EM FORTALEZA .. 27

1.1 Fortaleza moderna...................................................................................................... 34


1.2 A ideia do moderno .................................................................................................... 36
1.3 O significado de moderno .......................................................................................... 43
1.4 Charles Baudelaire e a modernidade ........................................................................ 45
1.5 Categorias norteadoras.............................................................................................. 54
1.5.1 Vida Literária .............................................................................................................. 54

1.5.2 Maurice Agulhon e a sociabilidade ............................................................................. 57

1.5.3 Contexto literário ........................................................................................................ 58

1.5.4 Campo Literário .......................................................................................................... 59

1.6 A bio/grafia de Rodolfo Teófilo ................................................................................ 62


1.7 Os precursores da Academia Francesa ................................................................... 74
1.8 A Academia Francesa e as ideias modernas ............................................................ 76
1.9 Abolição dos escravos e o Clube Literário .............................................................. 82
1.10 Década de 1890 e A Padaria Espiritual ................................................................... 90
2 ROUND - A FORMAÇÃO DA CRÍTICA E DA HISTORIOGRAFIA NO
BRASIL ................................................................................................................................. 112

2.1 O que entendemos por crítica literária? ............................................................... 115


2.2 Taine e a crítica determinista ................................................................................ 120
2.3 Os primórdios da crítica: romantismo ................................................................. 130
2.4 Machado de Assis: instinto de criticidade ............................................................ 133
2.5 Escola do Recife ...................................................................................................... 137
2.6 Sílvio Romero .......................................................................................................... 145
2.7 Araripe Júnior ........................................................................................................ 158
2.8 José Veríssimo ......................................................................................................... 176

3 ROUND - A POLÊMICA COMO ESPORTE DE COMBATE... ......................194

3.1 A literatura e os conflitos humanos ...................................................................... 195


3.2 Homens em conflito ................................................................................................ 198
3.3 Éris a deusa da discórdia ........................................................................................ 200
3.4 Conceitos de glória e glorificação ........................................................................... 204
3.5 Kleos e a busca pela glória ...................................................................................... 206
3.6 Conceito de consagração – Bourdieu ..................................................................... 208
3.7 Conceitos discursivos de polêmica ......................................................................... 213
3.8 Alguns polemistas e polêmicas célebres ................................................................. 216
3.8.1 As Querelas entre os Antigos e Modernos e a Glória Literária................................ 216

3.8.2 Questão Coimbrã....................................................................................................... 218

3.8.3 Polêmicas José de Alencar ........................................................................................ 221


3.8.4 Silvio Romero: o crítico-gladiador do Norte ............................................................. 227

4 ROUND - TODO ESCRITOR TEM OS SEUS ZOILOS ..................................... 233

4. 1 Adentrando o campo de batalha ............................................................................. 235


4.2 A recepção do romance A Fome .............................................................................. 247
4.3 Polêmica Teófilo X Caminha ................................................................................... 263
4.4 José Veríssimo leitor de Os Brilhantes .................................................................... 281
4.5 Teófilo contra o crítico da Academia Cearense ..................................................... 283
4.6 O papão da Academia Brasileira de Letras ........................................................... 288
4. 7 Teófilo contra os engrossadores e desafetos de Accioly ........................................ 298
4.8 Polemista em busca da glória .................................................................................. 305
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 314

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 316


17

INTRODUÇÃO OU AQUECIMENTO ANTES DA LUTA

Meu interesse pela obra literária e intelectual de Rodolfo Teófilo ocorreu antes do
ingresso na graduação em Letras, na Universidade Federal do Ceará. Desde adolescente, fui
um entusiasta da história e da cultura do Ceará. Descobri a figura de Teófilo, ao pesquisar a
controversa história de Padre Cícero (1844-1834) e me deparei com o seu polêmico livro: A
sedição de Juazeiro (1922). Pesquisando mais, constatei que o referido escritor não foi apenas
um observador passivo de importantes acontecimentos da história cearense, ele também
narrou, analisou e interpretou os graves fatos de que participou.
Durante o Curso de Letras, no ano de 2006, ingressei no grupo de pesquisa
“Espaço de leitura: cânone e bibliotecas”, coordenado pela Professora Titular de Teoria
literária, Odalice de Castro Silva. Decidi estudar a obra literária de Rodolfo Teófilo e o meu
projeto de pesquisa consistiu em um exame inicial da formação literária e intelectual do
escritor. Foram dois anos de trabalho que resultaram em alguns artigos, resenhas e
apresentações de comunicações em congressos e encontros de literatura.
Em seguida, no ano de 2009, ingressei no Curso de Mestrado, no Programa de
Pós-graduação em Letras da UFC, dando continuidade à pesquisa de graduação, que resultou
na dissertação Rodolpho Theophilo: a construção de um romancista1, na qual investigamos a
formação intelectual e literária do escritor, verificando como ocorreu o seu amadurecimento
como ficcionista em O paroara (1899). Enfatizamos os seus romances escritos na década de
1890: A fome (1890), Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897), O Paroara (1899) e a novela
Violação (1898). Foi nessa pesquisa que nos deparamos com uma das mais famosas
polêmicas literárias, ocorridas no Ceará, em relação à concepção de romance naturalista, com
a publicação da primeira obra de ficção de Rodolfo Teófilo, A fome (1890) e a mordaz crítica
de Adolfo Caminha, posteriormente, publicada no livro Cartas literárias (1895).
Baiano por acidente e cearense de coração2, Rodolfo Teófilo viveu entre os anos
de 1853 a 1932, atravessou importantes fatos históricos e culturais da cidade de Fortaleza, em
suas conturbadas transformações urbanas e sociais, no afã de tornar-se uma capital
“moderna”, durante a passagem do século XIX até as três primeiras décadas do século XX.

1
Essa dissertação foi financiada pela FUNCAP.
2
Na obra Coberta de tacos (1931), Rodolfo Teófilo publica a carta que enviou a Affonso Costa, explicando sua
cearensidade: “nasci baiano por um acidente; sou de coração todo cearense, como nenhum será mais do que eu”
(24 de abril de 1923).
18

Rodolfo atuou como farmacêutico, sanitarista, professor, comerciário, industrial,


cronista, romancista e poeta. Um de seus modos de atuação que se destaca é por meio das
Letras. Ele era conhecido como um cidadão manso, porém taciturno, e usava as Letras para
demonstrar o seu repúdio aos males e combater as injustiças que presenciou. Tornou-se um
dos maiores nomes da literatura, do jornalismo, da historiografia e da divulgação científica no
Ceará. Foram 28 obras publicadas, abordando os mais variados temas.
Especificamente, em torno de suas atividades literárias, além de escrever e
publicar textos ficcionais, didáticos e líricos, pontualmente, exerceu a crítica. Ele não foi um
crítico profissional, tais como Araripe Jr. Júnior ou José Veríssimo, que publicavam
semanalmente ou quinzenalmente resenhas e ensaios sobre as novidades publicadas no Brasil
e no estrangeiro. Os textos críticos que publicou, aliás, foram com o intuito de responder a
outros críticos e escritores. Um exemplo disso foi a já mencionada polêmica contra Adolfo
Caminha.
O seu primeiro romance, A fome, obteve inúmeras críticas desfavoráveis, sendo a
que mais desagradou Teófilo foi um artigo da Revista Moderna, em 1891, que o acusou de
sermau escritor e de faltar com a verdade, ao tratar sobre o assunto da seca de 1877. Quando
Adolfo Caminha publicou as Cartas literárias, em 1895, a mesma resenha sobre o romance se
encontra entre os textos do livro e Rodolfo descobre finalmente o seu autor.
No mesmo ano, Rodolfo Teófilo, que já era um integrante de famosa e irreverente
agremiação artístico-literária, Padaria Espiritual, publica no jornal O pão, dois artigos “A
normalista” e “Cartas literárias”. O objetivo dos textos foi de defender o seu romance e
hostilizar não apenas a obra, mas a pessoa de Caminha. Rodolfo Teófilo levou em conta,
como critério de ataque, a sua missão humanística e sanitarista, durante o período da seca de
1877-79. Ele foi testemunha daquela assombrosa situação. Ao publicar o romance A fome,
sua finalidade não é apenas descrever, mas denunciar os descasos e misérias da seca. Quando
é acusado por Caminha, ele se sentiu desonrado e efetuou uma crítica passional em torno da
obra A normalista, na tentativa de desqualificá-la, ao não seguir à risca os ditames do romance
naturalista.
Observamos que, nesse período, a maioria dos escritores naturalistas
compartilhava a ideia de que a literatura era uma representação do real, calcada em um saber
científico. Essa era uma ideia geral sobre o romance experimental; contudo, através da
polêmica entre Rodolfo Teófilo e Adolfo Caminha, percebemos que cada um possuía uma
visão particular do fenômeno literário, apesar de compartilharem algumas leituras e
pertencerem ao mesmo contexto literário e social.
19

Constatamos que a polêmica literária não revela apenas desavenças pessoais, ela é
um importante meio para examinar o contexto literário cultural da época, para entender como
se configurava a crítica nos jornais, as influências de leituras, o diálogo com os polos
intelectuais, no Brasil e no exterior, as visões estéticas acerca dos romances e as agitadas
disputas na formação do cânone.
Portanto, a presente tese tem como propósito investigar as polêmicas literárias de
Rodolfo Teófilo, enfocando os seus textos críticos publicados na imprensa cearense,
empregados como meios de defesa de sua produção poética e de ataque às obras de seus
adversários literários, além de estratégia para a glorificação literária. O nosso interesse não é
servir de advogado de Rodolfo Teófilo, pois as suas polêmicas se assemelhavam a de
escritores cearenses e de outros estados, do mesmo período, que também tinha uma postura
paradoxal, ao defenderem um discurso cientificista e racionalista, mas em seus textos críticos
assumiam uma perspectiva parcial e apaixonada. Muitas vezes, a obra literária era pretexto
para atacar o seu autor, em casos extremos, recorrendo ao mau humor e ao uso de termos
chulos.
O desejo de estudar as polêmicas de Rodolfo Teófilo colabora para entendermos
uma conduta de crítica literária específica, erigida pelo discurso das ideias ‘modernas’,
desenvolvidas, publicadas, lidas e compartilhadas ao longo do século XIX. As polêmicas
tiveram ringues privilegiados: os jornais e periódicos que nos estados brasileiros; cujo palco
principal foi o Rio de Janeiro, capital federal, espaço de maior visibilidade política e cultural.
Para a compreensão do desenvolvimento desse gênero específico de crítica,
dialogaremos com Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1991),
do professor paulista Roberto Ventura (1957-2002). Nessa pesquisa, ele investiga as bases
teóricas dos intelectuais brasileiros da chamada ‘Geração de 1870’, da qual emerge a figura
do crítico combatente. O coração dessa pesquisa, conforme o autor, está no minucioso exame
das
polêmicas de Silvio Romero que se inserem no movimento crítico da Escola do
Recife, participante da virada antirromântica a partir de 1870. Esse movimento
correspondeu, em termos de crítica literária, à introdução do naturalismo, do
evolucionismo e do cientificismo, e tomou as noções de raça e natureza, com o fim
de dar fundamentos ‘objetivos’ e ‘imparciais’ ao estudo da literatura. A adoção de
tais modelos, predominantes até o início do século XX, tornou possível a abordagem
da literatura e da cultura de um ponto de vista histórico-social (VENTURA, 1991, p.
11).

Foi enfatizado, nas investigações sobre as controvérsias ocorridas na imprensa


brasileira no recorte de tempo examinado pelo autor entre 1870 a 1914, como as teorias
sociais e as ideias filosóficas europeias desembarcaram no nosso país e como foram
20

apropriadas e subvertidas nos constantes debates intelectuais sobre a sociedade e a cultura


brasileira. Sílvio Romero, Araripe Jr. Júnior e José Veríssimo estavam no centro do debate e
cada um tentou buscar sua ‘leitura’ para os problemas culturais brasileiros. Roberto Ventura
coloca essas questões: por que eram tão frequentes as polêmicas na imprensa brasileira na
segunda metade do século XIX e início do XX? E qual a importância das polêmicas literárias
para a formação da crítica literária e do pensamento social brasileiro?
No capítulo inicial, estudaremos como se desenvolveu a vida literária em
Fortaleza, pois Rodolfo Teófilo foi um participante ativo do processo de modernização da
cidade. A modernização em algumas cidades do país não foi apenas material, mas cultural,
conforme nos informa José Murilo de Carvalho:
Desde 1850, com a abolição da escravidão que canalizou o dinheiro outrora
investido no tráfico de negros para as atividades comerciais fincadas na cidade, a
“mocidade” passou a migrar do campo para os centros urbanos e a consumir
múltiplas ideias europeias como positivismo, evolucionismo, darwinismo,
liberalismo, dentre outras (1990, p. 9).

A recepção dessas ideias científicas, filosóficas e estéticas causou efervescência


no pensamento brasileiro. Navios que atracavam nos portos, não apenas no Rio de Janeiro,
mas no Recife e em Fortaleza, não traziam apenas mobiliário, roupas, perfumes, traziam
livros, revistas e jornais, oriundos, principalmente, da França e deve-se à influência francesa a
penetração das ideias “modernas” do século XIX no Brasil. Os ideais do século, os princípios
libertinos e sediciosos, a “mania francesa”, sacudidos pela Revolução, pelo Iluminismo, pelo
movimento crítico da Enciclopédia (Coutinho, 2001. p.191). Em Fortaleza, o recente clima de
modernização e ‘modernidade’3, entusiasmava os leitores que recepcionavam essas ideias
europeias e as partilhavam entre si, por meio dos periódicos e das agremiações literárias e
intelectuais.
Porém, não podemos pensar que a onda de modernização urbana e material que
ocorria em Fortaleza, desde a década de 1870, devido à ampla exportação de algodão para o
mercado externo, era percebida de modo absolutamente positiva. As ideias e os processos de
transformações materiais modificavam os hábitos dos cidadãos.
Rodolfo Teófilo observou, atentamente, o processo de modernização da cidade.
No livro Coberta de Tacos (1931), relatou drásticas mudanças:
Há cerca de quarenta anos não vou à Praça do Ferreira à noite. Dizem-me que é um
céu aberto; milagres da luz elétrica. O café do Manoel Coco foi substituído, como os
outros da praça, por algumas casas, em que se come e bebe no meio da rua. Os
cinemas funcionam sempre cheios dando grandes lucros aos seus proprietários e
corrompendo a mocidade (TEÓFILO, 1931, p. 103).

3
No capítulo posterior, serão postos em discussão as ideias: moderno, modernização e modernidade.
21

Rodolfo Teófilo era muito pacato e reservado, preferia ficar em sua casa na Serra
de Pacatuba a vir a Fortaleza, à qual só se dirigia para trabalhar no seu vacinogênico. Na
citação, ele salienta as transformações ocasionadas pela chegada da energia elétrica. Para ele,
o cinema4 como um espaço de corrupção dos costumes. A cidade iluminada à noite, permite
que as pessoas transitem durante mais tempo, gerando aglomerações e beneficiando a boêmia.
Ele comenta a ânsia constante em mudar e substituir o cenário urbano.
Outro famoso caso que gerou comoção entre os fortalezenses, acerca da revolta
contra o progresso, foi o corte do grande oitizeiro que ficava ao lado da igreja do Rosário5.
Em 1929, o então prefeito de Fortaleza, Álvaro Weyne, mandara cortar a árvore. Tal ato foi
amplamente comentado na imprensa (os jornais O povo, o Correio da Manhã) e intitulado
como um ‘grande crime’ pelo cronista João Nogueira e, no jornal A razão, foi denominado de
“machado do progresso”:
O tradicional oitizeiro que se erguia majestoso em frente ao edifício onde funciona
atualmente a Secretaria do Interior e Justiça, teve ontem o seu ultimo dia de vida. O
machado do progresso iniciou, pela manhã de ontem, a sua ação e, dentro de poucas
horas, via-se, com tristeza, manter-se de pé tão somente o tronco da velha arvore.
Muitos foram os protestos que se levantaram contra o gesto do sr. prefeito
municipal, havendo mesmo quem o classificasse de bárbaro. Hoje, restará do grande
oitizeiro apenas a lembrança. Já é, porém um mal sem jeito. Conformemo-nos (A
Razão, 17/05/1929, p. 2 apud NOGUEIRA, 1980).

A investida contra a árvore causou revolta e tristeza. Enquanto os operários a


cortavam, juntou-se um aglomerado de populares para protestar e se temeu até um confronto.
Contudo, a rua foi inundada por um mar de folhas verdes. O poeta e artista plástico Otacílio
de Azevedo também narrou o triste fato e nos revela que o
verdadeiro algoz do Oitizeiro foi o progresso, em nome do qual se cometem tantos
crimes [...] O velho Oitizeiro já não era mais que um intruso, um trambolho que
impedia o embelezamento da cidade que crescia. Começavam a aparecer os
automóveis que deveriam transitar por todas as artérias da cidade. A queda do
Oitizeiro do Rosário marcou o desmoronamento de mais uma tradição, para dar
lugar às correrias desenfreadas dos novos habitantes da pacata urbe – os bêbados da
gasolina! (AZEVEDO, 1992, p. 117-118).

A explicação dada pelo prefeito era que a árvore estava atrapalhando o trânsito já
intensificado pelo aumento de veículos que trafegavam pelas ruas de Fortaleza (carros
particulares e de aluguel, bondes) que queria crescer, mas nas palavras de Otacílio de
Azevedo, ainda era uma cidade “descalça”. “O que seria uma árvore para o crescimento da

4
Outros Cinemas de Fortaleza: Polytheama (1911), o Majestic (1917), o Pathé, de Vítor di Maio, o
Estereopticon, o Rio Branco, Amerikan Kinema.
5
Templo católico mais antigo de Fortaleza, construída por escravos, está situada na Rua do Rosário, na Praça
General Tibúrcio ou Praça dos Leões.
22

cidade? Nada” — talvez fosse a lógica dos dirigentes. O oitizeiro seria um resquício da cidade
do século XIX, provinciana e pacata.
Rodolfo Teófilo, como outros escritores de sua geração, foi testemunha dessa
tentativa de modernização na capital cearense. Porém, a modernização é um fenômeno da Era
moderna que também compreende outro, que é a modernidade, específico da segunda metade
do século XIX em diante, conforme reflexões do poeta francês Charles Baudelaire, em seu
famoso ensaio “O pintor da vida moderna”, publicado na França, em 1869.
O poeta escreveu o ensaio ao examinar as pinturas e ilustrações do artista
Constantin Guys, as quais se destacavam em registrar não apenas o dia a dia nas ruas de Paris,
mas captar a vida pulsante e elegante. A vida cotidiana, a vida moderna, nas grandes cidades,
sofreu mudanças constantes. O artista da modernidade deverá estar atento a estas sutis
mudanças, para captar e eternizar o instante efêmero que nunca mais ocorrerá. É,
concomitantemente, uma visão paradoxal do tempo e uma visão estética da história, que serão
reforçadas pela interpretação do filósofo alemão Walter Benjamin em seus ensaios sobre
Baudelaire e a modernidade em “Um lírico no auge do capitalismo” (1989).
Também trabalharemos com a perspectiva de Brito Broca, na obra A Vida
Literária no Brasil-1900 (1956). Para o autor, a vida literária é compreendida como uma
crônica específica, em que os personagens são literatos, críticos e jornalistas. Ele narra o
contexto dos escritores e suas obras na passagem do século XIX para o XX. São fragmentos
biográficos, contendo histórias pitorescas, não apenas de indivíduos, mas de agremiações
literárias, jornais e periódicos. Brito Broca age como um fixador de aspectos transitórios,
mesmo sendo pequenos detalhes, e muitos dos seus cenários são bares, cafés, academias,
clubes; e a rua, esta é uma das grandes protagonistas. Enfim, um retrato cultural da cidade. A
ideia de vida literária nos será de muita valia para entender como se relacionara com as
transformações sociais e materiais que Fortaleza passou.
Para alicerçar literária e culturalmente o estudo da vida literária, nos apoiaremos
na obra de Dominique Maingueneau, O contexto da obra literária (2001), a partir de
categorias como obra, escritor e público, analisando os conflitos e tensões relacionados entre
elas. Ele encara o escritor literário como um sujeito enunciador e, ao analisar o contexto,
demonstra atenção às condições de enunciação desse escritor e de seu papel na história. O
pesquisador discute em sua obra que o escritor não escreve em um “solo institucional neutro e
estável” (2001, p. 28) e que “nutre seu trabalho com o caráter radicalmente problemático de seu
próprio pertencimento ao campo literário e à sociedade” (2001, p. 27).
23

A reflexão de Dominique Maingueneau sobre o contexto literário será importante,


para discutirmos o caráter paradoxal da situação do escritor, pois sua “enunciação se constitui
através da própria impossibilidade de se designar um ‘lugar’ verdadeiro” (idem, 2001, p. 27).
Para fundamentar a sua reflexão, Maingueneau utiliza a complexa categoria de campo
literário do sociólogo Pierre Bourdieu (1930-2002), que é estudada em As regras da arte
(1996) e O poder simbólico (2010). A categoria campo é uma metáfora retirada da física e
utilizada pelo pesquisador para pensar a problemática das representações simbólicas em
diversas esferas da sociedade.
Assim, Bourdieu nos diz que “campo, no seu conjunto, define-se como um
sistema de desvio de níveis diferentes e nada, nem nas instituições ou nos agentes, nem nos
atos ou nos discursos que eles produzem, têm sentido senão relacionalmente, por meio do
jogo das oposições e das distinções” (2010, p. 179).
Ou seja, o campo é uma espécie de microcosmo no interior do macrocosmo
composto pelo espaço social global. Assim como um campo gravitacional, o campo não é
estável, é altamente dinâmico. É um espaço de lutas entre diferentes agentes que ocupam
diversas posições. De acordo com Bourdieu, os campos têm regras e hierarquias próprias,
delimitadas a partir dos conflitos e ações de seu interior. Assim como o contexto, o campo
não é um ‘reflexo’ de relações externas de forças sociais, econômicas e históricas, mas ele
conserva marca dessas forças.
Logo, realizaremos a tarefa de cruzar as categorias campo e contexto para o
entendimento da vida literária em Fortaleza e a conturbada atuação de Rodolfo Teófilo e os
seus conflitos para se estabelecer como escritor na tradição literária regional e nacional.
No segundo capítulo, para embasar o diálogo com as polêmicas, estudaremos os
principais trabalhos que fundaram a crítica literária moderna no Brasil: de Sílvio Romero,
História da literatura brasileira, 2 volumes (1888), de José Veríssimo, História da Literatura
Brasileira (1916), Estudos de literatura brasileira, 6 séries (1901-1907) e de Araripe Jr.
Júnior, Obra Crítica (1958-1966), uma publicação em cinco volumes, sob a direção de
Afrânio Coutinho.
O assunto é vastíssimo, mas, sem simplificar, de acordo com Antônio Cândido, a
palavra crítica deve englobar os aspectos fundamentais dos estudos literários: a história
literária, ou seja, as relações das obras com o seu tempo presente e o passado, a crítica como
esforço interpretativo direto da obra, embasada por uma teoria sistemática do fenômeno
literário (CÂNDIDO, 1988. p. 17).
24

A formação da crítica literária no Brasil ocorreu no início do século XIX e se


consolidou na segunda metade do século XX.
Graças à divulgação das novas ideias sobre filosofia e literatura, formou-se no
Brasil, no decênio de Setenta [1870], uma geração de tendências eminentemente
críticas, animada do desejo de esquadrinhar a cultura nacional e dar-lhe orientação
diversa. Um verdadeiro modernismo, como o apelidou José Veríssimo, cujo foco
principal foi a capital de Pernambuco. [...] Parece fora de dúvida que a divulgação
do positivismo, do evolucionismo e da crítica moderna no Brasil se processou, senão
a princípio, pelo menos mais intensamente no Recife. Os primeiros trabalhos em que
encontramos sinais da nova crítica são os de Sílvio Romero, Celso de Magalhães,
Rocha Lima, Capistrano de Abreu e Araripe Jr. Júnior, os últimos três pertencendo
ao grupo que se formou no Ceará, mas tendo os seus componentes estudado antes
naquela cidade (CÂNDIDO, 1988, p. 32).

Na citação, Cândido enfatiza Recife como um grande polo renovador; contudo,


Fortaleza, como um centro cultural no qual que se formou Araripe Jr. Júnior, não estava
aquém das discussões das novidades intelectuais de outros centros, tais como a própria capital
pernambucana e o Rio de Janeiro. Os três principais críticos pertenceram à mesma geração,
tanto cronologicamente, quanto pela afinidade de leituras e ideias. Contudo, em relação à
crítica e a história literária, cada um desenvolveu um rumo metodológico próprio. José
Veríssimo também efetuou as mesmas leituras ditas ‘modernas’, no entanto reagiu contra as
doutrinas defendidas por Sílvio Romero, em História da literatura brasileira (1888),
sobretudo, sua interpretação sociológica do fenômeno literário.
Para o terceiro capítulo, em relação à ideia de polêmica, Antoine Compagnon
(1950) nós brinda com uma importante lição acerca da “literatura como um esporte de
combate”, título de uma série de cursos que ministrou no College de France, entre 2017 a
2018. Ao estudar a literatura francesa do século XIX, ele enfatizou a rivalidade entre
escritores, a competição no mundo das letras por meio da imprensa, citando uma fórmula de
Napoleão “eu temo três jornais mais do que cem mil baionetas”6. Ora, veremos que na
literatura e na arte, há abundantes lutas pelo poder, que demonstra ser não apenas privilégios
dos campos econômicos e políticos.
Afonso Romano de Sant’Anna nos adverte que em muitos casos,
temos uma visão do sistema artístico, às vezes um pouco angelical. Há um
consenso de que os artistas são criaturas etéreas, boas por natureza, que lidam com
coisas inefáveis. Na verdade, tanto entre os artistas quando entre os cientistas
existe competitividade; o que não exclui, às vezes, alguns traços de solidariedade
(2017, p. 103).

6
COMPAGNON, Anointe. Les tropes de la guerre littéraire. Cours La littérature comme sport de combat, em
Collège de France. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-cours-du-college-de-france/la-
litterature-comme-sport-de-combat-111-les-tropes-de-la
25

Os conflitos entre os escritores e críticos ocasionaram polêmicas nos jornais, que


no Brasil, tiveram um diferencial, na perspectiva de Roberto Ventura, pois se estabeleciam
entre os bacharéis, na junção entre códigos de honra tradicional, os “predicados de valentia e
coragem” (1991, p. 80) e luta pelas ideias numa compreensão evolucionista e progressista,
que visavam um aperfeiçoamento sociocultural.
Além do aspecto crítico, historiográfico, também buscamos, nas teorias da
argumentação, da linguística e da retórica, categorias e perspectivas para enriquecer nosso
estudo das polêmicas.
Comumente a polêmica é usada para denominar controvérsias, processos
judiciais, duelos, panfletos, debates políticos, tanto em formas orais ou escritas. Abordaremos,
a partir de Dominique Maingueneau, Ruth Amossy e Marcelo Dascal, que a polemicidade é
um fenômeno discursivo transversal e complexo, pautado, sobretudo, em diversas formas de
interação verbal, que ocorrem em gêneros textuais que expõem conflitos abertos ao público,
geralmente, por meio da imprensa, isto é, jornais, revistas e livros.
E como abordaremos os textos polêmicos de Rodolfo Teófilo, no quarto capítulo
dessa pesquisa, que, a princípio, tinham o subterfugio de serem crítica literária, enfatizaremos
o seu papel na busca pela glorificação literária, que é um termo que usamos, a partir da
categoria consagração, de Pierre Bourdieu, em As regras da arte (1996).
Bourdieu identifica o poder da consagração (a canonização) como questão central
no campo literário, interpretado como campo de luta. A sua abordagem consiste em propor
ferramentas teóricas que permita explicar o caráter construído das hierarquias literárias,
resultantes dessas lutas e desses efeitos de consagração. Ao sugerir investigações
sociológicas sobre as várias instâncias de consagração, constrói uma leitura teórica do
processo de canonização que leva à institucionalização dos escritores.
Jean Paul Sartre, Raul Castagnino e T.S. Eliot também são convocados para
dialogar sobre a problemática da inserção na tradição literária, interpretada pelos homens de
letras como ‘imortalidade’, isto é, a tentativa de perdurar o nome na historia.
No quarto capítulo, realizaremos as investigações textuais e argumentativas das
polêmicas de Teófilo publicadas em jornais, tais como O pão, depois inseridas no livro Os
meus zoilos (1924), assim como os textos de ataque contra ele, a fim de estabelecermos uma
análise comparativa e historiográfica. Os embates textuais ocorreram contra Adolfo Caminha,
José Veríssimo, Rodrigues de Carvalho, Gomes de Matos, Osório Duque Estrada e Meton de
Alencar.
26

Por fim, as idiossincrasias e os paradoxos das polêmicas literárias de Rodolfo


Teófilo têm muito a nos revelar sobre os mecanismos de construção de sua obra literária e de
seu posicionamento estético. Como o texto polêmico estava ou não alinhado com a sua
missão intelectual e com os projetos de crítica literária nacional? Quais eram as
particularidades das polêmicas na vida literária de Fortaleza? Mapear e interpretar essas
tensões são os propósitos desta pesquisa.
27

1 ROUND7 - RODOLFO TEÓFILO E A VIDA LITERÁRIA EM FORTALEZA

O poeta Otacílio Colares (1918-1988), ao tomar posse, em 1966, na cadeira 33 da


Academia Cearense de Letras, proferiu um significativo discurso homenageando o seu
ocupante anterior, João Perboyre e Silva (1905-1965).
Após discorrer sobre o homenageado, ele expressa a sua admiração pelo patrono
da respectiva cadeira:
Rodolfo Marcos Teófilo, sem favor uma das mais fortes envergaduras de intelectual
do seu tempo, era também um homem de ação, sendo apontado, agora ainda e já em
sua época, como um espírito exemplar de lutador das nobres causas [...] farmacêutico,
professor de ciências naturais, prosador fluente, poeta inspirado, jornalista veraz,
pioneiro de indústrias, foi um combatente em constante luta na defesa do povo [...]
Lembro-me muito bem - era nos meus treze anos. . . O bonde do Benfica deixava,
chocalhante, o desvio da Praça de Pelotas e enveredava, ronceiro porém amado, pelo
então Boulevard Visconde do Cauípe ... No estribo, livros debaixo do braço esquerdo;
o direito sustentando o corpo mirrado na periculosidade do balaústre, lá ia eu, pelas
tardes da minha cidade, de volta do Instituto São Luís, em demanda de casa, no
percurso diário de após colégio... Jamais, ao passar o bonde na confrontação entre
Antônio Pompeu e Domingos Olímpio, deixava eu de olhar para a casa solarenga que
assomava na paisagem do velho quarteirão e que tinha para a minha sensibilidade
florescente uns ares místicos de relicário. Ali - dissera-me uma vez meu saudoso pai -
mora o Rodolfo Teófilo. E de então por diante, quantas vezes, ao passar, via-o, de
relance, lá dentro, com suas imensas barbas brancas de asceta, enquadrado no desvão
de uma janela, para além do jardim ... (COLARES apud GIRÃO, 1976. p. 371-373).

No discurso do poeta, a partir das suas reminiscências, verificamos uma série de


informações que elucidam a nossa compreensão acerca de Rodolfo Teófilo e seu contexto
literário e sócio-histórico.
A conferência de Otacílio é parte de um rito de passagem, da condição de homem
‘comum’ à imortalidade, comum às Academias Literárias, tanto na Academia Cearense,
organizada em 1894, quanto na Academia Brasileira, em 1897. Ambas se espelharam na
Academia Francesa8, criada em 1635, pelo Cardeal Richelieu (1585-1642), durante o reinado
de Luís XIII (1601-1643).
A literatura é um fenômeno complexo e não se constitui apenas pelo conjunto de
escritores, poetas e intelectuais que fazem parte das Academias. No entanto, cabe o
questionamento: o que significa a institucionalização de alguns escritores? Otacílio Colares,

7
Round |ráunde| (palavra inglesa) - substantivo masculino. 1. [Esporte] Cada um dos períodos em que é dividido
o combate, em certos esportes de luta. 2. Cada uma das partes de um confronto (rodada, etapa). Sinônimo Geral:
Assalto. Round In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2013,
Disponível em: https://dicionario.priberam.org/round [consultado em 12-12-2018].
8
Na época de sua organização, chancelada pelo Rei Luís XIII, a Academia Francesa foi instituída para promover
debates entre homens aptos e proeminentes, com o fim de decidir o futuro da sociedade francesa, cultural e
cientificamente. A Academia foi composta por 40 imortais, ou seja, homens de letras e ciências destacados da
sociedade.
28

em sua fala, estava em uma instituição, cuja função era manter viva a tradição literária
cearense, que possuía, à época, mais de 100 anos de produção literária.
Fora as questões políticas e extraliterárias existentes para a composição e escolha
dos membros das academias, a existência de tais agremiações em determinado contexto,
espelhadas no modelo francês, demonstra que o sistema literário no Ceará, mesmo diminuto,
estava ficando mais complexo.
O crítico Antônio Cândido (1918-2017), na introdução de Formação da literatura
brasileira (primeira edição - 1959), desenvolve a categoria sistema literário, ou seja, “obras
ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma
fase” (1981, p. 23). Ele compreende a literatura como um conjunto de fatores internos (língua,
temas, imagens) e externos de ordem cultural, política e psíquica, caracterizando-a como um
importante aspecto orgânico da civilização.
Em um âmbito sociocultural, a literatura se constituirá quando existir um conjunto
de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel comunicativo e estético; um
mecanismo transmissor (a língua transformada em texto artístico por meio do estilo) e um
conjunto de receptores, formando diferentes tipos de público, sem o qual a obra não vive
(1981. p. 23-24). Resumindo: para que haja literatura, é preciso que haja o conjunto integrado
pelos escritores, pelas obras e pelos leitores.
O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana e
a literatura aparece nesse ângulo como um sistema simbólico, pelo qual os homens expressam
e interpretam diferentes esferas da realidade e profundos dramas da humanidade, quando um
escritor toma consciência que integra um sistema literário, ou seja, faz parte de uma
complexa cadeia, onde há circulação de obras de escritores de tempos remotos ou mais
recentes, ocorre “a transmissão da tocha” (1981, p. 24), metáfora utilizada por Cândido para
indicar que o conhecimento literário é passado em frente, por meio da leitura, ocasionando a
existência de novos autores e construindo uma continuidade literária.
Antônio Cândido nos explica que:
É uma tradição [...] isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de
elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao
comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar.
Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização (ibidem, p. 24).

Portanto, Otacílio Colares estava participando de uma cerimônia em um espaço


literário institucionalizado. Com isso, percebemos que a literatura no estado cearense estava
consolidada. Essa consolidação não significava que a sociedade estava aperfeiçoada, na qual
os bens culturais e simbólicos estavam à disposição de todos os cidadãos. O que queremos
29

explicar é que no contexto cearense existia e continua existindo um conjunto de escritores que
trabalham numa perpetuação da tradição literária local, participando também da tradição
nacional. A literatura como fenômeno estético e social se expande e se frutifica por meio de
aproximações, de rupturas, de interligações e de hibridizações.
Otacílio Colares estava saudando Rodolfo Teófilo, cuja importância para a
respectiva instituição era patente. Atualmente, a maioria da população, quer seja cearense,
quer seja nacional sequer tem ciência de sua passagem pela história. No início do seu
discurso, o poeta descreve as atividades que Teófilo exerceu, demonstrando assim, a imagem
que o escritor construiu perante a sociedade, a partir de suas ações.
Ele foi um homem de letras e de ciência, movido por um ideal de justiça que
procurava atender a população menos assistida e tentava cultivar o aperfeiçoamento moral por
meio da ciência e da conscientização política.
Para Otacílio, Rodolfo Teófilo era considerado uma figura ilustre e sua casa era
uma referência histórica na cidade. Nascido em 1918, ao referir-se na conferência sobre sua
reminiscência, no qual afirmou que tinha 13 anos, então, supomos que o episódio ocorreu
entre 1931. E Rodolfo faleceria em 1932.
Como farmacêutico e sanitarista, a sua casa funcionava como botica e laboratório,
em que fabricava remédios, xaropes e vacinas. Foi nessa residência que ele, junto com a
esposa e colaboradores, fabricou as vacinas que auxiliaram na erradicação da varíola no
estado do Ceará. A linha do bonde do Benfica passava em frente à casa de Teófilo, na
Boulevard Visconde do Cauípe (atualmente, Av. da Universidade9, Fortaleza). A parada dessa
região era conhecida como a ‘parada da vacina’, em referência ao ilustre morador.
Na citação, também observamos alguns contrastes. Otacílio Colares é um escritor
novo, de uma geração bastante posterior à de Rodolfo Teófilo. O autor homenageado
pertenceu à ‘Geração de 1870’, responsável pela introdução das ideias novecentistas, ditas
‘modernas’, tais como o positivismo, o determinismo, o evolucionismo, o darwinismo, o
progressismo. Otacílio pertenceu à geração, que constituiu o Grupo Clã10 (década de 1940),

9
Em 1985, ela foi demolida e deu lugar a um prédio residencial. Na época, o jornalista Miguel Ângelo de
Azevedo, o Nirez, publicou a denúncia no jornal O Povo.
10
O Grupo Clã foi fundado em 1943 e reuniu, no Ceará, alguns escritores que se aproximaram, estética e
ideologicamente, à chamada Geração de 45 do Modernismo. O grupo criou mais coesão por meio da publicação,
em 1946, da Revista Clã. Segundo Artur Eduardo Benevides, “O Grupo Clã, responsável, em grande parte, pela
literatura cearense nos últimos trinta nos, procurou, por todos os meios, criar em Fortaleza um clima cultural em
que escritores e artistas pudessem atingir status profissional e recebessem, ao lado de vantagens pecuniárias, o
estímulo necessário à produção literária” (Evolução da Poesia e do Romance Cearense, 1976, p. 10). Seus
membros fundadores foram: Aluísio Medeiros (1918-1971), Antônio Girão Barroso (1914-1990), Antônio
Martins Filho (1904-2002), Artur Eduardo Benevides (1923-2014), Braga Montenegro (1907-1979), Eduardo
30

que consolidou o ideário cultural e estético do modernismo no Ceará, durante a metade do


século XX.
No contexto da fala do poeta, ao observamos a situação num entendimento
temporal, o autor d’A fome já não era moderno, pertencia à tradição cultural. No trecho,
Otacílio Colares diz-nos que a casa era “solarenga que assomava na paisagem do velho
quarteirão” e que Rodolfo tinha “imensas barbas brancas de asceta”. Todos esses sintagmas
reforçam a ideia de austeridade do escritor mencionado. Ele sabia que naquela residência
havia uma boa parte da história da cidade.
No trecho, há a menção à linha de bondes. Esse veículo, na passagem do século
XIX para o XX representou um dos signos da modernização, ocorrida na tentativa de emular a
Belle époque11 europeia no Brasil. Os homens estavam apaixonados pelo progresso que se
materializava por meio dos avanços materiais das telecomunicações e dos transportes. Os
novos meios de locomoção, tais como o trem e o navio a vapor, os bondes e, posteriormente,
os automóveis, representaram a velocidade que os homens queriam atingir.
Colares também destacou que vinha do Instituto São Luís, que era privado. A
educação em Fortaleza já era institucionalizada12, contudo a maioria da população estava fora
do processo de educação. Mesmo os colégios públicos, eram seletivos. A questão da educação
foi referida nessa discussão, pois ela é de suma importância para a aquisição da cultura formal
e para servir de porta de entrada na vida literária de um contexto determinado.
O sistema literário de Fortaleza, mesmo não sendo tão amplo quanto o de outras
regiões do país, consolidou-se no século XX, oriundo de um cultivo que se iniciou no século
XIX. Rodolfo Teófilo foi um intelectual que contribuiu para a construção dessa tradição
literária no Ceará.

Campos (1923-2007), Fran Martins (1913-1996), João Clímaco Bezerra (1913-2006), José Stênio Lopes (1916-
2010), Lúcia Fernandes Martins (1924-2004), Milton Dias (1919-1994), Moreira Campos (1914-1994), Mozart
Soriano Aderaldo (1917-1995), Otacílio Colares (1918-1990).
11
A expressão Belle Époque foi cunhada pelos franceses, durante a década de 1920, para se referirem, de
maneira nostálgica, ao período de quase vinte anos anteriores a Grande Guerra (1914-1918). Período marcado
pelo cosmopolitismo e pelas transformações sociais e políticas, onde houve uma efervecência artística,
intelectual, científica, tecnológica que agitou a França e o resto da Europa. Foi a época em que a burguesia
europeia viveu com esplendor, em passeios nos boulevares, nos cafés, em barcos a vapor. Os grandes marcos da
Belle Époque, na França, foram: as reformas urbanisticas de Haussmann (1853-1870), os cabarés como o
Moulin Rouge; a Torre Eiffel (1889); uma das primeiras exibições de cinema, pelos irmãos Lumière (1895); o
metrô de Paris (1900).
12
Exemplos de outros colégios de Fortaleza: Seminário Episcopal (1864); Colégio da Imaculada Conceição;
Panteon Cearense (1870), dirigido pelo Professor Pedro da Silva Sena; o Colégio Cearense, dirigido por Padre
Luís Vieira da Costa Perdigão; O Colégio São José (1876), do Padre. Ananias Correia do Amaral; Instituto
Cearense de Humanidades, do Padre Bruno Rodrigues da Silva Figueiredo; Colégio Universal (1875); e a partir
da década de 1880, são criados o Ginásio Cearense; Colégio Nossa Senhora da Vitória; o Jardim da Infância, o
Telemaco; Externato Florisa; a Escola Cristã; Partenon Cearense, (Ver GIRÃO, Raimundo. Educandários de
Fortaleza. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, Ceará. s/editor, 1955).
31

Sobre essa questão, recorremos a Otacílio Colares, no seu texto de introdução do


livro A fome:
Rodolfo (Marcos) Teófilo é, sem dúvida, o mais representativo escritor do Ceará em
todos os tempos. Sua obra literária, que não é nenhum modelo em termos puramente
estilísticos, é, em compensação, do ponto de vista do regional, sempre tão valorizado
pela história e crítica literárias, uma espécie de vultoso monumento em torno do
qual, com o passar do tempo, têm vindo abeberar-se ficcionistas e sociólogos de
todo o Nordeste brasileiro, até os nossos dias (1979, p. IX).

O autor na escrita de muito de seus textos cometeu excessos cientificistas e que


serviram de base para pesadas críticas. Todavia, como menciona Colares, no âmbito histórico
e intelectual, as obras ficcionais, científicas, historiográficas e memorialísticas são
importantes testemunhos de variadas idiossincrasias de uma época dinâmica e de profundas
mudanças morais e materiais.
Ele era um apaixonado pelo Ceará. Devotou a sua vida e obra a pintar os costumes
e as circunstâncias do homem cearense. Como intelectual engajado13, cientista e poeta,
participou de importantes movimentos sociais e políticos em nosso estado: prestou o seu
auxílio à população na terrível estiagem de 1877-79 e denunciou o descaso do governo em
relação às secas; empenhou-se na campanha abolicionista (1881-1883); atuou em diversos
periódicos e jornais, como A Quinzena, O Pão, Fortaleza, Almanaque do Ceará, o Jornal do
Ceará; foi um ferrenho opositor da oligarquia Accioly (1896-1912) e batalhou para erradicar
a varíola do estado do Ceará (1900-1907).
Rodolfo Teófilo era conhecido como um cidadão calmo e taciturno, porém
abraçou a literatura como missão14. A sua formação ocorreu em um contexto literário
romântico e seus ídolos poéticos foram escritores dessa estética como Victor Hugo (1802-
1885), Alphonse de Lamartine (1790-1869), Alexandre Dumas (1802-1870), Almeida Garret
(1799-1854), José de Alencar (1829-1877) e Casimiro de Abreu (1839-1860). Porém, por
meio da sua formação acadêmica, realizada no Curso de Farmácia, na Faculdade de Medicina
da Bahia, ele abraçou o cientificismo como norteador de sua visão de mundo.
A estética naturalista, pautada na ideia do romance experimental, de Émile Zola
(1840-1902), foi o meio formal através do qual Rodolfo Teófilo tentou construir uma ficção,

13
No sentido de homem que opina e intervém nos acontecimentos relevantes na sociedade, (Jean-Paul Sartre, O
que é Literatura - 1947). Discutiremos mais sobre essa categoria no quarto capítulo.
14
O termo se refere ao livro do historiador Nicolau Sevcenko, intitulado Literatura como missão: tensões
sociais e criação cultural na Primeira República (1985), defendida como tese de doutorado pelo departamento de
História da USP, em 1981, no qual o autor investiga o papel da literatura como instrumento de ação política e de
denúncias dos problemas sociais ocorridos pela abruta implantação da República, por meio das obras de Lima
Barreto e de Euclides da Cunha.
32

em que pudesse ‘fotografar a realidade’ e buscar uma pretensa verdade. Ele observava a
realidade, colhia dados, efetuava análises, a fim de buscar uma veracidade radical em suas
obras literárias.
Devido às críticas que sofreu, pelo exacerbado cientificismo, pela falta de “beleza
estética” de seus textos, ele se utilizou das letras para efetuar a defesa de sua verdade poética
e para avaliar e atacar as obras e o caráter de seus detratores. Na sua atuação jornalística,
inúmeras foram as polêmicas de que participou: contra Adolfo Caminha (1867-1897), José
Veríssimo (1857-1916), Osório Duque Estrada (1870-1927), Gomes de Matos (1909-1966),
Meton de Alencar (1875-1932). Isso só no âmbito literário, pois na imprensa cearense, vários
foram os ataques contra o caráter de Rodolfo e seu trabalho sanitarista15, advindos de
membros simpatizantes da Oligarquia Accioly, da qual o escritor era fervoroso opositor.
Antes de estudar os textos polêmicos, precisamos entender o contexto cultural e
histórico em que esse gênero específico se desenvolveu e de uma postura de crítica, no
discurso moderno dezenovista.
Os textos de crítica veiculados nos periódicos cearenses dialogavam com os
debates da inteligência nacional daquela época. Remetendo às ideias de continuidade do
sistema literário, Rodolfo Teófilo faz parte de uma tradição de polemistas brasileiros, que
teve início em José de Alencar16 e estendeu-se até as primeiras décadas do século XX.
A partir da década de 1870, as polêmicas apareceram com mais frequência nos
jornais, tendo Sílvio Romero17 como o intelectual que mais as cultivou, pois era o seu estilo

15
No ano de 1900, uma terrível epidemia de varíola assolou o Ceará. Devido à falta de interesse do governo
cearense em combater a peste, Rodolfo Teófilo decide sozinho fabricar a vacina e imunizar toda a população da
capital (abertura do Instituto Vacinogênico do Benfica, em 1º/01/1901), além de publicar livros descrevendo e
denunciando os problemas relativos às secas e às epidemias: Secas do Ceará: segunda metade do século XIX
(1901), Varíola e Vacinação no Ceará (1905). Os membros da Oligarquia Accioly viram esse ato como uma
afronta política e deram início a uma grande polêmica em torno da campanha de vacinação de Rodolfo Teófilo
na imprensa cearense. No jornal A República (governista), a partir de 1905, o Dr. Meton de Alencar, escreve
uma série de artigos tentando desqualificar o trabalho sanitário de Teófilo, cuja defesa fez através da publicação
de artigos no Jornal do Ceará.
16
Cartas sobre a Confederação dos Tamoios foi uma notável polêmica ocorrida em 1856, por meio de cartas
publicadas no jornal Diário do Rio de Janeiro, em que José de Alencar critica a obra poética de Gonçalves de
Magalhães, poeta protegido pelo Imperador Pedro II.
17
Alguns exemplos de algumas polêmicas do crítico: Em virtude da publicação de Introdução à História da
Literatura brasileira (1882), Araripe Júnior a resenha no jornal Gazeta da tarde. Em seguida, é rebatido por
Sílvio Romero no Jornal O globo. Travou polêmica contra Capistrano de Abreu, em defesa de sua obra: A
literatura brasileira e a crítica moderna (1880). Por conta da publicação de Cantos populares no Brasil (1883) e
Contos Populares do Brasil (1885), publica contra Teófilo Braga, Uma Esperteza: os cantos e contos populares
do Brasil e o Sr. Theophilo Braga (1887) e Passe Recibo (1904). Em 1897, publica Machado de Assis, onde
critica a ficção machadiana, mas quem entra em defesa a favor do autor de Quincas Borba é Lafayette Rodrigues
Pereira. Em 1909, publicou, Zeverissimações ineptas da crítica (1909), com o intuito de desqualificar a obra e a
pessoa de José Veríssimo. Consultar a obra Estilo tropical: História cultural e polêmicas literárias no Brasil,
1870-1914, de Roberto Ventura, publicado pela Companhia das Letras em 1991.
33

de crítica, uma vez que “nas polêmicas, os letrados lutavam por suas ideias e grupos, pela
‘sobrevivência’ ou ‘morte’ na cena da literatura e do jornalismo. Época de escritores
combativos, de polemistas irados, de bacharéis em luta” (VENTURA, 1991. p. 13).
Leonardo Mota (1891-1948), em Padaria Espiritual (1938), nos relata que desde
a metade do século XIX, a cidade de Fortaleza era uma capital de agitada vida literária. Na
respectiva obra, ele listou mais de 100 agremiações literárias, não só em Fortaleza, como em
outras cidades do estado. Grande parte da produção literária e dos periódicos que foram
publicados e que circularam dentro e fora do Ceará, era construída a partir dessas associações
literárias.
Investigaremos, a seguir, como se desenvolveu a vida literária da cidade de
Fortaleza, no final do século XIX, e início do XX, enfatizando os espaços sociais de leitura e
divulgação de ideias modernas como praças, cafés, clubes, livrarias, colégios.
Estudaremos o hábito da leitura crítica como meio de sociabilidade literária nas
agremiações de que Rodolfo Teófilo foi contemporâneo, como Academia Francesa (1873-
1975)18; Clube Literário (1886-1888) e Padaria Espiritual (1892-1898).
Sobre o estudo da vida literária em Fortaleza, nos apoiaremos na ideia de vida
literária, desenvolvida por Brito Broca, como uma crônica do contexto literário e cultural da
cidade. Para ampliar e aprofundar esse estudo, utilizaremos as categorias de contexto e campo
literário, respectivamente, estabelecidas por Dominique Maingueneau, em O contexto da
obra literária (2001) e por Pierre Bourdieu, em As regras da arte (1996).
Para as questões históricas, filosóficas e culturais sobre as transformações urbanas
e sociais pelos quais passou Fortaleza, trabalharemos com as categorias de moderno e
modernidade, a partir de Baudelaire (1995), Benjamin (2000), Berman (2007) e Le Goff
(2003).

18
Rodolfo Teófilo não fez parte da Academia francesa, contudo fez parte da geração que constituiu esse grêmio.
Enquanto alguns de seus ex-colegas do Ateneu cearense reuniam-se na Academia Francesa, o escritor estava
estudando na Faculdade de Farmácia da Bahia. Outro fator importante é que a Academia Francesa foi a grande
precursora das agremiações literárias no Ceará.
34

1.1 Fortaleza moderna

A cidade de Fortaleza do final do século XIX e início do século XX foi palco de


riquíssima agitação cultural e política. Firmou-se como um hegemônico polo econômico da
região nordeste, a partir da intensificação da exportação de algodão para o mercado externo 19,
nas décadas de 1860 a1870.
Tristão de Ataíde (1893-1983, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima) em seus
estudos relativos à produção cultural do século XIX traça um rápido e sintético perfil do
contexto intelectual cearense:
O Ceará já teve três movimentos intelectuais – o movimento filosófico de 1870 (que
outro não é que o guapamente capitaneado pela chamada Academia Francesa do
Ceará), com Capistrano de Abreu, Rocha Lima, Araripe Jr. Júnior, João Lopes,
Tomás Pompeu, etc.; o movimento político de 1880, em torno do qual se fez todo o
movimento abolicionista (no qual o Ceará teve como se sabe um papel saliente) e
republicano, com o jornal Libertador e a revista A Quinzena (podia, antes, ter
chamado Literário o movimento que, na década de 1880, A Quinzena encabeçou,
porque realmente assim foi, como opportuno tempore se evidenciará); e finalmente,
o movimento literário de 1890, com a fundação da Padaria Espiritual e do seu
órgão O Pão, pela geração de Farias Brito, Antônio Sales, Adolfo Caminha, Oliveira
Paiva, Rodolfo Teófilo e outros (grifos nossos) (ATAÍDE apud Barreira, 1948. p
83).

Há pontos importantes e equivocados nessa citação. Primeiro, o crítico demonstra


uma das características da literatura do Ceará, no período citado, a qual, majoritariamente, era
produzida a partir de agremiações literárias. No estado, particularmente em Fortaleza, houve
inúmeras. Ele cita três que tiveram repercussão fora do estado e formaram uma continuidade.
Sobre a Academia Francesa, o crítico aponta que foi um movimento filosófico, no
entanto, ela também era uma agremiação literária. É certo que não contou com grandes
ficcionistas ou poetas, mas a literatura era amplamente discutida, tanto nas rodas privadas,
como nas conferências públicas. Os integrantes do grêmio tentavam aliar as ideias modernas à
leitura dos textos literários.
Sobre o Clube Literário, a associação realmente se formou a partir do movimento
abolicionista, devido às afinidades sociais e culturais dos seus membros, sendo a maioria
republicana. Mas o grêmio era literário, contando com vários escritores, muitos em início de
carreira, como Antônio Sales (1868-1940) e Oliveira Paiva (1861-1892). Em relação à

19
O incremento da produção de algodão deu-se na década de 60, quando os Estados Unidos da América, um dos
principais fornecedores de algodão para o mercado consumidor europeu, estavam envolvidos na Guerra de
Secessão (1861-1864), e o Ceará passou a fornecer o produto em grande escala, através do porto de fortaleza.
Assim, os teares ingleses começaram a ser abastecidos diretamente pelo algodão cearense, cultivado no interior
da Província, mas exportado via Fortaleza. (PONTE, Sebastião Rogério. In: Fortaleza, a gestão da cidade, 1995,
p. 37).
35

Padaria Espiritual, o crítico se equivocou com os nomes de Farias Brito (1862-1917) e


Oliveira Paiva. Nenhum destes pertenceu à Padaria. Oliveira Paiva20, à época da organização
do grêmio, em 1892, já estava doente, vindo a falecer em setembro.
Foram três associações literárias, sendo que as duas primeiras tiveram
preocupações políticas e reformistas mais patentes, enquanto a última citada, surgiu com
objetivos literários e artísticos, a fim de agitar a vida cultural da província.
O que essas três agremiações, juntamente com outras do período, Fênix
Estudantil, Gabinete de leitura, Centro Literário, Academia Cearense entre outras, tinham em
comum era a ideia do aperfeiçoamento cultural dos cidadãos da província.
Os escritores e intelectuais reclamavam do interesse quase nulo da maioria da
população em relação à leitura de textos literários, enquanto a cidade se modernizava
materialmente. João Lopes (1854-1928), um dos fundadores do Clube Literário, destaca, na
revista A quinzena, a falta de interesse das pessoas pela leitura:
Se na capital do império, metrópole da civilização sul americana, o meio não é
propício às letras e as publicações exclusivamente literárias mal podem, à custa de
tenaz e mortificante sacrifício, romper a espessa crosta da indiferença pública para
arrastar uma vida penosa e efêmera; na província, aqui por estes recantos do norte,
parece desatino quebrar a homogeneidade beatificante rotineira da vida provinciana,
para escrever sobre letras e artes e ciência. Vão assim objetar-nos os homens
práticos, homens práticos que, por pouco que saibam, sabem belamente sentenciar
ex-cátedra que o nosso público é infenso, senão hostil a isso de literatura “que não
bota ninguém para adiante” (A Quinzena, Nº 1,15 de janeiro de 1887).

No período em que João Lopes tece sua crítica, o Regime Imperial 21 estava no seu
crepúsculo. Rio de Janeiro, sede do império, é denominado pelo escritor como “metrópole da
civilização sul americana”, ou seja, era uma cidade enriquecida com a agricultura canavieira
da Região de Campos e do café do Vale de Paraíba. Como Centro do país, concentrava a vida
política e era o espaço onde havia a maior oferta de produção literária e intelectual. No
entanto, essa produção era bastante restrita. O escritor nos fala de uma dicotomia: metrópole e
província. Se na metrópole, a leitura de produção literária e intelectual era inócua, na

20
Oliveira Paiva faleceu em Fortaleza, no dia 29 de setembro de 1892, vítima da tuberculose. Na ocasião de sua
morte, variadas manifestações entre os amigos escritores, inclusive, no jornal A República, de 04 de outubro de
1892, houve a publicação de uma Polianteia, na qual foram dedicados vários depoimentos sobre Oliveira Paiva,
tal como o de Adolfo Caminha: “fui vê-lo, na antevéspera de sua morte, e, por Deus, não pude conter um grande
desgosto, deplorando intimamente a sorte daquele moço que se finava ali assim numa água do outeiro, como
qualquer pária obscuro, num abandono pungente e torturado por essa dor que gela o coração ao mais forte, e que
nasce do desespero injusto e revoltante dos homens” (A República, 04/10/1892).
21
A queda do Regime monárquico e o advento da República ocorreram por meio de vários fatores sócio-
políticos e econômicos, dentre os quais se destacam: a Questão religiosa (confronto entre a Igreja Católica, que
estava reagindo contra os ideais do laicismo e do liberalismo que estavam em ascensão na Europa e na América,
e a Maçonaria), a Abolição da Escravatura (perda do apoio de grandes fazendeiros descontentes e prejudicados
com o fim do regime escravista) e a Questão militar (sucessão de disputas políticas entre oficiais do exército,
fortalecidos após a vitória brasileira na Guerra do Paraguai e a Monarquia, a partir da década de 1880).
36

província era mais inócua, irrisória. Os homens práticos que o escritor critica são aqueles que
não apegados às letras, às produções do espírito, sem requinte, sem senso estético, não
familiarizados com as ‘novidades’ culturais produzidas na Europa. Portanto, o cultivo da
literatura era sinônimo de civilização e escrever sobre letras na Província, era uma tentativa de
aperfeiçoamento cultural. Para João Lopes, não bastava apenas a modernização material para
colocar Fortaleza no mapa da civilização, era preciso cultivar as letras para ser ‘moderno’.
Antes de estudarmos o processo de transformação urbana em Fortaleza, precisamos discutir as
complexas ideias acerca do moderno e da modernidade.

1.2 A ideia do moderno

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), viveu no ultimo quartel do


século XIX e sua obra filosófica dirigiu-se para um questionamento radical dos valores morais
de seu tempo22. Na obra, Para além do bem e do mal, ele realiza a seguinte reflexão:
A vontade de verdade, que ainda nos fará correr não poucos riscos, a célebre
veracidade que até agora todos os filósofos reverenciaram: que questões essa
vontade de verdade já não nos colocou. Estranhas, graves, discutíveis questões! (...)
Certo, queremos a verdade: por que não haveríamos de preferir a inverdade? Ou a
incerteza? Ou mesmo a insciência? – o problema do valor da verdade apresentou-se
à nossa frente – ou fomos nós a nos apresentar diante dele? Quem é o Édipo, no
caso? Quem é a Esfinge? (NIETZSCHE, 2005, p. 9).

No trecho, o filósofo tece uma aguda observação a fim de desconstruir uma ideia
positiva dos pensadores e cientistas da época (década de 1880) sobre a necessidade de
alcançar a verdade. Ele sustenta que a verdade é um verdadeiro mistério, evocando o mito de
Édipo, pois se existe a verdade, por que muitos homens, se de fato a atingissem, não entram
em comunhão com ela e entre si? A verdade universal ou cósmica é possível de ser atingida?
Ou, ao contrário, a verdade é relativa a cada indivíduo?
A busca filosófica pela verdade era um empreendimento complexo e problemático
antes do período moderno. Na época do pensador, esse exercício de busca, contava com várias
sistematizações. Nietzsche estava questionando a própria metodologia que lhe permitiu o
exercício do questionamento. Um dos fatores que podem caracterizar a Era moderna,

22
O filósofo exerce a sua crítica contra a tradição metafísica ocidental, ao combater as ideias socrático-
platônicas, enquanto denunciava a ‘fraqueza’ da moral cristã. O Cristianismo concebe o mundo como palco de
sofrimentos em detrimento o mundo feliz no além. É uma retomada do dualismo: o além é o ideal, o verdadeiro,
o autêntico, enquanto do mundo terrestre é o sensível, o provisório, o falso. Portanto, Nietzsche entendia que o
cristianismo era um “platonismo para as massas” (Além do bem e do mal [1886] e O Anticristo [1888]).
37

sobretudo, é a dúvida. No final do século XIX, o racionalismo atingiu o seu auge com o
positivismo.
Ortega y Gasset (1883-1940), investigou vigorosamente os fundamentos da Era
moderna, suas crenças e sua crise. No livro História como sistema (1940), ele nos explica que
uma das vozes que deu início à dessa Era foi René Descartes (1596-1650). O livro do filósofo
francês, o Discurso do método, serviu como paradigma para uma época nova, cuja convicção
nascia por meio da célebre frase cogito, ergo sum. A frase citada aparece na Trad. latina do
trabalho de Descartes, Discours de la Méthode (1637), escrito originariamente em francês e
traduzido para latim anos depois. A frase original é "Puisque je doute, je pense; puisque je
pense, j'exist” (Uma vez que eu duvido, eu penso; uma vez que eu penso, eu existo). Para
Ortega y Gasset, “Essas palavras são o canto de galo do racionalismo, a emoção da alvorada
que inicia toda uma idade, que chamamos Idade Moderna” (1982. p 29).
A sentença latina citada é o arremate filosófico de Descartes, alcançado após um
longo processo de reflexão que executou durante toda a vida. Ele pretendia fundamentar o
conhecimento humano em bases sólidas e seguras. Para essa árdua missão, pôs em dúvida
todo o conhecimento aceito como correto e verdadeiro de seu tempo, operando a razão como
guia. Após exaustivas ponderações, chegou à conclusão de que os métodos existentes eram
ineficientes. Com base na própria metodologia de ponderação, construiu uma nova
abordagem: a dúvida metódica. Com essa nova proposta de racionalismo, duvidar tornou-se
sinônimo de saber. Não é qualquer tipo de dúvida, mas uma dúvida posta de modo
sistemático. Após esta severa investigação, tentou questionar o seu próprio pensamento e
percebeu que ao duvidar, inevitavelmente, pensava, e se pensava, inevitavelmente existia.
Esta conclusão, a de julgar que a dúvida é a operação primordial do pensamento,
acarretará uma crença radical na razão. Por meio do método racional, o homem acreditou
encontrar um instrumento extraordinário, que o auxiliaria no esclarecimento dos segredos da
natureza e da vida. Em o Discurso do Método, a razão é a protagonista, o grande herói do
Ocidente. Com a divulgação do cogito cartesiano e da dúvida metódica no mundo letrado
europeu, o homem tornou-se o senhor de si, cultivando recursos para julgar com segurança.
Sobre a importância do racionalismo cartesiano Ortega y Gasset considera que:
Nos últimos anos do século XVI e nos primeiros do XVII, nos quais Descartes medita,
o homem do Ocidente acredita, portanto, que o mundo possui uma estrutura racional,
quer dizer, que a realidade tem uma organização coincidente com a do intelecto
humano, entende-se com a sua forma mais pura; com a razão matemática (ibidem, p.
30).
38

Ora, Descartes estabeleceu a crença de que a realidade (dimensão exterior) e o


pensamento (dimensão interior, racional) funcionavam como dois planos correspondentes.
Nada no mundo material é alheio ao pensamento. O homem acreditava que poderia mergulhar
nos abismos mais profundos da vida, por meio da razão, que conseguiria resolver os mais
extraordinários segredos, atingindo assim tão almejada verdade.
Historicamente, a Era Moderna construiu em torno de si um estranho e
interessante paradoxo. Após a Revolução Científica23 e o Iluminismo, o homem teve uma
sensação de liberdade e de autonomia, na qual obteve “amplitude de conhecimento, uma
profundidade de percepção sem precedentes e o êxito material que ao mesmo tempo serviu
para enfraquecer a posição existencial do ser humano” (TARNAS, 2002, p. 349). O pensador
nos alerta que Deus era o centro do pensamento medieval. Quando houve o movimento de
laicização, ou seja, o homem passou a ser o centro da Era moderna, a liberdade de ser
autônomo e questionar, essa capacidade de analisar os fenômenos, coloca-o então como
apenas um ser (metafísica), um animal (biologia), um corpo (física), um habitante
(cosmologia) como qualquer outro. O ser humano perdeu o seu status divino, de ser algo
‘especial’. A racionalidade é um instrumento rico, contudo não lhe trouxe nenhuma vantagem
biológica.
Na Idade Média, antes da Revolução Científica, o racionalismo não era o
protagonista como instrumento de busca pelo conhecimento. O grande período histórico
conhecido como Idade média não foi desprovido de razão, contudo estava em segundo plano
em relação à fé. Na Baixa Idade Média, destacamos a Escolástica24 de Tomás de Aquino
(1225-1274), como um esforço para conciliar a fé (a interpretação católica da Bíblia) e o
pensamento de Aristóteles (384 - 322 a.C). Essa filosofia cristã tinha como questão
fundamental levar o homem a compreender a verdade revelada.

23
A partir do final do século XV, uma série de pensaores europeus, querendo ir além do conhecimento herdado,
rompeu com os métodos científicos da Idade Média. Foi com base na observação escrupulosa (o cientista teve
que descrever os mecanismos da natureza e entendê-los), sobre as experiências (em vez de o conteúdo do que foi
escrito nos livros antigos) e do raciocínio que foi desenvolvido o método experimental. Eles tiraram vantagem da
invenção de novos instrumentos como o telescópio, o microscópio, o termômetro, o barômetro. Os avanços
científicos permitiram uma melhor compreensão de como o mundo funciona, descrevendo-o com base na
matemática. Os protagonistas dessa Revolução Científica foram Galileu, Descartes, Francis Bacon, Copérnico,
Kepler e Newton.
24
Escolástica vem do latim schola (æ, f), “escola” e serve para designar uma filosofia desenvolvida e ensinada
em universidades na Idade Média para reconciliar a metafísica de Aristóteles com a teologia cristã,
principalmente, Tomás de Aquino tenta empreender essa tarefa com a obra Suma Teológica. Um dos
fundamentos do escolasticismo é o estudo da Bíblia Septuaginta, traduzida do hebraico para o grego em
Alexandria. Posteriormente, foi traduzida do grego para o latim, por São Jerônimo, que deu a Vulgata, que se
torna o texto de referência para os pensadores da Idade Média.
39

Para realizar esta faina, não se confiava apenas nos artifícios da razão, mas esta
era chamada em seu amparo. A fé cristã era representada pela autoridade da Igreja Católica.
Na Idade Média, o poderio da Igreja Católica se estendeu em campos variados, tais como o
religioso, o político e o cultural. O seu principal instrumento ideológico era a fé.
A fé era o guia infalível para conduzir o homem em sua conturbada existência. Se
Deus é perfeito, toda a sua criação era considerada perfeita e não existia espaço para
questionamentos. A mudança era vista como algo negativo, uma interferência no plano
divino. Os membros da igreja (padres, bispos, cardeais, teólogos) eram os responsáveis para
transmitir as verdades reveladas, a fim de que as pessoas pudessem segui-la fielmente. A
verdade estava em Deus, mas a sua mensagem era decodificada e transmitida pelos doutores
da Igreja Católica.
Esse mundo medieval era permeado de inúmeras categorias espirituais e
valorativas como o bem e o mal, o céu e o inferno, o pecado e a graça, entre outros. O avanço
e o desenvolvimento da ciência [com Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-
1642), René Descartes (1596-1650), Isaac Newton (1642-1727)], trouxe uma libertação dos
dogmas e das superstições, ou seja, das crenças que não eram pautadas em fatos observáveis e
materiais. Essa libertação científica trouxe uma sensação de estranhamento perante o mundo.
Segundo Tarnas, “A ciência revelava um mundo frio e impessoal, mas um mundo
verdadeiro [...] o mundo não era mais uma criação divina; parecia ter perdido certa nobreza
espiritual, empobrecimento esse que também necessariamente dizia respeito ao homem,
outrora apogeu da Natureza” (2002, p. 351).
A mudança drástica ocorreu quando os pensadores decidiram apoiar o seu
trabalho científico na observação séria da natureza e do universo e não com base no que foi
escrito na Bíblia ou por estudiosos da antiguidade, como Aristóteles e Ptolomeu. Eles não
rejeitaram, no entanto, o património intelectual dos cientistas gregos ou romanos. Os
pensadores modernos tentaram corrigir erros ou imprecisões dos antigos, mesmo destronando
o homem do centro do universo.
Além do racionalismo e do culto à ciência, outro aspecto importante da Era
Moderna é a Utopia.
Outrora, na Idade Média, vimos que tempo e espaço eram tidos por absolutos,
pois eram obras de Deus. A Utopia germinou a partir do momento em que o homem percebeu
que podia modificar a sua realidade. Na linguagem corrente, utopia significa ‘impossível’, no
entanto, os autores que utilizaram o termo, a partir do século XVI, alargaram o seu
40

significado, com o intuito de descrever, na ficção, uma sociedade ideal em um lugar


imaginário.
No livro Utopia (1516), Thomas More (1478-1535) inventou a palavra na era
moderna e fundou um novo gênero: a ficção utópica25. Os utopianos viviam em uma ilha
desconhecida nos confins do Novo Mundo, um país imaginário com um governo ideal. O fato
de não existir realmente nenhuma utopia, indica que a imaginação é um poderoso instrumento
de esperança e que outro estilo de vida é possível. A utopia permite criar uma distância
relativa ao presente ou mesmo criticá-lo. A ilha imaginada por More era uma antítese da
Inglaterra daquele período, lugar de degradação moral, de conflitos bélicos e de injustiça, pois
sua ‘perfeição’ servia como denúncia irônica das insuficiências do presente. Logo, ela é um
horizonte da história como promessa de um mundo melhor, uma construção humana sem
intervenção divina ou sobrenatural. A perfeição só vem de uma nova organização social
construída racionalmente.
A sociedade moderna é essencialmente utópica, pois cultiva a crença num
aperfeiçoamento da humanidade. Uma das maiores utopias modernas é a ideia de Progresso,
que permitiu o desenvolvimento de outras ideias utópicas, que em seguida, foram
questionadas com veemência no século XX: Nação, Ciência e Revolução.
Após o século XVI, algumas sociedades europeias, durante os séculos XVII e
XVIII, colonizaram as Américas, África e Ásia, aperfeiçoaram o comércio e a indústria. No
decorrer desses séculos, o culto moderno da razão se intensificou e no Iluminismo atingiu um
status prodigioso. Para os intelectuais europeus, as luzes eram os símbolos da razão, do
esclarecimento. Os livros que serviram de base para a formação do pensamento moderno,
foram o Discurso do método (1637), de René Descartes que já citamos, Novum Organum26
(1620), de Francis Bacon (1561-1626) e Diálogos sobre os dois máximos sistemas do mundo
ptolomaico e copernicano (1630), de Galileu Galilei.

25
Outras utopias: A Cocanha era um país lendário narrado e cantado durante a Idade Média. Nela, não havia
trabalho e a comida e o vinho eram fartos, o clima era agradável. O pintor Pieter Bruegel tem um quadro
chamado “O país da Cocanha”. Em 1532, François Rabelais propôs sua visão pessoal da cidade ideal utópica, a
Abadia de Télema, descrevendo em Gargantua (1534), Francis Bacon, escreve uma obra Nova Atlandida (1627),
em que apresenta um modelo de estado ideal regulado pela ciência. Tommaso de Campanella, em 1623, publica
A cidade do Sol, em que descreve a ideia de uma republica filosófica numa cidade construída nas encostas de
uma colina formada por sete círculos concêntricos. Na obra, Cândido, de Voltaire (1759) também descreve um
“Eldorado”. O pensador francês Charles Fourier, em O Novo Mundo Industrial e Societário (1829), descreve a
busca de uma sociedade ideal organizada em forma de Falanstérios (comunidades).
26
Novum Organum (1620), de Francis Bacon, foi uma das obras filosóficas responsáveis por lançar os alicerces
do método científico moderno. Ele faz uma severa revisão da filosofia antiga, especialmente, Platão e
Aristóteles, ao refutar o caráter especulativo da ciência grega e também da Escolástica medieval. A sua ambição
era a de construir novos fundamentos para a ciência, calcadas no empirismo e em conhecimentos práticos.
41

A crença na razão chegou ao seu apogeu no século XIX, com a doutrina


27
positivista de Augusto Comte (1798-1857). Fruto de uma era de desenvolvimento científico
e industrial, a filosofia de Comte cultivou o afastamento radical da metafísica e da teologia,
ou seja, tudo o que era especulativo, em contraponto à experiência sensível e visível. A crença
principal do positivismo é a ideia de que a ciência é o único meio de conhecimento da
realidade. A ciência e a tecnologia melhoraram e poderiam melhorar ainda mais a
humanidade. Na segunda metade do século XIX, Razão e Progresso tornar-se-ão as palavras
de ordem da sociedade moderna.
No século XIX, no qual florescera o positivismo de Comte, o evolucionismo
filosófico de Spencer (1823-1903), a seleção natural de Darwin, (1809-1882) o determinismo
de Taine (1828-1893), ideias assaz materialistas e otimistas. Essas ideias fizeram a cabeça28
dos intelectuais europeus e ao redor do mundo. Os homens estavam permeados de um
otimismo sem freios, crendo que o progresso traria, em futuro próximo, o ápice da civilização.
A euforia obteve o seu momento triunfal na passagem do século XIX para o início do XX,
“em que uma certa burguesia industrial, orgulhosa de seu avanço, viu na ciência a
possibilidade de expressão de seus mais altos desejos” (SCHWARCZ, 2000, p. 10).
O abalo da Era das Certezas (da razão e do progresso) e da Ciência acarretará uma
“Era dos extremos” (ERIC HOBSBAWM, 1994), com as ditas “conquistas” modernas da
civilização ocidental a caírem por terra, virarem pó e serem arrastadas pelo vento atômico,
mediante a barbárie das duas grandes Guerras mundiais. Kujawiski nos diz que “através deste
duro golpe, sobretudo, constatou-se na carne, de forma lancinante, que o progresso não
passava de mistificação, e que o avanço tecnológico não correspondia, de modo algum, ao
aperfeiçoamento moral da humanidade” (1991. p 14).
Vimos que o projeto da Era moderna consistiu em uma aventura, na qual o
homem saiu e rejeitou a proteção e controle de um ‘suposto’ Deus/Pai para tomar as rédeas da

27
Shelling (1775-1854), palestrando em Berlim, em 1841, começa a falar em “filosofia Positiva”, que se baseia
na experiência a priori contra o racionalismo abstrato. Na França, o termo ‘filosofia positiva’ era um
direcionamento crítico contra o pensamento hegeliano, considerado ‘equivocado’, pois prezava uma
‘objetividade’ presumida em uma ideia de totalidade, negando as singularidades das experiências individuais. O
termo ‘positivo’ apareceu em livro, pela primeira vez na obra O catecismo dos industriais (1823), de Saint
Simon, contudo entra na terminologia da filosofia europeia por meio de Comte. O filosofo francês criticou a
dialética hegeliana, principalmente a ideia de que tudo poderia ser transformado no seu oposto e a afirmação de
que era possível conhecer as coisas por uma metafísica especulativa.
28
O termo ‘cabeça bem feita’ é contemporaneamente utilizado pelo filósofo Edgar Morin, na obra A cabeça
bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2003). Ele retoma o pensamento de Michel de
Montaigne, no qual ‘mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia’. Para Morin, a ‘cabeça bem-feita’ não é
apenas para acumular saber, mas construir e cultivar princípios de seleção e organização que dê sentido aos
problemas, com o fim de entendê-los e resolvê-los.
42

sua vida, escrever a sua própria narrativa. A expectativa foi demasiadamente avassaladora e o
homem, em um estado radical de miopia, acreditou que atingira o ápice da civilização. Em
seguida, por uma série de conflitos políticos, econômicos e étnicos, estava em uma guerra
devastadora (1914), na qual as ‘nações civilizadas’ utilizaram-se da ciência e da técnica para
aprimorar o extermínio humano. Modris Eksteins, em seu livro A sagração da primavera: a
Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna29 (1991), considera que a consciência
moderna nasceu nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.
O pensador Marshall Berman (1940-2013), em Tudo que é sólido desmancha no
ar, nos traz uma pertinente consideração acerca da condição desse período da história
humana:
Ser moderno é encontrar-se em ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo
tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A
experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais,
de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a
modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de
desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e
mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia (BERMAN, 2007, p. 24).

O enorme desenvolvimento científico teve efeitos significativos sobre as


condições de vida das massas. A industrialização e as aplicações práticas das descobertas
científicas alteraram significativamente o modo de vida. Essas drásticas mudanças e a
experiência ambiental, às quais o pensador se refere, causaram uma ideia ambiciosa de união
de toda a humanidade sob os ‘auspícios’ da civilização. Os produtos industrializados se
internacionalizaram, circulavam, tanto na Europa, quanto nas Américas e na Ásia. O estilo de
vida ‘moderno’ transformou-se em uma moda lucrativa. Os países colonizados e
ocidentalizados dos outros continentes tinham os olhos voltados para a Europa. Berman nos
informa que essa modernidade consistiu, na verdade, em intrigante paradoxo, pois apenas uma
minoria desfrutava de uma vida confortavel, com as vantagens proporcionadas pelo ‘mundo
moderno’, enquanto grande parte da população, na mairoria, operários que construiram os
produtos do ‘conforto’, viviam de modo miserável, em condições precárias. Ou seja, enquanto

29
O título e o tema do livro vêm do balé de Stravinsky, A sagração da primavera, que estreou em Paris, em
1913, quando a arte ainda tinha a capacidade de chocar. O balé narra a lenda popular de uma donzela que
literalmente dança até a morte, em um ritual pagão para homenagear os deuses da primavera e da fertilidade. É
nessa inversão de vida e morte que Eksteins encontra sua metáfora central para o que viria a ser da Europa. Ele
então aponta para a Alemanha antes da Grande Guerra, como a nação em que esses ideais foram os mais
pronunciados, como a nação modernista por excelência, que serviu de modelo para o nosso mundo. Para
Eksteins, a Primeira Guerra Mundial foi um conflito entre a antiga ordem mundial estabelecida, baseada nos
ideais iluministas, e representada principalmente pela Grã-Bretanha e, até certo ponto, pela França, e, por outro
lado, a Alemanha, a representante das novas ideias do mundo moderno lutando pela libertação e emancipação da
velha ordem. Enquanto a Alemanha perdeu a guerra, muitas das ideias e atitudes que caracterizaram a sociedade
alemã acabaram vencendo e são características da consciência moderna.
43

os cidadãos privilegiados passeavam em alguma capital europeia, ou viajavam em um


moderno vapor ou trem restaurante, muitas pessoas dormiam na rua, sem agasalho. A
modernidade servia a poucos.
Na citação, vemos que Berman está tratando do século XIX e utiliza o adjetivo
modernidade. Moderno e modernidade são sinônimos? O termo ‘moderno’ é mais antigo do
que modernidade, foi usado com mais frequência no inicio do século XIX. A modernidade é
um fenômeno singular da Era moderna, posterior à Revolução Industrial e está diretamente
ligado aos novos sentidos que a ideia do moderno adquiriu.
Nas páginas anteriores, tratamos sobre a Era moderna do ponto de vista de seu
breve desenvolvimento filosófico. A seguir, discutiremos as origens do termo ‘moderno’ e o
florescimento de uma nova ideia, a de ‘modernidade’, em pleno século XIX e como essa
concepção ressignificou a ideia de moderno.

1.3 O significado de moderno

O par antigo/moderno está fortemente vinculado à história do mundo Ocidental,


embora possam existir ideias equivalentes em outras civilizações e em outras historiografias.
Sobre uma nova perspectiva do moderno, os pensadores Jacques Le Goff (1924-2014) e Eric
Hobsbawm (1917-2012) nos esclarecem que, ao longo do século XIX, o conceito de
modernidade ganhou força, popularizou-se e se constituiu como uma reação ao agressivo
mundo industrial.
Antes de tratarmos sobre a modernidade, discutiremos a história da origem do
adjetivo moderno. Antoine Compagnon (1950) nos diz que:
modernus aparece, em latim vulgar, no fim do século V, oriundo de modo, ‘agora
mesmo, recentemente, agora’. Modernus designa não o que é novo, mas o que é
presente, atual, contemporâneo daquele que fala. O moderno se distingue, assim, do
velho e do antigo, isto é, do passado totalmente acabado da cultura grega e da
romana. Os moderni contra os antiqui, eis a oposição inicial, a do presente contra o
passado. Todo a história da palavra e de sua evolução semântica será, como Jauss
sugere, a da redução do lapso de tempo que separa o presente do passado, ou seja, a
da aceleração da história (2010, p. 16).

Na citação, o crítico nos fala que o termo ‘moderno’ vem do latim vulgar, mas a
sua raiz encontra-se na Roma antiga, no adverbio modo, que significa ‘agora, de certa
maneira’, a partir da palavra modus, ‘medida, maneira’. Na obra Dos deveres (44 a.C), Cícero
44

(106 a.C-43 a.C) ao criticar um político, diz “modo hoc malum republicam invasit”30 (“este
mal agora invade a República”). Na sentença, ‘modo’ indica o presente atual. Com o passar
dos séculos, durante a Idade Média, a oposição efetuou-se entre o atual e o antigo, ou seja,
este último relacionado à antiguidade greco-latina. O referencial cultural estava ficando mais
distante no tempo.
A aceleração da história não é uma aceleração do tempo, este continua a passar
como antes, o que se alterou foi a sua percepção. Entre a antiguidade greco-latina e a Idade
média, a separação entre o antigo e o moderno não era temporalizada, mas absoluta, total.
Compagnon nos explica que
Se, no século V, modernus não contém ainda a ideia de tempo, no século XII, por
ocasião do que se chama de primeira Renascença, o lapso de tempo que define os
moderni face aos antiqui equivale apenas a algumas gerações. Perguntou-se muito
se, desde o século XII, a noção já incluía a ideia de um progresso que evoluiria dos
antiqui aos moderni, ideia inseparável de nossas concepções da época moderna
(2010, p. 18).

Ou seja, com a introdução da ideia de progressismo, a ideia do moderno foi


ganhando contorno temporal em contraponto ao mundo antigo. Jacques Le Goff fala-nos que
o conflito de gerações existia no mundo antigo, não sendo exclusividade do mundo moderno.
O historiador exemplifica que os poetas latinos Horácio (65 a.C-8 d.C) (Epistolas) e Ovídio
(43 a.C-18 d.C) (Arte de amar)31 se contrapunham aos escritores antigos e se congratularam
pela época em que viviam. Segundo o historiador, eles não utilizavam o termo ‘novus’ em
oposição a ‘antiquus’. Alguns séculos depois, a ideia de moderno vai deixando, aos poucos, a
ideia de oposição de longa duração entre gerações, isto é, “no século VI aparece o neologismo
modernus formado por modo 'recentemente', da mesma maneira que hodiernus 'hoje' se
formou a partir de hodie 'hoje'” (p. 174).
Na França, entre o final do século XVII e o início do século XVIII, ocorreu uma
polêmica célebre entre os ‘Antigos’ e os ‘modernos’, membros de gerações distintas que
conviviam em uma mesma instituição. Na Academia Francesa, instaurou-se uma disputa
intelectual entre os defensores da superioridade da antiguidade greco-latina em relação à
produção artística e literária daquele momento. Os modernos defendiam que a produção da
atual literatura francesa não era inferior aos clássicos. O escritor Charles Perrault (1628-1703)
era o líder dos modernos.

30
Na edição de nossa consulta: “de facto, teria de esperar por muitas gerações: é que esta praga assolou
recentemente a nossa República.” (§75, p. 108). Dos deveres (De officiis), Cícero. Trad. de Carlos Humberto
Gomes. Lisboa, Edições 70, 2000.
31
Horácio [Epistulae, II, I, 76-89] e Ovídio [Ars amatoria, III, 121].
45

Esse conflito intelectual desenrolou-se ao longo do Iluminismo e desembocou no


Romantismo, com a disputa entre os românticos e os clássicos, que teve como ápice o
prefácio de Cromwell (1827) de Victor Hugo. Essa disputa, durante o romantismo, é uma
nova roupagem da oposição antigo/moderno.
A dialética que ocorre a partir da ideia de ‘moderno’ gera uma consciência de que
a modernidade nasce com o desejo de ruptura com o passado. A oposição entre antigo e
moderno teve como ponto de partida a oposição entre gerações e ao longo do tempo, ganhou o
aspecto de contraponto temporal. O poeta francês Charles Baudelaire (1821-1867) construiu
uma original reflexão estética acerca da modernidade, como uma expressão estilizada da vida
presente. Sobre esse ponto, discutiremos a seguir.

1.4 Charles Baudelaire e a modernidade

O poeta Charles Baudelaire lançou o conceito de modernidade na França, na


metade do século XIX. A ideia de modernidade é de origem estética, contudo, intimamente
ligada à História. O conceito foi desenvolvido no ensaio O pintor da vida moderna (1869),
sobre o artista Constantin Guys32. Porém, essa ideia já vinha sendo delineada em vários
ensaios anteriores, sobre os salões de arte, nos quais Baudelaire critica os artistas de seu
tempo, que negavam a beleza do momento presente, com o ensejo de buscar a beleza em
outras épocas. O poeta explica que os artistas clássicos foram fieis à sua época ao extraírem a
beleza de seu momento presente, captando e recriando a sua circunstância. Os artistas
contemporâneos a Baudelaire, ao tentarem imitar os clássicos, de modo anacrônico, vendaram
os olhos para a sua própria época.
Nos ensaios “Exposição Universal de 1855” e “Salão de 1859”, o poeta rejeita a
ideia clássica do belo, de caráter absoluto e único. Ele estabelece então um rompimento com a
tradição artística que cultivava como padrão estético, os clássicos. Nas escolas de arte, na
França, os alunos estudavam os ‘mestres’, enxergando neles os padrões de beleza.
Ele vivia numa época em que a Industrialização estava bastante agressiva, as
transformações sociais e históricas estavam mudavam e ameaçam a existência de uma visão
absoluta de mundo, inclusive a de arte. Essa nova Era moderna, não cultiva mais normas que

32
Constantin Guys (1802-1892) foi um ilustrador de jornais que fez a cobertura da Guerra da Criméia
(atualmente, a região do sul da Ucrânia), enviando ilustrações do exército em ação para o jornal Ilustrated
London News. A sua representação da vida em Paris, durante o Segundo Império, foi o seu grande destaque.
46

tinham uma vinculação radical com o passado. Em seus ensaios, o poeta dá ênfase ao presente
e ao individualismo como novos valores estéticos. O artista só deve ter fidelidade a si mesmo.
A liberdade de pintar a partir de sua própria visão passou ser a regra de ouro.
Baudelaire defende que para um bom pintor que desejasse captar a beleza da
realidade para o conteúdo de sua arte, o seu principal recurso seria a memória. Os temas das
pinturas seriam imagens extraídas da memória do artista. O pintor deveria ser uma espécie de
jornalista, de cronista. O modelo do artista moderno é Constantin Guys, devido a sua
particular forma de descrever o cotidiano de seu tempo.
Como a memória é fugidia, portanto, o artista não devia ter “medo de não agir
com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese tenha sido extraída
e captada” (BAUDELAIRE, 1995, p. 863). O referido artista observa atentamente os
acontecimentos do dia a dia, coletando dados e, em seguida, executa os desenhos com
extrema rapidez, antes de esquecer algum detalhe visto.
Para Baudelaire, Constantin Guys é o artista representante da vida moderna, pois
ele é capaz de captar e expressar a modernidade. Esse conceito é permeado pelo paradoxo
porque:
a modernidade é o transitório, o fugidio, contingente, a metade da arte, cuja outra
metade é o eterno, o imutável. Houve uma modernidade para cada pintor antigo; a
maioria dos belos quadros que nos restam dos tempos anteriores estão vestidos com
os trajes de sua época. Eles são perfeitamente harmônicos, pois a roupa, o penteado
e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época possui seu porte, seu olhar e seu
sorriso), formam um todo de uma completa vitalidade. Não temos o direito de
desprezar ou de prescindir desse elemento, transitório, fugidio, cujas metamorfoses
são frequentes (Ibidem, 1995, p. 859 – 860).

O poeta define a modernidade como o transitório, o fugaz, o fugidio, portanto está


tomando-a pelo seu caráter circunstancial, fenomênico. Há uma parte de eterno em cada obra,
mas essa só se realiza e é perceptível por meio da modernidade, ou seja, por sua face material
e transitória. Ele declara que para cada artista antigo houve sua modernidade, no sentido
circunstancial da arte.
A face eterna nunca se manifesta só, é um dado histórico que se emoldura com as
características de cada época que possui sua beleza, observada nas inter-relações entre a
estética e a moda. A modernidade é esse elemento inconstante e a sua beleza está em sua
variabilidade em cada momento presente. A capacidade de capturar a beleza dos dias atuais é
o ideal do artista moderno. No seu ensaio sobre o “Salão de 1846”, que “todas as belezas,
contém, assim como todos os fenômenos possíveis, algo de eterno e transitório, de absoluto e
de particular. A beleza absoluta e eterna inexiste, ou melhor, é apenas uma abstração
empobrecida na sua superfície geral das diferentes belezas” (ibid, p. 729).
47

A condição da modernidade só ocorre quando há uma similitude entre a obra do


artista e o seu próprio tempo. Baudelaire explica que a face mais transitória da sua história
atual era a multidão na rua. Constatin Guys, na visão do crítico, é um apaixonado pela vida e a
penetra por meio da multidão: “Pode-se igualmente compará-lo a um espelho tão imenso
quanto essa multidão; a um caleidoscópio dotado de consciência, que a cada um de seus
movimentos representa a vida múltipla e o encanto cambiante de todos os elementos da vida”
(ibid, p. 857).
Essa atitude de paixão faz o pintor ter a necessidade de trazer o movimento da
multidão para si, como uma energia que o alimentará artisticamente. A observação da
multidão ocorre no sentido de tentar captar o todo do seu movimento e, ao mesmo tempo,
focalizar uma cena de um conjunto de imagens múltiplas e fragmentadas. A multidão é um
caleidoscópio que tem vida própria, uma dinâmica que a faz se alterar o tempo todo. Portanto,
o artista percebe a multidão como múltiplas cenas e não um todo unitário. O pintor tem a
consciência de que sempre que observar a multidão, verá algo diferente. Não há, então uma
unidade do real.
Baudelaire explica que a tentativa de copiar a realidade não apresenta nenhuma
segurança, pois “quanto mais precisa será sua obra; mas há na vida ordinária, na metamorfose
incessante das coisas exteriores, um movimento rápido que exige do artista uma idêntica
velocidade de execução” (Ibid, p. 853). A realidade externa movimenta-se rapidamente,
transformando-se incessantemente, não oferecendo qualquer segurança ou estabilidade.
O assunto de preferência de Guys, segundo Berman (2007, p. 163), é a ‘pompa da
vida’, ou seja, o cotidiano que pode ser contemplado nas capitais do mundo civilizado,
retratados pelo artista, como a pompa da vida militar, da vida elegante. Um exemplo de
pompa de vida é o quadro “La promenade au bois de boulogne”33 (Figura 1).

33
O Bois de Boulogne (O bosque de Bolonha) é o maior parque público localizado em Paris, estabelecido e de
muito sucesso durante o reinado de Napoleão III. Foi o espaço preferido pelo cientista Santos Dumont, entre
1898 e 1903, para realizar as suas experiências aerostáticas; no qual voou com seu avião 14bis, em 1906.
48

Figura 1 - La Promenade au bois de Boulogne (Guache sobre papel).

No quadro, o que se destaca em seu centro é uma charrete descoberta, na qual


duas damas e um homem passeiam pelo famoso parque de Paris. As figuras centrais, a
carruagem, os condutores, os passageiros e os cavalos são os mais delineados e detalhados do
quadro. Eles são o foco e estão a passear. Nas partes laterais da pintura, outros carros e
cavaleiros, sem traços definidos e se confundem com a paisagem do parque. É interessante o
uso desse tipo de charrete, pois permite ver e ser visto, apreciar o movimento das ruas e do
parque. É um desfile desenhado e pintado com o cuidado de retratar o movimento
Constantin Guys se regozija dos assuntos franceses daquele período, segundo
Baudelaire, a modernidade, ao retratar as finas carruagens e os cavalos altaneiros, o esplendor
dos militares, a destreza dos pedestres, a beleza das mulheres e crianças, enfim a expressão de
uma vida elegante.
Outro exemplo de expressão da pompa da vida é a Figura 2.
49

Figura 2 - L'Avenue des Champs-Elysées, voitures et promeneurs.

Esse quadro nos revela alguns pontos da técnica do artista. Ele trabalha os seus
desenhos a partir de um conjunto de croquis. É um esboço bastante especial, pois a figura é
apenas delineada. Ele enviava ao jornal no qual trabalhava em Londres, vários esboços de
uma mesma cena. O retrato não tem desenhos e traços absolutamente definidos, deixando a
ideia de que o quadro nunca está terminado. Esse caráter de esboço é uma tentativa de
representar o movimento, o aspecto transitório da vida. Na cena retratada, vemos pedestres,
expectadores e cavaleiros no palco social da Avenida Champs-Elysées. Percebemos o grande
número de cartolas que se espalham ao redor do quadro, e em primeiro plano, algumas damas
com suas sombrinhas. São homens e mulheres elegantes, membros da aristocracia.
Constantin Guys, segundo Baudelaire, é um homem que conhece os mistérios da
sociedade, seus costumes, seus valores, seus movimentos. Ele se encanta pela multidão e, ao
mesmo tempo, se camufla nela, é o grande observador das metrópoles nascentes. O seu deleite
se encontra no movimento frenético das multidões nas ruas, como fluxo de um rio. É o flâneur
que está na multidão, imerso em si mesmo, anônimo. Um ponto na massa.
Um cronista brasileiro, do início do século XX, que amou a rua de modo
entusiasmado foi João do Rio (1881-1921). No livro, A alma encantadora das ruas (1908),
através de conjunto de crônicas sobre o Rio de Janeiro narra os seus processos de
transformação urbana e social, durante a Belle époque. Uma de suas crônicas mais famosas é
um elogio à rua.
Eu amo a rua [...] Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje
é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando
as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações
50

cada vez maior, o amor da rua. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da
vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou
Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a
agasalhadora da miséria. [...] A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos
miseráveis da arte (Rio, 2008, p. 28).

O cronista nos dá o seu testemunho, como um autentico flâneur. Ele ama a rua,
assim como Constantin Guys, pois é o espaço da vida cotidiana, a vida moderna, que sofre
constantes mudanças. A rua é uma metonímia da vida. O cronista flâneur, estava atento às
mudanças da sociedade por meio dos movimentos da rua, observando e tentando captar sua
realidade fugaz. Como espaço democrático, por ela passam ricos e pobres, miseráveis e
elegantes.
Ou seja, o flâneur reconstrói a cidade por meio de sua escrita, dinamizada pelos
processos de modernização. Segundo João do Rio, “flanar é ser vagabundo e refletir, é ser
basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] Flanar é a
distinção de perambular com inteligência” (2008, p. 29). Flanar é a arte de ver o cenário
urbano.
Na passagem do século XIX para o XX, a rua mais famosa do Rio foi a do
Ouvidor. Era o espaço aonde a burguesia ia para se cobrir de requinte e passear defronte às
lojas de nomes afrancesados. O escritor e político português, João Chagas 34, no seu livro De
bond, relata, na sua viagem ao Brasil, o charme que o Ouvidor exercia perante a população da
época:
A rua é estreita. Um corredor, uma sala. Vê-se tudo, ouve-se tudo. Passam homens
de braço dado falando com cordialidade, passam bandos que se conhecem, porque a
cada instante se saúdam, passam indivíduos atarefados, rompendo a custo a multidão
ociosa, passam sobretudo mulheres! Quantas mulheres! Em geral vestem todas com
requintado luxo. Observo isto: que as mulheres vêm ver ou mostrar alguma coisa.
Poucas parecem passar por acaso por esta rua atravancada de curiosos; quase todas
parecem passar de propósito e, com efeito, assim é (CHAGAS, 1897, p.46-47).

O escritor português se impressiona com a rua estreita ser o centro vivo da cidade.
Como um flâneur, seus olhos descortinam o cenário múltiplo da Rua do Ouvidor, inclusive
repleto de mulheres. A rua é um palco de troca de olhares, de exposição. Ao debruçar-se sobre
a essa rua, microcosmo da cidade, seu olhar se fixa perplexamente sobre o espetáculo urbano.
A cidade de Fortaleza, cenário principal de nosso estudo, durante a passagem do
século XIX para o XX, no afã de modernização de seus dirigentes, também passa por variadas
reformas urbanas. As ruas são alargadas, são construídos bulevares e praças são reformadas.

34
João Pinheiro Chagas (1863-1925) foi um jornalista, escritor, diplomata e primeiro presidente do ministério da
I República de Portugal.
51

Um logradouro preferido da cidade, palco da modernidade era o Passeio Público (figura 3),
cujo nome oficial é Praça dos Mártires, instituída em 11 de janeiro de 1879.

Figura 3 - Foto do Passeio Público, 1910. Arquivo Nirez.

O Passeio Público é um dos mais antigos logradouros da cidade de Fortaleza. Na


foto, que data do início do século XX, observamos a Avenida Caio Prado35, com vista para o
mar. Esse espaço do Passeio era destinado ao encontro e ao passeio das famílias elegantes,
reservado ao deleite das elites. Na foto, vemos várias crianças sentadas nos bancos. Homens
trajando-se elegantemente, sem esquecer o chapéu à cabeça. A praça possuía muitos bancos,
canteiros amplos, réplicas de esculturas clássicas. O Passeio era o grande ponto da
sociabilidade de Fortaleza.
Outro espaço central da cidade é a Praça do Ferreira. Na figura 4, temos um
exemplo de um cartão postal, cuja imagem revela um flâneur cearense.

35
Em 1864, por iniciativa do então prefeito, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, o espaço que era conhecido como
Largo da Fortaleza ou Campo da Pólvora (Confederação do Equador, 1817) é reformado para ser o novo Passeio
Público da cidade, com três níveis. Em 1879, houve uma nova reforma e os dois níveis mais baixos, atualmente,
na Avenida Leste-Oeste, foram removidos, e o nível restante, foi dividido em três setores, destinado à classe rica,
média e pobre. A Avenida Caio Prado, próxima à praia era a destinada aos ricos, a classe média ficou com o lado
da Rua Dr. João Moreira, enquanto os pobres ficaram com o setor central.
52

Figura 4 - Cartão-postal do cruzamento da Rua Guilherme Rocha com Major Facundo, 1911 – Arquivo Nirez.

A foto data de 1911 e nela percebemos inúmeros indícios de modernização por


que a capital cearense passou: no centro, ao fundo, uma linha de bonde, automóveis,
comércios, as duas esquinas movimentadas, postes com energia elétrica. No lado esquerdo,
um pequeno garoto, vendedor de jornais, arruma a sua bolsa, preparando-se para vender as
novidades do mundo ‘civilizado’. A cidade é o personagem central, contudo, o seu
expectador, em primeiro plano, é privilegiado, vestido de terno branco e chapéu, apoiado em
um poste. Ele é nossa testemunha da modernidade fortalezense, pois está posicionado em
frente à lente da câmara.
Atrás do pequeno vendedor de jornais, há um prédio chamado Maison Art-
Noveau, onde funcionava um bar, um café e uma confeitaria. Na esquina oposta, funcionava o
famoso Café Riche, ambiente frequentado por indivíduos da classe abastada de Fortaleza e
também da boêmia literária.
Em relação à postura da nossa testemunha, Baudelaire nos auxilia na compreensão
de que “para o perfeito flâneur, para o observador apaixonado, é um imenso júbilo fixar
residência no numeroso, no ondulante, no movimento, no fugidio e no infinito” (ibid, 1995, p.
857). Não vemos o seu rosto, mas deve estar encantado com a movimentação do cruzamento.
Está atento e não é um simples curioso. No flâneur, é muito evidente o prazer de olhar.
As fotos da Fortaleza antiga e as citações dos cronistas sobre o Rio de Janeiro são
exemplos de expressões da modernidade no Brasil, no sentido de que muitas cidades
brasileiras, com ânsia de civilização, se espelhavam nos hábitos e nas estruturas de urbanidade
europeia. A modernidade para Baudelaire é a tentativa de fixar o transitório da realidade na
53

obra de arte, como expressão do cotidiano como signos dinâmicos, tais como a rua, a
multidão, os vendedores, os carros, as tropas em marcha.
Baudelaire nos legou a lição de refletir, a partir de uma época moderna que
passava pelo auge do capitalismo, repleta de constantes mutações, na qual o homem é
atingido por inúmeros fenômenos transitórios, como a obra de arte encontrou meios técnicos
para expressar e interagir com o seu próprio tempo presente.
Na primeira metade do século XX, o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-
1940) efetuou uma leitura singular da obra lírica e ensaística do poeta francês. A partir das
imagens da cidade de Paris poetizada por Baudelaire, Benjamin interpretou os temas da
caducidade e da fragilidade como chaves importantes da experiência do homem moderno
(Benjamin, 1989, p. 81).
As inovações técnicas, não apenas de transporte, mas, sobretudo, de comunicação,
como a fotografia e prensas mais rápidas, distribuindo informação e imagens às massas,
trouxeram uma aceleração da ideia de tempo. O tempo não era mais um elemento
cronológico, mas um dos fundamentos radicais do capitalismo: o tempo como mercadoria,
como prazos a cumprir, como horas trabalhadas e horas extras, como horas de lazer para
poucos privilegiados. A metrópole se tornou um lugar privilegiado para a observação dessa
aceleração do tempo e das experiências que afetaram a vida no cotidiano
A modernidade, vista como misto de eterno e transitório, nos chama mais a
atenção pelo seu aspecto fenomênico, pois, segundo Benjamin, se define pela sua
caducidade36, isto é, o rápido envelhecer das coisas, uma tensão entre o esquecimento e a
lembrança. O artista moderno trava uma luta sem tréguas para reter os instantes fugidios do
tempo que flui sem cessar. Essa é a missão paradoxal do artista da vida moderna; a tentativa
de imobilizar o tempo, ou seja, o transitório, imortalizando-o por meio da arte.

36
Walter Benjamin, no ensaio “Modernidade” (Obras escolhidas III, editora Brasiliense), investiga a relação da
teoria da arte moderna de Baudelaire e sua visão da modernidade. O pensador analisa os poemas que constituem
a parte “Quadros parisienses”, pertencentes à obra As flores do mal. No poema “O cisne”, o poeta canta: “(...)
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história/depressa muda mais que um coração infiel);/Paris muda! Mas nada
em minha nostalgia/Mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados,/Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria. E
essas lembranças pesam mais do que rochedos (...) (“O cisne”, v. 7–8 e 30–33. BAUDELAIRE, 1995, p.173).
Percebemos que o poema pode ser lido como uma expressão radical do sentimento da transitoriedade. A cidade
de Paris é recriada em diversas imagens que expressam sua fragilidade hibrida de modernidade e antiguidade. As
imagens da caducidade expressas por Baudelaire podem ser entendidas como as ruínas de Paris.
54

1.5 Categorias norteadoras

1.5.1 Vida Literária

Após o breve estudo sobre os significados e os efeitos da Era moderna e da


modernidade, destacaremos os aspectos mais relevantes da vida literária, na qual Rodolfo
Teófilo cresceu, amadureceu e travou suas batalhas simbólicas.
No Brasil, essa perspectiva se notabilizou a partir das crônicas do escritor paulista
Brito Broca e, depois, por meio da obra A vida literária no Brasil-190037 (1956).
Para o autor, a vida literária é compreendida tanto no seu aspecto mais imediato
dos usos e costumes das rodas de escritores, mesa de cafés e salões mundanos, como a
vertente mais abstrata das modas estéticas, das famílias espirituais, dos modos de ver e de
sentir do individuo e do grupo. Esse último aspecto será importante para esquadrinhar como a
transformação da paisagem urbana ia se refletindo na paisagem social e afetando o quadro da
vida literária, em Fortaleza.
O autor estabelece uma distinção entre vida e literatura ressaltando que o interessa
é algo intermediário, não é a vida social, nem apenas o texto literário visto como objeto
estilístico. O grande modelo metodológico de Brito Broca foi o escritor francês André Billy
(1882-1971), que dirigiu na França a obra Histoire de la vie littéraire38, publicado pela editora
Tallandier.
Brito Broca não esconde a sua inspiração, tanto que em um artigo no Suplemento
literario do jornal O Estado de São Paulo, “A propósito de uma crítica militante”, ele explica
a visão historiográfica do pesquisador francês:
Billy possui, além disso o mérito de haver criado um gênero novo: a história da vida
literária. Embora esta sempre se fizesse, indiretamente, através da biografia, do
memorialismo e da crônica (tomando a sua palavra no seu sentido próprio) foi ele,
sem dúvida, quem lhe deu um caráter autônomo, estabelecendo-lhe os limites e as
proporções. ‘Há muito tempo – declarou no avant propos do livro ‘L’Epoque 1900 –
eu tinha no espírito a ideia de uma série de obras, em que a literatura seria não
criticada nem julgada, como de ordinário, pelos historiadores, mas antes narrada à

37
Sobre o caráter da obra, numa nota da 1ª edição, Brito Broca nos diz que a obra seria o 3º volume de um
trabalho mais amplo, sobre a Vida literária no Brasil. O período Colonial e o Romantismo constituiriam o
primeiro; o período Naturalista o segundo; a fase Modernista, o quarto. Por questões circunstanciais, ele
escreveu, antecipadamente, o referido volume, que teve uma recepção estrondosa. Ele não prosseguiu com o
projeto e A vida Literária no 1900 permaneceu como obra autônoma.
38
Os livros que formam o conjunto da obra são, La Vie littéraire en France au Moyen Âge (1949), por Gustave
Cohen ; La Vie littéraire sous la Renaissance (1952), por Auguste Bailly; La Vie littéraire au XVIIe siècle
(1947), por Georges Mongrédien; La Vie littéraire en France au XVIIIe siècle (1954) por Jules Bertaut;
L'Epoque romantique (1947), por Jules Bertaut; L'Epoque réaliste et naturaliste (1945), por René Dumesnil ;
L'Epoque 1900 (1895-1905), (1951), por André Billy ; L'Epoque contemporaine (1905-1930), (1956), idem.
55

feição de um romance. A história da literatura, sobretudo da literatura francesa, não


é um romance, um roman-fleuve, para empregar a expressão consagrada, com seus
heróis, seus personagens, seus comparsas, suas peripécias mais ou menos trágicas e
divertidas, seus conflitos, seus dramas, suas comedias, seus estados de crises e suas
catástrofes?’ Essa história – acrescentava logo depois – ‘torna-se fria por ser
unicamente livresca, por esquecer que a literatura é uma coisa viva; negligencia a
vida literária, negligencia os escritores, como homens, circunscrevendo tudo ao
texto. Só as obras têm importância, decerto, mas com a condição de serem, bem
compreendidas e como bem compreendê-las se não tivermos noção do meio e das
circunstâncias em que nasceram?’ (BROCA, O Estado de São Paulo, 19-09-1959).

No trecho, vemos que Brito Broca ressalta que André Billy é o criador do gênero
“vida literária”. O detalhe interessante é que o livro escrito por Billy, L’Époque 1900, é
praticamente o mesmo título da obra de Broca; este acrescenta a particularidade, “no Brasil”.
Literariamente, Billy define 1900, como a última década do século XIX e os primeiros anos
do século XX, antes das divulgações das vanguardas artísticas.
Broca adota a mesma perspectiva em relação ao Brasil: o ‘1900’ será a passagem
entre séculos, durante o período de sincretismo estético (Realismo, Naturalismo,
Parnasianismo, Simbolismo, Impressionismo), com o intuito de sermos mais honestos do que
denominar ‘Pré-modernismo’39, mero clichê didático. O cenário principal é o Rio de Janeiro,
em sua fase de remodelação. Época da boêmia literária, dos cafés, das academias.
A vida literária para Billy seria, então uma história narrada, à feição de uma
crônica. A história da vida literária é uma espécie de biografia da época:
E esse estudo fascinante, longe de constituir uma resistência à ‘volta ao texto’, à
crítica estilística harmoniza-se perfeitamente com ela. Pois devemos evitar os pontos
de vista unilaterais. Cingir-se apenas ao texto é reduzir a complexidade do fenômeno
literário: superestimar os fatores biográficos, recair numa simplificação cômoda. Um
método não exclui o outro, tudo concorrendo para a compreensão de uma obra na
sua totalidade. Vida literária e literatura são coisas que se completam e se ilustram
(BROCA, O Estado de São Paulo, 19-09-1959).

Concordando com o escritor francês, critica a visão radical centrada somente no


estudo do texto, tratada como algo frio, em contraposição a uma literatura viva, pois esta é
feita por homens que vivem em determinado contexto social e cultural. Ele aponta que o
estudo do texto é importante, pois a literatura é um objeto de linguagem estética, fenômeno

39
O termo “pré-modernismo” foi cunhado por Tristão de Athayde (pseudônimo de Alceu de Amoroso Lima
(1893-1983), no livro Contribuição à história do modernismo (1939), no qual quis descrever “momento de
alvoroço intelectual, marcado pelo fim da grande guerra [1914-1918] e, entre nós, por toda uma ansiedade de
renovação intelectual, que alguns anos mais tarde redundaria no movimento modernista” (Athayde, 1939, p. 07).
Percebemos que o crítico quis enfatizar o movimento modernista, contudo o termo não compreende um
movimento ou período literário que antecedeu as reinvindicações estéticas da Semana de Arte de Moderna de
1922 ou mesmo uma espécie de preparação. Entendemos que o caráter sincrético desse momento histórico, as
duas primeiras décadas do século XX, é compreendido pela convivência de escritores simbolistas, parnasianos,
realistas, românticos, impressionistas e naturalistas, tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo, foi
compreendido, posteriormente, mais como um período de transformações intelectuais e culturais do que uma
fase de transição.
56

complexo, que será mais bem compreendido, examinando-se também as circunstâncias de sua
origem.
Brito Broca adota o método de Billy e o emprega no exame dos acontecimentos
mais interessantes relativos aos escritores no ambiente do Rio de Janeiro que passava, na
primeira década do século XX, por um período de euforia civilizatória.
Um exemplo da onda ‘civilizatória’ ocorre ao relatar sobre o prefeito da Capital,
Pereira Passos (1836-1913), segundo Broca, o ‘Barão de Haussmann do Rio de Janeiro’,
devido ao seu afã de modernizar as ruas estreitas e tortas da velha cidade colonial, contudo,
com uma diferença: Haussmann remodelou Paris, tendo em vista objetivos políticos-
militares, dando aos bulevares um traçado estratégico, a fim de evitar as barricadas
das revoluções liberais de 1830 e 48; enquanto o plano de Pereira Passos se
orientava pelos fins exclusivamente progressistas de emprestar ao Rio uma
fisionomia parisiense, um aspecto de cidade europeia. Foi o período do bota-abaixo
(1960, p. 3).

Broca fala-nos dessa ânsia em remodelar a cidade, mas seguindo o modelo


francês. Não se podia ficar de fora, visto que outras capitais estavam passando pelo mesmo
processo, inclusive Fortaleza. A transformação da paisagem urbana se ia refletindo na
paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida literária. A febre de mundanismo que
o Rio começara a viver refletiu-se nas relações literárias. A vida literária é a crônica desse
contexto literário, de seus autores e de suas obras.
O autor destaca que, no final do século XIX, a vida literária sobrepujou a própria
literatura. Isso ocorreu pela necessidade de escritores e intelectuais de ‘viver’ a literatura,
realizando performances voltadas para as letras, numa espécie de jogo teatral, no qual se
buscava ‘literalizar o trato cotidiano da existência’ (idem, 1960, p. 37). A encenação ocorria
em locais como cafés, confeitarias, salões e livrarias, cinemas.
Quando Brito Broca tratou dos homens daquele período, independente de serem
boêmios ou não, frequentar os estabelecimentos ‘da moda’ do Rio de Janeiro (Rua do
Ouvidor, cafés, salões e etc.) observou que aqueles fatos constituíam-se num modo de
enriquecimento intelectual. Sociabilizar nesses ambientes era uma forma de divulgar uma
obra literária, por exemplo, uma tarde em uma livraria ou numa confeitaria, reunidos com
amigos ou conhecidos, os homens de letras que fazem parte do círculo social.
Para complementar o estudo da vida literária de Fortaleza, convém realizar
sucintos levantamentos de aspectos da convivência social e cultural dos escritores membros
57

das agremiações literárias, das quais Rodolfo Teófilo foi contemporâneo ou participante. Para
esta discussão, utilizaremos de Maurice Agulhon40 (2009) o conceito de sociabilidade.

1.5.2 Maurice Agulhon e a sociabilidade

O conceito de sociabilidade foi desenvolvido na obra O círculo burguês41 (2009).


Neste livro, o historiador analisa a emergência de um tipo específico de sociabilidade
burguesa, na primeira metade do século XIX, na França: um círculo de homens envolvidos
em conversa, leitura de jornais, jogos de tabuleiro e em troca amigável, ou seja, no prazer
compartilhando do lazer. Primeiramente, apresenta uma série de questões teóricas e
metodológicas sobre a noção de sociabilidade. Ele a distingue como categoria histórica, cujo
surgimento data do século XVIII, no âmbito do discurso iluminista, sendo o primeiro
emprego na historiografia francesa atribuída a Jules Michelet42 (1798-1874). Agulhon
preocupa-se em afinar as suas ideias, ajustando-as ao grande desenvolvimento da
historiografia europeia sobre o assunto, esclarecendo que “explicar la sociabilidade, rasgo de
temperamento colectivo, no através de una misteriosa herencia de raza, o de una afinidad
climática algo menos inquietante, sino por el resultado de relaciones sociales, económicas e
históricas objetivas” (AGULHON, 2009. p. 35). Neste livro, evidencia-se uma concepção de
sociabilidade como algo que muda ao longo do tempo e do espaço, torna-se assim um
possível objeto histórico.
Seu estudo da emergência do círculo burguês é dividido em duas partes, a
primeira, dedicada à "história" da instituição e o segundo à sua "análise". Mas, a questão que
surge é: o que é então a sociabilidade? Para Maurice Agulhon, é o conjunto de relações
sociais reais, vividas, que conectam o indivíduo a outros por meio de vínculos interpessoais
e/ou de grupo Pode ser uma sociabilidade formal, organizada, ou informal e espontânea,
coletiva (envolvendo mais de duas pessoas) ou interindividual (apenas entre dois indivíduos),
mais ou menos intensa, no trabalho na vizinhança ou na família.

40
Nasceu em 20 de dezembro de 1926, em Uzes (França) e morreu 28 de maio de 2014. Estudou na
École Normale Supérieure de Lettres, entre 1946 a 1950. Foi professor em diversas instituições acadêmicas
francesas, sendo Professor no Collège de France (1986-1997).
41
A obra de nossa consulta: Agulhon. Maurice. El círculo burguês. Buenos Aires, Siglo XXI, 2009. A
referência da edição original francesa: é Le cercle dans la France bourgeoise. 1810- 1848. Étude d'une mutation
de sociabilité. Paris, Armand Colin, 1977.
42
Segundo Agulhon, o historiador e filósofo francês Jules Michelet (1798-1874) aplicou o termo sociabilidade,
em seus escritos, no contexto da psicologia coletiva, então em voga na historiografia francesa do século XIX
(2009, p. 22).
58

Ele destaca a capacidade especial para viver em grupos e consolidar estes através
da formação de associações voluntárias.
O associativismo foi desenvolvido segundo determinados padrões, com territórios
bem delimitados e, por via disso, a sociedade burguesa francesa soube criar o seu próprio
espaço social, impondo os seus valores e sinais distintivos. Numerosos espaços de
sociabilidade, com as mais variadas motivações, surgiram na França, daquele período, sob
designações várias: sociedades, gabinetes, círculos, assembleias, clubes, formando ou não,
algum grau de especialização, para além daqueles marcadamente informais que acolhiam os
diversos grupos sociais.
Maurice Agulhon trabalha, em sua investigação, a sociabilidade a partir do
desenvolvimento do conceito de círculo, que foi construído especificamente para o contexto
da classe burguesa francesa, da segunda metade do século XIX. O nosso intuito não é trazer a
ideia de círculo de Agulhon para a Fortaleza do final do século XIX: o nosso interesse é
discutir a ideia de sociabilidade para pensar as agremiações literárias, que surgiram ao longo
da segunda metade do século XIX. A sociabilidade está associada aos diversos modos pelos
quais os homens se relacionam em conjunto, no âmbito formal ou informal. O interessante é
entender que a sociabilidade nos espaços literários da cidade, pois permite verificar as
relações amistosas entre os escritores, a camaradagem no sentido do auxilio mútuo em se
aperfeiçoar culturalmente, o prazer em estar em grupo.
Em nosso estudo da vida literária em Fortaleza, a contribuição do intelectual
francês acontece a partir da possibilidade de estudarmos a sociabilidade em um âmbito
literário.

1.5.3 Contexto literário

Para fundamentar a discussão a que objetivamos acerca da sociabilidade das


principais agremiações literárias fortalezenses como aspecto da vida literária, recorremos às
reflexões efetuadas pelo linguista francês Dominique Maingueneau, em O contexto da obra
literária (2001).
Se anteriormente, com Broca, vimos que a vida literária como a crônica do
contexto dos escritores e suas obras, o termo contexto para Maingueneau terá sua própria
particularidade. Ele não corresponde apenas aos dados históricos externos à obra. O contexto
da obra literária não é
59

somente à sociedade em sua globalidade, mas em primeiro lugar, ao campo literário


que obedece a regras específicas (...) É nessa zona que se travam realmente as
relações entre o escritor e a sociedade, o escritor e sua obra, a obra e a sociedade e a
sociedade captada como um todo, mas através das tensões do campo propriamente
literário (MAINGUENEAU, 2001, p. 27-30).

Dominique Maingueneau define a sua ideia de contexto como um exame


minucioso das condições de enunciação que nutriram a obra. O texto literário é resultado da
própria gestão do seu contexto. Nesse trecho, é destacado o caráter conflituoso, pois o entorno
do escritor não é algo exatamente harmonioso, totalmente propício para a construção de seu
texto.
As obras literárias têm suas especificidades, pois
falam efetivamente do mundo, mas sua enunciação é parte integrante do mundo que
pretensamente representam. Não há, por um lado, um universo de coisas e de
atividades mudas, do outro, representações literárias destacadas dele que seria uma
imagem sua. A literatura também consiste numa atividade; não apenas ela mantém um
discurso sobre o mundo, mas gere sua própria presença nesse mundo.
(MAINGUENEAU, 2001, p. 19).

Pela citação, o autor nos esclarece que as obras literárias falam do mundo, mas
não constituem reflexos objetivos dele. O contexto é uma situação social e histórica do texto
literário, que não envolve apenas as instituições, mas outros textos produzidos no seu entorno
e os seus relacionamentos. O contexto é uma espécie de moldura problemática do texto.
Maingueneau estabelece uma crítica à visão dicotômica que separa as coisas do mundo e suas
pretensas representações. A literatura não e apenas um discurso sobre o mundo, porém é uma
força transformadora e atuante no mundo. A complexidade do fenômeno literário reside em
seu aspecto relacional e paradoxal. Essa visão acerca do contexto é pragmática devido à
preocupação em relação ao sujeito, às condições de sua enunciação e sua história. A literatura
é vista como uma zona conflituosa no qual o escritor alimenta a sua obra com a problemática
desse próprio conflito (idem, 2001, p. 27).
Tensão, lugar indefinido, zona intermediária, são traços arrolados por
Maingueneau, para estruturar a sua revisão da ideia de contexto e para caracterizá-lo. Ele
constrói o seu conceito a partir da contribuição da teoria dos campos, de Pierre Bourdieu.

1.5.4 Campo Literário

O termo campo literário foi cunhado pelo sociólogo Pierre Bourdieu para
descrever ao espaço social que reúne diferentes grupos de literatos, romancistas e poetas, que
mantêm relações determinadas entre si e também com o campo do poder. Ele desenvolve o
60

conceito, examinando a narrativa do livro de Gustave Flaubert (1821-1880) A Educação


Sentimental.
A história nos apresenta o jovem estudante de direito, Fréderic Moreau, que em
uma viagem de barco, em 1840, encontra Madame Arnoux, esposa de um editor dum jornal
de grande circulação, Jacques Arnoux. Eles trocam conversas e olhares. Para Frédéric, é amor
à primeira vista. Este encontro o marcou profundamente. A partir daí, o projeto do
protagonista é conquistar o amor de Marie Arnoux. Ele se aproxima do marido e do seu
círculo social e começa a frequntar a sede da revista Arte Industrial. Porém, Frédéric Moreau,
primeiro terá que se resignar a voltar a viver na província, junto com a sua família, por causa
da precariedade de sua situação. Depois, ele recebe uma herança inesperada, que lhe permitiu
voltar a viver em Paris. Mesmo mantendo um amor ‘romântico’ pela Sr.ª Arnoux, tem um
affair com Rosanette e com a Sr.ª Dambbreuse, esposa de um banqueiro oportunista.
Concomitantemente, o seu amigo de faculdade, Deslauriers, procura persuadi-lo a abrir um
jornal político. Enquanto tenta cativar Sr.ª Arnoux, passa por variadas conturbações políticas,
sociais e financeiras, oriundas da Revolução de 1848 e do Segundo Império, na França.
O sociólogo nos explica que a estrutura do espaço social representada no romance
também é a estrutura do espaço social do próprio Flaubert. Ao analisar a ação do protagonista,
demonstra que ele tinha a ambição de ser reconhecido no campo literário e intelectual. O
contexto em que o personagem estava inserido, assim como o do seu criador, é um espaço em
que se sucedem as relações entre os indivíduos, grupos e estruturas sociais, com uma
dinâmica que obedece a leis particulares, incorporadas sempre pelas disputas ocorridas em seu
interior. Assemelha-se ao campo de força newtoniano, no qual os indivíduos são
lançados nesse espaço, como partículas em um campo de forças, e suas trajetórias
serão determinadas pela relação entre as forças do campo e sua inércia própria. Essa
inércia está inscrita, de um lado, nas disposições que eles devem às suas origens e às
suas trajetórias, e que implicam uma tendência a perseverar em uma maneira de ser,
portanto, em uma trajetória provável, e do outro lado, no capital que herdaram, e que
contribui para definir as possibilidades que lhes são destinadas pelo campo
(BOURDIEU, 1996, p 24).

Ora, esse campo possui uma gravidade específica que estabelece a sua lógica a
todos os agentes que nele entram. Frédéric entrou nesse jogo social. Ele possuía um objetivo
amoroso, para atingir esse fim, mas, teve que entrar no círculo de Jacques Arnoux, a sede da
Arte Industrial que era frequentada por burgueses, artistas ortodoxos, boêmios, homens de
prestígios, parasitas sociais. A reflexão acerca da ideia de campo, construída a partir do estudo
do romance de Flaubert, é levada para estudos de contexto de outras obras literárias.
61

No decorrer de As Regras da arte, Bourdieu nos esclarece que entre os estudiosos


das ciências humanas, há os internalistas e os externalistas. Para os internalistas, a
compreensão das produções culturais está na leitura dos textos, uma espécie de fetichismo.
Para os externalistas, de origem ou influenciados pelo marxismo, o fato mais importante é a
relação entre o texto e o contexto, as obras são interpretadas a partir de sua relação com o
mundo social e com o mundo econômico.
Para a compreensão das produções culturais, a noção de campo pretende ir além
da barreira do texto e do contexto. Pierre Bourdieu explica que existe um espaço
intermediário entre eles: “O campo é um universo no qual estão inseridos os agentes e as
instituições que produzem, se produzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse
universo é um mundo social como os outros, mas que obedece às leis sociais ou menos
especificas” (2004, p. 20).
A importância da ideia do campo literário, desenvolvida por Bourdieu, está na
compreensão de que o escritor literário possui uma relação viva, dinâmica e conflituosa com o
seu contexto. A sua tentativa de entrada, a sua inserção e seu movimento, no interior do
campo, é de natureza problemática, visto que a literatura não estabelece um lugar fixo na
sociedade. A sua circulação é fluída. Contudo, a literatura não é um espaço vazio, meramente
virtual, pois “a pertinência ao campo literário não é, portanto, a ausência de qualquer lugar,
mas antes uma negociação difícil entre o lugar e o não-lugar, uma localização parasitária, que
vive da própria impossibilidade de se estabilizar” (MAINGUENEAU, 2001. p. 28).
Dominique Maingueneau observa que a Literatura se manifesta como um espaço
discursivo que se constitui na fronteira, isto é, não se localiza nem dentro, posto que a
Literatura não se confunde com a sociedade comum como tantos outros campos da atividade
social; nem fora, porquanto não se fecha em si mesma, muito menos vive apartada da
realidade.
Relacionarmos a reflexão de Pierre Bourdieu com a de sociabilidade, de Agulhon,
é relevante para entendermos que o escritor precisa realizar “ações” para se inserir e
permanecer no campo literário: precisa adquirir capital cultural, precisa escrever (tomar um
posicionamento estético), tentar publicar os seus escritos, circular nos meios intelectuais,
travar amizades, divulgar a sua obra aos pares e à sociedade em geral, continuar escrevendo.
Na sociedade, existem muitos campos coexistindo: o literário, o científico, o intelectual.
62

Contudo, todos esses campos relacionam-se de maneira problemática com o campo do


poder43, que corresponde a um espaço objetivo de lutas no âmbito econômico.
Ou seja, a ideia de campo é a ideia de luta, pois o seu funcionamento ocorre por
meio de disputas na sociedade, quer sejam materiais, quer sejam simbólicas. Portanto, o
aspecto de sociabilidade entre os intelectuais44 cearenses das agremiações literárias da capital
alencarina, é luta de ideias, a escrita como arma ideológica. Esses conflitos simbólicos
materializados nos artigos de jornais e periódicos e na publicação de livros é que permitia a
movimentação e disputas no campo intelectual de Fortaleza. Nesse campo literário
específico, Rodolfo Teófilo foi ao mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeito, pois, a partir de
aquisição da educação formal e da instrumentalização intelectual e linguística, ele tomou
consciência do seu papel como escritor, a partir das regras do jogo, tentou entrar no campo
literário. Também foi objeto, pois os seus escritos e ideias foram alvos de disputas e de
conflitos na arena de lutas simbólicas e discursivas, no antagonismo com seus adversários e
na aproximação de confrades.

1.6 A bio/grafia de Rodolfo Teófilo

A investigação da vida literária, da qual Rodolfo Teófilo fez parte, exige o estudo
de sua bio/grafia. Este conceito grafado, com uma barra que delimita, mas não separa as duas
raízes, é desenvolvido por Dominique Maingueneau.
A bio/grafia não é um mero levantamento de dados acerca da vida do escritor. A
palavra biografia remete-nos a um gênero textual que tem por objetivo narrar a vida de uma
pessoa. Maingueneau põe uma barra entre as duas raízes de origem grega: bio, de βíος – bíos,
é vida e grafia, de γράφειν – gráphein, escrever. O escritor vive em determinada sociedade e o
seu texto será um ponto de interseção dinâmico, instável, constantemente desafiado. Ao

43
Bourdieu, relacionando ao âmbito literário francês, define campo do poder como “as relações de forças entre
as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de
modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, ente as quais possuem
uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legitima do poder” (O poder simbólico, p.
28-29). Nas palavras do pensador, no campo do poder, existem individualidades pertencentes à classe
dominante, pessoas reais possuidoras de capital econômico, detentoras de poder material que interferem na
sociedade em prol de seus interesses.
44
Para este trabalho, delimitamos a noção de intelectual aos sujeitos produtores de bens simbólicos (Pierre
Bourdieu, Economia das trocas simbólicas, 2009). Veremos, posteriormente, o exemplo da revista A quinzena
que pode ser considerada um bem simbólico produzido por um grupo (Clube Literário), e que propiciava certo
reconhecimento intelectual entre os seus componentes.
63

realizar a atividade da escrita literária, o autor se compromete, se arrisca, negocia tensamente


o pretenso sucesso do seu labor artístico contra a instituição literária.
O autor não é a única fonte do sentido do texto literário. A sua obra é
indissociável das instituições que a tornam possível: a obra é escrita, produzida em uma
editora, distribuída, lida, comentada, criticada, recomendada. Enfim, ela circula na sociedade.
A literatura não se realiza de modo isolado. O ser humano não consegue viver sozinho45.
Ao relacionarmos de modo crítico, o escritor ao seu contexto literário, sendo a sua
função como escritor institucional ou não, devemos além ir da visão de que a circulação em
determinando espaço social ou condições materiais influenciará na decisão ou no desempenho
de um futuro escritor. Maingueneau nos esclarece que “não basta levar uma vida boêmia ou
frequentar cenáculos para ser um criador. O importante é a maneira particular como o escritor
se relaciona com as condições de exercício da literatura de sua época” (2001, p. 45).
Rodolfo Teófilo fez parte da mesma geração de jovens que estudaram no Ateneu,
viveu na mesma cidade, compartilhou de leituras, mas a sua obra literária e sua conduta
intelectual são singulares.
A literatura e o seu contexto condicionam os comportamentos mas para a criação
literária, o escritor explora esse condicionamento e interfere nele. Maingueneau esclarece que
a obra não está completamente fora do contexto biográfico, porém, não é o seu reflexo. A obra
literária faz parte da vida do escritor e “o que se deve levar em consideração não é a obra fora
da vida, nem a vida fora da obra, mas sua difícil união” (ibidem, p. 46).
Então a bio/grafia que percorreremos será no sentido da vida rumo à grafia e da
grafia rumo à vida. O nosso interesse em Rodolfo Teófilo consiste no estudo de uma produção
literária, crítica e polêmica.
Essa atuação própria do indivíduo no contexto (ou campo) é chamada por
Bourdieu de habitus, “que consiste em maneiras de ser permanentes, duráveis que podem, em
particular, levá-los a resistir, a opor-se às forças do campo (BOURDIEU, 2004, p. 29). É uma

45
Um exemplo moderno de homem solitário é o do personagem Robinson Crusoé, do livro de Daniel Defoe
(1919). Mesmo perdido numa ilha deserta, não deixou de levar consigo a sociedade em que vivia. Com os
objetos e os instrumentos recuperados do navio, ele tratou de ‘civilizar’ o ambiente selvagem em que naufragou.
A vida na ilha não era apenas para sobreviver, mas para criar as condições para viver adequadamente, por meio
de uma disciplina de trabalho. As práticas, as condutas são fruto de uma convivência social. O que o fez subsistir
não foi apenas o instinto de sobrevivência, mas um habitus que o mantinha ocupado em produzir meios de
sustento e em mimetizar os confortos de uma vida moderna, pautados em uma lógica do trabalho, de valores e de
práticas oriundos de uma Inglaterra mercantil, pré-Revolução industrial. O herói não era apenas um aventureiro,
era um empreendedor. Ao encontrar o nativo Sexta Feira, Crusoé desejou logo ‘civilizá-lo, ensinando-lhe uma
nova língua e uma nova fé. Ou seja, o homem em isolamento absoluto é uma quimera.
64

matriz geradora de comportamentos, cosmovisões e sistemas de classificação da realidade que


se incorpora aos indivíduos, seja no nível da prática, seja na postura.
Portanto, habitus é mais que um estilo de vida, pois se organiza como um sistema
de disposições para a ação. O habitus apreende o modo como a sociedade interfere na vida
das pessoas e desenvolve ações, tidas como modos de pensar, sentir e agir, criando
competências criativas para interferir na sociedade. É no nosso viver na sociedade que nasce o
habitus e é ele que nos possibilita avançar em cada situação. É uma habilidade social
materializada, construída a partir de necessidades e preferências de cada individuo.
O habitus sofre o efeito das transformações ocorridas na cultura e na sociedade,
contudo também influencia, por consistir em uma segunda natureza. Ele é uma ação que está
configurada à subjetividade individual, agindo como uma matriz intermediária entre o sujeito
e as estruturas sociais. O habitus de Rodolfo Teófilo estava ligado à sua atividade de homem
de letras, no entanto, era a ciência que guiava a sua visão e sua ação na sociedade.
Rodolfo Marcos Teófilo nasceu, no dia 6 de Maio de 1853, filho de Marcos José
Teófilo (1821-1864) e de Dona Antônia Josefina Sarmento Teófilo (1832-1857), na Bahia,
pois seu pai, famoso médico sanitarista, não achava o Ceará seguro, devido à epidemia de
febre amarela.
Perde o pai em 1864, vítima de beribéri e, no ano seguinte, sob a tutela do
padrinho, o comerciante José Antônio da Costa e Silva (1792-1866), inicia os estudos como
aluno interno do Ateneu Cearense. No contexto em que Rodolfo inicia os seus estudos, a
educação era artigo de luxo para poucos e nulo para a maioria da população.
O início da educação e do ensino formal no Ceará ocorre com a instalação do
Liceu do Ceará46, em 1845, com sede na Capital. Antes, o ensino na província era artigo de
luxo, privilégio para uma minoria.
João Brígido (1829-1921) nos informa, na passagem do século XVIII para o XIX,
que tipo de ensino e de educação recebiam as crianças:
Os pais de família corrigiam seus filhos seviciando-os a chicote; os entrefaziam
outro tanto por delegação deles e consenso universal. A escola inspirava horror aos
rapazes e não era debalde. Além do castigo usual da palmatória e outros, havia o que
se chamava montar a cavalo, às costas de um rapaz, posto de quatro pés, ligavam o
paciente e lhe flagelavam as nádegas com chicote (BRÍGIDO apud Girão, p. 215).

46
O padre Tomás Pompeu de Sousa Brasil (Senador Pompeu) é o inspirador e orientador do nascimento do
Liceu do Ceara, do qual durante muitos anos se fez o primeiro diretor. “começa daqui – afirme-se sem exagero –
a sistematização do cultural mental cearense” (GIRÂO, 1955, p. 51).
65

O ensino nesse contexto permeado de crueldade, peculiar aos homens do


Goverrno, estava vinculado à ideia de mando. Crianças mais novas não resistiam a esse
‘método’. Somente aos doze anos os alunos eram matriculados, pois nessa idade poderiam
resistir aos castigos.
Num registro de reminiscências, no Almanaque do Ceará, de 1922, Rodolfo
Teófilo escreve sobre o Ateneu Cearense. Esse texto é importante, pois é um dos únicos
registros sobre essa instituição; em comparação, o Liceu do Ceará ganhou diversos registros
em Blanchard Girão (1929-2007) e Gustavo Barroso (1888-1959).
Assim, Rodolfo Teófilo inicia o seu relato:
Há cerca de sessenta anos, fundou-se em Fortaleza o primeiro colégio de ensino
primeiro e secundário, na Praça da Feira Nova, hoje Praça do Ferreira, em uma das
esquinas do lado do sul, na rua Floriano Peixoto. Era seu diretor, um cearense, o Sr.
João de Araújo Costa Mendes, que passara alguns anos na Bahia, como professor do
colégio Abílio, cultivando suas qualidades inatas de pedagogo para depois
aproveita-las em sua terra, tão carecida de estabelecimentos de instrução (1922, p.
499).

O Ateneu instalado em 8 de janeiro de 1863, um modelo de educandário


organizado, com a finalidade ampla e ambiciosa de oferecer educação intelectual, moral e
artística à juventude. João de Araújo Costa Mendes (? – 1874), aplicou o método prático que
o professor Abílio Cesar Borges (1824-1891, o Barão de Macaúbas), empregava no seu
Ginásio baiano. Os métodos eram louvados em todo o Império. Eram ditos ‘modernos’ pelo
seu progressismo. Foram abolidos os castigos físicos e os alunos eram premiados pelas suas
boas notas visando trazer aos discípulos, com menos tempo e esforço, resultados mais
positivos.
Rodolfo Teófilo relata que em pouco tempo, o Ateneu encheu-se de alunos, tanto
internos quanto externos. O internato transferiu-se para a Rua Amélia, atual Senador Pompeu.
O ateneu cearense vinha prestar relevantes serviços ao Ceará. Os pais de família não
seriam obrigados a mandar os filhos para fora da Província estudar preparatórios.
Bastava o sacrifício de fazê-los seguir quando tivessem de cursar uma de nossas
Academias, que naquele tempo só funcionavam em São Paulo, Rio, Bahia,
Pernambuco. Rio e Bahia tinham faculdades de Medicina e São Paulo e
Pernambuco de Direito (1922, p. 499).

Antes do Ateneu, a criação do Liceu serviu como um impulso promissor à


emancipação de métodos arcaicos antes empregados na Província. O Liceu surgiu como uma
opção aos filhos da elite local, uma oportunidade de ingressar nas Academias em Recife,
Salvador, Rio de Janeiro e em São Paulo.
66

O Ateneu juntamente com o Liceu iniciou, na capital cearense, uma


institucionalização de oportunidades para acumular o capital cultural47, ou seja, um conjunto
de recursos culturais realizados pelos indivíduos, ideia metaforizada, com a similitude do
acúmulo do capital econômico.
A forma mais frequente é a sua materialização ocorre com a obtenção de um
diploma, que é validado pela instituição educacional e oferece legitimidade a quem o detém.
O capital cultural pode consistir de muitos outros elementos, tais como a posse de bens
culturais (livros, obras de arte, etc.).
Pierre Bourdieu, além do caráter ‘objetivo’, defende que o capital cultural
também se constrói com domínio de certo nível de vocabulário, acompanhamento de obras
culturais, sociabilidade com a família, amigos, grupos específicos, associações, etc. Como o
capital econômico, embora apenas a sua forma objetivada possa ser comprada, o capital
cultural é acumulado e transmitido através das gerações, mais ou menos diretamente,
especialmente entre pais e filhos.
Portanto, o acesso à educação (capital cultural) nesse período é bastante
restritivo, somente os filhos das elites tinham essa vantagem. Esse dado é importante para a
compreensão da formação dos grêmios e das associações literárias no Ceará, que estudaremos
posteriormente.
Grande parte dos intelectuais da geração realista cearense estudou no Ateneu
Cearense, como nos declara Rodolfo Teófilo:
Daquele bando de crianças saiu o que o Ceará contemporâneo tem de mais elevado
em sua mentalidade. Pode-se dizer o período áureo do Ceará mental. Basta lembrar
Capistrano de Abreu, Rocha Lima, Paula Ney, Domingos Olímpio, Xilderico de
Faria, João Lopes, Tomas Pompeu, sendo que este já não encontrei no Ateneu. Além
dos citados, houve muitos que se diplomaram nas Academias do Brasil e do
estrangeiro. Depois dessa fornada, o Ceará parece, cansou. Anos após, veio-nos um
luminar das ciências jurídicas e sociais, Clovis Beviláqua, Posteriormente, Farias
Brito, Frota Pessoa, Otto de Alencar, Antônio Sales (sic) (1922, p. 499-500).

Ora, através do Colégio, os alunos se encaminhavam para os diversos Cursos


superiores espalhados pelo Brasil. Rodolfo foi contemporâneo de vários intelectuais que
contribuíram de maneira significativa para o pensamento brasileiro, como o historiador
Capistrano de Abreu (1853-1927), o filósofo Farias Brito (1862-1917), o jurista Clovis
Beviláqua (1859-1944) e outros escritores. Os nomes citados participariam, futuramente, de

47
Bourdieu, Pierre. Les trois états du capital culturel. In : Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 30,
nov. L’institution scolaire. 1979. p. 3-6. Artigo consultado em:
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1979_num_30_1_2654
67

várias agremiações literárias como a Academia Francesa, o Clube Literário, Padaria Espiritual
e Academia Cearense.
Quando Rodolfo Teófilo matriculou-se no Ateneu, em 1865, recebeu o nº 79 do
internato. No artigo referido, ele nos descreve seu funcionamento;
O internato era dividido em classes, conforme a idade dos meninos. De sete a onze
anos, primeira classe; de doze a quinze anos, segunda classe; de dezesseis a vinte
terceira classe. Fui classificado na segunda classe, embora os meus onze anos; mas eu
era um menino comprido, de muito boa saída, como diz o povo. As classes não
viviam juntas. Comiam, dormiam, recreavam-se e banhavam-se separadas. A polícia
dos dormitórios era vigilante quando podia ser. Os leitos eram distantes um metro uns
dos outros. Em cada salão dormia um sensor, que rondava até tarde da noite (1922. p.
507-508).

Os alunos eram separados por idade, num regime de internato, para garantir a
formação de grupos de convivência. Havia aulas de Catecismo, Gramática, Latim, Inglês,
Francês, História, Geografia, Geometria, Filosofia, Retórica, além de Música, Dança e
Ginástica. As aulas, frequentadas por mais de 20 alunos, eram divididas em seções.
É interessante observar da citação de Teófilo que esse sistema de convivência no
internato, com a formação de grupos de estudo, marcou laços profundos de debate intelectual
e de sociabilidade entre os alunos, que depois de formados, levariam para os seus círculos
sociais. Não era somente pelo fator econômico, pelo fato da maioria dos alunos pertencerem
às elites, mas os alunos se identificavam entre si intelectualmente.
Essa convivência, relacionada aos métodos de ensino dos educandários, através de
grupos de estudos e de círculos sociais, que pode ter gerado o gosto do intelectual cearense
pelas academias e agremiações literárias.
O historiador Dolor Barreira (1893-1967) afirma que a “evolução das letras no
Ceará se fez, quase sempre, preponderantemente, em torno das associações, academias ou
grêmios literários e dos seus órgãos especiais” (1948, p. 59).
O interessante das palavras do historiador é que ele não atesta que a literatura
cearense no seu todo se realizou por meio de Academias, mas boa parte. Perceberemos, mais
adiante, que a participação da vida literária por meio desses círculos intelectuais, culturais e
políticos por meio da sociabilidade é preponderante para o indivíduo se destacar no campo
literário local.
No artigo citado, Rodolfo Teófilo traça um sintético perfil de seus colegas mais
notórios do Ateneu, alguns já mortos. Ele fala de Capistrano de Abreu, Rocha Lima,
Domingos Olímpio, Paula Ney e João Lopes. Esse último, na opinião, era inteligente,
conversador e com muito talento para as relações pessoais. Foi membro importante da
68

Academia Francesa, e uma década depois, após a campanha da Abolição, um dos fundadores
do Clube Literário.
Segundo Sânzio de Azevedo (1976, p.92), João Lopes levou para o Clube
Literário o hábito da ‘leitura crítica’, instrumento de sociabilidade literária e intelectual
bastante importante para o comércio de ideias e o acúmulo do capital cultural. Esse aspecto
será estudado em páginas posteriores
Rodolfo Teófilo foi contemporâneo de alguns alunos que, anos depois,
organizaram a Academia Francesa. Embora da mesma geração, não participou do grêmio,
porque na época estava estudando na Faculdade de Farmácia, na Bahia.
No Ateneu, reocupado com suas próprias disciplinas, além de ser monitor dos
alunos mais novos, Teófilo não conseguiu acompanhar o ritmo e foi reprovado. Com a
responsabilidade de ser o mais velho de seis irmãos, ao ver a família passar sérias
necessidades, trabalhou no comércio de Fortaleza inicialmente, como caixeiro-vassoura na
casa comercial Albano & Irmão, período importante de sua juventude.
Ele narra esse período de sua vida na obra O caixeiro (1927):
A esse tempo eu era encarregado das compras do algodão na praia. O Ceará inteiro
estava coberto por um imenso algodoal por causa do elevado preço devido à guerra
da Secessão. [...] Os fardos de algodão eram pesados ao tempo à beira-mar. A
balança suspensa a uma tripeça de madeira, o caixeiro ao lado com um caneco de
tinta e um pincel examinava o peso da saca de lã que fazia o trabalhador e o escrevia
na testa do fardo. A claridade era tão intensa que para não me encadear usava óculos
pretos [...] Os armazéns estava cheios e a praia coalhada de fardos. A produção
havia sido de 6.507.540 quilogramas. Assim mesmo sem porto, pior do que hoje,
todo esse algodão embarcou para a Europa, pois as fábricas brasileiras de tecido
ainda não existiam (sic) (TEÓFILO, 2003, p. 36-38).

Um fato curioso sobre a própria profissão que Rodolfo Teófilo exerceu (a de


caixeiro) é um rico indicativo do contexto econômico e cultural de Fortaleza desse período, o
qual correspondeu ao auge da exportação do algodão para o mercado estrangeiro. O aumento
do fluxo comercial e do contato com outros estados brasileiros e outros países, permitiu à
cidade passar por inúmeras transformações de caráter material e econômico. Teófilo foi uma
testemunha privilegiada dessa modernização. Na obra O caixeiro, além de suas aventuras e
frustrações, ele registrou a luta dos empregados do comércio para se tornarem uma importante
classe social em Fortaleza.
Os inícios da vida literária em Fortaleza foram concomitantes com a série de
reformas urbanas e sociais. Como nos informou Teófilo, o fator gerador deste novo quadro foi
o rápido desenvolvimento econômico da capital cearense, em virtude da exportação da
produção algodoeira durante as décadas de 1860-1870.
69

Ocorreram melhorias significativas no porto da capital, juntamente com a


construção da estrada de ferro Fortaleza-Baturité (1867). Essas obras foram prioritárias, pois
eram os meios utilizados para escoar a produção algodoeira. As mudanças atendiam aos
interesses econômicos e sociais e a modernização da cidade estava vinculada ao
desenvolvimento de uma nova classe dominante, de caráter urbano, diretamente envolvida
com o comércio do algodão: a burguesia. A partir de 1866, o porto de Fortaleza começou a
receber navios do Rio de Janeiro e da Europa. Segundo Raimundo Girão, “O comércio direto
com Lisboa e depois com outras praças da Europa seria a grande mola de animação da vida da
Cidade” (1979, p. 101).
Fortaleza era uma cidade provinciana que, aos poucos, com a ampliação do
comércio, se desenvolveu material e demograficamente de modo veloz. Em 1863, contava
com pouco mais de 16 mil habitantes, e, em 1890, esse número foi elevado para 40 mil. O
centro econômico passou a ser a Praça do Ferreira, repleta de lojas, cafés e armazéns, cujos
donos eram da terra, de outros estados e de outros países.
Aprendemos com Baudelaire e Benjamin que a cidade é o espaço da modernidade.
Nelas foram desenvolvidos os grandes e inovadores projetos urbanísticos, invenções
tecnológicas que facilitaram a vida dos homens e encurtaram as distâncias. Os inventos que
são os marcos da interligação do mundo, segundo Hobsbawn (2000, p. 84) são a estrada de
ferro, o navio a vapor e o telégrafo.
Os navios ampliaram a comunicação com os países estrangeiros, principalmente
com Portugal, França e Inglaterra. No âmbito nacional partiam e chegavam à cidade navios do
Recife, de Salvador, do Rio de Janeiro. Mensalmente, atravessando o atlântico, houve um
tráfego de quase mil navios.
Os vapores que chegavam da França ou da Inglaterra não traziam somente
relógios, vestidos, mobílias, chapéus, perfumes. Eles traziam também objetos valiosos e
revolucionários:
Certamente, dentre outros gêneros, podemos destacar os livros, revistas e jornais, e
podemos imaginar, entre os transeuntes na beira do porto, Joaquim José de Oliveira
e seus funcionários identificando, dentre os caixotes recém-desembarcados, aqueles
que traziam as encomendas de seus clientes: a última edição da Revue de Deux
Mondes, que aqui era lida desde os anos de 1840 por Tomás Pompeu, futuro senador
do império, os jornais do Rio de Janeiro etc. Pelos malotes do correio marítimo que
eram desembarcados na Alfândega da cidade chegavam os livros de Taine, Spencer,
Darwin, Burckle e outros (OLIVEIRA, 2002, p.17).

Na citação de Almir Leal de Oliveira, percebemos que Fortaleza era suprida


semanalmente e quinzenalmente de variados livros e periódicos vindos diretamente da
70

Europa. Muitas das ideias que faziam a cabeça dos intelectuais cearenses chegaram via
navios. Contudo, vemos que o consumo desses bens simbólicos apenas agregava capital
cultural para poucos indivíduos privilegiados como, no exemplo, Tomás Pompeu.
Os livros importados traziam as novas tendências da filosofia e da literatura do
velho mundo. São obras das décadas de 60 e 70, em sua maioria acerca do materialismo e
cientificismo.
Deve-se à influência francesa a penetração das ideias “modernas” do século XIX no
Brasil. Foi larga e profunda a influência francesa. Os ideais do século, os princípios
libertinos e sediciosos, a “mania francesa”, sacudidos pela Revolução, pelo
Iluminismo, pelo movimento crítico da Enciclopédia, traduzidos em doutrinas de
libertação filosófica, de racionalismo, de materialismo, de emancipação política e
social, no sentido nacionalista, abolicionista e republicano, desde cedo no século
varriam o país de norte a sul (COUTINHO, 1988, p. 191).

As ideias ‘modernas’, que ganharam volume com a propaganda iluminista,


penetraram no nosso contexto por via francesa. Esse é um dos primeiros indícios da influência
francesa no nosso pensamento brasileiro. Tanto que, anos depois, teremos a nossa “Academia
francesa”.
A ascensão da civilização burguesa48 e do crescimento da industrialização, com
suas respectivas preocupações materiais, científicas e técnicas repercutiram nas ciências
sociais. Positivismo, evolucionismo, determinismo serão o alimento ideológico para a
corrente estética do naturalismo.
Voltando ao contexto de Rodolfo Teófilo, ele nos declara que esteve “seis anos no
comércio. O primeiro ano foi de aprendizagem, tendo somente casa e comida. No segundo
duzentos mil réis. Foi subindo até que no sexto me deram quinhentos mil réis” (Teófilo, 2003.
p. 57).
Ele trabalhou na casa comercial de José Francisco da Silva Albano (1830-1901),
posteriormente, Barão de Aratanha. O seu patrão era um poderoso exportador de algodão, não
muito diferente dos outros comerciantes da época, e tratava Rodolfo e outros caixeiros
autoritariamente. Em 1868, o futuro farmacêutico nos diz que o caixeiro era um “criado de
servir”. O serviço de caixeiro-vassora era bastante puxado: iniciava-se com o nascer do sol e
se extinguia com o crepúsculo. Os caixeiros eram responsáveis pelo transporte, contagem,
descarregamento e venda de enormes fardos de algodão. Eram verdadeiros escravos brancos.

48
Para uma compreensão do homem burguês, no século XIX, destaca-se a coleção Experiência burguesa: da
Rainha vitória a Freud, composta por cinco volumes, por Peter Gay (1923-2015). Os volumes A educação dos
sentidos (1988), A paixão terna (1990), O cultivo do ódio (1995), O coração desvelado (1999) e Guerras do
prazer (2001), não investigam apenas como a burguesia tornou-se uma classe que dirigiu o destino político e
econômico da Europa, mas também investiga as suas paixões, ou seja, as ambiguidades que constituíram a
condição do homem burguês, estudo que estabelece um rico diálogo com a psicanálise de Freud.
71

A exploração era tão acentuada, que no mesmo ano, Rodolfo e mais 50 colegas se
reuniram para discutir os seus direitos. Eles organizaram uma associação que, depois se
chamaria Beneficente Caixeiral. No entanto, os patrões não gostaram da ideia e tentaram
proibir qualquer tipo de associação.
Diante das dificuldades, com o gênio altivo e pensando no seu futuro e no de sua
família, ele declara: “Compreendi que só o livro me podia libertar. Devia estudar; mas como?
Os dias eram do patrão, só dispunha eu das noites” (idem, 2003. p. 25).
Ele possuía uma grande força de vontade para suportar essas provas. Como filho
mais velho, sentia-se responsável pela sua família. Desde cedo, adquiriu plena consciência de
que somente através dos estudos, poderia sair daquele círculo de provações.
Nesta época, existia um colégio na Praça dos Voluntários, onde funcionava o
antigo Liceu. Os diretores do colégio eram os professores Arcelino de Queirós e Praxedes.
Rodolfo procurou-os e contou-lhes a sua triste condição e o desejo de voltar aos estudos. Os
professores decidiram ajudá-lo, dando-lhe aulas à noite.
Rodolfo descreve o seu cotidiano, enquanto trabalhava e estudava:
A vida agora era mais cansada. Passava o dia na praia exposto ao sol, no serviço de
algodão. Ao escurecer, sentado à carteira a copiar o borrador! Voltava ás 9 horas da
noite das aulas e recolhia-me ao quarto, uma espelunca quente e com mais muriçocas
do que as florestas do Amazonas. Ia preparar as lições alumiado por uma miserável
vela de carnaúba, de vintém, pois não podia comprar estearina. Estudava três horas, o
tempo que durava a luz. Extinta, deitava-me e adormecia pesadamente (sic) (2003, p.
26).

O depoimento de Rodolfo Teófilo revela quão grande foi o seu esforço para sair
de sua condição de pobre. Depois de trabalhar o dia inteiro, ia ter aulas com os professores
particulares. Tarde da noite, ao voltar, no seu quartinho nos fundos da loja, ambiente
insalubre, ainda estudava até a vela se apagar. Não foi somente o jovem caixeiro que percebeu
que os estudos eram um instrumento de ascensão social e intelectual. Outros jovens
trabalhadores do comércio também tinham esse afã de cursar uma faculdade e adquirir um
diploma de ‘doutor’.
Ora, a dicotomia entre a população pobre e a aristocracia, tão brutal nos séculos
anteriores da província, aos poucos, devido ao florescimento do comércio, começa a ser
irrompida por uma nova classe social, envolvida no desenvolvimento cultural da sociedade
cearense, no entendimento de José Ramos Tinhorão (1928), no estudo A província e o
Naturalismo:
O aparecimento dos numerosos movimentos intelectuais no Ceará, surgidos à
sombra de academias, gabinetes de leitura e sociedades literárias – desde a
Academia francesa, de 1872, até a Padaria Espiritual, de 1892 – prende-se,
72

fundamentalmente, ao advento de uma nova classe média nas principais cidades da


província e, acima de tudo, em Fortaleza (TINHORÃO, 2006. p. 21).

Para o pesquisador, o desenvolvimento material, nesse contexto específico, é


acompanhado pelo cultural. Ele defende a ideia de que a expansão do comércio em Fortaleza
ensejou o progresso intelectual da província, pois esta renovação espiritual se deu,
principalmente, pelos membros da classe média urbana. Essa classe era composta por
empregados em escritórios de grandes firmas, amanuenses, jovens bacharéis, profissionais
autônomos e pequenos comerciantes que estavam bem informados em relação às novidades
do pensamento europeu.
Os membros dessa camada social aspiravam participar do campo político e
intelectual da cidade. A inserção nesses campos, é óbvio, além do acúmulo de bens
econômicos, foi feito por meio da produção de capital cultural, obtido através da educação e
de uma circulação nos meios letrados. Porém, numa terra em que a educação nunca foi
prioridade, ser alfabetizado ou um manejador razoável das letras, já era sinal de status social.
Então, relacionando essa perspectiva à de Bourdieu, do campo do poder,
distinguiremos duas classes: a dos burgueses e a dos burocratas. A classe média, composta
por burocratas não diretamente ligados à produção da riqueza, adotaram o aperfeiçoamento
cultural como critério de ascensão social, passando a interessar-se pelos três temas que
apaixonavam igualmente as camadas urbanas da Corte: a literatura, a libertação dos escravos
e a República (TINHORÃO, 2006. p. 24).
Com a cidade tornando o seu espaço urbano mais complexo, em Fortaleza, o
início de um sistema literário, com a circulação maior de livros e periódicos. Nesta época, já
existiam um modesto mercado livreiro, exportações via navio de livros, revistas e jornais das
grandes metrópoles do Brasil e da Europa.
A busca pelo aperfeiçoamento cultural deu origem ao desenvolvimento de
intelectuais que iniciaram a escrita e a divulgação de suas peças literárias (ou não) que eram
lidos e debatidos em Fortaleza e no Brasil. No entanto, as agremiações que surgiriam
posteriormente, mesmo tendo homens de letras oriundos da classe média, não se
identificariam com a burguesia.
Nesse ponto, Agulhon, no El círculo burguês (2009. p. 24-25), explica, ao tratar
das associações burguesas, em contraponto aos salões ou “soirés” familiares, tão em voga ao
longo do século XIX, que os aspectos dos meios financeiros eram diferenciados entre a
sociabilidade das classes superiores e a sociabilidade das classes operárias ou populares em
73

geral. Nas páginas adiante, sobre o Clube literário e sobre a Padaria Espiritual, discutiremos
com mais afinco o divórcio entre os intelectuais oriundos da classe média e a burguesia.
O desenvolvimento material e cultural da capital da província acarreta a
ampliação da vida literária, entre o final do século XIX e o início do XX, e como já foi
mencionado, a difusão de inúmeras associações literárias.
A febre das associações era tão grande que Leonardo Mota (1994), em seu livro
sobre a Padaria Espiritual (1938), arrolou, em ordem cronológica, 37 sociedades intelectuais
que surgiram entre os anos de 1870 e 1900 no Ceará: Fênix Estudantil (1870), Academia
Francesa (1873), Gabinete Cearense de Leitura (1875), Gabinete de Leitura - Baturité (1875),
Instituto Histórico e Geográfico Cearense (1877), Gabinete de Leitura/Aracati (1879),
Associação Literária Uniense/União (1879), Gabinete de Leitura/Granja (1880), Recreio
Instrutivo (1881), Gabinete de Leitura/Pereiro (1883), Clube Literário Cearense (1884),
Gabinete de Leitura/Campo Grande (1884), Sociedade Rocha Lima (1884), Grêmio Literário
(1885), Gabinete de Leitura/Ipu (1886), Clube Literário (1887), Instituto do Ceará (1887),
União Cearense/Baturité (1887), Sociedade Ensaios Literários (1887), Clube Literário e
Recreativo Ipuense (1887), Gabinete de Leitura/Barbalha (1889), Sociedade União e
Concórdia (1890), Clube Literário e Democrático/Porangaba (1890), Biblioteca 16 de
Novembro/Baturité (1890), Sociedade Silva Jardim (1892), Sociedade José de Alencar
(1892), Sociedade Literária 11 de Janeiro/Cariri (1892), Padaria Espiritual (1892), Centro
Literário (1894), Academia Cearense (1894), Congresso de Ciências Práticas (1894),
Apostolado Literário/Baturité (1894), Congresso Estudantil (1895), Clube Literário e Musical
Alberto Nepomuceno/Quixadá (1895), Clube Adamantino (1898), Iracema Literária (1899),
Boemia Literária (1899), Romeiros do Porvir/Crato (1900).
Rodolfo, com muita dificuldade, e muito estudo, consegue juntar economias,
oriundas de uma pequena fábrica de tintas que ele mesmo desenvolveu. O jovem estudante é
liberado pelo patrão e parte ao Recife, onde realizava as provas preparatórias para os cursos
da Faculdade de Medicina da Bahia. Ele tinha o sonho de seguir a carreira do pai, porém
decide cursar Farmácia, pois o curso de Medicina era longo e caro.
Era final do ano de 1872, passa com facilidade nas provas e, no ano seguinte,
ingressa no curso de Farmácia, agregado à Faculdade de Medicina da Bahia.
Portanto, percebemos como era importante a obtenção de cultura letrada para ser
uma voz ativa e respeitada no interior do campo literário e intelectual. Desde cedo, Rodolfo
Teófilo adquiriu a consciência de que só o livro o salvaria da inutilidade e do “anonimato”
social e literário, pois ele já escrevia pequenas composições poéticas.
74

No início da década de 1870, enquanto Rodolfo Teófilo entrava em contato com


as ideias modernas (positivismo, evolucionismo, determinismo, seleção natural, racionalismo,
progressismo), uma agremiação lutou para realizar o ‘aperfeiçoamento cultural’ do povo
cearense e divulgar essas ideias na capital: a Academia Francesa.

1.7 Os precursores da academia francesa

Há duzentos anos, o Ceará se tem mostrado pródigo em atividades culturais.


Desde os Oiteiros (1813), do Governador Sampaio até o final do século XX, não houve
sequer uma geração de cearenses que não se organizasse em grupos, cujos integrantes
tentavam lutar contra o marasmo cultural e inspirar o senso crítico e estético entre a
população, não deixando também de publicar uma revista, jornal ou antologia.
Mozart Soriano Aderaldo (1917-1995) nos diz sobre a “A colonização de nossa
Capitania, depois Província e hoje Estado, foi tardia e descontínua. A tentativa de Pero
Coelho de Sousa (1603-1606) fracassou ante o primeiro flagelo de natureza climática que o
homem branco europeu teve de enfrentar no Ceará” (apud MARTINS, 1984).
Além da exploração portuguesa, em 1649 o território cearense ocupado pelos
holandeses, em 1949, tendo à frente Matias Beck, que durou até 1654. Em seguida, os
portugueses expulsam os holandeses. Durante o período colonial, não houve acontecimentos
culturais que transformassem o status quo da província.
Culturalmente, tivemos uma singela manifestação literária, quando Manuel Inácio
de Sampaio (1778-1856) veio governar a Capitania. Entusiasta das letras, ele organiza
algumas tertúlias no seu Palácio, em 1813. Nessas reuniões palacianas, denominadas depois
de Oiteiros, contavam com a presença de alguns homens letrados recitavam odes, sonetos,
décimas, ditirambos, cantatas e romance heroicos, de feições neoclássicas.
Membros dos Oiteiros49 eram José Pacheco Espinosa (? -1814), Antônio de Castro
e Silva (1787-1862), Pedro José da Costa Barros (1774-1839), Pe. Lino José Gonçalves de
Oliveira (?) e Manuel Correia Leal (?). A poesia produzida por este grupo tinha por objetivo

49
Sobre esse círculo, Dolor Barreira nos explica que “preocupado, também, com as coisas do espírito, introduziu
Sampaio, em Fortaleza, segundo nos noticia o Barão de Studart – e é de inegável tradição -, o uso dos chamados
Oiteiros, por virtude dos quais os intelectuais do tempo, agrupados, no palácio do governo, em torno do
governador, faziam literatura, de preferência poética. Vinha-lhes o nome dos oiteiros ‘que se celebravam, em
Portugal, nas cidades e subúrbios, especialmente nos conventos de freiras, por ocasião da festa dos oragos, da
eleição das preladas, ou dos seus aniversários natalícios’, e em que os poetas glosavam os motes propostos pelas
esposas do Senhor” (BARREIRA, 1943, p. 149).
75

em tecer elogios ao governador Sampaio e celebrar os feitos de sua administração. Esse mote
elogioso é encontrado nos sonetos “Para o chafariz da vila da Fortaleza” e “Ao aumento da
vila da Fortaleza” de Pacheco Espinosa50.
Esteticamente, as peças literárias possuíam pouco valor literário. Eram textos
escritos e lidos nos saraus do Palácio do governador, espécie de mecenas para os poetas ali
reunidos. Eram apenas manifestações literárias51. Portanto, um tipo de produção que tinha
mais interesse em estar alinhado ao campo do poder do que se engajar na produção de uma
literatura ousada ou criativa. O seu maior mérito dos Oiteiros é histórico, pois essas reuniões
palacianas, mesmo com feição aristocrática, desenvolveram um tipo de sociabilidade
literária, ensaiando os primeiros passos de uma literatura no Ceará.
Após os Oiteiros, assim podemos resumir a atividade intelectual e jornalística no
estado: surgiu o primeiro jornal cearense, o Diário do Governo, cujo primeiro número é de 1
de abril de 1824. Em 1840, os partidos políticos se organizaram em Conservador e Liberal e
publicaram, respectivamente, o Pedro II e O Liberal. Thomaz Pompeu de Sousa Brasil (1810-
1877) faria circular o jornal O Cearense52, publicação de ordem política, mas que divulgava
algumas produções literárias. Em 1845, surge o Liceu. Em 1849, instala-se a primeira loja em
Fortaleza, do português Manuel Antônio da Rocha (?-1871) que vendia e alugava livros.
Depois, na Praça do Ferreira, é inaugurada outra livraria, a de Joaquim José de Oliveira (?-
1900). É de 1856, a publicação dos Prelúdios Poéticos, livros com poemas românticos de

50
Os sonetos de Pacheco Espinosa são um exemplo claro da poesia de louvor ao Governador Sampaio, tais
como o “Soneto Para o Chafariz da Vila Fortaleza”, onde se lê: “Esta que vês, curioso passageiro,/Límpida
Fonte, clara, sussurrante,/De cristalinas águas abundante,/ Edificada foi incontinenti,/No memorável, ótimo
Governo,/De Sampaio, Varão reto, ciente” (apud Azevedo, 1976, p. 20-21). Outro soneto conhecido é “Soneto
Ao Aumento da Vila de Fortaleza”, no qual o poeta se expressa: “Dize que já se vê fausto e grandeza,/Na sua
Capital do Chefe assento:/Que polícia já tem, tem luzimento,/E tem o que não tinha,/Fortaleza./Dize que do
Governo a alta mente/Estas obras brotou assaz louvadas” (apud AZEVEDO, 1976, p. 21).
51
O termo “manifestações literárias” se encontra no livro História da Literatura Brasileira (1916), de José
Veríssimo, no capítulo referente à produção literária na época colonial, séculos XVI e XVII. A discussão em
torno da ideia das manifestações literárias no Brasil foi repercutida, na Formação da Literatura brasileira,
1959, de Antônio Cândido e por José Aderaldo Castello, na obra Manifestações literárias da era colonial, 1962.
Cândido entende a literatura como um sistema, ou seja, um fenômeno complexo e orgânico, organizado em torno
do triângulo “autor-obra-público”, em interação dinâmica, e de certa continuidade da tradição. O pesquisador,
em livro posterior (Iniciação à Literatura Brasileira, 1997), faz uma interessante esquematização, pautada em
sua concepção formativa, distinguindo na literatura brasileira três etapas: “(1) a era das manifestações literárias,
que vai do século XVI ao meio do século XVIII; (2) a era de configuração do sistema literário, do meio do
século XVIII à segunda metade do século XIX; (3) a era do sistema literário consolidado, da segunda metade do
século XIX aos nossos dias” (1997, p.14).
52
A 1º publicação do jornal ocorreu em Fortaleza, no dia 04/10/1846. De ideologia liberal, teve como
fundadores Tristão Araripe, Thomaz Pompeu e Frederico Pamplona.
76

Juvenal Galeno (1838-1931), marco inicial da Literatura cearense, segundo Antônio Sales53
(1939). Em 1867, a Biblioteca Pública é inaugurada.

1.8 A Academia Francesa e as ideias modernas

Até o início da década de 1870, o Ceará não possuía uma associação literária de
relevo. Havia muitas reuniões de grupos políticos, mas nenhuma em que a literatura fosse o
principal foco de interesse. Leonardo Mota nos diz que:
Não hesito em apontar em Rocha Lima o verdadeiro precursor dos ideadores da
socialização de nossos letrados. O, mais tarde, autor de “Crítica e literatura” tinha
jeito para controlar inteligências. Em 1870, com João Lopes e Fausto Domingues,
ele fundara a “Fênix Estudantil”, que era um sodalício de rapazelhos, de vez que
Rocha Lima tinha, então, 15 anos, João Lopes 16 e Fausto Domingues 19. Note-se:
quem, um triênio depois, daria na famosa “Academia Francesa”, provas de ferrenho
agnosticismo, começará pondo a “Fênix Estudantil” sob o patrocínio de São Luiz de
Gonzaga [sic] (1994, p. 26).

Rocha Lima foi um dos principais articuladores da organização da Fênix


Estudantil, que reunia jovens letrados e inquietos em relação ao destino espiritual do povo
cearense. Ele tinha apenas 15 anos, mas maduro o suficiente para entender a importância das
letras para o ‘aperfeiçoamento cultural’. Rocha lima, como já relatamos, fez parte da geração
de crianças que estudou no Ateneu, junto com Rodolfo Teófilo. Ele e João Lopes, desde
aquela instituição, eram estimulados a formar grupos de estudos. Este tipo de sociabilidade
acarretará a consciência de que unidos em grupo, poderiam realizar um trabalho intelectual
mais efetivo.
Poucos anos depois da Fênix Estudantil, eles fundaram a Academia Francesa.
Apesar de ter durado apenas três anos, teve uma repercussão em nível nacional. José
Veríssimo, no capítulo “A literatura provinciana”, de sua obra Que é literatura? e outros
escritos (1907), nos fala das agremiações literárias do Ceará, principalmente, sobre o
protagonismo de Rocha Lima:
Foram dele Capistrano de Abreu, Tomás Pompeu, Virgílio Brígido, o malogrado
Rocha Lima e outros, que apenas namoraram as letras, sem com elas se casarem.
Publicaram efêmeros jornais literários, folhetos e não sei se algum livro. Mas
lançaram, na terra árida, a semente que frutificou na Padaria Espiritual, na Academia
Cearense, onde Pompeu continua a trabalhar, no Centro Literário. Não é muito dizer
que talvez seja depois do Rio o Ceará a terra do Brasil onde é menos apagada a vida

53
Essa opinião é expressa no ensaio historiográfico “História da Literatura Cearense”, publicado no livro O
Ceará (1939), editado por Raimundo Girão e Antônio Martins Filho.
77

literária e maior a produção. É considerável o que eles têm publicado de livros de


versos nestes últimos anos (VERÍSSIMO, 2001, p. 113-14).

A primeira referência que Veríssimo faz é a Capistrano de Abreu, que apesar de


ter escrito sobre literatura, se notabilizou na área historiográfica e antropológica e Tomás
Pompeu como político. Os nomes citados ‘namoraram’ as letras, pois eles exerceram crítica
literária e não foram escritores de textos poéticos ou ficcionais. Nas décadas de 1870 e 80,
ocorreu um movimento ‘espiritual’, uma avalanche de ideias que inundava o Brasil de Norte a
Sul. Veríssimo utiliza a metáfora do Iluminismo ao referir que o Ceará é a terra “onde é menos
apagada a vida literária”. Na citação, ele arrola as principais agremiações cearenses,
mostrando-nos o caráter de continuidade cultural que se estabeleceu pelos trabalhos iniciados
pela Academia Francesa. Essa associação constituiu o início da renovação do pensamento no
Ceará.
A Academia era formada por Rocha Lima (1855-1878), Araripe Jr. Júnior (1848-
1911), Tomás Pompeu (1852-1929), Capistrano de Abreu (1853-1927), João Lopes (1854-
1928) e Xilderico de Farias (1851-1876). Tanto a Academia Francesa, quanto as demais
associações que viriam posteriormente, possuíam um tipo de sociabilidade literária muito
comum naquele período: o da prática da leitura e do comentário. Sempre na casa de algum
destes membros, eram discutidas e divulgadas as recentes novidades do pensamento moderno:
positivismo, evolucionismo, determinismo, etc. Essa era uma prática comum entre os
intelectuais da época: a formação de grupos, com a finalidade de discutir temas de caráter
político, literário e filosófico. Atribuímos à origem desse tipo de sociabilidade literária a
formação de grupos de estudos do colégio Ateneu cearense, onde a maioria dos membros
dessa associação estudou. Nesse quesito, entendemos que “la historia de la sociabilidad es, de
algún modo, la historia conjunta de la vida cotidiana” (AGULHON, 2009. p.38). O cotidiano
desses homens era pautado por atividades ligadas às letras: compra de livros e jornais,
leituras, escrita, comentários, debates.
Não podemos esquecer que o contingente de cidadãos alfabetizados era bastante
reduzido em nossa capital e o número de pessoas que participavam de alguma prática literária
era mais reduzido ainda. Nessa agremiação e em outras, os intelectuais se articulavam ao
campo literário, formando verdadeiras ilhas de letrados num oceano de analfabetos.
Literalmente, os intelectuais estavam à margem da grande massa.
Em relação à fundação da Academia Francesa, não existe uma data exata. Para o
Barão de Studart no Dicionário bibliográfico cearense (1980), e Clovis Beviláqua, em
78

História da Faculdade de Direito de Recife (1927), a reunião do grêmio ocorreu em meados


de 1872. Para Sânzio de Azevedo,
Entretanto, para o caso de se tornar necessário um marco para a cronologia do
movimento, José Aurélio assinala a data da fundação do jornal Fraternidade como
ponto de partida, lembrando que daquele ano de 1873 data o início da participação de
Araripe Jr. Júnior na Academia Francesa (1971. p. 7).

A fonte a respeito da atuação desse grupo de intelectuais é o jornal Fraternidade.


Se eles se reuniam antes, não há nenhum registro. O jornal Fraternidade, de orientação
maçônica, pertente a Au.: Loj.: Frat.: Cearense, e teve o seu primeiro número datado de 4 de
novembro de 1873. Foi fundado por Tomás Pompeu e Xilderico de Faria e contou com a
colaboração de João Brígido e Rocha Lima. Influenciados pelas filosofias progressistas e
utilitaristas, os associados da Academia Francesa criaram a Escola Popular54, onde eram
ministradas aulas gratuitas aos operários à noite.
O contexto político e filosófico do surgimento da respectiva Academia ocorreu
durante a Questão religiosa. Essa disputa ideológica entre a Maçonaria e o Clero, ocorreu na
Corte brasileira e que “abalou profundamente o país, e o livre pensamento começou a rever
todos os problemas filosóficos e religiosos, até então desdenhados ou superficialmente
tratados” (BARREIRA, 1948, p. 85 e 86).
Em 1873, Tomás Pompeu, Xilderico de Faria, João Câmara, considerando a
Maçonaria “o refúgio do espírito novo”, ou seja, do mundo moderno, criaram um jornal para
divulgar as novas ideias e servir de arma contra o clero. A Fraternidade não era formada
apenas por membros da maçonaria. Destacavam-se o próprio Tomás Pompeu, Araripe Jr.
Júnior, João Lopes, João Câmara, João Brígido55 e Rocha Lima que se recusara fazer parte,
inicialmente.
Sobre a luta de ideias dos jovens intelectuais, a Academia Francesa manteve
violenta polêmica com o jornal Tribuna Católica, por meio das páginas do jornal
Fraternidade. Eram publicados artigos com conteúdos cientificistas e positivistas, defendendo
ideias liberais e laicas, contra o tradicionalismo católico. O jornal Tribuna Católica inicia uma
campanha contra os rapazes da Academia. Os ataques foram encabeçados por Manuel Soares
da Silva Bezerra.

54
“Alguns moços inteligentes, inspirados dos mais nobres sentimentos, resolveram abrir uma aula noturna, que
denominam Escola Popular. Sua inauguração terá lugar amanhã, na Casa n. 98 na Rua Conde d’Eu, e funcionava
das seis e meia às dez da noite” (O cearense, 30/05/1874, apud BARREIRA, 1948, p. 90).
55
O notável jornalista não foi membro da Academia francesa, sendo colaborador apenas do jornal A
fraternidade.
79

Um traço de vanguarda do grêmio foi a defesa do positivismo que ocorreu


concomitantemente em outras regiões do país. Numa província deveras afastada da Corte, que
era centro político e cultural do país, foi, entretanto, uma das precursoras da divulgação das
ideias modernas.
Sobre a ação progressista da Escola Popular, iniciativa da Academia Francesa,
temos a notícia de sua implementação, através da “Lição” proferida por Rocha Lima que nos
descreve a aula inaugural e os propósitos da instituição:
Em a noite de 12 do corrente assistimos à primeira conferência do curso de história
universal, que inaugurou na Escola Popular o ilustrado Dr. Pompeu Filho.
Conhecido já nas lutas porfiadas da imprensa, o orador saiu do silêncio do gabinete
para a tribuna ruidosa do ensino popular, conservando a calma do pensador e a
imparcialidade tenaz do apóstolo da verdade. O tentante do ilustre orador é generoso
e os resultados são profícuos. Em nome de meus colegas e discípulos da Escola
Popular, agradeço o impulso nobre e vigoroso que o batalhador das ideias livres
imprimiu à nossa humilde empresa, tão guerreada pelos ateadores de insultos e
calúnias. Esqueçamos por ora um passado de trevas pelo presente que prepara ao
futuro as bases sólidas do ensino e da educação (ROCHA LIMA, 1968, p. 227-229).

Percebemos pela descrição de Rocha Lima, que o tom da aula era bastante sério e
a sua disposição e condução, remetem mais a um culto religioso, ou seja, ao culto da razão.
Ora, Tomás Pompeu era referido como ‘apostolo da verdade’ e no texto temos vários
sintagmas que professam a visão de mundo do intelectual, a defesa das ideias iluministas, já
ressignificadas pelo positivismo. Os intelectuais têm posse do conhecimento, ou seja, da luz, e
estão nessa terra bárbara, repleta de trevas. Rocha Lima também utiliza termos referentes à
disputa, ‘batalhador’, ‘guerreada’, demonstrando a dificuldade da empreitada. O inimigo era a
ignorância e tudo que atrapalhasse o desenvolvimento. Os membros da Academia Francesa
acreditavam que possuíam uma nobre missão: levar o aperfeiçoamento cultural para o restante
da população.
Sobre a Escola Popular, Capistrano de Abreu nos fala de sua importância:
Os que tiveram ocasião de visita-la recordam-se da animação, da cordialidade, do
estimulo [...] Grande foi a influencia da Escola Popular não só sobre as classes a
que se destinava, como sobre a sociedade cearense em geral, por intermédio de
conferências ali feitas, em que o ideal moderno era apregoado por pessoas altamente
convencidas de sua excelência (1931, p. 118).
Pela fala de Capistrano, percebemos que os membros da Academia Francesa
agiam como apóstolos do conhecimento. Era um trabalho voluntário, no qual o ideal moderno
era o fogo que nutria o espírito dos jovens professores. A Escola popular era o espaço público
da socialização das obras estudadas pelos seus membros. Antes, entre si, os jovens realizavam
a sociabilidade literária, exemplificada na célebre passagem de Capistrano:
Era em casa de Rocha Lima que se reuniam os membros do que chamávamos
"Academia Francesa" Quanta ilusão! quanta força! quanta mocidade! França Leite
advogava os direitos do comtismo puro e sustentava que o Système de Ia Politique
80

era o complemento do Cours de Philosophie. Mello descrevia a anatomia do


cérebro, com a exatidão do sábio e o estro do poeta. Pompeu Filho dissertava sobre a
filosofia alemã e sobre a índia, citava Laurent e combatia Taine. Varella — o
garboso abnegado paladino, — enristava lanças a favor do racionalismo. Araripe Jr.
Júnior encobria com a máscara de Falstaff a alma dolorida de René. Felino falava da
revolução francesa com o arrebatamento de Camillo Desmoulins. Lopes, ora
candente como um raio de sol, ora lobrego como uma noite de Walpurgis, dava asas
a seu humor colossal (sic) (ABREU, 1931. p. 118-119)56.

Capistrano de Abreu cita pensadores que já tinham uma forte recepção no


continente europeu e na América: Comte (1798-1857) Taine (1828-1893) e Laurent (1748-
1836). Os temas eram variados: filosofia, literatura, ciência e política. O que essas leituras
tinham em comum era a exaltação do materialismo e do racionalismo em detrimento da
estética e da concepção romântica da vida e da sociedade. Apesar da variedade dos autores
citados, alemães e ingleses, existia predileção e entusiasmo pelos autores franceses. Devido a
essa predileção, no entender de Sânzio de Azevedo, a agremiação recebeu o seu nome por um
gracejo de Rocha Lima e, também para se diferenciar da Escola de Recife, de Tobias Barreto
e Sílvio Romero, que professavam interesse pelo pensamento germânico.
A Academia influenciou uma geração de escritores e intelectuais no Ceará. Clovis
Beviláqua, em resposta a João do Rio, declara quais os autores que mais contribuíram para a
sua formação cultural:
Passando em 1875 a estudar no Liceu, tive mais facilidade de travar conhecimento
com os escritores da moda: Gonçalves Dias, Varela, Alencar, Álvares de Azevedo e
Castro Alves. Mas, justamente quando me ia docemente engolfando na região
fantástica da poesia e do romance com os autores citados e quantos me caíram nas
mãos, foi minha atenção despertada pelo movimento literário que então se operava
no Ceará e a cuja frente se achavam Rocha Lima, Capistrano de Abreu, Araripe Jr.
Júnior, João Lopes e Amaro Cavalcanti. Desse grupo foi Rocha Lima o escritor que
mais simpaticamente atuou sobre o meu espírito. Por ele comecei a amar a crítica
literária e a ter uma compreensão mais verdadeira da literatura (JOÃO DO RIO,
1905, p. 94).

Por mais que as discussões filosóficas ficassem em evidência, a agremiação era


essencialmente literária, mesmo não tendo entre os seus membros, ficcionistas ou poetas de
relevo. A Academia formou uma geração de críticos literários e pensadores. Clovis Beviláqua,
o grande jurista, fala-nos que foi influenciado pela agremiação. Ele deixou as leituras
românticas pelas novas ideias que, no seu entender, lhe permitiram enxergar
‘verdadeiramente’ a literatura.
O grande mérito da Academia Francesa foi o de ser a primeira associação literária
e filosófica a introduzir no Ceará as ideias positivistas e cientificistas. Ela serviu de modelo
para futuras agremiações em nosso estado e plantou a semente da “leitura crítica”, aspecto da

56
Esse mesmo artigo sobre a Academia Francesa foi publicado na segunda edição do livro Crítica e literatura,
1968, de Rocha Lima.
81

sociabilidade literária que se transformou em hábito cultural na formação dos letrados


cearenses. Outro enfoque da sociabilidade da Academia eram os debates sobre as mudanças
políticas e culturais no Brasil, pensando numa possível superação do atraso colonial,
simbolizado pela escravidão e pelo enferrujamento da monarquia.
No entanto, a Academia Francesa não conseguiu estremecer os alicerces do
romantismo cearense. Só perceberemos uma inserção mais drástica das modernas ideias
artísticas no campo literário de Fortaleza com o Clube Literário.
Surgem o Gabinete Cearense de leitura57 e os demais Gabinetes da Província em
dezembro de 1875. Depois da seca de 1877-79, os Gabinetes de leitura absorveriam as
primeiras inquietações intelectuais dos pequenos núcleos de classe média de antigas vilas que
o surto de progresso transforava em cidades.
Como relatamos anteriormente, durante a atuação da Academia Francesa, Rodolfo
Teófilo estava cursando Farmácia na Bahia. Por meio desse curso, ele entrou em contato com
as ideias modernas oriundas da Europa. A Faculdade de Medicina da Bahia, e, assim como a
Faculdade de Direito de Recife, aquela contribuiu para a renovação filosófica no Brasil.
Em 1875, ele voltou formado e instala uma farmácia na Rua da Palma, (hoje
Barão do Rio Branco). Diferente da época em que era um simples caixeiro, agora Rodolfo era
‘doutor’. O diploma (materialização do capital cultural) lhe garantiu uma forma de ascensão
social e apesar do seu jeito reservado, foi um intelectual de atuação efetiva na sociedade
cearense. Isso ocorreu devido à aliança de seu espírito combativo e sedento de justiça com as
leituras de cunho racionalista e cientificista. Essas leituras, fruto de uma Era moderna,
postulavam que a realidade poderia ser transformada.
Rodolfo Teófilo atuou na vanguarda de vários eventos históricos importantes.
Durante a seca de 1877, fabricou e distribuiu remédios e vacinou a população tomada pela
peste; fabricou soros contra a picada de cobras e conseguiu fabricar e aplicar a vacina contra a
varíola, participou da campanha abolicionista, foi opositor do Governo de Nogueira Accioly,
lutou a favor da reforma agraria e de construção de açudes, lutou contra o alcoolismo. Enfim,
longe de ser um inútil, como dizia o seu antigo patrão comerciante, ele foi um homem de
ação, intelectual e pragmaticamente.
Durante a Seca de 1877, presenciou muitas calamidades provenientes da grave
estiagem. Ele foi a socorro das vítimas da varíola e da seca, visitando todos os dias os
abarracamentos, levando pessoalmente os medicamentos para a multidão de enfermos.

40
Instalou-se, a 2 de dezembro de 1875, no sobrado nº 92 da então Rua Formosa (hoje Barão do Rio Branco).
82

Contudo, o que o deixou revoltado foi o despreparo e o descaso do governo em


relação ao combate e à prevenção dos problemas oriundos da seca.
Durante alguns anos, fez um minucioso levantamento de documentos oficiais e
aliado aos seus conhecimentos científicos, publica em 1883, História da seca do Ceará. Ele
assegura que a obra é necessária para o povo cearense, é acostumado a esquecer das lições
passadas: “A tradição sobre tão calamitoso tempo para a província do Ceará deve por certo
assombrar as gerações futuras [...] A geração que nos suceder terá de meditar sobre tamanha
desgraça, procurará desviar-se do peso que nos esmagou” (TEÓFILO, 1883, p. 38).
Além dos dados geográficos, ele estuda minuciosamente os efeitos da seca na
economia da província. O foco de grande parte do trabalho é a calamitosa seca de 1877, que
se arrastou até 1879. Com a repercussão dessa obra, adquire prestígio e recebe o convite para
ingressar no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
Como farmacêutico, sanitarista e autor de uma obra historiográfica, Rodolfo Teófilo já
dispunha de qualificações que lhe permitiram circular no campo intelectual de Fortaleza. Com
a cabeça fervilhando de ideias liberais e pragmáticas, aproxima-se dos homens favoráveis à
libertação dos cativos da província, participa do movimento abolicionista.
A agitação do campo intelectual e politico irá revolucionar a vida literária em
Fortaleza de modo decisivo. Será o momento em que as ideias plantadas pela Academia
Francesa tomarão forma de modo altivo e a modernidade filosófica e estética ganhara um
terreno firme.

1. 9 Abolição dos escravos e o Clube Literário

“O que o Ceará acaba de fazer não significa por certo


ainda – O Brasil da Liberdade; mas modifica tão
profundamente o Brasil da escravidão, que se pode dizer
que a sua nobre província nos deu uma nova pátria. A
imensa luz acesa no Norte há de destruir as trevas do
Sul. Não há quem possa impedir a marcha dessa
claridade” (NABUCO, Joaquim apud GIRÃO, 1984).

No dia 25 de março de 1884, o Ceará foi a primeira província do Brasil a abolir o


sistema escravista, antes da Lei Aurea (1888), cujo feito lhe consagrou o título de “Terra da
luz”, por José do Patrocínio (1853-1905). No referido dia, a capital estava ruidosa, pela
83

comemoração do acontecimento e o jornal abolicionista O libertador estampava com


entusiasmo em suas páginas:
O Ceará (...) passará à posteridade com a honra dos que tiveram o assombroso
cometimento, que forte e suavemente fez inscrever a palavra – NÃO HÁ MAIS
ESCRAVOS NO CEARÁ; O Ceará esta livre; agora o seu dever e a sua honra é
não poupar sacrifícios nem esforços para atrair a si o resto do Brasil do qual
tão brilhantemente se destacou. Honra ao Ceará! (O Libertador. Ano IV, n. 63. 25
de março de 1884).

A Abolição foi resultado da ação da variadas grupos esforçadas para o fim do


tráfico de negros. Uma condição importante para o pequeno número de escravos no Ceará era
que as bases da economia no estado eram a pecuária e o algodão, que não demandavam em
larga escala a mão de obra escrava. Depois da grande seca de 1877, a venda dos escravos para
o sudeste do país tornou-se um mercado bastante lucrativo.
A penetração das ideias abolicionistas começou a ganhar prumo com o
desenvolvimento comercial no Ceará, principalmente, a dinamização da classe média e o seu
interesse na modernização da região. Alinhado ao liberalismo na Europa, ideais como o
trabalho assalariado e o livre comércio eram contrapostos à escravidão, tida como algo
bárbaro e irracional. A escravidão era considerada antimoderna, pois não estava mais
alinhada aos ideais iluministas e, para a maioria dos intelectuais, extirpá-la era fazer o Ceará
evoluir rumo à civilização (modelo europeu).
A causa abolicionista empolgou vários jovens cearenses, que fundaram
agremiações, tal como a Sociedade Cearense Libertadora, apresentando como sócios Isaac
Amaral (1859-1942), Antônio Bezerra (1841-1921), João Cordeiro (1842-1931), Pedro Artur
de Vasconcelos (1851-1914), Justiniano de Serpa (1852-1923), Pedro Borges (1851-1922).
Membros dessa associação tiravam alguns escravos das fazendas e escondiam em sítios e
chácaras do interior.
Em 1881, essa sociedade lançou um jornal, O libertador, com o intuito de instigar
o povo cearense em prol da campanha abolicionista. Outros setores da população cearense
achavam os métodos da Sociedade radicais e criaram o Centro Abolicionista, que contou com
Guilherme Studart e João Lopes entre os seus membros.
O ideário dos jovens abolicionistas a respeito da abolição dos escravos foi
relatado no primeiro número da revista A quinzena, por Antônio Martins (1852-1895):
A abolição na província, por exemplo, foi uma grande revolução patrícia; grande e
nobre pelos seus elevados intuitos, generosa e pacífica como um préstito de heróis
antigos, diante da civilização moderna. Mas, essa revolução foi feita pela mocidade
cearense, que teve no seu sangue bastante energia para lavar da nodoa infamante do
cativeiro uma das maiores e mais populosas conscrições do Império americano, nas
águas lustrais da igualdade dos direitos de um povo, diante da pátria, fora das leis
84

civis e humanas. E dessa revolução contra os mais seculares e arraigados


preconceitos e mais títulos de propriedade constituída, não há uma página de
sangue! Pois bem: diante desse deslumbramento de heroísmo, a maioria dos homens
do poder ergueu o seu ódio e o ódio dos apologistas da escravidão dos brasileiros
rendidos ao trabalho! A província ficou odiada dos grandes fazendeiros do sul e dos
pontífices políticos de todas as greis, enquanto recebia dos confins do mundo
civilizado as oblações da humanidade agradecida e dos homens admirados! Em que
pese nossos antagonistas, que são os antípodas da civilização – a terra livre do Ceará
após todos os desastres da ultima seca de cinco anos, e, mesmo, dos constantes
obstáculos que lhe antepõem a politica e o governo floresce a olhos vistos diante do
estrangeiro e diante do País (A quinzena, Nº 01. 15/ 01/ 1887. p. 07).

Mesmo pertencendo a uma geração de materialistas, os membros da ‘mocidade


cearense’ são descritos com paixão, tal qual a ação dos heróis gregos diante da tomada de
Troia. A revolução foi necessária, pois a escravidão significava um atraso para o povo
americano, novo e repleto de energia. Contudo, percebemos que no discurso de Antônio
Martins, estão explícitos os ideários iluministas da Revolução Francesa: igualdade, liberdade
e fraternidade. Para justificar as ações de 1884, que não foram somente ‘pacíficas’, é
construído um discurso apoteótico, em defesa da causa nobre da emancipação dos cativos, no
qual os abolicionistas são os heróis aplaudidos. Para os intelectuais, a abolição seria uma
conquista moderna.
Foi criado devido às afinidades intelectuais de alguns jovens abolicionistas,
recém-saídos do movimento libertário, ligados por uma forte sociabilidade literária, em 15 de
Novembro de 1886, uma associação que iluminaria singularmente o universo letrado da
capital cearense: o Clube Literário. Esta agremiação, nas palavras de Barão de Studart (1856-
1938), foi o “renascimento literário do Ceará” (1910, p. 214). Seu idealizador foi o escritor
João Lopes (1854-1928), membro do Centro Abolicionista, que outrora participara da
Academia Francesa (1872-1875). A publicação oficial desta agremiação era a revista A
Quinzena, e o seu objetivo era ser apologista das ideias modernas oriundas da Europa.
A agremiação foi formada por 36 homens e duas mulheres. Ao lado de poetas do
romantismo como Juvenal Galeno (1853-1931), Antônio Bezerra (1841-1921), Antônio
Martins e Justiniano de Serpa (1853-1923), os poetas da abolição, e Virgílio Brígido (1854-
1920), perfilavam-se Oliveira Paiva (1861-1892), Antônio Sales (1860- 1940), Rodolfo
Teófilo (1853-1932), José Carlos Júnior (1860-1896), Xavier de Castro (1858-1895), Farias
Brito, Abel Garcia (1864-?); Paulino Nogueira (1842-1908); Martinho Rodrigues (?-1905);
Pápi Júnior (1854-1934), Ana Nogueira (1870-?); Francisca Clotilde (1862-1935), esta com o
pseudônimo de Jane Davy.
85

Através das páginas da revista A quinzena, ao lado de poemas românticos,


surgiram textos realistas como os contos de Oliveira Paiva, contos científicos de Rodolfo
Teófilo, anunciando a presença do realismo-naturalismo em nosso estado.
Assim como a Academia Francesa, da década de 1870, os escritores e intelectuais
do Clube Literário adotaram os mesmos aspectos de sociabilidade literária, reunindo-se para
ler e debater as novidades filosóficas e literárias da Europa e da Corte brasileira. Muitas
dessas conferências, pronunciadas em sessões noturnas, foram estampadas nas páginas d’A
quinzena. Sânzio de Azevedo, sobre as atividades do Clube, informa que:
o grêmio contribuiu admiravelmente para a renovação das letras do Ceará: com o
conhecimento do que se passava nos grandes centros é que nossos escritores foram
pouco a pouco aderindo à nova corrente, o Realismo. Dir-se-ia haver João Lopes
trazido da Academia Francesa o costume das leituras críticas... (AZEVEDO, 1976,
p.92)

Esse aspecto de sociabilidade literária, denominado pelo próprio João Lopes de


“leitura crítica” é muito importante para compreendermos a dinâmica dessas agremiações, que
se estenderão até o século XX, também delas fazendo parte da famosa e irreverente Padaria
Espiritual (1892-1898). O espaço que foi utilizado para a divulgação das ideias novas e,
sobretudo, dos textos literários dos membros (inclusive estreantes como Rodolfo Teófilo,
Antônio Sales, Farias Brito, Oliveira Paiva) foi à revista A Quinzena.
O periódico circulou de janeiro de 1887 a junho de 1888, no total de trinta
números. Seus redatores fixos eram João Lopes, José de Barcelos, Antônio Martins, Oliveira
Paiva, José Olímpio (substituído por José Carlos Júnior), Antônio Bezerra, Justiniano de
Serpa, Paulino Nogueira e Martinho Rodrigues.
Através das páginas da revista A quinzena, Farias Brito publicou os poemas que
formariam o livro Cantos modernos (1889); o poeta piauiense H. Castelo Branco publicou a
Lira Sertaneja (1881). De Oliveira Paiva, o romance A afilhada (1889) também figurou nas
páginas do periódico, embora também divulgado no rodapé do jornal O libertador. Oliveira
Paiva, futuro autor de Dona Guidinha do poço (1962), publicou diversos contos, ora
revelando, ora ocultando a sua identidade, sob o pseudônimo de Gil, entre outros. Em quatro
dos trinta números, Farias Brito publicou o ensaio “O papel da Poesia”; também foi publicado
o estudo de Abel Garcia, “A mulher Cearense”; em dois outros números, José de Barcelos
tratou da obra do pedagogo Pestalozzi. A estética naturalista foi divulgada por Oliveira Paiva,
através dos artigos “O naturalismo” (Nº 1, 15/01/1888) e “O que vem a ser uma obra
naturalista?” (N. 31/01/1888) e por José Carlos Júnior com a coluna “Apontamentos
esparsos”.
86

No primeiro número, o fundador João Lopes, no texto que abre a revista,


“Preliminares”, apresenta-nos uma visão progressista da sociedade e também faz uma crítica
aos “homens práticos”:
na província, aqui por estes recantos do norte, parece destino quebrar a
homogeneidade beatificante rotineira da vida provinciana, para escrever sobre letras e
artes e ciências. Vão assim objetar-nos os homens práticos, que, por pouco que
saibam, sabem belamente sentenciar ex-cathedra que o nosso público é infenso, senão
hostil a isso de literatura ‘que não bota ninguém para diante [...] Ficam, portanto,
sabendo os homens práticos, que não somos ingênuos, que não temos peneira nos
olhos, que não vemos tudo cor de rosa (A Quinzena, n° 1, 15/01/1887. p. 1).

Nesse trecho, percebemos os conflitos do campo intelectual ocupado pelos


membros do Clube Literário. Eles se opõem aos “homens práticos”, isto é, dos burgueses,
pois eles os consideravam vulgares e contrários às coisas artísticas. Os escritores possuíam a
crença de que o meio em que viviam não era propicio às letras, mesmo na Capital do Império,
e para construir uma pretensa “civilização sul-americana” era preciso por meio de uma luta
tenaz, romper a indiferença pública, na tentativa de ampliar o campo literário da província.
Apesar de João Lopes mencionar que A Quinzena é uma publicação puramente
literária, a revista também servia de espaço para a divulgação das ideias cientificistas e
positivistas. A maioria dos membros era entusiasta do ideário moderno, com a exceção de
Farias Brito que via com cautela essa onda de progressismo. Contudo, não estamos nos
referindo ao filósofo que se consagraria posteriormente. Nessa época, ele ainda não havia
publicado a sua primeira obra de peso – Finalidade do Mundo (1894), apesar de que boa parte
desta obra ainda estava sendo redigida.
Já referimos que a “leitura crítica” era um importante aspecto de sociabilidade do
Clube literário. Essas leituras eram realizadas pelos seus membros nas famosas conferências
do Clube. No nº 14 da revista A Quinzena, Oliveira Paiva, analisando essas conferências,
define os propósitos poéticos desta instituição:
Nada é tão capaz de fomentar o patriotismo e acender os brios de uma nação, como a
Literatura. O livro acompanha o individuo onde quer que ele vá. Custa-lhe barato.
Que mais? Deve ser uma arma para o cearense. Esta é a ideia do Club Literário: - o
Livro e a Palavra em ação É por isso que, tendo iniciado a publicação da Quinzena,
vai inaugurar brevemente as suas conferências; e assim, iremos derrocando, de
bastilha em bastilha, a indiferença, - indigna e baixa até para os animais. Que o
povo não seja rebelde à voz dos seus melhores amigos; que a sociedade cearense
corra a ouvir as palavras sinceras arrancadas à parte mais nobre da nossa alma; que a
província lembre-se de que é feita para um futuro de glórias e de bem-estar; (...)
Avante pelo trabalho assíduo! – é o nosso bardo (A Quinzena n° 14, 31/06/1887. p.
105).

Notamos no trecho citado, o entusiasmo de Oliveira Paiva por retirar a cidade da


mediocridade cultural. Do ponto de vista progressista, isto poderia ser feito através do
87

letramento. Eis o lema do Clube Literário: “O Livro e a palavra em ação”. O livro era mais
que um mero veículo editorial de circulação de ideias, ele seria “como arma”, um recurso para
aquisição do capital cultural da população da cidade. Tanto para Oliveira Paiva, quanto para
os outros membros da referida agremiação, o desenvolvimento intelectual do povo cearense
significava atingir um estágio civilizatório comparável ao modelo europeu. Criticamente,
sabemos que o capital cultural não era acessível a toda camada da população. A educação
formal do povo não foi um interesse imediato para os altos membros do campo do poder.
A maioria dos membros do Clube estrearam literariamente, por meio de poemas e
textos ficcionais curtos nas páginas da A Quinzena. As obras literárias se constituíram na
implicação de certos ritos normatizados (leituras, comentários, saraus, conferências, aulas) no
interior dessa instituição específica, materializadas por meio da revista, circulando assim na
sociedade. Os intelectuais e escritores só podem dizer algo do mundo, tratando da
problemática de seus funcionamentos. Os escritores se colocam em jogo. Dominique
Maingueneau nos esclarece que “a vida literária está estruturada por essas ‘tribos’ que se
distribuem pelo campo literário com base em reivindicações estéticas distintas: círculo,
grupo, escola, cenáculo, bando, academia...” (2001, p. 30).
No caso de Rodolfo Teófilo, que escrevera poemas desde sua juventude, publica
na Quinzena também alguns poemas. Contudo, a sua incursão no grêmio não foi
literariamente, mas pelo seu prestigio científico e intelectual, por meio da publicação de
contos e artigos científicos. Como homem formado, ele podia circular entre seus pares.
A ‘leitura crítica’, como forma de sociabilidade literária ocorria em sessões
noturnas (espaço de tempo marginalizado, devido ao dia dedicado ao trabalho) do Clube, onde
se liam e apreciavam os livros recentes. Todas as noites aconteciam palestras sobre arte,
literatura, filosofia e ciência.
O Clube Literário surgiu como uma associação formal, firmada por meio da
elaboração de estatutos, elegendo um presidente, um tesoureiro e cada membro possuindo sua
função.
Art. I – O clube Literário tem por fim promover a ativar o progresso intelectual de
seus associados. Art. II – compõe-se de sócios efetivos e correspondentes. [...] Art.
V – Só podem ser sócios do clube os homens dados às letras. [...] Art. VII – Haverá
sessão da diretoria as semanas e da assembleia geral uma vez por mês. Art. VIII –
Para realização de seu programa o clube Literário manterá um órgão na imprensa,
promoverá conferências publicas, procurará relacionar-se com os vultos da
literatura, das artes, e da ciência, corresponder-se-á com as corporações congêneres
do império e do estrangeiro, e intervirá perante os poderes públicos quando assim
for necessário (A quinzena, Nº 17, 17 de setembro de 1887, p.136).
88

Percebemos que os estatutos, além de comunicar o ideário da agremiação, é um


documento que registra a formalização e a institucionalização do grupo. Nos artigos citados,
também vemos as características de sociabilidade literária a que já aludimos: como o caráter
literário da agremiação, a defesa das ideias ditas modernas, as reuniões e conferências, a
correspondências com agremiações de outros estados e com países estrangeiros e a atuação na
imprensa.
O espaço de sociabilidade culminante para o qual convergiam todos os propósitos
do Clube Literário era a revista A quinzena. O historiador Jean-François Sirinelli (1949), nos
auxilia nesse debate, esclarecendo-nos a respeito da importância das revistas:
Entre as estruturas mais elementares, duas, de natureza diferente, parecem
essenciais. As revistas conferem uma estrutura ao campo intelectual por meio de
forças antagônicas de adesão – pelas amizades que as subtendem, as fidelidades que
arrebanham e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os
debates suscitados, e as cisões advindas. Ao mesmo tempo que um observatório de
primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, elas são aliás um lugar
precioso para a análise do movimento das ideias. Em suma, uma revista é antes de
tudo um lugar de fermentação intelectual e de relação afetiva, ao mesmo tempo
viveiro e espaço de sociabilidade, e pode ser, entre outras abordagens, estudada
nesta dupla dimensão (SIRINELLI, 2003, p. 249).

Pelos apontamentos de Sirinelli, a revista pode significar um espaço de


sociabilidade e de difusão de ideias. A revista A quinzena representou um espaço criado a
partir do desejo de convivência, estimulada por relações de amizade e parceria. O campo
literário em que o Clube Literário estava inserido não se constituía como uma unanimidade.
O filósofo Farias Brito estabeleceu uma relação de conflito com os demais membros da
associação que estavam em dissonância em relação à sociedade cearense. O que une a maioria
de seus associados é o desejo progressista de elevar o padrão cultural e civilizatório do povo
cearense. Através de uma voz ativa e lúcida, Farias Brito não se contrapôs ao ideário
cientifico, porém ele denunciou a fé exacerbada que estava sendo depositada na ciência. Num
ensaio intitulado “O papel da poesia”, dividido em quatro partes, publicadas nos números 6, 7,
8 e 9, da revista A Quinzena, Farias Brito levantou o seguinte questionamento: numa época
em que prevalecem as ideias da ciência, a poesia e a arte em geral teriam razão de ser?
Ele foi singular, por se chocar contra o pensamento dominante e por defender a
importância da poesia e das artes, numa época em que o véu materialista cobria os olhos dos
intelectuais. Farias Brito, ao mostrar que a poesia sempre está interligada ao seu tempo,
criticou os escritores inspirados pelas ideias modernas, que elevaram a ciência como valor
absoluto, tornando a sua visão anacrônica. Essa crítica foi direcionada aos intelectuais de
outras agremiações, principalmente, os da Corte. Em relação aos confrades do Clube literário,
mesmo tendo, cada um, sua própria visão, a convivência era de camaradagem.
89

Percebemos, então, que a revista como representação simbólica do campo


literário era um espaço de discordâncias e tensões, e A quinzena foi fruto do trabalho
intelectual que conviveu e produziu uma obra coletiva.
A contribuição textual de Rodolfo Teófilo na revista A quinzena foi através das
colunas “História natural” e “Ciências naturais”. Ele começa a publicar os seus contos no
número doze e tinha como alvo a divulgação das novas concepções científicas. Os contos
eram escritos em forma de diálogos didáticos entre ele e sua esposa Raimundinha, tendo como
cenário o seu sítio na Pajuçara. A natureza era analisada sob o ponto de vista da reflexão
cientifica, seguindo nomes científicos de insetos e plantas e alusões a livros de naturalistas:
Voltamos ao lago, ao caminho a minha companheira disse-me: - Já a sensitiva
recolhe-se, fecha as folhas e vai dormir, e as donzelinhas ainda voltejam sobre as
aguas! Aproveitam até o último raio da luz crepuscular! No voo rápido fendem com
a ponta da asa a agua como as andorinhas. Divertem-se muito, não é assim? – Não,
fazem pela vida. Caçam e entregam às aguas o fruto de seus amores. – Caçam! E
elas não vivem como as borboletas do mel das flores? – Não sabes a história destes
insetos. Se conhecesses melhor a Entomologia, parte da História Natural que os
estuda, saberias que as donzelinhas ou libelinhas são insetos neuropteros carnívoros
(A Quinzena, Ano. I, Nº 12, 05 de julho de 1887, p. 94.).

Teófilo desenvolve a sua narrativa para explicar a origem e o funcionamento dos


fenômenos naturais e dos seres vivos. Ele possuía uma visão mecanicista da natureza,
enxergando-a como algo harmônico, em constante processo evolutivo. Todo fenômeno, em
qualquer organismo é mecanicamente determinado, especialmente em sua natureza físico-
química. Essa visão foi construída a partir das leituras evolucionistas (Spencer e Darwin) e
determinismo casualista de origem positivista (Augusto Comte). O farmacêutico escreveu
contos sobre: As donzelinhas; as borboletas; a luz; o cafeeiro; ar e atmosfera; as flores; a
água; reprodução dos vegetais; a vida dos vegetais; e os vulcões.
A razão de estudar as ciências naturais se dava devido à concepção positivista de
que a ciência era a rainha dos conhecimentos. Então, estudar ciência seria uma forma de se
compreender o mundo e a sociedade que os cercavam.
Os membros do Clube Literário se apossaram da missão de levar o ‘progresso’ e a
civilização’ ao povo cearense, através da divulgação de livros e pensadores europeus. Era um
meio idealista de romper a ignorância e as intempéries sócioclimáticas, que mergulhavam o
Ceará no atraso civilizatório. A ‘marcha do progresso’ da mocidade cearense foi descrita pelo
artigo de Antônio Bezerra:
Por toda a parte se fundam sociedades com o fim de propagar o ensino entre os sócios;
possui esta capital magníficas bibliotecas particulares, em cujas estantes se encontram
os livros mais valiosos e mais modernos da ciência europeia, e não faltam amadores
que sondam-lhe os segredos com a avidez de um avarento. Têm aqui vários
assinantes os jornais estrangeiros, que não importa sejam escritos em francês, inglês,
italiano, alemão etc. com tanto que divulguem as descobertas modernas, sobretudo da
90

antropologia, de cuja solução pendem os mais importantes problemas sobre o homem.


O mutismo de outrora sucede lisonjeira tendência para as publicações (sic)
(BEZERRA, A Quinzena. 03. 05. 1888. p. 52).
Na declaração, Antônio Bezerra se reporta ao contexto da cidade de Fortaleza,
durante as décadas de 1870 e 1880, a partir das entradas de livros e revistas vindas da Europa,
a qual experimentou um intenso fluxo de ideias e leituras modernas. Aos poucos, o hábito da
leitura estava tomando se tornando mais corriqueira. Os bacharéis estavam se apropriando das
leituras novas, e em seguida, atuaram como intérpretes e divulgadores dessas ideias. O campo
intelectual estava se ampliando e, como consequência, o campo literário.
Percebemos através, de várias citações da revista A quinzena, que a sua linha
editorial, como assinalou Oliveira Paiva, é fomentar o gosto literário de Fortaleza, tão
marcada por contrastes culturais gritantes (A quinzena, Nº 14, p. 61).
As ideias progressistas, racionalistas e evolucionistas foram plantadas pela
Academia Francesa e o debate de ideias foi aprimorado pelo hábito das leituras críticas. A
grande ambição do Clube literário, assim como a de outras associações de cunho intelectual e
científico era construir uma nova sociedade em que a vida literária fosse uma realidade
presente e ativa, permitindo a livre circulação de ideias, nem que a leitura era a forma de
sociabilidade por excelência e o livro era o objeto supremo de culto.

1.10 Década de 1890 e A Padaria Espiritual

Páginas atrás, vimos que Rodolfo Teófilo ganhou notoriedade com a publicação
de História da Seca do Ceará (1883) e participou do grupo de intelectuais que apoiou a
libertação dos cativos no Ceará. A sua participação na vida literária se estreita ao participar
do Clube literário, publicando poemas e contos científicos.
Segundo José Ramos Tinhorão “a grande seca de 1877 a 1879 – que
impressionaria toda uma geração de moços da classe média urbana cearense, explicando mais
tarde o aparecimento da literatura das secas – desorganizara completamente a vida da
Província” (1966. p. 48). As calamidades provocadas pela grande seca marcaram a alma do
farmacêutico. Os sertanejos ficaram reduzidos a um estado extremo de miséria e de fome,
além da epidemia de varíola que matava aos milhares.
Inicialmente, ele narrou o terrível evento por meio da História e da Ciência em seu
primeiro livro, pois os anos da seca seriam amaldiçoados “por uma geração inteira deixando
ao povo cearense dolorosas recordações” (1883, p. 71).
91

Após as experiências literárias e intelectuais, a partir da circulação mais efetiva no


contexto literário de Fortaleza, por meio do Clube Literário, Rodolfo inicia a redação de seu
primeiro romance. Publicado em 1890, A fome será uma fabulação das mais terríveis cenas
causadas pela seca de 1877-1879:
Havia muita miséria na população adventícia da capital. As mesmas cenas da fome
nos ermos caminhos do interior tinham lugar nas ruas e praças de Fortaleza. Quase
cem mil infelizes de todas as idades viviam miseravelmente nos abarracamentos do
governo, nas praças públicas e nos passeios das casas! (TEÒFILO, 1979, p. 98).

A miséria não existia apenas no interior, os sertanejos a levaram como marcas da


desnutrição e da peste para a Capital. A intensidade das cenas narradas, na luta pela comida,
morte pela peste e de fome, eivadas de descrições científicas, possui uma forte conexão com o
descaso do poder público. A literatura, para Rodolfo Teófilo, será uma forma de recriação da
realidade social, utilizando a ciência como forma de potencializar a obra de arte como desejo
de verdade.
A publicação de um romance foi um ato bastante ousado do escritor. A
experiência literária dele, até então, resumia-se a alguns poemas, esporadicamente publicados
e aos contos didáticos da revista A quinzena. De caráter histórico e científico publicou:
Historia das secas do Ceará 1877-1880 (1883), Monografia do Mucunã (1888), Ciências
naturais em contos (1889), Curso elementar de história natural (1889).
A fome é bastante criticada pelo excesso cientificista e pela abordagem rude do
tema. Contudo, em 1891, por meio das páginas da Revista Moderna, é publicado um artigo
“A fome”, anônimo e impressionista, que realizou um ataque contundente ao livro de Teófilo.
Vários pontos foram dissertados como falhas de composição da narrativa, falta de elegância,
mas a acusação que abalou o escritor foi: “... enquanto o Sr. Teófilo, que é nortista, que
sempre residiu em sua terra, que assistiu de vista todas aquelas cenas canibalescas e incríveis
de miséria e fome, não conseguiu dar senão páginas sem estilo, sem arte, sem verdade às
vezes...” (CAMINHA, 1999. p.114).
Somente em 1895 foi revelado o autor da crítica, o próprio Adolfo Caminha,
diretor da Revista e ex-membro da Padaria Espiritual. A rixa entre Rodolfo Teófilo e Adolfo
Caminha gerou uma famosa polêmica nas páginas do jornal O Pão. Antes de falarmos sobre a
Padaria Espiritual, comentaremos a importância do surgimento da revista Moderna para a
vida cultural de Fortaleza.
No respectivo periódico, dirigido e articulado por Adolfo Caminha, percebemos a
influência da revista A quinzena, no interesse em se diferenciar de outros jornais e revistas de
cunho político. Adolfo Caminha nos fala no seu primeiro número que “por falta de um
92

periódico sério, nascido de intuitos honestos, habituámo-nos a viver alheios à corrente


cientifico-literária moderna, colhendo apenas noticias isoladas e de pouca monta nos jornais
do sul, em consequência da difícil e dispendiosa aquisição de livros novos” (1891, p. 448).
Nesse trecho, Caminha reclama do possível público leitor da cidade que não se
interessa e não está a par das novidades literárias. Desde o fechamento d’A Quinzena, os
jornais literários tornaram-se raros. Após a Proclamação da República, muitos intelectuais
ainda ansiavam em manter acesa os ideais modernos, com o fim de levar a nação a um estágio
civilizatório comparável ao da Europa e dos Estados Unidos.
Na Revista Moderna, colaboraram Raimundo Farias Brito, João Brígido dos
Santos Filho, Juvêncio de Siqueira Montes, Antônio Duarte Bezerra, Pedro Fabrício de Barros
e Luiz Vieira.
Não só de política a imprensa deveria tratar, conforme Adolfo Caminha:
Se aparece entre nós um livro, seja de autor nacional ou estrangeiro, a crítica, se
crítica há aqui, não se dá sequer ao trabalho de folheá-lo quanto mais autopsiá-lo;
sem escrúpulos limita-se a noticiar o aparecimento da obra em termos os mais
lacônicos e encomiásticos possíveis, sem comentários (apud BARREIRA, 1948 p.
271).

Com periodicidade mensal, o próprio editor, escreveu artigos sobre livros que
estrearam no ano anterior, de Antônio Sales e de Rodolfo Teófilo (Versos diversos (1890) e A
fome, 1890) questiona os méritos artísticos dos respectivos autores, causando polêmicas.
Até aquele momento, A Revista Moderna foi o acontecimento que gerou um novo
ânimo na vida literária da cidade, até a formação da Padaria Espiritual.
Dos vários jornais que circulavam em Fortaleza, o humorístico O bond, em 1890,
segundo Sânzio de Azevedo já falava do ‘Grêmio do Café Java” (2012, p. 19). De modo
sarcástico, era uma referência aos rapazes que se reuniam no dito café. Mané Coco, o
proprietário do quiosque, um dos quatro que existiam na Praça do Ferreira, era um entusiasta
das veleidades literárias dos jovens boêmios que frequentavam o seu café.
Segundo Antônio Sales
Mané Coco, que antes do Java já possuíra um Estaminet, tinha o gênio do cabaretier:
em Paris ele estaria à frente de um dos famosos cafés excêntricos de Montmartre.
Essa sua aptidão se manifestava pela sua simpatia aos intelectuais: João Lopes,
Justiniano de Serpa, Oliveira Paiva, Antônio Martins e todos os jornalistas e
escritores do seu tempo o estimaram e recebiam dele todas as provas de
consideração. E foi no Java que, com a colaboração material de Mané Coco, nasceu
a Padaria Espiritual. Éramos um pequeno grupo de rapazes – Lopes filho, Ulisses
Bezerra, Sabino Batista, Álvaro Martins, Temístocles Machado, Tibúrcio de Freitas
e eu, que ali nos juntávamos a uma mesa para conversarmos de letras (2010, p. 16-
17).
93

Segundo o poeta o Café de Mané Coco era frequentado por intelectuais, artistas e
escritores. Ao contrário do Passeio público, que era um espaço destinado, principalmente, a
Avenida Caio Prado, à sociedade elegante e séria da cidade, alguns cafés da Praça do Ferreira
eram ambientes da boêmia. A Praça do Ferreira era o centro econômico e cultural da cidade,
espaço da efervescência de vida literária. Como nos diz Sales, os cafés se inspiravam nos
cafés franceses, tentavam transmitir a atmosfera da modernidade. Os cafés eram o espaço do
flâneur, onde os boêmios observavam a vida social e eram observados pelos passantes.
Essa reunião de jovens artistas e escritores que comungavam o mesmo ideal
estético é outro exemplo de ‘tribo’ literária. O Café Java, (Figura 5) portanto, era uma zona
de fronteira do espaço social. Como a sociedade burguesa os ‘excluía’, eles viviam como
errantes, às margens da cidade. O escritor boêmio procede como um contrabandista de bens
simbólicos, tentando driblar o jogo do poder que o oprime e o ignora.

Figura 5 - O Café Java, de Manuel Pereira dos Santos (Mané Coco), na Praça do Ferreira,
onde nasceu a ideia da Padaria Espiritual (Arquivo Nirez).

No Café Java, os artistas se reuniam para beber, falar de literatura e de arte,


comentar suas próprias produções, comungando o seu antagonismo à sociedade burguesa. A
atmosfera irreverente tomava conta das reuniões.
Um dia na formosa e risonha Fortaleza, alguns moços de talento decidiram ajuntar-
se, no intuito comum de estimular o estudo e o desenvolvimento das letras,
constituindo uma associação que fosse como um núcleo da literatura do Norte.
Surgiu assim a Padaria Espiritual, que já conta hoje bastante sócios mesmo aqui no
94

Sul entre os nossos escritores da mais justa nomeada. (...) (O Pão nº 21, 1 de agosto
de 1895. p.6).

Nesse trecho do artigo do Pão, que trata das motivações da criação do grêmio,
percebemos que havia uma conscientização literária em não ser apenas um grupo de jovens a
viver de pilherias. Os futuros padeiros queriam fazer uma diferença. Assim como outras
associações anteriores, eles tinham também um desejo progressista, de desenvolver as letras
do Norte (e Nordeste). Eles tinham a ambição de fazer da Padaria o núcleo da Literatura no
Ceará.
Os membros da Padaria Espiritual, assim como os do Centro literário fazem parte
dos “Novos do Ceará”. O que os diferenciam do grupo que formou a “Mocidade cearense”,
geração anterior que desenvolveu a Academia Francesa e o Clube literário, a maioria dos
padeiros eram oriundos de cidades do interior do estado que vieram a Fortaleza em busca de
um pretenso ‘mercado’ intelectual maior, de vida literária mais ativa e atraente. A Mocidade
cearense foi uma geração ‘moderna’, que, movida pelas leituras das ideias modernas, tinha
uma atitude apaixonada e apoteótica de reforma da sociedade. Eles eram apaixonados pelo
progresso e pela civilização. A Padaria Espiritual formou-se após a República e quem
aguardava, ingenuamente, o aperfeiçoamento da sociedade teve um abissal desapontamento.
José Murilo de Carvalho (1939), a partir da crônica de Aristides Lobo, afirmou
que o povo assistiu bestializado à proclamação da República. A expressão do cronista não
pode ser apenas vista como um discurso da elite. A implantação da República no país teve
nula participação das camadas populares.
O historiador nos explica que:
Vimos também que o período foi marcado, especialmente no Rio de Janeiro, pelo
rápido avanço de valores burgueses. Velhos monarquistas, como Taunay,
expressaram seu escândalo frente à febre de enriquecimento, ao domínio absoluto de
valores materiais, à ânsia de acumular riquezas a qualquer preço, que tinham
dominado a capital da República. Mesmo republicanos ardorosos, como Raul
Pompeia, não deixaram de estranhar o novo espirito que dominava as pessoas.
Segundo Pompeia, longe iam os dias do romantismo abolicionista e do dantonismo
da propaganda. “o que há agora é pão, pão, queijo, queijo. Dinheiro é dinheiro.”
Todos se ocupam de negócios e até a política é dominada pelas finanças: A
República discute-se consubstanciada no Banco da Republica (1987, p.42).

Percebemos que o discurso dito moderno, de ruptura com a tradição política


anterior, alicerçou os ânimos para a tomada do poder. Uma vez no poder, o objetivo da
máquina governamental é perpetuar-se no seu status quo e alimentar a sua complexa rede
burocrática de trocas e ganhos. O sistema político mudou, contudo os aristocratas e os
burgueses permaneceram com os seus privilégios, enquanto a maioria da população continuou
sendo explorada, analfabeta e pobre.
95

Então, muitos dos esgrimistas intelectuais atuaram na impressa e nos movimentos


políticos e culturais, não apenas no Ceará, mas no Rio de Janeiro, repleto de ideais e perante
conturbado contexto. Os padeiros, portanto, seriam a primeira geração desiludida com a
República? A ‘nova’ ordem política dominada pelos negócios deu origem ao ódio ao burguês
da Padaria? Discutiremos essas questões adiante. Antes, falaremos da organização da Padaria
Espiritual.
A Padaria foi instalada em um prédio na Rua Formosa, nº 105. Antes da primeira
reunião da associação, em 30 de maio de 1892, fato que causou espanto da burguesia local,
Antônio Sales nos relata as motivações e os pormenores da reunião dos rapazes:
Ulysses e Sabino insistiram que formássemos um grêmio literário para despertar o
gosto das letras, então em estado de letargia, mas eu me opunha. Uma sociedade
literária, como se havia fundado tantas, com um caráter formal de academia-mirim,
burguesa, retórica e quase burocrática, era cousa para qual eu sentia uma negação
absoluta. – Só si fosse uma cousa nova, original e mesmo um tanto escandalosa, que
sacudisse o nosso meio e tivesse uma repercussão lá fora. – Pois seja assim, diziam
os outros. (SALES, 2010, p. 17).

Os amigos de Antônio Sales o interpelaram para criar uma associação, visto que
eles se reuniam sempre no Café Java para discutir literatura. Sales aceitou contudo, não queria
associar-se a um grêmio grave e oficial. Sales, que já havia publicado um livro de versos, só
participaria se fosse ‘uma cousa nova’, se distanciando da seriedade e da sacralização das
Academias literárias, e onde que não figurassem a retórica artificial e a eloquência elogiosa.
Os padeiros não tinham interesse em se enquadrar no campo do poder naquele momento. Os
padeiros queriam construir uma associação boêmia e irreverente. Eis o motivo de todo o
simbolismo relativo ao oficio de padaria: era um modo de realizar uma pilheria com as
associações literárias oficializantes, ironizando inclusive a burguesia, por meio de signos de
uma atividade comercial popular, humilde.
Após entrarem em acordo, Sales elaborou o Programa de instalação da Padaria.
No trecho, ele declarou que a burguesia ficou perplexa com o conteúdo do programa. Esse é
o primeiro exemplo da relação de ‘ódio’ que os Padeiros expõem sobre essa classe social.
Do referido Programa de instalação, destacamos os dois primeiros itens que nos
falam do intuito e da organização da Padaria:
I - Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siará
Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual,
cujo fim é fornecer pão do espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral.
II - A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mor (presidente), de dois
Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção
intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes,
que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os
sócios terão a denominação geral de Padeiros (AZEVEDO, 1996, p. 59).
96

Pelo primeiro item, vemos que a Padaria era uma associação literária e artística;
não há dúvida disso, contudo, o seu caráter humorístico o distinguia dos outros grêmios. Era
um grupo que tinha um espírito progressista, mas o seu progressismo era mais cultural do que
político. Eles tinham o objetivo de ‘fornecer o pão de espirito’ aos sócios e à sociedade. O pão
como metáfora do alimento espiritual, ou seja, cultural. Espírito como sinônimo da
inteligência. A nota humorística está na própria brincadeira com progressismo positivista de
outras sociedades, pois levar o ‘pão de espírito’ aos povos em geral seria um fato um tanto
quanto improvável.
Sobre o segundo item, temos a descrição do funcionamento e dos ‘cargos’, todos
ligados ao campo semântico do oficio de padeiro. Sobre o “Investigador das Coisas e das
Gentes” conhecido como “Olho da Providência” é outra paródia, nesse caso de um símbolo da
maçonaria. Segundo Sânzio de Azevedo (1996), até hoje não há nenhum documento que
ateste sobre o envolvimento dos padeiros na maçonaria. Contudo, no contexto da Padaria, é
muito difícil considerar que eles não conhecessem o discurso e os símbolos dessa sociedade
ou membros dela.
A célebre e pitoresca primeira fornada foi narrada por Adolfo Caminha, Antônio
Sales e Rodolfo Teófilo. No livro Cenas e tipos, numa página de reminiscência, é transcrita a
ata da primeira fornada. Como já narramos uma parte por meio de Antônio Sales, citaremos
outros pontos da fornada por Rodolfo Teófilo:
O edifício da Padaria achava-se embandeirado e adornado de festões de flores
naturais e retratos de celebridades artísticas. [...] Acabou-se a fornada às 8:30 da
noite. Depois de retirarem-se os cidadãos ignaros, serviu-se cerveja aos Padeiros que
fizeram espirito até 10 da noite. Todos saíram então à rua acompanhados de
violinos, flauta e violão, e dirigiram-se em serenata ao Café Tristão, onde tomaram
café. Percorreram diversas ruas e chegaram afinal à Avenida Ferreira, onde cada
qual tomou seu rumo (TEÓFILO, 2009, p. 31-32).

Percebemos, que o tom dessa fornada foi festivo e repleto de bom humor. Foi
feito assim de propósito para escandalizar a sociedade “cidadãos ignaros”. A fornada acabou
tarde e os padeiros ainda continuaram a festa na rua, num tipo de sociabilidade literária de
feição explicitamente boêmia, uma vez que a Padaria foi criada para agitar a vida cultural e
social de Fortaleza. E o seu periódico, o Pão, conforme Antônio Sales, “era menos o veículo
literário da Padaria do que uma válvula para a pilhéria petulante que se fazia lá dentro”
(“Retrospecto” apud, AZEVEDO, 2011, p. 87).
Na reunião da Padaria, conforme o artigo III, do Programa de Instalação “ fica
limitado em 20 o número de sócios, inclusive a diretoria, podendo-se, porém admitir sócios
honorários que se denominarão padeiros livres (AZEVEDO, 1996, p. 59)”. Eis os membros
97

fundadores: Antônio Sales/Moacir Jurema; Adolfo Caminha/Felix Guanabarino; Jovino


Guedes/Venceslau Tupiniquim (1859-1905); Tibúrcio de Freitas/Lúcio Jaguar (?-1918);
Ulisses Bezerra/Frivolino Catavento (1865-1920); Carlos Vitor /Alcino Bandolim (1875-
1951); José de Moura Cavalcante/Silvino Batalha (1865-1928); Raimundo Teófilo/José
Marbri (1872-1946); Álvaro Martins/Policarpo Estouro (1868-1906); Lopes Filho/Anatólio
Gerval (1868-1900); Temístocles Machado/Túlio Guanabara (1874-1921); Sabino
Batista/Sátiro Alegrete (1868-1899); José Maria Brígido/Mogar Jandira(1870-1923);
Henrique Jorge/Sarasate Mirim (1872-1928); Lívio Barreto/Lucas Bizarro (1870-1895); Luis
Sá/Corrégio Del Sarto (1845-1898); Joaquim Vitoriano/Paulo Kandalaskaia (?-1894));
Gastão de Castro/ Inácio Mongubeira (?); José dos Santos/Miguel Lince (?) e João
Paiva/Marco Agrata (?-1898). Em sua segunda fase, foram acrescentados mais 14
participantes (Figura 6).

Figura 6 - Famosa foto da segunda fase da Padaria Espiritual, onde Rodolfo Teófilo está destacado no centro.

Os novos membros: Antônio de Castro/Aurélio Sanhaçu (1872-1935); José Carlos


Junior/Bruno Jaci (1860-1896); Rodolfo Teófilo/ Marcos Serrano; Almeida Braga/Paulo
Giordano (?); Valdemiro Cavalcante/ Ivan d’Azof (1869-1914); Antônio Bezerra /André
98

Carnaúba (1841-1921); José Carvalho/Cariri Braúna (1872-1933); Xavier de Castro/Bento


Pesqueiro (1858-1895); José Nava/Gil Navarra (1876-1911); Roberto de Alencar/Benjamin
Cajuí (1879-1898); Francisco Ferreira do Vale/Flávio Boicininga (1855-1918); Artur
Teófilo/Lopo de Mendoza (1871-1899); Cabral de Alencar/Abdul Assur (1877-1915);
Eduardo Sabóia/Brás Tubiba (1866-1918).
No artigo do primeiro número do jornal o Pão, lemos
O leitor conhece os estatutos da Padaria Espiritual? Naturalmente. Então já devia
estar á espera do jornal que prometeu criar, com o nome de O Pão. Eil-o, com a
mesma soma de direito com que os outros seus colegas percorrem profusamente o
mundo inteiro. O seu programa é muito simples: transmitir ao leitor com a maior
exatidão o que sente e o que pensa a Padaria Espiritual sobre tudo e sobre todos.
Não obedece absolutamente a sugestões estranhas, nem tão pouco toma a si o
compromisso de agradar; em compensação, de modo algum ameaça hostilizar.
Promete apenas uma cousa: dizer sempre a verdade doa esta em quem doer. Não
promete ser eterno: deseja, porem, viver o mais que for possível. Por conveniência
econômica de tempo e dinheiro, somente aos domingos se publicará O Pão. É
escusado, portanto, observar que não podemos absolutamente dispensar o seu
auxílio, comprando por 60 réis um nº de cada edição (sic) (O Pão, nº 1; 10 de julho
de 1892. p. 1).

O Programa de instalação já tinha sido publicado nas páginas do jornal A


República, e em outros periódicos do Brasil, tendo uma ótima recepção por sua ousadia e
originalidade. O Programa é a profissão de fé da Padaria. No trecho acima, percebemos a
noção de modernidade dos padeiros. Eles enaltecem o seu afastamento do campo do poder,
apelando para o público leitor, que os auxilie na compra do periódico.
Como era uma preocupação importante, o fornecimento do ‘pão de espírito’ aos
padeiros, há três itens do programa de instalação que merecem ser citados:
IX - Durante as fornadas, os Padeiros farão a leitura de produções originais e
inéditas, de quaisquer peças literárias que encontrarem na imprensa nacional ou
estrangeira e falarão sobre as obras que lerem.
X - Far-se-ão dissertações biográficas acerca de sábios, poetas, artistas, e literatos, a
começar pelos nacionais, para o que se organizará uma lista na qual serão
designados com a precisa antecedência o dissertador e a vítima. Também se farão
dissertações sobre datas célebres da história nacional ou estrangeira.
XI - Estas dissertações serão feitas em palestras, sendo proibido o tom oratório, sob
pena de vaia (AZEVEDO, 1996, p. 60-61).

Esses itens são importantíssimos, pois documentam a ‘leitura crítica’, influência


da Academia Francesa. Alguns padeiros, como Antônio Sales, José Carlos Júnior, fizeram
parte do Clube literário, organizado por João Lopes, outrora, membro da Academia Francesa.
João Lopes trouxe o hábito da leitura crítica da outra agremiação, onde se liam e discutiam as
novidades literárias e filosóficas do século, de forma crítica, como modo de sociabilidade
literária preponderante, para o aperfeiçoamento literário dos padeiros.
99

Rodolfo Teófilo descreve os membros da Padaria, em uma página de


reminiscências:
Via o Almeida Braga em plena virilidade, vigoroso e forte, com a sua lógica de ferro
e fina ‘verve’, a sustentar paradoxos; o Sabino Batista, alma toda afetiva, bom poeta,
a aplaudir as anedotas de José Carvalho, outro belo talento, tendo em grande conta
os seus ascendentes, entre os quais figura D. Barbara, com as suas gargalhadas
homéricas; o Antônio Bezerra, de todos nós o mais velho, uma cabeça de 50 anos
com um cérebro de criança, poeta e historiador, a fazer espirito relatando episódios
cômicos de sua mocidade ou recitando trechos de seu Zé Guedes ou do paletó de
crescimento; o Antônio Sales, magro, moreno e pálido de dispepsia, com seu olhar
cintilante, trincando um charuto a recitar belíssimos versos que nos enchiam de
entusiasmo; o Artur Teófilo, muito franzino, um problema de homem, mas espirito
gigante, a ler em voz fraca e rouca o seu conto – ‘O caso do sargento’ – no qual não
sei o que era mais admirável, a forma ou a concepção; o José Carlos Júnior, nosso
padeiro-mor, pequeno, no qual a natureza descurou do físico, mas em compensação
se esmerou no espirito, a ler com dicção clara as belas páginas de seu romance em
preparação, - ‘Os canhões amarelos’; o Antônio de Castro, muito forte e vigoroso,
acanhado como um colegial a recitar lindas estrões de suas Marinhas; o Ulisses
Bezerra, um magricela, com o qual a natureza foi ingrata quando lhe armou o
arcabouço, mas penitenciou-se de tal injustiça, dando-lhe um bom intelecto, a recitar
as suas ‘Páginas soltas’; o Roberto de Alencar, de nós o mais moço, o nosso
Benjamin, a ler com grande timidez as suas ‘Rosas”; o Lopes Filho, moreno e
magro, um bom poeta, a recitar com ênfase os seus versos ‘O cair das folhas’;
Waldemiro Cavalcante, um grande espírito, republicano histórico, que morreu
desiludido dos homens, da Republica, e que ajudou a faze-la e que acabou
martirizado por uma moléstia cruel, porém com uma fortaleza de animo fora do
comum e uma resignação evangélica, com sua fisionomia simpática e atraente, rosto
muito branco e barba longa à Nazareno, fazendo contraste com a espessa cabeleira
negra, a ler bonitos trechos de prosa apurado estilo; o José Nava, muito alto e magro,
de rosto comprido, muito novo ainda, imberbe, desembaraçado, espirito folgazão, a
ler os seus ensaios literários; o Cabral de Alencar, Cabralzinho, como nós lhe
chamávamos, por ser raquítico, um êmulo do Artur Teófilo no corpo e no espírito, a
estrear com um belíssimo conto tão empolgante que o Almeida Braga, finda a
leitura, que foi ouvida em absoluto silencio, perguntou-lhe: menino, isso foi escrito
por você? Henrique Jorge, outro magricela, pequeno, hoje um reputado maestro, a
executar no violino trechos clássicos, cujas harmonias nos extasiavam; Xavier de
Castro, a recitar os seus belíssimos cromos, quadros do viver do povo, verdadeiras
aquarelas que muito nos deleitavam; o Eduardo Saboia, moreno e folgazão, de
pequena estatura, mas a revelação de um grande espirito, embora adolescente,
recitando alguns capítulos do seu conto e estreia “contos do Ceará”; Luís Sá, um
adorador de Miguel Ângelo; muito desconfiado, sempre meio escondido, com
grande talento, mas pensando que as nossas penas valiam mais do que o seu pincel,
a nos dar belos afrescos, paisagens da nossa natureza; Francisco do Vale, muito
vigoroso, com muita saúde, a recitar um soneto fazendo o perfil do Marcos Serrano
(2009, p. 23-26).

Essa página é especial, porque o Rodolfo Teófilo é um detalhista. Ele descreve


cada padeiro, nos momentos descontraídos da fornada, contudo, engajados, com paixão, nas
leituras de obras e na produção de suas próprias peças literárias. Eles formavam uma plateia
refinada; ouviam atentamente e opinavam e discutiam sobre as dissertações produzidas,
contos, poemas. O sentimento de camaradagem era forte e muitos deles, estrearam por meio
da Padaria. Esses jovens, juntaram-se Antônio Bezerra, o mais velho, e o próprio Rodolfo
100

Teófilo, cujo nome de guerra foi Marcos Serrano, ‘Marcos’, em homenagem ao pai, e
‘Serrano’, em homenagem à região em que vivia, Pajuçara.
O pesquisador Sânzio de Azevedo, apoiando-se nos registros de Antônio Sales,
tanto no “Retrospecto”, quanto na página de Retratos e lembranças (2010), explica que o
movimento teve duas fases.
Podemos dividir, como fez o próprio Antônio Sales, a existência da Padaria
Espiritual em duas fases: a primeira, cheia de espírito, primando, acima de tudo, pela
pilhéria. Era a época em que, da sacada do segundo prédio que serviu de sede ao
grêmio, um dos padeiros, de barbas postiças, fazia conferência para o povo da rua,
tempos em que o Mane Coco embandeirava o Café Java, distribuía aluá aos
fregueses e soltava um imenso balão com o letreiro “Padaria Espiritual”, a fim de
levar ao Padre Eterno a notícia dos feitos do grêmio; faziam-se piqueniques onde os
padeiros, ao som de violinos, conduziam um pão de três metros de comprimento; a
segunda, a partir de 1894, seria aquela em que, deixando de existir, o Forno, as
reuniões se faziam uma vez por semana em casa dos Padeiros... que tinham casa,
como pitorescamente informa Antônio Sales. Esta fase, menos boêmia, mas nem por
isso alheia às brincadeiras e às anedotas, caracterizou-se por maior seriedade nos
Trabalhos e sobretudo pela publicação de quase todos os livros da sociedade (1996,
p. 76-77).

A primeira fase conta-se de seu surgimento, em 1892, e a Padaria se desfez no ano


seguinte. É a fase boêmia, da pilheria e da agitação da vida literária. Nesse período, houve
seis publicações do jornal O Pão. Na reorganização, em 1894, saíram padeiros e somaram-se
ao grêmio, mais 14 padeiros. Com a dissolução do Forno, as fornadas foram revezadas nas
casas dos padeiros, incluindo na de Rodolfo Teófilo, último padeiro mor.
A primeira fase, mais irreverente, demonstrou o seu ódio ao homem burguês.
Sobre as reuniões, Antônio Sales nos relata o problema que a Padaria teve com o seu síndico:
Alguma coisa de extraordinário se passava no forno... Curiosos acotovelavam-se a
perguntar que diabo seria aquilo... [...] O implacável burguês que nós honramos
transformando-lhe um antigo armazém em sala de palestras literárias, declarou-nos
imperturbavelmente que queria que a sua casa voltasse ao estado primitivo e que
portanto o favorecêssemos com a nossa ausência. Para esse fim mandou reconstruir
o nosso saudoso Forno, mas a Providência vingou-se fazendo com que uma chuvada
deitasse abaixo as paredes do prédio (Retrospecto apud AZEVEDO, 2011, p.87).

Vemos nesse trecho, as tensões do campo do poder, pois os homens materiais não
vêm com bons olhos os produtores de bens artísticos. No trecho acima, Antônio Sales trata o
burguês58 como um verdadeiro vilão. Burguês, que os padeiros não tanto pela classe social;
mas, para os homens que não têm afinidades com as letras e com as coisas artísticas e as

58
Segundo, Franco Moretti, “a palavra bourgeoisie; e surgiu na França do século XI, sob a forma burgeis, para
designar os habitantes de cidade medievais (bourgs) que desfrutavam do direito legal de serem ‘livres e isentos
da jurisdição feudal’ (Robert). Em fins do século XVII, a acepção jurídica do termo – ‘liberdade em relação a’ –
foi acompanhada de um sentido econômico que se referia, com a peculiar série de negativas, a ‘alguém que não
pertencesse nem ao clero nem à nobreza, não trabalhasse com seus braços e possuísse recursos independentes’
(Robert)” (2014. p. 16).
101

rejeitam, vendo-as como algo sem utilidade para a sociedade. É interessante, pois muitos
padeiros são oriundos da classe média. Os padeiros acreditavam no aperfeiçoamento
intelectual como meio de ascensão social.
O próprio burguês é um ser paradoxal. O burguês não quer ser chamado por esta
palavra. Se nos reportarmos ao contexto de sua origem, durante a baixa Idade Média, outras
classes como reis, padres e cavaleiros eram chamados, respectivamente, de reis, padres e
cavaleiros.
Conforme Franco Moretti (1950),
O burguês surgiu em algum lugar ‘mediano’, é certo – ‘não era um camponês nem
um servo, mas também não era um nobre’, como Diaz Wallerstein-, porém essa
medianidade era justamente o que ele almejava superar: nascido na ‘condição
mediana’ na Inglaterra do início da era moderna, Robinson Crusoé rejeita a ideia de
seu pai de que essa é ‘a melhor condição do mundo’ e dedica sua vida inteira a ir
além dela. Por que optar por uma denominação que devolve essa classe aos seus
indiferentes primórdios em vez de reconhecer seus êxitos? (2014, p. 17).

O habitus do burguês está ligado à obtenção de dinheiro e ao apego aos bens


materiais. É uma aspiração de sempre ir além, sempre de obter mais. Os intelectuais da classe
média e os burgueses tinham a ambição do progresso; para os primeiros, o progresso era
sinônimo de cultura, enquanto os burgueses se fixavam no acúmulo material.
São muitas as ocasiões no jornal o Pão de ataques irônicos e sarcástico contra a
burguesia, que considerava, segundo os padeiros, a publicação de um jornal inútil em uma
cidade onde poucos sabiam ler. Até para falar mal da Padaria, os burgueses precisavam
comprar o jornal. No artigo d’O pão, foi assinalado que só dois burgueses não adquiriram o
periódico:
A própria Sra. D. Burguesia (tirar chapéu!) comprou O Pão, mesmo a contra gosto,
somente para ter a satisfação de nos xingar. E a meninada sorria por essas ruas de
meu Deus, apregoando em alto e bom som: – O Pão a 60 réis.!. Milhares de curiosos
e admiradores da Padaria invadiram o forno solicitando O Pão, suplicando O Pão
por amor da Arte (CAMINHA, O Pão, Nº 2, 17 de julho de 1892. p. 2).

O Pão circulava na cidade, provocando agitação, quebrando a mesmice da


província e causando perplexidade no público mediano. Adolfo Caminha satiriza o
desinteresse da população em ler O pão, mesmo custando barato.
A pequena capital cearense, habituada ao aluá, à seca e à política, e celebrizada pelo
irrepreensível alinhamento de suas ruas, estremeceu, como alguém que acorda de um
pesadelo enorme. Onde vamos parar com isso? diziam donas de casa ouvindo
apregoar O Pão a 60 réis. – A manteiga está a 2$800, o café subiu a 2$000, e agora é
o pão que sobe! Isso não pode continuar. Lá estava um dia esplendido para
cavalhadas e passeios bucólicos. A luz penetrava todos os recantos; o céu parecia
uma safira colossal, sem mancha, cortada por frechas de oiro que vinham do sol
(CAMINHA, ibidem, p. 2).
102

No trecho acima, Adolfo Caminha ironiza a suposta ‘modernidade’ da capital,


onde os dirigentes só se interessam em modernizar materialmente a cidade, sem cuidar do
aperfeiçoamento intelectual da população.
Os padeiros não eram alienados, eles sabiam a enorme carência letrada da
população cearense. A própria criação do grêmio veio de uma necessidade de ‘fazer barulho’
ou ‘escandalizar a sociedade’, com o fim de chamar a atenção para a falta de apreço pelas
letras. Sem uma literatura que realmente circulasse na sociedade, ou seja, em um espaço onde
existisse um sistema literário, não poderia existir uma sociedade civilizada.
Isso, porém, é preciso assegurar, não nos incomodou absolutamente; ao contrário,
deu-nos muito prazer e nos proporcionou boas gargalhadas, porque nos outros,
padeiros espirituais, sem contestação rapazes bem intencionadas e amigos dos
nossos amigos desejamos precisamente isto: o sucesso, o ruído, a movimentação, o
estímulo, a vida, enfim, sem tons de tristeza, sem ódios e nem paixões vis, e por isto
mesmo sentimo-nos deliciosamente bem ao escrevermos. O Pão, ante a cólera
injusta dos senhores burgueses, longe, bastante longe do olhar obtuso e ameaçador
de Javert, aqui, em nosso confortável e típico forno, onde diariamente á noitinha,
fabricamos tão boas pilhérias, sonetos adoráveis, frases sentillantes e vaporosas
como o fumo de nossos charutos, e muita cousa mais inofensiva (Idem, ibidem. p. 2)

Os padeiros se consideravam revolucionários e a disputa contra a burguesia, de


certo modo, era estimulante. Devemos entender que o ‘ódio ao burguês’, é mais uma atitude
retórica, de pilheria. A luta entre os intelectuais e a burguesia em Fortaleza também estava
alinhada às arenas dos palanques e dos jornais no Rio de Janeiro, espaço das querelas políticas
da ‘nova ordem’.
Enfim, a efervescência cultural da Padaria durou menos de dois anos. Rodolfo
Teófilo nos esclarece que
Essa agremiação de boêmios deu grande incremento às letras pátrias, tornando-se
notável e conhecida em todo o país. Durou pouco. Dissolveu-se por terem-se
mudado de Fortaleza alguns e outros deste mundo. Os que aqui ficaram, em número
de 6 ou mais ou menos, reorganizaram a Padaria, dando-lhe um tom mais sério. Foi
eleito Padeiro-mor José Carlos Júnior, que morria tempo depois e foi por mim
substituído. A segunda fase da Padaria Espiritual foi um sucesso, o que atestam o
jornal “O pão” e uma dúzia de livros publicados em prosa e verso (2009, p. 32).

Até o próprio Rodolfo considerava os jovens rapazes boêmios, caracterização a


que eles nunca se opuseram. Os ânimos esfriaram e muitos padeiros se mudaram, inclusive
para a Capital federal. Ele nos conta que, a partir da reorganização (28 de Setembro de 1894),
a agremiação ficou mais séria. A afirmação do escritor, feita em 1919, era procedente e já
possuía o seu distanciamento histórico.
Na época da Padaria, de modo mais desdenhoso, Adolfo Caminha, em um artigo
que depois seria publicado em suas Cartas Literárias, atesta que mais que séria:
A padaria Espiritual, cujo nome hors ligne tão depressa viajou merecendo aplausos
de toda a imprensa norte-sul, fazendo-se querida até por poetas e escritores
103

consagrados, a Padaria Espiritual vai decaindo, rolando para o nível comum. É hoje
uma sociedade literária grave, “ajuizada”, com uma ponta de oficialismo, sem os
ideais doutro tempo, sem aquela orientação nova, sem aquelas audácias que faziam
dela um exemplo a imitar, alguma cousa superior a um rebanho de ovelhas... Basta
comparar o Programa de Instalação com o Retrospecto. Há naquele mais liberdade
no dizer, mais leveza na forma e o espírito sutil de um novo esmaltando a frase. Por
aí se vê que o forno era um pretexto para a gente não ficar em casa embrutecendo. À
noite, ao acender do gás, lá íamos trincando o cigarro, com uma página inédita no
bolso, palestrar ao forno, discutir livremente Antônio Nobre, Os simples, Verlaine e
Zola (CAMINHA, 1999, p. 130).

Quando publicou o referido artigo, Adolfo Caminha estava no Rio de Janeiro,


centro político e cultural, espaço de maior demanda intelectual do país. Certamente, já
enxergava a cidade de Fortaleza com um distanciamento pessimista. Adolfo critica a atual
formação da Padaria (1894) e, de modo idealista, elogia a agremiação de outrora, enquanto
era um de seus participantes. O tom ácido, combativo, sarcástico, do texto citado, assim como
os demais artigos das Cartas Literárias, remete aos textos de sua coluna no jornal O pão,
onde fazia duras críticas à sociedade fortalezense, chamando a capital de terra de burguês, de
gente incivilizada. Essa acidez crítica é explorada de modo ficcional em seu romance A
normalista (1893).
O escritor afirmou que o grêmio estava decadente, ‘oficializado’, ou seja,
institucionalizado, sem o frescor e a ousadia de 2 anos antes. Percebemos que houve exagero
por parte de Caminha em sua declaração, visto que Rodolfo Teófilo havia explicado que a
Padaria ficara séria, mas não deixou o humor de lado. Na segunda fase, as fornadas deixaram
de ser nos cafés ou nas sedes do grêmio para ocorrerem na casa dos padeiros. Percebemos
também a ideia que ele queria transmitir, o do seu protagonismo na originalidade da Padaria.
Implicitamente, é expresso que, com sua saída, a agremiação perdeu o brilho, a sagacidade, a
irreverência. Contudo, Caminha nunca foi um sujeito simpático e nem foi um dos mais
brincalhões ou divertidos da Padaria (AZEVEDO, 1997, p. 57-66).
A menção aos autores estrangeiros é importante, porque auxilia na compreensão
das dinâmicas das leituras dos padeiros (a semente da leitura crítica). Os cearenses estavam
atentos às novidades literárias portuguesas e francesas. O grêmio se constituía em um espaço
de sociabilidade de extrema relevância, porque era o momento em que se encontravam e
trocavam experiências literárias e intelectuais, e muitas vezes, os companheiros formavam a
primeira plateia das produções artísticas. Numa cidade que crescia materialmente e, mesmo
sendo a capital do estado, era, em seu aspecto geral, culturalmente provinciana, avessa às
coisas do ‘espírito’. A Padaria se configurou como um rico espaço de enriquecimento cultural,
pois, nas palavras de Caminha, “Por aí se vê que o forno era um pretexto para a gente não
ficar em casa embrutecendo”.
104

Na citação, Adolfo Caminha compara o “Programa de instalação” com o


“Retrospecto”, escrito por Antônio Sales. Devemos ter em mente que o programa foi um texto
com ideais artísticos e literários bastante originais, mas eram fruto de brincadeira e de ironia.
Cobrar o cumprimento de todos os itens é um ato muito exagerado. O Retrospecto descreve os
projetos realizados com muita dificuldade e o balanço da agremiação.
Durante a fornada de reformulação da Padaria, Moacir Jurema leu o seu
Retrospecto. Foi acertada a expulsão de Policarpo Estouro pelo crime de se associar à
burguesia, além de Lucio Jaguar e Túlio Guanabara, que partiram para o Rio de Janeiro.
Outros padeiros renunciaram e ficou acertado que as reuniões da Padaria seriam semanais na
casa de algum padeiro.
Na segunda fase, as ambições de romper o campo literário local, por Antônio
Sales, eram ambiciosas. Na reaparição do jornal O pão, em 1º/ 01/ 1895, Nº 07, a vida
literária de Fortaleza se reaqueceu, porque os padeiros estavam dialogando com mais
intensidade com o campo literário do Rio de Janeiro, acompanhando as inquietações
intelectuais e políticas.
A segunda fase de publicações de O pão renderia mais 30 números. Essa
periodicidade garantiu aos padeiros uma forte presença nos debates que repercutiam nas rodas
literárias pelo Brasil afora.
O Pão continua a ter o mais lisonjeiro acolhimento por parte da imprensa do país.
Em termos honrosos se referem a ele “O Pais”, a “Gazeta de Noticias”, da Capital
Federal; a “Renascença” da Bahia; a “Pacotilha” do Maranhão, “O Correio
Mercantil” de Maceió; “O Estado”, do Rio G. do Norte, o “Diário do Maranhão” e o
“Minas Gerais”. O primeiro dos dois últimos, além de uma boa noticia, publica uma
carta que lhe dirigiu o nosso distinto consocio J. F. Gromwell a respeito d‟O Pão. O
segundo nos faz honrosíssimo acolhimento e transcreve uma das nossas “Medalhas”
e a noticia que demos sobre a “Revista da Faculdade Livre de Direito” de Minas
Gerais. Artur Azevedo também nas suas espirituosas “Palestras”, d‟“ O País”, nos
fez lisonjeiras referencias, que muito nos penhoraram (O Pão. Nº: 10, 15/ 02/ 1895.
p. 06.

O item 38 do estatuto previra que a Padaria teria “correspondentes em todas as


capitais dos países civilizados, escolhendo-se para isso literatos de primeira água” As relações
de amizade e de correspondência garantiam uma calorosa repercussão e tinha um relevante
papel de enriquecimento cultural, o que aconteceu com Clovis Beviláqua. Ele foi um ouvinte
das aulas da Academia Francesa e participante do clube Literário. Nessa época, já havia se
formado em Direito, na Escola do Recife e, no Rio de Janeiro, já tinha um grande prestigio
jurídico.
Na Capital, ele recebe os Estatutos da Padaria e envia uma carta que foi publicada
no Pão:
105

Cidadão Moacyr Jurema. Agradeço-lhe cordialmente a remessa dos estatutos da


Padaria Espiritual e afirmo-lhe que estou pronto a concorrer para o desenvolvimento
dessa inteligente associação, cujo nascimento anuncia as fosforescências de um
espirito fino e causticante. Brevemente farei a remessa das obras e folhetos que
tenho publicado. Do P. e amigo Clovis Beviláqua (O Pão. Nº: 01, 10/ 07/ 1892. p.
02).

A publicação da carta de um intelectual do porte de Beviláqua, já célebre na


Corte, denotará para os padeiros os seus êxitos e a sua repercussão internacional. Antônio
Sales relata em Retratos e lembranças que a agremiação recebia semanalmente inúmeras
cartas. O escritor Afonso Celso (1860-1938) dedica o seu romance, Um invejado, à Padaria
Espiritual. O grande poeta parnasiano, Raimundo Correia (1859-1911), visitou os padeiros em
Fortaleza, e desde então, mantinha correspondência com o grupo.
Antônio Sales conta que “Quando transferi minha residência para o Rio de
Janeiro, ao ser apresentado a alguém, vinha invariavelmente a pergunta: É da Padaria? E o
mesmo se deu em São Paulo, em Minas e no Rio Grande do Sul. A importância que tomara
nossa associação nos fez compenetrarmo-nos de nossa responsabilidade, e nos ditou o dever
de correspondermos à expectativa pública” (sic) (2010, p. 21).
A segunda fase foi menos boêmia, porém não foi taciturna. Com atenção no fazer
literário, exceto dos Phantos, de Lopes Filho (1893), esse período foi fértil para a Padaria,
com as publicações: Versos – Antônio da Castro (1894), Flocos – Sabino Batista (1894),
Contos do Ceará, Eduardo Sabóia (1894), Cromos – X. de Castro (1895), Trovas do Norte –
Antônio Sales (1895), Os Brilhantes – Rodolfo Teófilo (1895), Vagas – Sabino Batista
(1896), Dolentes – Lívio Barreto (1897), Marinhas – Antônio de Castro (1897), Maria Rita –
Rodolfo Teófilo (1897), Perfis sertanejos – José Carvalho (1897) e Violação – Rodolfo
Teófilo (1898). Após o fim do grêmio, Rodolfo Teófilo publica O Paroara em 1899, mas
indicava: Biblioteca da Padaria Espiritual (Azevedo, 1996. p. 77).
Durante a sua existência, A Padaria Espiritual contou com três padeiros-mores:
Jovino Guedes (1892-1893), José Carlos Júnior (1894-1896) e o último, Rodolfo Teófilo
(1896-1898).
O ingresso de Rodolfo Teófilo na Padaria foi bastante singular. Apesar de admirar
os padeiros, não se identificava com o caráter boêmio. O farmacêutico era um homem sério e
recluso, ao invés da vida nos cafés, preferia o sossego de seu sítio no Alto da Bonança, em
Pajuçara. Por muita insistência de Antônio Sales, Rodolfo ingressa na reorganização do
Grêmio. Segundo Mota, “o comparecimento de Rodolfo Teófilo à fornada em casa de
Antônio Sales foi considerado um caso extraordinário, atendendo-se a que havia muitos pares
de anos que ele não punha o pé fora de casa, à noite ” (1994).
106

Em 1894, a Padaria deixara de ser uma novidade e estava integrada à vida


literária e social da cidade. E entre 1895 e 1896, o Forno, como sede específica da Padaria,
deixou de existir, as reuniões foram organizadas na casa de algum padeiro, o que aconteceu
com a casa de Rodolfo Teófilo, padeiro-mor, sediou muitas fornadas. A primeira fornada na
casa de Rodolfo Teófilo ocorreu em 14 de agosto de 1895 e o novo espaço modificou a
sociabilidade das reuniões da Padaria, pois, a qual segundo Antônio Sales:
com a presença de senhoras e de cavalheiros que metiam empenhos para assistir às
nossas sessões, liam-se versos e prosa, contavam-se anedotas, fazia-se música e tudo
acaba em torno de uma mesa de chá e bolos [...] Afinal Rodolfo Teófilo, que, ao
contrário das corujas, não saía de casa à noite, tendo sido eleito Padeiro-mor, deu à
nossa associação feição séria. Sob a direção de Rodolfo Teófilo, a casa deste tornou-
se o forno oficial e único da Padaria: reuníamos ali sob a égide da santa esposa do
nosso patriarca, que assumiu as funções de nossa padroeira intelectual e domestica.
D. Raimundinha era uma espécie de mãe espiritual de nós todos e com uma
dedicação e solicitude infatigáveis nos acolhia em sua casa uma vez por semana e
preparava uma bela e copiosa mesa de doces, que era a parte final de nossas sessões
(2010, p. 20).

As reuniões agora eram mais sérias, devido o caráter do anfitrião, que ocorriam,
tanto na residência de Fortaleza, quanto na de Pajuçara. Nesse sentido, a sociabilidade mais
familiar materializou o lema do grêmio ‘amor e trabalho’ levado a todo o vapor. Como o Café
Java era um espaço fronteiriço, paratópico, na Praça do Ferreira, espaço cultural e econômica
da cidade, a casa de Teófilo, na Pajuçara, também era um espaço paratópico, que realmente
não estava inserida no Centro da cidade. Nesse ‘pequeno mundo’, afastado e ao mesmo tempo
parte da sociedade, os laços afetivos e intelectuais se entrelaçam, fermentando a produção
literária daquela época.
Rodolfo Teófilo, nesse momento da agremiação, participa de vários números do
periódico. Nos números 10 e 11, apresentou um artigo científico, “As Manchas do Sol e as
Secas”. No número 18, publica trecho do romance Os Brilhantes, em outros números quatro
excertos de Maria Rita, e diversos poemas que serão publicados no livro Telésias.
Com a morte de José Carlos Júnior, Teófilo fora eleito como padeiro-mor e no
livro de atas, assinado no dia 19 de julho de 1896 por Moacir Jurema (A. Sales), atestando
que “além das muitas resoluções já consignadas, devo registrar também que as fornadas se
realizarão de hoje em diante às quartas-feiras e que o forno fica montado definitivamente em
casa de Marcos Serrano, que não é homem para andar acima e abaixo” (2015, p. 78).
E nessa mesma sessão, como assinala o escrivão
à vista do procedimento pouco correto e mesmo gravemente desleal que têm tido
para com esta associação, decretou-se a eliminação dos Padeiros Eduardo Saboia e
Adolfo Caminha, ora residentes na Capital Federal. Votou contra a exclusão do
primeiro. Concordou-se na readmissão de Lúcio Jaguar (Tibúrcio de Freitas) visto
107

ter-se averiguado a sua não coparticipação nos atos reprováveis que deram lugar à
expulsão de T. Machado – único autor de tais safadezas (ibidem, p. 78).

As fornadas na casa de Teófilo também revelam o processo de escrita e recepção


de seu romance Maria Ritta, que motivará uma polêmica contra Rodrigues de Carvalho.
Capítulos do romance eram lidos e, posteriormente, incluídos no Pão, que no seu processo de
escrita, ainda se chamava “História de um rapto”. Entre 1896 a 1897, nas fornadas, as atas
assinalaram a leitura para os padeiros de onze capítulos do “romance em preparação”.
Após a publicação do livro em 1897, no ano seguinte, na última reunião dos
Padeiros, no Alto da Bonança, “o padeiro-mor com feição de Jeová disse: amigos aqui está a
Maria Rita, e todos em contrição devota ergueram-se para ouvir a palavra do Maioral dos
Padeiros e foi lido o último capítulo do interessante romance, que tanto há de agradar o
público” (2015, p. 98).
Com a dissolução da Padaria (20.12.1898), Teófilo ficou como guardião do
estandarte da Padaria. Após a morte do escritor, em 1932, Antônio Sales ofereceu o estandarte
ao Dr. Eusébio de Souza, com uma carta, em que se lê “...ficou o estandarte sob a guarda de
Rodolfo Teófilo, ou, mais exatamente, de sua santa esposa que foi , na segunda fase da
Padaria, a sua patrona e entusiasta e abnegada” (Apud SOMBRA, 1997).
Foi durante o seu período na Padaria, que Teófilo se consolidou como romancista,
publicando Os Brilhantes (1895), Maria Ritta (1897) e, em 1898, a novela Violação, traz o
distintivo da Padaria Espiritual e, na primeira página, esta dedicatória: ”Aos meus
companheiros da Padaria Espiritual”.
Através das páginas d’O pão, Rodolfo Teófilo tem uma famosa disputa com
Adolfo Caminha, que criticara o romance A fome, após a sua publicação. Com os artigos “A
normalista” (números 19, 29, 21, 22 e 23) e “Cartas literárias” (números 25, 26 e 27),
publicados no periódico em 1895, ataca as obras literárias e a postura intelectual de Adolfo
Caminha. Essas polêmicas serão examinadas com mais vigor em capítulo específico dessa
pesquisa.
No Alto da Bonança, em Pajuçara que ocorreram as três últimas fornadas da Padaria,
encerrando a sua existência: 26 de abril, 27 de agosto, e 20 de dezembro, em 1898. A última
fornada foi realizada em casa de Marcos Serrano (Rodolfo Teófilo) e estiveram presentes
Lopo de Mendonza (Artur Teófilo), Flávio Boicininga (Francisco Ferreira do Vale), Yvan
d’Azhoff (Valdemiro Cavalcante), Sátiro Alegrete (Sabino Baista), Anatólio Gerval (Lopes
Filho) e Frivolino Catavento (Ulisses Bezerra)
108

Sobre o término da agremiação, Antônio Sales nos relata de modo triste e


nostálgico:
A ‘Padaria’ ainda viveu penosamente até o fim de 1898; a derradeira ata escrita por
Waldemiro Cavalcanti (Ivan d’Azoff) é de 20 de Dezembro desse ano, e tem apenas
as assinaturas de Rodolfo Teófilo, dele Waldemiro, de Ulisses Bezerra, de Sabino
Batista e de Lopes filho, dos quais existe apenas o primeiro. E então terminou a bela
e curiosa aventura que foi a Padaria Espiritual, não sem deixar uma tradição de
inteligência e de graça em nossas letras e uma funda e indelével saudade no coração
de seus membros sobreviventes (SALES, 2010, p. 23).

Antônio Sales tinha consciência de que a Padaria entrou no circuito intelectual


regional e nacional, ampliando o restrito sistema literário da capital cearense.
Paralelo ao advento da Padaria Espiritual, outra associação surgiu, em 1894, o
Centro literário. Com o aspecto mais sério, publicou a revista Iracema. Entre os seus membros
fundadores estavam Juvenal Galeno (1836-1931), Temístocles Machado (1874-1921), Pápi
Júnior (1854-1934), Álvaro Martins (1868-1906), Pedro Muniz (1866-1898), Rodolfo
Teófilo, José Olímpio (1875-1900), Ulisses Sarmento (1875-?), Jovino Guedes (1859-1905),
Quintino Cunha (1875-1943), Frota Pessoa (1875-1951), Eduardo de Saboia (1876-1918).
Nesse mesmo ano (1894), com a vida literária mais plena e integrada ao cotidiano
da cidade, o que não significou uma democratização das letras, é organizada a Academia
Cearense, institucionalização da literatura, de que, inicialmente Antônio Sales era opositor.
Na primeira fase59, que durou até 1922, contou como fundadores: Guilherme Studart (1856-
1938), Justiniano de Serpa (1856-1923), Farias Brito (1862-1917), Drummond da Costa (?-?),
José Fontenele (1869-1905), Álvaro de Alencar (1861-1945), Benedito Sidou (1864-1926),
Franco Rabelo (1861-1929), Antônio Augusto (1852-1930), Pedro de Queirós (1854-1918),
Alves Lima (1869-1958), Valdemiro Cavalcante (1869-1914), Tomás Pompeu (1852-1929),
Raimundo de Arruda , (1863-1934), Álvaro Mendes (1863-1940), José Carlos Júnior (1860-
1896), Virgílio de Morais (1845-1914), José de Barcelos (1843-1919), Antônio Bezerra
(1841-1921), Eduardo Studart (1863-1955), Adolfo Luna Freire (1864-1953), Eduardo
Salgado (1864-1934), Alcântara Bilhar (1848-1905), Antonino Fontenele (1863-1937),
Antônio Teodorico (1861-1939), Padre Valdivino Nogueira (1866-1921), e Henrique
Théberge (1838-1905).
Os estatutos da Academia, escritos por Justiniano de Serpa, Pedro de Queirós e
Valdomiro Cavalcante, foram lidos e aprovados na sessão de 26 de Setembro de 1894,
durante a fundação da associação:

59
Posteriormente, adotou o nome de Academia Cearense de letras e teve quatros fases: primeira - de 1894 a
1922; a segunda - de 1922 a 1930; a terceira - de 1930 a 1951 e a quarta - de 1951 até hoje.
109

a) promover o exame das doutrinas ou questões literárias e científicas de atualidade,


por meio de pareceres, memórias, livros, etc., que seriam entregues à publicidade, ou
por discussões, palestras e conferências, cujos resumos ficariam exarados nas atas
das respectivas sessões; b) acompanhar o movimento intelectual dos povos cultos,
por meio de exposições escritas das principais teorias, problemas, ou questões
tratadas em revistas especiais ou obras nacionais e estrangeiras; c) esforçar-se por
alargar a esfera da instrução superior e secundária do Ceará, devendo criar, manter
ou auxiliar institutos profissionais e técnicos sempre que lhe fosse possível; d)
procurar levantar a instrução primária, provocando pela imprensa ou oralmente a
atenção dos poderes públicos para os variados problemas da educação, da
pedagogia, dos programas e, em geral, dos assuntos que a ela se prendem; e)
fomentar o gosto artístico e literário pelos meios ao seu alcance (BARREIRA, 1948,
p.180-181).

Observamos as mesmas ânsias civilizatórias na busca pelo aperfeiçoamento


cultural e pela atualização e difusão das novidades literárias, filosóficas e científicas. O
espelho civilizatório ainda era a Europa, e a Academia era uma instituição que lutaria para
buscar o progresso para a nossa terra. Por isso, é uma preocupação da Academia a instrução
pública, por meio de um elevado ensino em todos os níveis, do primário ao nível superior.
Rodolfo Teófilo entrou na Academia Cearense de Letras, no dia 8 de setembro de
1922, no período da primeira reorganização, ocupando a cadeira número 36. Na segunda
reorganização, em 1930, passou para o quadro de honra e, em 1951, foi escolhido para
patrono da cadeira número 33.
No contexto de sua atuação, nas três primeiras décadas do século XX, Rodolfo
Teófilo manteve uma relação conturbada com o campo do poder, devido a sua luta por justiça
social, pelo seu combate à seca, pela Campanha de vacinação e pelo seu oposicionismo à
Oligarquia Accioly. Mas, o seu maior esforço era ser reconhecido como literato no interior do
campo literário, local e nacional.
Em Variola e vacinação no Ceará (1905), Rodolfo Teófilo descreve a sua luta
contra a terrível peste e contra os descasos e perseguições do governo acciolyno. O mesmo
desígnio é relacionado à literatura, como ele mesmo escreve nos textos de polêmica com
Adolfo Caminha.
Essa pequena profissão de fé é uma síntese de um ideal moderno. A sua índole
intelectual cresceu a partir de leitura das ideias modernas, idealizadas singularmente após o
Iluminismo e em um contexto que aspirava ser uma civilização nos moldes da Europa.
Como intelectual engajado, exerceu dois papéis, o do cientista sanitarista que
realizou a sua ação na esfera social e o do letrado, que atuou como romancista e jornalista,
produzindo bens simbólicos.
Mesmo sendo um homem sério, não atraído pela boêmia da vida literária de
Fortaleza, foi justamente com os padeiros que Rodolfo mais se identificou por meio da
110

sociabilidade literária, no sentido de um convívio camarada, às vezes polêmico em prol de


um bem comum: o aperfeiçoamento cultural.
O interesse pela leitura crítica como um fator de aperfeiçoamento, na Padaria
Espiritual encontrará respaldo e interesse, pois muitos dos padeiros pertenciam a uma pequena
classe média emergente. Antônio Sales, em Retratos e lembranças, nos diz que “a ‘Padaria’ se
interessava por tudo o que dizia respeito à letras e às artes [...] já não era somente uma força
mental em nosso meio: era também uma força social pela simpatia que a cercava,
conquistando todas as boas vontades e abrindo-lhe todos os corações e todas as portas”
(SALES, 2010, p. 22).
Esse trecho é interessante, pois percebemos que nem a Padaria Espiritual, nem o
Clube Literário ou a Academia Francesa e demais grêmios modificaram a realidade social da
cidade. Ser um homem de letras era algo bastante restrito em uma província marcada pelo
analfabetismo e pela miséria. Se em outras regiões do Brasil, havia também a ânsia de se
modernizar, no Ceará, além da adversidade socioeconômica, havia o problema endêmico da
seca. Muitos dirigentes afirmaram que o Ceará não será civilizado devido à seca. Contudo, o
problema do atraso cultural e material do estado é algo bem mais complexo. Ao denunciar os
motivos das mazelas do povo cearense perante as secas, Rodolfo Teófilo foi categórico “O
Ceará é uma terra condenada mais pela tirania dos governos do que pela inclemência da
natureza” (TEÓFILO, 1919. p. 31).
Se analisarmos os discursos políticos, intelectuais e literários de agremiações e
periódicos literários, percebemos uma discrepância na defesa das ideias modernas
eurocêntricas e a própria realidade do estado. A Padaria Espiritual escandalizou a sociedade
fortalezense, pois esta era manifestação muito específica de um grupo seleto, uma ‘tribo’, na
concepção de Maingueneau. A literatura era um produto de luxo.
Por mais que os padeiros bradassem contra a classe burguesa, como classe
artística não possuíam uma independência material. Nesse período, dificilmente um
intelectual poderia viver somente de literatura em Fortaleza. Falamos de campo literário, mas
a cidade não tinha editoras e os livros dos escritores em montados em tipografias ou editados
por livrarias. Na década de 1890, a vida literária era superior ao diminuto mercado livreiro
da cidade.
A solução encontrada por muitos escritores locais que queriam viver de atividade
intelectual era se mudar para o Rio de Janeiro ou São Paulo, como Paula Ney, Antônio Sales,
Adolfo Caminha, entre outros. Os campos de atuação eram o jornalismo e a política e até
havia mais opções de serviços burocráticos, na Capital federal.
111

O maior paradoxo dos padeiros, o que caracteriza sua paratopia, era que eles
queriam ser reconhecidos como literatos em uma sociedade, a qual, apesar do repentino
aformoseamento urbano e econômico, ainda estava eivada de valores provincianos e materiais
e os enxergava como boêmios.
Além da busca pelo aperfeiçoamento intelectual, apesar do fazer artístico ser
marginalizado pela burguesia local, Rodolfo Teófilo prosseguiu em sua luta para penetrar na
difícil dinâmica do campo literário regional e nacional.
Nesse contexto, de uma rica e conturbada vida literária, os escritores, a partir das
ideias modernas, cultivaram um discurso crítico. Na arena simbólica do campo literário,
Rodolfo e os outros escritores, em defesa de suas obras, efetuaram um pugilismo literário.
Rodolfo, para defender sua produção literária e para julgar e atacar as obras de outros
escritores, partiu de algumas ideias de crítica literária. Esse ramo dos estudos literários estava
em efervescência no Brasil, a partir da repercussão das ideias modernas. O desenvolvimento
da crítica literária no Brasil será tema do nosso próximo capítulo, em que o objetivo desta
pesquisa – Rodolfo Teófilo, sua obra, seu contexto – será posto em relação de diálogo com os
nomes que se integraram ao desenvolvimento deste tipo de discurso: o da Crítica.
112

2 ROUND - A FORMAÇÃO DA CRÍTICA E DA HISTORIOGRAFIA NO


BRASIL

Como homem de letras e cientista, Rodolfo Teófilo, teve uma longa e atuante
vida. Ele publicou mais de duas dezenas de livros que repercutiram em todo o Brasil,
inclusive no Rio de Janeiro. Sua obra, composta por poemas, crônicas, contos, romances,
livros de divulgação científica e historiográficos, gerou uma importante e contraditória
fortuna crítica. Contraditória, porque recebeu ataques e elogios. Devido ao seu
posicionamento político, que alçava o combate às injustiças, o desvelamento da verdade, a
defesa dos oprimidos e pelo seu apelo messiânico-iluminista, sofreu vários ataques
discursivos, materializados por meio de livros e de periódicos.
Ao longo das décadas de 1910 e 1920, Rodolfo Teófilo esteve envolvido em
diversos conflitos no campo do poder cearense60, publicando diversas obras historiográficas,
memorialistas, científicas e de denúncia, tais como: Secas do Ceará: segunda metade do
século XIX (1901), Varíola e vacinação do Ceará (1904), Violência (1905), Memórias de um
Engrossador (1912), Libertação do Ceará (1914), Sedição de Juazeiro (1915), A seca de
1915 (1919), Varíola e vacinação no Ceará (1905-1909) (1919) e A seca de 1919 (1922). Os
livros foram diversificados, no entanto apresentam pontos em comum: são frutos da ação
política e sanitarista de Rodolfo Teófilo, escritos com o intuito de defender a terra cearense e
seu povo, da injustiça, do descaso, da corrução, dos desmandos políticos existentes no estado.
No âmbito regional, os combates políticos entre Rodolfo Teófilo e seus inimigos
se estenderam até o fim de sua vida. Sobre a recepção de sua obra literária, em relação ao
resto do país, especialmente à Capital da República, a crítica não ficou indiferente ao escritor.
Na construção de seus textos ficcionais, Rodolfo Teófilo não se preocupou em ser
artesão da palavra, no sentido de trabalhar a linguagem, de maneira retórica e adornada. Ele
adotou o cientificismo como seu estilo literário. O engajamento político de sua atividade
intelectual, o experimentalismo, a busca pela verdade foram canalizados para o estudo do
homem e da terra cearense.

60
As duas primeiras décadas do século XX foram marcadas por uma luta política acirrada entre a oligarquia
Accioly e Rodolfo Teófilo. Juntamente com Violência (1905), ele publica uma série de obras que denunciam os
descasos do velho comendador: Memórias de um engrossador (1912) e Libertação do Ceará (1914).
113

A sua escritura61 é oriunda de seu particular trabalho com a linguagem, com base
nas suas leituras de matrizes europeias, provindas da sua formação em Farmácia. Essas
matrizes são o positivismo, o naturalismo, o determinismo e o cientificismo. A sua escritura
nasce de uma confrontação do cientificismo zolariano com o regionalismo tropicalizante,
expressão dos usos e costumes do povo cearense.62
Portanto, como literato, desenvolveu uma escritura naturalista-regionalista. Das
variadas atividades de letras que exerceu, a crítica literária profissional nunca foi uma delas.
Os textos de crítica que escreveu na imprensa local e em outros estados tiveram um fim
específico: de defender os seus livros e de atacar os adversários literários. Algumas polêmicas
literárias famosas foram reunidas em livro e publicadas com o sugestivo título de Os meus
Zoilos, em 1924.
Nesse momento da pesquisa, não entraremos na análise de suas polêmicas.
Todavia, uma delas nos indicará pontos que serão investigados nesse capítulo. A polêmica
que abre o livro é contra Osório Duque Estrada (1870-1927). O crítico e poeta carioca teceu
comentários em sua sessão ‘Registro literário’, no periódico Correio da Manhã, sobre a obra
A libertação do Ceará (1915) que não agradaram o seu autor. O crítico diz de modo
desdenhoso que ‘não é preciso perder muito tempo em analise e comentários’, pois bastava a
leitura de apenas um trecho para ter uma ideia completa da obra (apud TEÓFILO, 1924. p.
16).
Rodolfo Teófilo, bastante indignado, nos declara que a crítica “me despertou o
desejo de ler os seus livros e saber o valor de sua individualidade literária” (1924, p. 5). Ele
não teve receio de desafiar o referido crítico, que tinha uma pena famosa e temida,
apelidando-o com vários termos, sendo o principal, o “Papão literário”.
No texto, Teófilo contextualiza os conflitos entre a literatura produzida no Rio de
Janeiro, a capital política e intelectual do Brasil, e o restante do país. O que interessa a nós é
um trecho, no qual ele esclarece sua opinião sobre a crítica literária contemporânea:
Não temos críticos. O Brasil ainda é muito novo para ter um Taine. Os três literatos
nossos que se davam a esses estudos eram Araripe Jr. Júnior, José Veríssimo e

61
Sobre escritura, diz-nos Roland Barthes que “é uma realidade ambígua: de um lado, nasce incontestavelmente
de uma confrontação do escritor com a sociedade” (BARTHES, 1974. p. 125). É outra realidade, independente
da língua e do estilo do escritor. A escritura liga o escritor a sua sociedade, de modo conturbado,
conscientizando-nos de que não existe literatura sem uma moral da linguagem. Para um maior esclarecimento
acerca das categorias estilo, língua e escritura, consultar a seguinte obra de Roland Barthes: Novos ensaios
críticos/O grau zero da escritura. Trad. Heloysa de Lima Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São
Paulo: Cultrix, 1974.
62
Sobre a discussão do estilo e escritura de Rodolfo Teófilo, consultar a pesquisa: PINHEIRO, Charles Ribeiro.
Rodolpho Theophilo: a construção de um romancista. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará,
Programa de Pós-Graduação em Letras, Fortaleza, 2011.
114

Sílvio Romero. A todos faltavam as qualidades do crítico francês. Nenhum deles


reunia o talento, o saber e o critério. A cada um faltava um desses atributos. Araripe
Jr. Júnior era o que se aproximava mais dos processos da crítica moderna, mas
pecava pelo otimismo. José Veríssimo era mais filólogo do que crítico, sempre
preocupado com minudências gramaticais, como um mestre-escola antigo, armado
de férula, procurando a colocação dos pronomes; enfim apreciando um livro parecia
estar corrigindo a prova de português de um colegial. Sílvio Romero, muito culto e
muito competente, mas completamente falho de senso crítico, era um estouvado e
um apaixonado juiz (1924. p. 17).

Há nesse trecho muitas informações que nos iluminam para as reflexões


preliminares dos caráteres das polêmicas literárias no Brasil, na passagem do século XIX para
o XX. No início do trecho, Rodolfo menciona que o Brasil não possui crítica literária. Para
tecer tal afirmação, é necessário que o escritor tenha uma ideia prévia do que seja crítica
literária, a especificidade de sua função e uma ideia do contexto histórico cultural da
inteligência brasileira. Será que no início do século XX, o Brasil não possuía um crítico
literário, ou seja, um intelectual que se ocupasse especificamente do exame das obras
literárias publicadas? Qual o conceito de crítica literária para Rodolfo Teófilo? Havia um
modelo de crítica predominante?
Outras informações interessantes: para balizar a sua opinião, o escritor cita três
nomes - Araripe Jr. Júnior, José Veríssimo e Sílvio Romero. Ele caracteriza cada um desses
intelectuais brasileiros, tomando como modelo, o crítico francês Hippolyte Taine (1828-
1893). Rodolfo menciona que os literatos brasileiros citados ainda não atingiram o patamar
de uma crítica moderna. Araripe Jr. Júnior, apesar das aptidões intelectuais, era otimista; José
Veríssimo estava mais preocupado com os aspectos gramaticais das obras e Sílvio Romero era
desprovido de senso crítico e tomado pelas paixões.
Os três nomes citados eram os maiores pensadores da literatura, até então, e
Rodolfo afirma que nenhum deles se aproximou da altura de Taine. Se o autor, mesmo não
sendo um crítico profissional tinha conhecimento do pensador francês, então qual era o grau
de penetração do método dele na intelectualidade brasileira? Taine era sinônimo de crítica
moderna? Ele era uma unanimidade entre os nossos críticos?
Rodolfo Teófilo demonstra, no exemplo citado e em suas polêmicas, estar a par da
crítica exercida por Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Jr. Júnior, considerando o
último, o que mais se aproximava da crítica moderna. Para a construção de seu discurso
crítico, Rodolfo Teófilo, mesmo com ressalvas, apoiou-se em algum dos projetos críticos
desses intelectuais ou seguiu um caminho particular?
115

Visto que a polêmica literária é um subgênero da crítica menos simpática e


específica do contexto da vida literária (Broca, 1960), devemos, então, entender o que é a
crítica literária, qual a sua função e a sua formação nesse contexto sócio histórico.
Nesse capítulo, esses questionamentos e os outros mencionados, anteriormente,
nos guiarão em nossa reflexão, ao tentar entender qual foi o grau de influência da obra de
Hippolyte Taine63, tendo como principal eixo sua História da literatura inglesa, na formação
dos projetos de crítica literária brasileira realista. Dada a complexidade de tal
empreendimento, examinaremos, suscintamente, os projetos críticos dos três autores citados,
Araripe Jr. Júnior, José Veríssimo e Sílvio Romero. Dos dois primeiros citados examinaremos
seus textos ensaísticos e historiográficos, assim como o de Sílvio Romero, contudo, sobre
este, o nosso interesse são os textos sobre literatura, deixaremos de fora os seus trabalhos
sobre Filosofia e Direito. As obras em discussão serão: de Sílvio Romero, História da
literatura brasileira, 2 volumes (1888); José Veríssimo, História da Literatura Brasileira
(1916) e Estudos de literatura brasileira, 6 séries (1901-1907) e Araripe Jr. Júnior, Obra
Crítica (1958-1966), uma publicação em cinco volumes, sob a direção de Afrânio Coutinho.

2.1 O que entendemos por crítica literária?

As matrizes da crítica e da historiografia literária brasileira, que fundamentaram e


sistematizaram uma metodologia de investigação do fenômeno literário, no final do século
XIX, foram Sílvio Romero, Araripe Jr. Júnior, José Veríssimo. Os três compartilharam uma
visão de mundo construída por meio do materialismo e do cientificismo. Na construção de sua
metodologia crítica, Sílvio pendeu mais para os aspectos sociológicos, enquanto os outros se
aproximaram mais de uma visão estética da literatura.
Contudo, antes deles, as primeiras manifestações da crítica literária brasileira
estavam ligadas ao desejo de autonomia política e cultural, após o processo de independência
do Brasil (1808-1822), e, posteriormente, à influencia do pensamento e da estética romântica
no país.

63
O texto capital para a sistematização da crítica determinista é a “Introdução” Histoire de la littérature
anglaise (1864). Em língua portuguesa, o texto faz parte da coletânea Uma ideia moderna de literatura: textos
seminais para os estudos literários (1688-1922), publicada em 2011, pela editora Argos, organizada por Roberto
Acízelo de Souza.
116

Antes de percorrermos, sucintamente, o desenvolvimento dos projetos críticos no


Brasil durante o século XIX, é preciso entender o que seria crítica literária. Na citação de
páginas anteriores, Rodolfo Teófilo informou que o Brasil não possuiu crítica literária, que
ainda não atingimos um patamar civilizatório para termos um Taine. Mas, se a função da
crítica é apreciar as obras literárias, como indica sua etimologia grega 64, ela implica, por sua
vez, uma reflexão constante sobre os critérios de seus julgamentos. Criticar é por o objeto em
crise. Em toda sociedade em que há o fenômeno literário, há algum senso ou modelos de
julgamento, inerentes às atividades espirituais, conectados à cultura e à época.
José Luís Jobim nos esclarece que:
Cada época tem seu quadro de referência para identificar a literatura, tem suas
normas estéticas, a partir das quais efetua julgamentos. Em outras palavras, cada
época tem suas convenções, valores, visões de mundo, formando um certo universo,
cujos elementos interdependentes mantêm entre si relações associativas e funcionais,
em constante processo. Uma obra pode ser considerada literária (ou não) em função
de um julgamento que, em cada período, é consequência das normas estéticas a
partir das quais se julga. Ou seja, considerar um texto como literário (ou não)
depende do contexto. Evidentemente, isto não implicaria na existência de algo “ o
contexto “ que fosse externo ao texto, que o determinasse. Não haveria uma
oposição dentro versus fora, não existiriam compartimentos incomunicáveis,
separando o texto do contexto, que não seria visto como “externo” em relação ao
“interno” do texto. Poder-se-ia, isto sim, dizer que o contexto está “dentro”, já que
determina as próprias fronteiras do que pode vir a ser considerado como texto. Em
outras palavras, o contexto não se reduziria a envolver ou circundar o texto, porque,
na medida em que fornece as normas a partir das quais se delimita o que é texto,
torna-se também constitutiva deste (sic) (1992, p. 129-130).

Portanto, a crítica está vinculada às ideias convencionadas de literatura e às visões


artísticas de determinada época. O contexto em que a obra é elaborada é bastante importante,
mas ela o distorce, elabora novas perspectivas, tira o véu do senso comum, deixando o próprio
contexto descortinado. Portanto, a crítica tem a sua historicidade, assim como a própria
literatura.
Não há valores universais e absolutos na arte, modelos estéticos, tampouco
modelos de julgamento absolutos. O texto literário vária em cada cultura, em cada época. A
crítica nasce de uma tomada de consciência de leitores críticos que se ocuparam em analisar
as obras escritas, aplicando critérios baseados nos modos de julgar de sua determinada época.
Na Grécia antiga, o filósofo Aristóteles foi um dos primeiros a submeter as obras
poéticas de sua época (textos líricos e dramáticos) ao exame do espírito65, enquanto ensinava

64
O termo ‘crítica’, vem de ‘kritikos’ e designava a própria faculdade de pensar, de escolher, da faculdade de
atribuir valor e de discernir, tanto do legislador, quanto do médico ou do filósofo (ROGER, 2002. p. 7).
65
Seu mestre, Platão, havia rejeitado os poetas em sua República, pois estes seriam sujeitos que trariam
‘desordem e mentira’ à sociedade com seus textos que traziam uma imitação imperfeita da realidade, um desvio
de nível inferior da sua postulação das ideias puras.
117

em Atenas, entre 334 a 323 a. C. Na sua obra didática, Poética, interessou-se no exame das
obras da “arte poética propriamente ditas”, levando em consideração o efeito estético que tais
obras produziam nos leitores ou expectadores.
Cada um dos gêneros por ele estudados, ‘a epopeia, a tragédia e a comedia’ não
expõe um saber comum ou científico, por meio da linguagem, ‘imitam’, isto é, recriam a vida.
Nem todos são poetas, pois “costuma-se dar esse nome a quem publica matéria métrica ou
científica em versos, mas, além da métrica, nada há de comum entre Homero e Empédocles;
por isso, o certo seria chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, antes naturalista do que poeta”
(ARISTÓTELES, 2007, p. 20).
Empiricamente, o público daquela época tinha consciência do que era poético ou
não. A poesia era uma mimese da vida, o seu valor estava justamente no seu distanciamento
do real. O pensador organiza os primeiros critérios do que era uma obra digna de ser chamada
de poética, além de seus efeitos específicos no público (catarse66). Esse estudo foi pautado na
observação empírica de uma prática cultural que ocorria entre os povos gregos, há séculos.
Todavia, ele não tinha o intuito de estabelecer regras de produção literárias ou de julgamento
crítico. Na Poética, Aristóteles constrói o primeiro cânone da literatura ocidental (Homero,
Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, Aristófanes etc.), além de descrever o funcionamento de alguns
gêneros poéticos, inspirando nos modelos classificatórios das ciências naturais. Séculos
depois, na Roma antiga, a civilização que se influenciou em muitos aspectos da cultura grega,
a crítica ganhará novas perspectivas, incluindo o acréscimo de elementos da retórica.
Durante o desenvolvimento do pensamento ocidental, a atividade de crítica
literária acompanhou as transformações e revoluções que ocorreram na História. Em muitos
momentos se aproximou da perspectiva cristã, ora de aspectos mais materialistas, ora se
espelhou nos modelos estéticos do mundo greco-latino, ora esteve ligado mais aos aspectos
retóricos.
No decorrer do tempo, a crítica nos ensinou e ensina a efetuar profundos
questionamentos em torno da obra literária. Entendemos que o exercício crítico deve atuar de
modo contextual, deve colocar as obras em relação umas com as outras, situá-las, observar o
seu provável posicionamento no conjunto histórico das obras literárias. A literatura é mais do

66
De acordo com Aristóteles, na Poética, catarse (do grego κάϑαρσις, kátharsis, “purificação”, derivado de
καϑαίρω “purificar”) é um termo utilizado, no contexto da tragédia, para descrever um efeito estético que causa
um sentimento de terror e piedade nos expectadores, provocados pelas ações das personagens trágicas, em sua
trajetória da ventura para o infortúnio. Exemplo: Édipo-Rei, de Ésquilo. Após uma intensa investigação, o
protagonista, outrora auspicioso rei de Tebas, descobre que assassinou o pai e desposou a mãe, gerando quatro
filhos. Desesperado, como autopunição, fere os olhos, ficando cego.
118

que um conjunto de obras, é um sistema de relações, um campo de tensões, onde o poeta gere
uma rede de afinidades e oposições.
Como nos ensina Umberto Eco67, o texto literário é ‘aberto’, ao longo do tempo,
suscetível a diferentes leituras críticas, inventivas. Cada momento histórico nos oferece alguns
pontos para efetuarmos leituras que atualizam a mensagem do texto, enriquecendo o seu
registro sincrônico. O crítico não deveria esquecer que o seu objeto de estudo é construído por
uma arquitetura textual. A sua atividade é metalinguística. A estrutura verbal de seu objeto
determina os limites do seu alcance. A literatura constrói um mundo imaginário que não tem
existência fora da linguagem. O texto literário tem uma linguagem que expressa um número
diversificado de significados que recriam, exageram, focalizam contradições da nossa
realidade.
A crítica deve levar em consideração a historicidade da obra literária, a fim de
ultrapassar o impressionismo da primeira leitura do texto. A História da literatura não pode
ser apenas uma catalogo cronológico de obras, deve-se apoiar em um pressuposto crítico-
teórico.
René Wellek nos diz que
a história literária também é altamente importante para a crítica literária tão logo esta
ultrapassa o pronunciamento mais subjetivo do "gosto" e "não gosto". Um crítico
que se contentasse em ignorar todas as relações históricas iria se perder
constantemente nos seus julgamentos. Não poderia saber qual obra é original e qual
é derivativa, e, pela sua ignorância das condições históricas, erraria constantemente
na compreensão de obras de arte específicas. O crítico com pouca ou nenhuma
história inclina-se a fazer adivinhações desleixadas ou permitir-se "aventuras entre
obras-primas" autobiográficas e, no todo, evitará ocupar-se do passado mais remoto,
deixando-o com satisfação ao antiquário e ao "filólogo" (2003, p. 45).

Ou seja, o significado de uma obra de arte não é somente definido em função do


seu significado para o seu autor, ou para os seus contemporâneos. O significado é
acumulativo, destarte, considerar também a história das críticas de que a obra foi alvo. Como
já nos referimos no primeiro capítulo desse trabalho, a obra faz parte de um sistema literário e
efetuar análises dos processos formativos da literatura brasileira ocorridos entre os
séculos XIX e XX requer que a literatura produzida nos momentos decisivos desse
período seja compreendida como um complexo sistema simbólico de inter-relações e
denominadores comuns que permitam o reconhecimento de notas dominantes duma
fase. Através desse sistema, as veleidades mais profundas do indivíduo se
transformam em elementos de contato entre os homens, e de interpretação das
diferentes esferas da realidade. Além das características internas de um sistema
literário (língua, temas, imagens), certos elementos de natureza social, cultural e
psíquica que se manifestam historicamente convergem na organização literária,
conferindo-lhe aspecto orgânico nos processos da civilização (CANDIDO, 1981, p.
23-4).

67
Consultar ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2003.
119

Estudar as obras literárias de uma nação, como no caso o Brasil, é analisar


também seus processos políticos e históricos. Como compreender o fenômeno literatura nos
tempos coloniais, pois aqui sequer existiam colégios, imprensa, ou locais de venda de livros?
O sistema é um círculo de significações entre o escritor (inicialmente, um leitor), o texto
escrito e o público leitor. As maneiras como o leitor lerá a obra dependerão do grau de
instrução, da faixa etária, da existência ou não de fortuna crítica ou não da obra, da
experiência de leituras literárias, do interesse pelo tema ou gênero. A crítica não é científica,
como as ciências exatas, contudo é um trabalho racional, que exige ponderamento e
interpretação.
A partir da lição de Sérgio Milliet, Antônio Cândido nos explica que
a crítica deve se adequar ao objeto, isto é, à obra analisada. Será errado criticar um
impressionista do ângulo naturalista, porque o autor não quis realizar a sua obra
conforme as normas deste. Se o crítico as impõe à obra estudada, estará obedecendo,
não à natureza do produto que o artista ou escritor teve em mira, mas ao que uma
corrente de gosto reputa necessário para configurar adequadamente a obra. O crítico
deve, portanto, se situar conforme o ângulo do autor, que determinou a obra, não do
público, que espera que ela seja conforme à sua expectativa ditada pela moda. Se
(para continuar no mesmo exemplo) o crítico adotar como norma os preceitos do
Naturalismo, estará deixando de ser crítico para fazer estética, isto é, ver a obra
segundo uma concepção teórica que serve de medida universal e que ele, crítico,
acha adequada; e não segundo o que o autor acha adequado (CANDIDO, 1988, p.
132).

Portanto, se o crítico deve se adequar a obra a ser analisada, no recorte de tempo


que iremos estudar, a passagem do século XIX para o XX, perceberemos que a crítica literária
aproximou-se deveras das ciências exatas e de filosofias materialistas. Percebemos que o foco
da crítica não foi apenas o texto literário, mas o homem e a sociedade. Em muitos casos, a
obra servia de subterfúgio para tratar da individualidade e da psicologia dos escritores. No
Brasil, os debates e as polêmicas do que era o objeto da crítica e a importância da literatura
para a constituição de uma nova civilização, confundem-se com a sua própria sistematização e
modernização. A crítica literária brasileira era o sintoma de uma civilização que pretendia ser
moderna.
Antes de estudarmos os pais da crítica literária brasileira, precisamos entender
quem foi o pai da crítica literária moderna na Europa – Taine – pensador responsável por
desenvolver a história da literatura e por aproximar a crítica dos ditames cientificistas.
120

2. 2 Taine e a crítica determinista

Hippolyte Taine68 prosseguiu os trabalhos iniciados por Mme. De Staêl69 e


configura, com o reforço de Villemain70 e Saint-Beuve os princípios da crítica literária
científica e determinista na Europa.
O historiador José Veríssimo, nos diz que:
O movimento de ideias que antes de acabada a primeira metade do século XIX se
começara operar na Europa com o positivismo comtista, o transformismo darwinista,
o evolucionismo spenceriano, o intelectualismo de Taine e Renan e quejandas
correntes de pensamento, que, influindo na literatura, deviam pôr termo ao domínio
exclusivo do Romantismo, só se entrou a sentir no Brasil, pelo menos, vinte anos
depois de verificada a sua influência ali (sic) (2001, p. 233).

O crítico francês colaborou para a composição de uma avalanche de ideias que


percorreram a Europa e repercutiram no Brasil, moldando novas visões de mundo, acentuando
o racionalismo, o materialismo, a busca do conhecimento dos fenômenos por meio da
experiência empírica, desenvolvendo a estética realista-naturalista. José Veríssimo é explícito
em reiterar a contribuição de Taine e do conjunto dessas ideias ditas ‘modernas’ para a
renovação da reflexão em torno da literatura no Brasil. Isso será discutido adiante.
Taine foi um renovador na crítica francesa, pois aproximou a atividade crítica do
também novo ideal científico que estava em voga na Europa. O seu ponto de partida foi o
positivismo de Auguste Comte, o conceito de seleção natural de Charles Darwin e de
evolucionismo social de Spencer. Ele foi um dos principais teóricos do naturalismo francês e
responsável pela popularização do historicismo literário.
Otto Maria Carpeaux, na introdução de sua História da Literatura Ocidental
(1947) nos esclarece que a crítica também foi influenciada pelas letras germânicas, como
Herder e Hegel e comenta o choque e transformação do ideário alemão a filosofia francesa:

Mas Taine é positivista: o conceito da independência das forças espirituais lhe é


alheio. Entende Herder e Hegel como se fossem biólogos do Espírito; e substitui a

68
Nasceu em una cidade de Vouziers, em 1828 e morreu em Paris, em 1893. A sua vida foi plena de um
ininterrupto trabalho intelectual. Foi professor, jornalista, escritor e filósofo. No início da carreira, foi professor
em algumas províncias francesas e logo após, estreou no jornal Revue des Deux Mondes. Em 1853, obteve o
título de doutor com uma tese sobre as fábulas de La Fontaine. Em seguida, viajou por toda a Europa. Foi
professor na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Em 1878, entrou para a Academia Francesa. Escreveu
dezenas de obras sobre História da França, literatura e arte. Entre as suas obras mais famosas são Histoire de la
littérature anglaise (1864) e Philosophie de l'art (1865 e 1882).
69
Madame de Staël (1766-1817) foi uma famosa romancista e ensaísta francesa. Afinada ao ideal iluminista, em
1800, surge com a obra De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, trabalho
precursor da crítica literária, que defende uma visão moral e sociológica da obra literária.
70
Abel-François Villemain (1790-1870) foi um importante escritor, professor e político francês. A obra
representativa de Villemain é seu Cours de littérature française (1828-1829, editado em 5 volumes; na 2ª edição
de 1864, 6 volumes).
121

evolução autônoma e dialética do Espírito pela cooperação de fatores reais, as três


famosas determinantes: “race”, “milieu”, “moment historique”. Na Histoire de la
Littérature Anglaise (1864/1869), Taine transforma a dialética hegeliana em jogo de
causalismos positivos, entre os quais o “Tempo” não tem lugar; porque o Tempo nada
determina (2011, p 106).

Carpeaux salienta que Taine abraçou o conceito de evolução, mas afastou-se de


uma visão metafísica. O que determina o homem e, consequentemente, a sua história são
fatores reais, empíricos e mesuráveis: o meio, a raça e o momento histórico. Ao estudar a obra
literária, o crítico e o historiador devem levar em consideração esses fatores. O tempo não é
visto como uma entidade absoluta, mas determinado pelos causalismos dos fatores históricos.
É uma tentativa de unir a ideia de evolução com a causalidade positivista.
Desde o início do século XIX, a História se configurou como principal disciplina,
ao lado da Ciência, para a busca do conhecimento, por meio do estabelecimento rigoroso dos
fatos. Taine fundamenta-se uma aproximação com os métodos científicos, vai construir um
forte modelo de historiografia literária, com um intuito pedagógico. A sua obra, A História da
Literatura inglesa (1863), não é apenas uma antologia ou narrativa dos fatos literários da
Inglaterra. Ele tenta desenvolver um método de investigação científica e o descreve na famosa
introdução de seu livro. É nessa introdução que ele tenta descobrir as causas e as leis da
criação literária. A obra nasceria no artista como uma reação aos três fatores determinantes: a
raça, o meio e o momento. No texto da introdução à obra, há muitos pontos interessantes que
nos ajudam a entender a sua complexa metodologia, que vai além de só apontar os referidos
fatores.
Começaremos pela epígrafe. Taine, primeiramente, cita um trecho do livro do
historiador francês François Guizot71:
O historiador poderia situar-se no seio da alma humana, durante um certo tempo, uma
série de séculos, ou num determinado povo. Ele poderia estudar, descrever, relatar
todos os acontecimentos, todas as transformações, todas as revoluções que se tivessem
realizado no interior do homem; e; quando chegasse ao termo, teria uma história da
civilização no povo e no tempo que escolhera (GUIZOT, Civilização na Europa, p. 25
apud TAINE, p. 528).
Percebemos, que na citação traz o modelo de um método historiográfico. Guizot
descreve uma espécie de desejo do historiador: voltar no tempo de um determinado povo,
observar o seu cotidiano, as suas transformações. Mas o interessante, é que o desejo de
conhecer não é apenas o dos fatos externos, e sim o interior do homem. O estudo da
psicologia do homem é o estudo da civilização. O termo é de suma importância, porque traz
subjacente a si todo um projeto ideológico e dá título ao livro citado por Taine.

71
François Guizot (1787-1874) foi um importante historiador, professor da Sorbonne e ministro francês.
122

A obra História da civilização na Europa: da queda do Império romano à


Revolução Francesa reúne as aulas ministradas por Guizot, nos anos de 1828, 1829 e 1830,
posteriormente, publicadas em 1838. Constrói a ideia de que a Europa possui uma civilização
totalmente distinta das civilizações antigas, tais como a egípcia, grega, latina. A Europa seria
o aperfeiçoamento de todos os povos e as civilizações que passaram pela terra, fundamenta
essa convicção de forma ampla e consistente.
Contemporaneamente, as ideias relacionadas a civilização referem-se a uma
grande variedade de fatos, tais como tecnologia, usos e costumes, conhecimento científico,
religião, habitação, divisão do trabalho, leis. Todavia, para Norbert Elias (1897-1990), a ideia
de civilização expressa uma imagem que o mundo Ocidental tem de si mesmo, isto é, “tudo
em que a sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a sociedades
mais antigas ou a sociedades contemporâneas "mais primitivas"” (1994, p. 23). Portanto,
civilização indicaria um modelo ‘tecnológico’ europeu, as ‘maneiras europeias’, um tipo de
organização urbana europeia, a ciência, as artes. Os países europeus que formaram o bloco
ocidental se orgulhavam de servir de modelo para os países colonizados e orientais.
Sobre a ideia de civilização de Guizot, que influenciou Taine e outros pensadores
posteriores, precisamos levar em conta uma série de fatores. Primeiro, que, para definir o que
entendia por civilização, Guizot não buscou uma definição fechada.
Antes, a palavra civilização, de difícil e complexa acepção, começou a ser usada
pelos historiadores europeus no século no final do século XVIII, e início do XIX. Civilização
tem como raiz o termo latino ‘civitas’, que significa cidade. Então, a palavra se ligara, em um
primeiro sentido, à complexa vida nas cidades.
O historiador Lucien Febvre alega que a palavra é encontrada somente no sentido
moderno, em qualquer texto impresso em francês, um pouco antes de 1766 (Europa: gênese
de uma Civilização, 2004). Entendida como um trabalho difícil e longo, a civilização, no
século XVIII, seria uma condição dita ‘perfeita’, atingida por uma parcela esclarecida da
humanidade, ou seja, a Europa. Portanto, ela era sinônima de civilização, enquanto o restante
do globo estaria em estado de bárbarie.
Jacque le Goff, nos auxilia na compreensão, explicando-nos que:
Guizot [1829], na primeira lição do Cours d'histoire moderne, assimila a noção de
civilização à de progresso: "A ideia do progresso, do desenvolvimento, parece-me ser
a ideia fundamental contida na palavra "civilização". Esta ideia é antes de mais nada
de natureza econômica e social. O conteúdo do progresso é "por um lado uma
produção crescente de meios de força e de bem-estar na sociedade e, por outro, uma
distribuição mais equitativa entre os indivíduos da força e do bem-estar produzidos"
[Guizot, 1829, p. 114] O progresso deve ser também intelectual e moral e "revela-se
123

através de dois sintomas: o desenvolvimento da atividade social e o da atividade


individual, o progresso da sociedade e o progresso da humanidade" (2012, p. 250).

François Guizot desempenha um papel pioneiro, salientando que a civilização é


um fato como qualquer outro, que está sujeita, como qualquer outro, a ser estudada. Ele
defende que para estudar a civilização europeia, é preciso verificar uma variação de uma
pluralidade de seus componentes, pois é fruto dos resquicios culturais e sociais da
civilização inglesa, dos povos germânicos, da civilização espanhola, da italiana, da francesa,
etc. A ideia de civilização brange as realidades materiais, estruturas sociais e modos de
expressão, que nesse contexto pode ser escrita no plural. Civilização seria equivalente ao
nível coletivo do caráter individual dos cidadãos.
Outro ponto do conceito de Guizot é a sua conotação política. No trecho citado de
Le Goff, percebemos o vínculo que o historiador faz entre civilização e progresso, e está
diretamente ligado com as lutas políticas. Dentro da própria Europa, e em outros continentes,
diversas civilizações estão lutando, fadadas a ter sucesso ou a perecer. O progresso atrelado às
civilizações campeãs seria um dos fatores de seu sucesso. Ao questionarmos essa visão
progressista, tentamos entender que a civilização entendida como desenvolvimento, mas pode
ser identificada como repressão pelos povos colonizados.
Portanto, Taine, ao abrir a sua introdução com a epígrafe de Guizot, nos alerta que
o seu projeto crítico-historiográfico, não se liga apenas à ciência determinista e evolucionista,
está associado a uma ideia civilizatória e progressista.
Taine inicia o seu texto se afastando de concepções românticas, explicando que a
obra literária não é um mero jogo de imaginação. A obra é muito mais que um capricho
individual e isolado. A obra literária seria uma espécie de documento do passado que
permitiria ao historiador “reencontrar a maneira como os homens sentiram e pensaram há
vários séculos” (2011, p. 528). A literatura é um produto do espírito, que resplandece as mais
altas qualidades do caráter.
O historiador explica que ao longo das últimas décadas, a ciência histórica estava
se transformando, mudou-se o objeto, o método, os instrumentos, a concepção das leis e das
causas. Assim, o verdadeiro objeto da:
história apenas se levanta quando o historiador começa a desentranhar, através da
distância dos tempos, o homem vivo, em ação, dotado de paixões, munido de
hábitos, com sua voz e sua fisionomia, seus gestos e suas roupas, distinto e completo
como aquele que há pouco deixamos na rua (2011, p. 529).
É importante estudar o poeta em seu contexto, mas percebemos que Taine,
procura por meio da literatura o homem. Logo, a obra literária serve como pretexto para se
estudar o homem e imaginar os povos. Essa passagem é uma paráfrase da citação de Guizot.
124

Essa busca investigativa pelo homem é acentuada em outra passagem, quando cita
o exemplo de poetas franceses:
O que é que existe sob as lindas folhas acetinadas de um poema moderno? Um poeta
moderno, um homem como Alfred de Musset, Hugo, Lamartine ou Heine, que fez
seus estudos e viajou, usando luvas e roupas preta, apreciado pelas senhoras e
oferecendo à noite na sociedade mundana umas cinquentas saudações e vinte frases
de efeito, lendo os jornais de manhã, morando geralmente num sobrado, [...] Isso é o
que percebemos em Meditações ou sonetos modernos (ibidem, p. 529).

Ora, percebemos que o historiador está interessado nos mínimos detalhes da vida
dos poetas. Sob a observação do homem visível, Taine quer buscar o homem invisível. Nessa
procura, o texto literário é sempre algo insuficiente, pois não explica de imediato, a sua
origem, a sua causa primeira, que é o poeta. As informações da causa original da obra devem
ser buscadas na biografia e na história dos costumes da sociedade em que vive.
Oculta sob a página, o historiador nutriu um afã de chegar à mão de quem
escreveu. No estilo do texto, estão configurados os gestos que a fixaram. Devido a esse
direcionamento, Taine postula que o historiador será, nesse um mundo subterrâneo que é o
interior do artista,
é capaz de desentranhar sob cada ornamento de uma arquitetura, sob cada traço de
um quadro, sob cada frase de um escrito, o sentimento particular de onde saíram o
ornamento, o traço, a frase; assiste ao drama interior que se travou no artista ou no
escritor; a escolha das palavras, a brevidade ou o comprimento dos períodos, o tipo
de metáforas, a acentuação do verso, a ordem do raciocínio, tudo para ele constitui
um índice; à proporção que seus olhos leem um texto, a alma e espírito seguem o
desenrolar continuo e a série mutante das emoções e concepções que originam o
texto; ele faz a psicologia do texto (ibidem, p. 531).

Verificamos que cada detalhe do texto serve como indício para a investigação da
evolução espiritual do indivíduo que produziu a peça literária. Ao priorizar uma lógica da
causalidade, ou seja, a obra considerada como resultante dos três fatores já citados, associar-
se-á ao naturalismo de Zola.
O crítico explica que a atualidade de seu método está na sua aproximação com a
ciência “ hoje em dia, a história, tal como a zoologia, encontrou sua anatomia, e qualquer que
seja o ramo histórico ao qual estejamos ligados, filologia, linguística ou mitologia, é por essa
via que trabalhamos para fazê-lo produzir novos frutos” (ibid, p 531); e, mais adiante, ele nos
diz “a procura das causas deve intervir após a coleta dos fatos. Que os fatos sejam físicos ou
morais não importam, eles sempre têm causas, há causas para a ambição, a coragem, a
sinceridade, assim como para a digestão, o movimento muscular, o calor animal” (ibid. 532).
Ele compara a literatura à zoologia, ciência da natureza, através de uma visão
totalizante e determinista da história, firmemente construída a partir da visão positiva do
pensamento de Augusto Comte, no qual as obras humanas são fatos e produtos que precisam
125

ser mesurados e compreendidos. Essa perspectiva, encontramos na História da Literatura


inglesa, quanto em sua obra Filosofia da Arte (1865). O crítico-historiador está em busca
constante de constatações e explicações. Nessa perspectiva, nada pode ficar velado.
O pensador postula que há um sistema de sentimentos nas ideias humanas e tal
sistema “tem por motor primeiro certos traços gerais, certas características de espírito e
coração comuns aos homens de uma raça, de um século ou de um país” (ibid. p. 533). A busca
pela universalidade reside quando o autor menciona que as civilizações mais complexas
derivam das civilizações espirituais mais simples.
Em cada civilização, o sistema de paixões humanas se diferenciará por suas
representações individuais, contudo há algo universal, um motor, no seu entender: “uma mola
moral” (ibid. p. 531). Então, após essa explanação, ele pontua cada fonte primordial para
produzir a mola moral de cada civilização, que são a raça, o meio e o momento.
Para Taine, o critério da raça é o mais forte para a diferenciação das civilizações:
O que se chama raça são as disposições inatas e hereditárias que o homem traz
consigo à luz, e que normalmente andam junto com diferenças marcadas no
temperamento e na estrutura do corpo. Elas variam segundo os povos. Há
naturalmente variedades de homens, como há variedades de touros e cavalos, umas
valentes e espertas, outras tímidas e acanhadas, umas capazes de conceitos e
criações superiores, outras reduzidas às ideias e invenções rudimentares, umas mais
particularmente adequadas para certas obras e mais ricamente providas de certas
instintos, como se veem raças de cães mais bem-dotadas, umas para a corrida, outras
para o combate, outras para a caça, outras enfim para a guarda das casas ou de
rebanhos. Aí existe uma força distinta, tão distinta que, através dos enormes desvios
impelidos pelos dois outros motores, ainda se pode reconhecer, e que uma raça,
como o antigo povo ariano, dispersa do Ganges às Hébridas, estabelecida sob todos
os climas, escalonada em todos os graus da civilização, transformada por trinta
séculos de revoluções, manifesta, todavia em suas línguas, religiões, literaturas e
filosofias a comunidade de sangue e de espírito que ainda hoje reúne todos os seus
rebentos (ibid. p. 535).

Percebemos que raça não tem apenas o sentido de características externas, para o
crítico são o temperamento, o caráter. A raça, como um conjunto de ações e de sensações, é
produto de vários séculos de evolução. Percebemos o diálogo do pensador com A origem das
espécies, de Darwin, obra que pelo seu título, indica o interesse do cientista em desvendar o
mistério que intrigava os cientistas da época. Taine traz essa perspectiva evolucionista para a
história e para a literatura, sendo um dos primeiros pensadores a fazer esse cruzamento de
ciências. Outro indício é a comparação que faz das variedades de povos humanos com raças
de cavalos, de touros e de cães, porém determinando a existência de raças humanas inferiores
e superiores.
Ele sustenta que clima e situações acarretam necessidades específicas em cada
povo, ao desenvolver aptidões e instintos diferentes. O ser humano, obrigado a enfrentar suas
126

circunstâncias, desenvolve temperamento e caráter específicos que passam a identifica-lo e a


diferenciá-lo perante os outros povos. Ele nos diz que “De modo que, a cada momento, pode-
se considerar o caráter de um povo o resumo de todas as suas ações e sensações precedentes”
(ibid. p. 535). Se o caráter atual de um povo é o resultado de um acúmulo de experiências
passadas, e então percebemos uma margem para o aperfeiçoamento desse povo. Tanto ele,
quanto outros pensadores defendiam que o modelo de progresso para os outros povos é a
civilização europeia.
Então, se fizermos um paralelo à imprensa, a raça seria uma espécie de ‘chapa
tipográfica’, constituída de tipos, formando palavras e frases, que analogicamente são os
“caracteres”, as ‘forças naturais’ que cada indivíduo recebe por herança sanguínea. Essa
herança define comportamento e moral de diferentes indivíduos e diferentes grupos sociais.
O segundo fator determinante é o meio em que a raça vive:
Pois o homem não está só no mundo; a natureza envolve-o e os outros homens
rodeiam-no; por sobre a dobra primitiva e permanente vem espalhar-se as dobras
acidentais e secundárias e as circunstâncias físicas ou sociais perturbam ou
completam a natureza que lhes é entregue. Às vezes foi o clima que fez efeito [...]
Podemos afirmar todavia que a profunda diferença que se mostra entre as raças
germânicas, por um lado, e as raças helênicas e latinas, por outro, provém em grande
parte da diferença das regiões em que se estabeleceram... (ibid. p. 536).

Nesse trecho, ele salienta o meio como outro importante traço diferencial dos
povos. Ele atribui valores aos povos (as raças) pautando-se nas regiões geográficas em que
vivem, e na influência climática. Ele cita o exemplo das raças germânicas, helênicas e latinas.
As raças germânicas que viviam em densas florestas na Europa são melancólicas e violentas,
desenvolvendo, então, uma vida bélica. Já as raças helênicas e latinas, ao viverem no clima
ameno do mediterrâneo, regiões de belas paisagens (o crítico associa beleza natural para a
constituição de um caráter de um povo!), cultivaram organização política, a arte retórica e a
ciência. O clima determina o desenvolvimento da civilização.
O ‘meio’, ao longo dos milênios vai modelando o homem, tirando do
primitivismo e fazendo avançar rumo à civilização (isto, do ponto de vista eurocêntrico).
Nesse sentido, o ‘estado de espírito’, as influências no humor, são oriundas do meio, que
agem não apenas no nosso exterior, mas vão enraizando na mente da população.
Dialeticamente, a raça faz o individuo e o país faz a raça.
Taine exemplifica com os povos germânico e grego. Os germânicos, situados em
uma região fria e úmida, próximo aos pântanos, estariam propícios à melancolia, à grosseria
na alimentação e nos atos e a uma vida violenta (uma visão clichê dos bárbaros). Os povos
que formam a Grécia, por viverem próximos ao mar resplandecente e de clima quente,
127

tiveram as condições suficientes para desenvolver a navegação, a ciência, a filosofia, a


política, a ética.
Ele nos diz, que além do meio,
há entretanto uma terceira ordem de causas; pois, com as forças de dentro e de fora,
existe a obra que já fizeram juntas, e esta própria obra contribui para produzir a que
se lhe segue; além do impulso permanente e do meio dado, há a velocidade
adquirida. Quando o caráter nacional e as circunstâncias envolventes operam, não o
fazem sobre uma tabula rasa, mas sobre uma superfície onde já se fizeram marcas.
Segundo ela foi considerada num ou noutro momento, a marca é diferente; e isso
basta para que o efeito total seja diferente (ibid. p. 537).

Aqui é o ponto em que o crítico aponta o fator histórico na influência da obra de


arte. No início da história, os primeiros homens não tinham modelos artísticos, a sua fonte era
a natureza. Com passar do tempo, surgiram artistas produzindo obras literárias, eles são
sucedidos por outros. Os segundos artistas passam a ter como modelo os primeiros, assim
sucessivamente: “Vários grandes aspectos da arte se aperfeiçoam, a simplicidade e grandeza
da impressão diminuíram, o deleite e o refinamento da forma aumentaram, em suma, a
primeira obra determina a segunda” (ibid. p. 537).
O momento histórico é compreendido como um arranjo entre as forças internas e
externas, ou seja, a raça e o meio, em dado estágio evolutivo, determinam o caráter de um
povo. Percebemos, mais uma vez, uma relação de causalidade, influenciando o artista como
homem que vive em um ideal de uma época. As correntes históricas se formam a partir de
uma ideia mestra.
Enfim, o historiador revela o seu propósito:
Podemos afirmar com segurança que as criações desconhecidas para as quais nos
arrasta a corrente dos séculos serão suscitadas e inteiramente reguladas pelas três
forças primordiais; que, se tais forças pudessem ser medidas e cifradas, delas se
deduziriam como de uma fórmula as propriedades da civilização futura; e que, se,
apesar de nossas notações visivelmente toscas e medições basicamente inexatas,
quisermos hoje formar uma ideia de nossos destinos gerais, será preciso basear
nossas previsões no exame de tais forças (ibid. p. 538).

Como um físico, ele quer observar, estudar e desvendar todos os aspectos e


combinações dos efeitos que constituem as raças humanas, uma vez que a obra literária é
expressão de seus caracteres. Percebemos que ele utiliza o jargão da mecânica - forças,
direção, efeito, causa. A busca da mola motora, eis a sua pretensão. Ao descobrir essa mola,
enfim poderá conjecturar uma ideia progressista da sociedade.
Em seguida, ele aponta a importância da crítica de Sainte-Beuve72 para a
constituição de seu método.

72
Charles Augustin Sainte-Beuve, (1804-1869) historiador literário e crítico francês, conhecido por seus estudos
da literatura francesa, do Renascimento ao século XIX, do jornalismo e pelos retratos biográficos dos escritores.
128

E, no entanto, é em seus livros que encontraremos hoje em dia os ensaios mais para
desbravar o caminho que tentei descrever. Ninguém melhor que ele ensinou a abrir
os olhos e a olhar, primeiramente, os homens ao redor e a vida presente, depois os
documentos antigos e autênticos, a ler para além do branco e preto das páginas, a
enxergar sob a velha impressão, sob os rabiscos de um texto, o sentimento preciso, o
movimento de ideias, o estado de espírito no qual se escrevia. É nos seus escritos,
em Sainte-Beuve, nos críticos alemães que o leitor verá todo o partido que se pode
tirar de um documento é rico e sabemos interpretá-lo, encontramos nele a psicologia
de uma alma, frequentemente a de um século e, às vezes, a de uma raça. A esse
respeito um grande poema, um belo romance, as confissões de um homem superior
são mais instrutivos que um amontoado de historiadores e historias id. (p. 540).

A obra literária é vista como um documento, um registro de como um homem (o


artista) sentiu e atuou na sociedade em que viveu. A sociedade é entendida como um corpo
orgânico, cada homem é uma parte, uma célula. Foi precursor do estudo biográfico, como é
apontado na citação, um investigador da psicologia da alma.
O pensador frânces escreveu poesia e romances, mas ficou conhecido pelos
retratos literários que escreveu sobre autores franceses, concomitante com a análise de suas
obras. Considerava que antes de analisar uma obra e julgá-la, era necessário conhecer o seu
autor, o homem por trás da arte. Ele também é um dos sistematizadores da moderna crítica
literária.
Ele expôs sua metodologia literária no texto “Sobre o meu método”73 (1862)
É pois conveniente que, por hoje, me permitam entrar em alguns detalhes relativos
ao caminho e ao método que tenho considerado o melhor a seguir no exame dos
livros dos talentos. A literatura, a produção literária, não é para mim de modo algum
distinta ou sequer separável do homem e da organização; posso fruir uma obra, mas
para mim é difícil julgá-la independente do conhecimento do próprio homem; e direi
de bom brado; tal árvore; tal fruto. O estudo literário me conduz assim muito
naturalmente ao estado moral (2011. p. 521).

No trecho citado, percebemos uma inspiração teoria da Taine, ao estudar a relação


do homem e da literatura, pois o homem é uma metonímia da civilização. Taine volta-se para
a civilização, enquanto Sainte-Beuve concentra-se no indivíduo. O objeto da literatura seria,
portanto, o estado moral do indivíduo, constituindo-se como uma ciência do espírito.
A sua metodologia prevê que
Fazemos por nossa conta simples monografias, acumulamos observações de
detalhes; mas entrevejo ligações, relações, e um espírito mais arejado, mais

Abandonou o curso de medicina, começando a escrever no jornal Le Globe, logo ganha reputação no La revue de
Paris, chamando a atenção de Johann Wolfgang von Goethe e Victor Hugo. Em seguida, passa a escrever no La
Revue des Deux Mondes. Durante várias décadas escreveu uma coluna, Portraits (Retratos), que depois foram
publicadas em 7 volumes. Em 1844, foi eleito para Academia Francesa. Paralelamente, ocupou um cargo na
Biblioteca Mazarin, e também ensinou literatura francesa na Universidade de Liège, na Bélgica. Ele também
ensinou poesia latina brevemente no Collège de France entre 1858-1862.
73
Texto consultado em SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Sobre o meu método. Trad. Annabella Blyth. In:
SOUZA, Roberto Acízelo de. (Org). Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários
(1688-1922). Chapecó: Argos, 2011.
129

luminoso, e que permaneça sensível ao detalhe, poderá um dia descobrir grandes


divisões naturais que correspondem às famílias de espírito (2011. p. 522).

Ele aplica essa metodologia biográfica no estudo, por exemplo, de Chateaubriand,


coligido em Nouveaux Lundis (1863-1870). Cada observação feita remete a um aspecto da
vida do escritor. O estudo seria uma espécie de entrevista. Suas descrições de poetas e poesia
em si implicam igualmente a necessidade para a perspectiva biográfica de uma "outra" crítica.
A sugestão é que a crítica, com a sua base biográfica, está em melhor posição para identificar
os aspectos literários do que o método historiográfico.
No entanto, Taine amplia essa perspectiva biográfica, mas o que ele quer é
“escrever a história de uma literatura e a procurar nela a psicologia de um povo” (ibid. p.
541). O estudo moral da literatura caminha para o rumo do conhecimento das leis
psicológicas.
Diferente de Sainte-Beuve, ele não procura uma individualidade artística, mas
obra uma verdade social. As obras literárias são documentos que se apresentam aos nossos
olhos, que revelam os sentimentos das gerações anteriores.
Essa procura por uma história moral é exemplificada com a Inglaterra, colocada
ao lado da Grécia antiga e da França moderna como civilizações que apresentam grandes
monumentos expressivos. Sobre a Inglaterra:
Aliás, há algo de particular nessa civilização: é que, além de seu desenvolvimento
espontâneo, ela oferece um desvio forçado, sofreu a última e mais eficaz de todas as
conquistas, e os três elementos de que saiu a raça, o clima, a invasão normanda –
podem ser observados nos monumentos com perfeita precisão; tanto que se estudam
nessa história os dois mais poderosos motores das transformações humanas, a saber,
a natureza e a coação, e é possível estuda-los sem incerteza nem lacuna, , numa série
de monumentos autênticos e inteiros. Tentei definir essas molas primitivas, mostrar
seus efeitos graduais, explicar como eles acabaram por alçar à luz as grandes obras
políticas, religiosas, literárias, e desenvolver o mecanismo interior pelo qual o
bárbaro saxão veio a ser o inglês que vemos hoje em dia (ibid. p. 543).

Nesse trecho, vemos a síntese de tudo que discutimos até aqui: o desejo de
encontrar as causas primeiras da obra literárias (os motores), a influência desses fatores para a
construção de uma civilização e uma visão evolucionista e progressista da história.
Assim como outros pensadores contemporâneos seus, Taine valorizou
extremamente a ciência, colocando-a no centro do quadro do mundo moderno e como força
decisiva no progresso da humanidade. Taine, com sua História da Literatura Inglesa,
Filosofia da Arte, entre tantos outros escritos, exerceu uma imensa influência na segunda
metade do século XIX. Virou sinônimo de rigor e objetividade. Com o advento da crítica
moderna, os seus escritos serviram para se estabelecer um paradigma que anunciava a entrada
130

da ciência nos Estudos literários. Seus discípulos mais famosos foram Émile Hennequin
(1858-1888) e Ferdinand Brunetiére (1849-1907).
O determinismo defendido por Taine, em síntese, preconiza que o homem é um
títere nas mãos de forças internas e externas; a interna, os mecanismos biológicos, oriundos da
raça, transformada ao longo da evolução; e externas, o fator histórico, ou seja, o momento em
que o homem vive e a influência do meio ambiente. O homem é um refém da natureza.
Após analisar as propostas metodológicas do prefácio da obra de Taine,
entraremos no estudo da formação da crítica literária brasileira, cujo foco é o estudo dos
críticos naturalistas, mas, no nosso percurso cronológico, trabalharemos dos precursores da
crítica, na época romântica, para depois, abordar o surgimento da Escola do Recife.

2.3 Os primórdios da crítica: romantismo

Compreendendo as “manifestações literárias” (José Veríssimo, 1916, e Antônio


Cândido, 1959), no Brasil, antes do advento do romantismo, havia textos críticos
rudimentares, produzidos nas academias, muitos de extração neoclássica, pautados nos
tratados de poética e preocupados com a retórica.
Após o conturbado processo de independência do Brasil (entre 1808 a 1822) e a
chegada das ideias românticas, a constituição de um “pensamento crítico” acerca da literatura
produzida no Brasil revestiu-se das perspectivas histórica e nacionalista. Como o país não era
mais uma colônia, e sim um estado soberano, autores e intelectuais preocuparam-se em
mostrar que a literatura aqui produzida não era mais um objeto de exotismo, e que tinha
autonomia em relação a Portugal (o francês Ferdinand Denis74 foi o primeiro a distinguir a
literatura brasileira da portuguesa, em 1826). Uma difícil missão.
As primeiras manifestações críticas, ou seja, comentários, julgamentos acerca de
textos literários ocorreram por meio de antologias e sistematizações cronológicas. Nas
primeiras três décadas do século XIX, abundaram esboços, bosquejos, florilégios, parnasos.
Nesses primeiros resgates da história da cultura escrita no Brasil, há diversas contribuições,

74
Foi um viajante francês que morou no Brasil entre os anos de 1816 e 1820. Ele foi responsável por uma das
primeiras obras de crítica literária brasileira, logo após a independência do país - Résumé de l´histoire littéraire
du Brésil [Resumo da história literária do Brasil, 1824]. O livro fez sucesso e alcançou duas edições no mesmo
ano. Foi traduzido no Brasil por Henrique Luís de Niemeyer Bellegarde (1802-1839) e, de acordo com Joaquim
Norberto, foi adotado como documento pelo governo, como leitura obrigatória dos colégios primeiros que
existiam no país.
131

inclusive portuguesas. O poeta Almeida Garrett (1799-1854), no “Bosquejo da história da


poesia e da língua portuguesas”, texto que introduz o Parnaso Lusitano (1826), já apontava e
emitia o seu juízo de valor sobre a poesia produzida no final do século anterior:
E agora começa a literatura portuguesa a avultar e enriquecer-se com as produções
dos engenhos brasileiros. Certo é que as majestosas e novas cenas da natureza
naquela vasta região deviam ter dado a seus poetas mais originalidade, mais
diferentes imagens, expressões e estilo, do que neles aparece: a educação europeia
apagou-lhes o espírito nacional: parece que receiam de se mostrar americanos; e daí
lhes vem uma afetação e impropriedade que dá quebra em suas melhores qualidades
(GARRETT. 1884. p. 14).75

O texto é endereçado aos leitores portugueses, e Garrett cita os poetas árcades


Tomás Antônio Gonzaga, Santa Rita Durão, Basílio da Gama, mas censura-lhes a falta de
conteúdo nacional em suas obras. Ele indica a influência das características estéticas
europeias, tais como a mitologia, os temas pastorais, os gêneros clássicos, que inibiu a
expressão da ‘americanidade’ ou cor local, na sua visão, o traço diferenciador dos brasileiros.
Na luta para se libertar das violentas heranças do colonialismo português, o
escritor brasileiro tinha que construir uma expressão própria, tanto estética, quanto crítica e
não apenas esperar intepretações críticas externas, o ‘olhar’ do estrangeiro, que vinha sendo
construído há muito tempo. João Alexandre Barbosa cita alguns exemplos de outros críticos e
historiadores românticos estrangeiros tais como Friedrich Bouterwek, Sismonde de Sismondi,
Ferdinand Denis, Almeida Garrett, C. Schlichthorts, José da Gama e Castro, Alexandre
Herculano e Ferdinand Wolf (1996. p. 13).
Era necessária uma visão interna da nossa realidade sociocultural, tecida pelos
próprios brasileiros. Os primeiros a se destacar na escrita de textos críticos e historiográficos
foram: Januário da Cunha Barbosa, com Parnaso brasileiro (1829-1831), Gonçalves de
Magalhães, com Ensaio sobre a história da literatura do Brasil (1836), Joaquim Norberto de
Sousa Silva, com Bosquejo da história da poesia brasileira (1841) e Estudos sobre a
literatura brasileira durante o século XVII (1843), Francisco Adolfo de Varnhagen, com
Florilégio da poesia brasileira (1850).
João Alexandre Barbosa salienta que as etapas da formação da historiografia
brasileira ocorreram primeiramente, com os panoramas gerais, bosquejos, antologias e
florilégios, em seguida, com obras que se concentravam nas biografias dos autores e por fim,
as tentativas de elaborar uma história propriamente dita e documentários (1996. p. 12).

75
O texto foi consultado em Garrett, Almeida. O Retrato de Vênus e Estudos de História Litterária. 3a. Edição. Porto:
Ernesto Chardron Editor, 1884. Disponível em: http://www.archive.org/details/1884oretratodeve00alme
132

Durante a primeira metade do século XIX, a crítica e a história literária no Brasil


foram se consolidando, sendo o motor do movimento romântico.
O já citado Ferdinand Denis foi um dos precursores, com seu livro Résumé de
l´histoire littéraire du Brésil [Resumo da história literária do Brasil], um dos responsáveis
por introduzir o método historiográfico, trazendo a reflexão acerca da literatura, princípios da
geográfia, dos estudos étnicos, sociais e históricos, relacionando o conhecimento da natureza
com a sociedade.
No final da década de 1820, naturalistas europeus, da Real Academia de Ciências
de Munique, a convite do rei da Baviera, acompanharam o casamento de Dom Pedro com a
arquiduquesa austríaca Dona Leopoldina, no Rio de Janeiro. Aproveitando a estadia, os
naturalistas Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich von Martius realizaram uma expedição
ao Brasil, narrada em Reise in Brasilien (1823) [Viagem pelo Brasil].
Anos depois, em 1845, Martius e Wolf juntaram-se a Denis e apresentaram uma
dissertação ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, com o título Como se deve escrever
a história do Brasil. Essa dissertação trouxe, ao pensamento brasileiro, a introdução dos
critérios mesológicos, ou seja, a influência do meio ambiente nos organismos. A mesologia
fora aplicada para a análise do meio e da raça, para o desenvolvimento da critica e da
historiografia brasileira.
Outro estudioso importante, Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-78), é citado
por José Veríssimo como o fundador da historiografia brasileira. A sua obra História geral
do Brasil (2 volumes, 1854-7) descreve e analisa o processo pelo qual o país se tornou uma
nação. Ele retoma os critérios utilizados por Martius e Denis. De acordo com Antônio
Cândido, ele inicia “a longa aventura dos fatores mesológico e racial na crítica brasileira, que
Sílvio Romero levou ao máximo de sistematização. Era, com efeito, o tempo das especulações
sobre o espírito nacional e a influência das latitudes; da peculiaridade das raças e a atuação
dos climas” (1981, p. 323-4).
Afora a contribuição dos autores estrangeiros, entre os brasileiros que se
destacaram nessa crítica inicial, durante o romantismo, estão Joaquim Norberto, Gonçalves
de Magalhães, Santiago Nunes Ribeiro e Pereira Nunes. Em Formação da Literatura
brasileira, Cândido destaca que a maior contribuição veio de Norberto. Ele seguiu os critérios
estabelecidos por Denis em três trabalhos: Bosquejo da história da poesia brasileira (1841),
Considerações sobre a literatura brasileira, publicado em 1843, na revista Minerva
Brasiliense e Mosaico Poético em colaboração com Emílio Adet, em 1844.
133

Segundo Cândido, são dele as primeiras formulações de períodos literários, sob o


ponto de vista histórico. Os primeiros esboços periodológicos estavam no Bosquejo da
História da poesia brasileira, contudo Norberto ampliou a organização dos períodos em
diversos artigos publicados na Revista popular (1859-60). Nesses artigos há um projeto inicial
de uma História da literatura brasileira, não concluída.
Norberto, na busca por um representante para a identidade nacional, considera a
‘raça indígena’ digna da mais sincera exaltação, já que foi o primeiro habitante da nossa
natureza tropical. O índio é idealizado como um ser heroico e bravo que lutou e resistiu contra
a violenta colonização europeia.
Em Norberto e os demais críticos românticos, o principal impasse é levantar
dados e fontes para a construção do debate sobre a nossa independência literária. A autonomia
da nossa arte e cultura é um tema vastamente caro para um recém proclamado império. A
tomada de consciência de que somos uma nação terá como sua fonte mais nobre de expressão
a literatura (CÂNDIDO, 1981, p. 343).

2.4 Machado de Assis: instinto de criticidade

Um intelectual que foi um destacado crítico, apesar de sua juventude, à época, foi
Machado de Assis. Ele começou a carreira com publicações de textos poéticas, textos
jornalísticos e peças de teatro. O seu primeiro romance, Ressurreição, é de 1872. Os seus
textos críticos76 datam do final da década de 1850. O primeiro a ter destaque na imprensa
carioca foi o ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”, de 1858, tendo
ele, então, 19 anos.
Sabemos que Machado seria, décadas depois, o renovador da ficção brasileira,
afastando-se radicalmente da estética romântica. Contudo, no início de sua carreira
dada a preocupação do crítico literário, se voltou para problemas relacionados com o
gosto da época. Demonstrou conhecer a doutrina dos românticos, realistas-
naturalistas, parnasianos, bem como a lição dos clássicos. Soube orientar-se
criticamente a si mesmo, no combate aos lugares comuns e aos excessos de uns e de
outros, dos clássicos aos contemporâneos (CASTELLO, 2008, p. 18).

76
A produção crítica machadiana, iniciada em 1858 e findada em 1904, ocorreu em jornais e revistas, tais como
A marmota, A semana ilustrada, O novo mundo, Correio mercantil, O cruzeiro, Gazeta de notícias, Revista
brasileira, sendo coligida em volume (em 1910) por Mário de Alencar.
134

É no jornal Marmota Fluminense que estreia como crítico, com “O Passado, o


Presente e o Futuro da Literatura”. Mas somente, a partir de 1858, se dedicou realmente ao
comentário e juízo de obras literárias, inclusive teatrais (1994. p. 25)77.
No artigo citado, ao julgar os poetas passados, condena os árcades pela falta da
cor local, citando a perspectiva do poeta romântico Garrett em História abreviada da língua e
poesia portuguesa (1826). Sobre o poema épico Uraguai (1769), de Basílio da Gama,
Machado nos diz
Sem trilhar a senda seguida pelos outros, Gama escreveu um poema, se não
puramente nacional, ao menos nada europeu. Não era nacional, porque era indígena,
e a poesia indígena, bárbara, a poesia do boré e do tupã, não é a poesia nacional. O
que temos nós com essa raça, com esses primitivos habitadores do país, se os seus
costumes não são a face característica da nossa sociedade? (idem, ibidem).

Sua adesão à visão nacionalista era plena nesse ensaio. Anos depois, ao tratar do
tema indianista, a propósito da crítica sobre o recém lançado livro de José de Alencar
(Iracema, 1865), Machado revê sua posição: " se a história e os costumes indianos inspiraram
poetas como José Basílio, Gonçalves Dias, e Magalhães, é que se podia tirar dali criações
originais, inspirações novas" (Diário do Rio de Janeiro, 23/01/1866).
Nesse mesmo ano, escreve o ensaio “O ideal do crítico” (1865), texto
importantíssimo, no qual fala de critérios para a coerente e honesta crítica literária. Ele
lamenta que a crítica seja exercida por incompetentes ou esteja à mercê dos “caprichos da
opinião”, porque considera a
profissão do crítico deve ser uma luta constante contra todas essas dependências
pessoais, que desautoram seus juízos, sem deixar de perverter a opinião. Para que a
crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial, – armada contra a insuficiência dos
seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários [...] 78.

Para Machado, a imparcialidade é o ideal que o crítico deve atingir, algo bastante
difícil em variados contextos literários brasileiros, em que a crítica é exercida sob a ótica das
relações pessoas, permeadas de opiniões positivas, desafetos, indiferença e desaprovação.
Machado aponta para que o crítico faça “o julgamento de uma obra, cumpre-lhe
meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas,
ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção”
(1994).

77
Os artigos de Machado de Assis foram consultados a partir da edição das obras completas: ASSIS, Machado.
O passado, o presente e o futuro da literatura. In: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, vol. III, 1994.
78
In: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/107_128211801a2d496ca76d98609f0fe81f
135

O crítico teria a função de contribuir para o aperfeiçoamento do poeta, tornando


consciente e fecunda a sua produção literária. Aliando a análise, a sensibilidade e a
honestidade, nos diz que, “o conselho substituiria a intolerância, a fórmula urbana entraria no
lugar da expressão rústica – a imparcialidade daria leis, no lugar do capricho, da indiferença e
da superficialidade” (idem, 1994).
No ano de 1873, enquanto em Fortaleza e no Recife já ocorriam efervescências
intelectuais, Machado publica o famoso ensaio "Notícia da atual literatura brasileira – instinto
de nacionalidade", em que diz
Quem examina a atual literatura brasileira reconhece-lhe logo, como primeiro traço,
certo instinto de nacionalidade. Poesia, romance, todas as formas literárias do
pensamento buscam vestir-se com as cores do país, e não há negar que semelhante
preocupação é sintoma de vitalidade e abono de futuro. As tradições de Gonçalves
Dias, Porto-Alegre e Magalhães são assim continuadas pela geração já feita e pela
que ainda agora madruga, como aqueles continuaram as de José Basílio da Gama e
Santa Rita Durão. Escusado é dizer a vantagem deste universal acordo. Interrogando
a vida brasileira e a natureza americana, prosadores e poetas acharão ali farto
manancial de inspiração e irão dando fisionomia própria ao pensamento nacional.
Esta outra independência não tem Sete de Setembro nem campo de Ipiranga; não se
fará num dia, mas pausadamente, para sair mais duradoura; não será obra de uma
geração nem duas; muitas trabalharão para ela até perfazê-la de todo.
Reconhecido o instinto de nacionalidade que se manifesta nas obras destes últimos
tempos, conviria examinar se possuímos todas as condições e motivos históricos de
uma nacionalidade literária; [...] Meu principal objeto é atestar o fato atual; ora, o
fato é o instinto de que falei, o geral desejo de criar uma literatura mais
independente (1994)79.

No artigo, Machado estava no período romântico, ao traçar características do que


era entendido como nacionalismo, tais como a cor local, o indianismo, a natureza americana,
e demonstra uma linha de continuidade na literatura brasileira, de Santa Rita Durão a
Gonçalves Dias.
Machado atualiza a discussão sobre a nacionalidade literária, mantendo certa
coerência com o citado ensaio de 1858, porém efetuando uma argumentação renovada.
É certo que a civilização brasileira não está ligada ao elemento indiano, nem dele
recebeu influxo algum; e isto basta para não ir buscar entre as tribos vencidas os
títulos da nossa personalidade literária. Mas se isto é verdade, não é menos certo que
tudo é matéria de poesia, uma vez que traga as condições do belo ou os elementos
de que ele se compõe (idem, 1994).
Ele disserta sobre o papel do índio como figura também representativa da
nacionalidade. Ele é contra o exclusivismo de temas. Buscando um equilíbrio entre o nacional
e o universal, Machado explica que tudo é matéria de poesia, mas desde que traga as
condições do belo.

79
Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade. Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de
Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. In: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-
lista/item/download/95_a034209a67594696a9b556534ff73116
136

Explicitando essa questão:


Compreendendo que não está na vida indiana todo o patrimônio da literatura
brasileira, mas apenas um legado, tão brasileiro como universal, não se limitam os
nossos escritores a essa só fonte de inspiração. e perguntarei mais se o Hamlet, o
Otelo, o Júlio César, a Julieta e Romeu têm alguma coisa com a história inglesa nem
com o território britânico, e se, entretanto, Shakespeare não é, além de um gênio
universal, um poeta essencialmente inglês (id, 1994).

Não apenas o índio deverá ser o único tema, mas Machado atenta para o caráter
histórico da literatura, já que o escritor deve estar atento ao tempo, a suas discussões, a seus
temas etc. Essa consciência histórica leva o país para a sua autonomia estética, fruto do
trabalho de futuras gerações.
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e
do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço (idem,
ibidem).

A consciência nacional não deve ser algo superficial, exprimir um conjunto de


temas pátrios, fauna e flora, ou costumes do povo. O poeta deve buscar um sentimento mais
profundo, de âmbito universal. Ele conseguirá isso ao ter consciência de sua arte. Machado
aponta algumas caraterísticas que podem enriquecer e educar os poetas para essa missão:
Assim: viva imaginação, delicadeza e força de sentimento, graças de estilo, dotes de
observação e análise, ausência às vezes de gosto, carências às vezes de reflexão e
pausa, língua nem sempre pura, nem sempre copiosa, muita cor local, eis aqui por
alto os defeitos e as excelências da atual literatura brasileira, que há dado bastante e
tem certíssimo futuro (id., ibid.).

O escritor no Brasil deveria combinar o nacional e o universal, abordar questões


nacionais sem desvinculá-las das grandes questões universais - o que um comentarista definiu
como “dialética do local e do universal” (CÂNDIDO, 1981).
Outro ponto diferenciado do ensaio de Machado é como ele aposta no
universalismo para resolver o problema da relação texto e contexto. Não importa o tema, se é
nacional ou estrangeiro, se o personagem é indígena ou não, importa é que o poeta ou
ficcionista realize-os com excelência poética. O tema indianista construído, tanto por José de
Alencar, quanto por Gonçalves Dias, é um legado tão brasileiro como universal. E a década
de 1870 prossegue com mudanças profundas na inteligência brasileira.
Em artigos do final da década de 1870, como "O primo Basílio", de 1878, e "A
nova geração", de 1879, ele ressalta seu desabono em relação ao ‘Realismo”, na verdade, o
“naturalismo”, observados como modismo estético. Em seus textos, ele não se ocupa de
‘escolas’, teorias’, ‘influencias’, que guiavam os escritores, por exemplo, em sua famosa
137

crítica a Eça de Queiros, ressaltando que “voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos
o realismo; assim não sacrificaremos a verdade estética” (ASSIS, 1994)80.

2.5 Escola do Recife

De acordo com Afrânio Coutinho, o ensaio “instinto de nacionalidade”, de


Machado de Assis, foi um manifesto da nossa independência literária, dirigido ao predomínio
lusitano (1968, p. 123).
As tentativas de compreensão da literatura brasileira, no romantismo,
privilegiaram a investigação de nossas raízes culturais. Os trabalhos iniciados com Denis e
Varnhagen, e deram um início à constituição da História da literatura brasileira, como nos
alerta Afrânio Coutinho:
Desde então, os estudos críticos e de história literária no Brasil se realizariam,
segundo uma grande família de críticos brasileiros, como uma dependência da
história geral, política e social, utilizando o método histórico, e concebida a
literatura como reflexo das atividades humanas gerais, um fenômeno histórico
(1968. p. 123-124).

As transformações do pensamento brasileiro têm início a partir da década de 1860


e atingem o auge na década seguinte. A chamada ‘Geração de 1870’ introduziu o “Brasil à
cultura história moderna, ao romper as amarras do pensamento religioso em prol de uma visão
laica do mundo, trazendo para o debate intelectual o saber temporal e secular” (VENTURA,
1991, p. 12).
Afrânio Coutinho chamou essa geração de intelectuais da década de 1870, de
‘geração materialista’:
De modo geral, 1870 marca no mundo uma revolução nas ideias e na vida, que
levou os homens para o interesse e a devoção pelas coisas materiais. Uma geração
apossou-se da direção do mundo, possuída daquela fé especial nas coisas materiais.
É a “geração do materialismo”, como a denominou, em um livro esplêndido, o
historiador americano Carlton Hayes. A revolução ocorreu primeiro no espírito e no
pensamento dos homens e daí passou à sua vida, ao seu mundo e aos seus valores.
Intelectualmente, a elite apaixonou-se do darwinismo e da ideia da evolução,
herança do romantismo e, de filosofia, o darwinismo tornou-se quase uma religião; o
liberalismo cresceu e deu frutos, nos planos político e econômico; o mundo e o
pensamento mecanizaram-se, a religião tradicional recebeu um feroz assalto do
livre-pensamento (2001, p. 181-182).

O autor cita Carlton Hayes81, que compila no termo ‘materialismo’ uma série de
ideias e práticas adotadas por intelectuais do período. A busca pelas ideias materialistas

80
Eça de Queirós: O Primo Basílio. Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, vol. III, 1994. Publicado em O Cruzeiro, 16 e 30/04/1878.
In: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/93_ba9e781d3821d32a9cbffc78fbfa5bda
138

eclodiu, no mesmo período, em Portugal e no Brasil. As ideias ditas modernas são frutos do
Iluminismo e do enciclopedismo do século XVIII. Com as revoluções que ocorreram na
Europa e nos E.U.A, a ideia de progresso foi uma poderosa mola que conduziu o projeto da
civilização ocidental.
O processo de ‘mecanização do trabalho e do pensamento’ (Hayes) repercutiu na
pragmática de diversas ciências, como as físicas, naturais, biológicas e sociais. Como vimos
anteriormente com Taine, na França, a ciência era o método de investigação que se
institucionalizou, moldando a visão de mundo dos homens letrados, aguçando o espírito de
observação e rigor. A ciência guarneceu os homens com uma visão de mundo, cuja crença
principal era a explicação de todos os fenômenos, pois estes eram explicáveis e governados
por leis mecânicas e matemáticas.
As ideias darwinistas de seleção natural e evolucionismo ampliaram a de
determinismo do meio. O homem é visto como um organismo vivo, como todos os outros; e,
dependendo do ambiente em que vive, tem reações físicas e mentais diversas.
O clima de apego às ciências encontrou respaldo na filosofia positivista de Comte,
que vinha das décadas de 1830 e 1840, e ofereceu uma forte atração entre os jovens bacharéis.
O positivismo tentou repelir a explicação metafísica e providencialista, exaltando a ciência
natural como grande modelo para a construção da ciência social. Segundo Coutinho “os
estudos sociológicos, dirigidos pelo positivismo, orientaram-se para a coleta de fatos,
sintetizando-os e formulando leis e tendências para explicar a conduta e evolução da
sociedade humana” (1981. p. 118). Outro filósofo que contribuiu para a visão de mundo
materialista foi Herbert Spencer, que enxergava a sociedade como um organismo vivo, em
evolução, e em seu interior, a luta pela sobrevivência ocasionava um constante antagonismo
entre forças sociais. Esse princípio evolucionista foi introduzido nos estudos históricos e
perdurou até as primeiras décadas do século XX.
No caso do Brasil, quando falamos na Geração de 70, estamos falando de grupos
de intelectuais, tanto no Rio de Janeiro e nos estados do nordeste, como Pernambuco, Bahia e
Ceará que estavam lendo e divulgando o ideário moderno, entre as décadas de 1860 e 1870.
Porém, na Europa, principalmente na França, desde a década de 1850, as ideias filosóficas e
estéticas estavam revolucionando os paradigmas do pensamento.

81
Carlton Joseph Huntley Hayes (1882- 1964) foi professor e diplomata estadunidense. Pesquisador da História
europeia, ele se destacou como um importante pesquisador do nacionalismo. A obra a que Afrânio Coutinho o
referencia é A generation of materialism, 1871-1900, publicado em 1941, durante a 2ª Grande Guerra.
139

A pesquisadora Lúcia Miguel-Pereira interpreta a discrepância entre o Brasil e a


Europa:
O atraso com que foi aqui adotado o realismo é um sintoma do alheamento dos
escritores de então não só ao mundo, mas às condições do país. E também da maior
correspondência entre o nosso feitio e atitude idealista. Ao embate das novas ideias e
condições de vida suscitadas pelo progresso científico e industrial do século XIX,
desde muito caducara em França, nosso figurino literário, o romantismo que aqui
teimava em viver. O Guarani é do mesmo ano da publicação de Mme. Bovary,
anteriormente divulgado por uma revista de grande prestígio. Zola já começara a
série dos Rougon-Macquart quando Taunay escreveu a Inocência. O darwinismo, o
evolucionismo, o positivismo, o socialismo que formavam a estrutura do
pensamento contemporâneo, modificando os conceitos filosóficos, literários e
sociais, levaram mais de vinte anos para atravessar o Atlântico. “No Rio de Janeiro,
só de 1874 em diante é que, pela primeira vez, os nomes de Darwin e Comte foram
pronunciados em público, em conferências ou escritos” afirma Sílvio Romero. E já
vimos como só na década de 80 se modifica de modo sensível o nosso panorama
literário (sic) (1988, p.119).

Não é apenas a distância geográfica que explica “o atraso” em relação às novas


manifestações do pensamento, visto que no Brasil as matrizes estéticas e filosóficas eram
colhidas no velho mundo, todavia havia diversos problemas políticos e sociais. As primeiras
décadas do reinado de D. Pedro II e com o seu patrocínio favoreceram um clima nacionalista
entre os escritores. Interessante, segundo Miguel Pereira (1988. p. 120), enquanto jovens
intelectuais redigiam o manifesto republicano e iniciavam a campanha abolicionista, muitos
escritores ainda escreviam folhetins românticos.
Ela aponta o exemplo de Machado de Assis, de quem vale a pena citar o texto
“Instinto de nacionalidade” já por nós discutido:
ainda que muito lidos entre nós, não contaminaram a literatura brasileira, nem sinto
nela tendências para adotar as suas doutrinas, o que já é notável mérito. As obras de
que falo foram aqui bem-vindas e festejadas, mas não se aliaram à família nem
tomaram o governo da casa. Os nomes que principalmente seduzem a nossa mocidade
são os do período romântico; os escritores que se vão buscar para fazer comparação
com os nossos – porque há aqui muito amor a essas comparações – são ainda aqueles
com que o nosso espírito se educou, os Victor Hugos, os Gautiers, os Mussets, os
Gozlans, os Nervals (ASSIS, 1994).

O que percebemos é que essa reforma do pensamento brasileiro ocorreu entre os


jovens bacharéis que estudaram no final das décadas de 1860 e 1870, principalmente, nos
cursos de Direito. O curioso é que a agitação espiritual não ocorreu primeiramente na Corte, o
Rio de Janeiro, onde estavam concentradas faculdades, institutos, academias, o campo
intelectual mais desenvolvido no país.
A renovação crítica e historiográfica veio do norte do Brasil, segundo Alexandre
Barbosa:
Não é menos certo, todavia, o fato de que, aqui e ali, em alguns movimentos
provincianos, se ia assistindo ao aparecimento de um esforço renovador que nos
pusesse em dia com a evolução do pensamento europeu e que, ao mesmo tempo,
adequasse o novo modo de ver o país as formas de criação e reflexão literárias tam-
140

bém novas. São exemplos a Escola de Recife, de Tobias Barreto e Sílvio Romero, a
Academia Francesa do Ceará, de Araripe Jr. Júnior, Rocha Lima e Capistrano de
Abreu, entre outros, ou mesmo a obra precursora de Inglês de Souza, tendo por
cenário o norte do país (1974, p. 27-8).

São apontados dois polos, ambos no nordeste: a Escola do Recife (Faculdade de


Direito do Recife) e a Academia Francesa (agremiação literária e filosófica que funcionou em
Fortaleza, de 1873-1875). Nas províncias, a chamada Geração de 70, por meio das academias,
de periódicos e da publicação de livros, tornou-se porta-voz daquilo que o próprio crítico José
Veríssimo ressaltou, de ‘espírito novo’ ou ‘modernismo’, conforme a sua História da
literatura brasileira, ao tratar de contemporaneidade, no capítulo “O modernismo”.
A Escola do Recife82, assim chamada, teve como palco a Faculdade de Direito do
Recife. A sua denominação de Escola envolve uma série de questões. A nomenclatura de
Escola deve-se a Sílvio Romero e a Clovis Beviláqua, que ressaltaram sua importância e
protagonismo. Sílvio é mais audacioso e diz que foi a Escola do Recife que realizou uma
transformação radical no pensamento brasileiro.
Segundo Afrânio Coutinho:
A escola de Recife é impropriadamente denominada ‘escola’, nome que não lhe
pode caber, a rigor. Em primeiro lugar, porque não tem unidade de pensamento nem
de colorido literário. É múltipla sua fisionomia e suas manifestações são de variado
aspecto. Não teve a uniformidade de espírito e de produções que caracterizam
habitualmente as ‘escolas’ literárias e filosóficas. Além disso, como mostrou Oto
Maria Carpeaux em artigo sobre “Tobias e os alemães” (O jornal, 26-2-1950), não
teve tampouco unidade quanto aos autores alemães que Tobias absorveu, pois, como
disse ele ‘ciência alemã não existe’, e a cultura alemã de Tobias consistiu na
aquisição, ‘indiscriminadamente, em bloco’ do ‘trabalha cientifico de um grande
país inteiro durante uns cem anos’. Sem unidade de pensamento, não poderia ela
exercer a influência que se lhe atribui (sic) (1981. p. 111).

Nas províncias do país, havia a penetração de novas ideias, como na Bahia e no


Ceará e Recife não foi o único polo de renovação filosófica. O seu grande papel foi o de ser
um centro de agitação intelectual. No Império, sem grandes centros intelectuais, fora a Corte,
as novas Faculdades, como a de Direito do Recife e de Medicina da Bahia, tornaram novos
eixos culturais, não transformando de imediato a mentalidade dos escritores e pensadores
brasileiros, no entanto, serviram para aproximar os moços do debate que ocorria nos grandes
centros europeus, contribuindo para uma autonomia intelectual.
Destacam-se, também, nas décadas seguintes as sucessivas propostas de alteração de
curriculum. Exemplo significativo é a reforma de 1879, que estabelece o ‘ensino
livre’, abole a obrigatoriedade de frequências e divide o curso em duas seções
distintas: “sciencias jurídicas e sciencias sociais” corresponderiam os cursos de
direito natural, romano, constitucional, civil, criminal, comercial, legal, teoria e

82
Hoje é atual Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco. A instituição se constituiu a partir
da transferência, em 1854, da Faculdade de Direito de Olinda, (fundada em 1827), por Dom Pedro II, para o
Recife.
141

prática do processo. Já o curso de ‘sciencias sociais’ seria composto pelas cadeiras


de direito natural, público, universal, constitucional, eclesiástico, das gentes,
administrativo, e diplomacia, história dos tratados, ciências da administração,
higiene pública, economia, política (SCHWARCZ, 1993, p. 117).

Um importante relato da história da Escola do Recife é de um dos seus mais


conhecidos alunos, o cearense Clovis Bevilaqua83. O jurista explica que a instituição teve uma
enorme influencia em outros centros intelectuais, inclusive o cearense.
Além do próprio Clovis, o curso contou com diversos cearenses como Capistrano
de Abreu (1869-1871); Rocha Lima (1871); Tomás Pompeu (1869-1872) e Araripe Jr. Júnior
(bacharelando-se em 1869, da mesma turma de Tobias Barreto). Todos, a exceção de Clovis,
foram membros da Academia Francesa, no Ceará84
No entanto, há várias testemunhas que destacam a autonomia do movimento
intelectual de Fortaleza. A Escola do Recife tinha uma abertura para diversas correntes
filosóficas, mas Sílvio, posteriormente (A Filosofia no Brasil: ensaio crítico/ 1878), esforçou-
se em defender a primazia filosófica de Tobias Barreto85.
Sobre o grupo intelectual de Fortaleza, Afrânio Coutinho salienta que
O desenvolvimento intelectual na cidade, por volta de 1870, é idêntico ao do Recife,
mas sem a influência desta, pois se processou de maneira paralela. (...) Ora, a
questão é fácil de ser esclarecida à luz da cronologia. Afirmou Sílvio que a “Escola
do Recife” teve uma primeira fase, até 1870, de característica puramente poética na
linha do hugoanismo com Castro Alves e Tobias Barreto; esta seguiu-se a fase
crítico-filosófica, de 1870 a 1877-78. E é ainda Sílvio quem informa que só de 1873
em diante, especialmente depois em 1875, com o seu concurso, durante o qual
lançou a famosa tirada de que “a metafísica está morta”, é que se foram firmando os
postulados que constituíram a ideologia da “Escola” (2004, p. 25).

Rocha Lima e Capistrano de Abreu estiveram no Recife, entre 1869 e 1871, no


momento em que as ideias modernas ainda não estavam amadurecidas. Rocha Lima era um
membro precoce da Academia francesa, porém de muita cultura filosófica e literária. De
acordo com o depoimento de Capistrano de Abreu, o amigo, ao chegar a Pernambuco em
1871, continuou ali o mesmo ‘sistema de vida’ de Fortaleza. Passava os tempos livres na
Biblioteca do convento do Carmo.

83
Formou-se na Faculdade de Recife, e posteriormente atuou como promotor público, como político e consultor
jurídico do Ministério do Exterior. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e membro do
Instituto Histórico e Geográfico. Foi o autor do projeto do Código civil brasileiro, em 1901. O código foi
promulgado em 1916 e vigorou até 2002.
84
Estudada no primeiro capítulo dessa pesquisa.
85
Tobias Barreto de Menezes (1837-1889) fez o curso de Direito na Faculdade de Recife (1864-69), onde foi
colega de Castro Alves. Ambos nutriam uma grande admiração pela poesia de Victor Hugo. Depois de formado
e atuando como jornalista, aproxima-se dos escritos de pensadores alemães, por exemplo, Haeckel. Em 1882,
vence o concurso da Faculdade de Direito do Recife, onde foi o grande entusiasta e mestre da chamada “Escola
do Recife.” Grande divulgador das ideias germânicas, teve entre os seus discípulos Sílvio Romero, Graça Aranha
e Artur Orlando.
142

Capistrano descreve que o primeiro pensador que animou o crítico foi Vacherot,
com o seu Science et conscience. Em seguida, o “edifício de suas crenças foi abalado por
Taine” (Capistrano, 1968). Contudo, firmou a sua crença no determinismo com o pensador
inglês Buckle. No frenesi de suas leituras, foi arrebatado pelo positivismo de Comte. Tornou-
se um apóstolo da razão e sua ação intelectual e política se embasou pelo positivismo,
inclusive a sua adesão à maçonaria, às polêmicas contra a Igreja Católica e ao projeto da
Escola Popular.
As leituras não se restringiam a sua individualidade, eram partilhadas entre os
colegas bacharéis, como nos diz Capistrano
Era em casa de Rocha Lima que reuniam-se os membros do que chamávamos
Academia Francesa. Quanta ilusão! Quanta força, quanta mocidade! França Leite
advogava os direitos do comtismo puro e sustentava que o Systhème de Politique era o
complemento do Cours de Philosophie. Melo descrevia a anatomia do cérebro, com a
exatidão do sábio e o estro do poeta. Pompeu Filho dissertava sobre a filosofia alemã e
sobre a Índia, citava Laurent e combatia Taine. Varela – o garboso abnegado paladino,
- enristava lanças a favor do racionalismo. Araripe Jr. Júnior encobria com a máscara
de Falstaff a alma colorida de René. Felino falava da Revolução Francesa, com o
arrebatamento de Camilo Desmoulins. Lopes, ora candente como raio de sol, ora
lôbrego como uma noutre de Walpurgis, dava asas a seu humor colossal. Por vezes
das margens do Amazonas chegava o eco de uma voz, doce como poesia. Suas águas
sem fim, - a de Xilderico de Faria, hoje para sempre mudo no regaço do Oceano (sic)
(apud LIMA, Rocha, 1968. p 77-78).

Essa citação é importante, pois mostra o rol de leituras que eram debatidas entre
os membros da Academia Francesa, vários pensadores que estavam em voga na Europa,
inclusive em Portugal. O foco eram filósofos franceses, como Comte e Taine, além de
alemães. Portanto, os intelectuais cearenses já tinham bagagem de leituras quando foram ao
Recife.
Conforme Clovis Bevilaqua, a Escola do Recife não era um conjunto doutrinário
de ideias, um sistema. Na verdade, era a reunião de um conjunto de ideias progressivas de
várias fontes, que tivessem critérios ‘científicos’. Cada aluno era livre para escolher um
sistema filosófico ou combinar sistemas aos seus interesses intelectuais.
Paim (1999. p. 50-51), após esmiuçar livros, artigos, jornais, documentos e
depoimentos sobre a Faculdade de Direito de Recife, estabelece que a instituição atravessou
quatro fases: Na primeira, (do final da década de 1860 até 1875), os seus fundadores,
professores e alunos tinham interesse em desenvolver uma renovação do pensamento,
rejeitando o ecletismo espiritualista. As suas armas teóricas eram o positivismo e o
darwinismo. Poeticamente, a Escola era dominada pelo amor a Byron, e em seguida, a adesão
ao movimento romântico condoreirista, tendo ainda como ídolo Vitor Hugo. Os estudantes
143

dessa época estavam repletos de paixão nacional, concomitante à agitação política da Guerra
do Paraguai. Os corifeus dessa fase são Castro Alves e Tobias Barreto.
Na segunda, segue uma transição do hugoanismo para o realismo, na poesia86. A
partir do início de 1870, influenciado pelas novas ideias filosóficas, Sílvio escreve vários
artigos atacando as principais fortalezas do romantismo: o sentimentalismo, o indianismo, o
hugoanismo, o lirismo subjetivista, o humorismo.
O ano de 1875 é o da ruptura. Tobias Barreto, que caminha para se tornar a figura
central da Escola, publica o texto “Deve a Metafísica Ser Considerada Morta?” e nesse
mesmo ano, Romero publica o livro A filosofia no Brasil, obra em que marca o rompimento
com o positivismo. O evento que irá desencadear um processo diferenciador nos rumos da
Escola é o incidente na defesa de Romero, no qual ele declarou que a metafísica estava morta.
Em seguida, na terceira fase, que compreende de meados da década de 80 até o
início do século XX, é marcado pela morte de Tobias em 1889. Os seus últimos trabalhos são
reeditados por Romero, gerando uma efervescência filosófica na Escola.
Sílvio Romero publica as obras livros Doutrina contra Doutrina (1894), Ensaios
de Filosofia do Direito (1895) e Ensaios de Sociologia e Literatura (1901); Clóvis Beviláqua
publica os seus primeiros ensaios, que depois estarão em Esboços e Fragmentos (1889); Artur
Orlando e Fausto Cardoso publicam Concepção Monística do Universo: Cosmos do Direito e
da Moral (1894). Com o início do regime republicano, os membros da Escola do Recife
atuam mais na imprensa local, incluindo os periódicos, alguns efêmeros, Revista Acadêmica e
Cultura Acadêmica, com defesa do cientificismo.
Voltando para 1873, perceberemos que as ideias modernas, pautadas no
racionalismo e no cientificismo ganham força no Recife, tais como
as doutrinas positivista, ortodoxa e heterodoxa de Littré; o evolucionismo spenceriano
(o qual Tobias sempre combateu); as teorias de Taine, cujos livros eram muito lidos; o
monismo, que de Kant, Schopenhauer e Hartman, passou para Haeckel e Noirée, isto
é, o ‘alemanismo’ de Tobias, mas que, segundo Beviláqua, só se revela em 1881, no
seu regresso a Recife. Portanto a curva da evolução foi do positivismo ao monismo
haeckeliano, sendo que alguns seguiram Spencer e Mill, outros o materialismo, mais
tarde aplicando ao direito os mesmos postulados filosóficos, segundo Jhering, Post etc
(COUTINHO, 1981. p. 113).

86
As produções líricas antirromânticas de Recife foram denominadas de poesia científica, termo desenvolvido
por Sílvio Romero e Martins Júnior (1860-1904). Martins Júnior foi um dos mais entusiastas dessa singular
concepção poética. Ele entendia que a poesia escrita no Brasil passava por um estado de anormalidade (o período
a que ele se referia era o do romantismo do final da década de 1870 e início da década de 1880). Declarando
patentemente a influência do positivismo comteano, Martins Júnior defende suas ideias no livro A poesia
científica, esforço de um livro futuro, de 1883. Nesta obra, ele defende a substituição da imaginação romântica
pela verdade científica.
144

A partir da citação, percebemos uma predileção das doutrinas defendidas no


Recife, que iam do monismo haeckeliano ao evolucionismo de Spencer, além do positivismo
radical.
A evolução das ideias da instituição culmina no aspecto jurídico, na década de
1880, na sua quarta fase, quando Tobias Barreto será o proeminente jurista.
José Veríssimo nos reforça que:
No Ceará, donde era e onde residia Araripe Jr. Júnior, formara-se por aquele tempo
um grupo literário composto dele, de Capistrano de Abreu, do malogrado Rocha
Lima, de Domingos Olímpio, de Tomás Pompeu e doutros nomes menos conhecidos,
grupo ledor de Spencer, Buckle, Taine e Comte e entusiasta das suas novas idéias.
Esse grupo ficou estranho à influência da Escada e precedeu de dez anos a do Recife
(1998. p. 237).

Na citação, só destacamos o nome de Domingos Olímpio que não fez parte da


geração da Academia Francesa. Percebemos que não há menção a qualquer dívida em relação
ao movimento de Recife. A insistência de Clovis Beviláqua, talvez seja pela influência
jurídica que a Escola exerceu.
Os pensadores alemães não eram os preferidos entre os cearenses. A predileção
eram os franceses, visto o nome dado à associação. Também os pensadores ingleses eram
cultivados como Spencer e Buckle. Capistrano, que esteve no Recife não se impregnou “do
alemanismo de Tobias, na orientação filosófica monista, a Haeckel e Noirée. Escapou
nitidamente dessa influência. O que lhe adveio da Alemanha foram as teorias geográficas,
especialmente o determinismo de Ratzel (COUTINHO, 1981. p. 115)
Portanto, do estabelecimento e evolução dos dois grupos de pensadores – os
cearenses e os pernambucanos – não se pode falar em influência absoluta entre si, o Ceará não
foi um simples repercussor do ideário de Recife, mas também não estava alheio ao que
ocorria lá. Pela cronologia e pelos próprios relatos de Sílvio Romero e Clovis Bevilaqua, na
época em que os membros da Academia Francesa, estiveram no Recife, como Araripe Jr.
Júnior e Rocha Lima e Capistrano de Abreu, ainda não existiam doutrinas organizadas e
dominantes que a caracterizassem.
A configuração intelectual da Escola de Recife é construção, a posteriori, de Sílvio
Romero, é a verificação de historiador, ou melhor, de evocador e, de outros que dela
participaram. Na época, não havia consciência de escola, nem entre seus membros
ou participantes nem entre os espectadores e estranhos que dela não deixaram
testemunho. Não há testemunhos de contemporâneos insuspeitos e imparciais que
justifiquem a denominação. Ninguém na época sente a sua presença. Os seus
adeptos é que, posteriormente, supervalorizaram o papel, o que é natural e
compreensível. Assim, a Escola não passou de um movimento de agitação
intelectual renovadora, que se desenvolvia paralelamente em todo o resto do país,
pela sua inteligência moça e de vanguarda, toda ela com contato com as ideias
‘modernas’. Devido à presença da Faculdade, em Recife se desenvolveu um
abscesso de fixação. Não estiveram entre 1869 e 1871 sentir a sua presença, nem lhe
145

dever qualquer influência decisiva no que concerne à colocação e definição dos


problemas intelectuais (idem, 1981. p. 116).

Nosso intuito não é diminuir a importância da Escola do Recife, mas esclarecer


que a instituição não foi a única a divulgar as ideias modernas e a tentar transformar a
inteligência brasileira.
Do conjunto de pensadores alemães, cabe salientar a inspiração pelas ideias sobre
monismo, evolucionismo, historicismo, antimecanicismo. Segundo Antônio Paim, a grande
novidade da Escola do Recife foi o culturalismo defendido por Tobias Barreto e em seguida, a
sua adesão apaixonada pelo neokantismo
Inspira-se no movimento neokantiano – carente de unidade interna na própria
Alemanha, sobretudo em sua fase inicial, precisamente aquela que repercutiu no
Brasil – naquilo que tem de mais geral, ou seja, o empenho em superar tanto ao
materialismo como ao positivismo, propiciando uma volta à metafísica que não
implicasse na reabilitação da ontologia aristotélico-tomista (1999, p. 8).

A adesão ao neokantismo ocorre como uma maneira de criticar o determinismo,


pelo qual o ser humano é visto como reles marionete. O alvo da crítica de Tobias é Comte.
Com a sua influência, o pensamento alemão eclode em Recife. Essa defesa ocorre desde a
época em que estava se bacharelando e se intensifica depois que se torna lente da instituição.
A Escola do Recife é importantíssima para o desenvolvimento da crítica literária
brasileira, pois dela saem Araripe Jr. Júnior e Sílvio Romero. Este, ao partir para o Rio de
Janeiro, se tornara o seu porta-voz e defensor implacável, devotando o resto da vida à sua
promoção.

2.6 Sílvio Romero

Sílvio Romero87, em polêmica com o português Teófilo Braga, no início do século


XX, apresenta-nos um pouco do seu percurso intelectual e de suas principais influências:
aí andam os meus livros, publicados no decurso de mais de trinta anos e que devem
ser lidos na sua ordem cronológica para se compreender a evolução natural do meu
pensamento, que, em filosofia, mudou do positivismo para o evolucionismo
spencerista, chamado também por alguns agnosticismo evolucionista, pelo caminho
natural do criticismo de Nageli, Du-Bois Reymond e Helmholtz, como tenho cem
vezes exposto com a maior lhaneza; que no tocante ao rigorismo da análise, como
tenho dito, passou do pessimismo da fase polemística dos primeiros tempos ao

87
Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero foi crítico, folclorista, ensaísta, professor, polemista e
historiador da literatura brasileira. Nasceu em Lagarto (SE), em 21 de abril de 1851, e faleceu no Rio de Janeiro,
em 18 de julho de 1914. Participou da instalação da Academia brasileira de letras, em 28 de Janeiro de 1897,
ficando com a cadeira Nº 17, cujo patrono escolhido foi Hipólito da Costa.
146

período de maturidade crítica iniciado na História da Literatura Brasileira, o que só


para quem anda de má-fé, ou nada entende destas coisas, importa em contradição,
porque a contradição supõe o choque de dois pensamentos contraditórios num
mesmo tempo, ao passo que tudo aquilo vem a ser apenas a normal evolução de um
espírito que caminhou, que progrediu (1904. p. 69-70).

Nesse trecho, ele menciona as principais linhas de pensamento que o moldaram: a


passagem do positivismo para o evolucionismo, a adesão plena às novidades germânicas. Ele
diz que foi polêmico em sua juventude e a sua obra madura é a História da Literatura
brasileira. Nessa declaração, há pontos interessantes. Romero nunca deixou de ser polêmico.
A citação já é de um texto no qual entrou em choque com Teófilo Braga. A contradição é uma
caraterística importante do seu pensamento, o seu próprio estilo, pois é com a contradição que
ocorre o choque de ideias, numa disputa intelectual e haverá, então, o aperfeiçoamento dos
indivíduos.
A ele é atribuída a primogenitura da historiografia literária brasileira com a sua
obra publicada em 1888. Essa é a grande obra crítica de sua carreira:
Sílvio Romero foi capaz de, por um lado, fazer da história literária um repositório da
variada cultura do país e não apenas de sua literatura, e, por outro, graças a uma
inteligência aglutinadora e sistemática, dar a seu discurso histórico-literário uma
paixão interpretativa com relação ao quadro geral da cultura brasileira, que ainda
mais se acentuava pelas características polêmicas de seu temperamento
(BARBOSA, 1996, p. 18).
Sílvio Romero foi o primeiro pensador que, a partir das contribuições dos
românticos Gonçalves de Magalhães, Pereira da Silva, Joaquim Norberto e Varnhagen,
escreveu um estudo sistemático sobre a história da literatura brasileira. Com base nos
documentos e textos coletados, realizou uma ordenação, averiguou a significação desses
dados, descobriu autores, enfim traçou uma linha do tempo evolutiva. Em sua fase inicial, no
Recife, o alvo feroz de sua crítica era o romantismo, em detrimento de ideias modernas que
estavam sendo recepcionadas e que dariam uma virada teórica em direção ao naturalismo:
raça, meio, evolução histórica. A sua primeira missão foi estabelecer o critério de estudo para
a literatura.
Em torno dessa missão, a preocupação historiográfica de Romero surge desde
seus primeiros textos, como A literatura brasileira e a crítica moderna, de 1880, onde inicia
uma sistematização de sua teoria crítica, apoiado na leitura de Taine, colocando em debate os
fatores deterministas.
Romero chega ao Rio de Janeiro em 1876. Em entrevista a João do Rio, ele
afirmou que permanecera no Recife, de janeiro de 1868 até o ano mencionado. As leituras em
sua estadia no Recife, na verdade “não fizera senão desenvolver o que em mim já existia,
desde os tempos do engenho, da vila, da aula primária e dos preparatórios.” (João do Rio,
147

1905). Ele se autovaloriza, não negando as influências recebidas, mas relata que as leituras só
desabrocharam o caráter reflexivo e combativo que germinavam no jovem. Ele queria atrelar
aspectos de hereditariedade a suas conquistas intelectuais. Na capital pernambucana, declara
que “foram um estudo de Emílio de Laveleye acerca dos Niebelungen e da antiga poesia
popular germânica, um ensaio de Pedro Leroux sobre a Goethe e um livro de Eugênio Poitou
sob o título — Filósofos Franceses Contemporâneos” (sic) (João do Rio, 1905), que lhe
serviram para fortalecer a sua visão de mundo.
Em outro depoimento, em Filosofia do Brasil, uma de suas primeiras obras,
comenta as leituras recifenses e seu abandono da doutrina positivista:
a doutrina de Auguste Comte trouxe inapreciáveis vantagens a filosofia, mas que no
grande todo depara-se com ideias inaceitáveis e perigosas para a ciência. Tal é. O
positivismo é um fecundo sistema, no caso de alguns outros que têm havido. Por
mais que se esforcem os seus discípulos, na hora atual, para , coloca-lo ao nível dos
últimos avanços do espirito. É sempre verdade que o grande edifício já nos fica
pelas costas. Vamos para adiante. Julgo-me, seja dito de passagem, com plena
isenção de espirito' para aprecia-lo; outrora seu sectário; na ramificação dirigida por
E. Littré, só o deixei quando livros mais desprevenidos e fecundos me chegaram as
mãos. Comte só foi largado por amor a Spencer, a Darwin, a Haeckel, a Büchner, a
Vogt, a Moleschott, a Huxley, e ainda hoje o lado inatacável, aquilo que sempre
restará de sua brilhante organização filosófica, me prende completamente (sic)
(1878. p. 68).
Nesta formação nota-se, desde logo, o predomínio das influências cientificistas.
Na segunda metade do século XIX, o advento, no Brasil, do positivismo e do evolucionismo,
exigia de quem se aventurasse pela filosofia uma fundamentação científica do pensamento.
Romero trouxera a forte influência de sua estada no Recife, especialmente, Tobias
Barreto, no seu esforço em pensar o Brasil a partir da filosofia alemã. Na corte, seu primordial
embate é a sua condição de provinciano, pois o Rio de Janeiro:
detinha o maior mercado de trabalho para os homens de letras, que encontravam
oportunidades no ensino, na política e no jornalismo. A capital atraia os
representantes dos movimentos críticos do Norte e do Nordeste, como Sílvio
Romero, José Veríssimo, Araripe Jr. Júnior e Capistrano de Abreu. Todos foram
membros ou do instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838, ou da
Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897. Romero, Veríssimo e Capistrano
foram professores do prestigioso Colégio Pedro II. Encontraram na imprensa lugar
para exercer a crítica literária e divulgar as suas ideias (VENTURA, 1991, p. 10).

O Rio não é apenas um espaço geográfico, é um espaço simbólico de lutas


intelectuais, é um campo literário bastante concorrido e tenso. Sílvio Romero, como um
representante de uma província, exerceu protagonismo na luta pela autonomia em relação ao
centralismo da capital. De certa forma, defender a província, era defender o nacionalismo
brasileiro. A defesa nacional estava na compreensão da cultura brasileira, utilizando um
instrumental teórico, pretensamente científico.
148

Muitos dos artigos e ensaios que publicou na Faculdade de Direito do Recife, ele
os reorganiza e publica em 1880, A Literatura Brasileira e a Crítica Moderna. O livro reúne
artigos publicados entre 1872 e 1874, composto também por um prólogo e um epílogo, em
que explicita a doutrina que o acompanhará no seu percurso crítico.
Nesses artigos, já percebemos a construção de uma visão da sociedade brasileira
como produto da miscigenação, da mescla de raças e culturas. A mestiçagem será a marca que
nos diferencia do português, incluindo a contribuição dos povos africanos. Mas para causar
uma revolução na inteligência brasileira, seria necessário que os críticos e historiadores se
fundamentassem na ciência e na filosofia moderna. No seu livro A filosofia no Brasil (1878),
dá início a uma campanha contra a grande influência da filosofia francesa (mais adiante
discutiremos as leituras francesas de Romero, principalmente Taine), efetuando a propaganda
das leituras germânicas. Na obra, eleva a figura de Tobias Barreto como grande baluarte do
pensamento moderno brasileiro.
Em 1880, publica mais um livro, O naturalismo em Literatura, onde burila o seu
método crítico, e em 1881, com A Interpretação Filosófica dos Fatos Históricos, é a tese com
a qual obtém uma cadeira de Filosofia no Colégio Pedro II. Além dos pensadores alemães,
adere com mais ênfase à ideia do determinismo do meio sobre a civilização, a partir da obra
de Thomas Buckle.
Quase no final da década, em 1888 vem a público sua obra primordial, História
da literatura brasileira, originalmente publicada em dois volumes. O primeiro volume é
teórico, no qual o autor focaliza e discute os fatores determinantes para a formação da cultura
brasileira. No segundo volume, o historiador cataloga as produções espirituais do povo
brasileiro, incluindo textos jurídicos e textos da tradição oral, até a data de publicação da obra,
em 1880, mas omite os ficcionistas do século XIX, sobretudo, ele privilegia o estudo da lírica
brasileira, que culmina,
numa desconcertante apoteose de Tobias Barreto, que ocupa 120 páginas, ou seja,
mais espaço do que o século XVIII com Escola Mineira e tudo, e se vê guindado
praticamente à posição de maior escritor brasileiro, superior a Castro Alves como
poeta, a Machado de Assis como prosador e a toda a gente como pensador
(CÂNDIDO, 1989. 107).
O curioso é que em artigos anteriores e no livro em questão, ele demonstra o seu
pioneirismo e sua modernidade, pela aproximação com os métodos científicos, porém, realiza
uma apologia da obra lírica de Tobias Barreto, de modo propagandístico e proselitista, não
escondendo sua paixão pelo confrade. É preciso um desconto na leitura da obra, pois sua
escrita oscila entre graves análises e juízos apaixonados, elogios, birras, enfim, uma escrita
repleta de altos e baixos.
149

Sílvio efetuou algumas revisões da obra, lançando em 1902 uma segunda edição,
que é a referência, pois foi a última edição revista em vida pelo autor. Na terceira edição, de
1943, há uma reformulação completa da obra, feita por seu filho Nelson Romero, que ampliou
a obra para cinco volumes, incorporando ao texto original diversos trabalhos de diferentes
épocas e finalidades.88
Na História da Literatura brasileira, o autor divide as Letras brasileiras em
quatro épocas: a) formação (1500 e 1750); b) desenvolvimento autônomo (1750 e 1830); c)
transformação romântica (1830 e 1870); d) reação crítica (depois de 1870) (ROMERO, 2001,
p. 60). Na edição de 1888, Romero trata dos dois primeiros períodos, no primeiro volume; o
Romantismo será matéria de análise do segundo volume; o último período, de “reação
crítica”, do qual ele mesmo faria parte, não chegou a ser escrito.
A primeira grande parte do livro, “Fatores da literatura brasileira”, é constituída
pelos seguintes capítulos: “Capítulo I | Trabalhos estrangeiros e nacionais sobre a literatura
brasileira | Divisão desta | Espírito geral deste livro”; “Capítulo II | Teorias da história do
Brasil”; “Capítulo III | A filosofa da história de Buckle e o atraso do povo brasileiro”;
“Capítulo IV | O meio | Fisiologia do brasileiro”; “Capítulo V | A nação brasileira como grupo
etnográfico e produto histórico”; “Capítulo VI | Raças que constituíram o povo brasileiro| O
mestiço”; “Capítulo VII | Tradições populares – Cantos e contos anônimos | Alterações da
língua portuguesa no Brasil”; “Capítulo VIII | Relações econômicas | As instituições políticas
e sociais da Colônia, do Império e da República” e “Capítulo IX | Psicologia nacional |
Prejuízos de educação | Imitação do estrangeiro”.
No plano da obra, percebemos os seus critérios de estudo literário, no qual a
literatura seria apenas uma causa imediata da conjunção de fatores naturais e sociais,
enfatizando a raça como fator primordial e uma visão progressista, orientado por uma visão
linear dos fatos históricos, que culminam no aperfeiçoamento da civilização.

88
Os acréscimos feitos por Nelson Romero são: No volume I, acrescentou “Novas contribuições para o estudo
do folclore brasileiro”, em três partes; “o Brasil social e os elementos que o plasmaram”, “Conclusões gerais”,
extraídas do livro Compêndio de literatura brasileira [da segunda edição, 1909] e contendo “I. O meio; II. A
raça; III. Influxo estrangeiro; IV. Sentido teórico da literatura brasileira; V. Fases evolutivas da literatura
brasileira”; da obra Da crítica e sua exata definição, o organizador introduziu no volume II: “Terceira época ou
período de transformação romântica – teatro e romance”, com estudo sobre “Macedo Martins”, “Pena”,
“Alencar”, “Agrário”, “Franklin Távora”, “Pinheiro Guimarães”, “Manuel de Almeida”, “Taunay”, “Machado de
Assis”; “Diversas manifestações na prosa – história”, incluindo estudo sobre Martius e “historiadores”;
“Diversas manifestações na prosa – publicistas e oradores”, “Retrospecto literário”, incluindo “Retrospecto
literário”, de 1888, e “Confronto em retrospecto”, de 1904; “Reações antirromânticas na poesia – evolução do
lirismo”, “Artigos esparsos” sobre Barão do Rio Branco, João Ribeiro, Farias Brito, Tito Lívio de Castro, Lopes
Trovão, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha e Nestor Vitor; “Quadro sintético da evolução
dos gêneros na literatura brasileira”, somando o livro com este nome, de 1909.
150

No capítulo de cunho metodológico, ao falar de historiografia, é notória a sua


perspectiva evolucionista
A teoria da história dum povo parece-me que deve ser ampla e compreensiva, a
ponto de fornecer uma explicação completa de sua marcha evolutiva. Deve
apoderar-se de todos os fatos, formar-se sobre eles para esclarecer o segredo do
passado e abrir largas perspectivas na direção do futuro (2001.p. 73).

O segredo para desvendar o passado será a compreensão da mistura das raças,


ocasionando o fenômeno da mestiçagem, que para o historiador, é o fato diferencial do Brasil,
pois
Todo brasileiro é um mestiço, quando não no sangue, nas ideias. Os operários deste
fato inicial têm sido: o português, o negro, o índio, o meio físico e a imitação
estrangeira. Tudo quanto há contribuído para a diferenciação nacional, deve ser
estudado, e a medida do mérito dos escritores é este critério novo (2001, p. 57).

O mestiço é o legítimo produto fisiológico, étnico e histórico da formação racial


brasileira. Ele é o nosso fator diferencial. O crítico defende essa nova visão metodológica para
que crítica literária se modernize.
Analisando os seus critérios, observamos que Antônio Cândido percebeu uma
debilidade epistemológica:
De maneira quase sempre decepcionante, Sílvio Romero crítico literário é alguém
que só consegue ver, para lá da literatura, o seu cunho de documento da
sensibilidade ou da sociedade, - com a consequente e referida birra pelas
considerações de ordem estética, no fundo inacessíveis à sua insensibilidade neste
setor e que ele costumava enquadrar na chave da masturbação mental (1989. p. 115).

Cândido nos esclarece que Romero está mais para sociólogo no seu tratamento
dado à literatura, uma vez que o texto literário é visto como reflexo do espírito da sociedade.
Literatura, de acordo com os pensadores alemães eram “todas as manifestações da inteligência
de um povo: — política, economia, arte, criações populares, ciências… e não, como era de
costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas-letras, que afinal cifravam-se quase
exclusivamente na poesia!…” ( ROMERO, 2001, p. 61. Vol I).
A expressão da cultura de um povo é feita pelos poetas e historiadores,
responsáveis por criar as imagens e as intepretações da nação, contribuindo para a formação
de uma tradição. Romero nos diz que “sem ideal e sem tradições impossível é formar-se um
povo; sem poesia e sem história não pode haver literatura; poetas e historiadores são os
sacerdotes ativos e oficiantes da alma de uma nacionalidade” (2001, p. 378).
151

A partir desse conceito amplo de literatura, que modernamente, entendemos como


sinônimo de cultura89, é que o autor desenvolve sua metodologia crítica.
A “crítica” para ele tem um sentido de investigação ampla dos aspectos culturais
de uma civilização. Ou seja, Romero, ao observarmos a epistemologia de História da
Literatura brasileira, é um cientista social e antropólogo, que em suas análises da
constituição sociocultural do povo brasileiro, inclui algumas obras literárias.
Tanto Romero, quanto outros críticos de sua época, não eram apenas leitores
passivos das ideias europeias. Elas foram lidas, adaptadas, fundidas, dependendo da afinidade
teórica de cada crítico e, sobretudo, de seus compromissos políticos.
Observamos que na História da literatura brasileira, ele apresenta uma ideia de
literatura como sinônimo de cultura, contudo associou ao conceito de civilização. Cultura e
civilização são sinônimos?
Os conceitos de civilização e de cultura surgem em contextos diferentes. Mas a
ideia apresentada por Romero, ‘kultur’, é de origem alemã. Anteriormente, já discutimos
sobre ‘civilização’, ao fazermos um breve exame das obras de Taine e Guizot. Esse último
apresenta uma concepção de civilização a um sentido progressista e inerente à Europa.
Norbert Elias nos auxilia nesse debate
O Conceito de “civilização” refere-se a uma grande variedade de fatos: ao nível da
tecnologia, ao tipo de maneiras, ao desenvolvimento dos conhecimentos científicos,
às ideias religiosas e aos costumes. Pode-se referir ao tipo de habitações ou à
maneira como homens e mulheres vivem juntos, à forma de punição determinada
pelo sistema judiciário ou o modo como são preparados os alimentos.
Rigorosamente falando, nada há que não possa ser feito de forma “civilizada” ou
“incivilizada”. Daí ser sempre difícil sumariar em algumas palavras tudo o que pode
descrever como civilização (ELIAS, 1990, p. 23).
Constatamos que a descrição de Elias nos aproxima de uma ideia antropológica
geral de cultura. Todavia, percebemos que ele enfatiza aspectos materiais, embora também
denote aspectos imateriais. A civilidade constrói parâmetros normativos que podem distinguir
os que possuem hábitos civilizados ou não. Sem simplificar a complexidade da questão, mas
nos parece se referir ao estilo de vida, que é associado pelo sociólogo à vida aristocrática da
corte francesa. Essa era ideia expressa na França.
Já no emprego que lhe é dado pelos alemães Zivilization, significa algo de fato útil,
mas apesar disso apenas um valor de segunda classe, compreendendo apenas a
aparência externa de seres humanos, a superfície da existência humana. A palavra
pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra expressa-lhes o
orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser é Kultur (Elias, 1990, p. 24).

89
De acordo com Câmara Cascudo, Ratzel traduzia o termo “kultur” como um conjunto de disponibilidade
mentais de um povo para uma época (1994. p. 40). Portanto, cultura pode ser entendida como conjunto de
técnicas de produção, doutrinas e atos, normas, que são transmissíveis pela convivência e ensino, de geração em
geração. Cada cultura forma um rico patrimônio material e imaterial.
152

Kultur (cultura) se desenvolveu como um contraponto à ideia francesa de


civilização. Elias nos explica que correu uma consciência de classes no meio da burguesia
alemã, em que os nobres queriam se sentir distintos do restante da população. Essa distinção é
expressa por sentimento de posse de virtudes e conhecimentos essenciais da elite.
Segundo Elias
O conceito de Kultur reflete a consciência de si mesma de uma nação que teve de
buscar e constituir incessante e novamente suas fronteiras, tanto no sentido político
como espiritual, e repetidas vezes perguntar a si mesma: “Qual é, realmente, nossa
identidade?” A orientação do conceito alemão de cultura, com sua tendência à
demarcação e ênfase em diferenças, e no seu detalhamento, entre grupos,
corresponde a este processo histórico (1990, p.25).

A cultura era um sentimento de pertencimento e distinção. Constitui valores que


deveriam ser praticados e cultivados como um ideal. Esse sentimento abstrato e coletivo
estava impregnado na mente dos alemães, ocasionando a origem do sentimento nacionalista.
Ora, a cultura alemã não era apenas os modos aristocráticos (zivilization), mas virtudes
inerentes ao sangue e à raça ariana. Portanto, a cultura era sinônimo da própria nação.
Mas Romero, em sua obra, tinha a ambição de estudar as origens da cultura
brasileira, isto é, o que nos tornava únicos, os nossos valores e virtudes, as nossas
especificidades. A interpretação da cultura seria concretizada pelo estudo do conjunto de raças
que gerou o brasileiro. Porém, ele tem uma visão progressista, pois descobrindo os fatores
constituintes da cultura brasileira, descobrindo assim os motivos do nosso ‘atraso’, esboçaria
soluções para que nos atingíssemos um grau próximo ao da civilização europeia.
Assim, diversas teorias e autores atravessam a obra, mas ele nos esclarece a sua
orientação cientificista;
Não resta a menor dúvida que a história deve ser encarada como um problema de
biologia; mas a biologia aí se transforma em psicologia e esta em sociologia; há um
jogo de ações e reações do mundo objetivo sobre o subjetivo e vice-versa; há uma
multidão de causas móveis e variáveis capazes de desorientar o espírito mais
observador (2001, p. 215).

História, então recebeu os critérios da biologia, para investigar os fatores sociais e


psíquicos, observando o povo de onde sai o autor da obra literária e sua representação desse
povo. O seu desejo em analisar literatura (cultura) brasileira, tem um sentido reformista, visto
que a reforma intelectual pretendida visava também uma reforma social.
Ainda sobre o conceito de literatura vinculado à cultura, essa amplitude decorre de
Taine. Mesmo Romero expondo a sua adesão e paixão pelo pensamento alemão, e citar tantas
153

vezes o trabalho de Buckle90, que era um historiador inglês, quem veiculou a crítica e a
historiografia literária à ciência foi Taine.
Ele dedica um capítulo da obra, “A filosofia da história de Buckle e o atraso do
povo brasileiro” para explicar suas teorias e elogiá-lo como ‘pintor do atraso’ de alguns
povos. O pensador inglês rejeita as ideias metafísicas e defende um empirismo científico para
a teoria da história, ao afirmar que todas as ações humanas podem ser explicada à luz dos
métodos das ciências naturais, métodos que também são influenciados pela ação do meio.
Segundo Paim, sobre
as leis que dirigem a história são físicas (clima, alimentação e aspecto geral da
natureza) e mentais (intelectuais e morais), das quais as primeiras seriam mais
importantes. Divide a civilização em dois grandes ramos: a da Europa (predomínio
do esforço do homem sobre a natureza) e o resto do mundo (predomínio da natureza
ou das leis naturais) (1999. p. 87).
O ponto de vista eurocêntrico será paradoxalmente aceito por Romero, pois ele é
leitor das teorias e admirador dos pensadores e cultiva uma visão progressista para si e para o
Brasil. Todavia, essa mesmas leituras cientificistas e deterministas condenam o Brasil, por
não ser europeu e estar situado numa zona de clima quente, resultado de uma mistura de
raças, ao atraso econômico, cultural e político, permitindo-se ser colonizado, explorado e
‘civilizado’ pelos povos mais “avançados”.
Antônio Cândido nos informa sobre um conjunto de influências deterministas em
Romero, que esse
tomou o fator mesológico, que mais tarde criticaria com pertinência, e que na
primeira fase da sua obra é apenas indicado. Mais presentemente nela encontramos o
fator raça, um dos cavalos de batalha da crítica cientifica. Convencido da
relatividade do conceito de raça pura, aprendera, inclusive em Haeckel, que as raças
históricas são produto de hibridizações multiplicadas (1988. p. 50).

Essa ênfase no ‘fator raça’ será o mote de sua teoria crítica da mestiçagem, a sua
contribuição ao pensamento brasileiro. Somos mestiços, tanto física e quanto moralmente.
Cada raça legou sua peculiaridade à nossa cultura, na qual o crítico interpretou a literatura
como um fenômeno de instabilidade. Nós não éramos mais índios, negros ou europeus,
constituímo-nos uma mistura, nos tornávamos fracos intelectualmente. Esse é um grande
impasse, não só do pensamento de Romero, mas da Geração de 70 que reiteramos: como
desenvolver uma civilização brasileira, se pelo fator racial estamos determinados ao atraso
cultural e material? O impasse do crítico ocorre, porque o ponto de vista que assumiu, o de

90
Henry Thomas Buckle (1823/1862) foi um historiador e sociólogo britânico, que bebeu das fontes filosóficas
de Comte, Stuart Mill, Quetelet e outros. Autor de História da Civilização na Inglaterra, obra idealizada em três
volumes, que inacabada, teve apenas os dois primeiros volumes publicados, em 1857 e 1861, respectivamente.
154

Buckle e Taine, é eurocentrista. Numa relação de causa e efeito, nesse raciocínio, o


colonizado é uma raça inferior.
Observemos como Sílvio Romero coloca essa questão:
A história do Brasil, como deve ser hoje compreendida, não é, conforme se julgava
antigamente e era repetida pelos entusiastas lusos, a história exclusiva dos
portugueses na América. Não é também, como quis de passagem supor o
romanticismo, a história dos tupis, ou, segundo o sonho de alguns representantes do
africanismo entre nós, a dos negros no Novo Mundo. É antes a história da formação
de um tipo novo pela ação de cinco fatores, formação sextiária, em que predomina a
mestiçagem (2001. p. 57).

Portanto, a História da literatura permitiria entender o panorama da evolução


cultural de um povo. Taine pensava a literatura como um ‘produto’ da vida social e a obra
literária como um ‘documento’ que revelava a sociedade. Afastando-se de uma visão
idealizada do romantismo da figura do índio, Sílvio Romero busca mais atores raciais para
construir sua conjuntura da cultura brasileira.
Romero se prezava de ter sido o primeiro autor a estabelecer um critério
etnográfico para a literatura brasileira. Pois, dos fatores deterministas de Taine (que sobrepõe
o meio sobre as demais), Sílvio Romero enfatizou a raça. O negro, o branco e o índio
participaram da constituição da nossa nacionalidade, enquanto Taine só trabalhou com a
civilização europeia, civilização esta formada por variados povos.
Ao ressaltar a miscigenação, ele trabalha “a história nacional sob a perspectiva da
luta e da fusão de raças” (VENTURA, 1991, p. 90). Reiterando: o ponto original de sua obra
crítica é a importância que colocou na mestiçagem como fenômeno que moldou o povo
brasileiro e também como um instrumental de interpretação.
José Veríssimo, intelectual contemporâneo de Silvio, alegou que aprendera estes
mesmos critérios etnográficos com Martius91. Essa opinião levou o crítico sergipano e tecer,
por anos, polêmicas furiosas, culminando com a publicação de Zeverissimações ineptas da
crítica (1909)92.
Como afirmamos páginas atrás, Martius indicava que o estudo da nossa história
deveria ser feito à luz das três raças - branca, negra e indígena - e da sua mistura. Porém,
Romero indica Gobineau93 em sua obra historiográfica como outra importante referência.

91
Estudo de Sílvio sobre Martius: Carlos Frederico F. Martius e suas ideias acerca da História do Brasil,
publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras, 2012.
92
O estudo do embate entre os dois críticos será feita no 3º capítulo.
93
Joseph Arthur de Gobineau nasceu em 14 de julho de 1816. Em Paris, atuou como funcionário público,
servindo como diplomata nas cidades de Berna, de Hanôver, de Frankfurt, de Teerã, do Rio de Janeiro e de
Estocolmo. Também trabalhou como secretário do escritor Alexis de Tocqueville. Ambicioso, adotou o título de
‘conde’, mesmo nascido em uma família humilde e tinha pretensões de ser conhecido como grande intelectual.
155

Gobineau foi um pensador influente no final do século XIX; sua obra Ensaio
sobre a desigualdade das raças humanas (1854), era leitura comum entre os intelectuais que
defendiam o evolucionismo. Contudo, esse pensador era bastante pessimista em relação à
mistura de raças. As chamadas raças branca, amarela e negra são produto de diversos
cruzamentos de outras raças, que ao longo da história foram se estabilizando e se
uniformizando; como exemplo, ele cita os países europeus colonizadores, como Espanha,
Portugal, França. Quando uma raça branca, ‘estável’ cruza com uma inferior, ocorre a
mestiçagem, uma raça misturada e instável e ele exemplifica com o caso brasileiro – o
‘mulato’. Ele explica que a degeneração racial ocorre, porque os conquistadores, de algum
modo, se misturam com os povos conquistados, ‘poluindo’ a pureza da raça dos
conquistadores, de origem ariana94. A miscigenação era inevitável e levaria as raças
‘superiores’ a degraus cada vez mais baixos, física e intelectualmente. Era lamentável, mas
fundamental para a construção das civilizações.
Romero mantém a ideia da desigualdade das raças, contudo tenta construir uma
perspectiva otimista:
O povo brasileiro, como hoje se nos apresenta, se não constitui uma só raça
compacta e distinta, tem elementos para acentuar-se com força e tomar um
ascendente original nos tempos futuros. Talvez tenhamos ainda de representar na
América um grande destino cultur-histórico (sic) (2001, p. 101).

Ele admite a nossa condição, todavia, por meio da mestiçagem, que abrirá o
caminho para o desenvolvimento civilizatório brasileiro, se a raça branca prevalecer. Cândido
nos esclarece sobre essa adaptação feita por Romero:
Manteve a ideia de desigualdade mas, colocando-se de certo modo no ângulo de um
povo colonizado, deu realce implicitamente à elevação das raças “inferiores” (índio
e negro) por meio da mistura com o branco, que julgava nobilitante; e profetizou o
predomínio deste no aspecto das pessoas, num futuro remoto mas garantido de
estabilização [...] Aceitando, segundo Gobineau, que a maior ou menor qualidade
dos povos e grupos sociais depende da maior ou menor parcela de sangue ariano que
contêm, ele deu feição sistemática a um dos preconceitos defensivos mais correntes
do brasileiro médio, expresso na ideia de “melhorar a raça”, isto é, ficar mais claro
(CÂNDIDO, 1978. p. XXI).

Como essa mistura de raças no Brasil garantiria que os brasileiros retornassem a


um modelo racial anterior, a resposta dada por Romero é estranha e ingênua:
Sabe-se que na mestiçagem a seleção natural, ao cabo de algumas gerações, faz
prevalecer o tipo da raça mais numerosa, e entre nós, das raças puras a mais
numerosa, pela imigração europeia, tem sido e tende ainda mais a sê-lo, a branca...

Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855) é o seu livro mais famoso e polêmico. É um dos
primeiros tratados sobre racismo e eugenia publicado na Europa a ter repercussão internacional, sobretudo, fora
do velho continente.
94
Obra consultada em: https://fr.wikisource.org/wiki/Essai_sur_l’inégalité_des_races_humaines
156

Dentro de dois ou três séculos, a fusão étnica estará talvez completa e o brasileiro
mestiço bem caracterizado (ROMERO, 2001. p. 102).

A sua fé cientificista era tão extrema que acreditava que, como animais ou
vegetais, a força da seleção natural, garantiria a prevalência da raça branca sobre as ditas
inferiores ‘indígena’ e ‘negra’. Na verdade, percebemos um desejo latente, não só de Romero,
mas de muitos intelectuais brasileiros de que o Brasil se tornasse uma Europa Tropical.
O historiador não deixa de ressaltar ideais racistas, uma vez que considera a
mistura racial uma depreciação, que pode ser ultrapassada com a vitória evolutiva da raça
mais forte, de origem europeia.
Silvio Rabelo, biografo do crítico, nos esclarece que
É possível que Sílvio Romero, de todos os críticos do Brasil, tivesse sido o de mais
extensa erudição – o que tivesse assimilado a mais vasta experiência de leitura. À
crítica literária não repugna uma preparação como a que ele chegou a possuir –
certamente maior que a de Araripe Jr. Júnior e a de José Veríssimo. Entretanto, toda
essa soma de conhecimentos teria de ser mal-utilizada à falta de qualidades
propriamente artísticas. Sempre que se apresentava a oportunidade para a discussão
de doutrina, de sistemas e escolas, ele se afirmaria com desembaraço e quase sempre
com lucidez. A estrutura do seu espírito foi coerentemente a mesma em todos os
momentos – um espírito geométrico que, por ausência de imaginação, se deixou
comprimir dentro do já experimentado, do já discutido – da experiência feita em
ideias e soluções que não se cansava de manipular com sensual volúpia. O que
dependesse, porém, de uma apreensão pela sensibilidade ou pela intuição escaparia
sempre à sua capacidade crítica. Por isso, Sílvio Romero cometeu em literatura os
mais graves erros de julgamento (1967 p. 94-5).

Para Rabelo, Romero era mais filósofo e sociólogo do que crítico literário, visto
que quase toda a primeira parte da História é dedicada a estudar os fatores da literatura
brasileira, que serão desenvolvidos, de modo mais incisivo no segundo volume. O sergipano
era mais atraído pela síntese do que pela análise.
Ao longo da obra, as explicações em torno da formação ou da ‘qualidade’ da
nossa literatura são direcionadas a fatores externos, pois para Romero, “o estado de riqueza
ou pauperismo de um povo influi diretamente na formação de sua literatura” (2001, p. 139). O
país, dominado politicamente e economicamente durante quase quatrocentos anos, produziu
poucas obras literárias de valor como os poetas baianos do século XVIII, como Gregório de
Matos e os poetas árcades mineiros, como Tomás Antônio Gonzaga, Claudio Manuel da
Costa.
Depois de uma vasta descrição do povo brasileiro e de sua cultura, incluída nesse
amplo conjunto, melancolicamente, nos diz que
A mais completa indiferença pelo que é produto intelectual brasileiro aqui reina [...]
A grande pobreza das classes populares, a falta de instrução e todos os abusos de
uma organização civil e social defeituosa, devem ser contados entre os empecilhos
ao desenvolvimento de nossa literatura. As academias são poucas e de criação
157

recente. Ainda hoje há muita dificuldade para a aquisição de cultura neste país; os
cursos, além de raros, são espalhados a grandes distâncias da mor parte dos estados.
Os livros são caros; a carreira das letras não traz vantagens; a vida intelectual não
oferece atrativos; não há editores nem leitores para obras nacionais; por isso quase
ninguém escreve, para não ser esmagado pela concorrência estranha. O meio social
não é estimulante; o abandono nos comprime; a vida brasileira é dura e prosaica.
Reina aí a monotonia e a submissão, ou esta seja dos agregados aos fazendeiros; dos
votantes aos chamados chefes de partido; dos deputados aos ministros; dos ministros
ao chefe do Estado; do chefe do Estado aos governos estrangeiros; ou seja do
comércio nacional aos capitalistas ingleses; dos lavradores ao comércio; do povo aos
políticos e dos políticos às conveniências; ou seja de certos jornalistas aos governos;
dos literatos aos maus livros franceses, sempre e sempre é a submissão... Ousados
ímpetos, tumultuosos arrancos de juvenilidade e força raras vezes têm saído do seio
do povo brasileiro, na esfera política e na literária. Poucos se me deparam no curso
de nossa história (ROMERO 2001. p. 141 e 143).

O historiador nos informa que o nosso meio não é propício para as atividades
intelectuais mais complexas, tais como a literatura. Percebemos o determinismo racial,
pontualmente em seu livro, contudo, no trecho, observamos também, por mais que ele
considere o problema relacionado à qualidade misturada da ‘raça brasileira’, que são várias as
adversidades, de ordem social e histórica que indicam os motivos de nossa desigualdade e
dependência cultural: a falta de escolas e universidades, que poderiam desenvolver
materialmente a literatura, propiciando o capital cultural, o desdém dos governantes, quer seja
do tempo da colonização, quer seja do país já independente.
Modernamente falando, o nosso país possui riqueza e diversidade cultural
extraordinária, mesmo com as desigualdades e desmandos políticos. O que Sílvio Romero
considera miserável no seu tempo é a falta de uma cultura formal, livresca, capaz de produzir
pensadores originais e artistas. Mas como produzir um pensamento original em uma nação
onde a maioria das pessoas não foi escolarizada? Onde não existem leitores, livros, editoras?
O historiador teve a sua formação no romantismo, mas a sua História se encerra
profundamente pessimista. Após essa obra de fôlego, a partir dos anos 1890, Sílvio Romero
dedicou-se à política, afastando-se do estudo sistemático da história literária. Ele se destacará
mesmo como um dos maiores polemistas do Brasil, defendendo causas literárias, filosóficas,
políticas e jurídicas. A polêmica literária de Sílvio será tratada em capítulo posterior.
Seus trabalhos subsequentes são: duas monografias, “Machado de Assis” (1897),
‘verdadeira catástrofe do ponto de vista crítico’ (Cândido, 1989. 108), no qual faz um ataque
pessoal ao autor de Dom Casmurro e “Martins Pena” (1897), Depois publica Novos Estudos
de Literatura Contemporânea (1898) Evolução da literatura brasileira e Evolução do lirismo
brasileiro (1905); Compêndio de literatura brasileira (1906), com João Ribeiro, de onde seu
filho Nelson retira os textos para a 3ª edição de História; Quadro sintético da evolução dos
gêneros na literatura brasileira (1909) e “Da crítica e sua exata definição”, na Revista
158

Americana (1909), obras que não fogem à conjuntura esboçada pela História da literatura
brasileira, mas de missão didática e menos controvertida.
Na apresentação da seleta de textos críticos do pensador sergipano, Antônio
Cândido constrói uma metáfora bastante significativa sobre a atuação intelectual dele:
A obra de Sílvio Romero dá uma certa ideia de turbilhão, no sentido próprio e no
figurado. Um movimento forte e agitado, que arrasta ideias e paixões,
destruindo pelo caminho; um movimento circular que gira incessantemente
sobre si mesmo e progride, parecendo permanecer (1978. p. I).
Se também evocarmos a ideia metafórica de Bourdieu (As regras da arte, 1996),
de campo literário e intelectual, análogo ao campo gravitacional, Romero seria um elétron
repleto de energia que colidia incessantemente com os outros elétrons da partícula do átomo.
Colisões que geravam mais energia. A sua própria natureza é colidir. Para os seus pares,
demonstrava ser contraditório, inquieto, apaixonado, generalista.
Cometeu exageros e equívocos, assim como diversos críticos e intelectuais de seu
tempo. Mas teve a impetuosidade de pensar soluções para interpretar a história cultural do
Brasil. Imaginemos que, nesse contexto, não seria fácil a vida de um intelectual que queria
exercer e fazer frutificar o pensamento crítico entre nós. O principal método de que se utilizou
para tentar animar, atiçar a inteligência entre os seus pares foi a polêmica. É quase impossível
dissociar a polêmica do seu método crítico. A sua pena ferina era a sua arma de combate. No
próximo capitulo dessa pesquisa, efetuaremos uma análise de seus textos polêmicos. Agora,
passaremos para o exame do outro pensador fundador de nossa crítica literária.

2.7 Araripe Júnior

Tristão de Alencar Araripe Jr. Júnior nasceu no ano de 1848, em Fortaleza, e veio
a faleceu no Rio de Janeiro, em 1911. Jurista, crítico literário e ficcionista. Faz parte de uma
importante família cearense, sendo primo de José de Alencar. Fez a sua educação básica em
Fortaleza no Ateneu cearense. Forma em direito, pela Faculdade do Recife, em 1869,
contemporâneo de Tobias Barreto e Sílvio Romero. Em 1871, voltou ao Ceará, onde atuou
como Juiz Municipal, em Maranguape até 1875. Em 1880, mudou-se para o Rio de Janeiro
definitivamente, exercendo cargos públicos95 até o fim da vida.

95
Exerceu funções na Secretaria de Estado dos Negócios do Império, de Diretor Geral como Diretoria do
Interior do Ministério da Justiça e, a partir de 1903, de Consultor Geral da República, em cujo exercício
permaneceu até a morte, ocorridas a 29 de outubro de 1911.
159

Antes de se dedicar à crítica, escreveu ficção. Ainda estudante, no Recife,


publicou, em 1868, seus Contos brasileiros, textos sob a influência do romantismo, na sua
fase indianista. Depois escreveu O ninho do Beija-flor, (1874), cuja publicação foi iniciada no
jornal Constituição, a 28 de março de 1872, em seguida Jacina, a Marabá, de 1875, por ele
designada de “crônica do século XVI”, o texto A casinha de Sapé, é reeditado em 1878, com
um novo título de Luizinha. No mesmo ano, publica um romance de caráter social, O reino
Encantado. Em 1909, lança Miss Kate, mais uma obra ficcional. Em 1911, publica é seu
último livro literário, de teor regionalista e picaresco O cajueiro do Fagundes.
Como crítico, o seu texto de estreia é Cartas sobre a Literatura brasílica, de
1869. Em seguida, publica importantes perfis literários em forma de ensaios, tais como José
de Alencar (1882) e Gregório de Matos (1893).
Em Fortaleza, fez parte da geração de jovens bacharéis que se banqueteavam com
as ideias modernas, e em, 1873, fundaram a Academia Francesa, lendo e divulgando o
positivismo, o evolucionismo e as doutrinas deterministas no Ceará.
Junto com Silvio Romero e José Veríssimo, fez a reviravolta teórica da crítica
literária, ao introduzir os elementos como meio e raça para a interpretação das obras literárias:
O sentido nacional de sua obra, a inquietação universal de que foi alvo o seu
espírito, sempre atraído para as grandes teses filosóficas, mas em atitude de inteira
abertura que lhe permitiu estudar e criar, sem o apego a preconceitos doutrinários e,
finalmente, sua preocupação com o método pelo qual sentimos que luta
constantemente em todo o decurso de sua produção crítica (MONTENEGRO. 1974.
P. 14).

Diferente de Sílvio Romero e José Veríssimo, não escreveu uma obra compacta
como uma história da literatura brasileira, todavia percebemos um direcionamento
metodológico historiográfico, sem radicalismos teóricos, eclético e preocupado com o
problema da identidade nacional, distinto dos dois outros pensadores mencionados, nos 47
anos em que publicou resenhas, artigos e ensaios na imprensa nacional.
No prefácio de seu ensaio biográfico sobre José de Alencar, ele nos fala de sua
formação filosófica, aludindo aos tempos da Academia Francesa, no Ceará:
A reconstituição de minhas ideias data de 1873. Foi neste ano que li pela primeira vez
as obras de Spencer, a História da civilização da Inglaterra, de Buckle, e os trabalhos
críticos de Taine. Residia eu então na província do Ceará, quando aí formou-se um
círculo de moços estudiosos, do qual constitui-se centro o falecido Raimundo da
Rocha Lima, discípulo de Comte (Obra crítica, vol. 1 p,133).

Ora, para desenvolver um estudo sobre crítica literária nesse contexto, Araripe Jr.
se deparou numa encruzilhada de ideias, sistemas, movimentos variados e divergentes.
Autores e filosofias contraditórias. Dos vários ‘ismos’, todavia, a ciência foi um imperativo da
160

segunda metade do século XIX. No trabalho crítico, seu arcabouço historiográfico,


primordialmente, foram Taine e Buckle, dando predileção ao meio, ao invés da raça (Sílvio
Romero). Para Araripe Jr., o meio ambiente é que causa a originalidade da obra de arte.
Há duas matrizes bastante distintas na produção de Araripe Jr., na sua abordagem
das obras literárias: num primeiro momento, a tentativa de significação do ‘caráter nacional’,
ainda fruto da orientação romântica, inspirada em Alencar. Tenta encontrar essa expressão
nativista nas descrições da flora e da fauna nos textos, além das realizações heroicas dos
índios e dos ‘populares’. Após a Faculdade de Recife, e depois de passar algum tempo no
Ceará, não abandonou o tema da nacionalidade, mas este foi revestido por uma perspectiva
científica. Foi o crítico que se deterá com mais vigor na interpretação da escola naturalista no
Brasil, no interesse de buscar uma ‘originalidade’ da nossa literatura. Nos séculos XVI e
XVII, o meio físico foi o grande fator, descrito e estudado pelos intelectuais europeus, que
força a adaptação do homem à natureza, modelando-o. Daí que o meio realiza a modelagem
do homem e de suas produções.
Ele construiu uma visão geoclimática para analisar a adaptação do naturalismo
brasileiro, somando a ideia de estilo a uma visão tropical da nossa literatura, isto é,
desenvolvendo categorias próprias como obnubilação brasílica e estilo tropical (BOSI,
1978, p. XVI). Menos científico do que Sílvio Romero, Araripe Jr. soube dosar a crítica
literária à reflexão social e psicológica.
Literariamente, a carreira do crítico cearense começa na ficção de feição
nativista, com textos escritos aos vintes anos de idade, parte em Fortaleza, parte no Recife,
onde os publicou no Correio Pernambucano e, depois os reuniu no volume Contos brasileiros
(1868). Nesse período usou até pseudônimo, Oscar Jagoanharo e assim como o seu mestre
Alencar, procurou inspiração nas crônicas históricas, nos relatos sobre os índios, nas lendas
indígenas nas narrativas populares.
Depois de formado, o seu primeiro ensaio literário foi um texto romântico e
nacionalista: Cartas sobre a Literatura brasílica, de 1869.
Esse estudo é uma explícita exaltação da natureza americana, chamada por ele de
‘eldorado’ que pela sua beleza e pureza rústica exercia uma poderosa influência para a
imaginação humana. Para Araripe Jr., poesia, num sentido de arte literária,
não pode deixar de ceder, ou mais cedo, ou mais tarde, à influência do clima, do
aspecto do país e da índole de seus primitivos habitantes. Aí é onde existe a
verdadeira fonte das inspirações, que não são filhas de uma mera convenção. Querer
o contrário é querer sufocar no berço uma literatura que pode ter, para o futuro, um
grandiosíssimo desenvolvimento (1978, p. 9-10).
161

Desde o início do seu trabalho intelectual, percebemos a ênfase que é dada ao


poder do clima, como fator criador e modificador do caráter de um povo. A natureza é a fonte
de inspiração, integrada ao país e ao povo, nos quais os poetas devem buscar temas, assuntos.
É uma defesa da nação brasileira, em contraposição à literatura ‘afrancesada’. Numa
perspectiva rousseauriana, nos explica que o homem civilizado, ao entrar em contato com o
meio natural terá o seu ‘humor’ modificado, tornando-se, mais maleável para a contemplação
e produção do belo.
A natureza americana é tão poderosa, no entender de Araripe Jr.,
tal o seu brilho e vigor, que os naturalistas, os geógrafos, os astrônomos, por mais
que se esforcem em ausentá-la de seus tratados, onde muito e muito se faz mister a
concisão, não pode fugir aos solícitos afagos da prodigiosa natureza que se propõem
analisar simplesmente como homens da verdade, da ciência, da investigação e do
cálculo (1978, p. 31).

Essa ideia da influência do meio e do clima será uma das bases de sua teoria da
obnubilação. Percebemos também uma oposição ao europeu racionalista e ao americano
dominado pelo sentimento e pela imaginação. Portanto, o europeu se modifica ao chegar no
Brasil. Ele explica que a nossa terra, repleta de viço e de abundancia natural, permitiria o
surgimento de uma arte original, pois
de impressões completamente estranhas, de uma natureza tão cheia de esplendores
como a da América, dessas florestas seculares, desses rios colossais, não deve por
certo surgir senão uma literatura original, melancólica ao mesmo tempo pasmosa,
impregnada desse poderosíssimo sentimento religioso, que por si só se expande toda
vez que o homem curva-se ante o Senhor, abismado pelos portentos da criação.
Poesia soberba! poesia filha do assombro e da admiração. Foi da contemplação dos
magníficos espetáculos do encantado Novo Mundo, que nasceram os Ercilla, os
Chateaubriand, os Cooper, os Durão e os Basílio da Gama (1978. P. 10).

Percebemos no texto, repleto de adjetivos, as suas principais influências


românticas europeias: Chateaubriand, Cooper. Ele disserta que os grandes poemas escritos
pelos autores citados, devem-se ao encantamento e à expansão dos sentimentos perante o
Novo Mundo, repleto de florestas virgens e seculares. No trecho, cita os autores nacionais do
período do arcadismo, como Santa Rita Durão e Basílio da Gama.
O ensaio do crítico é concebido como uma propaganda da literatura e da natureza
brasileira.
E por esta razão tem sido os poetas americanos verdadeiramente os mais originais
destes últimos tempos. Durão, Basílio da Gama e outros, se são poetas admiráveis,
devem-no ao nobre e patriótico impulso, que fez com que eles desprendessem os
seus voos ao Pindo para virem pousar nos Andes. O primeiro abandona a mitologia
e canta o Caramuru; o segundo sai da Arcádia e deixa de ser Termindo Sipílio para
entoar os cantos do Uraguai, que como ele próprio previu, o haviam de levar à
posteridade. O Brasil e suas vastas regiões, vistas pelos prismas de seus belos
versos, deslumbrariam a Europa com as suas riquezas e tesouros, com as suas minas
e vegetação inexaurível, se pudesse a língua portuguesa ser apreciada por todas as
nações cultas do velho continente (1978, p. 16-17).
162

O Brasil é repleto de riquezas naturais e culturais. Para Araripe Jr., não há porquê
os poetas buscarem inspiração ou temas na Europa, nos montes Pindo e Arcádia, da Grécia. É
preciso que o poeta brasileiro cante a sua terra, para que as outras nações enxerguem o seu
esplendor.
A estética romântica predominava, na época em que Araripe Jr. estava na Escola
do Recife, e como uma tradição literária, sofria ataque dos jovens bacharéis, repletos de
paixão, mas ávidos por novidades intelectuais. O cearense conscientizou-se de sua vocação
para os estudos literários e passou a ler e a estudar incessantemente. O seu principal veículo
de atuação foram os periódicos do Rio de Janeiro. É uma obra tão vasta que foi reunida em
cinco volumes, por Afrânio Coutinho, no final dos anos 1950, com apoio da Fundação Casa
de Rui Barbosa.
Do complexo trabalho crítico e historiográfico de Araripe Jr., um assunto percorre
de ponta à ponta os seus escritos: o da nacionalidade. No início da carreira, como no artigo
que examinamos páginas anteriores, o ponto de vista é o do nativismo romântico; em seguida,
na sua fase naturalista, examinará o problema da obra de arte como produto original do nosso
país, oriundo da influência do meio e do clima sobre os escritores, partindo de perspectivas
científicas e racionalistas. A questão do determinismo que gerou o embate entre o homem e o
meio é o motor de sua problematização do tema do nacionalismo.
A adequação da obra ao meio torna-se um predicado, em detrimento da
valorização das obras originais europeias, modelos literários. Uma terra nova requer uma obra
nova, uma linguagem nova: “Como traduzir em outra língua o calor paterno que se irradia
desta inovação [...] o fato da intraduzibilidade de uma estrofe não será acaso, a prova mais
evidente do seu caráter original, do seu nacionalismo?” (Obra Crítica. v. 5. p. 200). A
tentativa de construir uma linguagem nova, brasileira foi o grande empreendimento de José de
Alencar, alvo do primeiro perfil escrito por Araripe Jr..
No famoso prefácio do romance Sonhos d’ouro (“Benção paterna”), José de
Alencar, refletindo sobre a ficção romântica brasileira e sobre sua própria produção nos alerta
que “O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com
igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a
nêspera”?96 Alencar se opõe à simples importação de modelos literários europeus, estranhos
aos nossos costumes e às nossas regiões.

96
ALENCAR, José de. Benção paterna. In Sonhos d’ouro. São Paulo: Ática, 1981.
163

Além do destaque ao ‘meio’, Araripe Jr. também deu atenção aos processos
genéticos da obra literária, ou seja, à escrita de biografias literárias, comuns a essa época.
Com o planejamento de efetuar um panorama da literatura brasileira, o crítico põe em prática
o projeto dos "Perfis literários". Os mais ambiciosos perfis foram o de José de Alencar e o de
Gregório de Matos. Escreveu sobre outros autores, mas não foi com a mesma complexidade e
fôlego quanto os já mencionados. Os outros trabalhos foram sobre Tomás Antônio Gonzaga,
Raul Pompéia, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Coelho Neto, Juvenal Galeno, José do
Patrocínio, Olavo Bilac, Afrânio Peixoto, José de Anchieta, Rui Barbosa, Euclides da Cunha,
Cruz e Sousa (COLARES, 1980. P. XIII). Esses estudos eram muito bem contextualizados,
demonstrando a preocupação em situar os escritores no tempo e no ambiente em que viveram
e produziram.
Não escreveu um livro de História propriamente dita, no entanto observamos o
seu projeto historiográfico nos perfis que escreveu. Cada perfil funciona como esboço de uma
metodologia que poderia ser aplicada a um trabalho de maior fôlego. Podemos exemplificar
com o ensaio “Literatura brasileira”, publicado em 1887, no jornal A Semana.
É interessante acentuar que antes de iniciar os seus ensaios mais longos, Araripe
Jr. elabora um sumário com os temas e os métodos tratados no texto.
Ponto de vista para o estudo da história literária do Brasil. - 1. Os três fatores e as
exagerações parciais de Taine, Otto Muller e Nisard. - 2. Todos nós exageramos o
momento. Ação e razão. - 3. O verdadeiro método. A loba do sofisma. Material de
estudo. Classificação. Questões abertas. - 4. O século XVI. Necessidade de limitar o
assunto. - 5. O meio. Leis físicas e mentais, segundo H. T. Buckle. Sua aplicação ao
Brasil. - Obnubilação do colono (1958, Vol. I, p. 491).

O índice nos revela a epistemologia organizada por ele para efetuar o estudo do
literário. Percebemos o método cientificista, na procura de leis que possam explicar a origem
do fenômeno literário. Ele cita autores, tais como Taine e Buckle e, como aplicar as teorias
deles no contexto brasileiro. No final, destaca o fenômeno da obnubilação97.
Esse fenômeno é uma “forma de entorpecimento mental, em que o indivíduo se
sente como que envolvido em uma nuvem, não associa bem as ideias e percebe mal os
objetos; pode surgir nos distúrbios da circulação cerebral e preceder a perda da
consciência”98. É um problema relacionado à consciência psíquica, no qual o individuo
apresenta um estado letárgico, com pouca ou nenhuma reação a estímulos externos, como luz,
sons, temperatura. O estado de obnubilação causa deterioração da consciência, tornando o

97
Etimologia: Do Latim. Obnubilar, “cobrir com nuvens ou névoa”, de ob-, “à frente”, mais nubis, “nuvem,
nevoeiro”.
98
Consultado em: http://www.dicionáriomédico.com/obnubila%C3%A7%C3%A3o.html
Outra fonte pesquisada: http://www.psiquiatriageral.com.br/glossario/o.htm
164

pensamento fragmentado, incoerente, passível a alucinações e delírios. Araripe Jr. Júnior


utiliza o termo com dois sentidos: positivo e negativo. No sentido negativo, literal, o termo
indicava uma perturbação da mente. Para o europeu, seria uma embriaguês do espírito. Mas o
sentido novo, positivo, que Araripe Jr. propôs é que a obnubilação sofrida pelos portugueses
no Brasil, ao longo do tempo, sobre os seus descendentes foi modificando o seu espírito,
tornando-os diferentes dos europeus. A obnubilação influenciada pelo clima quente dos
trópicos permite ao espirito cultivar uma sensibilidade maior para a imaginação e a
sensualidade. Essa categoria será de suma importância para o entendimento do naturalismo no
Brasil.
Sobre os estudos da História de nossa literatura, para entender o conjunto de nossa
formação cultural, julga importante fazer o levantamento de documentos sobre a história do
país.
O estudo dos documentos divide-se, naturalmente, em cinco seções: A) documentos
relativos à terra do Brasil; B) documentos concernentes à invasão da terra; C)
documentos sobre a ação do homem e transformação da terra; D) documentos
atinentes ao folclore, tanto transoceânico como indígena; E) produtos literários
conscientes encontrados no arquivo da história pátria (1958. p. 494).

Diferente de Sílvio Romero, que considera todos os registros escritos como


literatura, Araripe Jr. tem consciência de que são documentos históricos (cartas, leis, decretos,
jornais, diários, relatórios) serviram de prova para fundamentar o juízo de valor de livros e
autores. Ao conjunto de autores literários ou não-literários, não lança nomes novos, pois
segue o cânone estabelecido pelos historiadores românticos e por Sílvio Romero.
Ele nos mostrou o seu leque teórico e os procedimentos necessários para preparar
os estudos, alertando, portanto, os futuros pesquisadores de que
É fácil compreender que, tratando-se de escrever a história da literatura brasileira,
dever-se-á tomar todas as cautelas contra a difusão das ideias. A primeira condição
de êxito, portanto, repousa na concentração inteira da atenção do crítico no seu
assunto, — o Brasil, isto é, na reunião do material histórico e na obtenção das
sugestões de que esse material seja suscetível, por sua originalidade. Sem este
processo preparatório, será impossível alcançar a mão do Virgílio nacional (1958, p.
493).

Nesse ensaio citado, observamos alguns princípios teóricos para a construção de


uma história literária. Ele nos adverte de que para falar sobre a nossa literatura, é preciso que
se conheça o Brasil. Fazemos o paralelo com Sílvio Romero, pois os dois entendem a
literatura como componente da história da civilização, remetendo a Gustave Lanson.
Pedro Paulo Montenegro
Era uma das virtudes mais admiráveis em Araripe Jr. Júnior a sensibilidade aberta,
isto é, o dom de logo se afeiçoar aos problemas de ordem literária, o desejo de tudo
165

examinar, tudo indagar sentir todos os fenômenos. Pode, daí, ter decorrido exagero,
tolerância, imperfeição mesmo, em definir ou exprimir (1974. p. 27).

Como um pesquisador insaciável, para a construção de seu discurso


historiográfico, pautou-se em Buckle e Lanson, mas a contribuição mais forte, que percorreu a
sua obra, renovando-a é de Taine.
O seu último trabalho foi um ensaio sobre Ibsen99, em 1909. Já era crítico maduro,
e ao prefaciar o trabalho, remete a um apontamento feito por José Veríssimo, pois este
assinalou a influência de Taine como decisiva nos meus processos de crítica. Não o
nego; e declaro até que, se não existissem os trabalhos do autor da História da
Literatura Inglesa, é bem provável que eu ainda hoje estivesse jungido ao sistema
das causas fortuitas. Essa influência que me foi extremamente benéfica, porquanto
corrigiu algo de místico, que havia no meu temperamento de escritor, não me
avassalou; todavia, por mais entusiasmo que gerassem no meu espírito, as leis de
estética, analisadas pelo mestre, encontram em mim um sóbrio e cuidadoso
aplicador. O método fortaleceu-me e ensinou-me, primeiro que tudo, a estudar. Pois
bem, esse mesmo método habilitou o discípulo a compreender os próprios defeitos
daquele insigne professor (1970, p.33).

O pesquisador Luiz Roberto Velloso Cairo, em sua pesquisa de doutorado, O salto


por cima da própria sombra - o discurso crítico de Araripe Jr. Júnior: uma leitura,
desenvolveu um estudo das leituras formativas de Araripe Jr. Júnior e como este, no cabedal
de livros e teorias, construiu um discurso particular sobre o fenômeno literário. A contribuição
dessa pesquisa, publicada como livro, em 1996, é o estudo da influência tainiana sobre o
crítico, além de examinar como um jovem pensador francês, Émile Hennequin, contribuiu
para a diferenciação do método do crítico cearense:
A marca de Taine, no discurso crítico de Araripe Jr. Júnior, é muito forte e a famosa
tríade - raça, meio, momento - perpassa toda sua obra. Tendo optado pela
predominância do meio, principalmente, no caso dos dois primeiros séculos de
Brasil, é a partir desta escolha que constrói o princípio da obnubilação brasílica
presente nos ensaios sobre Aluísio Azevedo, José de Alencar e Gregório de Matos
(CAIRO. 1996. p. 30).

Como já afirmamos, Taine era o modelo historiográfico lido e debatido entre os


intelectuais brasileiros de vários centros, Fortaleza, Recife, Rio de Janeiro. Nos primeiros
ensaios de teor romântico, Araripe Jr. já trabalhava com a influência do clima e do meio, ao
adotar uma perspectiva cientificista, na obra do historiador francês. Araripe Jr. trabalha com
essa abordagem nos perfis de Alencar e Gregório de Matos e, ao analisar, a tentativa dos
ficcionistas brasileiros de emular o romance naturalista francês.
Mas, Araripe Jr. é eclético, trabalha com várias matrizes teóricas e não se fixou
somente em Taine. Ele foi leitor de seus livros e ponderou sobre suas ideias, mas não era um
seguidor dogmático:

99
Ibsen foi publicado pela Livraria Chardron, de Lello e Irmãos Editores, do Porto, em Portugal, em 1911.
166

Não o renego, não só por esse motivo, mas também porque vejo que, sendo o perfil o
primeiro trabalho sobre um autor nacional, que se escreveu no Brasil, aplicando os
métodos de H. Taine, antecipava alguns processos depois postos em prática pelo
malogrado E. Hennequin, discípulo do grande crítico francês e, ao mesmo tempo,
modificador, no que ele chamava estopsicologia, dos excessos doutrinais do autor da
História da Literatura Inglesa (1958. Vol I. p.132).

No trecho, ele nos fala que o método do crítico francês era bastante divulgado nos
meios intelectuais brasileiros, contudo, em seus próprios trabalhos de análise literária comenta
que alguns de seus processos, coincidiam com os de Hennequin. Afirma que o jovem crítico
efetuou modificações no método tainiano, desenvolvendo a chamada estopsicologia. O termo
é um neologismo que indica a aplicação da psicologia, sob o ponto de vista estético. A
fórmula de Hennequin, “estética + psicologia”, foi usada por Araripe Jr. no perfil de José de
Alencar e no ensaio sobre a obra O ateneu, de Raul Pompeia.
É interesse citar a opinião de Sílvio Romero sobre Hennequin em seu trabalho
“Da crítica e sua exata definição”, incluída na 3ª edição de História da literatura brasileira.
Esse jovem, cujo merecimento era grande, mas não deve ser exagerado, como é
hábito em certos círculos, procurou sistematicamente colocar-se em pontos de vista
opostos ao do autor da História da Literatura Inglesa. Poderia, por isto, ser chamado
um Taine retourné. Este procurava tornar na crítica, quero dizer na estética, salientes
os fatores mesológicos, etnográficos e fisiológicos; o autor d'A Crítica Científica
procura batê-lo nestes pontos e substituir no estudo dos autores aqueles elementos
explicativos por considerações puramente psicológicas, sociais e estéticas. Taine
procurava mostrar a gênese, a formação do gênio dos escritores; Hennequin tentava
de preferência mostrar-lhes a influência, procurando ver quem os lia, quem os
admirava. Era o tainismo às avessas (1960, p.331).

Romero não concorda com essa mudança de perspectiva realizada pelo discípulo
de Taine. O sergipano considera que os três fatores determinantes são os responsáveis para
explicar as obras literárias, o que ocasionou um avanço extraordinário na ciência literária, e
que Hennequin envereda no erro, ao considerar os aspectos psicológicos e estéticos do autor.
Sílvio defendia que a literatura não era apenas os ‘belos textos’, eram todos os registros
escritos de um povo.
Cairo considera que Hennequin não é um Taine reverso (1996. p. 41), mas que o
jovem crítico o revisitou. Araripe Jr. compreendeu que era preciso lê-lo atentamente
Para que o método do mestre, dizia a mim mesmo, não se torne inútil e banal, é
indispensável que haja sinceridade; que se não abuse do instrumento de
demonstração; que finalmente à aplicação desse instrumento, que é tão exato como
pode ser exato o teodolito, preceda um critério filosófico, com quem afirma uma
ontologia positiva e uma ética clara e de utilidade prática. Ora, sob esses dois pontos
de vista, o autor da História da Literatura Inglesa estava muito longe de interessar-
me. As suas conhecidas tendências pessimistas, o seu determinismo seco e a sua
falta de lirismo, sem equivalentes de ordem moral e prática na vida humana,
contrariavam a cada instante as tendências opostas, que constituem o fundo de
minha natureza. Daí originou-se para mim um combate contínuo no sentido de
descobrir outro ponto de apoio, sem contudo perder a riqueza dos processos
tainianos (1970, vol. 5. p.33-4).
167

O cearense considerava o método de Taine frio, pessimista e bastante objetivo.


Ele ansiava por outras perspectivas, sem perder os avanços propostos pelo crítico francês, e
encontrou na obra de Hennequin, A Crítica Científica (1888), uma interessante revisão do
determinismo tainiano.
Propõe uma diferenciação entre crítica literária e crítica científica.
O crítico considera crítica literária os textos mais próximos do que entendemos hoje
por resenha, no qual os autores “se consagram, na realidade, a criticarem, a
apreciarem, a pronunciarem-se categoricamente acerca do valor desta ou daquela
obra, livro, drama, quadro ou sinfonia (HENNEQUIN, 1910, p. 5-6).

Percebemos nessa definição que a crítica literária é juízo de valor, é notícia sobre
a obra. O caráter interpretativo e sistemático será realizado pela crítica científica, onde os
autores
procuram outro objetivo, tendem para deduzirem dos caracteres particulares da obra
alguns princípios de estética, ou a existência de determinado mecanismo cerebral no
autor, ou ainda uma condição definida do conjunto social em que se formou,
explicando por leis orgânicas ou históricas as emoções que suscita e as ideias que
exprime (idem, 1910, p. 6).

Portanto, o diferenciador das duas leituras é o caráter analítico da crítica


científica, que tem “o intuito de encontrar indicações estéticas, psicológicas e sociológicas,
trabalho de ciência pura, em que o autor se dedica a extrair causas dos fatos, leis dos
fenômenos, estudando tudo sem parcialidade e sem predileções” (idem, 1910, p.6).
A inspiração analítica vem das ciências biológicas e exatas, mas não podemos
confundir a ‘crítica científica’ de Hennequin com as ciências. A palavra ‘ciência, vem do
latim ‘scientia’, com sentido de conhecimento; e do verbo ‘scire’, conhecer, saber, usado com
o sentido de ‘distinguir, separar as coisas ou os fenômenos. Entendemos que Hennequin
refere-se a um tipo de conhecimento específico, no contexto, o estético, estudando por meio
de prática sistematizada. Essa investigação proposta é alicerçada no repertório do artista que
produziu a obra. Tanto a crítica ‘literária’, quanto a ‘cientifica’, levam em consideração a
realidade externa como indispensável para a construção da obra ficcional.
A crítica científica ou estopsicologia prevê três modos de analisar a obra literária,
em que pressupostos estéticos dialogam com a sociologia, ao entender que a obra literária é
direcionada aos leitores, produzindo efeitos estéticos, ou seja, a obra pressupõe a leitura por
outra pessoa. A obra não é isolada em si, mas estabelece relações com os homens. O diálogo
com a psicologia ocorre quando ele encara o artista como um ser humano “constituído pelo
mesmo mecanismo geral de sensações, imagens, ideias, emoções, volições, impulsões
motrizes e retardatárias, da generalidade das inteligências humanas." (id.1910, p.57).
Em seguida, Hennequin rebate Taine em relação ao determinismo:
168

Admitido, pois, que um artista não depende essencialmente do seu meio, da sua
raça, do seu país e que, por essas causas, não podemos assimilá-lo aos seus
compatriotas e aos seus contemporâneos ou, por outros termos, que não há causa
comum entre estes e aquele, devemos fazer um rodeio para obtermos da estética
dados sociológicos. Devemos dirigirmo-nos não ao artista, mas ao seu produto;
devemos ter em consideração não os que o rodeiam, mas os admiradores das suas
obras. Toda a obra de arte, se por um extremo toca no homem que a criou, toca pelo
outro no grupo de homens que emociona (id. ibid, p.85).

O crítico enuncia uma ousadia para o contexto intelectual da época: o artista não
está necessariamente preso aos fatores deterministas para criar a sua obra literária. Como
sujeito sensível à beleza estética, o escritor é tocado por outros livros, outras obras de arte.
Isso molda a sua imaginação e sua sensibilidade. Para Taine, o foco é o artista (o homem) e
tenta buscar as causas que esculpiram sua personalidade. Hennequin especifica a obra como
objeto estético que desperta as emoções do leitor.
Para o estudioso francês, a crítica científica da literatura seria um dispositivo para
servir de suplemento útil à inteligência da época, segundo Velloso Cairo, ela
visava muito mais auxiliar as demais ciências do que conhecer o objeto de seu
estudo: a literatura. Aos olhos de hoje, esta seria, aparentemente, uma das falhas do
cientificismo presente também nos escritos de Araripe Jr. Júnior. Ao estudar a obra
literária, buscava-se desvendá-la através do conhecimento da personalidade do autor
e da sociedade que a produziu e a consumiu. Esse acabava sendo, talvez, consciente
ou inconscientemente, o objetivo primeiro da crítica (1996. p. 46).
Mesmo no entrechoque com o determinismo cientificista, Araripe Jr. Júnior, a
partir da leitura de Hennequin, estava buscando uma especificidade da crítica literária. A
crítica literária, no contexto finissecular, estava muito imbricada com a ciência, os críticos
estavam perdendo o foco, mais preocupados com o homem, ao invés do objeto literário. A
busca pela especificidade encontrará um grau maior em José Veríssimo.
Nas afinidades de leitura com Taine, Spencer, Ruskin e Hennequin, Araripe Jr.
tentava aos poucos construir o seu próprio método. Um importante momento da aplicação do
método estético e psicológico será a leitura da obra de Raul Pompeia.
Os ensaios sobre o autor do Ateneu são publicados no Rio, enquanto Araripe Jr.
era um crítico militante que se ocupava das tendências literárias em voga na época: o realismo
e o naturalismo. Os tempos do nativismo, cujo maior ícone foi Alencar passaram. A maioria
dos romancistas está interessada em uma literatura de análise social e psicológica. Enquanto
“Araripe Jr. Jr. estava atento à mudança, que é a presença racial da sua geração. É com
extremo interesse que acompanha as manifestações do naturalismo brasileiro, ora rastreando
suas fontes europeias, ora descobrindo aspectos peculiares ao nosso meio” (BOSI, 1978. p.
112).
169

Um livro que se destaca é o único romance de Raul Pompeia, obra singular, de


difícil classificação, e Araripe Jr. foi o primeiro importante crítico a analisá-lo. O Ateneu, fora
publicado em folhetim, na Gazeta de Notícias, em 1888, de 8 de abril a 18 de maio, em doze
capítulos, numerados em romano, com a indicação entre parenteses: ‘crônica da saudades’.
Cada capítulo trazia as iniciais R.P., e somente no último número, constou o nome Raul
Pompeia, com a indicação “Rio, janeiro-março de 1888”. Portanto, ao iniciar a publicação no
jornal, o texto estava pronto. A narrativa, em primeira pessoa, traça o percursso do jovem
Sérgio ao ingressar no colégio interno, Ateneu, no bairro Rio Comprido, na capital
fluminense. Na abertura do livro, o pai diz ao filho, em frente ao colégio "Vais encontrar o
mundo, disse-me meu pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta”. O ingresso no colégio
marca o fim da infância do protagonista e início de sua maturidade. O Ateneu funciona como
uma metonímia da sociedade da época, um microcosmo com novas descobertas, como
companheirismo e amizade, mas também repressão, autoritarismo, corrupção, maucaratismo.
Enfim, o livro pode ser entendido como a luta por uma eduação moral.
O desenvolvimento da personagem e o conflito das paixões despertaram o
interesse de Araripe Jr. Júnior. Ele publicou diversos ensaios sobre a obra, com destaque ao
“Raul Pompeia - O Ateneu e o romance piscológico”, publicado de forma seriada no jornal
Novidades entre 1888 e 1889.
Pompeia era visto como um autor bastante peculiar, dono de uma escrita distinta,
resultado de uma mescla de estilos, muito diferente de autores nacionais como Júlio Ribeiro e
Aluísio de Azevedo, e estrangeiros, como Eça de Queiroz, Zola e Balzac. Pompéia é um
“analista fino, sugestivo, e um pintor delicado, incisivo e notador de impressões pessoais mais
sobressaltado que era possível imaginar nesta terra, aonde todos já são por si tão irrequietos”
(1960, p. 147).
Para o crítico, o romance nasceu como fruto das reminiscências do autor nos
tempos de colégio, pois “Raul Pompeia “vira, em esboço, todas as maldades, vícios e defeitos
que tumultuavam na sociedade por ele agora diretamente observada, e de desta surpresa
nasceu O Ateneu” (1960. Vol IV. p.169). Ele interpreta O Ateneu como resultado de uma
síndrome do referido autor, um subjetivismo exagerado, uma inquietude nervosa que saturou
as impressões mais sutis do cotidiano.
O mais interessante nesse longo ensaio é a definição artística, cunhada pelo autor,
“como máquina de emoções”. Antes do ensaio, enuncia seis princípios que orientaram a sua
análise de O Ateneu:
170

(A) – A obra de arte é uma máquina de emoções. (B) – Há uma perspectiva interior
que todo artista procura reproduzir no espírito de outrem. (C) – Essa reprodução não
se pode fazer, na arte escrita ou falada, senão pela ordem direta do discurso; daí uma
sintaxe superorgânica, alma de todo o livro ou peça literária. (D) – Os órgãos
capitais dessa sintaxe são o acento periodal e a elipse interior; é por meio deles que
conseguem exercer a sua ação especial os temperamentos, que mais geralmente se
dividem em subjetivistas e objetivistas. (E)– O estilo é a resultante, em parte
imprevista, do conflito entre o temperamento de cada indivíduo e o mecanismo das
formas literárias já criadas por um povo, por um grupo ou por uma escola. (F) – Não
é impossível reduzir todos estes princípios à lei que os gramáticos denominam de
menor esforço, e que Spencer, na mecânica mental, designa sob o nome de
economia de funções (1960, p. 125).

Esse conceito de obra de arte como um construto estético ou ‘máquina de


emoções’, pode parecer mecanicista, contudo leva em conta a visão estopiscológica. Essa
ideia já germinara e seu estudo sobre Gregório de Matos é uma divisa da evolução de suas
ideias artísticas, fruto de sua leitura independente das diversas teorias e métodos com que até
então tinha entrado em contato. O ensaio é dividido em duas partes: o maquinista e a
máquina, onde aquele é o autor e esta obra. Se a compararmos a um trem, a máquina, sem um
bom condutor, não sai do lugar. A obra literária, como máquina de emoções, é produto da
imaginação e do trabalho criativo do autor.
Assim como o autor, enquanto leitor teve a sua mente (o espírito) educada e
modificada por outros escritores, a obra escrita visa atingir outros leitores. Outro ponto
importante é em relação ao estilo, resultado do conflito entre o “temperamento do indivíduo”
e os “mecanismos das formas literárias já criadas por um povo”, ou seja, entre o interno e o
externo, entre o poeta e a tradição literária. Araripe Jr. Júnior, como crítico determinista
singular, fundamentada na tríade raça-meio-momento, entende que a obra artística não é um
reflexo da sociedade, é um produto da individualidade, um ato consciente.
Essa ideia de estilo como conflito, o enfoque psicológico e estético, aliados à ideia
de influência do meio perante o indivíduo, resultarão na ideia da obnubilação brasílica e no
estilo tropical.
Na virada dos anos de 1893/94, Araripe Jr. publica uma série de ensaios sobre o
poeta Gregório de Matos, dando continuidade no seu projeto dos perfis. A obra lírica de
Gregório de Matos (1636-1696) foi ignorada durante o século XVIII, tornando público aos
leitores brasileiros somente em 1850, com a organização de seus poemas no Tomo I do
Florilégio da poesia brasileira, de Francisco Adolfo de Varnhagen. Araripe Jr. foi um dos
primeiros críticos a ressaltar a importância da poesia de Gregório, visto que foi uma de nossas
primeiras vozes nacionais, poeta de um ‘lirismo crioulo’.
171

A obnubilação é uma categoria importante para estudar a obra do poeta baiano,


principalmente na diferença de estilos da estadia dele em Portugal, de 1650 a 1682, e, depois,
os poemas escritos de volta ao Brasil. A diferença geográfica e climática foi essencial para a
‘mudança’ de estilo.
Em outra parte eu já expliquei que a chave para a compreensão da originalidade da
literatura brasileira, pelo menos nos dois primeiros séculos, estava na análise do
fenômeno aqui operado e a que conferi o nome de obnubilação. Consiste êste
fenômeno na transformação por que passavam os colonos atravessando o oceano
Atlântico, e na sua posterior adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo. Basta
percorrer as páginas dos cronistas para reconhecer esta verdade. Portuguêses,
franceses, espanhóis, apenas saltavam no Brasil e internavam-se, perdendo de vista
as suas pinaças e caravelas, esqueciam as origens respectivas. Dominados pela rudez
do meio, entontecidos pela natureza tropical, abraçados com a terra, todos êles se
transformavam quase em selvagens; e se um núcleo forte de colonos, renovado para
contínuas viagens, não os sustinha na luta, raro era que não acabassem pintando o
corpo de jenipapo e urucu e adotando ideias, costumes e até as brutalidades dos
indígenas (1978. p. 299-300).

No trecho, percebemos que a obnubilação será um fenômeno que nos diferenciará


do europeu, tanto os nativos da América, quanto aqueles que por aqui chegaram. Percebemos
que há uma contraposição entre a Europa e a América e no sentido colonial: metrópole e
colônia. Já lemos, páginas atrás, que para intelectuais europeus, como Taine, Guizot, Buckle,
os países da Europa se consideravam o centro político cultural do mundo, exportadores da
‘civilização’. Visto que a maioria dos países está em um clima temperado, este foi adotado
como critério civilizatório. Os países que estão nos climas quentes, tropicais, como os da
África, Américas e parte da Ásia, são considerados ‘atrasados’ e ‘selvagens’. Pela perspectiva
de Araripe Jr., o europeu ao chegar ao Brasil, tem o seu humor transformado. Ele se afasta de
suas origens e, ao se adaptar ao ‘clima tórrido’, adota os costumes, ideias e hábitos dos
‘selvagens’.
Observamos que há uma tensão, porque o crítico, na evolução de suas ideias,
censurou os extremismos da tríade tainiana. Todavia, na ideia de obnubilação, adota o
determinismo do meio. Mas há uma diferença fundamental, porque a obnubilação se afasta do
pessimismo da interpretação dos autores europeus, em relação à ‘nova terra’ e enxerga com
otimismo a formação da cultura brasileira. Mesmo sendo uma espécie de “regressão
psíquica”, a obnubilação traria vantagens ao brasileiro, “ao tornar possível a transplantação da
civilização europeia, aclimatada aos trópicos” (VENTURA, 1991. p. 89).
A transformação sofrida por Gregório de Matos o influenciou a construir um
“lirismo crioulo”, que constituiu a maior originalidade de sua poesia. Portanto, a ideia do
‘estilo tropical’ leva em conta a obnubilação, por que nasce da tensão do temperamento do
escritor com o clima, mas também com a tradição literária europeia. O estilo como linguagem
172

é um aspecto do temperamento do autor. É uma força que é transmitida por meio da obra
literária. O estilo tropical nasce de uma fusão dos aspectos psicológicos e do determinismo
geoclimático.
Essa visão original do estilo será fundamental para o estudo do naturalismo
brasileiro. Araripe Jr. foi o crítico que mais escreveu sobre o naturalismo estrangeiro e
brasileiro. Não escrevia simples resenhas. Eram ensaios longos, publicados ao longo de vários
números dos jornais. No jornal A semana, publicou dois textos: “Germinal” (1885) e
“Naturalismo e pessimismo” (1887). O ano de 1888 foi o auge de sua interpretação do
naturalismo. O cenário desse labor foi o periódico A semana. Em certos casos, eram blocos de
ensaios: “A Terra, de Emílio Zola”; “O Homem, de Aluízio de Azevedo”; “Influencia do
naturalismo sobre as formas do romance. – Atrofia dos elementos supérfluos. O maravilhoso
moderno. – Tendências de E. Zola”; “O romance experimental: aquisições de formas. Do
Assommoir. A terra. Evolução transversal do caráter de Zola”; “Aluízio Azevedo o romance
no Brasil”; “Estilo tropical: formula do naturalismo brasileiro” e “O romance no Brasil -
invasão do naturalismo”.
No artigo “Casa de Pensão – O satírico Juvenal e o romance realista – Carta a
Aluísio Azevedo”, publicada em Gazeta de Notícias, em 31 de maio de 1884, Araripe Jr.
conversa com o escritor maranhense sobre a repercussão dos romances de Zola na França,
principalmente Germinal, a novidade da época. Ele admira o talento do francês, mas
considera, devido ao seu pessimismo, improvável que se transpusesse a técnica do romance
experimental abaixo da linha do equador.
O primeiro ponto que ataco é a adaptação do Zolismo no Brasil. Já em um artigo
dirigido ao sr. T. Braga declarei que achava a concepção do romancista francês
impossível para o Brasil, - país novo, apenas lavrado por vícios de transição e,
portanto, muito diferente da França, onde o parti pris bonapartista e o pessimismo
zolaico acha todo o cabimento.O autor do Assommoir é um mestre pernicioso,
quanto tem uma garra adunca, horrível, medonha, que fisga, prende e não se retrai
nunca. Zola, ao meu ver, é uma roda exclusiva da engrenagem parisiense. Tirai-o do
grande meio que o produziu, que concentrou nele todos os miasmas de uma
civilização putrefata; tirai-o desse meio, que ele hoje domina, por sua vez, e sobre o
qual reage impiedosamente, e teremos o tóxico inaplicável, ou o vesicatório aderido
a um corpo são, e por isso impróprio para receber uma semelhante irritação.
Leiamos, pois, o notável romancista; - mas com as cautelas necessárias (sic) (1958,
p. 379).

O mestre do naturalismo no Brasil já fazia um sucesso absurdo, contudo, Araripe


Jr. não teve receio de criticá-lo. Percebe-se que ele qualifica a sua escrita pautada no
temperamento influenciado pelo clima europeu. Associa a decadência da sociedade francesa
(putrefação) aos miasmas típicos de lá. Zola é fruto de seu meio. Os brasileiros, aspirantes a
173

escritores, que têm o hábito de copiar as modas literárias europeias, não poderão fazê-lo,
segundo Araripe Jr., devido à força do nosso clima.
O crítico cearense tem a ousadia de afirmar e defender que o naturalismo
produzido no Brasil é algo novo, quiçá superior ao de Zola. Aluísio de Azevedo demonstra o
talento necessário para construir uma arte nova, porque
Em um país cujo clima entorpecedor e voluptuoso até o momento atual, só tem sido
favorecido um lirismo alto e incomparável, na frase de um desafeto orgânico; em um
país aonde a mocidade é constantemente flagelada pelas congestões hepáticas, aonde
não se consegue trabalhar senão por intermitências, no meio de langores
intercadentes, é óbvio que o romance realista, o romance de observação, de notação
contínua e de estudo profundo não pode ser desempenhado senão por um escritor de
pulso rijo, de natureza equilibrada, pujante e completamente isenta de blue devils
(1978, p. 119)

Percebemos que Araripe Jr. considerava que não era possível copiar o naturalismo
de Zola no Brasil e a solução proposta está no ensaio “Estilo tropical: a fórmula do
naturalismo brasileiro”, em que demonstra as características da tropicalidade brasileira para o
desenvolvimento de uma ficção nova:
O tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países frios;
nos países quentes, a atenção é intermitente. Aqui, aonde os frutos amadurecem em
horas, aonde a mulher rebenta em prantos histéricos aos 10 anos, aonde a vegetação
cresce e salta à vista, aonde a vida é uma orgia de viço, aonde tudo é extremoso, e
extremados os fenômenos; aqui, aonde o homem sensualiza-se até com o contato do ar
e o genesismo terrestre assume proporções enormes, vibrando eletricidade, que em
certas ocasiões parece envolver toda a região circundante em um amplexo único,
fulminante, - compreende-se que fora de todas as coisas a mais irrisória por peias à
expressão nativa e regular o ritmo da palavra pelo diapasão estreito da retórica
civilizada, mas muito menos expansiva. O estilo, nesta terra, é como o sumo da pinha,
que, quando viça, lasca, deforma-se, e, pelas fendas irregulares, poreja o mel
dulcísssimo, que as aves vêm beijar (...). É esse estilo desprezado pelos rigoristas que
justamente me apraz encontrar na mocidade que agora surge no Brasil; e se há um
escritor capaz de incorporá-lo a uma literatura nascente, como é a nossa, imprimindo-
lhe direção salutar, isocrônica e frutificante, esse escritor é o autor d’O Mulato, em
cujas páginas já encontram-se audácias dignas dos melhores, e que, nos capítulos
inéditos d’O Cortiço, vai derramando todo o luxuriante tropicalismo desta América do
Sul (1978, p. 126).

Na passagem acima, ele utiliza novamente a dicotomia entre quente/frio para


caracterizar os povos civilizados e os colonizados. Associa a ideia de ‘correção’ aos países
temperados, generalizando a ideia de que o europeu é racional, paciente, polido, capaz de
meditar e refletir (características aristocráticas). Estes traços são a base da correção, propícios
para trabalhos intelectuais, desenvolvimento de teorias, sistemas, obras de arte. Correção é
aperfeiçoamento da inteligência. No Brasil, assim como no restante da América, a correção
não é possível, devido ao nosso clima quente, que deixa as plantas, animais e os seres
humanos superexcitados. Segundo essa perspectiva, somos dominados pelas paixões e
propícios à lascívia. Essa é uma concepção altamente eurocêntrica, que Araripe Jr. não
174

conseguiu sobrepujar. O que diferencia a visão dele, por exemplo, da de Sílvio Romero, é o
seu otimismo.
O traço que caracteriza o estilo do homem brasileiro é a incorreção, que na
literatura, será transposto para a obra. No caso especifico do naturalismo de Zola, quando essa
estética emigrou para o Brasil, não foi recebida como na França. O naturalismo passou por
uma transformação radical. No nosso solo, passou pelo fenômeno da obnubilação brasílica e
tornou-se outra coisa. Ao falar da influência do clima, Araripe Jr. justifica a originalidade de
Aluísio de Azevedo, pois este não copiou o autor de Germinal. Zola na obra O romance
experimental (1880), estabeleceu regras para desenvolver uma ficção naturalista, apoiado na
ideia do romance como um espaço de experimentação das patologias contemporâneas do
homem da sociedade burguesa. Aluísio leu os livros de Zola, compreendendo suas ideias e as
adaptou às nossas circunstâncias. O molde francês não se adequaria à nossa realidade:
Emigrando para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de passar por uma
modificação profunda. Zola, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar
muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento real, aqui. O fato é intuitivo,
e eu direi porquê. A concepção do mestre, os seus métodos de expectação, os seus
processos experimentalistas, tiveram em vista uma sociedade decadente, de natural
tristonha, que decresce, míngua dentro das próprias riquezas, perante sua antiguidade,
cansada, exausta, senão condenada a perecer. No Brasil, o espetáculo seria muito
outro, - o de uma sociedade que nasce, que cresce, que se aparelha, como a criança,
para a luta. Ora, nada mais natural do que uma inversão nos instrumentos. Um cadáver
não se observa do mesmo modo que um ser que ofega de vigor. Aluísio, constituindo-
se o corifeu do naturalismo em sua terra, não cometeu o erro de copiá-lo servilmente;
ele compenetrou-se, primeiro, do espírito da revolução operada pelo mestre; mas,
organicamente diferente de Zola, impelido pela força de sua índole, talvez mais do
que ele pensa, enveredou pela trilha única que o há de levar ao acampamento
triunfante.(...) A fórmula que melhor nos cabe para exprimir a nova fase literária não
pode ser senão esta: - O naturalismo brasileiro é a luta entre o cientificismo
desalentado do europeu e o lirismo nativo do americano pujante de vida, de amor, de
sensualidade. É da limitação apenas das tendências dessa mestiçagem, reconhecida
por todos que têm estudado o problema do nosso nacionalismo; é dessa, e não de outra
limitação, que tiraremos toda a nossa força, toda a nossa segurança, e riquezas
literárias (1978. p.126-128).

Mais uma vez, Araripe Jr. transmite uma ideia de tensão entre um cientificismo
frio do europeu e o lirismo quente do americano, repleto de vida, de energia. Nesse sentido, o
estilo tropical serve como característica nativista, aspecto definidor da nossa literatura. Do
ponto de vista eurocêntrico, o que era limitação, transformou-se em força capaz de gerar
novos modos de criação literária. Aluísio de Azevedo tropicalizou o naturalismo de Zola,
dotando os seus personagens de traços típicos brasileiros, tais como os do romance O cortiço
(1890).
No ensaio “O Romance no Brasil. Invasão do Naturalismo” (1888) Araripe Jr.,
que já havia efetuado a comparação entre os meios brasileiros e francês, explica-nos que cada
175

ambiente, devido ao clima, determinará evoluções diferentes para os indivíduos. A Europa já


era uma terra antiga e decadente, enquanto somos um país jovem, repleto de possibilidades.
Ao legitimar e exaltar a literatura brasileira, Araripe Jr. afirma
Há ainda uma fórmula que caberia ao naturalismo brasileiro: - o americano
embriagado pelo real. O que certos frutos, como a mangaba, por exemplo, produzem
nas vísceras, obtém-no a natureza quando uma raça virgem ou renovada põe as suas
faculdades imaginativas em contato com o fato ou ao serviço da observação, do
experimentalismo. (...) Acode-me que a literatura brasileira, nas suas manifestações
legítimas, não pode, tão cedo, ser uma literatura simétrica e disciplinada, senão uma
convulsão entremeada de longos períodos de repouso, de languidez. E, demais, isto
não é fato recente, de longa data este fenômeno de desordem tropical se fez sentir
(1978, p. 73).

Devemos compreender as características da terra, entender que o clima pode ser


um aliado que nos auxiliará para desenvolver o processo civilizatório: a ‘nossa desordem’ que
nos permite lutar contra a colonização e buscar a nossa autonomia. Aluísio de Azevedo foi o
modelo de um novo naturalismo, que soube recriar o romance a partir do seu meio, segundo
Araripe Jr., superando os outros escritores que apenas tentavam copiar Zola.
É interessante notar que Zola era lido e discutido entre nós. Araripe Jr. também foi
seu leitor, mas observava com crítica os seus exageros cientificistas e o seu pessimismo. Ao
elogiar o estilo tropical da obra naturalista de Aluísio de Azevedo, Araripe Jr. está colocando
a literatura brasileira em evidência, demonstrando que estamos atualizados com o que se
passa nas metrópoles europeias, que somos modernos, não estamos aquém dos debates sobre
as influências do meio.
O ponto singular da crítica de Araripe Jr. Júnior foi a ênfase dada ao caráter
individual dos escritores, pautado na psicologia e fisiologia como perspectiva que contrasta
com a visão fechada do individuo preso aos fatores deterministas. A tensão entre o
temperamento do escritor e o meio resulta no estilo individual. Ora, a “análise dos
comportamentos, das sensações íntimas e até dos sonhos mais secretos do eu apaixona
Araripe Jr. Jr” (Bosi, p. 19). A estopsicologia é o parâmetro pelo qual Araripe Jr. tentou
compreender escritores estrangeiros como Zola, Balzac e Ibsen e os nacionais, como Gregório
de Matos, Aluísio de Azevedo, Raul Pompeia. O que diferencia Taine de Araripe Jr. Jr.
Na medida em que Araripe Jr. Jr. combinava a sua primeira formação taineana com
uma sensibilidade atenta aos valores éticos e estéticos das obras que comentava, a
sua crítica se distanciava da posição redutora dos contemporâneos, que tudo
enxergavam do ângulo da evolução nacional ou de uma antropologia causalista. As
reações negativas de Sílvio Romero e de Veríssimo às leituras de Araripe Jr. Jr. são
sintomáticas desse desencontro (BOSI, 1978 p. 19).

Até o ano de sua morte (1911), o crítico cearense continuou a sua labuta, lendo e
estudando, com novos projetos de perfis literários. Métodico e eclético, foi ousado ao se
176

chocar com as ideias intelectuais de seu tempo (o determinismo, o positivismo, o zolarismo)


que estavam apenas sendo degustadas, sem as diregir completamente, tornando-as senso
comum entre os escritores. Filho dos trópicos, Araripe Jr. lutou para deixar o seu legado à
inteligência brasileira da época e à posterioridade, a energia luminosa, quente e original, que
acreditava que tinha absorvido da terra. Uma verdadeira crítica tropical.

2.8 José Veríssimo

O crítico José Veríssimo nasceu no município de Óbidos (Pará), em 1857, e


faleceu no Rio de Janeiro, em 1916. Fez os primeiros estudos em Belém e, aos 12 anos, vai
para o Rio de Janeiro, onde completou os estudos no Colégio Vitório e Pedro II. Matriculou-
se no curso de engenharia da Escola Politécnica, mas por motivo de saúde, retornou ao seu
estado natal, em 1876. Além de trabalhar no serviço público, inicia a carreira literária,
publicando artigos, novelas, estudos e contos no Jornal Liberal e na Revista Amazônica
(1878). Também fundou o Colégio Americano, no qual exerceu também a função de diretor.
Publicou os livros Primeiras Páginas (1878), Cenas da vida amazônica: com um vasto estudo
acerca dos povos indígenas e mestiços da Amazônia (1886), e Estudos Brasileiros: 1ª série
[1877-1885] (1889).
Em 1891, instala-se definitivamente na Capital federal e ocupa cargos importantes
como o de Diretor do Ginásio Nacional e da Escola Normal. Passou a fase madura de sua vida
(1891-1916), exercendo a atividade intelectual por meio de periódicos: Revista Brasileira,
Kosmos: revista artística, científica e literária, Renascença: revista mensal de letras, ciências
e artes, Jornal do Commercio, Correio da Manhã, O Imparcial: diário ilustrado do Rio de
Janeiro e Almanaque Garnier. No Rio, ele publica trabalhos que ainda foram produzidos no
Pará, tais como Estudos Brasileiros: 2ª série (1889-1893) e A pesca na Amazônia (1895). Foi
membro fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1896, junto com Machado de Assis e
outros escritores.
Conhecido por sua seriedade e equilíbrio, norteou o seu trabalho de crítico, em
sua maturidade, pela análise da linguagem literária, observando elementos gramaticais, de
composição e os artifícios retóricos. Pelo seu trabalho intelectual ininterrupto, foi o primeiro
crítico que operou como testemunho da produção literária brasileira, diária e semanalmente.
Sua produção está reunida nos Estudos de Literatura Brasileira (6 séries publicadas entre
177

1901 e 1907) e na História da Literatura Brasileira (1916), síntese historiográfica e crítica de


sua vida.
Em relação às obras citadas de José Veríssimo, o pesquisador João Alexandre
Barbosa nos esclarece que a produção desses textos críticos está estreitamente ligada
às transformações de gosto e mentalidade que principiam a surgir no Brasil por volta
de 1870. Na verdade, datam desta época os primeiros sintomas efetivos de uma
ampla modificação na maneira de ver e discorrer sobre o país e que, em seu
conjunto, haverá, mais tarde, de ser caracterizado pelo próprio Veríssimo como o
modernismo de nossa evolução literária e cultural. É certo, como já observou Lúcia
Miguel Pereira, que as novas ideias somente a partir da década seguinte é que
tiveram livre curso em nossa literatura, havendo, deste modo, uma nítida defasagem
entre a insatisfação já dominante e a sua incorporação às criações literárias. (1974, p.
27-8).

Em páginas anteriores, discutimos as singularidades da chamada Geração de 70 e


suas demandas e atuações na sociedade brasileira. Sobre o assunto, João Alexandre salienta a
insatisfação dos jovens pensadores que tentaram promover uma espécie de primavera cultural
no Brasil. Mesmo sem ter feito parte da Escola do Recife, o que aproxima José Veríssimo da
efervescência intelectual dessa instituição é o desejo de ser atuante nas transformações, no
aperfeiçoamento da inteligência brasileira, através do amplo estudo da cultura do país,
contemplando a construção de um projeto crítico-literário. Se o olhar do pensador brasileiro é
voltado para a Europa, a grande questão é: o que nos diferencia do europeu, em relação ao
temperamento, aos costumes, às crenças? O entendimento da ideia de nação brasileira seria
efetuado tomando como alicerce o paralelo entre as ciências biológicas e a etnologia, visto
que o Brasil não é formado por uma única raça, mas pelo cruzamento de raças, entrelaçadas às
circunstâncias sócio históricas especificas.
A atuação de José Veríssimo e a sua singularidade como crítico foi destacada por
João Alexandre Barbosa (1937-2006) no seu minucioso estudo: A Tradição do impasse100, em
que examinou três momentos distintos e sucessivos na obra do crítico paraense: a primeira
fase, marcada pela experiência provinciana em sua cidade natal, Óbidos (1878-1890),
vinculada ao ideário da geração de 70, que enfatizava o nacionalismo; a segunda fase (1891-
1900), na qual se transfere para o Rio de Janeiro, atuando e delimitando o seu espaço no

100
O trabalho A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem, publicado em 1974,
concebido, inicialmente como pesquisa de doutorado, é até hoje um dos mais completos trabalhos sobre a
trajetória crítica de José Veríssimo. A especificidade da pesquisa de Barbosa foi a sua ampla arqueologia
documental, ao levantar artigos e ensaios dispersos em diversos periódicos no Rio de Janeiro e no Pará,
documentos pessoais e de instituições. Em seguida, efetuou uma rigorosa ordenação, não apenas cronológica, a
fim de extrair de Veríssimo, uma biografia intelectual, ao contemplar à sua trajetória e suas principais matrizes
teóricas. Assim, a pesquisa remontou a trajetória do crítico, dialogando com as séries literárias e intelectuais e
analisando a dinâmica da construção de seus textos críticos e de seu projeto literário para a interpretação da
cultura brasileira.
178

campo literário da Capital, como educador, como estudioso de etnologia e história, como
crítico regular de periódicos e editor da Revista Brasileira; a terceira fase, segundo Barbosa, é
o momento de maturidade, na qual Veríssimo luta contra os impasses teóricos, advindos da
ironia e do ceticismo, frutos da proximidade intelectual com Machado de Assis.
Ele tenta conciliar o estudo etnológico e cientificista, combinado com um
propósito nacionalista e o enfoque estético, pautado no impressionismo francês. Barbosa o
interpreta com a figura de “Janus de dupla face” (1974, p. 157), devido a esse impasse entre a
leitura científica e mesológica da literatura, tradição construída durante o século XIX e uma
visão artística e retórica, que, de certa maneira, traz à tona pressupostos estéticos do século
XVIII. Nessa fase, é publicada a obra História da Literatura brasileira, em 1916, no mesmo
ano de sua morte.
Na sua maturidade no Rio de Janeiro, estava no centro dos “impasses”, pois entre
os escritores e intelectuais havia dissidências em torno dos métodos de abordagem do texto
literário e, sobretudo, sobre o próprio conceito de literatura. Nos seus textos, Veríssimo reflete
a “dualidade que a sustenta basicamente: a aspiração por uma especificidade da crítica
literária e o intuito de uma participação, enquanto homem de letras na vida nacional”
(Barbosa, 1977, p. XXXII).
Ainda no Pará, Veríssimo participa, por meio de sua contribuição intelectual, das
mudanças na sociedade de sua província. Nos periódicos paraenses, tentava informar ao
público leitor sobre as modificações do pensamento brasileiro, suas causas e repercussões:
Em 1873 – se é possível assentar nos estreitos limites de um ano o inicio de um
movimento da ordem daquele de que trato – em 1873, uma evolução salutar, e
inesperada porque seria difícil encontrar-lhe antecedentes no país, dá-se na
mentalidade brasileira. Procurando as causas geradoras deste fenômeno – que não
podia deixar de as ter – acho-as todas em fatos estranhos por assim dizer à vida
intelectual: a guerra do Paraguai, o movimento republicano de 1870, a guerra
franco-prussiana e por fim a questão impropriamente chamada religiosa, que, em
verdade, não passou de uma questão sem nenhum alcance filosófico, entre as
sacristias e as lojas maçônicas. Todos estes movimentos, despertando cada um por
seu modo a consciência nacional, chamaram-na à realidade dos grandes interesses
que se debatiam fora daqui no mundo moral e puseram-se em comunidade de
sentimentos consigo mesmo (1977, p. 237).

Os fatos relacionados por Veríssimo são grandes conflitos, em que a principal


pauta é o progresso. Na Guerra do Paraguai (1864-1870), Solano avançou no solo dos países
vizinhos com o seu desejo expansionista, calcado em um ideário modernizante para a sua
nação. A Inglaterra não viu isso com bons olhos, pois queria dominar o máximo de territórios
do globo, a fim de ter a supremacia das fontes de matéria prima e de clientes para as suas
indústrias. Os embates entre os monarquistas e os defensores da causa republicana, e os
179

embates entre a Igreja Católica e os maçons, envolviam, no plano ideológico, o conflito entre
o novo e o antigo, entre a tradição e o moderno.
Políticos, escritores, professores, enfim, a camada letrada da população se
inspirava nas ideias acerca do progresso, da razão e da ciência para tentar promover
primeiramente revoluções ‘espirituais’, ou seja, modificar e aperfeiçoar a mentalidade da
maioria das pessoas para modernizar o Brasil. O aperfeiçoamento da sociedade brasileira só
ocorreria quando despertasse “cada um por seu modo a consciência nacional” (Veríssimo.
1998. p. 125). Contudo, os escritores são os primeiros que deveriam despertar a consciência
nacional.
A primeira fase da produção crítica de José Veríssimo está situada em meio à
discussão da nacionalidade, no embate das renovações teóricas-metodológicas, provocadas
pelas ‘ideias modernas’ e por temáticas oriundas do romantismo, como ‘nação’ e ‘povo’, que
ainda permaneciam no discurso crítico de intelectuais e escritores brasileiros.
Em seus primeiros escritos, a nacionalidade era o tema preponderante,
principalmente a discussão sobre a origem e constituição do povo brasileiro. Em 1877, ele
escreve o artigo “A literatura brasileira, sua formação e destino”, que, no ano seguinte será
publicado em Primeiras páginas101 (1878) e, posteriormente, em Estudos brasileiros (1889),
cuja perspectiva está aliada a uma visão historiográfica:
O Brasil precisa romper as faixas de criança que ligam-no ainda à Europa. Não basta
afirmar que somos um povo independente com a carta de alforria de 29 de agosto de
1825 na mão. É preciso mais. Cumpre que as nossas letras, a nossa ciência, as
nossas ideias, os nossos costumes tenham uma feição própria [...] Não é
simplesmente autonomia política e separação geográfica que fazem uma
nacionalidade; são as suas tradições, a sua língua e o seu território em primeiro lugar
e depois as suas crenças, as suas ideias, os seus costumes, as suas leis, etc.
(VERÍSSIMO, 1977, p 155).

Percebemos que este texto estabelece um diálogo com o artigo de Machado,


“Instinto de Nacionalidade” (1873). Porém, o artigo de Machado é mais crítico e equilibrado.
Machado afirma que não importa o tema, o que deve prevalecer é a qualidade artística. Nesse
ensaio, Veríssimo ainda defende o nacionalismo, sob um ponto de vista racial e histórico, que
depois será revisto em sua fase madura. No artigo, ele critica a nossa dependência cultural,
que ainda nos prende à Europa. Os dois artigos, o de Machado e o de Veríssimo, salientam
que a autonomia de uma nação não ocorre apenas na esfera política, mas na cultural. Nesse

101
O livro é formado pelos “Quadros paraenses”, conjunto de seis curtas narrativas sobre os hábitos, os tipos e
formas de vida na Amazônia, que depois foram anexados à obra Cenas da vida Amazônica (1886), e pelos
“Estudos”, compreendendo ensaios sobre etnografia e literatura.
180

sentido, ele cita o Tratado do Rio de Janeiro102 ou Tratado Luso-Brasileiro, assinado em 29 de


agosto de 1825, entre Brasil e Portugal, reconhecendo a independência de nosso país, dando
fim, oficialmente, à Guerra da Independência. O crítico afirma que é preciso mais. É
necessário despertar o espírito nacional, até aquele momento pressionado pelos elementos
estrangeiros.
O referido ensaio se pauta como uma síntese da evolução literária no Brasil até o
início de 1870. É enfatizado o processo de formação e de distinção da literatura produzida no
país. Contudo, após um longo exame, o crítico destaca a pouca originalidade de nossa
literatura, porque se conscientiza de que “a ausência de uma tradição, de uma língua e de uma
educação elaborada à base das novas circunstâncias americanas, seria responsável pela
desorientação das letras brasileiras com relação aos destinos da nacionalidade” (Barbosa,
1977, p. XV).
Para evoluir a sociedade brasileira, o principal fator seria a literatura, dado que
para Veríssimo
cabia o papel de, pelo estudo profundo do passado, levantar o espírito nacional, tão
precocemente abatido, por uma forte reação contra o presente. Aí estava, porém, a
ignorância popular engendradando o nenhum amor à leitura e obrigando os nossos
literatos, a quem não faltavam talento, nem vontade talvez, a mentirem a sua
vocação e a escreverem somente de modo a poderem ser lidos e benquistos de
leitores ignorantes e sem gosto, para não verem seus livros comidos pelas traças nas
estantes das livrarias (1977. p 156).

A literatura é a chave, mas a nossa dependência cultural em relação a Portugal, à


França e à Inglaterra ainda nos mantem em fortes grilhões. Não apenas a produção literária,
mas o discurso crítico, em alguns casos, era modelado
pelos estilos horacianos e quintilianescos, arrebicada, insciente, cheia de
conveniências e adulações, que tem dominado sempre o nosso pequeno movimento
literário, deve a nossa Literatura o vasar - se ainda hoje nos moldes acanhados das
concepções sem ideias, (falamos da poesia) dos versos, aliás brilhantes, de um
lirismo estafado e convencional, que só tem de notável a exuberância de formas
sensuais, se assim podemos dizer, que lhe empresta o sangue do mestiço, a riqueza
luxuriante da natureza e o sol do Equador (1977, p. 158).

O nacionalismo, de inspiração romântica, deve se contrapor às perspectivas


retóricas que ainda persistiam. Em sua primeira fase intelectual, José Veríssimo ressaltava o
critério racial para a crítica da literatura brasileira: buscar os elementos que os constituem,

102
O Tratado do Rio de Janeiro foi assinado na respectiva cidade, no momento, capital do império, com a
mediação da Rainha Vitória, regente do Reino Unido da Grã-Bretanha. O tratado estabeleceu a amizade e a
aliança entre El-Rei dom João VI e seu filho Dom Pedro I. O documento tinha onze artigos, e garantia a
soberania do Brasil como império independente de Portugal. Percebemos que a Coroa Britânica não mediou o
tratado por altruísmo, mas por interesses econômicos e políticos, visto que o Brasil, aos poucos, tornou-se um
grande cliente da indústria e dos bancos ingleses.
181

suas origens, suas qualidades e suas transformações. A pauta da mestiçagem era comum entre
os intelectuais da geração de 70. Para entender a literatura, primeiro devia-se recorrer ao
estudo do cruzamento racial, observando os tipos raciais negros vindos da escravidão e a
exploração da mão de obra indígena. Esses critérios foram levados em conta por Martius e
Sílvio Romero.
Em trecho final do artigo, ele esboça a sua metodologia crítica:
Para se compreender perfeitamente o espirito de um povo é necessário estudar os
diferentes elementos que o compõem. É sobre este critério que assentamos o nosso
modo de pensar de que é do estudo bem feito dos elementos étnicos e históricos de
que se compõe o Brasil, na compreensão perfeita do nosso estado atual, de nossa
índole, de nossas crenças, de nossos costumes e aspirações que poderá sair uma
literatura que se possa chamar conscientemente brasileira, à qual ficará reservado o
glorioso destino de fazer entrar este país, pela forte reação de que falamos atrás, n’
uma nova via de verdadeira civilização e verdadeiro progresso (1977, p. 162).

Em sua fase nortista, a pesquisa etnográfica se utilizava do estudo dos costumes,


das crenças do povo amazônico como exemplo da autêntica nacionalidade. Esse era o critério
principal. A literatura era um aspecto cultural privilegiado para elevar a civilização brasileira
ao progresso.
Na sua segunda fase, já no Rio de janeiro, ele desenvolve análises literárias em
jornais e revistas de grande circulação e, posteriormente, publica esses textos ao longo da
série Estudos de Literatura Brasileira, Que é Literatura? e outros escritos, publicados entre
os anos de 1901 e 1907. Nesse período, ele se dedica a desenvolver estudos sobre os diversos
gêneros literários como poesia, contos, dramas, romances.
A sua reputação o torna privilegiado como crítico e educador. Cada vez que
amplia os seus estudos sobre literatura e cultura, mais ele se conscientiza de que os problemas
de ordem política, social, econômica e moral, que interferem drasticamente sobre o possível
crescimento de uma literatura consolidam uma nação emergente.
No escopo das vicissitudes apontadas, Veríssimo salienta os problemas
institucionais, como o desemprego, o analfabetismo, a falta de investimento na cultura, e era
severo em relação à literatura, pois dissertava que a produção literária e crítica estavam aquém
dos padrões modernos, comparáveis à Europa. Poderíamos pensar que José Veríssimo
privilegiava o fator estético, contudo ele não enxerga o problema literário apartado dos
problemas históricos e culturais do país, ideias apresentadas em Que é Literatura? e outros
escritos103. Nessa reunião de ensaios, ele não julgava mais a literatura preponderantemente

103
O livro é composto por artigos publicados anteriormente em dois jornais distintos: Jornal do Commercio e
Correio da Manhã, entre 1899 e 1903. Alguns dos artigos: “Que é Literatura?”, “O futuro da poesia”, “A
182

pelo fator etnológico. Buscava, cada vez mais, observar a obra literária sob o ponto de vista da
crítica literária.
Com passar dos anos, vivendo em um meio político e cultural bastante
conturbado, Veríssimo vai burilando a sua concepção de literatura. No artigo, “O que é
literatura?”, que abre o livro homônimo, o crítico nos fala da complexidade de tal missão e
que
a muitos parecerá impertinente a pergunta: quem há aí que não suponha saber o que
é literatura? Esta inocente presunção (e no gênero todos a temos, a respeito disto ou
daquilo), talvez se desvanecesse em face da simples necessidade de uma
classificação de livros por matérias, de uma separação de obras nas duas grandes
espécies da produção espiritual humana: ciência e arte. Veriam que a questão não é
ociosa, quando, trabalhando de boa-fé, hesitassem, parassem, sem saber, em casos
numerosos, que solução dar-lhe. Pensariam então que não fora porventura inútil
examiná-la. Façamo-lo, pois, que algum de nós se terá forçosamente visto no
embaraço figurado (2001, p. 23).
Como já dissemos em parágrafos anteriores, ele vai se afastando de uma
concepção nacionalista e etnográfica, influência da Geração de 70. Percebemos que ele
discute a delimitação das obras humanas em científicas e artísticas. Para os intelectuais da
Geração de 70, como Sílvio Romero e outros, os critérios científicos serviram de base para as
analises literárias. Até a classificação de crítica moderna vinha desse sentido. Veríssimo busca
uma especificidade do fenômeno literário, oriundo de inúmeras influenciam de leituras,
francesas, inglesas e alemãs.
Quando ele prioriza os elementos estéticos da obra, quer seja ela lírica ou
ficcional, à personalidade do escritor, ele se aproxima de uma crítica de Sainte-Beuve. No
entanto, não deixa de lado o meio, as condições materiais, a história dos movimentos
literários. O artigo é uma síntese de sua postura crítica, naquele momento, ao tentar definir
literatura:
Várias são as acepções do termo literatura: conjunto da produção intelectual humana
escrita; conjunto de obras especialmente literárias; conjunto (e este sentido, creio,
nos veio da Alemanha) de obras sobre um dado assunto, ao que chamamos mais
vernacularmente bibliografia de um assunto ou matéria; boas letras; e, além de
outros derivados secundários, um ramo especial daquela produção, uma variedade
da Arte, a arte literária. É principalmente neste último sentido que a tomamos aqui.
E ainda assim restringida a sua compreensão, mais de uma dificuldade se antolha ao
que a precisa aplicar numa classificação exata (2001, p. 23-4).

No trecho, o autor nos mostra diversas acepções do termo e sua abrangência. A


literatura é um fenômeno cultural, pois é feito pelos homens, contudo, tenta especificá-la.
Afirma que o sentido germânico é mais abrangente. Esse sentido remonta à postura de Sílvio

crítica literária”, “Questões Literárias”, “A Literatura Provinciana”, “Rio Branco”, “Sobre alguns conceitos
do Sr. Sílvio Romero” e “Post Scriptum”.
183

Romero. Mas, Veríssimo considera a produção escrita e o sentido intrínseco da literatura – o


seu caráter artístico – ou seja, o quesito de beleza, de transformação de algo comum, prosaico,
em algo que toque a sensibilidade do leitor. Portanto, para que uma produção escrita seja
denominada de literatura, deverá cultivar e ampliar a sensibilidade e a cultura do homem
moderno.
Certo, num livro de viagem, de história, de filosofia, como num livro de crítica ou
de polêmica, pode haver emoção que se transmita ao leitor, como num poema, num
drama, num romance pode haver especulação, ensinamento, exposição de verdades,
mas nem a emoção é essencial àquele, nem a verdade científica, prática ou moral,
essencial a estes. E aqui é o caráter essencial que deve servir de base à classificação.
Toda a história, toda a filosofia, toda a crítica tratada de um modo geral e
despertando um interesse geral é literatura (2001, p. 34-5).

A literatura deverá, portanto, ter um valor humanístico, porque é um fenômeno


capaz de educar as pessoas, tornando-as mais refinadas, em contato com a cultura moderna.
A maior parte da produção crítica de José Veríssimo em sua segunda fase e início
da terceira foram as compilações de ensaios que formam as séries de Estudos de Literatura
Brasileira. A primeira foi publicada em 1901, fruto do trabalho como editor e diretor da
Revista Brasileira, entre os anos de 1895 e 1899. A segunda série, também publicada em
1901, é formada por treze ensaios, todos publicados no Jornal do Commercio, em 1899. A
terceira série foi impressa em 1903 e a quarta em 1904. A quinta série, publicada em 1905,
reúne textos publicados em 1902 no jornal Correio da Manhã. A sexta série, publicada em
1907, reúne ensaios que saíram em três periódicos entre dezembro de 1902 e janeiro de 1906:
Correio da Manhã, Revista Kosmos e Renascença.
A segunda série dos Estudos marcou a transição metodológica de Veríssimo,
entre as suas atividades oriundas das transformações advindas da Geração de 70 (segundo
João Alexandre Barbosa, ‘Geração contestante’) e sua pesquisa por obter uma especificidade
crítica. Esse impasse, que foi se desenrolando ao longo da década de 1890, prosseguiu até o
início do século XX, uma tentativa de superação da fase ‘empenhada e programática’ dos
trabalhos provincianos, “constituindo-se em um esforço de imparcialidade e equidistância,
representava uma abertura para a compreensão da crítica e do seu objeto, por onde podia se
introduzir uma sutileza muito maior na utilização de conceitos e princípios de valorização
(BARBOSA. 1974. p. 63).
Ele adotará ‘‘um grão de ironia e de ceticismo” (idem, p. 171), como investida
para analisar o romance naturalista brasileiro, como o de Aluísio Azevedo, Júlio Ribeiro e
Marques de Carvalho, e também, a obra de Machado de Assis.
184

Sobre o naturalismo, a moda literária que fazia sucesso no Rio de Janeiro, sob um
ponto de vista estético, não se demonstra favorável. De acordo com Ventura,
Veríssimo rompeu, em parte, com o naturalismo a partir da segunda série dos
Estudos brasileiros, de 1894. Adotou uma linguagem impressionista e preocupações
marcadas pela estética e retórica, que o afastaram das concepções críticas de
Hipollyte Taine e Ferdinande Brunetière. Incorporou a crítica impressionista de
Anatole France e Jules Lemaître, como forma de oposição ao cientificismo
naturalismo e substitui disciplinas, como a biologia, fisiologia e sociologia, pela
psicologia como instrumento de investigação. Desse modo, procurou superar as
limitações da crítica naturalista da ‘geração’ de 1870. Prova dessa ruptura é seu
ensaio sobre Quincas Borba, de Machado de Assis, no qual questionou o critério
nacionalista e propôs o enfoque da realização literária ou estética das obras (1991.
p.115).

Veríssimo via o naturalismo como um modelo importado, um processo vulgar de


representação do real. A arte é mais do que uma cópia trivial da realidade e a ciência não pode
dar um modelo adequado para a construção do objeto artístico. A obra é fruto do homem,
portanto, a crítica deve buscar a psicologia como método de investigação, tendo Anatole
France e Jules Lemaître como guias teóricos.
Sobre o naturalismo, escreveu os dois ensaios “O romance naturalista no Brasil”
(1888) e “O naturalismo na literatura brasileira” (1994) Nos ensaios, considera o naturalismo
um exagero grotesco: “Zola falsifica a humanidade, não a vê senão por um lado, o torpe, e
castro obcecado pela ideia fixa da carne, como esses monges austeros cujos livros suam
volúpia e concupiscência” (1894. p. 26-27).
A expressão enfatizada por João Alexandre Barbosa, em A tradição do impasse, é
retirada de um artigo de Veríssimo inserido na segunda série dos Estudos Brasileiros, de
1894, quando trata sobre o crítico, que ele dever ser um “observador imparcial, porém, só o
pode neste instante ser quem, à ausência das paixões do dia, juntar um grão de ironia e de
ceticismo” (Apud BARBOSA, p.112). Ora, no emaranhado paradoxal de rápidas
transformações sociais, políticas que atravessavam o Brasil, estudar a nossa circunstância
cultural não podia ser feito sem esses dois grãos oriundos das árvores intelectuais de Machado
de Assis e de Anatole France.
Outra imagem particular que João Barbosa tece do crítico paraense é do “Janus de
dupla face”,
Por um lado, é o escritor voltado para a criação literária enquanto objeto resultante
de uma cristalização de experiências fincadas no passado (daí o seu tradicionalismo,
a incompreensão para com os “novos”, o seu romantismo garrettiano, après la
lettre); por outro lado, todavia, é o inquisidor atento da vida pública, social e
econômica do país (1974, p. 158 ).

Um impasse entre o novo e a tradição, a obra nova é fruto da continuidade


mesclada com a superação da tradição literária. Contudo, o impasse não era apenas entre a
185

arte nova e a antiga, mas entre métodos novos e antigos. O paradoxo é explicado adiante:
“sim, como um Janus de dupla face: uma voltada para os desígnios de nossas primeiras buscas
de auto-identificação (critérios de nacionalidade/substratos etnográficos) e a outra proposta
pelas modificações da sociedade (aspiração da especificidade crítica/começo de um novo
modelo de reflexão)” (1974, p.157).
A solução para esse impasse seria a difícil instauração de um discurso crítico que
assimilasse as duas faces, tentando especificar a linguagem do fenômeno literário para o
exercício da crítica. Contudo, a concepção estética não abandona os critérios históricos e
culturais, pois, segundo o crítico paraense uma literatura “não é só uma coleção de obras
primas. É alguma coisa mais ou menos que isso. Expressão social por excelência, para ser
representativa e completa” (1977, p. 29).
Esse trecho se encontra no ensaio “O primeiro poeta brasileiro”, enfeixado na 4ª
serie dos Estudos literários. O que trata de Bento Teixeira, considerado o primeiro autor
literário brasileiro. Para Veríssimo, o estudo das atividades literárias de um povo deve seguir
os rastros de sua origem, considerando a tradição espiritual. Para a História da literatura,
documentos escritos, frutos de um pensamento são dados históricos, são índices para entender
o fenômeno literário. A crítica, ao observar a psicologia, os costumes, tais como a religião e a
moral, o estágio inicial de um povo e o seu desenvolvimento, poderia verificar o fenômeno
literário como uma evolução dessa sociedade, ou seja, a expressão estética como um
componente mais refinado do progresso civilizatório.
Contudo, nessa perspectiva evolucionista, o critério de originalidade enxerga o
predecessor como fonte qualificativa de autenticidade, pois o olhar do intelectual era voltado
para a Europa, que era uma espécie de ‘espelho do mundo’, principalmente dos países recém-
independentes ou colonizados. A Europa, como um continente antigo e berço das civilizações
colonizadoras, é a fonte dos temas, das técnicas, dos gêneros, das teorias. Os países novos,
frutos da colonização, como no caso brasileiro, para os intelectuais de base eurocêntrica, eram
vistos como prolongamento de literaturas feitas, um ramo de manifestações literárias em
pleno viço (1977, 3ª Série. p. 30). As manifestações literárias brasileiras, portanto, são frutos
dessa influência. Em relação à literatura europeia, possuíam um grau estético menor, visto que
“não têm sociologicamente a mesma importância que as primeiras produções de uma
literatura que começa originalmente com um povo original” (1977, 3ª Série. p. 30).
Em um comentário pessimista, Veríssimo nos fala de nosso lugar na literatura
universal e aponta algumas soluções para o nosso progresso:
186

É que falta nessa hibridação a completa homogeneidade mental, que uma longa
evolução literária constituiu no povo principal e gerador. Uma grande literatura,
como uma grande arte, supõe esse lento e extenso desenvolvimento das capacidades
literárias e estéticas, exercitadas em obras numerosas. Não é possível, senão como
uma presunção da vaidade nacional, supor um povo, uma nação nova, como são as
americanas, com uma literatura equivalente às dos povos donde procedem. Um
Shakespeare, um Cervantes, um Camões são impossíveis, e o serão por séculos, na
América. E não hesito em estender essa apreciação a todas as ordens de atividade
mental (1977. 3ª série, p. 30).

Veríssimo salienta que, para se chegar a ter um Shakespeare ou Cervantes, um


povo precisa passar por longo estágio civilizatório, de vários séculos de maturação. A seu ver
Brasil é muito novo para ter um verdadeiro gênio literário. Nessa perspectiva, a literatura
brasileira não possui originalidade e nem caráter próprio. Teríamos uma plena autonomia
literária, primeiro fazendo evoluir o nosso povo.
Uma saída para as civilizações novas, como o Brasil, seria, prioritariamente
construir condições para que a massa da população tivesse acesso à produção cultural e
intelectual. Veríssimo não conseguia separar absolutamente a perspectiva estética da reflexão
acerca do nosso nacionalismo cultural. Essa forte influência leva o crítico a problematizar a
formação da literatura brasileira.
Segundo, Afrânio Coutinho
essa persistência no tempo e no espaço de tal sentimento, manifestado
literariamente, significa, para ele [Veríssimo], que o instinto de nacionalidade é a
grande constante de nossa história – tanto política quanto literária, ou, por outras
palavras, é o dínamo que encontra expressão exterior seja na política seja na
literatura. É a maior constante da nossa cultura (1968, p. 146).

Há uma forte necessidade de legitimar a atividade literária e crítica, ao defender a


sua autonomia perante as instituições, que devem reconhecer a autoridade e a competência da
atividade crítica. Segundo Ventura, na visão de Veríssimo, para que a nossa cultura evolua, é
necessário o estabelecimento de atividades profissionais, relacionadas à literatura, que
depende da rede de inclusões e exclusões, por meio da qual se formam as matrizes
institucionais que regulamentam as práticas de leitura e o cânone das obras integradas à
história literária (1991. p. 116).
Enfim, o crítico, enquanto tinha a vida devotada aos livros, tentava uma saída ao
paradoxo cultural brasileiro: como se afirmar como nação, por meio da literatura, se somos
um país novo, com uma tradição literária recente?
Em suas leituras, Veríssimo buscou saciar a sua curiosidade em diversos tipos de
literatura estrangeira, tanto teórica, quanto ficcional. Leu muitos livros de língua inglesa e
francesa, por meio de revistas literárias europeias que vinham nos navios para o Rio. No
linguajar de hoje, o crítico paraense seria uma pessoa ‘antenada’. Lendo e relendo a produção
187

nacional, militando crítica e acompanhando as novidades literárias nos periódicos e lendo o


que recém chegava da Europa, Veríssimo começa a buscar novas perspectivas.
Nos últimos anos de sua vida, dedica-se à redação de uma obra historiográfica que
deveria ser uma síntese de suas reflexões maduras sobre a literatura brasileira. Ele deixa a
obra pronta em 1916, História da literatura brasileira, contudo, falece no mesmo ano, sem
ver a grande repercussão que tomou e que serviu de modelo para os outros livros de História
da literatura e obras didáticas, no século XX.
O livro apresenta uma reviravolta metodológica daquilo que Afrânio Coutinho,
chamou de ‘tradição afortunada’ (1968), isto é, de uma tradição nacionalista da crítica e da
historiografia. Vemos os resquícios dessa tradição na primeira e na segunda fase do crítico,
segundo Alexandre Barbosa.
Na introdução do livro, Veríssimo nos alerta que “A literatura que se escreve no
Brasil é já a expressão de um pensamento e sentimento que se não confundem mais com o
português, e em forma que, apesar da comunidade da língua, não é mais inteiramente
portuguesa” (1998, p. 23). O seu intuito repousa na construção da persistência de um espirito
nativista que nos dá unidade e autonomia. Mas a sua obra é específica, pois o interesse é
apenas do sentimento expresso artisticamente por meio da literatura.
Nos primeiros artigos que publica no Rio de Janeiro, o crítico nos fala que o
Brasil não era original, dependia de modelos teóricos e estéticos europeus e ainda não possuía
uma civilização capaz de desenvolver uma literatura de qualidade estética. No texto
“Introdução”, datada de 4 de dezembro de 1912, percebemos uma mudança de perspectiva, ao
expor as suas maduras concepções de literatura nacional, seu percurso histórico e a sua
situação contemporânea.
Primeiramente, o autor destaca a emancipação do país ao afirmar que nós já
possuímos expressão e pensamento próprio que não podem mais ser confundidos com
Portugal. A questão da dependência, questão cara aos românticos, é excluída e o livro é uma
espécie de testemunha da jornada dessa independência literária, cujo ápice é Machado de
Assis.
O ponto central dessa introdução é como Veríssimo conceitua a literatura.
A literatura é arte literária. Somente o escrito com o propósito ou a intuição dessa arte,
isto é, com os artifícios de invenção e de composição que a constituem, é, a meu ver,
literatura. Assim pensando, quiçá erradamente, pois não me presumo de infalível,
sistematicamente excluo da história da literatura brasileira quanto a esta luz se não
deva considerar literatura. Esta é neste livro sinônimo de boas ou belas-letras,
conforme a vernácula noção clássica. Nem se me dá da pseudo novidade germânica
que no vocábulo literatura compreende tudo o que se escreve num país, poesia lírica e
economia política, romance e direito público, teatro e artigos de jornal e até o que se
188

não escreve, discursos parlamentares, cantigas e histórias populares, enfim autores e


obras de todo o gênero (1998, p. 30).

O critério de exame das obras é o estético, observando os artifícios de ‘invenção’


e de ‘composição. É uma visão da literatura como objeto de engenho, de beleza. Para tanto,
recorreu a concepções estéticas e a noções da retórica clássica, ao caracterizar literatura como
‘boas ou belas letras’, ou seja, arte da palavra com ‘artifícios de invenção e de composição’,
ideias com fortuna desde o século XVIII. Percebemos que ele busca uma especificidade: nem
todos os documentos escritos por um povo são literatura. O alvo da indireta do 2º parágrafo é
bastante conhecido: são Sílvio Romero e o seu critério culturalista de História da Literatura
brasileira, de 1888, cuja 2ª edição modificada pelo crítico, saíra em 1902. Mesmo tentando
ter o mérito de introduzir um método moderno à critica e história literária, contudo, devido ao
seu apego à ciência exagerou no procedimento de acumular fatos literários do passado, a fim
de ampliar ao máximo a tradição literária nacional. Quanto mais tradição, mais rica seria a
nação. Para Romero, a literatura era um instrumento para meditar sobre a cultura.
Veríssimo considera como autores literários só os que escreveram e publicaram
com a intenção artística, por isso, o seu corpus é deveras reduzido, ao contrário de Romero
que incluiu juristas, textos filosóficos e religiosos em sua História literária. O diferencial de
Veríssimo é que ele prega a autonomia da crítica literária, sem precisar recorrer aos estudos
sociais.
Ele é mais criterioso, porque a História literária é o registro das atividades
literárias que permanecem em nossa tradição, que nos constituem como nação.
Como não cabem nela os nomes que não lograram viver além do seu tempo também
não cabem nomes que por mais ilustres que regionalmente sejam não conseguiram,
ultrapassando as raias das suas províncias, fazerem-se nacionais. Este conceito
presidiu à redação desta história, embora com a largueza que as condições peculiares
à nossa evolução literária impunham. Ainda nela entram muitos nomes que podiam
sem inconveniente ser omitidos, pois de fato bem pouco ou quase nada representam.
Porém uma seleção mais rigorosa é trabalho para o futuro (sic) (1998. p. 33).

Não apenas os escritores que escrevem com intenção literária, mas a qualidade
estética é um critério fundamental, por que os ‘melhores’ (num sentido evolucionista)
permanecerão na tradição literária brasileira. O autor demonstra insatisfação, pois em sua
História há mais autores mortos, do que vivos, afirmando que “igualmente não desejo
continuar a fazer da história da nossa literatura um cemitério, enchendo-a de autores de todo
mortos, alguns ao nascer” (idem, p. 32).
Com o seu critério estético, tenta abarcar uma ‘honestidade’ crítica, ao definir que
tratará apenas dos autores que têm mérito para ingressar no rol da tradição literária brasileira.
189

Ele divide a História da literatura em dois períodos – O Colonial e o Nacional –, nos


explicando que
As duas únicas divisões que legitimamente se podem fazer no desenvolvimento da
literatura brasileira, são, pois, as mesmas da nossa história como povo: período
colonial e período nacional. Entre os dois pode marcar-se um momento, um estádio
de transição, ocupado pelos poetas da Plêiade Mineira (1769-1795) e, se quiserem,
os que os seguiram até os primeiros românticos. Considerada, porém, em conjunto a
obra desses mesmos não se diversifica por tal modo da poética portuguesa
contemporânea, que force a invenção de uma categoria distinta para os pôr nela. No
primeiro período, o colonial, toda a divisão que não seja apenas didática ou
meramente cronológica, isto é, toda a divisão sistemática, parece-me arbitrária.
Nenhum fato literário autoriza, por exemplo, a descobrir nela mais que algum
levíssimo indício de “desenvolvimento autonômico”, insuficiente em todo caso para
assentar uma divisão metódica. Ao contrário, ela é em todo esse período inteira e
estritamente conjunta à portuguesa. Nas condições de evolução da sociedade que
aqui se formava, seria milagre que assim não fosse. De desenvolvimento e portanto
de formação, pois que desenvolvimento implica formação e vice-versa, é todo o
período colonial da nossa literatura, porém, apenas de desenvolvimento em
quantidade e extensão, e não de atributos que a diferençassem (idem, p. 25).

O crítico nossa literatura é vista em fases que equivalem ao progresso político e


social do Brasil: a ‘formação’ ocorre entre 1500 e 1750, uma fase de transição, o chamado
‘desenvolvimento autonômico’, entre 1750 ae1830’ e a ‘transformação romântica, entre 1830
e 1870 (Barbosa, 1996, p. 19). Também efetua uma revisão metodológica da tradição literária,
incluída no capítulo ‘Fatores da Literatura brasileira’. Ele levou em conta os autores dos
cânones dos períodos arcadista e romântico, enxugando a lista elaborada por Sílvio Romero
em sua História.
Na obra de Veríssimo, o cânone literário brasileiro é reduzido, entre os séculos
XVI e XVII, a sete autores que nos legaram alguns documentos literários, mesmo alguns, de
autoria incerta: José de Anchieta, Bento Teixeira, Gabriel Soares de Souza Fernão Cardim,
Frei Vicente do Salvador, Manuel Botelho de Oliveira, Gregório de Matos e a obra Diálogos
das Grandezas do Brasil, atribuída a Bento Teixeira. Segundo Barbosa, no cânone de
Veríssimo, “do mesmo modo, antes do que chama ‘A plêiade mineira”, no século XVIII são
elencados apenas cinco autores: Frei Manuel de Santa Maria Itaparica, Rocha Pita, Nuno
Marques Pereira, Matias Aires e Domingo Caldas Barbosa” (1996. p. 26). Ainda nos
referindo às fases definidas por ele, o critério periodológico será calcado na história política.
Há, portanto, literatura colonial e literatura nacional.
Na época colonial, as manifestações literárias produzidas no solo brasileiro
estavam inteira e estritamente conjuntas à tradição literária portuguesa. Ele afirma que a
“Necessariamente nasceu e desenvolveu-se a literatura no Brasil como rebento da portuguesa
e seu reflexo” (VERÍSSIMO. 1998. p.23).
190

Nessa afirmação, não observamos pessimismo, mas uma constatação histórica.


Antônio Cândido, no texto introdutório e metodológico de sua Formação da literatura
brasileira, afirma que “comparada às grandes, a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela,
não outra, que nos exprime” (1981 p. 10). A base da nossa literatura é a portuguesa, visto o
nosso passado colonial. Não podemos apagar o passado. É partir dessa herança colonial,
exploratória e violenta, que devemos entender a evolução das obras literárias em nosso solo,
pois são elas que nos ajudam a delinear uma percepção de nós mesmos.
O historiador nos conta que somente no fim do século XVIII é que os poetas
começam a se distinguir dos portugueses, mas só os poetas. Distinção, porém, ainda muito
escassa e limitada e também parcial (VERÍSSIMO, 1998, p. 25)
O período nacional ocorrerá no processo de separação política de Portugal e a sua
grande estética representativa foi o romantismo, até a década de 1870.
Pelo fim do Romantismo, esgotado como acabam todas as escolas literárias, tanto
por enfraquecimento e exaustão dos seus motivos, como pela natural usura, entram a
influir a mente brasileira outras correntes de pensamentos, outros critérios e até
outras modas estéticas europeias de além Pireneus oriundas das novas correntes
espirituais, o positivismo em geral ou o novo espírito científico, o evolucionismo
inglês, o materialismo de Haeckel, Moleschott, Büchner, o comtismo, a crítica de
Strauss, Renan ou Taine, o socialismo integral de Proudhon, o socialismo literário
de Hugo, de Quinet, de Michelet. Outras tendências e feições, criadas por estas
novas formas de pensamento, se substituem ao ceticismo, ao desalento, ao
satanismo, tudo também literário ou apenas sentimental de Byron, Musset e outros
que tanto haviam influenciado a nossa segunda geração romântica. Verifica-se que
nenhuma das correntes do pensamento europeu que aturaram no brasileiro levou
menos de vinte anos a se fazer aqui sentir. E esta é a regra ainda depois que as
nossas comunicações com a Europa se tornaram mais fáceis e mais frequentes
(VERÍSSIMO. 1998. p. 27).
Com os avanços técnicos das comunicações e dos transportes, o acesso ao
conteúdo intelectual e artístico da Europa torna-se mais intenso, permitindo aos escritores
acompanhar as modas estéticas, e os periódicos europeus. Nas últimas décadas do século
XIX, isto fica ainda mais evidente, a partir do realismo-naturalismo e parnasianismo e
simbolismo. Contudo, as produções posteriores fundamentadas no naturalismo cientificista
correspondem ao período contemporâneo do crítico que não despertou simpatia.
A abordagem da literatura de modo mais restrito, priorizando os elementos de
formalização, em detrimento do conteúdo, ocorrerá pela aproximação ao historicismo de
Gustave Lanson, que defende uma leitura ‘impressionista’ e humanista do fenômeno literário:
Com o mais recente e um dos mais justamente apreciados historiadores da literatura
francesa, o Sr. G. Lanson, estou que “a literatura destina-se a nos causar um prazer
intelectual, conjunto ao exercício de nossas faculdades intelectuais, e do qual lucrem
estas mais forças, ductilidade e riqueza. É assim a literatura um instrumento de
cultura interior; tal o seu verdadeiro ofício. Possui a superior excelência de habituar-
nos a tomar gosto pelas idéias. Faz com que encontremos num emprego o nosso
pensamento, simultaneamente um prazer, um repouso, uma renovação. Descansa das
191

tarefas profissionais e sobreleva o espírito aos conhecimentos, aos interesses, aos


preconceitos de ofício; ela “humaniza” os especialistas. Mais do que nunca precisam
hoje os espíritos de têmpera filosófica; os estudos técnicos de filosofia, porém, nem
a todos são acessíveis. É a literatura, no mais nobre sentido do termo, uma
vulgarização da filosofia: mediante ela são as nossas sociedades atravessadas por
todas as grandes correntes filosóficas determinantes do progresso ou ao menos das
mudanças sociais; é ela quem mantém nas almas, sem isso deprimidas pela
necessidade de viver e afogadas nas preocupações materiais, a ânsia das altas
questões que dominam a vida e lhe dão um sentido ou um alvo. Para muitos dos
nossos contemporâneos sumiu-se-lhes a religião, anda longe a ciência; da literatura
somente lhes advém os estímulos que os arrancam ao egoísmo estreito ou ao mister
embrutecedor”. Não se poderia definir com mais cabal justeza, nem com mais
elegante simplicidade, a literatura e sua importância (idem. p. 30).
.
É interessante, que na introdução À Histoire de la littérature française, cuja
primeira edição é de 1894, Lanson cite a influência de Taine como grande precursor da
historiografia. Mas, em Veríssimo o determinismo de Taine é atenuado pela leitura de
Lanson, com o qual o crítico brasileiro se identificará metodologicamente.
O método de análise empregado no livro de Veríssimo é bastante restrito, em
relação ao objeto, somado ao conhecimento dos
elementos biográficos, necessários à melhor compreensão do autor e da sua época
literária, como outros dados cronológicos, são da maior importância para bem situar
nestas obras e autores e indicar-lhes a ação e reação. A história literária deve, porém,
antes ser a história daquelas do que destes. Obras e não livros, movimentos e
manifestações literárias sérias e consequentes, e não modas e rodas literárias, eiva
das literaturas contemporâneas, são, a meu ver, o imediato objeto da história da
literatura. Um livro pode constituir uma obra, vinte podem não fazê-la. São obras e
não livros, escritores e não meros autores que fazem e ilustram uma literatura (id. p.
13).

A tensão entre as contribuições críticas nacionais e as leituras estrangeiras é uma


marca fundamental para Barbosa, no “sentido de superar as amarras de sua formação
intelectual como homem originário do ambiente cultural contaminado por aquilo que Sílvio
Romero chamou de um ‘bando de ideias novas’ (leia-se, sobretudo, evolucionismo e
positivismo) e que o próprio Veríssimo, na História, vai caracterizar como ‘modernismo’
(1974. p. 26).
As três bases metodológicas da História da Literatura brasileira – a divisão entre
literatura nacional, uma visão da literatura autônoma após a independência e a ideia da
literatura como arte literária – orquestraram o itinerário historiográfico, definido no próprio
subtítulo do livro, “de Bento Teixeira a Machado de Assis”, passando por simples
manifestações literárias isoladas, no caso Gregório de Matos e os poetas mineiros, até chegar
numa metrópole literária, como o Rio de Janeiro, dotada de uma complexa rede de autores e
leitores que estão pondo em marcha a tradição literária: “uma literatura [...] só existe pelas
obras que vivem, pelo livro lido, de valor efetivo e permanente e não momentâneo e
192

contingente” (op. cit. p. 32). Ele concentra a sua visão na Capital Federal, como polo
irradiador da literatura e da cultura do Brasil. O que era publicado, lido e discutido lá, serviria
como reflexo para o resto do país.
Percebemos que não há muito interesse de Veríssimo pela literatura de cunho
regional, bem diferente do início de sua carreira, quando a etnografia era a força motriz de sua
atuação intelectual. O ápice do livro é o capítulo referente ao autor de Dom Casmurro:
“chegamos agora ao escritor que é a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais
eminente figura da nossa literatura, Joaquim Maria Machado de Assis” (1998. p. 223).
Paradoxalmente, ao tentar se desviar do nacionalismo romântico, exalta Machado como a
nossa maior glória nacional, fruto da evolução da cultura brasileira. Contudo, percebemos que
Machado é um caso tão isolado, que não reflete a inteligência literária de seus patrícios, mais
integrados ao naturalismo zolariano.
Há questões particulares que percorrem a obra, uma tensão entre a formação
naturalista do crítico e as novidades literárias, tais como a poesia simbolista. Segundo
Barbosa, “Assim como Lanson não soube ver a novidade revolucionária de Mallarmé, assim
Veríssimo não conseguiu vislumbrar a importância da linguagem de um Cruz e Souza. Em
termos de poesia, a História termina com os parnasianos sobre os quais Veríssimo encontrava
o que dizer, sem se desfazer de sua herança naturalista” (1974 p. 25). Há ensaios rápidos
sobre os poetas simbolistas, como Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza, mas pouco
inspirados. A estética em que o crítico mais se demora, que constitui o centro do livro é o
romantismo.
O triunfo da literatura brasileira, segundo o crítico, é assunto do capítulo XIX de
sua história: Machado de Assis. O autor carioca é a perspectiva de futuro literário, pois
também foi um crítico. Como escritor e crítico privilegiou os aspectos estético e universalista
da literatura. A ficção madura machadiana influenciou o discurso crítico de Veríssimo.
Em História da Literatura brasileira, o crítico paraense tentou traçar um
panorama cultural e literário e estabeleceu uma
divisão de águas fundamental: de um lado estava o país, a sua estrutura social,
política e econômica corroída pelos primeiros momentos de vida republicana; de
outro lado, estava o intelectual que refletia sobre esta mesma estrutura, recusando-a
como favorável à criação e jogando num posterior renascimento fundado na
desvinculação que o tempo haveria de possibilitar. Quanto ao presente, não havia
alternativa: era assumir uma posição de pessimismo quanto às suas realizações e
considerá-lo apenas como estágio de transição para o que, talvez, houvesse de surgir
no futuro (BARBOSA, 1974, p. 128).

O distanciamento irônico adotado por José Veríssimo não o deixou cair


novamente nas teias do nacionalismo, contudo, em relação ao futuro literário brasileiro ficou
193

marcado por um enorme pessimismo. A História de Romero também apresenta um teor


pessimista. O motivo é o desencanto com o presente, pleno de atraso cultural. Romero é um
saudosista que o espera, se o país tentar acompanhar a marcha do progresso, contando com as
indissiocrasias de sua condição miscigenada, poderá em um futuro distante atingir o patamar
civilizatório da Europa. José Veríssimo acreditava no Machado como o nosso ápice literário,
mas ao analisar os seus contemporâneos, não crê que surjam epígonos de Machado.
Ambos, Romero e Veríssimo, permaneceram presos ao diagnóstico formulado,
que os englobou e fixou no passado, uma fotografia muda de uma época carente de
revitalização. Estabelecendo um cotejo entre os dois críticos (Sílvio Romero e José
Veríssimo) e suas principais obras, percebemos que se situam em um percurso metodológico
distinto.
Ao contrário de Romero, que publicou a sua História da literatura brasileira em
1888, no início de sua carreira intelectual, após sua fase no Recife, foi escrita com paixão,
mais sociológica do que estética. Romero compôs o seu livro como meio de expor os seus
conhecimentos filosóficos e etnológicos, para defender o projeto crítico de Tobias Barreto e
da Escola do Recife. É um livro importante, mas trabalho de juventude.
João Alexandre Barbosa nos adverte, sobre Veríssimo que “o fato de sua História
ter sido muito mais obra de um crítico literário que adotava um ponto de vista histórico do
que obra específica de historiador literário, preocupado antes em julgar valores do que em
pesquisar origens ou consagrar opiniões” (1996. p. 75).
Em 1916, José Veríssimo, ao morrer, deixa a sua História da literatura brasileira
para a posteridade, como resultado de uma longa experiência de crítica literária, de educação
e de um longo burilamento, em meio aos impasses teóricos, culturais, históricos. É uma obra
de maturidade, fruto de uma vida integral de crítico literário.
194

3 ROUND - A POLÊMICA COMO ESPORTE DE COMBATE

Após estudar os projetos que fundamentaram a crítica literária brasileira,


passaremos, então, para a investigação específica do gênero polêmica no cenário literário e
cultural do Brasil. Rodolfo Teófilo, objeto de nossa pesquisa, não foi o primeiro a se utilizar
da polêmica como modo de atuação intelectual, nem no Ceará, nem no Brasil.
O pesquisador Afrânio Coutinho, no texto introdutório da obra Polêmica Alencar-
Nabuco, nos informa que
O Século XIX notabilizou-se, na vida literária brasileira, por numerosas polêmicas.
A da Minerva Brasiliense com Santiago Nunes Ribeiro, Joaquim Norberto, Gama e
Castro, Abreu e Lima, Januário da Cunha Barbosa; a em torno de A Confederação
dos Tamoios com José de Alencar, Porto-Alegre, D. Pedro II, Alexandre Herculano;
a das Questões do Dia, com Franklin Távora, José Feliciano de Castilho, José de
Alencar; a entre Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco; a entre José de Alencar e
Joaquim Nabuco; a entre Júlio Ribeiro e o Padre Sena Freitas; e outras, culminando
com a em torno da redação do Código Civil, entre Rui Barbosa e Carneiro Ribeiro,
mais limitada a questões de vernaculidade (1978, p. 5).

Coutinho utiliza a expressão ‘vida literária brasileira’, mas quase todos confrontos
desses letrados ocorreram no Rio de Janeiro (capital do Império, depois da República), que se
constituiu como uma ruidosa arena intelectual, onde escritores utilizavam a pena como arma.
As controvérsias datam desde o início do século XIX e não versavam apenas sobre literatura e
arte, mas, sobretudo, sobre política, direito e até gramática. São figuras consideradas
importantes na vida nacional, que se notabilizaram pela atuação pública por meio das letras,
valendo-se dela para expressar e dar visibilidade às suas ideias.
Rodolfo Teófilo, ao nascer, em 1853, há quase duas décadas, a primeira geração
de intelectuais e artistas românticos tentavam defender a implementação de uma tradição
romântica nacional, mesmo que os matizes fossem importados. Três anos depois, ocorre a
polêmica entre José de Alencar e Gonçalves de Magalhães.
Como vimos no capítulo 1, Teófilo teve sua formação no advento das ideias
modernas que aportavam no Brasil. Darwinismo, racionalismo, evolucionismo, cientificismo
contribuíram para que ele adotasse uma cosmovisão crítica e que, por meio das letras,
firmasse a sua atividade pública. Estudar as polêmicas de Rodolfo Teófilo é adentrar numa
complexa tradição de polemistas, como os exemplos arrolados na citação anterior.
Ao visualizarmos a polêmica, pressupomos de que haja um sujeito que domine as
letras, que se utilize de um suporte material (panfleto, jornais, livros), uma audiência para
exibir a sua destreza belicosa, um adversário, quer seja um homem (escritor, crítico), quer seja
um livro ou sistema de ideias. A polêmica necessita dos componentes do sistema literário,
195

cujo alvo, motivo da controvérsia, é acrescentado. Ou seja, é um fenômeno dialógico e de


intercompreensão (MAINGUENEAU, 2005).
Nessa parte da pesquisa, estudaremos algumas ideias e conceitos de polêmica,
relacionadas às ideias de consagração/glorificação.
Além de disputas pessoais, as polêmicas revelam conflitos de gerações, tais como
a Questão Coimbrã, a polêmica entre Alencar e Nabuco. Como os bacharéis combatentes,
exerciam funções multifacetadas na sociedade, nós restringimos apenas às polêmicas
literárias. José de Alencar atuou em inúmeras polêmicas políticas. Sílvio Romero escreveu
vários textos de polêmicas jurídicas, políticas e filosóficas.
Com o desenvolvimento da imprensa brasileira no Rio de janeiro, quanto em
outras capitais brasileiras, surgem e se multiplicam diversos jornais, revistas e pasquins,
tornando-se espaço primordial na atuação dos intelectuais. Sílvio Romero, em depoimento a
João do Rio, nos revela que “o jornalismo tem sido o animador, o protetor, e, ainda mais, o
criador da literatura brasileira [...]. É no jornal que tem todos estreado os seus talentos; nele é
que tem todos polido a linguagem, apreendido a arte da palavra escrita” (apud Rio, 1905).
Portanto, a nossa ênfase recai nas polêmicas estampadas nas páginas de jornais,
mesmo que depois tenham sido compiladas em livros, algo comum entre os escritores. Nos
jornais eram frequentes e se constituíam como textos de circunstâncias, sem regras fixas, com
o único intuito de demolir o adversário. Mas antes de falarmos das polêmicas, precisamos
debater a relação entre a literatura e os conflitos humanos, a sua condição agonística.

3.1 A literatura e os conflitos humanos

Sempre ligada aos grandes momentos da história, a arte não se basta em apenas
ser um testemunho particular, mas tem a missão de dialogar e desafiar os seres humanos ética
e esteticamente. Assim, o fenômeno da guerra há tempos inspira pintores, escultores,
filósofos, escritores a denunciar suas injustiças ou a glorificar o patriotismo e o auto
sacrifício. Através da obra de arte, o artista representa a guerra e suas consequências
devastadoras sobre as pessoas, as cidades, a natureza. As imagens frequentemente são as de
uma máquina destrutiva, de um massacre sangrento que destrói a humanidade e que a engolfa
na miséria. Assim, o artista se torna um intermediário que traduz a imagem real, efêmera e
inexprimível em uma imagem imortal que expressa numa representação coletiva ou num
sentimento individual.
196

Antoine Compagnon (2017) nos relata que a relação entre a literatura ou a vida
literária como uma guerra, na tradição ocidental, vem desde a Ilíada, de Homero. A Ilíada é
essencialmente uma história da guerra, com o propósito de cantá-la, glorificá-la. A
experiência da guerra foi a mais alta, a mais nobre para muitas sociedades. Nós não nos
reconhecemos mais nesses valores, mas nós viemos de lá, não de sociedades pacifistas. Nós
viemos de sociedades que glorificaram a guerra, como a grega e a romana.
Não estamos fazendo apologia às guerras e conflitos, mas devemos ter em mente
que fazem parte do ser humano, da nossa história e a literatura, posteriormente, foi um meio
de expressá-la e de lhe usar como comparação do próprio fazer literário. São muitos
questionamentos que nos levam a tentar entender porque muitos poetas e críticos se utilizam
de metáforas de guerra para falar de arte: são literatura e arte (poesia, pintura, cinema, música,
dança), meios eficazes para denunciar a injustiça da guerra ou para defender a ideia de uma
guerra justa, ou para demonstrar e afirmar o contrário, estigmatizando-a? Os artistas pintam a
guerra inspirada na realidade ou dão rédea solta à sua imaginação para expressar sofrimento,
humilhação, miséria, até glorificação? A obra de arte pode ser um testemunho ou um
inspirador das guerras? Como um trabalho comprometido, em sua relação com a guerra,
representa um sistema de valores e uma visão do mundo?
Ora, para entender as polêmicas literárias, é preciso observar que os conflitos
fazem parte da história humana.
Antoine Compagnon, professor titular de Literatura Francesa Moderna e
Contemporânea: História, Crítica, Teoria104, ministrou um curso em 2017 no Collège de
France, muito importante para o nosso estudo, intitulado “Literatura – esporte de combate”105.
O título do curso é uma alusão às teorias dos campos de Pierre Bourdieu e,
sobretudo, da concepção do pensador de ‘sociologia como esporte de combate’, enfatizando o
seu caráter militante, e também título de um documentário sobre o sociólogo106.
Ao interpretar a literatura como esporte de combate, Compagnon enfatiza a vida
literária como competitiva e agonística. É evidente que há cooperação e solidariedade entre
escritores que fazem parte de escolas, movimentos, grupos e gerações. Porém, ressalta que a
literatura sempre esteve associada a jogos, competições em busca de louros de vitória.

104
“Littérature française moderne et contemporaine: histoire, critique, théorie”, o texto teórico e programa da
disciplina disponível em https://www.college-de-france.fr/site/antoine-compagnon/index.htm
105
Todas as aulas do Curso de Compagnom estão disponíveis em áudio e vídeo no site do Collège de France,
constituindo-se como uma rica experiência de estudo literário. Segue o link
http://www.college-de-france.fr/site/antoine-compagnon/course-2013-2014.htm
106
La sociologie est un sport de combat (2002), documentário dirigido por Pierre Carles.
197

Para trabalhar com essa concepção, cita Pierre Bourdieu, em As regras da Arte
(1996), ao evocar a ideia de campo literário como campo de lutas, pelo esforço dos escritores
em ‘marcar época’, engajados na competição literária. O professor francês também remete a
Harold Bloom, com o destaque que dá ao agon como aspecto central nos relacionamentos
literários.
Sobre essa questão, o próprio Bloom declara que a sua ideia de literatura como
agon107, uma das bases do conceito de ‘angústia da influência’, foi combatida durante muito
tempo no meio acadêmico
Porém, agora, na primeira década do século XXI, o pêndulo oscilou para o outro
extremo. Na esteira dos teóricos da cultura franceses, como o historiador Michel
Foucault e o sociólogo Pierre Bourdieu, o mundo das letras é frequentemente
representado como uma esfera hobbesiana de pura estratégia e conflito. Bourdieu
reduz a realização literária de Flaubert à sua capacidade quase marcial de grande
romancista que avaliava os pontos fracos e fortes de seus concorrentes literários e
tomava-os como base de seus posicionamentos. (2013, p. 21).

Mesmo num estilo sarcástico e astuto, Bloom coloca algumas questões


interessantes sobre a literatura como espaço de concorrência e menciona a Michel Foucault,
que trabalhou em suas várias obras, tais como Vigiar e punir e a Microfísica do poder, os
conflitos de poder em vários âmbitos sociais, no nível macro e micro.
Outro ponto importante que coloca é
O relato de Bourdieu sobre relacionamentos literários, atualmente em voga, com sua
ênfase no conflito e na competição, possui uma afinidade com minha teoria da
influência e sua ênfase no agon. Mas há também diferenças fundamentais. Eu não
acredito que os relacionamentos literários possam ser reduzidos a uma busca nua e
crua por poder mundano, embora possam, em alguns casos, incluir tais ambições. O
que está em jogo nessas lutas, para os poetas fortes, é sempre literário. Ameaçados
pela perspectiva da morte imaginária, de sua inteira possessão por um percussor,
sofrem de um tipo distintamente literário de crise. Um poeta forte busca não apenas
vencer o rival, mas afirmar a integridade de seu próprio eu escritor (idem, ibidem, p.
21-22)

O próprio Bloom menciona a afinidade de sua teoria da influência com a de


campo literário de Bourdieu. Assim, como Antônio Candido, observamos que o objeto do
estudo literário é o que o texto exprime. Bloom declara que o objeto das lutas sempre é
literário, na busca do triunfo do escritor. Contudo, sabemos que muitos fatores externos do
texto, interferem no fazer literário dos escritores, mesmo porque, após escrito, o livro deverá
entrar no circuito do sistema literário, nas cadeias de produção, edição e divulgação. Nesses

107
Segundo Bloom “a poesia ocidental, talvez diferindo da oriental, é incuravelmente agonística. O conflito de
Homero foi com a poesia do passado, mas, depois de Homero, todos lutaram contra ele: Hesíodo, Platão,
Píndaro, os autores de tragédia atenienses e os retardatários latinos. A poesia hebraica da Bíblia é mais
sutilmente agonística, mas a disputa entre autoridade e inspiração continua predominando. Dante
triunfantemente incorporou Virgílio e a Idade Média latina, dando ao Ocidente o único rival possível a
Shakespeare”. (2013, p.21)
198

âmbitos, os fatores econômicos e políticos interferem, além de ser um objeto estético, o livro
é um objeto material e produto de consumo. Mesmo os mais idealistas dos poetas,
ambicionam que sua obra esteja em todas as prateleiras das livrarias, o seu nome nos jornais e
ser lido pelo máximo número de leitores. A literatura não é uma luta etérea entre escritores
guerreiros no monte Parnaso, como idealiza Bloom.
Voltando a Compagnon que nos fala, a partir da contribuição de Bourdieu, que
essa concepção de literatura como esporte de combate floresce no início do século XIX, na
França, em que a era industrial aperfeiçoa a imprensa, multiplicando os jornais e revistas
literárias. Como um produto, os editores investem cada vez mais nos jornais para que vendam,
atinjam o maior número de pessoas. Os jornalistas e escritores lutam para ser lidos. O modelo
de esportista bélico desse período é Honoré de Balzac. Compagnon o define como como
escritor-esgrimista e o seu florete é ‘pena de aço’ e cita o romance As Ilusões perdidas como a
maior representação da guerra literária na imprensa francesa, no século XIX. Outros grandes
escritores-jornalistas-esgrimistas foram Charles Baudelaire e Marcel Proust.

3.2 Homens em conflito

Desde os primeiros agrupamentos, os homens lutam por sua sobrevivência, pela


defesa de sua família ou clã, por expansão de territórios, por motivações religiosas, por
ganhos pessoais, por lazer etc. Os conflitos ocorrem numa situação de luta armada entre duas
ou mais pessoas, entre organizações ou poderes, que estão em desacordo, luta pelo poder ou
pelo cessar do próprio combate. Há a explicitação de intenções hostis, vontade de agredir e
tentativas de quebrar a resistência uns dos outros, possivelmente através do uso da violência.
Além do sentido de confronto armado propriamente dito, o conflito também é
qualquer oposição que ocorra entre as partes em disputa, uma que deseje impor suas posições,
contra as expectativas ou interesses da outra parte. Muitas vezes, acredita-se que o conflito
entre as pessoas numa sociedade seja algo ruim. No entanto, pensadores como o alemão
Georg Simmel (1858-1918), desenvolvem uma visão positiva do conflito como forma de
relacionamento entre indivíduos.
Para Simmel, a sociedade é fruto das interações entre os indivíduos que criam
entre si relações de reciprocidade e interdependência. Essas interações não traduzem
obrigatoriamente convergência de interesses. Uma das interações mais vivas entre os homens
199

é o conflito forma de sociabilidade necessária para a estabilidade e sobrevivência de uma


sociedade.
Ele ressalta a importância do conflito, pois:
resolve a tensão entre contrastes. O fato de almejar a paz é só uma das expressões – e
especialmente óbvia – de sua natureza: a síntese de elementos que trabalham juntos,
tanto um contra o outro, quanto um para o outro. Essa natureza aparece de modo mais
claro quando se compreende que ambas as formas de relação – a antitética e a
convergente – são fundamentalmente diferentes da mera indiferença entre dois ou
mais indivíduos ou grupos (1983, p. 123).

A convergência e a divergência de interesses são importantes para o


funcionamento da sociedade, sendo que os aspectos positivos e negativos do conflito estão
dialeticamente integrados. O pensador Nobert Elias vê o conflito como aspecto positivo, ao
interpretar como “tensões estruturadas” e que seus resultados constituem o “centro de um
processo de evolução” de uma dada sociedade (2005, p.189).
A natureza e a causa das discórdias, conflitos, guerras, tanto num nível micro,
entre pessoas, quanto no macro, entre Estados108, são temas presentes na filosofia política
desde a antiguidade, como A República, de Platão.
Nos tempos modernos, temos diversos pensadores trataram desse assunto:
Maquiavel considerava a guerra como meio do príncipe conquistar o poder e necessária para
estabelecer ordem (O príncipe e A arte da Guerra), para Thomas Hobbes109 a guerra é o
estado natural do homem, Hegel110 a considerava como uma força primordial e fator de
coesão entre as parte e o Todo (o Estado) e Kant, por outro lado, a condena, pois defendia
que humanidade devia continuamente promover a paz e assegurar que seja perpétua (1795).
Guerra em grego é ‘polemos’, que gerou o ‘polemikós’ (πολεμικός) que significa
‘agressivo’, ‘beligerante’. O termo grego gerou a palavra portuguesa ‘polêmica’ e também
serviu para nomear uma disciplina ou ramo da sociologia. O pensador francês Gaston Bouthol

108
Segundo Magnoli, “A história das guerras é uma história de alteridades. Cada guerra é um fenômeno único,
singular, irredutível. Os gregos guerreavam em nome da virtude, os “bárbaros” germânicos e os cavaleiros das
estepes asiáticas, em nome do saque. Os cruzados lutaram na Terra Santa por Deus e pela Igreja. Os franceses e
protestantes alemães combateram o império Habsburgo, portando o estandarte da soberania secular. Napoleão
Bonaparte marchou sob a bandeira do império. A glória nacional animou o exército prussiano de Bismarck; o
“Reich de mil anos”, a Wehrmacht de Hitler. Os vietnamitas enfrentaram a França e os Estados Unidos para
conseguir a independência e a soberania. Árabes e israelenses bateram-se por fragmentos de território.” In
Magnoli, Demétrio (org.). História das guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 13-14.
109
Thomas Hobbes, no capítulo XIII da obra Leviatã (1651), tece a fórmula “a guerra de todos contra todos”
(bellum omnia omnes) como o estado natural (pré-social) do homem é a tensão constante com a sobrevivência
diante da ameaça da morte.
110
Hegel trata desse assunto no capítulo intitulado "Dominação e Escravidão", da obra A Fenomenologia do
Espírito, 1807, ao tecer uma longa consideração entre luta que proporciona uma dialética entre o senhor e o
escravo.
200

(1896-1980) foi o fundador da Polemologia111 com o objetivo de realizar o estudo científico


da guerra e das formas de agressão nas sociedades, entendidas como fenômenos socais
suscetíveis de observação como qualquer outro. As guerras são oriundas das ações humanas e
compreender sua origem é o fundamento para encontrar meios imprescindíveis para a paz.

Após discutir a guerra e do conflito como fenômenos sociais, falaremos da


discórdia e sua representação mitológica.

3.3 Éris a deusa da discórdia

"A discórdia é o último dos deuses para fechar um


argumento." (Antígona a um Arauto. Ésquilo, Sete
Contra Tebas, 1057)112.

“Que furor, que discórdia vos despenha?” (Virgílio,


Eneida, v 300)

Éris era a deusa ou espírito personificado da discórdia, que suscitava o conflito e a


rivalidade. Também foi relacionada como irmã de Ares (deus da Guerra, filho de Zeus) e era
frequentemente retratada, mais especificamente, como a da guerra, assombrando os campos
de batalhas, apreciando os gemidos dos homens que estão morrendo e se deleitando com o
sangue derramado.
Na Teogonia, o poeta Hesíodo canta que a terrível deusa nasceu das forças
primordiais, sendo filha da Noite (Nyx) e do Érebo (escuridão profunda). Ela é mãe de
diversos males que afligem e prejudicam os homens.
Éris hedionda pariu Fadiga cheia de dor,
Olvido, Fome e Dores cheias de lágrimas
Batalhas, Combates, Massacres e Homicídios,
Litígios, Mentiras, Falas e Disputas,.
Hesíodo (vv. 226-232)113

Após a conquista dos territórios gregos pelo Império Romano (146 a. C), Éris foi
relacionada, tanto com a deusa da guerra Ênio (Enyó), que fazia parte do sangrento cortejo de
Marte, quanto com a deusa da guerra Belona, de acordo com Junito de Souza Brandão (1986,

111
As obras que Gaston Bouthoul explora o conceito de polemologia em Cent millions de morts, 1946 e Traité
de polémologie: sociologie des guerres, 1951.
112
"Discord is the last of the gods to close an argument." (Antigone to a Herald. Aeschylus, Seven Against
Thebes, 1057).
113
HESIODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo Editora Iluminuras Ltda. 2007, p. 130.
201

p. 238). No entanto, no seguinte verso da Eneida, há duas entidades distintas “Marcha a


Discórdia, espedaçado o manto;/Com sanguento flagelo atrás Belona”114 (Virgílio, Eneida, 7,
698).
Por causa do caráter desagradável de Éris, foi a única deusa a não ser convidada
para o casamento de Peleu e Tétis. Quando ela apareceu de repente, no monte Pélion, e foi
recusada a entrar, enfureceu-se e jogou uma maçã dourada entre as deusas inscritas “a mais
bela" entre as deusas presentes: Hera, Afrodite e Atena. Dessa disputa nasceu uma rivalidade
entre as deusas que provocou os eventos que levaram à Guerra de Tróia.
Em outro poema, Trabalhos e os dias, Hesíodo nos dá outra interpretação de Éris
Não há origem única de Lutas, mas sobre a terra
duas são! Uma louvaria quem a compreendesse,
condenável a outra é; em ânimo diferem ambas,
Pois uma é guerra má e o combate amplia,
funesta! Nenhum mortal a preza, mas por necessidade,
pelo desígnio dos imortais, honram a grave Luta.
A outra nasceu primeira da Noite Tenebrosa
e a pôs o Crônida altirregente no éter,
nas raízes da terra e para os homens ela é melhor.
Esta desperta até o indolente para o trabalho:
pois um sente desejo de trabalho tendo visto
o outro rico apressado em plantar, semear e a
casa beneficiar; o vizinho inveja ao vizinho apressado
atrás de riqueza; boa Luta para os homens esta é;
o oleiro ao oleiro cobiça, o carpinteiro ao carpinteiro,
o mendigo ao mendigo inveja e o aedo ao aedo.
Hesíodo (vv. 11-29)115

Enquanto na Teogonia, Éris é essencialmente maléfica e danosa para o ser


humano, em Trabalhos e os dias, Éris (‘luta’) apresenta dois lados, postos entre si: um sendo
cruel, que promove o mal e a guerra (filha da noite); enquanto o outro, agita até mesmo os
indolentes a labutar, apresentando um aspecto positivo. A ‘má luta’ é abominável pois
promove separação e destruição, enquanto a outra é louvável, porque estimula o homem ao
trabalho. É uma luta “salutar, que desperta o espírito de emulação e que Zeus colocou no
mundo como inspiradora da competição entre os homens” (BRANDÃO, p. 233).
Os conflitos existentes sobre a Terra (Gaia) suscitam a dinamização da vida,
porque o poeta, em seguida, cita várias atividades humanas que são estimuladas por meio da
emulação, entendida como um sentimento de superação que leva o homem a superar o seu

114
ENEIDA, edição de 1854, Trad. Manuel Odorico Mendes (1799-1864).
Outra versão: "Discórdia caminha exultando em seu manto rasgado, seguido por Bellona empunhando um
flagelo manchado de sangue." (Virgil, Aeneid 7.702).
115
HESIODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda.
1996. P. 23
202

próximo, no âmbito do trabalho. Nos versos, observamos que o oleiro inveja o oleiro, o
carpinteiro o outro carpinteiro, inclusive, o aedo o aedo. O aprimoramento dos homens ocorre
por meio da concorrência, da competição sadia. É muito diferente da ideia de Éris/Luta na
Teogonia, na qual as discórdias levam a combates, guerras e massacres. A Éris como ‘boa
luta’, “em lugar de destruir, constrói, em vez de semear ruínas, é portadora de fecunda
abundância” (Brandão, p. 182).
Ruth Amossy alega que
a discórdia tem, sem dúvida, efeitos negativos nas relações interpessoais, mas ela é
funcional nos grupos sociais em que as forças convergentes e divergentes estão
sempre em interação, criando uma dinâmica que é fonte de vida. Segundo Simmel,
é, portanto, a tensão do positivo e negativo que constitui o grupo como tal: a
combinação de positivo e negativo é necessária, porque um grupo totalmente
harmonioso seria privado de estrutura e vitalidade (2017, p. 20).

Por isso, a partir da citação, entendemos que não se pode resolver todas as
discórdias da vida em sociedade por meio da força física, da guerra materializada. A palavra
foi e é utilizada para intermediar os conflitos. José Luiz Fiorim no diz que o aparecimento da
argumentação está ligado à vida em sociedade (2015, p. 9), juntamente com o surgimento das
primeiras democracias.
Num contexto político, os homens são impelidos a se utilizarem da linguagem
para resolver os seus problemas pessoais e deliberar sobre as questões mais urgentes de sua
comunidade. Fiorin nos ensina, por meio de Bakhtin que “todo discurso tem uma dimensão
argumentativa” (idem, p.9), porque o seu funcionamento é dialógico, pressupõe a presença e
oposição do outro, além do enunciador sempre tentar que suas posições e opiniões sejam
acolhidas. Nessa perspectiva, observamos que a linguagem não é apenas um meio de
comunicação, é a capacidade de expressar um pensamento e de refutar outro.
Entrando na esfera dos conflitos discursivos, desde a antiguidade, os pensadores
refletiram sobre os melhores mecanismos de argumentação, desenvolvendo aquilo que
conhecemos hoje por Retórica.
As origens da retórica remontam à Grécia antiga, no século V a.C. na Sicília
quando um aluno do filósofo Empédocles, chamado Corax, desenvolveu alguns princípios,
acompanhados de exemplos concretos de como falar em público, com fins jurídicos. Os dois
princípios básicos são recorrentes até hoje: a retórica visa defender interesses e para isso, ela
se esforça para persuadir uma audiência.
Enquanto os escritos de Corax privilegiaram a fala oral, posteriormente,
Aristóteles escreveu a sua Arte retórica, estendendo as técnicas à escrita. Um discurso
203

persuasivo deve ser refletido, analisado, planejado. Para Aristóteles, a capacidade de se


expressar é inata para o homem, mas é necessário trabalho. Na Arte Retórica, são examinados
os efeitos psicológicos produzidos pelo discurso sobre destinatários, atitudes do enunciador
em relação ao público, efeitos de estilo, estruturas de raciocínio que podem dar a linguagem
maior poder de persuasão. Aristóteles também insiste no caráter transdisciplinar da retórica.
Isso constitui uma aplicação a todas as áreas em que é necessário utilizar-se da persuasão.
Resumidamente, Aristóteles argumenta que há três elementos para a arte da
persuasão que servem de apelo ao público do discurso: logos - discurso/pensamento, o uso de
argumentos lógicos; ethos - caráter discursivo, a credibilidade a ser transmitida ao público e o
pathos – o uso das emoções como meio persuasivo, a disposição.
Além da retórica aristotélica, também houve outras técnicas discursivas que se
utilizavam de processos pseudo-argumentativos para ganhar uma discussão, como a
Erística116, revelando que desde muito tempo a palavra era uma arma para usar nos conflitos
sociais.
Voltando às metáforas bélicas na literatura, temos um exemplo com o crítico
Sílvio Romero, na recepção de Euclides da Cunha, ao ser eleito na Academia Brasileira de
Letras, fala dos propósitos literários dos poetas brasileiros naquele período:
Os títulos do poeta dos Dias e Noites, na luta, pela glória, diante de seu venturoso
rival, cuja figura aliás fui sempre dos mais solícitos em destacar e cuja significação
histórica em nossas letras fui talvez o mais esforçado em descrever, são daqueles
que por si sós se defendem e se impõem ao apreço das pessoas para quem os valores
e títulos espirituais não são negócio de camarilha e coterie. [...] E nos arroubos do
entusiasmo das glórias que lhe acenam, soergue-se o Brasil, pisando em nuvens,
fitando olhos inda mais altos, lançando a voz aos ecos das alturas, aos combates, às
lutas gloriosas que o futuro longínquo lhe promete. Leva consigo seu passado ilustre
de robustas ações, feitos brilhantes, como os deuses de Homero mergulhavam nas
batalhas com seus mantos de púrpura no braço (18 de dezembro de 1906. p. 273-
274).

Por meio de um texto adornado e repleto de metáforas, Romero descreve as


tensões vividas por Euclides para entrar no panteão literário nacional. Na construção de
imagens que remetem ao contexto greco-romano, evocando Homero, autor de um longo
poema sobre a guerra. Visto que a atividade literária é entendida como uma batalha e os

116
A Erística é uma técnica de disputa argumentativa, usada para ganhar uma discussão e não, necessariamente,
para descobrir a verdade de um problema. Essa técnica foi criada pelos sofistas gregos e, no século XIX, que a
desenvolveu com vigor foi Arthur Schopenhauer. O filósofo diz na introdução de sua “Dialética Erística” (no
Brasil, publicada com o título Como vencer um debate sem precisar ter razão – em 38 estratagemas), que ela é
uma arte de lutar com as palavras com o objetivo de derrotar o oponente na discussão. A Erística é diferente da
retórica, porque não tenta convencer com a atratividade de um bom argumento, em vez disso, nos obriga a
aceitar uma opinião, independentemente de que seja verdade ou não. Há uma manipulação do discurso e
transgressões das regras da lógica. Para aqueles que praticam Erística, não importa se o argumento é falacioso,
uma vez que o seu principal objetivo é ter certeza de que o adversário não seria capaz de refutá-lo.
204

poetas comparados a guerreiros, logo visam também eternizar o seu nome. E Euclides da
Cunha estava, por meio de um rito, uma tradição inventada, tornando-se ‘imortal’, membro de
uma elite literária. Por três vezes, Romero usa a ideia de luta vinculada à glória.
Um dos objetivos da guerra literária seria a glorificação do poeta? Mas devemos
especificar que tipo de glória relacionaremos à literatura nessa pesquisa, pois direta e
indiretamente será o pivô de inúmeras polêmicas.

3.4 Conceitos de glória e glorificação

Quem não troca de bom grado a saúde, o repouso e a


vida pela reputação e pela glória? A mais inútil, vã e
falsa moeda que há em circulação entre nós?
(MONTAIGNE. Ensaios. 1996. p. 140)

O termo glória (latim, gloria, -ae) apresenta no dicionário Michaelis as seguintes


acepções:
1. Celebridade adquirida por grande mérito, por obra ou ação heroica ou
extraordinária; fama [...] 2. Pessoa ou obra muito famosa e ilustre; celebridade [...] 3.
Sentimento de honra, de orgulho por feito heroico ou extraordinário [...] 4. Grande
esplendor e fausto; grandeza, magnificência [...] 6. Grande mérito; superioridade,
valor [...] 8. bem-aventurança [...] 9. Representação do céu e da corte celeste; visão
beatífica de que desfrutam os santos no céu. 10. Círculo de luz em torno da cabeça de
um santo simbolizando a santidade; auréola”.117

Em relação à primeira acepção, outro dicionário, o Priberam, notifica assim: “1.


Honra, fama, celebridade, adquirida por obras, feitos, virtudes, talentos, etc. (ex.: glória
artística, glória literária)”118.
Observamos que os significados giram em torno das ideias de fama, reputação,
homenagem, esplendor. Na história da arte europeia, em diversos quadros, segundo os
significados nove e dez, indica as formas aureoladas, ora amareladas ou brancas (ou apenas
como um círculo), em torno das cabeças dos santos. Tem um sentido simbólico e teológico,
pois o brilho proveniente da ‘glória’, emana ou circunda um ser radiante, portador do
esplendor119.

117
Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/gl%C3%B3ria/
118
Glória, In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, Disponível em:
https://dicionario.priberam.org/gl%C3%B3ria [consultado em 22-11-2018].
119
Como podemos observar no evangelho de Lucas 2:9, após o nascimento do menino Jesus, um anjo
mensageiro aparece para José e Maria e “a glória do Senhor os cercou de resplendor, e tiveram grande temor”.
205

Os artistas, para se valerem dessa representação, recorreram ao fenômeno óptico


conhecido pelo menos termo (glória) que é a formação de um halo ou arco luminoso ao redor
da sombra de um objeto em uma nuvem. Atualmente, percebemos esse fenômeno em torno da
silhueta de um avião em uma nuvem. É conhecido também pela expressão Espectro de
Broken, por conta de sua frequente observação no alto do monte Brocken, nas montanhas
Harz, na Alemanha.
No sentido religioso (judaico-cristão), glória é, tanto um estado de plenitude e
gratidão que a pessoa tem quando se está próxima de Deus, quanto o próprio caráter de Deus
(ver Salmo 63:2). Como criador, num sentido monoteísta, é o único digno de ser ‘temido’, ou
seja, de receber louvor, honra e respeito120.
A glória de Deus é a revelação121 do seu próprio Ser (o autêntico EU SOU) e de
sua presença para a humanidade, muitas vezes por meio de fenômenos físicos, como trovões e
relâmpagos. Um dos maiores exemplos é a manifestação do poder divino a Moisés, através da
sarça ardente (Êxodo 3:2). Depois, já guiando o povo israelita no deserto, o profeta tem uma
experiência ainda mais arrebatadora, no monte Sinai, (Êx. 33, 12-23), ao rogar a Deus para
que lhe mostrasse a sua glória. A montanha fumegava e tremia devido aos fortes relâmpagos e
trovões, Moisés precisou cobrir-se com um véu, devido ao brilho intenso da face de Deus, que
ele não pode ver, mesmo querendo conhece-lo completamente, no entanto sentiu a sua
presença (glória) enquanto estava de costas.
Na língua hebraica, a palavra shekinah é utilizada para descrever a presença de
Deus manifestada em algum espaço, principalmente, referido ao templo, porém, na bíblia, o
termo correspondente é kabod. Enquanto Velho Testamento, a palavra glória estava
relacionada a Deus (Iahweh), na redação do Novo Testamento é usada para Cristo. Em muitas
passagens, o termo grego empregado é doxa (Septuaginta) com o sentido de descrever a
revelação do caráter de Deus na Pessoa e na obra de Jesus Cristo, embora também seja usado
na famosa passagem da tentação no deserto122, referindo-se ao poder e honra dos homens. Ao
passo que a glória humana é passageira, efêmera e falsa, a glória divina é eterna e espiritual e
a verdadeira fonte do poder do esplendor.

120
“A todos os que são chamados pelo meu nome, e os que criei para a minha glória: eu os formei, e também eu
os fiz”. Isaías 43:7
121
O pesquisador Mircea Eliade, em O sagrado e profano: a essência das religiões, denomina de hierofania a
irrupção do sagrado que possibilita a experiência/revelação de uma realidade de caráter absoluto.
122
“Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória
deles”. Mateus 4:8.
206

Encerramos aqui a nossa brevíssima exposição em relação ao conceito de glória


no cristianismo e suas traduções, pois esse é um assunto muito vasto para se tratar aqui, algo
que merecia uma pesquisa vasta e específica. O nosso propósito foi de analisar como a ideia
de glória, tanto nas acepções do dicionário, quanto na concepção teológica abordam-na com o
sentido de honra, fulgor e grandeza. É um poder e esplendor que só Deus possuí. O processo
de glorificação é o ato de elevar-se ao estado de glória alcançado pela operação sobrenatural
de Deus. Muitas são as passagens da Bíblica que descrevem esse processo, principalmente as
cartas do apostolo Paulo.
Descrevemos o sentido bíblico de glória, agora passaremos por um breve passeio
nas significações míticas do termo, na Grécia antiga.

3.5 Kleos e a busca pela glória

Relatamos, páginas atrás, que a discórdia e os conflitos estão presentes desde o


início da humanidade, e foram simbolizados de forma complexa e agônica pelos gregos.
No mundo antigo, a discórdia gerou incontáveis guerras. Nas narrativas míticas, a
vida dos deuses e os homens eram irremediavelmente entrelaçadas. Nas guerras, os heróis
lutavam com unhas e dentes por honra e por glória.
Muitos homens gregos queriam que as histórias de suas vidas fossem cheias de
glória e fama, especialmente por serem excelentes em batalha. Esta fama ou glória é chamada
de kleos (), algo que os gregos se esforçavam para alcançar. A ideia de kleos fazia parte
do culto ao herói e a poesia lírica e a épica eram os meios pelos quais histórias de bravura e
honra eram passadas através de gerações.
Em língua portuguesa, não há uma tradução exata acerca de kleos. Em inúmeras
edições de textos clássicos existentes em português, ora é traduzida como ‘fama’ ou como
‘glória’. No caso do termo “fama’ (phèmé em grego) em maiúsculo era uma divindade latina,
personificação do renome ou rumor. Mensageira de Zeus, era representada sob os traços de
uma mulher alada segurando uma trombeta ou um clarim.
No entanto, a partir da leitura de Vernant e Brandão, traduziremos kleos como
glória conferida pela poesia ao herói morto em batalha; aquele que é lembrado. Vernant
enfatiza a expressão: a kleos aphthiton (glória eterna).
A Ilíada, como grande poema épico, é um tipo de kleos. No início do longo
poema, o protagonista e os motivos nos são lançados:
207

Canta-me a Cólera — ó deusa! — funesta de Aquiles Pelida,


causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto das aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
o de Atreu filho, senhor de guerreiros, e Aquiles divino.
(I, v1-6. Trad. Carlos Alberto Nunes, 2009).

No primeiro verso, temos o motivo do poema, que não é um relato de toda a


Guerra de Troia, mas a cólera de Aquiles num momento específico. A palavra-chave se
encontra no sexto verso – ‘discórdia’. Ou seja, é a contenda de Aquiles contra Agamenon que
desencadeia a canção: a retirada do maior guerreiro e os infortúnios dos gregos perante os
troianos, além do conflito entre Hera e Zeus.
Ilíada é a canção de Aquiles, um poema épico focado na guerra, porque a guerra
era um dos lugares-chave para ganhar kleos. Muitos anos depois dessas batalhas, bardos ou
poetas (como Homero, o autor da Ilíada) contavam as histórias desses guerreiros gregos.
Como glória heroica, a ideia de kleos é objetivo, a mensagem (a vida do herói), enquanto o
conflito desencadeador era um meio.
No entanto, kleos não é apenas algo que é entregue à pessoa que tem que
persegui-lo, muitas vezes com grande sacrifício pessoal.
Aquiles tem uma escolha entre esse tipo de glória e uma vida longa, mas obscura
Tétis, a deusa dos pés argentinos, de quem fui nascido,
já me falou sobre o dúplice Fado que à Morte há de dar-me;
se continuar a lutar ao redor da cidade de Troia,
não voltarei mais à pátria, mas glória123 hei de ter sempiterna;
se para casa voltar, para o grato torrão de nascença,
da fama excelsa hei de ver-me privado, mas vida mui longa
conseguirei, sem que o temor da Morte mui cedo me alcance.
(Ilíada. IX.411-16 Trad. Carlos Alberto Nunes, p 225)

Aquiles fala a sua mãe as duas maneiras que pode encontrar o seu fim (telos).
Esse é um ponto crucial do épico homérico. É essa pergunta importantíssima para os heróis
clássicos. Eles morrem jovens e gloriosamente, e seus nomes vivem para sempre? Ou vivem
vidas longas e humildes, mas morrem como velhos anônimos?
A resposta de Aquiles tem a ver com o poder imortalizante da kleos. No verso, o
termo glória é acompanhado do adjetivo “sempiterno”, ou seja, eterno ou imperecível. Se
retornar a sua casa, a sua fama (kleos) perecerá. Essa preocupação, e dita pelo guerreiro

123
“Renome glorioso”, na Trad. de Frederico Lourenço.
208

troiano Heitor: “Não quero vil e sem glória morrer. Algo de grande quero aos vindouros
legar.” (HOMERO. Ilíada , XXII, vv. 304-306)
A morte que os guerreiros se empenham são em meio a grandes feitos que serão
ouvidos pelos que virão.
Tombar no campo de batalha, de modo honroso e bravo, é chamado por Jean-
Pierre Vernant de kalos thanatos, a bela morte124. O pensador nos diz que “la belle mort, c’est
aussi bien la mort glorieuse (eukleês thanatos)” Ou seja, a bela morte está relacionada ao
ideal de kleos que se atribui ao nome do guerreiro celebrado.
Aquiles sabia que, retornando à batalha, ele estava sacrificando sua própria vida.
Essa decisão de escolher a glória eterna (kleos aphthiton) ao longo da vida foi vista como o
maior sinal de heroísmo. A morte na batalha é o ponto mais alto da civilização homérica,
Ele atinge o objetivo principal do herói: ter sua identidade registrada
permanentemente por meio de kleos, em certo sentido, alcança a imortalidade.
A razão pela qual a imortalidade é atraente para a mente humana porque a morte
sempre foi um mistério para o ser humano. A partir do momento em que alguém para respirar
e seu coração não bate mais, as coisas mudam de maneira irreversível. Segue-se naturalmente
que os seres humanos gostariam de encontrar uma maneira de evitar esse fim, e as lendas da
imortalidade estão no folclore humano desde as eras.
Então agora chegamos a entender a ideia paradoxal de que, para viver para
sempre, um herói deve primeiro morrer gloriosamente. Para nós, uma forma comum de
expressar esse objetivo é dizer: “você entrará para a história”.
Já falamos de vários tipos de glorificação, Pierre Bourdieu, nas As Regras da Arte,
abordará esse afã dos escritores como ‘consagração’.

3.6 Conceito de consagração – Bourdieu

Pierre Bourdieu interpreta o poder da consagração como questão fundamental do


campo literário, interpretado como campo de luta (1996, p. 181). Consagração consiste em
uma representação pública, ostensiva e ritualizada do reconhecimento literário por um grupo
reconhecido ou reconhecível capaz de julgar o valor de uma obra ou um escritor. Obtida em
um momento específico, é percebida como uma legitimidade indiscutível, como um título. A

124
No famoso artigo - La belle mort et le cadavre outragé, “A bela morte e o cadáver ultrajado” (1978).
209

consagração nunca é completamente distinta da legitimidade (idem. p. 67), reconhecimento e


canonização, fenômenos que se sobrepõem de muitas maneiras.
A consagração e o poder de concedê-la são as principais apostas das lutas dentro
dos campos literários. Participando do processo de transmissão da legitimidade, a consagração
coroa obras ou escritores no campo literário. Bourdieu designa alguns órgãos responsáveis
pela concessão de índices de reconhecimento:
Poder-se-ia, acumulando métodos diferentes, tentar acompanhar o processo de
consagração na diversidade de suas formas e de suas manifestações (inauguração de
estatuas e de placas comemorativas, atribuição de nomes de rua, criação de sociedades
de comemoração, introdução nos programas escolares etc.), observar as oscilações da
cotação dos diferentes autores (através das curvas de livros ou de artigos escritos a seu
respeito), extrair a lógica das lutas de reabilitação etc (idem, p. 253).

Os órgãos de consagração asseguram a legitimidade e o respeito, por exemplo as


academias literárias que, através da cerimônia de premiação e cooptação, coroam o processo
de distinção e reconhecimento do escritor que foi ‘imortalizado’. No entanto, são as próprias
academias que constroem e propiciam seus critérios e regras, como a autoridade dos ‘juízes de
valor’, o senso de competição entre os aspirantes a vaga. No caso das instituições de ensino
(escolas, editoras etc.), como canais legitimadores, promovem livros didáticos e antologias
oferecendo divisões significativas da história literária, dando a leitura de um conjunto de
escritores, excluindo outros, fixando e participando na reprodução de textos, não explicitam
os valores que presidem à implementação deste cânone. Ou seja, a canonização é uma das
formas assumidas pela consagração, é o ato de proclamar obras ou autores como modelos.
Outra forma difundida e vívida de consagração são prêmios literários, muitas vezes criados
pelas próprias academias, posteriormente, pela imprensa, editoras, órgãos de governos, por
meio de editais.
Voltando à obra As regras da Arte, ao descrever o conceito de campo literário,
percebemos que está intimamente ligado à ideia de consagração.
Não é suficiente dizer que a história do campo e a história da luta pelo monopólio da
imposição das categorias de percepção e de apreciação legitimas; e a própria luta
que faz a história do campo; e pela luta que ele se temporaliza. O envelhecimento
dos autores, das obras ou das escolas e coisa muito diferente do produto de um
deslizamento mecânico para o passado: engendra-se no combate entre aqueles que
marcaram época e que lutam para perdurar e aqueles que não podem marcar época
por sua vez sem expulsar para o passado aqueles que tem interesse em deter o
tempo, em eternizar o estado presente; entre os dominantes que pactuam com a
continuidade, a identidade, a reprodução, e os dominados, os recém-chegados, que
tem interesse na descontinuidade, na ruptura, na diferença, na revolução (idem p.
181).
210

O campo é um espaço de lutas e a consagração literária é um de seus objetivos,


exemplificada pela expressão “marcar época”. Ora, quando falamos em no ano de 1857 na
França, não é por acaso, pois a repercussão e o escândalo provocados pelas publicações de
flores do mal, de Baudelaire e Madame Bovary, ao longo do tempo, os transformaram em
marcos historiográficos importantes para o advento da modernidade literária. É uma luta
temporal, a luta pelo reconhecimento de sua obra pelos leitores, pela imprensa, pelos críticos,
enfim, escritores concorrem para não ‘envelhecer’, permanecerem esquecidos nas prateleiras
empoeiras dos depósitos.
Para muitos, uma maneira de se consagrar, atingir a glória pública consistiria em
tornar-se um medalhão. Machado de Assis nos fornece uma rica metáfora entre as relações
sociais e a busca do prestígio social. “Teoria do medalhão” é um conto que foi inicialmente
publicado no jornal Gazeta de notícias, 1881, e depois incorporado no livro Papeis avulsos.
O pesquisador Roberto Ventura interpreta as polêmicas como estratégias para os
escritores se tornarem medalhões literários, explicando que
A polêmica e ironizada por Machado de Assis como forma de debate, marcada pelo
predomínio da retórica e pela irrelevância dos assuntos tratados. Na “Teoria do
medalhão”, satirizou os aspirantes à fama que, para parecerem ilustres ou notáveis e
se elevarem acima da obscuridade geral, reduzem o intelecto à sobriedade e sufocam
as próprias idéias, cuja ausência é dissimulada através da retórica“). A sátira a
retórica e à polêmica faz parte da crítica ao personalismo do debate cultural e
político, a serviço não da ideia, mas da glória e renome do orador, que encobre a
vacuidade do pensamento pela dicção elevada e linguagem empolada) 125.

O conto narra o diálogo entre o pai e o filho (Janjão), após o término da festa de
aniversário deste, que atingiu a maioridade. O principal conselho é que o filho se torne um
medalhão
mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças
grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade
comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os
malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as
esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as
coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por
diante126.

Como o pai relata que seu sonho era ter sido medalhão, algo que não conseguiu,
portanto instrui o filho para ser um homem oco, sem personalidade para atingir carreira na
vida pública e agindo como peça da engrenagem social. Os conselhos são: ser bajulador; não

125
O caso de Machado de Assis. In: Revista USP, Nº 8, 1991. p159-168.
Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i8p159-168
126
Teoria do Medalhão. In: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Lombaerts & Cia, Rio de Janeiro, 1882.
211

ter ideias próprias, contudo parecer inteirado de assuntos medianos e banais; e, sobretudo, não
entrar em contendas.
O medalhão seria uma falsa imagem da glorificação, que se utiliza da publicidade
para atingir esse fim, contudo, na vida literária brasileira, em todos os estados, existem esses
medalhões literários.
Um exemplo interessante é apresentado por Gilberto Freyre, no seu depoimento
sobre os fardões das academias de letras, como falos meios de consagração.
É uma ideia feliz, a do eminente sr. Prof. Dr. Netto Campello, querendo que o
sodalício acatado e respeitável que é a Academia Pernambucana de letras,
constelação das nossas glórias já consagradas nas várias províncias literárias, adote
fardão e espadim, à maneira de sua congêneres, a gloriosa Academia Francesa e a
não menos gloriosa Academia Brasileira. Não se compreende uma Academia
destinada à solene glorificação literária sem essa nota de dignidade olímpica, de
tanta influência sobre a imaginação das massas, que é o fardão verde ou azul
debruado a vermelho e rendilhado no peito e nos punhos a outo vivo e brilhante –
todo esse esplendor coroado pelo chapéu armado com uma rica pluma a cair para
trás (sic)127.

Freyre usa o termo chave para nossa pesquisa: a ‘glorificação literária’ para o
processo de distinção entre os escritores. No próximo capítulo, enfatizamos de exemplos de
escritores e críticos utilizando a expressão ‘glória ou glorificação’ para expressar os seus
objetivos poéticos, motivações para rixas, disputas e polêmicas, como Adolfo Caminha,
Rodolfo Teófilo, Frota Pessoa, Antônio Sales tem ‘glória’ como palavra constante em seu
vocabulário crítico. Portanto, utilizaremos a expressão ‘glorificação literária’ como um
correspondente a categoria de consagração de Pierre Bourdieu. É interessante porque o termo
empregado por Bourdieu também, no seu sentido primordial, vem de um contexto religioso.
Ao falarmos de glorificar ou consagrar um poeta, estamos falando de sua ânsia de
imortalidade, ou seja, a sua mortal imortalidade.
O crítico argentino Raul Castagnino, em sua obra O que é literatura? (1ª ed.
1954) tece cinco conceitos do fenômeno literário: sinfronismo, ludismo, evasão, compromisso
e ânsia de imortalidade.
Castagnino nos fala de dois tipos de aspirações de imortalidade, uma negativa e
outra positiva. A negativa seria um idealismo alienante que toma alguns poetas que
“entregam-se à obra como quem sobe num veículo que os conduzirá à glória, à mortal
imortalidade” (1969, p. 169). Profundamente influenciado por Jean Paul Sartre, o crítico

127
FREYRE, Gilberto A ideia do fardão. In: Diário de Pernambuco, Recife, 20 de setembro de 1925, Nº 218.
212

aponta que imerso num estado de alienação é o poeta que escreve pensando numa perenidade
futura, esquecendo-se de que a literatura é uma mensagem aos homens do tempo presente.
Mas Castagnino aponta que há a glória ou imortalidade positiva manifestando-se
na presença de obras significativas ao longo do tempo. Essa perenidade ocorre pela constante
renovação da obra pela leitura. Ao lermos os poetas, remetendo ao ensaio de T. S. Eliot,
‘Tradição e o talento individual”, nas partes mais individuais de sua obra, percebemos a
presença dos poetas mortos, os antepassados atuando com vigor (1989, p. 38). A imortalidade
como forma de sobrevivência do fato literário, oferece-nos fontes de novas obras,
evidenciando o sentido dinâmico da continuidade histórica da literatura (CASTAGNINO,
1969, p. 190).
Ter consciência do sentido histórico da literatura é importante pois acarreta na
percepção do passado e de sua presença no presente. Por exemplo, Ovídio foi um poeta
romano que teve sua existência há mais de dois mil anos que, no entanto, sentimos a presença
de sua poesia como uma herança cultural herdada. O poeta que entende a atualidade do
passado também compreende suas responsabilidades e dificuldades como artista. Tal artista
vai perceber que ele é inevitavelmente julgado pelos padrões do passado. E deve estar bem
ciente do fato óbvio, de que a arte não melhora ou evolui num sentido progressista, mas a arte
nunca é a mesma. Assim, a tradição exige não apenas o conhecimento do passado, mas
também a vontade de assimilar o melhor do passado e um desejo compromissado de se
relacionar com o presente.
Ao aproximarmos do fim desse debate, levanto em conta o processo de recepção
(Jauss, Iser), público leitor está no centro do processo que leva à consagração de uma obra
como um clássico da literatura. Essa consagração opera em etapas de seleção; diz respeito a
obras que foram recebidas pela primeira vez pelo público contemporâneo e relidas por várias
gerações sucessivas. Requer práticas de interpretação, de comentário e de análise literárias
que garantam a permanência de uma obra. Por outro lado, a perspectiva de Bourdieu baseia-se
no pressuposto de que a posteridade do autor e de sua obra dependem essencialmente de sua
capacidade de se posicionar dentro do campo literário, a fim de satisfazer esse público leitor.
E na luta pela glorificação literária que as polêmicas ocorrem como um poderoso mecanismo
de inserção e de deslegitimação do outro. Agora, especificaremos os conceitos de polêmica
dessa pesquisa.
213

3.7 Conceitos discursivos de polêmica

Nos dias de hoje, a polêmica tem visivelmente uma má


reputação: atrai as críticas dos censores de todos os
lados (AMOSSY, 2017, p. 7).

A polêmica pressupõe a existência de um dilema entre duas ou mais pessoas. Em


muitos casos, participar de um embate verbal é mais empolgante do que buscar uma
resolução. Como guerreiros, a intrepidez e agressividade caracterizam o confronto.
O crítico Luís Costa Lima nos explica a sua visão sobre esse fenômeno
A polêmica, enquanto tal, pode ser proveitosa ou estéril. Estéril quando se limita ao
enfrentamento pessoal. Proveitosa quando os adversários esgrimem armas
intelectuais: porque somos contra ou a favor de alguma coisa. Acrescente-se apenas:
a ausência de aprendizagem reflexiva entre nós tem como decorrência imediata o
fato de que nossas polêmicas são brutais e estéreis, seria mais correto dizer:
histéricas. Elas são em tudo equivalentes aos confrontos de torcidas de futebol
(2001, p. 157)128.

Muitos pensadores querem distância das controvérsias, tal como Michel Foucault.
Ele declara que não tem interesse em participar de polêmicas, pois elas se afastam do que
seria um processo ideal de discussão: um diálogo como jogo sério de perguntas e respostas,
um esclarecimento recíproco e onde o direito de cada interlocutor e respeitado (2010, p. 225).
Percebemos que ele prefere uma discussão com características dialéticas. Um
confronto polêmico
pelo contrário, procede atrelado a privilégios que detém antecipadamente e que não
aceita nunca de pôr em discussão. Possui, por princípios, os direitos que o autorizam
à guerra e que fazem desta luta uma empresa justa; diante dele não está um
companheiro na busca da verdade, mas um adversário, um inimigo que errou, que é
prejudicial e cuja existência constitui uma ameaça. Para ele, portanto, o jogo não
consiste em reconhecer o outro como sujeito que tem direito à palavra, mas em
anulá-lo como interlocutor de qualquer possível diálogo, e o seu objetivo final não
será o de aproximar-se quanto possível de uma verdade difícil, mas o de fazer
triunfar a justa causa de que se proclama, desde o início, o porta-voz. O polêmico
apoia-se em legitimidade da qual o seu adversário é, por definição, excluído (2010,
p. 225-226).

Essa descrição de Foucault é muito reveladora, pois, mesmo tratando das


características da polêmica política, há uma série de fatores presentes em outros tipos de
controvérsia, como a autolegitimação, o uso violento da linguagem, a visão do outro como
adversário e o desejo de destruí-lo. A busca pela verdade não é reciproca. O polemista já se

128
Opiniães: Revista dos alunos de Literatura Brasileira / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. – v. 1, n. 3 (2011). – São Paulo:
FFLCH: USP, 2011. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/opiniaes/issue/view/8641/658
214

declara porta-voz da verdade e o seu interlocutor imerso no erro. O enunciador diz a verdade
em forma de juízo com a autoridade que conferiu a sim mesmo. Por isso, Foucault conceitua a
polêmica como uma “figura parasitária da discussão e o obstáculo à busca da verdade” (2010,
p. 226).
Como já afirmamos, a antipatia de Foucault refere-se ao discurso polêmico na
esfera das disputas políticas, principalmente na imprensa. Contudo, outros pensadores
destacam que as polêmicas não residem só na política, estão presentes no cotidiano da vida
pública, porque os confrontos verbais são diversificados e incontáveis. Partindo dessa
premissa, para delimitar perspectivas discursivas e linguísticas da polêmica, vamos nos
fundamentar nos trabalhos de Ruth Amossy, Marcelo Dascal e Dominique Maingueneau.
Uma importante contribuição é da pesquisadora Ruth Amossy129, com Apologia
da polêmica (2017). Ela parte da ideia de que o conflito de opiniões é o princípio essencial
numa sociedade democrática, onde possa residir a pluralidade e a liberdade de pensamento e
de expressão.
Nesse contexto, a polêmica - que gerencia os conflitos valendo-se do choque das
opiniões contraditórias - não permite nem conduzir a um acordo, nem assegurar um
modo de coexistência numa comunidade dividida entre posições e interesses
divergentes. É que, na sua virulência e até nos seus excessos, ela permite que os
participantes dividam o mesmo espaço sem recorrer à violência física - e isso
justamente nos casos de dissensão profunda, nos quais as premissas são diferentes
demais para autorizar uma partilha da razão. A polêmica preenche, por esse motivo,
funções importantes que vão da possibilidade do confronto público no seio de
tensões e de conflitos insolúveis à formação de comunidades de protesto e de ação
pública (2017, p. 13).

A polêmica, no âmbito da vida pública, para Amossy, seria uma modalidade


discursiva para mediar os conflitos. O verbo para essa concepção é ‘mediar’, sem a
obrigatoriedade de resolução. Um texto polêmico é uma reação à palavra do outro, portanto
há um dialogismo, mesmo que não exista um diálogo efetivo. É uma reação em cadeia: o
texto de um enunciador garante a visibilidade de sua opinião divergente acerca do outro e este
argumenta citando e atacando o adversário, entrelaçando uma rede de posições radicalmente
opostas. Dois enunciadores, mesmo à distância, ocupam posições antagônicas no campo
discursivo, mas compartilham os mesmos interesses, as mesmas áreas de conhecimento. O
objetivo de cada um é bastante pragmático: a desqualificação do alvo e a derrota do inimigo.

Termo chave para qualquer discussão sobre a polêmica, a palavra dissenso. Na


medida em que aparece como o choque - muitas vezes brutal – entre opiniões

129
Professora emérita do Departamento de língua francesa da Universidade de Tel-avi, (Israel), coordenadora do
Grupo de pesquisa Análise do Discurso, Argumentação e Retórica (ADARR).
215

antagônicas, a polêmica pública está indissoluvelmente ligada ao desacordo. É por


isso que ela compartilha o descrédito que pesa sobre nossas sociedades sob as
múltiplas formas do dissenso (2017. p.17).

Para Amossy, a dissensão vai além de um simples “desacordo” está, relacionada a


uma discordância, como uma profunda, até mesmo violenta, diferença de opiniões.
Na polêmica, o dissenso ocorre por meio da interação verbal, entendida como
combate que consiste na vitória perante o outro por meio da força bruta, ou seja, “se há
choque de opiniões contraditórias, é porque a oposição dos discursos, na polêmica, é o objeto
de uma clara dicotomização” (idem, p. 53). A dicotomização está inscrita no processo
discursivo dos adversários, pois é preciso duas posições contrárias para se estabelecer a
interação, ou seja,
desqualificar o discurso do outro, a polêmica recorre a um conjunto de
procedimentos discursivos e retóricos: a negação, os jogos sistemáticos de oposição,
a marcação axiológica (avaliação em termos de Bem/Mal), a reformulação, o manejo
direcionado do discurso relatado, a ironia, a hipérbole etc. Todas as armas são boas
para o combate (idem, p. 231)

Nesse contexto, observando como procedimento dialógico, Amossy cita e


desenvolve a perspectiva de Dominique Maingueneu, de sua abordagem semântica do
discurso polêmico.
Essa abordagem é resultado de sua tese, A semântica da polêmica (Sémantique de
la polemique, 1983), na qual destaca que os discursos são constitutivamente polêmicos, e que
os sistemas polêmicos, longe de serem acidentais, podem ser identificados na semântica
profunda (nos semas fundamentais e estruturantes) de cada ato discursivo. Esse método de
análise, permite explicar semanticamente dois fenômenos inter-relacionados: a Trad. de um
discurso por seu oponente e interincompreensão resultante. De acordo com o linguista, para
haver polêmica, é necessário que haja “relações explícitas entre duas formações discursivas”
(2005, p. 111). A polêmica é interpretada como um jogo de equilíbrio instável entre várias
posições, uma reconfiguração constante, distanciando-se da estaticidade.
Para entendermos os componentes linguísticos dos textos polêmicos, Jacques A.
Wainberg nos fornece uma interessante estruturação que nos auxiliam nessa investigação, dos
elementos do discurso polêmico que são a linguagem; os argumentos; os interlocutores; o
contexto comunicativo e o tópico130.

130
“A linguagem representa o instrumento de representação em termos básicos de forma e conteúdo; o emissor é,
aqui, o produtor da mensagem; o receptor, aquele a quem a mensagem é dirigida; o contexto é o conjunto virtual
de informações envolvidas naquele processo comunicativo; e o tópico é o assunto de que o discurso trata”.
Wainberg, Jacques A. /Campos, Jorge/Behs, Edelberto. Polemista, o personagem esquecido do jornalismo. In
Revista Brasileira de Ciências da Comunicação Vol. XXV, nº 1, janeiro/junho de 2002 p. 53.
216

A polêmica se apoia na verbalidade e na intertextualidade, porque, para a geração


do conflito de ideias, é necessário o uso de recursos verbais. Admite-se ainda que o
empreendimento polêmico sempre mobiliza outro discurso (por citação, por referência, por
alusão) e se posiciona em relação a ele. Além de ser uma interação violenta que visa uma
plateia, ela é marcada pela polarização, pela desqualificação e pela espetacularização.

3.8 Alguns polemistas e polêmicas célebres

Nessa parte da pesquisa, traremos alguns casos famosos de polêmicas literárias e


de polemistas, enfatizando os conflitos em busca da glorificação literária, os embates para
penetrar na tradição literária. Abordaremos, primeiramente, as Querelas entre os Antigos e
modernos, que ocorreu na França, no final do século XVII, pois se tornou um marco cultural,
histórico da Era moderna, além de modelo de polêmica que envolveu diversos atores,
incluindo os do campo do poder. Em seguida, trataremos da Questão Coimbrã, em Portugal, e
dois polemistas mais importantes da literatura brasileira: José de Alencar e Sílvio Romero.

3.8.1 As Querelas entre os Antigos e Modernos e a Glória Literária

Querela entre os Antigos e modernos foi uma expressão engendrada pelo escritor
francês Charles Perrault, no final do século XVII, na França, que dicotomizou a disputa entre
adversários, que, de um lado, defendiam a superioridade de grandes autores do passado, de
outro, pensadores que valorizavam a produção literária dos autores presentes.
A Academia Francesa foi palco dessa famosa querela, salientando que as
controvérsias não ocorriam em um espaço intelectual abstrato, mas em arenas específicas
governadas por instituições e regras131.
Na interpretação de DeJean132 (2005), o fin de siècle francês foi uma das primeiras
‘guerras culturais’ modernas do mundo intelectual ocidental, porque a literatura tornou-se

131
Na Idade média, a argumentação oral era utilizada como método científico e de ensino-aprendizagem. A
oralidade constituía a tradição medieval da disputatio, cujos excessos foram criticados séculos depois, mas com
o mérito reconhecido. No Renascimento, no âmbito das academias científicas, essas disputas geralmente
tomavam a forma de desafios que mobilizavam toda uma ética de confronto intelectual, em que a honra dos
eruditos estava em jogo, e muitas vezes defendida por seus alunos, que agiam como defensores.
132
Joan DeJean (1948), professora de francês na Universidade da Pensilvânia. A obra Antigos contra Modernos:
as guerras culturais e a construção de um fin de siecle (2005) pretende historizar a idéia do fin de siècle, além de
outros termos fundamentais: "século, público, sensibilidade, cultura e civilização".
217

matéria da história em vez de matéria da história literária, não é mais apenas atividade ou
evento, mas evento político.
A Querela ocorreu no contexto do reinado de Luís XIV (1638-1715), conhecido
como o Rei Sol, que ocupou o trono da França por 72 anos, o mais longo reinado do planeta.
A sua influência na história política e cultural foi vasto, tanto que o século XVII ficou
conhecido como o Grande Século Francês. Além do poder político e bélico, o monarca
patrocinou dezenas de artistas, artesãos, alfaiates e arquitetos para exaltar a sua imagem.
Como um sol, todos deveriam gravitar ao seu redor.
Uma instituição que teve muito prestígio no reinado do Rei Sol foi a Academia
Francesa133, que foi fundada por seu antecessor, Luís XIII, em 1635, e era o centro
institucionalizado da magnificência cultural e científica da coroa.
A controvérsia se iniciou a partir da leitura de um poema, em 1687, por Charles
Perrault, perante os membros da Academia Francesa, intitulada Le Siècle de Louis, le
Grand (“O século de Luís, o Grande). Este poema teve a pretensão de mostrar o brilho das
letras, artes e ciências sob o reinado de Luís XIV, no entanto abalou a harmonia do
microverso palaciano ao criticar os antigos valorizar os escritores contemporâneos.
Essa polêmica contrasta duas tendências distintas134: os clássicos/antigos liderados
por Nicolas Boileau, que defendiam uma concepção da criação literária como uma imitação
dos poetas da antiguidade greco-latina, bem como Homero e Virgílio entre outros, tidos como
representações da perfeição artística. As tragédias de Jean Racine, tais como Ifigênia em
Áulida (1674) e Fedra (1677) escritas a partir de temas já tratados por tragédias gregas,
ilustram uma concepção artística respeitosa às regras descritas do teatro clássico,
principalmente, na Poética de Aristóteles. Os Modernos, liderados por Charles Perrault,
apoiavam poetas e dramaturgos contemporâneos e não os consideravam inferiores aos autores
antigos.

133
A criação da Academia Francesa marca, pela primeira vez, a importância da língua na organização da
sociedade. Os primeiros acadêmicos pretenderam criar regras específicas para a língua francesa para que,
eventualmente, substituísse o latim. A Academia Francesa foi criada sob a liderança do Cardeal Richelieu, que
era então o seu “chefe e protetor", e foi composta por 40 membros, chamados de "imortais", um título que
encontra sua origem no lema gravado no selo dado à Academia por Richelieu: "para a imortalidade".
134
Principais lutadores da Querela dos Antigos e dos Modernos: ANTIGOS - Jean de La Fontaine (1621-1695);
Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704); Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711); Jean Racine (1639-1699); Jean
de La Bruyère (1645-1696) e François Fénelon (1651-1715). MODERNOS - Pierre Corneille (1606-1684);
Charles de Saint-Evremond (1615-1703); Charles Perrault (1628-1703); Philippe Quinault (1635-1688) e
Bernard de Fontenelle (1657-1757).
218

Peter Burke, em A fabricação do rei: A construção da imagem pública de Luís


XIV (1994), nos explica que, assim como o poema lido, os poetas e dramaturgos da Academia
Francesa tinham como propósito a ‘glorificação literária’ do rei (BURKE, 1994. p. 16-17).
Sobre a luta pela glorificação se manifestar como um confronto de gerações,
Bourdieu nos explica que as
diferenças segundo o grau de consagração separam de fato gerações artísticas,
definidas pelo intervalo, com frequência muito curto, por vezes apenas alguns anos,
entre estilos e estilos de vida que se opõem como o "novo" e o "antigo", o original e
o "ultrapassado", dicotomias decisórias, muitas vezes quase vazias, mas suficientes
para classificar e fazer existir, pelo menor custo, grupos designados - mais do que
definidos - por etiquetas destinadas a produzir as diferenças que pretendem enunciar
(BOURDIEU, 1996. p. 143)

O que nos surpreende é que entre os ‘antigos’ e os ‘modernos’, muitos tinham


idades próximas, muitos eram da mesma geração, do ponto de vista cronológica. O que os
diferencia e que constituiu o motivo da controvérsia foram os modelos estéticos que
defenderam. Interpretando a partir da ideia de ‘consagração/glorificação’, a querela
movimentou o debate em torno das mudanças dos modelos culturais e literários na França. A
ideia de liberdade intelectual e artística é a pedra angular desse dilema. DeJean afirma-nos
que essa ‘guerra cultural’, que caracterizou o “ímpeto do fin de siècle”, serviu como a faísca
que desencadeou o Iluminismo (2005, p. 71). Além da questão de fontes e modelos, o
confronto também mostrou posições conflitantes em termos de liberdade criativa e busca de
verdade e beleza.

3.8.2 Questão Coimbrã

As disputas escritas são muito importantes para se analisar as concepções de arte e


literatura de uma sociedade em uma determinada época, tal como a famosa Questão Coimbrã,
que agitou a imprensa e a intelectualidade portuguesa no ano de 1865.
Num texto bastante sarcástico, Ramalho Ortigão descreve o que foi essa querela:
Estão-se dilacerando rancorosamente em Portugal duas seitas literárias a que
chamam a coimbrã e a olissiponense. A polêmica é dos homens novos. É entre eles
que a verdade corajosa e dessassombradamente se discute, se depura e apura.
Estabelecem-se forças lisas e destravanque-se arena. Não se admitem cá tiaras que
resguardem as frontes, nem degraus a que não seja lícito subir, nem púrpuras
roçagantes em que seja fácil tropeçar. Os atletas querem-se nus como os típicos
lutadores da estatuária grega. Os próceres literários, de cujos ombros pendem já as
insígnias da vitória só devem descer à estacada para coroar o vencedor e dar a mão
ao vencido (Apud FERREIRA, 1999. p. 196).

Ele utiliza o léxico militar para tratar do conflito de gerações que ocorria na
literatura portuguesa do período. As ‘seitas’ em disputas são entre os escritores de Coimbrã e
219

de Lisboa. O jornal é identificado como um coliseu romano e os jovens poetas, impetuosos,


propensos à polêmica miram o troféu da vitória dos poetas velhos.
Esse confronto literário foi caracterizado por uma série de desavenças pessoais e
estéticas ocorridas nos jornais portuguesas, entre 1865 a 1866. Constitui-se por um conjunto
de poemas, prefácios e apresentações de livros, artigos e cartas abertas em jornais 135. O
adjetivo refere-se à Universidade de Coimbra, local de formação dos jovens escritores, atores
dessa polêmica, como Antero de Quental e Teófilo Braga.
De um lado, temos a chamada ‘velha geração’ romântica, formada por intelectuais
ligados a instituições parlamentares ou ministeriais que gravitavam em torno do ‘patriarca’
Antônio Feliciano de Castilho e, do outro, uma nova geração de escritores que defendia novas
correntes políticas e estéticas, vinculadas às ideias modernas. Alberto Ferreira (1999, p. 19-
20) afirma que os jovens de Coimbrã interviram nos jornais para denunciar a burocratização
da cultura portuguesa, o convencionalismo da arte, a retórica arcaica e a prática do elogio
mútuo, muito comum à época, em que os poetas publicavam seus poemas ou livros e seus
amigos teciam comentários elogiosos na imprensa. Para um neófito, ter um poema elogiado
por Feliciano de Castilho, constituía-se numa verdadeira glória literária,
A polêmica tem início quando o poeta Pinheiro Chagas publica um livro
intitulado Poema da mocidade (1865) e Feliciano de Castilho escreve um longo texto para
elogiar o seu acolhido. Castilho cita os três “mancebos” - Teófilo Braga, Antero de Quental e
Vieira de Castro, colocando-os como representantes dos jovens bacharéis de Coimbrã,
alcunhados de “jacobinos da literatura”.
No mesmo ano, Antero de Quental havia publicado Odes modernas, que teve uma
calorosa repercussão entre os universitários de Coimbra e de Portugal. O projeto poético é
ambicioso, pois Quental pretendida ser a voz da revolução e da renovação de seu país. Ele
entendia que a missão do escritor é imensa, um sacerdócio, um ofício público e religioso.
Portanto, ficou profundamente irritado com o sarcasmo e o descrédito tecidos por Castilho
Em reposta em forma de carta aberta, o folhetim “Bom e bom gosto” que serviu
de manifesto
A guerra faz-se ao escândalo inaudito d'uma literatura desaforada, que cuidou poder
correr mundo sem o selo e o visto da chancelaria dos grão-mestres oficiais. A guerra
faz-se á impiedade d'estes hereges das letras, que se revoltam contra a autoridade
dos papas e pontífices, porque, ao que parece, ainda a luz de cima lhes não escreveu
nas frontes o sinal da infalibilidade. Faz-se contra quem entende pensar por si e ser

135
Na antologia publicada por Alberto Ferreira e Maria José Marinho, Bom senso e bom gosto (A questão
Coimbrã) 1865/1866, em dois volumes, estão organizados os principais textos da polêmica, alguns nunca
publicados em livro.
220

só responsável por seus atos e palavras...Agora quem move estes ridículos combates
de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices; é o espirito de rotina
violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que
quer dormir sossegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a
forçam-nos só lhe queremos puxar as orelhas! (QUENTAL, 1865, p. 4)

Antero assinala que a atitude de Castilho foi o início da guerra aos jovens hereges
de Coimbrã, porque buscam a independência artística. A atitude crítica adquirida do ideário
moderno e a busca por uma revolução heroica herdada do romantismo alemão dão o tom do
discurso do poeta. Há o questionamento da liderança literária de Castilho em Portugal, da sua
suposta autoridade em designar quem é um bom poeta ou não. Antero declara que o poeta
deve ser julgado por seu talento, inteligência, novidade. Ser amigo, apadrinhado ou bajulador
do “Pontífice” ou “grão-mestre” não é critério estético. Estava em jogo a luta do monopólio
da legitimação literária (Bourdieu) e o texto de Antero é a explicitação desse confronto
simbólico. Ele defende, sobretudo, a independência dos poetas, mas sabemos que os
agrupamentos literários adquirem bastante força social. Essas ‘tribos’ (Maigueneau) ao se
aproximarem do campo do poder econômico, estabelecem os seus próprios critérios de
legitimação. Os homens de letras portugueses assim como no Brasil estavam ligados ao
trabalho jornalístico como questão financeira, o sustento, mas também pela busca de
notoriedade.
A partir do texto de Antero de Quental, ao longo do ano de 1865, que mobilizou a
opinião pública portuguesa, surgiram vários textos que, ora defendem Castilho e seus
seguidores, ora defendem os jovens de Coimbrã. De questões literárias, o foco se estendeu às
relações pessoais, detração de desafetos ou bajulação dos amigos.
Após essa rápida apresentação, salientamos que a polêmica da Questão Coimbrã
fora importante, pois foi um maciço uso da imprensa para colocar os debates estéticos na
esfera pública, ao alcance de leitores. As discussões não ficaram restritas aos livros ou às
universidades. O público alfabetizado teve acesso às disputas pessoas, as defesas estéticas e
interpretações literárias dos livros dos principais escritores portugueses do período. Uma luta
pela legitimação das reputações literárias, perante a audiência, para decidir quem eram os
melhores interpretes culturais da vida portuguesa.
Percebemos que a polêmica é um texto de recepção violenta e criativa. Os poetas
mais velhos foram tomados como metonímias de valores conservadores identificados pelo
romantismo já institucionalizado e retórico, que apenas colhia louros. O ataque de Antero a
Castilho nos revelou que o cânone de autores representativos não é fixo, que para a renovação
221

literária, deve sim, haver uma flutuação de autores, desde que sejam comprometidos com a
arte e com o desejo de progresso social

3.8.3 Polêmicas José de Alencar

O principal polemista literário e político da primeira metade do século XIX foi


José de Alencar136. Os destaques da carreira literária do escritor foram marcados por
polêmicas: a primeira, A Confederação dos Tamoios (1856) e a derradeira, encetada com
Joaquim Nabuco, em 1875, poucos anos antes de sua morte. Esse último confronto verbal fora
importante para observamos a dinâmica da tradição literária brasileira, pois Alencar já era
considerado o “chefe da literatura nacional àquele instante” (COUTINHO, 1978). Para os
escritores novos, na época Nabuco, para se afirmarem, era imprescindível demolir os
“gigantes”.
Na década de 1850, o Romantismo como movimento estética de uma nação nova,
por meio de seus poetas, tinha o intuito de criar uma identidade brasileira. Nada mais natural,
portanto, que a missão de escrever a epopeia nacional encomendada pelo Imperador D. Pedro
II fosse delegada ao prestigiado poeta Gonçalves de Magalhães, com A Confederação dos
Tamoios.
O poema gerou muitas discussões no meio intelectual da Corte. Alvo de diversas
críticas, a que mais se destacou foi o texto anônimo assinado por Ig137, que atestava a
inferioridade lírica do poema e a inadequação do gênero epopeia para cantar uma narrativa
indígena. Em contrapartida, Ig que depois revela ser Alencar, ao tecer as minuciosas críticas
traz questões relevantes: em novo entendimento do que seja o nacionalismo e um novo
projeto estético para o tema indianista no romantismo.
As Cartas sobre a Confederação dos Tamoios foram publicadas entre 10 de junho
e 15 de agosto de 1856, e no mesmo ano, Alencar compilou-as em um livro, publicado pela
Empresa Tipográfica do Diário.

136
José Martiniano de Alencar (1829-1877) Natural de Messejana, Ceará, foi filho do importante senador de
mesmo nome. Formado em Direito em São Paulo (1950), teve uma ilustre carreira como advogado, jornalista e
político. Após diplomar-se em direito, em meados de 1854, iniciou a colaboração no jornal carioca Correio
Mercantil, como folhetinista. Como sucesso de suas crônicas e folhetins, depois, assume a direção do Diário do
Rio de Janeiro, o mais antigo jornal do tempo. Como jornalista, a sua atividade é incessante e copiosa,
escrevendo política, história, economia e administração, literatura, costumes etc. Nesse período nasce a sua dupla
ambição: a política e a literatura.
137
O pseudônimo de Ig. foi tirado das primeiras letras do nome Iguaçu, heroína do poema (Idem, p. 863).
222

Segundo Paulo Linhares


O debate literário e político travado por José de Alencar a partir da publicação de
suas célebres Cartas sobre a Confederação dos Tamoios, em 1856, tiraria a
liderança do romantismo das mãos do grupo da revista Niterói (Gonçalves de
Magalhães, Araújo Porto Alegre e outros) e iniciaria um lento processo de erosão da
imagem de Imperador ilustrado e mecenas tropical pacientemente tecido por
D.Pedro II (2010, p. 29).

A polêmica deu notoriedade a Alencar e no ano seguinte, o seu projeto se


concretiza na publicação de O guarani. O índio brasileiro fora representado pelos árcades,
como Basílio da Gama e Santa Rita Durão, mas a sua promoção a herói nacional com José de
Alencar e Gonçalves Dias. Mesmo sendo tipos idealizados (bons selvagens).
Após a essa polêmica, publicou o romance O guarani, obtendo grande sucesso e
demonstrando na prática, os preceitos estéticos que defendera nas belicosas missivas. Entra
pela década de 1860, escrevendo peças de teatro e publica livros importantes, tais como As
minas de prata (1862-6), Lucíola (1862), Diva (1864) e Iracema (1865). E nesse mesmo
período, o pseudônimo Ig cede lugar a Erasmo, com mais atuação nas polêmicas políticas.
No ano de 1871, Alencar era bastante atuante na Câmara dos deputados e ferrenho
opositor do Imperador, enquanto surgia o periódico Questões do dia, sob a coordenação de
José Feliciano de Castilho.
Com um tom panfletário, o periódico combatia qualquer pronunciamento, texto ou
ideia defendida, tanto na imprensa, quanto na Câmara por José de Alencar. E é nesse cenário
conturbado que Franklin Távora começa a “sair da obscuridade provinciana [...]com a
publicação escandalosa das Cartas a Cincinato” (VERÍSSIMO, 2001).
A polêmica que envolve José de Alencar, José Feliciano de Castilho e Franklin
Távora é um confronto de pseudônimos, respectivamente, Sênio, Cincinato e Semprônio. Ela
tem como ponto catalisador a publicação do romance O Gaúcho. Em diversos textos, Castilho
já criticara o autor do Guarani a respeito do uso ‘incorreto’ da língua portuguesa. Essa tese
será endossada e radicalizada por Franklin Távora que escreve duas séries de cartas 138,
publicadas semanalmente no periódico, entre 1871 a 1872, mas ainda em 1871, os vinte
primeiros fascículos foram publicados em formato de livro, pela Tipografia e Litografia
Imparcial.
Semprônio (Távora) escreve ao seu amigo Cincinato (Castilho) análises ferrenhas
acerca dos romances O Gaúcho e Iracema. Ele alega que José de Alencar está num período de

138
A primeira formada por oito cartas sobre O gaúcho, publicadas entre 14 de setembro e 12 de outubro de 1871;
a segunda é formada por 13 cartas acerca de Iracema, publicadas entre 13 de dezembro de 1871 e 22 de fevereiro
de 1872.
223

“precoce decadência literária”, isto é, está ultrapassado ao usar uma linguagem incorreta e
artificial, além de pecar na inexatidão da representação dos cenários e do povo nos romances
e no excesso de fantasia.
De acordo com Eduardo Vieira Martins
Távora não é o detrator de Alencar; é um crítico contundente, por vezes injusto,
mas, em todo caso, um escritor que explora habilmente a polêmica como meio de
conquistar a atenção dos leitores e de se autopromover, assim como era comum no
período e assim como o próprio Alencar fizera com relação a Gonçalves de
Magalhães (2013, p.62).

Desde a primeira carta, Semprônio representa o Rio de Janeiro como uma ‘arena
das letras’, onde o escritor não deve ser apenas um guerreiro, mas um ‘sacerdote’ (2011, p.
48). Logo, na segunda carta, ele nos apresenta a sua visão de crítica literária.
Não ponho em dúvida os créditos e a autoridade, de que Sênio goza neste gênero de
labor intelectual. [...]Tanto mais me receio dos males que da aberração possam
porvir, quanto é inegável a espécie de idolatria, que existe em certo círculo para com
as obras oriundas da pena de Sênio (2011, p. 49).

Távora questiona a ‘reputação’ inquestionável de Alencar, que pela má qualidade


de seus últimos livros, não justificam mais a idolatria em torno dele. Walter Scott, da
Inglaterra e Cooper, na América do Norte como melhores exemplos de escritores que
conseguiram traçar com fidedignidade a representação de suas nações.
Segundo o polemista, a capacidade de observação exata é o requisito de um
romancista e que o
grande merecimento de Cooper consiste em ser verdadeiro; porque não teve a quem
imitar senão à natureza; é um paisagista completo e fidelíssimo. [...] Não escreveria
um livro sequer, talvez, fechado em seu gabinete. Vê primeiro, observa, apanha
todos os matizes da natureza, estudo as sensações do eu e do não eu, o
estremecimento da folhagem, o ruído das águas, o colorido do todo; e tudo transmite
com uma exatidão daguerreotípica (2011, p. 51).

A principal acusação é que Alencar é um escritor de gabinete, que não escreve


romances com fidelidade porque não conhece os cenários que pretende pintar. O processo
mimético defendido é a reprodução daquerreotípica139 da natureza. O daguerreotipo citado por
Távora é um aparelho precursor da máquina fotográfica e é usado como uma metáfora, não de
representar integralmente o real, mas de oferecer subsídios mais exatos para a construção do
romance.

139
O daguerreótipo foi descoberto em 1835 pelo francês Louis Daguerre (1787-1851). Foi a cooperação entre
este grande fotógrafo e Nicéphore Niepce que tornou possíveis tais resultados. No entanto, por causa da morte de
Niepce em 1833, foi Daguerre quem continuou e finalizou o trabalho, desenvolvendo assim o primeiro processo
que pode gravar a imagem permanentemente. O daguerreótipo, como todas as câmeras, usa o sistema de câmara
escura.
224

A polêmica marcou o Rio de Janeiro e entrou para a história da literatura


brasileira. Para Veríssimo
Acaso mais por espírito de insubordinação dos escritores novéis contra os
consagrados, que por justificadas razões, foi dos que insurgiram contra a hegemonia
literária de Alencar. [...] tal insurreição, como outras quejandas, e tanta cousa da nossa
vida literária, era apenas uma macaqueação de idênticas rebeliões nos centros
literários europeus. (VERÍSSIMO, 1954, p. 268-269).

O critério estético é mais importante do que o afã é reproduzir o nosso país, na


perspectiva de Veríssimo. Revela que é mais um episódio dos poetas novos contra os poetas
antigos. José de Alencar já era um autor ‘consagrado’ literariamente e a investida sofrida foi
uma tentativa de desmoroná-lo do seu pedestal. Não seria a última.
Nesse sentido, Alencar, como o representante do romance romântico era o grande
nome a ser subjugado. Contra Magalhães saíra vencedor com o seu projeto romântico e com a
inovação do romance indianista, mas nos anos de 1870, o público se ampliou, os jornais se
multiplicaram e os leitores têm mais escritores e romances românticos para construir o seu
horizonte de expectativas, isso sem falar ao acesso aos livros estrangeiros. A concorrência era
mais acirrada para atingir a glorificação literária.
Outra polemica que abalou o campo literário do Rio de Janeiro, ocorreu nas
páginas do jornal O globo, entre o autor do Guarani e o jovem Joaquim Nabuco140, que teve
como ponto de discórdia, a encenação da peça O jesuíta141. O debate entre José de Alencar e
Joaquim Nabuco durou dois meses, entre 22/09/1875 e 21/11/1875, com publicações
semanais no referido jornal.
Em virtude da estreia de O Jesuíta, no Teatro São Luís, escrita por Alencar vinte
anos antes, o jovem escreve uma jocosa apreciação da peça na coluna intitulada “Aos
domingos”, apontando que “a série de estudos que hoje começo sobre o Sr. J. de Alencar tem
exatamente por fim descobrir a incógnita de sua vocação literária” (1978, p. 48), pois, ao lhe
tirar o véu de superioridade que o autor “como outro qualquer escritor, depende da crítica, e a
imprensa daria uma prova real do nosso adiantamento, se estudasse as obras do autor popular
em vez de tanto incensar lhe o nome” (Idem, p. 44).

140
Joaquim Nabuco, filho do Senador Nabuco de Araújo, regressava de uma estadia de dois anos na França e se
lançara na vida literária brasileira, atuando principalmente no jornalismo.
141
Conta a história de Samuel, padre Jesuíta, que, disfarçado de médico, tenta promover, secretamente, um plano
de independência do Brasil. Escrita em alusão aos quarenta anos do processo de independência brasileira, não foi
encenada na época, pois o famoso ator João Caetano recusou a participar do drama como protagonista.
225

José de Alencar aborrecido, na quinta feira seguinte, publica o artigo “Teatro


brasileiro” em que tece um panorama do teatro brasileiro e questiona a crítica, afirmando que
ela deveria se ocupar de todas as manifestações artísticas e não apenas as ‘novas’ (1978, p.
23), referência a acusação de anacronismo de sua peça, do texto estar fora de moda.
Ao descobrir a identidade do seu algoz, escreve mais artigos irritadiços no mesmo
jornal. A troca de desaforos se estendeu por três meses: Nabuco, aos domingos, e Alencar, às
quintas.
A troca de desaforos torna-se mais violenta e animada, Alencar investe contra
Nabuco, com a missão de “arrancá-lo do êxtase em que vive como um narciso namorado de
si” (idem, p.59 ), porque devido ao “prurido de mostrar-se, a impaciência de tornar-se alvo da
atenção pública, não somente em seu país, como no mundo, esse egotismo insofrido vai-lhe
gastando as forças. É preciso aplicar um tônico ao orgasmo da vaidade, para que não se perca
um talento aproveitável.” (id. p. 60).
O mais interessante dessa polêmica é a comparação entre escritores e cavaleiros,
por Nabuco (1978, p. 47). Ele comparou a atividade literária a uma corrida e a obra de cada
autor a um cavalo, tendo como hipódromo principal, o Rio de Janeiro.
No concorrido turfe do Romantismo, cujo prêmio era a “popularidade” entre os
leitores, citou vários corredores como Gonçalves de Magalhães, Sales Torres Homem, Porto
Alegre, Pereira da Silva, contudo, declarou que o “jockey do Guarani” se encontrava muito
adiantado e o único que lhe estava próximo era Joaquim Manuel de Macedo (idem, p. 47). Na
metáfora do crítico, os cavalos de Alencar foram vencedores, porque, além do público ser
diminuto, os concorrentes eram fraquíssimos.
Sobre a metáfora suscitada, Alencar como “jockey” afirma que se sua “Carta sobre
Confederação dos Tamoios” foi uma égua voraz, enquanto o irrelevante “Sr. J. Nabuco” não
passava de um Dr. Fausto montado em um cabo de vassoura, “a cavalgar por esses ares a fora,
levando por pajem um Mefistófeles, bom diabo, fanfarrão, mas inofensivo” (idem, p. 52).
Joaquim Nabuco, posteriormente se destacou na vida nacional como um importante
abolicionista, historiador, jurista e diplomata, membro fundador da Academia brasileira de
letras. Na sua autobiografia intelectual Minha formação (1900) reconheceu ter sido audacioso
e imaturo ao tentar demolir José de Alencar. Mas não podemos desprezar as polêmicas
alencarinas como luta pela consagração. Nabuco fora acusado de buscar audiência ao atacar
Alencar e este, queria manter a sua hegemonia no Rio de Janeiro, constantemente
desagradado por críticos de suas obras.
226

Pierre Bourdieu nos ensina que


Uma das apostas centrais das rivalidades literárias e o monopólio da legitimidade
literária, ou seja, entre outras coisas, o monopólio do poder de dizer com autoridade
quem está autorizado a dizer-se escritor (etc.) ou mesmo a dizer quem e escritor e
quem tem autoridade para dizer quem e escritor; ou, se se preferir, o monopólio do
poder de consagração dos produtores ou dos produtos. Mais precisamente, a luta
entre os ocupantes dos dois polos opostos do campo de produção cultural tem como
aposta o monopólio da imposição da definição legitima do escritor, e é
compreensível que ela se organize em torno da oposição entre a autonomia e a
heteronomia. (1996, p. 253).

Alencar lutava por sua manutenção no campo literário carioca, tarefa difícil ao
longo dos anos. Seus romances eram bastante populares no público médio brasileiro, contudo
despertavam opiniões adversas entre os críticos e profissionais. Ele ganhou notoriedade, pois
confrontou Magalhães e seu Mecenas, Pedro II, ao defender um projeto estético para o Brasil,
rompendo a barreira e entrando com impetuosidade no campo literário. E colocou o seu
projeto em prática, descrendo dezenas de livros, sem medo de ousar, aos poucos construindo
uma linguagem própria, tentando traçar um extenso panorama cultural do país. Além do
trabalho literário, era preciso legitimar a sua missão por meio dos jornais. Na última grande
polêmica literária contra Joaquim Nabuco, já estava dando sinais do ‘envelhecimento’ do
escritor, saindo do protagonismo das letras nacionais.
A batalha em atingir o sucesso literário e mantê-lo é árdua, como nos diz Brito
Broca
a glória literária em si mesma não ofereceria nenhuma vantagem econômica nesse
Brasil remoto. Antes de tudo, para preciso viver, e os que, à semelhança de Manuel
Antônio de Almeida e de Alencar, faziam um curso superior, -o primeiro, médico, o
segundo, bacharel – tinham motivos par aspiraras altas posições. Daí a necessidade
de separar a literatura da vida civil, principalmente quando se tratava de gêneros
menos nobres, como o romance. Por certo, as aspirações literárias de um Alencar
seriam bem grandes; mas no momento em que ele se estava iniciando na advocacia,
visava uma cadeira no Parlamento, e quiçá poder, a cautela impunha o anonimato,
mesmo para um best-seller como o Guarani (1957. p. 105).

A atividade literária e a ocupação profissional eram distintas, geralmente, como


mencionou Broca, os escritores bacharéis buscavam cargos públicos. A literatura era uma
atividade marginal que não proporcionava gozo material.
Nas últimas décadas do século XX, multiplicam-se editoras e jornais pelo país,
com a maior concentração no Rio de Janeiro. Muitos escritores da geração posterior ao
romantismo, como Olavo Bilac, Artur e Aluísio de Azevedo, Guimarães Passos já
trabalhavam na imprensa e muito de seus prestígios literários vem de sua atuação nos jornais.
227

Os tempos eram outros e os escritores “querem, antes de tudo, vencer nas letras,
porque, bem ou mal, o jornalismo e a literatura lhes proporcionam recursos para não
morrerem de fome” (idem p. 106).

3.8.4 Silvio Romero: o crítico-gladiador do Norte

Como já tratamos as teorias críticas e historiográficas de Sílvio Romero no


segundo capítulo dessa pesquisa, enfocaremos a face polemista desse pensador. Araripe
Júnior, em uma série de artigos para a Revista Brasileira, foi o primeiro autor a traçar um
perfil biográfico de Romero enfatizando o seu caráter polemista.
Quando, em 188l apareceu no Rio de Janeiro o autor da História da Literatura
Brasileira, a avaliar pelas antipatias que contra ele se levantavam, tanto entre moços
como entre velhos homens de letras, dir-se-ia que uma cascavel, vinda dos sertões
de Sergipe, tinha-se emboscado à Rua do Ouvidor ameaçava a todo o mundo com a
violência de sua mortífera peçonha. Enganavam-se aqueles que isto supunham:
Sílvio Romero, longe de trazer essa enorme soma de veneno crotálico, chegava à
capital do Brasil ávido de boas impressões e cheio de amor pelas coisas pátrias. Um
elemento, contudo, lhe faltava, — e isto é bastante para explicar a grita que se
levantou então, — um elemento indispensável a todos aqueles que, propondo-se
uma propaganda difícil, são forçados a realizá-la rapidamente e entre gente
habituada aos requintes da vida incomparável das grandes capitais. Esse elemento é
a sagacidade ou a polidez artificial dos centros civilizados, e a que Schopenhauer se
referia, dizendo que, sem ela, os homens se entredevorariam. Sílvio Romero não a
possuía. Apresentando-se na arena nu, como um atleta antigo, e com os seus hábitos
de franqueza nortista, o crítico sergipano foi recebido à maneira de um bárbaro.
Pouco importava que esse bárbaro trouxesse um cérebro iluminada pelos focos
científicos do neocritícismo alemão. A dinâmica de suas ideias, a rudeza dos seus
argumentos, a negação peremptória de um regime literário extinto na Europa, não
podiam deixar de produzir, em seu espírito, indignações indefiníveis.
(ARARIPE JÚNIOR, Rev. Brás., 1-8-1898, p. 273-274).

Esse texto é uma das mais interessantes e engenhosas páginas de nossa crítica
literária. Há uma riqueza de comparações, ligadas à guerra para relacionar ao espírito de
combatividade de Romero142, como gladiador e bárbaro. Também há uma alusão, de cunho
naturalista, “cascavel de mortífera peçonha”. A serpente aparece aí pelo seu valor metafórico
de animal predador. Portanto, as imagens são: cascavel; atleta antigo; bárbaro; gladiador.
Araripe Jr. também tece, por meio de alguns adjetivos, uma dicotomia que
estabelece diversas polêmicas entre centro e periferia, quer dizer, entre intelectuais da
metrópole e do ‘norte’ do Brasil. Sílvio é descrito como uma ‘cascavel’ que vem dos sertões

142
Em outra passagem, Araripe Júnior busca inspiração na Idade Média para comparar a Romero: “Não permite
a sua índole franca e rude o uso de arma florentina. Se é agredido, defende-se a cacete, e não o aflige ver os
miolos do adversário espalhados pela arena ensanguentada. (p. 318).
228

de Sergipe, um ‘bárbaro nortista’, ou seja, um animal selvagem, um rude que chega ao Rio de
janeiro, o centro, cidade ‘civilizada’, onde impera a polidez artificial.
Em relação às metáforas de guerra, luta, conflito, que já discutimos com
Compagnon, o pesquisador paulista Roberto Ventura, enriquece a nossa discussão, nos
advertindo que
A abordagem da polémica com metáforas de guerra e luta aparece em Silvio Romero
e foi seguida por Araripe Júnior e por muitos de seus intérpretes, como Sylvio
Rabelo, Carlos Süssekind de Mendonça e Clovis Beviláqua. As metáforas de luta
proliferam sobretudo nas abordagens apologéticas em que o intelectual é valorizado
como herói em conflito com o mundo. A manutenção da linguagem de luta e
combate indica que muitos intérpretes se mantém no mesmo discurso metafórico e
em atitude combativa próxima a de Romero, o que impede a adoção de uma
perspectiva crítica em relação às polémicas. A linguagem da luta é parte do discurso
da polémica, em que se valorizam predicados como a ‘valentia’ e a ‘coragem’, parte
de um código de honra que exige a reparação direta das ofensas pessoais. A ciência
evolucionista, com ênfase na luta entre espécies, justificava a violência de tais
debates como necessária é propagação das novas ideias e ao aperfeiçoamento
cultural e social. Afinal, na ótica de Sílvio Romero e de seus contemporâneos, cabia
à polémica contribuir para o processo de seleção e depuração das obras e escritores,
lançados ao público na luta pela existência (1991, p. 80).

A interpretação de Ventura é importante para nos situarmos no contexto desse


debate, ao salientar que a imagem da polêmica como ‘guerra’ advêm da influência da retórica
jurídica e do darwinismo. Ele aponta que os interpretes das polêmicas também adotam essas
metáforas, mas é difícil fugir do próprio jargão dos polemistas, que viam a si mesmo como
guerreiros.
No livro em que estudou e atacou a obra de Machado de Assis143, Romero nos dá
dois importantes conceitos de polêmica como atividade intelectual
Não importa isto uma aprovação a certos absenteísmos muito do gosto dos ânimos
fracos, que entendem de salvaguardar a própria pureza, fugindo sistematicamente
das tentações. É proceder que nunca aplaudiremos. A virtude prova-se no meio da
luta. A sociedade não é um convento de monjas. Que grande mérito advém em não
se cobrir do pó a quem não sai à liça do combate e deixa-se tranquilamente ficar em
doce e sossegado aposento? Devemos todos, homens de letras ou não, interessar-nos
pelas pugnas e pelas dores da pátria (2002, p XI)144.

Nesse trecho, Romero conclama os homens de letras para lutar nas guerras
literárias em prol do aperfeiçoamento da pátria brasileira. Em outra parte, ele especifica que

143
Lançado em 1897, Machado de Assis - Estudo Comparativo de Literatura Brasileira, concomitantemente a
eleição do autor de Dom Casmurro como presidente da Academia brasileira de letras, foi a tentativa de Romero
de destruir a reputação do escritor apontando a ausência de nacionalismo e da incapacidade de acompanhar o
ritmo das ideias modernas. Segundo Antônio Cândido (1988), e uma “verdadeira catástrofe do ponto de vista
crítico”, em que glorifica Tobias Barreto, segundo Romero, em tudo “superior a Machado de Assis”.
144
ROMERO, Sílvio. Machado de Assis – estudo comparativo de literatura brasileira [1897]. In: ____. Autores
Brasileiros. Luiz Antônio Barreto (org.). Rio de Janeiro: Imago Editora; Aracajú: Universidade Federal de
Sergipe, 2002, (edição comemorativa).
229

na arena das lutas nacionais, nesse tumultuar pela fama, pela glória nas letras, tive a
leviandade de tomas em meus ombros, que, ai de mim! não são dos mais robustos, o
tríplice encargo de me defender, advogar a escola do Recife, e pugnar
nomeadamente pela justiça a que tem direito o seu chefe, o poeta dos Dias e as
Noites, o jurista dos Menores e Loucos, o filósofo e crítico dos Estudos Alemães
(idem, 2002, p. 187).

Na ‘arena de lutas’, que interpretamos como o campo literário, ele relaciona a sua
atividade beligerante com a busca pela glória literária. Ele é o porta-voz, advogado e guarda-
costas da Escola de Recife e de seu corifeu, Tobias Barreto. Não se situa apenas como
guerreiro, mas como o portador da justiça. Ao interpretar o conflito entre o indivíduo e a
sociedade, a polêmica serviria como instrumento de evolução social.
No entanto, Romero não era um desconhecido no Rio de Janeiro. Em 1875, na
defesa de sua tese de doutorado em ciências jurídicas e sociais, na Faculdade de Direito do
Recife, constituiu um rito de iniciação para a publicidade de sua carreira intelectual, ao
abandonar a sessão, declarando a morte da metafísica e tratando os componentes da banca
como ineptos e estúpidos. Essa atitude polêmica foi amplamente comentada nos círculos
letrados do Rio de Janeiro.
Apesar de forjar a imagem de injustiçado e independente, Ventura nos alerta que
Romero não
não escapava aos valores clãnicos e oligárquicos criticados. Sua oposição à
“panelinha” fluminense se tornou uma disputa entre grupos, em que a Escola do
Recife contestava a influência dos escritores da Livraria Garnier e da Rua do
Ouvidor, reunidos em tomo de Machado de Assis e José Veríssimo. Em sua primeira
obra, A filosofia no Brasil (1878), Sílvio já declarara sua oposição ao Rio de Janeiro
e propusera uma “cruzada santa” contra a Corte, cuja “aura mórbida e corrupta”
sufocaria as livres aspirações das províncias, sobretudo as do Norte". A abordagem
da obra de Machado se converte no confronto entre o grupo fluminense e o
movimento do Recife, que Carlos de Laet chamou, com malícia, de “escola tento-
sergipana", em alusão ao germanismo cultural e a naturalidade de seus líderes.
Romero contra-atacou e apelidou os escritores do Rio de Janeiro de “escola galo-
fluminense", adepta do francesismo (1991, p. 103).

No trecho, observamos uma síntese das lutas que Sílvio Romero travou para se
legitimar como intelectual no Rio de Janeiro, desde que chegou à capital, na década de 1870.
Na década seguinte, já havia publicado obras de poesia, filosofia e ensaios jurídicos, começou
a tecer seus pontos de vista sobre a poesia, filosofia, folclore e etnologia brasileira. Com a
publicação de História da literatura brasileira, em 1888, a sua busca por legitimação se
amplia, tornando-se uma figura dominante da cena intelectual e política do Rio. Uma vez
integrado na elite carioca, ele confronta com golpes de clava com os maiores pensadores
brasileiros e portugueses do período.
230

Posteriormente, em Doutrina contra Doutrina (1894), tem como alvo de seus


golpes o positivismo, distanciando-se do movimento que o influenciou e realiza a apologia de
Herbert Spencer. Em A pátria portuguesa (1906) e A América Latina (1907), ele refuta as
posições políticas e literárias de Teófilo Braga e Manoel Bonfim. Em Zeverissimações Ineptas
da Crítica, desabafos e repulsas (1907-1909) e Minhas Contradições, são as respostas
violentas aos críticos José Veríssimo e Laudelino Freyre.
A atitude polêmica de Sílvio Romero foi constante em sua jornada intelectual e
reflete os arranjos específicos para ter reconhecida a sua "autoridade" intelectual, além da
glorificação do grupo de Recife, tendo Tobias Barreto o herói e o messias das letras do Brasil.
Um grande exemplo de confronto que marcou a história da crítica no Brasil, ocorreu contra
José Veríssimo.
Na Revista Brasileira, José Veríssimo escreveu uma resenha acerca da obra A
História da Literatura Brasileira, expondo a sua divergência em relação ao conceito amplo e
sociológico de literatura utilizada pelo crítico sergipano.
Após a publicação do artigo, Romero se sentiu ofendido e reagiu violentamente
aos comentários feitos por Veríssimo, replicando no livro Compêndio de História da
Literatura Brasileira (1906).
No ano seguinte, José Veríssimo responde através do artigo “Sobre alguns
conceitos do Sr. Sílvio Romero”, que foi estampado no livro O que é literatura?
A polêmica tem principalmente um estímulo que me falta, a vaidade, e é por sua
própria natureza, em que dominam as inspirações da vaidade e as más paixões que
esta alimenta e acoroçoa, o mais irracional, o mais defeituoso, o mais imoral dos
recursos de comunicação de idéias, que deve ser o único objetivo do escritor. De há
muito prefiro a simples e calma exposição delas à sua discussão acalorada,
convencido como estou de que a idéia é uma força que terá sempre em tempo e
ocasião o seu efeito útil, sem necessidade de ser afirmada a berros, gestos
descompostos, com vozes de clamor e reclamo ou com descompassada gritaria com
que vendilhões ou regateiras apregoam as suas mercancias ou se disputam a
freguesia. A gloríola de fazer ruído e atrair a atenção dos basbaques me não seduz,
como me não faz a mínima inveja a reputação dos polemistas e mestres na arte da
descompostura e da injúria, em que por via de regra resulta a nossa polêmica. Arte,
aliás, fácil, para a qual pouco mais se requer que desplante, voz forte e má criação.
Reconheço que tudo isto me falta (VERÍSSIMO, 2001, p. 237-238)

Veríssimo se contrapõe veementemente contra as atitudes polêmicas de Romero,


taxando de irracionalidades e incivilidades, caracteres que não deveriam fazer parte da índole
de um crítico literário.
Romero, extremamente zangado e com a reputação ferida, escreve
Zeverissimações ineptas da crítica, publicada em 1909, em que usa apelidos e epítetos
sarcásticos para devastar a imagem de José Veríssimo, perante a opinião pública. Ele constrói
231

um ethos que adota a luta justa como a verdadeira missão de um escritor. E fica evidente que
ele assevera ser o portador da justiça.
Romero explora a origem “nortista” de Veríssimo para construir epítetos
depreciativos, relacionados a sua região, tais como “criticalho paraense” (p. 10), “caboclo
paraense” (p.12), “ilustre emigrado” (p. 13), “marajoara atucanado” (p. 53), “pescador da
Amazonia” (p. 25) e “pescador e seringueiro” (p. 114). No título e no restante do livro, cria
um neologismo zéverissimações, como sinônimo de má crítica, de asneiras, de opinião
vendida.
De acordo com Amossy, esse é um caso típico de violência verbal por meio do
argumento denominado ad hominem, em que se ataca a pessoa do adversário em vez de se
atacar sua tese A principal acusação é a aproximação dele com os medalhões literários
O sr. José Veríssimo é um homem hábil, um indivíduo jeitoso. Possui, n'este
particular, uma finura capaz de escapar ao geral do público, mas patente aos olhos
adestrados do psicólogo. Seu renome e sua posição são uma resultante, um tecido
manipulado por essa discreta diplomacia que, fingindo sobranceira e indiferença,
afetando desdém e despreocupação, sabe pretender, sem o mostrar, apetecer
negaceando, adquirir como por acaso, por coincidência, fortuitamente,
inesperadamente. [...] A primeira d'elas foi o jeitinho manhoso com que se
aproximou e se fez camarada de todos os medalhões literários, principalmente os
que aluavam às prosápias letradas certa influência política e social [...]Com os
medalhões fundou revistas, ajudou a formar academias, fez círculos de palestras
[...]Escragnolle Taunay, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa (este meio arredio, mas
muito procurado e afagado), Machado de Assis, Lúcio de Mendonça, Ferreira de
Araújo, Araripe Júnior, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Arthur de Azevedo,
Medeiros e Albuquerque. eram os principais (ROMERO, 1909, p.11).

Romero interpreta o Rio de Janeiro como uma metrópole repleta de “panelinhas”.


As marcas da violência verbal são observadas no uso dos adjetivos, nas comparações, nas
alusões depreciativas, frequentemente atrelados ao pathos do enunciador. A agressividade
ocorre pelo fato de Romero, em seu texto, parecer ser “agitado por sentimentos fortes
suscitados pelo Oponente e dirigidos contra ele. Essa emoção se traduz no plano lexical ou
nas exclamações, nas repetições fáticas, no ritmo” (Amossy, 2017).
A revolta de Sílvio nasce, pois declara que veio ao Rio para lutar e no para
cortejar os medalhões. Na visão dele, Veríssimo só atingiu prestígio porque foi bajulador,
enquanto ele era um “revoltado contra a sandice letrada, a tendência adulatória de certos
presumidos, a falsa sabedorrência de figurões de palha” (1909, p. 55). É um argumento
altamente subjetivo, deveras parcial em que tenta demonizar Veríssimo, acusando de ter
absolutamente interesses pessoais, planos secretos. Enquanto Romero se descreve como o
portador da justiça, numa cruzada santa, Veríssimo seria a incorporação do mal.
232

O crítico paraense encarnava oficialismo, a falsa polidez, a ‘alienação artística’,


tudo que Romero combatia, assim como os círculos que frequentava e as suas sociabilidades
literárias.
Roberto Ventura salienta que
A Academia Brasileira de Letras foi fundada por iniciativa do grupo que se reunia
na Revista Brasileira, da qual Veríssimo era diretor, para tomar chá e debater temas
estéticos e literários, sem o envolvimento de questões políticas. Os acadêmicos
buscavam o reconhecimento da criação literária e adotavam certa distância entre a
sociedade e a sua própria esfera, mas não mais aceitavam a marginalidade, o
patronato ou o engajamento. Sob a presidência de Machado de Assis, a Academia se
tornou um salão de bom gosto, reunião de escritores com hábitos sóbrios, que não
incluía combatentes raivosos como Romero (1991).

A ABL, de certa forma, marca o declínio da “Geração de 1870” e sua índole de


engajamento e combate. Sílvio Romero ainda fomentava os ideais dessa geração e buscava
mudanças, soluções para as contradições da cultura brasileira, assim como o seu
aperfeiçoamento e sua equiparação com a civilização europeia. A guerra de Romero contra os
bacharéis que gravitavam o Rio de janeiro, de certo modo, é uma guerra em busca da glória, o
kleos literário, para evitar a morte simbólica e social do escritor.
Após a discussão acerca de algumas polêmicas célebres ocorridas na França, em
Portugal e no Brasil, a partir da perspectiva de Dominique Maingueneau, entendemos que a
polêmica nasce num campo discursivo saturado por outros discursos em que uma voz será
eleita como alvo. Ou seja, todo o discurso é discurso contra. A ciência é construída contra
uma doxa anterior, o mesmo deve ser dito do discurso crítico desenovista, pelo seu intuito de
alcançar a verdade entra em tensão com discursos concorrentes. Nesse sentido, as
argumentações construídas são essencialmente refutativas. Na literatura, os poetas,
ficcionistas e críticos exercem a sua atividade de escrever escrevendo contra. O autor clássico
escreve contra o autor diz "barroco", o romântico versus o clássico etc. Cada um escreveu
descobrindo-se na rejeição dos modelos que lhe foram impostos.
Além disso, porque é intrinsecamente reflexiva, apesar de sua parte passional, a
polêmica é um lugar que pode possibilitar o desenvolvimento da crítica e da história literária,
pois coloca a literatura em debate e contribui para sua renovação.
233

4 ROUND - TODO ESCRITOR TEM OS SEUS ZOILOS

Após discutir algumas ideias em torno da polêmica como exercício de combate


crítico, investigaremos como Rodolfo Teófilo se envolveu em controvérsias com escritores
cearenses e de outros estados, a fim de esmiuçar as particularidades da recepção de seus
romances na imprensa cearense, aprofundar o estudo de sua missão intelectual e literária e
analisar alguns de seus mecanismos retóricos de ataque e de defesa. Realizaremos um estudo
comparativo entre os artigos “A normalista” e “Cartas literárias”, publicados no periódico O
pão (1895), e depois, publicados no livro Os meus zoilos (1924), junto com outros artigos.
Esses textos de Rodolfo Teófilo serão comparados com os textos de crítica e de polêmicas de
seus adversários literários, como os artigos do “Registro Literário”, assinado por Osório
Duque Estrada, no jornal O Correio da Manhã (1908), no Rio de Janeiro; das Cartas
Literárias (1895), de Adolfo Caminha; “Maria Ritta” (1899), resenha de José Rodrigues de
Carvalho, na Revista da Academia de Letras e o livro O Sr. Teófilo e a sua obra: estudo
crítico (1923), de Meton de Alencar, além de outros textos de inimigos políticos que usaram o
subterfúgio da análise literária para atacar o escritor. Procurarmos desenvolver uma
interpretação dos textos polêmicos de Rodolfo Teófilo, observando o seu caráter específico de
argumentação apaixonada, a qual tenta defender a sua verdade poética em detrimento da obra
de outro escritor.
Partindo do estudo comparativo das polêmicas literárias citadas, trabalharemos
com as seguintes problemáticas para nortear os nossos estudos: para Rodolfo Teófilo, a crítica
polêmica era apenas um meio de defesa de sua obra literária? O escritor demonstra, em suas
polêmicas, estar a par da crítica exercida por Sílvio Romero, José Veríssimo e Araripe Jr.
Júnior, considerando o último como o que mais se aproximava da crítica moderna. Para o
desenvolvimento de seu discurso crítico, mesmo com ressalvas, apoiou-se em algum dos
projetos críticos desses intelectuais ou seguiu um caminho particular? As polêmicas literárias
não foram exclusivas do Ceará.
Além do arcabouço teórico utilizado para discutir as singularidades dos textos de
polêmica, o seu caráter retórico, erístico, discursivo e historiográfico, para a análise dos textos
das polêmicas literárias de Rodolfo Teófilo e de seus adversários, trabalharemos com alguns
pontos da teoria da estética da recepção, proposta por Hans Robert Jauss, em História da
Literatura como Provocação à Ciência Literária (1994). Encaramos a polêmica como um
texto de recepção, ou seja, de leitura e de interpretação. No entanto, apresenta o caráter
específico de um texto argumentativo, em que tenta defender a sua verdade poética em
234

detrimento da obra de outro intelectual ou escritor. Visto que os textos de polêmicas que
estudaremos são, na maioria, de escritores, portanto, estamos diante de um fenômeno duplo:
de leitura e de escrita. Jauss oferece uma pertinente contribuição para essa pesquisa, pois nos
alerta que o estudo da história da literatura deve levar em conta a recepção. Sem refletir sobre
o modo de como livros foram lidos, avaliados e transmitidos, não saberemos o motivo de sua
permanência, qual o valor eles tinham na sua época e para a geração posterior e, atualmente,
para nós.
Outra adição valiosíssima para a nossa discussão, é a visão da literatura como
compromisso, de Jean Paul Sartre, em O que é a literatura? (1947) escrito após os horrores da
Segunda Grande Guerra. Ele descreve que os homens de letras no século XX foram atraídos
para o ativismo, como resultado de circunstâncias políticas e sociais que reavivaram a
memória do papel positivo desempenhado por eles no passado, durante os tempos
conturbados de nossa história (especialmente a Revolução Francesa), e que tornaram os seus
espíritos mais presentes por um ideal de ação e com a ilusão de eficácia imediata de que o
livro e a arte trazem, principalmente a liberdade.
E nessa vereda belicosa, continuam conosco Pierre Bourdieu, Dominique
Maingueneu, Marcelo Dascal, Ruth Amossy, Jacques Alkalai Wainberg, Roberto Ventura e
Antônio Candido
Como uma pesquisa de literatura comparada, restringimos a nossa análise apenas
às polemicas que tem como assunto a obra literária de Rodolfo Teófilo. Desde a publicação de
História das Secas no Ceará (1883), até o fim de sua vida, o escritor esteve envolvido em
controvérsias políticas, sendo a mais famosa, que percorreu a primeira década do século XX,
acerca da campanha de vacinação contra varíola, que foi vista como um ato de afronta contra
a Oligarquia Accioly. Foram centenas de críticas, pasquins, textos anônimos e pornográficos
para desmoralizar a reputação do sanitarista e de sua vacina antivariólica. Mas não
examinaremos essas verrinas e os textos de denúncias do farmacêutico, além de outras
polêmicas posteriores, pois são matérias para outras pesquisas e metodologias. Nosso foco são
os textos literários e as polêmicas como textos de recepção dialógicas e belicosas. Sobretudo,
privilegiaremos as polêmicas que tiveram como arenas os jornais cearenses e nacionais, pois
muitos livros dos autores alencarinos eram lidos e resenhados no Rio de Janeiro, Recife, etc.
A repercussão desses textos em Fortaleza caiu como bombas, como os textos de Adolfo
Caminha e Osório Duque Estrada, ocasionando réplicas e treplicas e entretendo os leitores.
Após esse breve aquecimento, chegou a hora de examinarmos os embates. Todo
cuidado é pouco porque as penas são afiadas como as línguas.
235

4. 1 Adentrando o campo de batalha

A leitura é o fundamento da crítica. Após algumas de páginas realizando um breve


estudo das polêmicas, chega o momento de investigarmos as controvérsias textuais de
Rodolfo Teófilo. O questionamento persiste e fechar em uma resposta seria empobrecedor: a
polêmica é crítica literária? A crítica parte de um sistema socio-comunicativo, do qual o
crítico é um leitor que examina uma obra de um escritor. Contudo,
fundada sobre um térreo permanentemente minado, a crítica tem que assumir uma
multiplicidade de perspectivas correlata àquelas modificações. Mais ainda: na
medida em que a leitura passa a existir sob o signo da pluralidade, por força da
diversificação dos textos, a crítica trilha necessariamente o caminho do pluralismo.
(BARBOSA, 1984, p. 7)145.

No rico pluralismo que é a crítica, o texto polêmico surge como uma modalidade
de leitura conflitiva. Não existe polêmica sem a leitura do outro. Observamos em variados
exemplos de embates entre escritores no século XIX, que a polêmica está relacionada para
aquilo que João Alexandre Barbosa denominou de “paixão interpretativa”, isto é, quando o
crítico passa ao lado da racionalidade e desbanca para o impressionismo crítico. A suma dessa
paixão paradoxal é a História da literatura brasileira (1888), de Sílvio Romero. Barbosa nos
esclarece que a leitura polêmica das obras literárias está articulada com as circunstâncias,
ocasionando uma tensão entre a forma e a História. Como observamos nos capítulos dois e
três dessa pesquisa, os críticos desenovistas alimentavam as suas análises com fatores
externos (socio-históricos), ou internos, as impressões pessoais e até tirar o foco do texto e
falar de si.
A polêmica ‘em si’ não constitui um gênero textual ou de crítica literária, mesmo
alguns críticos que se utilizaram da nomenclatura em seus textos como Frota Pessoa, Osório
Duque Estrada, Medeiros de Albuquerque etc. Não queremos deslegitimar como esses críticos
nomeavam seus textos, mas o discurso polêmico ou a polemicidade (Maingueneau, Amossy e
Dascal) apresenta características que não abrangem apenas algumas modalidades de texto, de
modo coeso e homogêneo.
A pesquisadora Sonia Valente Rodrigues nos diz que
A polémica configura-se como um espaço discursivo originado por um acto verbal
fundador de oposição/divergência: à palavra de alguém, um outro alguém diz não. O
espaço discursivo fundado com esse acto de oposição/divergência abre-se à
emergência de textos/discursos de vário formato, marcados, implícita ou
explicitamente, pela polemicidade. A polémica, no campo discursivo, toma a forma
de diferentes corpos textuais/discursivos que vão desde as produções discursivas que

145
BARBOSA, João Alexandre. In: Letras de hoje. Porto Alegre: PUCRS, V 17, setembro de 1984, p. 7.
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/17570/11299
236

integram uma macro-estrutura dialogal (troca verbal polémica) até às produções


discursivas monologais (texto de opinião, crónica, carta aberta, folheto, livro) (2005,
p. 863).

Observamos que a polêmica é um campo discursivo dialógico, portanto, campo


de conflitos ideológicos. A polemicidade abrange variados gêneros textuais. Algumas críticas
com intenção de examinar obras literárias, mesmo sem o afã de atacar os autores, despertaram
ódios e respostas polêmicas, como as apreciações de Machado de Assis acerca da obra poética
de Sílvio Romero e a resenha do romance Os Brilhantes, de José Veríssimo, que despertou o
desagravo de Rodolfo Teófilo e o fez colocar o intelectual paraense na sua lista de ‘zoilos’.
O termo ‘polêmica’ como adjetivo, a partir do que Sônia Valente Rodrigues nos
declarou pode ter dois sentidos: caracterizar a produção discursiva de uma pessoa, por
exemplo Sílvio Romero, Osório Duque Estrada e o próprio Rodolfo Teófilo e se constituir
como adjetivo para descrever um troca verbal entre dois ou mais textos. Exemplos históricos
de polêmicas: A querela entre os antigos e modernos, a Questão coimbrã. O embate entre
Adolfo Caminha e Rodolfo Teófilo foi uma ‘polêmica’, pois foi estabelecida pelo diálogo
entre variados textos, os romances A fome e A normalista, o texto da Revista Moderna e os
dois artigos de respostas estampadas no jornal O pão.
Rodolfo Teófilo poderia ficar em silêncio mediante aos ataques sofridos e as
críticas negativas em torno de seus livros, mas estaticidade não fazia parte de seu perfil. Para
se estabelecer como escritor, lutou contra a tradição literária de seu tempo, com o objetivo
“fotografar a nossa época, os costumes, índole e civilização do nosso povo” (1997. p. 116).
Percebemos que esse objetivo remete a uma visão iluminista do intelectual, com a
ambiciosa pretensão de civilizar os povos. Como intelectual, ele exerceu dois papéis: o do
cientista e o do literato. O seu engajamento social ocorreu no terreno sanitário e político e
sobretudo, o literário. Na vasta bibliográfica do autor, destaca-se o livro Meus zoilos (1924)
como um registro organizado de seus textos de polêmicas literárias, ao longo de sua carreira.
O adjetivo que qualifica seus adversários, assunto do livro, é bastante revelador de seu
conteúdo polêmico.
O termo ‘zoilo’, bastante usado em Portugal, refere-se a pessoas que praticam e
fazem juízos amargos e depreciativos acerca da obra literária de um escritor. Mas qual a
origem do termo?
237

Figura 7 - Fac-símile da capa da primeira e única edição de Meus Zoilos, 1924.

Zoilo146 (Zoilus, Ζωΐλος; 400-320 a.C.) foi um gramático, filosofo sofista grego,
da cidade de Anfípolis, (atualmente na Macedônia). De acordo com o arquiteto romano
Marcos Vitrúvio, autor da famosa obra De Architectura, Zoilo, ele viveu na época de
Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C.), por quem foi mandado ser apedrejado e crucificado, como
punição de suas críticas ao rei. Mesmo como aluno de Isócrates, escreveu contra o seu
professor, além de atacar Platão e Lísias. No entanto, o maior alvo de suas amarguras foi
Homero. É considerado o seu primeiro crítico, tanto no sentido positivo, quanto no negativo.
Em sua análise, mencionou veemente diversos erros de continuidade na narrativa, além de
desqualificar a representação dos deuses por Homero, devido à descrição de comportamentos
supostamente inapropriados. Devido às duras censuras ao poeta, principalmente ao caráter
fabuloso das epopeias, foi alcunhado de “Homeromastix” – o chicoteador de Homero. Ao
longo do tempo, a reputação dele fora colocada em descrédito, e por metonímia, o passou a
ser geralmente usado por um crítico rancoroso e maligno.
Nos tempos modernos, há inúmeros exemplos do uso do qualitativo zoilo como
mau crítico. No prefácio do primeiro volume de Dom Quixote, Cervantes se refere aos
possíveis críticos de seu livro como ‘zoilos’, com o sentido de ‘caluniadores’ e ‘maldizentes’.

146
In https://en.wikisource.org/wiki/1911_Encyclop%C3%A6dia_Britannica/Zo%C3%AFlus
238

Outro notório exemplo é do poeta português Bocage que utiliza o termo em


inúmeros versos de seus poemas: “Que falsa ideia, oh zoilos, vos ilude?/Furtais-me a paz?
Furtais-me a liberdade?/Fica-me a glória, fica-me a virtude” e [...] “Como hás-de, ó Zoilo,
eternizar meu nome,/Se os Fados permanência ao teu vedaram?”. O poeta de modo irônico
pergunta pelos seus ‘zoilos’ entendidos como empecilhos para a sua glorificação.
Rodolfo Teófilo nos demonstra, em seus textos, que a verdade e a justiça são
obtidas por meio de um grande esforço existencial e passional, porque “a missão de um
polemista é romper com o trivial. Tal tarefa é ameaçadora, pois desqualifica em certa medida
o equilíbrio existente [...] É o posicionamento estratégico do polemista no sistema que lhe
assegura a ousadia e a coragem que tal tarefa demanda” (WAINBERG, 2010, p. 68).
Ele age, antes e depois, coloca as suas ideias no papel, surpreende a todos, tanto
inimigos, quanto o público. Age na paratopia (MAINGUENEAU, 2001), nas zonas
fronteiriças, marginalmente, atiçando o poder e dando conhecimento e arbítrio de suas lutas
aos leitores
Ao estudarmos a história do Ceará, da segunda metade do século XIX às três
primeiras décadas do XX, encontraremos a figura destacada de Rodolfo Teófilo em diversos
movimentos e eventos históricos como militante “por ocasião das secas, na luta contra a
escravidão, no combate à varíola, atacando as tiranias políticas, esse homem frágil e pobre
aparecia sempre na vanguarda dos combatentes, com um destemor que surpreendia a todos”
(SALES, 2010, p. 139).
Antônio Sales utiliza diversas metáforas do jargão militar, tais como “luta”,
“combate”, “vanguarda”, “combatentes”, enfatiza a atuação de Rodolfo Teófilo nas tensões
contra os desmandos políticos (no caso, Governo Accioly) que não se restringiam em um
conflito individual, mas que reverberavam coletivamente. Atuação incansável, tanto
pragmática, quanto intelectual nas causas que considerava justa.
Ao construir a imagem de Rodolfo Teófilo, Antônio Sales enfatiza que
educado, como Dickens, na escola do sofrimento, sua alma se tornara como que uma
antena receptora das ondas de todos os padecimentos alheios. Menino pobre, ansioso
de conhecimentos, como empregado do comércio ao tempo em que essa profissão
era pouco superior à dos criados de servir, viu-se murado por toda a espécie de
dificuldades, e só uma vontade de ferro e uma fé inabalável no seu destino o fez
transpor essas barreiras, conseguindo fazer seus estudos preparatórios conquistar, na
Faculdade de Medicina da Bahia, o seu diploma de farmacêutico (2010, p. 140).

O testemunho do escritor nos releva que o farmacêutico era um homem pacato,


afetivo e inimigo da violência, contudo transformava-se num mosqueteiro para defender os
239

oprimidos e amparar os desvalidos. Parece-nos assaz idealista, mas centenas de documentos,


registros e testemunhos nos dão exemplos desse modus operandi.
O curso superior em Farmácia lhe forneceu o instrumental teórico necessário para
a sua atuação pública, como cientista, sanitarista e literato. O saber em forma de palavra era
manejado com destreza como arma para combater os seus algozes e para registrar suas
vivências e enfrentamentos. Maior parte de suas grandes lutas foi registrada em seus escritos,
tanto nos jornais, quanto nos livros que publicou. Vale Neto acentua que as “memórias de
Rodolfo Teófilo versam sobre os mais variados assuntos: política, costumes, saúde pública e
literatura, adensando e unindo sua biografia à própria produção escrita” e que o “caráter
militante desta memória escrita, na qual a força da letra não só perenizaria o relato, mas o
dotaria de poder, de capacidade de transformação social” (2006, p. 13-14).
Com o diploma, já ganharia prestígio na sociedade cearense, primeiro em
Pacatuba, onde teve a sua primeira farmácia, depois em Fortaleza, com a farmácia e a
pequena indústria, onde fabricava remédios, xaropes, soros e, depois o instituto vacinogênico.
Como destaca Montenegro, Rodolfo não “separa a inteligenza da práxis. Os seus
escritos, o seu ideário, contém células vivas de atividades a serem programadas, concitando
de imediato os leitores a uma tomada de posição face à conjuntura, aos episódios” (1996. p.
94). Ou seja, como homem de ação, a sua prática científica-sanitária estava associada à sua
prática intelectual.
E ao falarmos de Teófilo como intelectual, precisamos discutir a especificidade
desse termo no contexto da passagem do século dezenove ao vinte e a que tipo de pessoa se
refere.
A ideia de intelectual originou-se na França, na época do caso Dreyfus,
particularmente com a publicação do famoso "J'accuse", de Emile Zola. O escritor naturalista,
em virtude dessa questão, é, ao menos, um dos primeiros a ser definido como tal. Voltaire, do
caso Jean Calas, assumiu esse papel publicando seu Tratado sobre a tolerância147 (1763).
Voltando ao Caso Dreyfus, ele causou impacto em vários setores públicos e
intelectuais, não só na França, mas em toda Europa. O termo ‘intelectual’ de adjetivo se
configurou como substantivo ao identificar indivíduos ou grupos profissionais (escritores,

147
O Tratado sobre a tolerância (1763) é uma obra escrita por Voltaire depois da condenação à morte de Jean
Calas, em 1762, acusado injustamente pela morte de seu filho. A acusação ocorre devido ao preconceito contra o
comerciante que professava a fé protestante, no contexto das guerras religiosas na França. Voltaire escreveu um
eloquente grito de protesto contra a intolerância e o fatalismo religioso por parte dos católicos franceses,
sobretudo, dos dirigentes jesuítas. Depois da repercussão do livro, o processo é reaberto e Jean Calas e sua
família foram reabilitados.
240

jornalistas, cientistas, estudantes, artistas, etc.). Na virada do século XIX para o XX, o termo
ganhou força com o chamado "partido dos Intelectuais", criado na França para defender a
inocência do capitão judeu Alfred Dreyfus e exigir níveis mais elevados de justiça e
moralidade pública e nacional.
Assim, embora não se queira reivindicar uma data ou um acontecimento que
esteja na origem do nascimento dos "intelectuais", não é menos verdade que a intervenção dos
intelectuais franceses no caso Dreyfus acelerou a transformação do conceito. Portanto,
embora seja verdade que o caso Dreyfus possa ser considerado como um protótipo do conflito
político-ideológico francês, o debate na França sobre esse assunto foi imediatamente ecoado
por todo o mundo ocidental.
O intelectual é um pensador que intervém no debate político ou público para
tomar posição, defender seus valores ou propor soluções para os problemas encontrados,
conforme descrito pelos historiadores Pascal Ory e Jean-François Sirinelli, para os quais a
categoria é "um homem cultural, criador ou mediador, colocado em situação de político,
produtor ou consumidor de ideologia" (1986), portanto não é um simples profissional do
pensamento, um técnico do saber, é um ator que intervém publicamente.
Essa tradição do pensador que se engaja na vida pública tornou-se expressiva na
França e muitos pensadores atuaram no debate público. O intelectual também se envolve em
questões sem se preocupar se sua reputação pudesse ser danificada. Albert Camus é um
exemplo. Ele se engajou profundamente no processo de independência da Argélia (1954-
1962), defendendo uma posição corajosa que o fez ganhar inimigos entre os franceses e entre
os argelinos. Então, ele tentou defender seus valores e ideias, tal como a justiça, em um
acalorado debate político.
Rodolfo Teófilo, como um homem de atuação pública, como nos exemplificou a
imagem descrita por Antônio Sales, é um exemplo de intelectual cearense que se engajou em
diversas causas, inclusive a literatura. Como herdeiro do iluminismo, nutriu uma poderosa fé
no poder da razão humana, materializada na ciência. Como intelectual, o seu nome começou a
ganhar notoriedade com a publicação de seu primeiro livro científico-historiográfico sobre as
secas e a sua participação no movimento abolicionista.
Como tratamos, de maneira pormenorizada, sobre alguns pontos da campanha
abolicionista cearense no primeiro capítulo dessa pesquisa, focaremos a bibliografia
historiográfica de Teófilo que, desde a primeira obra, suscita polêmicas.
Em 1876, de volta ao Ceará após cursar farmácia na Bahia, monta uma botica,
onde fabrica e comercializa remédios e xaropes. Um evento que marcou agudamente o
241

farmacêutico e o povo cearense foi a grande seca de 1877 a 1879, que secou açudes e rios,
destruindo plantações, reduzindo a vegetação a um estado desértico. Assolada pela fome, pela
peste e pela falta de recursos, milhares de sertanejos migram maciçamente para Fortaleza.
Rodolfo Teófilo testemunhou o terrível estado de miséria a que as pessoas ficaram reduzidas e
as centenas de mortes devido à epidemia de varíola.
Inconformado com a situação, percorre toda a cidade vacinando e cuidando dos
doentes, a maioria, pobres desassistidos pelo poder público. Essa não foi a primeira estiagem
que presenciara, pois, décadas mais tarde, declara que foi “testemunha ocular de todas as
secas que tem havido no Ceará, nesses últimos cinquenta anos” (1904, p. 155). De acordo
com José Ramos Tinhorão “a contemplação desses horrores teve para ele uma dupla
influência: criou-o escritor e despertou-lhe a ideia de combater a varíola, cujas devastações
transformaram Fortaleza num círculo dantesco” (1966).
Após a atenuação da seca, Rodolfo Teófilo, no começo da década de 1880,
“engajou-se decisivamente nas lutas políticas, nos movimentos antiescravagistas. Não era do
seu temperamento presenciar acontecimentos e, sim, deles participar, desencadeá-los.
Comandou em Pacatuba, Maranguape e Maracanaú, a luta pela libertação dos negros”
(Sombra, 1999, p. 63). Escreve vários textos para o jornal O libertador, atuando ao lado de
José Liberato Barroso, General Tibúrcio, Justiniano de Serpa, Alvaro Gurgel de Alencar,
Frederico Borges. Duas associações se destacaram nesse período: a Sociedade Cearense
Libertadora e o Centro Abolicionista.
Waldy Sombra, em sua biografia sobre Rodolfo Teófilo, publica uma carta de 7
de maio de 1919, endereçada a sobrinha Julinha Galeno de Sant'Ana, em que, ao relatar a sua
atuação na campanha abolicionista, enfatiza que
Não fui um general, apenas um simples soldado. Só entrei em um combate, em
Pacatuba, contra o baluarte do Centro da Legalidade. Foi um loucura. Um mês de
luta. Eu e minha mulher, tão abolicionista quanto eu, fomos para Pacatuba,
abandonando nossos interesses em Fortaleza, e ali ficamos até a vitória. O que foi
esta renhida peleja está escrito no meu livro a publicar Abolição no Ceará. (Apud
SOMBRA, 1997, p. 69).

No trecho, observamos que ele se compara a um soldado que estava em uma


guerra. A comparação realmente é literal, a campanha foi uma batalha política e social,
contudo, as metáforas de guerra, ao longo de sua carreira, serão empregadas também para as
atividades intelectuais. Sobre os serviços prestados como farmacêutico e humanitarista,
recebe a comenda do Oficialato da Rosa a mando do imperador Pedro II.
242

O jornal O libertador, órgão da Sociedade Cearense Libertadora, foi um dos


principais veículos da Campanha Abolicionista no Ceará, e após o fim do trabalho cativo no
estado, continuou ativo até o ano de 1892.
Em 1884, o jornal trazia o anúncio da publicação e venda de um livro de um de
seus colaboradores:
História da Seca do Ceara, a sair do prelo, ilustrado com finíssimas gravuras,
contendo mais de 500 páginas”. Para adquirir a obra, o comprador retiraria de sua
algibeira a quantia de 5$000 réis e teria que se apressar porque as assinaturas seriam
recebidas somente “até o final do mês na Farmácia de Rodolpho Teófilo & Cia”.
(In: Libertador, Fortaleza, 14 mar. 1884, ano 4, nº 58, p. 4).

Um mês depois, outro anúncio é veiculado pelo mesmo periódico

Descrição completa do terrível flagelo da seca com todos os seus horrores,


assassinatos, roubos, salteadores, pestes, crimes, fatos horrendos de antropofagia,
mortes pela fome, vítimas de morcegos, crianças devoradas vivas por urubus, enfim,
uma narrativa completa e minuciosa dos fatos que se deram durante três longos anos
de calamidade. As gravuras representam retirantes, verdadeiros esqueletos animados
no estado de inanição em que chegaram à capital. (In: O libertador, Nº 83, 28 de
abril de 1884).

O texto acima, com uma sinopse bastante chamativa para os fatos mais horrendos
e extraordinários que ocorreram durante o flagelo. O livro promete ser um relato apegado à
verdade, pois é ‘minucioso’ e ‘completo’, sobretudo, nas descrições das cenas fortes, com o
intuito de chocar os leitores em prol da conscientização.
O livro representa a estreia do autor como historiador e cientista das secas e serve
como porta de entrada no concorrido e restrito campo do saber da província cearense. É
evidente que o livro é polêmico, pois narra diversas secas na história cearense, porém
denuncia que a maior parte da catástrofe de morte e miséria que assola o sertão e a capital é
oriunda do descaso e do despreparo do poder público.
Como ressaltamos, o nosso foco são as polêmicas literárias, mas esse livro
ocasiona uma grande repercussão em torno da figura de Teófilo, positiva e negativa, trazendo-
lhes inúmeros adversários. Ele relata que um ‘papão’148 (que ele não menciona o nome) lhe
atacou por censurar José de Alencar, que na época da seca, meses antes de sua morte, era
deputado que representava o Ceará na capital do Império.
Quando publiquei a História da seca do Ceará, de 1877 a 1888 me saiu ao encontro
um dos nossos cronistas porque eu tivera o atrevimento de censurar José de Alencar,
uma glória nacional, por ter este na Câmara como nosso deputado, afirmado, com o
prestigio de seu nome, que em sua província os invernos, as vezes, começavam em
Junho, estava afirmativa nos fez muito mal. Estávamos na seca de 1877, a capital
cheia de retirantes e o governo do Império, à vista do que afirmara Alencar, fazia

148
Sobre esse epíteto, explicaremos em páginas posteriores.
243

ouvidos de mercador aos pedidos de socorro que lhe enviava o presidente da


província, o conselheiro Caetano Estelita (1924, p. 116).

O livro teve repercussão no Rio e Rodolfo Teófilo teve a impetuosidade de


censurar publicamente José de Alencar149, que, segundo o autor, ignorava completamente a
situação da seca no Ceará. Por fidelidade à verdade, o autor não se intimidava para criticar
Alencar, acusando-o de ‘leviano’, ‘irresponsável’, ‘alienado’, ‘ignorante em relação às secas’
e ‘seduzido pela política’.
Do ponto de vista historiográfico e científico, o livro de Teófilo teve como
precursores as obras Ensaio estatístico da província do Ceará (1863-1864) e Memória sobre
o clima e secas do Ceará (1877), de Thomaz Pompeu Brasil. Os textos que formou o segundo
livro citado, saíram na época da seca, pelo jornal O Cearense.
Segundo Isac Ferreira Neto
Os livros de Pompeu possuíam uma forte orientação científica para os padrões da
época, sendo pioneiros na análise detalhada das condições de clima e pluviosidade
do Ceará como índices de referência sobre as secas. Mesmo admitindo a influência
da vegetação nas ocorrências das secas, o senador responsabilizava diretamente as
correntes aéreas pela ocorrência das estiagens, defendia a açudagem e a construção
de estradas – abordagem assumida posteriormente por Teófilo em seus livros (2006,
p. 28-29).
No livro de estreia, observamos traços do método de escrita de Rodolfo Teófilo,
que marca a sua produção cientifica historiográfica: o rigor e precisão científica, a
investigação e citação de variados documentos para embasar os seus argumentos e o valor
testemunhal que se agrega como valor de verdade. Criticou José de Alencar sobre os seus
parcos conhecimentos sobre a seca, sem não ter acompanhado nenhuma, diferente de Teófilo,
que desde os primeiros meses de vida até aquele período, testemunhou diversas estiagens,
atribuindo a si uma legitimidade no seu discurso.
Outro ponto ousado de Teófilo foi contrapor os intelectuais do Rio de Janeiro.
Sendo a cidade a sede do império, era gravitada por respeitáveis cientistas, como o Barão de
Capanema, do Instituto Politécnico, que fez parte da Comissão científica que passou pelo
Ceará entre 1859 e 1861. O nosso historiador não se intimidou perante os ‘sábios’
chancelados pelo campo do poder carioca para formular soluções contra as adversidades
provocadas pela seca.
Contudo

149
“José de Alencar levianamente afirmava uma inexatidão ao parlamento, deixava-se levar pela febre da
política, esquecendo-se do prestígio que tinha no país e da grande responsabilidade que sobre ele pesava como
representante de sua província, tratando de assunto tão grave. Despeitado talvez com a oposição, alucinado pela
discussão, José de Alencar asseverava ao país que os invernos do Ceará começavam às vezes em maio ou junho!
E nenhum dos representantes da província levantou-se para refutar asserção tão errônea e que tão fatal nos veio a
ser!” (TEÓFILO, 1883, p. 96).
244

Capanema, ao contrário de Rodolfo Teófilo, era um crítico da açudagem (capaz de


alterar a salubridade e provocar epidemias, dizia ele) e defensor da frugalidade dos
hábitos para prevenir os efeitos das secas, acreditando que de janeiro a abril a natural
abundância das colheitas forneceria víveres para suportar a estiagem, defendendo
assim que os cearenses poderiam suportar as secas através do acúmulo de cereais e
da correta alimentação do gado (VALE NETO, 2006, p. 36).

Teófilo considerou esses argumentos falhos e medíocres e, como cientista, entra


no debate em torno das secas do Ceará por meio da refutabilidade. Marcelo Dascal nos alerta
que as controvérsias fazem parte da práxis da ciência, porque
elas são o "contexto dialógico" natural, no qual as teorias são elaboradas e onde seu
significado se cristaliza progressivamente. Além disso, o estudo das controvérsias
nos permitirá determinar empiricamente, por um lado, uma natureza precisa das
"crises" e "rupturas" que supostamente introduzem um elemento de racionalidade na
evolução da ciência[...] Em resumo: a ciência se manifesta em sua história como
uma sequência de controvérsias; estas não são, portanto, anomalias, mas o "estado
natural" da ciência (1995)150

A refutação realizada por Teófilo não era apenas um desejo de se expor, de


apontar a insolência contra os intelectuais da corte ou de orquestrar um mero conflito, é parte
do discurso polêmico, espaço onde a atividade crítica é exercida. A interpretação sobre as
soluções contra a seca é moldada de forma dialógica, colocando no jogo argumentativo os
saberes adquiridos na sua formação acadêmica, os critérios estabelecidos por Thomaz
Pompeu e a opinião de Capanema.
O historiador se contrapõe a Capanema, mesmo sendo um homem de notório
saber e de ter uma posição privilegiada na Corte, acusando-o de construir suas opiniões acerca
da seca sem o ‘conhecimento dos fatos’, baseados em ‘livros estrangeiros’ e de tratar o
assunto sem seriedade.
Com a repercussão de seu livro, ganhou visibilidade e adentrou, não apenas no
Ceará (que já estava se consolidando com a campanha abolicionista), mas no campo
intelectual nacional. Destacou-se como um cientista e historiador das secas que não tinha
receio de conflitar com ‘medalhões’ da corte. O início de sua consagração intelectual deu-se
quando foi convidado a ser sócio correspondente do instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, a maior instituição científica do Brasil, naquele período.
Ao longo da década de 1880, Rodolfo Teófilo foi atuante em Fortaleza, que já era
uma das principais cidades do nordeste, ao longo da metade do século XIX, acompanhou a
evolução da imprensa brasileira e teve uma agitada e intensa vida jornalística. Além de jornais
oficiais, panfletos políticos, revistas de notícias, pasquins, eram abundantes os periódicos

150
Dascal, Marcelo. “Epistemology, Controversies, and Pragmatics”. Tel Avi University, 1995.
Disponível em: https://www.tau.ac.il/humanities/philos/dascal/papers/dascal3.htm
245

literários e artísticos. O movimentado porto da cidade colaborou para essa agitação, pois era
uma ‘porta de entrada’ para livros, jornais e revistas do Brasil, da Europa, dos EUA. Além das
ideias, os jornais locais reproduziam as notícias dos periódicos da corte, ou traduziam notícias
dos jornais estrangeiros que chegavam, principalmente os franceses. Dos livros151 que
chegavam, tanto de Portugal, da Inglaterra, França, além de vendidos e lidos, eram
comentados e discutidos nos jornais.
É nesse contexto de agremiações e de jornais e revistas que aparecem com mais
vigor as apreciações e críticas literárias, que futuramente serão palcos das polêmicas em torno
de livros e poetas.
Uma década antes, uma das mais importantes agremiações (já discutida no
primeiro capítulo) foi a Academia Francesa (1873-1875). Os textos produzidos pelos seus
membros eram editados no jornal maçônico Fraternidade, fundado em 1873 por Tomas
Pompeu e Xilderico de Faria e também teve colaboração de João Brígido e Rocha Lima.
Inspirados pelas ideias positivistas, os acadêmicos criaram a Escola Popular, a qual eram
ministradas aulas gratuitas aos operários, a fim de desenvolver a sociedade cearense.
Do grupo de intelectuais, apenas o jovem Rocha Lima nos legou um livro com as
produções da Academia, editado postumamente em 1878: Crítica e literatura.
Um artigo que está no livro intitulado “Nosso jornalismo” fora publicado no
Jornal Cearense, em 10 de janeiro de 1876 e nos dá um importante testemunho daquele
período.
A nossa crítica, que apenas balbucia os primeiros monossílabos, ainda não volveu
um olhar sequer de compaixão para o jornalismo. A não ser uma apreciação justa e
profunda de um jovem ilustrado pensador, permanece fora da esfera crítica esse
produto tão especial da civilização moderna. Pensamos mesmo que inaugurar uma
crítica, que procure aquilatar o valor literário da imprensa política, além de estéril,
podia de alguma sorte, segundo sua maior ou menor influência, requintar o estilo e
perverter a intenção os políticos, esse diretores do momento presente, quase sempre
desprovidos de senso filosófico para os problemas do passado e sem previdência
para frustrar as tempestades que se condensam no horizonte do povir. Este sistema
de impressionar e arrastar os espíritos pelo magnetismo da frase converteu o
jornalismo e o parlamento franceses em um circo olímpico onde vão lutar os
gladiadores da palavra (ROCHA LIMA, 1968, p. 2).

Rocha Lima reclama da pobreza intelectual da província, que não é capaz de


suscitar jornalistas hábeis em crítica literária. É uma indignação, mas, nesse trecho, é uma

151
Em Fortaleza, entre a década de 1870 e 1890, o número de livrarias em funcionamento dobrou. Enquanto, em
1870, os estabelecimentos formais registrados nos almanaques do Ceará eram apenas dois (Livraria de Joaquim
José de Oliveira & Cia. E Livraria de João Luiz Rangel), nos anos de 1880 e 1890 esse número passava para
quatro (Livraria de Joaquim José de Oliveira & Cia., Libro-papelaria de Gualter R. Silva, Livraria de Satyro
Verçosa e Livraria Evangélica de De Lacy Wardlaw) (Silva, Ozângela de Arruda, 2009, p. 32)
246

visão permeada de idealismo e progressismo eurocêntrico, que não leva em consideração a


pobreza material da província e o desinteresse do governo em educar a maior parte da
população, que era analfabeta. Poucas pessoas tinham acesso à educação e Rocha Lima estava
reclamando da falta de críticos literários. Fortaleza estava radicalmente distante de ser uma
Paris. A imprensa que circulava na época se ocupava basicamente de política. O jornalista, se
quisesse obter prestígio, deveria jogar as regras do jogo político, cuja metáfora bélica é
empregada pelo pensador, que dialoga com a nossa pesquisa: o intelectual como um gladiador
da palavra.
Na década de 1880, os principais jornais eram o Pedro II, o Constituição, além da
existência de inúmeros outros jornais de variedades, revistas literárias, pasquins humorísticos
e folhetos.
O reduzido público leitor estava enfadado apenas de periódicos políticos e as
revistas literárias foram ganhando mais espaço. Do grupo de intelectuais, poetas e jornalistas
que participaram da campanha da abolição e que escreviam para o jornal O libertador
reuniram-se em torno de uma nova agremiação literária, descrita por Antônio Sales:
Uma jovialidade desempenada e encantadora aureolava o convívio dos rapazes entre
si e as suas relações com o público. Os gostos literários do grupo requeriam porém
uma arena mais particular e mais seleta, e assim fundou-se o Clube Literário, do
qual foi órgão a bela revista - A Quinzena. Virgílio Brígido, José Carlos Júnior,
Oliveira Paiva, Antônio Martins, Juvenal Galeno, Antônio Bezerra, Farias Brito, tais
eram as figuras congraçadas por João Lopes, cuja individualidade insinuante e
dominadora servia de eixo aos raios dessa brilhante roda. O bom gosto literário
desenvolveu-se e apurou-se notavelmente, e os contornos de um meio, já debuxados
pela Academia Francesa, mais nítidos se tornaram sobre o fundo inerte e vulgar da
vida provinciana. Além dos belos trabalhos que se encontram nas coleções desta
revista e daquele diário, publicaram-se então os Cantos modernos, de Farias Brito, a
Lira sertaneja do poeta popular piauiense H. de Castelo Branco, A afilhada,
romance de costumes cearenses por Oliveira Paiva. Embora publicado apenas no
rodapé do Libertador, destacamos este trabalho, por ser uma peça de maior fôlego, e
por encontrar-se nele a revelação flagrante de um delicado talento de observador e
de artista. (sic) (SALES, 1939).

Esse depoimento de Antônio Sales é muito importante para entendermos a


dinâmica da sociabilidade que reuniu essa nova agremiação. A maioria era de participantes do
movimento abolicionista, mas ansiavam por uma convivência com os objetivos literários,
vistos que os bacharéis, além de suas produções jornalísticas e políticas, também produziam
peças literárias. Sales usa outra metáfora bélica “arena” para se referir ao Clube literário e seu
órgão, A quinzena. Ressaltando o que já discutimos no terceiro capítulo sobre a opinião de
Roberto Ventura sobre as polêmicas, as imagens e símbolos de guerra partem dos próprios
intelectuais. Eles se viam como guerreiros e a sua labuta como uma batalha. Além de apontar
a importância de João Lopes e o senso de continuidade com as atividades da Academia
247

Francesa, Sales arrola alguns participantes do grupo e três livros publicados, sendo A
Afilhada, de Oliveira Paiva, o mais significativo para nós, pois o escritor o denomina de
“romance de costumes”, categoria que discutiremos adiante.
É por meio da revista A quinzena que Oliveira Paiva publica seus contos e vários
artigos noticiando e defendendo a estética naturalista e que Rodolfo Teófilo participou,
através das colunas “História natural” e “Ciências naturais”, alguns poemas e textos de caráter
didático, exaltando a ciência. Oficialmente, era a divulgação das ideias da estética realista-
naturalista em Fortaleza. Além de poemas nos jornais, o autor publica as seguintes obras de
caráter histórico e científico: Monografia do Mucunã (1888), Ciências naturais em contos
(1889), Curso elementar de história natural (1889).
Com mais experiência e com uma reputação se construindo como farmacêutico,
sanitarista, professor, industrial, abolicionista e historiador das secas, Teófilo conjectura
ambições mais desafiadoras.

4.2 A recepção do romance A Fome

Durante o ano de 1877, início da seca, Rodolfo Teófilo tinha 24 anos. Quando
publica o seu primeiro romance, A fome, já contava com 46 anos, distante 22 anos dos
terríveis acontecimentos. Os três anos de martírio, de 1877 a 1879 foram narrados pelo autor
na obra História da seca do Ceará (1883). Como a seca e seus problemas são endêmicos em
nosso estado, para ampliar a denúncia em torno desse assunto, Rodolfo escreve o já citado
romance.
No jornal O Cearense, o livro é anunciado
A fome: o editor Gualter R. Silva, estabelecido com a livraria e papelaria nesta
capital, ofereceu-nos um exemplar de mais um trabalho do Sr. Rodolfo Teófilo.
Intitula-se A fome e te por objeto descrever algumas das tristes cenas que costumam
dar-se por ocasião das secas que periodicamente flagelam este Estado. É precedido
de um prefácio, assinado pelo Dr. Virgílio Brígido em que é biografado o autor da
obra que temo em mãos. A obra divide-se em quatro capítulos em que são narrados
com precisão e verdade diversas cenas da seca de 77, observadas pelo autor que as
descreve em linguagem fluente e correta. Agradecemos a oferta. (O cearense, Nº
271, 17 de dezembro de 1890).

Pelo texto percebemos que Rodolfo não é mais tratado como um estreante das
letras. Descreve em poucas linhas o enredo do livro e o nome do prefaciador, Dr. Virgílio
Brígido, recurso muito comum entre os escritores em que solicitam indivíduos com certo
248

prestígio social e cultural para escrever prefácios e orelhas, um modo de legitimar a autoria
da obra. Detalhe é que o anúncio declara que o livro fora escrito com “precisão e verdade”,
frutos da observação de Teófilo, características do método científico, mais adequado a uma
obra historiográfica, mas que foi adotado em seu primeiro ambicioso projeto ficcional.
Também é mencionado que sua linguagem é ‘fluente e correta’, atributos que serão
questionados por seus zoilos.
No dia 20 de dezembro, pelo mesmo jornal, o próprio dono da Editora, o Gualter
R. Silva, publica um grande texto que ocupa toda a página lateral, para anunciar o livro de
Teófilo: “Acaba de sair de uma das melhores oficinas do Porto, este precioso livro. É um
volume de mais de quinhentas páginas, bom tipo, bom papel, servindo-lhe de capa um
excelente cromo representando um dos quadros da seca” (O cearense, Nº 274, 20 de
dezembro de 1890, p. 3). Percebemos que a publicação do livro fora um grande investimento,
impresso em Portugal, artifício muito comum entre os autores cearenses no final do século
XIX.
No próprio anúncio, ele cita integralmente um texto de um dos redatores do jornal
Gazeta do norte
Vai entrar para o prelo um belo livro, um romance, devido à pena do Sr. Rodolfo
Teófilo. A rápida leitura que do manuscrito fizemos, convenceu-nos de que irá
produzir a sensação, não somente no mundo literário, como entre a gente que se
ocupa de remediar os males deste desgraçado Ceará. É um livro de imaginação, é
verdade, mas no qual, rigorosamente, não entrou a imaginação senão para enfeixar
num molho racional e lógico a longa série de fatos, de episódios dolorosos e
tremendos de miséria e de prostituição, que todo mundo viu, de que todo mundo foi
testemunha durante a passada seca de 77 a 79. [...] Então, a verdade cientifica com
que são descritas certas manifestações da fome, despertam horror e uma grande
piedade n’alma de quem as lê. Um bom livro, enfim é um livro terrível. Imaginai
uma série de contos de Edgar Poe, ligados logicamente para formar uma história
única e tereis o romance do Sr. Rodolfo Teófilo (O cearense, Nº 274, 20 de
dezembro de 1890, p. 3).

O redator do texto salienta que o livro é uma obra ficcional, que prevalece a razão
e a lógica, descritas por meio da ‘verdade científica’. É interessante que desde a publicação, a
opinião sobre o cientificismo é destacada, mas o enredo romântico, heroico e maniqueísta não
oferece problematização ainda. Caráter que será apontado como uma deficiência por Adolfo
Caminha. O juízo acerca do livro é paradoxal, “bom e terrível”, além da comparação com as
narrativas mórbidas do escritor americano Edgar Alan Poe.
Após a longa citação, o editor diz-se que está prestando um útil serviço às letras
pátrias e ao estado do Ceará, ao publicar o livro, pois suas denúncias nos reservam muitas
lições.
249

A fome narra a aflitivo êxodo de uma família em direção à cidade de Fortaleza, na


tentativa de fugir da impiedosa seca que se alastrara pelo interior cearense. O protagonista
Manuel de Freitas e sua família, sem água e comida, passam por inúmeros episódios de
provações até chegar à capital.
Em Fortaleza, os personagens encontram um cenário horripilante a cidade repleta
de retirantes e empesteados por uma atroz epidemia de varíola. A seguir, temos um exemplo
do estilo de escrita de Teófilo, ao descrever a horrenda morte da personagem Quitéria do
Cabo, contagiada pela varíola:
Não podendo caminhar, tentou gritar, mas debalde: a garganta estava crivada de
pústulas, e mal deixou passar um som rouco e abafado, que se extinguiu
imediatamente, depois de ter-lhe escapado dos lábios (...) A moléstia seguia a sua
marcha terrível. A inchação havia lhe tornado disforme o corpo. A pele se estiraçava
com o aumento de volume dos tecidos, e, cada vez mais adelgaçada, apresentava em
diversos pontos manchas de cor purpúrea, desde o tamanho de um grão de milho até o
de um ovo de pombo. Não eram as manchas um prognóstico de varíola de forma
benigna. Era o sinal precursor e patognômico de varíola hemorrágica, da inoculação e
desenvolvimento do micróbio da bexiga negra naquele organismo que inevitavelmente
seria destruído pelo mais mortífero dos micróbios patogênicos (TEÓFILO, 1979. p.
164).

A linguagem é bastante clara, didática e objetiva, não deixando margem para


ambiguidades. Usa termos científicos nos pormenores dos sintomas da morte da personagem,
que se assemelham muito com um laudo cadavérico. Por isso, para a construção do romance,
a máxima importância é dada à observação e documentação. O objetivo do rigor descritivo
seria o de expressar uma denúncia, e não apenas o entretenimento ou gozo estético.
O antagonista é Simeão Arruda, comissário distribuidor de socorros públicos, com
a justificativa de ajudar Manuel de Freitas fragilizado pela situação de miséria, tenta seduzir a
sua filha, Carolina.
A tese do romance é que o ser humano, assolado pela privação extremadas
necessidades fisiológicas básicas, como se alimentar e ingerir líquidos, é capaz de regredir a
um estado primitivo, animalesco, capaz de atitudes inimagináveis e hediondas como roubar,
matar, e até praticar o canibalismo. O estado de fome transforma o homem em um ser
bestializado.
O faminto não obedecia; e continuava a roer as unhas e a comer as escamas que se
desagregavam da pele. Agora fitava o rosto de Carolina perto de si, completamente
exposto e alumiado em cheio pela luz da fogueira. Percebia os tons daquela
carnação, mas com o apetite da besta esfomeada. As narinas dilatam-se-lhe mais,
fareja, sorve o cheiro daquela carne sadia na qual tem ímpetos de saciar a fome e
rasgá-la a dentadas.(...) O delírio aumenta na esperança de mastigara as faces da
moça (TÉOFILO, 1979. p. 34).
250

No trecho, lemos que devido ao estado extremo de fome, a personagem sede ao


instinto animal e tenta se saciar de carne humana.
Essa tese é embasada por inúmeras cenas que o autor descreve personagens
degradados ao estado de fome e de miséria, como um suicida que tem suas vísceras devoradas
por um cão; um homem ferido que suga freneticamente o sangue anêmico da ferida de seu
braço; uma criança abandonada que tem o seu corpo coberto por morcegos que lhes sugam até
a última gota de sangue; homens brigando até a morte por sacas de farinha; um indivíduo
alucinado pela forme devora o próprio filho e um recém-nascido que tenta sugar o seio
esquelético do corpo de sua mãe morta152, em estado de putrefação.
É um livro forte que suscitou comentários positivos pelo seu caráter engajado,
pelo seu desejo de retratar tristes episódios da história cearense, que, no entanto, também
provocou críticas negativas, pelo uso da linguagem extremante cientificista e rude. Aplaudido
pela sinceridade e censurado pelas deselegâncias da escrita.
Percebemos que Rodolfo tinha o seu objeto e plano romanesco para a construção
desse romance, mas a qualidade estética foge do alcance do próprio autor, pois
Afinal, a qualidade e a categoria de uma obra literária não resultam nem das
condições históricas ou biográficas de seu nascimento, nem tão-somente de seu
posicionamento no contexto sucessório do desenvolvimento de um gênero, mas sim
dos critérios da recepção, do efeito reduzido pela obra e de sua fama junto à
posteridade (JAUSS, 1994, p.).

No sistema literário há diversos tipos de leitores, como o comum, o crítico e o


especializado. As opiniões expressas pelos leitores críticos, sejam críticos profissionais ou
não, são relevantes, pois servem de termômetro estético da obra. Quanto mais a obra alcançar
leitores que expressem as suas opiniões nos veículos da impressa, gera mais interesse em
relação ao livro, mesmo que sejam juízos negativos ou até polêmicos. Nesse contexto, o
horizonte de expectativas ainda eram os romances românticos e realistas europeus, e
nacionais, como as obras de José de Alencar e os primeiros livros de Aluísio de Azevedo.
Como um texto de recepção, devemos levar as polêmicas para esse âmbito de discussão,
porque a obra de Teófilo é julgada a partir de critérios e modelos estéticos que permeiam os
horizontes de expectativas de seus leitores.

152
As mamas reduzidas a pelancas, presas nas costelas, com os bicos atrofiados, assim, mesmo eram sugadas
pelas crianças com uma avidez famélica! Os vagidos dos filhos desalentados por não encontrarem uma gota de
leite irritava -as em vez de comovê-las, irritava-as a mamadura anormal porque produzia-lhes um frenesi que as
desesperava e que em parte era excitado pela presença do sangue, um sangue cor de salmoura, em vez de leite e
que tingia os lábios dos pequeninos (TEÓFILO, 1979, 85).
251

A teoria da estética da recepção de Jauss (1967) nasceu do desejo de renovar a


teoria literária em geral e, mais especificamente, a história literária. Segundo Jauss, a história
literária não deve ser entendida como a soma dos livros publicados num determinado
momento, nem como um conjunto de eventos políticos, o contexto econômico, social ou
filosófico que possam ter suscitado tais textos, mas como um conjunto plural de leituras/
recepções. A estética da recepção está, portanto, interessada na forma como um texto foi lido
ao longo do tempo e as polêmicas fazem parte dessa história.
A fome teve um leitor assaz controverso e criterioso: Adolfo Caminha. A polêmica
se desenrolou ao longo de cinco anos, envolveu não apenas os dois, mas diversos atores,
incluindo membros da famosa Padaria Espiritual. Não se pode falar dessa polêmica sem
abordar também o grêmio, visto que o autor do Bom-Criolo também polemizou com outros
escritores.
Mas, antes, falaremos de Adolfo Caminha. Natural do Aracati, após perder a
família em virtude da seca de 1877, vai para o Rio de janeiro morar com o tio. Aos dezesseis
anos ingressou na Escola da Marinha, de onde saiu como oficial aos vinte anos, em 1887. No
ano seguinte, transfere-se para Fortaleza, onde se apaixona por Isabel Jataí de Paula Barros,
esposa de um oficial do exército. Por conta do escândalo, foi forçado a pedir demissão da
Marinha, e assume compromisso com Isabel. Nos primeiros anos da década de 1890, tem uma
intensa atividade jornalística na capital cearense, participando da já citada Padaria Espiritual.
No fim de 1892, muda-se para o Rio de Janeiro, onde se emprega na Fazenda Federal. No ano
seguinte, publica o romance A normalista que tem uma boa acolhida pelo público.
Segundo Frota Pessoa
A sua vida misérrima de empregado público ia sendo arrastada com mil pequenas
privações. A família cresceu-lhe, vieram-lhe os filhos, e o ordenado tornava-se
insuficiente para os mais urgentes gastos. Os martírios dessa fase da sua vida são
pungentes. Publicou, apesar de tudo, mais dois livros, Bom Crioulo e Cartas
literárias. escreveu a Tentação e os Pequenos contos, começou a Trad. do teatro de
Balzac, lançou as bases de duas obras de fôlego, Ângelo e O Emigrado, e fundou a
Nova Revista, que saiu à luz por quase um ano (1902, p. 222-223).

Depois de muitas dificuldades, com a saúde precária, falece de tuberculose em


1897, aos 29 anos. Segundo o seu confrade, Frota Pessoa, que lhe escreveu um perfil na obra
Crítica e polêmica, nos relata que o escritor sempre lutou pelo reconhecimento de seu talento
literário, para isso “foi o gladiador intemerato, todo de ação e de arrojos. Este não guardou
consigo as suas revoltas, trouxe-as para a divulgação da imprensa e bateu-se pelas suas ideias
com um ardor de propagandista”. (1902, p. 86).
252

O caráter controverso sempre fez parte da sua conduta intelectual e, voltando ao


início de sua carreia, perceberemos que a sua atuação na imprensa local foi fundamental.
De acordo com Sânzio de Azevedo,
Guilherme Studart, ao tratar do ano de 1891 no tocante ao jornalismo, diz, a respeito
de um periódico que circulou nesse ano: “Revista Moderna – publicação mensal,
fundada em fortaleza no mês de janeiro por Adolfo Caminha. Saía da Tip. Universal
de Cunha, Ferro & Cia. Nela colaboraram Farias Brito, Guilherme Studart, Juvêncio
Montes, Delfim Henriques, Fabrício de Barros, Antônio Pimenta e outros.” [...] Para
Caminha, não havia praticamente crítica no Ceará e, por isso, fazia ele questão de
frisar, no primeiro número da Revista Moderna: “Se aparece entre nós um livro, seja
se dá sequer ao trabalho de folheá-lo quanto autopsiá-lo; sem escrúpulos limita-se a
noticiar o aparecimento da obra em termos os mais lacônicos e entusiásticos
possíveis, sem comentários” (1999, p. 39).

A Revista Moderna preencheu a lacuna deixada pelo desaparecimento da revista A


quinzena, em 1888. Assim como esse periódico, também tinha o propósito de ser uma
publicação fundamentalmente literária.
Foi um importante veículo para Adolfo Caminha atuar no contexto literário da
cidade, divulgar as ideias científicas e literárias modernas contra o alheamento reinante entre
os fortalezenses, das coisas do espírito. Contou com eminentes colaboradores como
Guilherme Studart e Farias Brito. Assim como Rocha Lima, no primeiro número da revista,
Adolfo Caminha destaca que não existia crítica literária na cidade. Pela difícil aquisição de
livros, quando surgia um novo, pouca importância era dada.
Para Caminha, a arte era uma das mais nobres missões humanas,
Dói n’alma e causa desalento o abandono quase completo, a indiferença já tanta vez
invocada, com que são vistos no Brasil os homens de letras, os obreiros da
inteligência, os abnegados da Arte, para que na vida consiste principalmente no belo
e na verdade, fundidos num símbolo indissolúvel e eterno; maior pena, porém, é ver
a estatística das nossas produções literárias, a sinopse demonstrativa do nosso
esforço mental durante trezentos e sessenta e cinco dias do ano.... Pobre literatura
nacional! Essa nem ao menos encontra quem lhe chore o abandono pungente. Vive
por aí, mísera viúva, perpetuamente em crepe, num abandono pungente, coberta do
desprezo e de ridículo, apupada mesmo pela malandrice audaciosa e irreverente...
(1999. p.17)

A sua revolta contra a indiferença em relação à arte e à literatura era drástica.


Reclama que a literatura, ‘mísera viúva’, no contexto nacional, estava abandonada e entregue
às traças. A baixa produtividade literária era associada à pobreza intelectual. Relaciona ao
homem de letras a imagem do missionário, citando valores como ‘belo’, ‘verdade’ fundidos à
ideia de ‘eterno’, uma concepção ainda arraigada ao romantismo.
Os seus ideais estéticos presentes nos artigos da Revista Moderna estão presentes
na maioria de sua produção crítica, utilizados por ele para balizar os verdadeiros artistas dos
medíocres. Num texto posterior, ele nos esclarece que
253

Muita vez um escritor de talento reconhecido, um predestinado, que sabe amar a


Arte sobre todas as cousas, vive no ostracismo e na miséria, sofrendo horrores,
porque lhe estão interditas as portas da imprensa, essas mesmas portas que se abrem
largamente para receber toda a casta de escrevinhadores, cujo único ideal é o
dinheiro ganho num abrir e fechar de olhos, o santo dinheiro obtido sem esforço, e
mil vezes mais apetecido e útil que um trecho de prosa bem trabalhada ou uma bela
estrofe cristalina (1999, p. 27).

Observamos uma visão heroica, no qual a missão do artista é interpretada como


um fazer missionário. O artista como um asceta153 deve viver exclusivamente para produzir a
sua arte e que a imprensa, a musa industrial e material, é uma espécie de prostituidora dos
talentos. O que mais nos surpreende é dele usar o termo ‘predestinado’ em relação à arte,
como se fosse algo restrito a poucos, um dom. A arte e a literatura, para ele, estavam
integradas ao projeto civilizatório do iluminismo. É paradoxal, um escritor como Adolfo
Caminha que adotou o romance naturalista como estilo e que tratou de temas controversos, de
cunho social, “nutrir concepções tão elitistas de literatura” (GUINSBURG, 2017, p. 357).
A ideia de arte como um sacerdócio e como uma atividade do espírito que precisa
ser exclusiva e os romances naturalistas e realistas europeus vão moldar o horizonte de
expectativas dos textos críticos de Adolfo Caminha na Revista Moderna. No periódico, são
publicados dois artigos acerca de livros editados no ano anterior, Versos Diversos, de Antônio
Sales, e A fome, que causarão polêmicas significativas no campo literário cearense.
Agora, analisaremos os principais pontos do artigo “A fome”, que posteriormente
foi compilado no livro Cartas literárias (1895). Caminha era o diretor da Revista Moderna,
mas o texto sobre o romance saiu anônimo. A revelação da autoria será o estopim da
polêmica, quatro anos depois. Aprendemos que com anonimato, não se pode ter uma boa
polêmica, visto que o alvo do ataque precisa ser minuciosamente estudado para em seguida,
ser rebaixado, diminuído e enfim, demolido.
Caminha inicia o artigo comentando ironicamente que
em atitude circunspeta e religiosa de quem espera uma revelação divina, sem saber o
que dizer [...]Efetivamente, A Fome foi recebida com palmas estrondosas e flores de
alambicada retórica provinciana, não sei si em consideração ao autor ou si em
reverencia ao editor. Uma obra de subido quilate, una voce a imprensa, uma obra de
incontestável merecimento literário! Eu contesto (1999, p. 113).

No trecho, observamos que além do uso da ironia e de adjetivos para debochar da


opinião dos críticos provincianos, ele se utiliza da primeira pessoa do singular, orientando o

153
No artigo “Protetorado de Midas”, das Cartas literárias, Caminha descreve a Arte (em maiúscula) como uma
seara virgem, terra prometida e que os artistas, como trabalhadores independentes, deveriam ter o talento
reconhecido.
254

tom subjetivo que o texto se desenvolve. Percebemos que ele nos explica que a imprensa é
responsável pelo ‘aplausos’ ao escritor, criando uma imagem positiva dele. Caminha surge
como uma voz dissonante, para desconstruir o seu “merecimento literário”.
Adiante,
Não duvido que A Fome seja a melhor, a mais bem-acabada, a mais conscienciosa
produção do Sr. Teófilo. Acredito-o piamente, uma vez que a imprensa foi uníssona
em dizê-lo, pois não tenho a honra de conhecer a História da Seca, nem a
Monografia da Mucunã, nem a Botânica Elementar, nem as Ciências Naturais em
Contos, nem as obscuras Campesinas (versos). Creio, entretanto, que toda essa
volumosa bagagem cientifico-literária é de pequena importância, a julgar pela Fome
que se diz ser a principal obra do autor (idem, p.113).

No início, ‘acredita’ que A fome é um ‘bom’ livro fato declarado nos jornais
cearenses, como nos anúncios exemplificados. Como o discurso polêmico, pressupõe a
investigação do outro, observamos que ele cita todos os livros editados por Teófilo, na área de
História e Ciência, e um anunciado livro de poemas. Porém, afirma que não leu tais livros e
julga que, como não são obras literárias, não devem ser usados como requisitos para se
afirmar que A fome é a principal obra do autor. De fato, concordamos com ele, um romance
deve ser julgado por critérios estéticos, diferente de um livro de botânica ou de divulgação
científica. Contudo, ao fazer esse paralelo, em tese, deveria lê-los, para um juízo justo. No
entanto, declara que não leu e esse será um questionamento feito por Teófilo futuramente. O
fato de atestar que não leu os livros anteriores demonstra desdém e motivo de descrédito.
Acerca do enredo do livro, classifica-o como “frívolo, pueril quase, insignificante
e monótono a ponto de cansar o leitor” (idem, p. 114). São adjetivos fortes para descrever o
romance, mas o alvo principal é a individualidade do escritor.
O que desde já vou afirmando é que o Sr. Teófilo pôde ser um cidadão muitíssimo
trabalhador, um ativíssimo fabricante de vinho de caju (que o é), incansável mesmo
nos labores de sua profissão, extremamente amoroso para com a sua terra natal,
pôde ter todas as qualidades de bom cidadão; mas em tempo algum conseguirá um
lugar proeminente na literatura nacional. Falta-lhe certo quid, largueza de vistas,
orientação e bom gosto, predicados indispensáveis a quem se aventura nesse terreno.
Um assumpto como as secas do Ceará, digamos com franqueza, inteligentemente
aproveitado por José de Alencar ou por Aluísio Azevedo, fosse como romance, fosse
como simples narrativa dramática, daria, estou certo, páginas admiráveis de estilo e
verdade, enquanto o Sr. Teófilo, que é nortista, que sempre residiu em sua terra, que
assistiu de visa todas aquelas cenas canibalescas e incríveis de miséria e de fome,
não conseguiu dar senão páginas sem estilo, sem arte, sem verdade ás vezes, e eu
diria sem interesse, si a grandeza do assumpto, a própria essência da obra não nos
obrigasse a ler todo o livro, pondo de parte sua feição literária. E isto é tanto mais
lamentável quanto Guerra Junqueiro, que nunca veio ao Brasil, escreveu, a propósito
da tremenda seca de 77, que se tornou legendaria, oito estrofes que valem mil vezes
A Fome (id. p. 114).

O trecho citado é importantíssimo para se analisar como o discurso polêmico se


organiza para gerenciar os conflitos. Há uma série de divergências que, implícita ou
255

explicitamente, constrói uma dicotomização. Caminha não apenas é um crítico, ele age
discursivamente como um oponente de uma ideia materializada pelo livro em discussão. O
primeiro componente retórico é a tentativa de desqualificar seu alvo como romancista,
paradoxalmente, referindo-se a ele por meio de outras atividades não literárias: cientista e
industrial. Cita que é um bom cidadão e excelente fabricante de cajuína, mas não terá lugar na
literatura nacional.
Ele traça uma breve poética do que deveria ser um genuíno romance. Afirma que
Aluísio de Azevedo ou José de Alencar escreveriam sobre a seca com mais arte, mais
verdade; diferente de Teófilo que acompanhou todas as mazelas. Essa associação é
problemática, porque os dois autores citados fazem parte do cânone pessoal de Caminha. Em
vários artigos declara que são os melhores escritores da literatura brasileira. Porém, ambos
têm projetos literários e tipos de escritas distintos. Observamos no capítulo anterior, que o
motivo da controvérsia de Franklin Távora contra Alencar é justamente a falta de verdade que
ele imprimia em seus romances, o excesso de fantasia, que ele não ‘fotografava’
adequadamente a natureza em seus textos. A comparação dos escritores feita por Caminha
ficará mais estranha, em parágrafos posteriores, ao falar de Zola. Para Teófilo, que era um
homem engajado em causas sociais, foi um duro golpe ser acusado de escrever sem arte, sem
estilo e principalmente, sem verdade. Segundo Sânzio de Azevedo (1982), foi o motivo de
Teófilo responder essa acusação com fúria no jornal O Pão.
O que é mais paradoxal na crítica de A fome, é que ele mistura dois autores de
estilos diferentes, os atrela a uma ideia de ‘verdade’, que entendemos que estava se referindo
à ‘verossimilhança’ para desqualificar Teófilo. Contudo, em outro artigo publicado nas Cartas
literárias, ao tecer uma série de características que o bom escritor deve possuir, nos declara o
seguinte:
o artista deve obedecer ao meio que o cerca, preferindo sempre os temas nacionais,
respeitando a uma toponímia real ou imaginaria, criando personagens que
obedeçam, por sua vez, a tais ou tais influencias mesológicas. A crítica dirá que
ambos os processos conduzem a um mesmo resultado desde que o escritor seja um
verdadeiro artista e obedeça ao seu temperamento (1999. p. 44).

É uma ideia profundamente ligada ao determinismo do meio sobre o artista, que


deverá estender essa influência na criação de seus personagens. Além de situar que o talento
está ligado ao meio, diz que o artista será verdadeiro se obedecer a seu temperamento, outra
concepção determinista. Percebemos que a interpretação extrapola o texto, apontando outras
fontes do critério crítico. Será que esse mesmo critério foi aplicado a Rodolfo Teófilo? A fome
é um texto escrito com o desejo de ser uma denúncia social, descrição da seca e um estudo
256

científico, uma mescla entre a história e ficção, uma tensão complexa. Mas Rodolfo Teófilo,
se observamos sua biografia, não estava seguindo o seu ‘temperamento’?
Percebemos que Caminha não usa só o critério naturalista para o julgamento da
obra, se arvora também do impressionismo. Se os dois escritores estão buscando o
Naturalismo como estilo de expressão literária, qual o motivo do desagravo de Caminha?
Em outro trecho, ele nos diz
Como nos dramalhões decadentes, o Sr. Teófilo, no seu livro, faz triunfar a virtude
por meio de tramas falsas e falsas situações. No desfecho, então, a verdade é
completamente sacrificada, e faz-nos rir o tom profético e imperioso com que o
romancista pretende comover e moralizar. [...] Sendo o romance o estudo ou a
reprodução artística de uma parte qualquer da sociedade, segundo o ponto de vista
em que se coloca o escritor, para quê esses longos sermões de moral, esses arranjos
montepineanos de cenas falsas, que só servem de desequilibrar espíritos juvenis?
[...] O romancista deve ser lógico e coerente, qualidades estas que faltam ao operoso
industrial. (id. p.115).

Como um educador, Caminha traça uma Paideia romanesca para Teófilo. Define o
gênero como ‘estudo’ e ‘reprodução’ de algum fenômeno social, uma concepção alinhada aos
romances realistas e naturalistas, que circulavam no Brasil e que serviam de parâmetro
estético. Afrânio Coutinho ressalta que “o escritor realista tomará a sério as suas personagens
e se sentirá no dever de descobrir lhes a verdade, no sentindo positivista de dissecar os móveis
do seu comportamento (2004, p. 188). A ressalva de Caminha recai, sobretudo, na estrutura
romanesca do livro, afinada às ficções românticas, como as de Victor Hugo e Alexandre
Dumas.
Outro destaque negativo foi a artificialidade e inverossimilhança na construção
das personagens
Mas o Sr. Theophilo não soube penetrar na alma do sertanejo, não soube perscrutar
todo o segredo do coração dos simples... E aquele retirante que Freitas depara em
caminho para a capital cearense, quando anda na mata a explorar a mucunã? O Sr.
Theophilo empresta ao pobre homem uma linguagem de sábio, polida e técnica,
certo modo de dizer as cousas, extraordinário num filho do sertão [...] como si fosse
um doutor diplomado! Depreende-se que o Sr. Teófilo ama as exibições e deseja
também um lugar entre os ilustrados da terra, supondo, talvez, que o romance
moderno de observação e análise presta-se a digressões científicas de qualquer
natureza. (id. p. 116).

Caminha acusa Teófilo de ser pedante, de exagerar no uso de termos


científicos154, a ponto de falsear o romance, confinando o entendimento desse léxico a um

154
São diversas passagens que o crítico cita para atestar o uso indiscriminado de termos científicos: “Encontra-
se à pag. 102 a seguinte descrição, que também se encontra nos compêndios de fisiologia: "O coração que a
pouca densidade do sangue, a abundância de leucócitos tornara irregular e tumultuosa, os afligia com
sofrimentos atrozes. A sístole e diástole eram incompletas, acelerados os movimentos do motor da circulação, as
257

público restrito, que conheça ciências naturais e medicina. Comenta que quem quer ler sobre
medicina, que procure o livro de Claude Bernard155. Para ele, o intuito do romancista moderno
é fazer literatura e não tratados de fisiologia e recomenda, “se a sua vocação é a ciência pura,
valia mais a pena enriquecer a bibliografia nacional com obras de ciência” (id. p.117) Mais
uma vez, observamos que o crítico desenvolve argumentos para tirar Teófilo do campo
literário, relegando a outros espaços e reafirmando a imagem de mau escritor.
Outra comparação é feita com o corifeu do naturalismo

O romance é um dos géneros mais difíceis em literatura. Modernamente o


romancista precisa de ser um observador perspicaz, um artista consciencioso e um
homem ilustrado. Os romances de Zola, por exemplo, são verdadeiros documentos
humanos, verdadeiros estudos sociais, encerrando muitas vezes problemas
complicadíssimos de fisiologia e sociologia. Entretanto, Zola não perde tempo com
largas e maçantes preleções científicas. Diz a cousa como ela é, como ela foi
observada, como foi sentida e conforme a verdade científica. Escrever um romance
não é somente acumular factos inverossímeis e sem lógica. Foi-se o tempo do
romance íntimo, escrito ao acaso, todo de imaginação. Em suma, o livro do ilustre
cearense não deixa de ter seu valor como trabalho de cunho nacional (id. p. 118).

Ao afirmar que o romance é um gênero difícil, justifica que não é qualquer


indivíduo que pode cultivá-lo. Atrela as características do romance com a era moderna,
descrevendo o romancista como uma espécie de sujeito cartesiano, ou seja, racional, erudito e
voltado às questões contemporâneas. Ele cita o modelo ideal dessa poética: Emile Zola 156. O
intrigante é que ele salienta que sua superioridade artística reside no fato de, supostamente,
representar o real com exatidão, fidedignidade, conforme a verdade científica. São atributos
também perseguido por Teófilo. O ponto de desaprovação, para Caminha é na construção do
enredo, na caracterização das personagens, nas descrições da ação e do espaço. Contrapõe-se
ao romantismo, mas cita José de Alencar como um autor que poderia ter escrito com mais
verdade sobre a seca.
Fica o questionamento, qual é o critério de arte e romance adotado por Caminha
para examinar Teófilo? É o critério do romance naturalista? A verdade artística que José de
Alencar traria ao assunto da seca é o mesmo critério de ‘verdade científica’ que ele acolhe de
Zola?

válvulas, funcionando mal, deixavam refluir em parte a onda sanguínea, já bastante reduzida, determinando a
anemia do cérebro...” (sic) (id. p. 117).
155
Autor da obra Introdução à Medicina Experimental (1885), desenvolve a ideia de que o comportamento
humano seria determinado por sua fisiologia e de que o conhecimento vem da observação de um fato, a partir
desse observação que o cientista concebe uma ideia. Essa concepção empírica e indutiva da realidade, influência
profundamente Emile Zola, que a leva a literatura, materializando-a na obra O romance experimental (1880).
156
Exemplo do entusiasmo de Caminha, em um texto dedicado ao autor em Cartas literárias: “Quanto mais o
leio maior é a minha admiração, maior o meu entusiasmo por essa obra colossal que vem, desde a Fortune des
Rougon, estuando como um rio caudaloso e límpido, até ao Docteur Pascal, até Lourdes... (1999, p. 23)
258

Percebemos que se trata de uma crítica literária contraditória, pautada no discurso


polêmico, pois mescla critérios naturalistas a juízos de valor relacionados ao caráter do
escritor. Para se estabelecer a polêmica, é preciso que os polemistas se enxerguem como
adversários e que partilhem do mesmo ideário ou rol de leituras. A luta pela superioridade
ocorre pelo exame de quem possui o maior capital simbólico em determinado assunto. Os
temas discutidos foram a ideia de literatura e do gênero romance.
Refletimos o porquê dá crítica jocosa de Caminha. Segundo Artur Eduardo
Benevides, em Evolução da poesia e do romance cearenses (1976), em Fortaleza, foram
publicados apenas dois livros de autores cearenses, residentes na capital, em 1900: Voos
Diversos, de Antônio Sales e A fome.
Pelo texto de Caminha, fica evidente que ele defende que o artista deva se dedicar
exclusivamente à arte, fazê-la o seu exercício pleno, sua missão. Talvez, ele ficou irritado
pelo fato de um homem de ciência se arriscar em um gênero complexo como o romance e,
mesmo com os problemas de estreante, ser elogiado pela imprensa. A indignação possa ter
nascido porque, no seu ponto de vista, o romance não teve um crítico sincero e criterioso,
caráter em falta na cidade.
Em relação ao livro de Antônio Sales, na Revista Moderna, também teceu uma
análise sarcástica e desqualificadora. O livro saiu no fim de 1890, pela Tipografia José Lino e
reúne poemas de Sales publicados nos quatro anos anteriores, nos jornais O libertador e n’A
Quinzena.
O livro tem um texto de apresentação intitulado “pano de boca” 157, por José
Carlos Júnior, seu confrade do Clube literário, que destaca a sensibilidade apurada do jovem
poeta e o uso de alguns clichés parnasianos que não prejudicam a feitura dos poemas.
No entanto, em outros periódicos, surgem textos negativos, como os de Almando
de Castro, pelo Estado do Ceará, em janeiro de 1891 e, Teófilo Ribas trava polemica com
José Carlos Júnior pelas colunas do Cearense, de 27 de janeiro a 6 de março de 1891, num
total de dez artigos (BOIA, 1984).
O polêmico Adolfo Caminha, no jornal Estado do Ceará, escreve uma resposta
em forma de desafio ao elogio de José Carlos Júnior:
Se o sr. José Carlos duvida, não tem mais do que escolher o assunto que lhe
aprouver, nomear um júri de homens reconhecidamente sérios e competentes e,
quando quiser, ao tempo aprazo, estarei pronto para um tour de force com Antônio
Sales, em prosa ou em verso. [...] Falta ao poeta essa nota indefinível e sublime,
diversa em cada artista, que imortalizaou Hugo aos quinze anos e que foi a glória

157
Na linguagem do teatro, refere-se à cortina que separa o palco do espaço reservado ao público.
259

dos grandes cantores, desses espíritos privilegiados que nunca precisaram de panos
de boca, quero dizer de cartas de apresentação (apud AZEVEDO, 1996. p. 41).

Percebemos que a polêmica não servia apenas para atacar um oponente ou


defender uma ideia, como cita Roberto Ventura “como os romancistas, que publicavam seus
livros como capítulos de folhetim nos jornais e revistas, os críticos recorrem às polêmicas na
imprensa, de modo a ampliar a circulação de suas ideias e divulgar seu nome, criando renome.
(1991, p. 148). Isto é, a polemica servia para o que hoje chamamos de campanha de
marketing, um meio de se expor ao seu público.
Publicamente, Caminha desafiou Sales para um duelo poético, porém na Revista
Moderna, escreve outro artigo anônimo, intitulado “uma estreia ruidosa” sobre o livro em
questão.
Ele inicia o texto com uma estrutura próxima a que usou contra Teófilo, ataca a
imprensa elogiosa e culpa as opiniões positivas à camaradagem em relação a Sales
Há muito que era esperado o primeiro livro de Antônio Sales, já porque o poeta goza
de muitas simpatias entre nós, já porque a imprensa indígena tem-se ocupado dele
em termos os mais espalhafatosos. Depois que se inventou a reclame, o pregão à
americana que faz de um argueiro um cavaleiro, não há mais ninguém obscuro no
mundo. Antônio Sales compreendeu que o indiferentismo público só se vence à
força de zabumba e tratou de aproveitar os amigos. (1999, p. 98).
Atesta que os jornais dão visibilidade a qualquer sujeito que tenha amigos,
denunciado uma espécie de confraria provinciana. Em seguida, define os seguintes critérios
para analisar os poemas de Sales: inatismo do sentimento do belo e intensidade, grau de
cultura (idem, p. 97). Reparamos novamente que ele cultiva a ideia de que há indivíduos que
nasçam com talento natural. Em seguida, menciona que
António Salles é um excelente rimador, conhece tanto como qualquer dos nossos
poetas mais dignos deste nome a arte do verso, o mecanismo musical das sílabas,
todos os segredos da métrica e da rima; e si a poesia consistisse unicamente no
arranjo de hemistíquios e de rimas sonoras, ninguém mais do que ele teria direito
a uma consagração imediata. Falta-lhe, porém, uma qualidade essencial, — a
originalidade, e é por isto que ainda não pôde marchar ao lado de Bilac e de
Raymundo Corrêa, poetas que se revelaram mais do que simples faiseiirs, impondo-
se aquele pelo lirismo característico e ingenito de sua alma e este pela profundeza de
suas concepções. Em António Salles o que predomina é o subjetivismo lamuriento
da velha poesia brasileira, já tanta vez explorado. Hoje, para que a poesia valha
alguma cousa, é preciso que não tenha sido repisada por quanto mocinho imberbe
deseja um lugar no panteão das glorias nacionais. E' tão largo o campo da Poesia,
é tão grande a Arte! Para que reproduzir o que já foi dito por vinte gerações? (idem,
p. 100).

Usa o recurso da comparação, nivelando por baixo o estreante Sales a poetas de


prestígio, ‘consagrados’ como Olavo Bilac e Raimundo Correia. Essa comparação também
dicotomiza a relação entre metrópole cultural e as províncias, posto que os poetas citados
atuam no Rio de Janeiro. Ao longo do artigo, ironiza o fato dele ser estreante, ao utilizar
260

expressões ‘mocinho imberbe” e “subjetivismo lamuriento” para somar a ideia de poeta


imaturo, provinciano e influenciável. O elogio também surge como uma ironia, ao citar que
ele conhece as formas poéticas e sabe construir rimas. Contudo, o poeta deve ser mais que um
simples faiseurs (fabricante/fazedor). Caminha reclama da falta de originalidade de Sales,
apontando-o como mero repetidor de clichês poéticos da poesia portuguesa, paradoxalmente,
um jovem ultrapassado. O termo “Arte” é escrito em maiúsculo, conotando o possível aspecto
atemporal e idealizado do fazer poético
No artigo, por meio de um recurso intertextual, cita diversos poemas de Guerra
Junqueiro e Raimundo Correia para comparar aos de Sales. Esse recurso é usado para
hierarquizar o juízo de valor e taxar os versos do poeta como inferiores, “banais”, ‘frouxos’ e
com equívocos de versificação’ (idem, p. 104). Entendemos que, ao exercer a crítica, deve
existir algum critério para se analisar o texto literário, contudo consideramos desleal a
comparação de produções de poetas experientes com poemas de um estreante.
Adolfo Caminha considera que para ‘atender os catecismos poéticos’ (id. p. 104),
Sales priorizou somente a forma, dando ao leitor um livro monótono, que não estava à altura
de suas expectativas. Por fim, “O poeta deve ter plena liberdade de cantar o que bem lhe
aprouver, no tom que achar melhor. A questão é que ele saiba comover. [...] António Salles é
um parnasiano ao gosto moderno. Seus versos, em geral, são bem feitos e espontâneos. (id. p.
105).
Após protagonizar diversas polêmicas nos periódicos cearenses em 1891, no ano
seguinte, participa da formação da Padaria Espiritual. Surgida nas cadeiras do Café Java,
contou com jovens boêmios, artistas e literatos, que debatiam as novidades literárias da época.
Criada pelo gracejo de Antônio Sales com os amigos Lopes Filho, Ulisses Bezerra, Sabino
Batista, Álvaro Martins, Temístocles Machado, Tibúrcio de Freitas. Eles formaram um grupo
literário, mas sem o intuito de criar uma instituição grave e séria. O Programa de Instalação,
redigido por Antônio Sales foi lido na primeira reunião oficial da agremiação, no fim de maio
de 1892. Publicada nos jornais da cidade, ficou conhecida e foi comentada por todo o país,
por sua criatividade e irreverência. O grêmio foi formado por 20 sócios (padeiros), que
adoraram nomes de guerra. É interessante, que a rivalidade entre Adolfo Caminha, que usou
o nome de guerra Felix Guanabarino, e Antônio Sales não o impediu de participar da
agremiação. Ele esteve presente nas primeiras fornadas e colaborou no O pão com vários
textos.
Saboia Ribeiro (1967) cita que a província estava pequena demais paras ambições
literárias do escritor e, conseguindo uma transferência para trabalhar no Tesouro nacional, no
261

fim de 1892, muda-se com a família para o Rio de Janeiro, onde possa nutrir o “ideal literário,
a ambição de renome”.
Ele colabora no jornal Gazeta de notícias e publica o seu romance A normalista,
que, inspirado no modelo de romance balzaquiano e zolariano, segundo o próprio autor, uma
‘singela narrativa de um escândalo de província”, retratadas “com firmeza de observação,
levemente penumbrada de um pessimismo irónico e sincero, que está no meu próprio
temperamento” (CAMINHA, 1999, p. 73).
Esboça um perfil da sociedade fortalezense, repletas de tipos mesquinhos,
hipócritas, frívolos e degenerados.
Caminha, nos apresenta o motivo do enredo e sua justificativa
O esqueleto do livro, o assumpto principal que constitui a parte dramática, é muito
simples. João da Matta, um amanuense que se intitula pensador livre, sujeito
devasso para quem a família é uma questão secundaria na vida da sociedade, João da
Matta abusa de Maria do Carmo, sua afilhada, rapariga muito nova e ingénua, de
uma excepcional brandura de caráter, educada numa casa de caridade e depois
normalista, a qual, em determinado momento psicofisiológico, influenciada
irresistivelmente por circunstâncias poderosas, mais fortes que a sua vontade,
entrega-se ao padrinho toda inteira com uma submissão tocante de ser irresponsável.
Esta é a cena capital do livro, à cumeeira do edifício. (idem, p. 72-73).

A protagonista, Maria do Carmo, enamora-se com Zuza, jovem fidalgo estudante


de direito, filho do coronel Souza Nunes, contudo, com as investidas do padrinho, é seduzida
e fica grávida. A publicação d’A Normalista reacendeu a cólera dos seus inimigos do Ceará,
porque no livro ele “ferreteava individualidades poderosas fotografando com uma verdade
crua uns certos aspectos da sociedade cearense” (sic) (PESSOA, 1902, p. 222)158.
No Rio de Janeiro, o romance recebe vários comentários negativos, como a de
Valentim Magalhães, que vê o livro como um romance que já nasceu gasto, por considerar o
naturalismo fora de moda.
Durante a repercussão da publicação, Adolfo Caminha defende o seu romance
Precisamos ser mais justos na apreciação dos livros nacionais. A literatura brasileira
conta pouquíssimos cultores do romance, gênero difícil na verdade, exigindo, em
primeiro lugar, uma perfeita e elevada concepção da vida e da Arte, qualidade esta
que não é fácil encontrar entre os nossos escritores mais aplaudidos. A critica, si
critica existe entre nós, deve ser independente e escrupulosa quando emitir seus
conceitos. Por que o Simbolismo está em moda em alguns países da Europa, não
segue-se que seja a única escola verdadeira. Si a questão é de escolas, então
devemos reconhecer que o Naturalismo, isto é, a escola da verdade, continua na

158
Em outro trecho, Frota Pessoa, acerca de A normalista: Moldou-a num estilo característico e simples, sem
torneios escusados de retórica e sem preocupações de rebuscamento. O Ceará burguês e o Ceará moleque estão
retratados nessas páginas perduráveis com uma argúcia e uma naturalidade que não são de nenhum escritor deste
momento. Foi talvez agressivo, mas na sua situação deviam ser desculpados esse ardor e essa represália contra a
sociedade que o perseguiu e que não lhe quis perdoar. Lavrou assim, ele próprio, a sua absolvição, desvendando
as misérias que nela fermentavam (1902, p. 229).
262

sua marcha triunfal, levantando estatuas a Balzac, a Stendhal, a Flaubert, aos


Goucourt, a Zola, a Daudet, a Maupassant. Imorais ou não o século os admira. A
Normalista (repito) é um livro sincero e trabalhado; vale mil vezes mais que toda
essa inútil e palavrosa bambochata literária que aí anda pelos jornais (1999, p. 75).

Mesmo com sua indignação em relação ao ambiente concorrido do Rio e as critica


negativas, continua a atuar na imprensa sendo que, depois, reúne a sua produção crítica e
polêmica, 22 artigos escritos entre 1891 a 1895, em livro.
Por outro lado, iniciando na Gazeta de Notícias esses tremendos panfletos, que
denominou Cartas literária, provocou um escândalo sem nome entre os magnatas
das letras. E assim foi-se aos poucos trancando dentro de um tenebroso reduto,
isolado, temido e odiado. Entretanto a sua combatividade não arrefecia. Não havia
verdades que hesitasse em pronunciar e tendo atingido no peito o grande arbitro,
nessa época, das vocações literárias, este não lhe perdoou nunca e, desvairado pela
fortaleza do adversário, baixou até ao insulto e á ilusão injuriosa, para ferir fundo o
audacioso (PESSOA, 1902, p 223).

Com uma visão da arte pautada em sua nobre missão estética e na sinceridade
crítica, ataca diversos “ídolos pregados a pedestais de fancaria pela boçalidade
contemporânea” (CAMINHA, 1999. p. 87).
Não poupa ninguém, inclusive a Padaria Espiritual, grêmio em que ficou apenas
alguns meses, mas no artigo, menciona ter sido um dos fundadores, além de afirmar que está
decadente e não representa mais o renascimento literário cearense.
A Padaria Espiritual cujo nome hors ligne tão depressa viajou merecendo aplausos
de toda a imprensa norte-sul, fazendo-se querida até por poetas e escritores
consagrados, a Padaria Espiritual vae decaindo, rolando para o nível comum. É hoje
uma sociedade literária grave, ajuizada, com uma ponta de oficialismo, sem os
ideais doutro tempo, sem aquela orientação nova, sem aquelas audácias que faziam
delia um exemplo a imitar, alguma cousa superior a um rebanho de ovelhas... (1999,
p.130).

A declaração que circulou em pleno Rio de Janeiro causou indignação entre os


padeiros, que voltaram a se reunir em 1894. Em fornada da Padaria, Adolfo Caminha é
expulso do grêmio, fato descrito no livro de atas
foi unanimemente aprovado o decreto de expulsão fulminado há tempos contra o ex-
padeiro Policarpo Estouro, sujeito que com uma impudência abaixo de qualquer
qualificativo insolente, juntou-se a burguesia para hostilizar-nos. Foi igualmente
votada a exclusão de Lúcio Jaguar e Túlio Guanabara que no Rio de Janeiro onde
residem atualmente, faltaram de uma maneira lastimável à confiança que neles
depositava a Padaria (2015, p. 45).

Leonardo Mota cita um estudo de Antônio Sales “Pelo Ceará Intelectual”, em que
este relaciona saída dos dois escritores, Temístocles Machado e Álvaro Martins, como motivo
da criação do Centro literário em 1894. Essa opinião é contestada por Sânzio de Azevedo
Acreditamos que Álvaro Martins e Temístocles Machado não hajam sido expulsos
da Padaria Espiritual por serem responsabilizados “pela fundação do grêmio com o
qual ela teria de emular”, consoante a observação de Leonardo Mota, mas por
263

motivos de ordem interna, por intrigas pessoais, talvez. Do contrário, teria ocorrido
o mesmo com Jovino Guedes, que chegou a assinar a Carta-Circular do novo grêmio
(2011, p. 38-39).

No jornal O pão, Antônio Sales, publica um comentário sarcástico e rancoroso


contra o autor das Cartas literárias
Conhecemos de perto o Caminha e sabemos perfeitamente que o seu critério esta
todo instante a mercê das suas paixões, e que ele não recua perante uma injustiça
contanto que essa injustiça sirva de válvula a um resentimento. Caminha é
arroubado, birrento, rancoroso, - e não é dessa massa que se fazem os críticos dignos
de tal nome (SALES, O pão. Nº 25).

No trecho, Sales salienta o temperamento parcial e irritadiço, que tendia a desviá-


lo do caminho trilhado por grandes escritores.

4.3 Polêmica Teófilo X Caminha

Como vimos a pouco, as Cartas literárias tiveram um poderoso impacto no


contexto literário de Fortaleza. Rodolfo Teófilo acusado de ser um mau escritor e de falsear a
verdade há quatro anos, enfim, descobriu a identidade de seu algoz.
Teófilo respondeu ao seu crítico em dois artigos no jornal O pão: “A normalista”,
publicado em cinco partes, nos números 19, 20, 21, 22 e 23; e “Cartas literárias”, publicado
em três partes, nos números 25, 26 e 27. Esses artigos são reunidos, com algumas alterações,
vinte e nove anos depois em Os meus zoilos. Sentindo-se desonrado como cidadão e escritor,
dará um revide bastante pormenorizado.
O jornal O pão, nos anos de 1892, servia de cenário (MAINGUENEAU, 2001)
para as intervenções críticas e literárias dos padeiros, é o espaço ideal para a polêmica
empreendida por Teófilo. É um veículo para conquistar a opinião pública, numa espécie de
julgamento que fará de Adolfo Caminha.
A linguista Ruth Amossy afirma
Todo ato de tomar a palavra implica a construção de uma imagem de si. Para tanto,
não é necessário que o locutor faça seu autorretrato, detalhe suas qualidades nem
mesmo que fale explicitamente de si. Seu estilo, suas competências linguísticas e
enciclopédicas, suas crenças implícitas são suficientes para construir uma
representação de sua pessoa. Assim, deliberadamente ou não, o locutor efetua em seu
discurso uma apresentação de si (2005, p. 9).

O discurso é um lugar onde se engendra o ethos do orador, que não está


dissociada de seu logos. Enfatizamos o ethos como recurso retórico para analisar os textos
264

escritos, pois, como ressalta Maingueneau, as polêmicas exibem marcas de oralidade (2011, p.
21), porque fazem do discurso seu espetáculo de guerra.
Amossy destaca que o termo ethos, para os antigos, designava uma construção de
uma imagem de si, apoiada na individualidade e na autoridade do orador, para garantir
sucesso no empreendimento retóricos (2005, p.10). São os traços de caráter que o orador deve
mostrar ao auditório, independentes se são autênticos ou não. Ao falar de si, o ethos se
configura como um fenômeno dialógico, pois quando “o orador enuncia uma informação e, ao
mesmo tempo, diz: eu sou isto, não sou aquilo” (BARTHES, 2002, p. 78). Ou seja,
implicitamente aponta para o outro.
Seguindo a perspectiva de Maingueneau, observamos que o ethos é
uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma “imagem” do
locutor exterior a sua fala; é fundamentalmente um processo interativo de influência
sobre o outro; é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um
comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma
situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura
sócio-histórica (2011, p. 17).

A construção de uma imagem de si, ethos, está fortemente ligada à enunciação,


porque o ato de produzir um enunciado nos remete ao sujeito enunciador que se utiliza da
língua (AMOSSY, 2005).
Conforme aprendemos, a gênese dos discursos ocorre no interior do interdiscurso,
através de relações complementares e polêmicas, devido as diferentes posições que os
enunciadores estabelecem entre si (MAINGUENEAU, 2005). E é nessa relação conflituosa,
de interincompreensão, que o orador cria o seu ethos e um anto-ethos de seu rival (idem).
Nos dois artigos, Rodolfo Teófilo tenta realizar uma desconstrução da imagem
negativa tecida pelo seu adversário. Ao analisar a obra e a individualidade de Adolfo
Caminha, constrói um torno de si, uma imagem de romancista compromissado com o povo
cearense. A polêmica se configura como um diálogo, em que o autor se dirige diretamente ao
outro, algo que se não podia fazer enquanto o texto rival era anônimo. São duas imagens
construídas: a do autor do texto, positiva e a do outro, negativa, que surge em formato de
alusões, citações, epítetos e antonomásias.
No Nº 19 do jornal O pão, Rodolfo Teófilo inicia a leitura violenta de A
normalista que se estende por mais quatro artigos.
Sem vento de feição, levou quase dois anos para chegar-me às mãos romance de
Adolfo Caminha. Não se conhecia a “Normalista” no Ceará, nas livrarias não era
encontrada, a imprensa da terra não noticiou o seu aparecimento. Porque tamanho
silencio sobre um livro de costumes cearenses, cujo autor era também cearense e
com meia reputação de literato? Deste mistério compreendi alguma coisa depois que
li o romance. De posse do livro, que obtive de um companheiro da Padaria, li o com
265

muito interesse. Pelo rotulo fiquei logo inteirado de que as cenas que o autor
descrevia eram patrícias e alguma passadas na Escola Normal de Fortaleza, onde era
eu, a esse tempo, professor de Ciências Naturais (1924, p.41).

O trecho de abertura é muito interessante, pois demonstra elementos que nos


auxiliam na compreensão do sistema literário em Fortaleza, que contava com veículos
impressos na recepção de obras literárias, quer seja jornais ou revistas literárias. O Pão, assim
como outros periódicos, divulgava obras locais, nacionais e estrangeiras. É óbvio, por
questões espaciais, tanto os livros lançados no Rio de Janeiro, quanto os jornais que os
resenhavam, chegavam com atraso em Fortaleza. Os livros poderiam demorar semanas ou
meses para chegar, mas A normalista não tinha circulação na cidade e nem publicidade.
Teófilo que recebera o livro de um confrade, atestando que o motivo do atraso é o
teor da obra, que tem como cenário principal, a Escola Normal de Fortaleza, onde Teófilo era
professor. Ele questiona o silêncio dos fortalezenses perante tal obra.
Outro detalhe importante é que ele se refere A normalista como ‘livro de
costumes cearenses”, e ironicamente, nos diz
Na primeira página lia-se, a guisa de prologo, este trecho de Balzac: “Une des
obligations auxquelles ne doit jamais manquer l’historien des moeurs,c’est de ne
point gâter le vrai par des arrangements en apparence dramatiques, surtout quando le
vrai a pris la peine de devenir romanesque.” Ia ser iniciada no Ceará a escola
realista.159

A epígrafe citada de A Normalista160, ressaltada por Rodolfo Teófilo é


importantíssima para a nossa discussão, foi retirada do livro Esplendores e misérias das
cortesãs161, do tomo IX da monumental Comédia Humana de Balzac. É necessária uma
digressão para falarmos de Balzac, pois a epígrafe é o ponto norteador dessa polêmica, porque
está em disputa, o posto de melhor escritor naturalista cearense.
Esplendores e misérias das cortesãs é dividido em quatro partes (1838-1847) e
continua a narrar às desventuras de Lucien de Rubempré, protagonista de As Ilusões
Perdidas162. É um recurso bastante peculiar e complexo, o de fazer seus personagens

159
O texto da epigrafe pode ser consultado no livro disponível em:
https://fr.wikisource.org/wiki/Page:Balzac_-
_%C5%92uvres_compl%C3%A8tes,_%C3%A9d._Houssiaux,_1855,_tome_18.djvu/74
160
Tradução livre: Uma das obrigações as quais o historiador dos costumes não deve jamais faltar é de forma
alguma desgastar a verdade através de arranjos em aparência dramática, sobretudo, quando a verdade tomou a si
a pena de se tornar romanesca.
161
A divisão dos Esplendores e misérias das Cortesãs: Comment aiment les filles (Como amam as cortesãs); À
combien l’amour revient aux vieillards (Por quanto o amor fica aos velhos); Où mènent les mauvais chemins
(Aonde os maus caminhos vão dar) e La dernière incarnation de Vautrin (A última encarnação de Vautrin).
162
O romance Ilusões perdidas, dividido em três partes publicadas entre 1836 e 1843, possui dois cenários
fundamentais: a cidade do interior, Angoulême, e Paris. O herói, Lucien Chardon (em Paris, Rubempré) é um
jovem escritor renomado em sua província, que sonha com a glória literária na metrópole francesa. Ele e seu
266

circularem em diversas obras. O texto da epígrafe é uma fala de uma figura das mais
importantes: Voutrin.
Essa personagem aparece em vários romances da Comédia humana e é um de
seus pontos vitais. A fala está na parte final intitulada “A última encarnação de Voutrin”, mas
está sob a identidade de Abade Carlos Herrera. Como chefe do crime, ela assumiu vários
nomes como Vautrin, Trompe-la-Mort (Engana-a-morte), sr. Saint-Estève, Abade Carlos
Herrera e William Barker, a fim de esconder sua verdadeira identidade, assume o nome de
Jacques Collin, um homem da justiça. Dotado de um misterioso conhecimento dos
mecanismos sociais de Paris, se incube da missão de ajudar jovens ambiciosos, primeiramente
Eugène de Rastignac, em O Pai Goriot, depois Lucien de Rubempré, em Esplendores e
misérias das Cortesãs.
Vautrin tem a sua primeira aparição em O pai Goriot (1835), considerado o
primeiro grande romance de Balzac, abordando temas centrais da Comédia Humana, tais
como dinheiro, ascensão social, amor.
Ele morava, no início do romance, na pensão Vauquer e passa a ‘tutelar’ o jovem
Eugène de Rastignac para ascender socialmente, valendo de variados recursos, lícitos e
ilícitos. É uma famosa passagem do livro, Vautrin mostra a Eugéne os verdadeiros
mecanismos atrozes do jogo social de Paris:
Subir! Subir a qualquer preço. [...]Avalie os esforços que terá de fazer e a ferocidade
do combate. Como não há cinquenta mil bons lugares, vocês terão de se devorar uns
aos outros como aranhas num frasco. Sabe como é que a gente faz carreira aqui?
Pelo brilho da inteligência ou pela habilidade da corrupção. É preciso penetrar nessa
massa humana, como um projétil de canhão, ou insinuar-se no meio dela como uma
peste. A honestidade não serve para nada. Todos se curvam ao poder do gênio;
odeiam-no, tratam de caluniá-lo, porque ele recebe sem partilhar; mas curvam-se, se
ele persiste. Numa palavra, adoram-no de joelhos quando não o podem enterrar na
lama. A corrupção representa uma força, porque o talento é raro. (BALZAC, 2012,
p. 101-102).163

Lembra-nos muito o diálogo entre o pai e o filho do conto ‘A teoria do medalhão’,


de Machado de Assis. Outra alusão interessante é quando percebemos que a descrição remete

amigo, David Séchard, que comprara uma tipografia de seu pai, querem revolucionar a indústria do papel. Ao
mesmo tempo, Lucien torna-se amante da Madame de Bargeton, que o introduz no meio social interiorano.
Desprezado pelos próceres da cidade, ele e sua amante partem para Paris. A vida parisiense é, a princípio, uma
decepção para Lucien, que logo é abandonado por sua amante. Obtém fracasso ao tentar publicar seus livros. Ele
encontra consolo em frequentar O Cenáculo (um círculo de homens de letras) e se volta para o jornalismo, que
antes condenara, mas que o permite obter sucesso material. Cada vez mais ambicioso, escreve para jornais de
tendências políticas diversas, atitude mal vista no meio jornalístico. Com uma nova amante, uma atriz que
também que obter o sucesso, e na tentativa de consagrar o romance histórico que finalmente publicara e, após
uma sucessão de eventos infelizes ocasionados por suas atitudes desonestas, vê o seu sonho de glória literária se
arruinar.
163
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e
notas de Paulo Rónai; Trad. de Gomes da Silveira e Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012. V. 4.
267

bastante à ideias de campo, de Bourdieu. Claro, a diferença é grande, porque Vautrin pinta a
vida como um darwinismo social, mas para entrar com ímpeto e ficar em evidência nos
círculos sociais, é preciso de violência como um ‘projétil de canhão’. Trazemos essa citação
também pela similitude do estado de guerra social descrito por Balzac, em que personagem
pinta de modo maquiavélico as suas engrenagens.
Depois de auxiliar Eugéne a tentar enriquecer, Vautrin aparece sob nova
identidade para ajudar o escritor fracassado Lucien.
Voltando a epígrafe, o contexto é que Vautrin está dissertando para Lucien as
qualidades que um bom romancista deve ter, posto que os planos inicias do escritor foram,
inicialmente, arruinadas. Ele consegue enriquecer por meio de um pacto sinistro com Vautrin
em 1822, contudo faltou-lhe a consagração literária.
Mesmo sendo uma personagem bastante distinta de seu criador, percebemos em
algumas passagens, algumas ideias romanescas do próprio autor. Numa perspectiva
metalinguística, o personagem declara que para atingir o sucesso literário deve ser um
historiador dos costumes, ou seja, estava dando ênfase aos enredos que se passavam em sua
época contemporânea. Mas, sabemos que o próprio Balzac será o modelo desse tipo de
romance com a Comédia Humana, projeto literário, em quantidade e complexidade textual,
ainda não ultrapassada. Essa fala de Vautrin seria uma espécie de fundamento teórico
romanesco que o escritor queria promulgar, porque, não diferente de seus personagens,
também perseguiu a consagração literária.
Para Auerbach, Balzac foi uma peça chave para o desenvolvimento do realismo
moderno na literatura
da forma que se formou no começo do século XIX na França, realiza como
fenômeno estético uma total solução daquela doutrina, mais total e significativa para
a formação posterior da visão literária da vida do que a mistura do sublime com o
grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. Quando Stendhal e Balzac
tomaram personagens quaisquer da vida cotidiana no seu condicionamento às
circunstâncias históricas e as transformaram em objetos de representação séria,
problemática e até trágica, quebraram a regra clássica da diferenciação dos níveis,
segundo a qual a realidade cotidiana e prática só poderia ter seu lugar na literatura
no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma
grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve, colorido,
elegante164.

Ou seja, a vida cotidiana das cidades tornou-se espaço central dos romances e a
epígrafe é uma síntese bastante poderosa da escrita e do método de Balzac, porque foi um

164
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 6ª
ed, 2013, p. 499-500.
268

autor muito ancorado ao seu tempo. Em relação à conturbada história da França165, não
apenas uma testemunha privilegiada, atuou como uma espécie de repórter romancista e um
historiador social.
Rodolfo Teófilo prossegue
Um romance nos moldes do naturalismo moderno, expurgado das obscenidades da
“Carne” do homem, da “Terra”, pensei, iniciando a leitura. Logo nas primeiras
páginas vi que o autor afastava-se do plano, desprezando o conselho de Balzac, que
a descrição da vida burguesa em Fortaleza não exprimia a verdade, faltava cor local,
que o esboço era imperfeito e a ação seria defeituosa. Um casebre de porta e janela
na rua do Trilho nos subúrbios, com um piano na sala de visitas! O pincel de Adolfo
Caminha foi infiel logo no primeiro traço. Como novelista de costumes sacrificando
a verdade a arranjos dramáticos e romanescos. O instrumento de música era lhe
necessário para uma passagem, uma cena do romance, e pô-lo em casa de um pobre
amanuense, que vive mal á custa de seus setenta e cinco mil reis mensais! (1924, p.
43)

No primeiro período, expõe o seu horizonte de expectativas, devido a epigrafe


lida. Cita outra obra, A carne, como exemplo de obra obscena, mas, ao ler as primeiras
páginas, percebe que Caminha se afasta dos conselhos de Balzac: a verossimilhança. Esse é o
tópico, - a falta de verdade - é o motivo de divergência entre os contendores, visto que é a
mesma acusação feita por Caminha, no texto de 1891. Teófilo traz a epígrafe como contra-
argumento a seu favor, citando-a como prova do desvio romanesco de seu oponente. É uma
discussão acerca da circunstância do erro estético em questão e sobre quem o comete. Há a
interincompreesão, pois um acusa o outro e nenhum quer imputar o erro a si.
Sobre a infidelidade, Rodolfo cita um exemplo do início de A normalista, em que
os personagens jogam víspora na casa de João da Mata, situada na Rua do Trilho em
Fortaleza. Ele acha inadmissível a presença de um piano na descrição da casa, visto as
condições modestas do personagem. A questão da verossimilhança166 é um dos pontos
centrais da polêmica. Teófilo percorre cada página do romance em busca de descrições infiéis,
como a da seca no Ceará em 1877.
O quadro é de uma majestade trágica tamanha, que, para comover até as lágrimas,
bastaria simplesmente expo-lo nu, sem arte. Mendonça, o criador cearense, assiste
ao aniquilamento de sua fortuna pastoril, luta até estrebuchar a última rês, perde
tudo e depois emigra para Fortaleza, com a família no préstito da fome, mas todos
bem montados, com os alforjes cheios de carne e farinha. Onde a naturalidade deste
fato? Emigrar em fins de 1877, a cavalo e com provisões de boca é um absurdo.
Quem assistiu ao terribilíssimo flagelo chamado seca, a essa miséria que tudo
avassala no espírito humano diluindo todos os bons sentimentos, não pode deixar de
contestar a opinião de Adolfo Caminha (idem, p. 43).

165
A França pós-Revolução Francesa, o Império Napoleônico, a Restauração, A Revolução de 1830, A
monarquia de Julho, a Revolução de 1848 e o Segundo império.
166
Segundo Aristóteles: “pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que
aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a
verossimilhança e a necessidade” (Poética, Abril Cultural, 1984).
269

O personagem Mendonça a que se refere é o pai da normalista que emigrara para


Fortaleza, por conta da terrível estiagem. Teófilo que fora testemunha ocular da seca, não crê
na personagem, em sua migração, repletas de provisões. Atribui-se como mais verdadeiro,
com mais autoridade em julgar o romance, porque fora testemunha dos eventos
ficcionalizados.
Como aprendemos com Balzac, os romances franceses no século XIX se esforçam
em dar uma imagem da vida em que tanto a realidade externa quanto a realidade individual
das personagens serão decifradas. Se o que se pretende é refletir a vida como ela é, a soma
técnica realista consistirá em chegar à verossimilhança, na reprodução exata da
realidade. Para alcançar este objetivo, o escritor teve que estudar a realidade externa com a
mesma imparcialidade que é estudada, por exemplo, as ciências físicas. É por isso que os
romancistas levaram em conta os métodos de observação das ciências experimentais,
documentaram os menores aspectos para conseguir capturar os ambientes, a psicologia das
pessoas e, em geral, o ambiente da nova estrutura. Um exemplo famoso é que Flaubert
consultou tratados médicos para descrever a morte por envenenamento de Madame Bovary
(1857) e, ao mesmo tempo, refletia o triunfo do realismo como um movimento literário, que
ambicionava em refletir fielmente e objetivamente a vida.
Não devemos ignorar que Teófilo fez uma seleção bastante criteriosa nos trechos
analisados de A normalista. Como um caçador de erros, escolhe as passagens que descrevem
a seca de 1877 e trechos com menções a termos científicos. Ou seja, ele selecionou trechos
em que ele se afirma como autoridade científica para julgar o romance. Ora, se o naturalismo
concebe uma visão racional e científica do mundo, Teófilo exige que Caminha tenha os seus
mesmos conhecimentos de ciência. Tomando esse critério, avança em seu julgamento
Adolfo Caminha sacrificou a verdade nessa passagem por amor do romanesco. No
êxodo que descia do sertão, além da fome apareceram enfermidades devidas á
miséria orgânica. As figuras esqueléticas que enchiam as estradas em enchiam os
caminhos, aquelas mulheres escaveiradas, que traziam os filhos a chuparem em vão
os peitos, murchas pelancas pendentes das costelas, contrastavam com os inchados,
com os doentes de anasarca. O autor da “Normalista” assim diz a pág.39: “Uma vez
ele próprio Mendonça vira de perto agonia lenta de uma mulher asfixiada pela
elefantíase-pernas inchadas, ventre inchado, rosto inchado, horrível” (idem, p. 44).

Esse inchaço que tanto impressionou o personagem, diferente do diagnóstico dado


pelo narrador, é corrigido por Teófilo como o resultado da profunda discrasia do sangue,
devido ao estado de depauperamento em que se achava o organismo. Conhecimento muito
específico que passa despercebido ao leitor leigo. Percebemos que a discussão sai do âmbito
literário e gira em torno do uso correto do termo “elefantíase”
270

Supor que os indivíduos inchados durante a seca eram doentes de elefantíase, revela
nenhum conhecimento de patologia, cujas noções são indispensáveis a um escritor.
Adolfo Caminha podia ter evitado este erro, e inúmeros outros, se tivesse consultado
qualquer dicionário de medicina. Um escritor criterioso não aborda um assunto sem
o conveniente preparo. Leia o autor da “Normalista” alguma coisa sobre elefantíase
e se convencerá da sua falta. (id. p. 45)

Teófilo associa o domínio da patologia como valor essencial ao um romancista


moderno. Interessante o jogo dialético estabelecido pelo discurso polêmico, o antagonismo de
opiniões sobre o uso e valor da ciência: Teófilo a considera como essencial a um escritor,
enquanto Caminha condena o seu uso demasiado na escrita do romance.
Em outra garimpagem de erros, Teófilo cita um equívoco histórico relacionado à
Igreja do Sagrado Coração de Jesus, quando os retirantes chegam em Fortaleza
A caravana, antes de chegar ao ponto de destino, como bom prenuncio, avistou o
campanário da igreja do Sagrado Coração de Jesus. Nem os alicerces deste templo
haviam se cavado ainda! A senhora Baronesa de Aratanha, a quem deve se deve a
construção dessa igreja, já tinha a ideia do templo em mente, mas ainda não estava
escolhido o local. E assim são as observações de Adolfo Caminha (id. p. 45)

A cena ocorre em 1877 e o templo mencionado tem a construção iniciada a partir


de 1878, com conclusão em 1886, a mando do Barão de Aratanha e do Bispo de Fortaleza
Dom Luís Antônio dos Santos167.
Teófilo tão obcecado em encontrar e expor erros no romance de Caminha, revela
esse equívoco histórico que para nós não interfere em nada em relação ao entendimento da
narrativa. Os leitores específicos de Fortaleza podem observar esse erro ‘histórico’, mas a
menção à igreja ocorre três vezes no livro e serve apenas para situar geograficamente os
personagens, no espaço romanesco do enredo. É um apontamento que consideramos
irrelevante pelo romancista para o entendimento do romance.
Em outros momentos dos artigos, Teófilo faz confusão entre a Fortaleza real e a
imaginada por Caminha, continuando com os apontamentos inverossímeis, há um bastante
peculiar que lhe causou maior desagravo.
A convivência na Escola Normal, nesse lugar de perdição, como afirma Adolfo
Caminha, a perderiam fisicamente. Aquele estabelecimento da educação foi
injustamente escolhido pelo autor da “Normalista” para corromper a heroína de seu
livro. A prevenção de Caminha contra a Escola Normal ressalta de quase todas as
páginas, e ás vezes caluniando com acrimonia. Maria do Carmo frequentava uma
escola sem mestres e sem moralidade. Não sei qual é mais atacada pelo romancista,
o ensino ou a moralidade do estabelecimento. (id. p. 48)

167
Sobre a História da Igreja do Coração de Jesus, consultar em:
http://santuariosagradocoracaodejesus.com/a-igreja-do-coracao-de-jesus-em-fortaleza/
271

Assim com a Fortaleza de papel, Teófilo toma a Escola Normal do romance como
real. Entendemos que nenhum escritor tem a obrigação de transpor a realidade para o texto,
algo impossível, porque sabemos que é uma estilização da linguagem, materializada pelo
código linguístico. Nesse tipo de julgamento que Teófilo se desvia da crítica e foca em buscar
erros para deslegitimar o romancista.
Não podemos descartar que Caminha se inspirou em pessoas reais para compor
seus personagens, contudo não se pode tomar por absoluto qualquer tipo de associação, como
Teófilo faz, ao afirmar que o diretor do romance é uma caricatura do professor José de
Barcelos168.
Ao tentar defender um princípio moralizante em relação ao romance, em alguns
momentos, para nós torna-se hilário. Num trecho do romance, Zuza conversa com um amigo
sobre as jovens normalistas e destacam que são ‘modernas’
Todas elas sabem mais do que nós outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e
tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras
doutoras de borla e capelo em negócio de namoros. Sei de uma que foi encontrada
pelo professor de história natural a debuchar um grandíssimo falo com todos os seus
petrechos... — O quê, homem?
— É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro de
Arronches e lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que já tem filhos.
— Ó senhor, então, ao que me vai parecendo, está muito adiantada a nossa pequena
sociedade! exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pince-nez. Pois olha, eu
supunha isto aqui uma santidade (CAMINHA, 1997. p. 43-44)

Ora, o autor d’A fome se irrita profundamente com essa passagem pois
Como professor de História Natural da Escola Normal naquele tempo, protesto
solenemente com essa inverdade e essa monstruosa calunia, cujo fim principal é
desacreditar o nosso melhor estabelecimento de educação. Maria do Carmo
precisava de um meio que corrompesse e Adolfo Caminha entendeu encontrar a
Escola Normal (1924, p. 50).

Eivado de moralismo, protesta contra a inverdade pintada pelo escritor, com o


propósito de caluniar a Escola em que deu aula. Observamos que o Adolfo Caminha
desenvolve a tese de que o meio corrompe a personagem. As cenas, os espaços e as
personagens descritas pelo narrador são construídas e realinhadas como corruptas para criar
uma coerência ficcional para embasar a referida tese. A Escola normal é um desvirtuamento
da realidade e isso é proposital, o que a caracteriza como um espaço ficcional. Mas Teófilo a
toma como real.

168
Do diretor, a quem responsabiliza por tudo quanto de ruim acontece na Escola, assim descreve a figura na
pág. 98: “Fez-se um silencio respeitoso, e dai a pouco surgia no alto da escada a figura antipática do diretor, um
sujeito baixo, espadaúdo, cara larga e cheia cm uma venta excessivamente grande e chata, dilatando a uma sestro
especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em costeletas compactas e brancas olhos miúdos e vivos, testa
inteligente...” (TEÒFILO, 1924. p. 51).
272

No processo em que Maria do Carmo sede ao assedio do padrinho, ele considera


isso inadmissível. Porém, observa esse fato do enredo, apenas do ponto de vista patológico169,
e não como uma questão psicossocial e criminosa.
Nos outros artigos, Rodolfo prossegue, verificando erros científicos e
inverossimilhanças no romance. Como o seu algoz fizera, também o aconselha como
romancista
O bom escritor é o que estuda o meio em que tem de agir as suas personagens, com
os seus temperamentos, aptidões, qualidades físicas, psíquicas, atávicas, hereditárias,
mas tudo no terreno da verdade, da lógica, resistindo à mais severa análise. A
Adolfo Caminha falta o que não se aprende, nasce-se sabendo: criar tipos, movê-los,
fazei-os sentir, arquitetar enfim o romance. Os seus tipos vê-se que são aleijados,
que o criador deles não tem uma visão nítida do ser humano. Não fotografa com a
precisão do escritor psicólogo as personagens no movimento real da vida com os
seus verdadeiros tons. (id. p. 57-58)

Nesses conselhos, notamos uma série de características que o próprio escritor


julga em si como aptos a um adequando romancista naturalista.
As características técnicas mais importantes do romance realista que nos levariam à
captura totalizante da realidade são: o objetivismo – o romancista torna-se um notário do
tempo presente, mas sem desistir de tomar partido de suas ideias através de um
personagem. Oposto ao romantismo no qual o subjetivismo prevaleceu; o narrador
onisciente - atua como um demiurgo cientista, é o único que conhece e explica tudo; a
descrição - o romancista cuida bem de situar seus personagens e, portanto, recorre a
descrições detalhadas do meio ambiente e também do aspecto deles, acima de tudo,
fisicamente e a contemporaneidade - romance é concebido dentro de um quadro concreto,
como é a sociedade contemporânea. Portanto, sua carga ideológica é uma das características
definidoras até sermos levados, em boa parte, ao romance de teses. Resumidamente, Adolfo
Caminha falha, não opinião de Teófilo, por não fotografar severamente a realidade e o ser
humano
No quarto artigo, há outro momento peculiar apontado em torno do romance.
Após ser deflorada e com os sinais notórios de gravidez, para evitar o escândalo, João da
Mata e a esposa vão com Maria do Carmo a um sítio na Aldeota, distante alguns quilômetros
da cidade. Teófilo, professor e autor de textos de botânica, se atenta para um detalhe da

169
É crível que uma moça inteligente, com certa instrução, apaixonada por um rapaz bonito, com o qual tem
entrevistas diárias, deixe-se sequestrar por um velho nojento, Bêbado e, sobretudo, seu pai de criação? Só um
estado mórbido, uma lesão mental, acessos de ninfomania podiam determinar essa depravação do sentido
genésico, essa tendendo para criatura do sexo diferente, qualquer que seja a sua condição, e, Maria do Carmo
não era uma desequilibrada, não era uma enferma. O defeito é somente de observação: o autor ainda uma vez
sacrificou a verdade. (1924, p. 51).
273

descrição da cena da normalista: “Sentia-se melhor respirando aquele ar, bebendo toda a
selvagem frescura do campo, todo o delírio e inefável perfume que se levantava dos crótons
essas bravas, lê-se à página 267” (idem, p. 63).
Por essa passagem, Teófilo atesta a ignorância do autor em matéria de botânica ao
situar o cróton nas areias da Aldeota, além de não ter “conhecimento de vegetal algum
daquele gênero com perfume delicioso e inefável” (id. p. 63). Atesta como os crótons
brasileiros cheiram mal.
Mas como um cientista experimental,
Quis informar-me de viso, e fui á Aldeota. Não encontrei plantas do gênero croton,
porém da mesa família das Euphorbeaceas, o pinhão de purga (Jatropha Curcas L.)
a mamoneira (Ricinus communis L.) Quem conhece essas plantas pode muito bem
avaliar a extravagancia do olfato de Adolfo Caminha, o seu erro de observação,
qualificando o cheiro delas de delicioso e inefável. (id. p. 64).
O cúmulo do empirismo: ir à Aldeota para averiguar de que não há o vegetal lá,
para ter o prazer de atestar de que está com a verdade.
Ao chegarmos ao fim dessa primeira série de artigos, observamos que Teófilo só
considera o texto se estiver de acordo com os preceitos científicos. Esse tom normativo é
expresso em diversos julgamentos e conselhos: “Adolfo Caminha como escritor naturalista
não deve ignorar o como dos fenômenos, embora o porquê lhe escape como a todos os que
são sábio mesmo” (p. 70); “deve estudar um pouco História Nacional, ciência que todo
homem deve conhecer” (p. 69) e, e modo imperativo, conclui “recolha-se, medite o autor da
‘Normalista’ e convença-se de que escreveu um livro falso em todos os sentidos. (idem,
ibidem).
Ao afirmar que todo escritor é obrigado a estudar ciência, é uma postura bastante
radical, porque
A formação científica de Rodolfo Teófilo leva-o a aproximar, de forma exagerada, o
seu modo de fazer ficção com o seu modo de fazer ciência. Ele não pondera com
leveza a diferença entre as grandezas dos fenômenos literário e natural. O fenômeno
literário, a seu ver, é verificável como o natural; assim, se este é para ele examinado
na natureza natural, o outro também pode ser averiguado e determinado pelas
relações de natureza social. Sabemos que a densidade do literário encontra-se
assentada na realidade imediata. Acontece que o fenômeno literário dá-se por meio
de figuras textuais modalizadas através de uma ordenação ficcional confiada ao
texto, momento em que recebe acomodações da linguagem em configurações
literárias (GUINSBURG, 2017, p. 366).

No primeiro artigo, em que supostamente analisou A normalista, Teófilo, por mais


que tentasse defender o cientificismo, a sua escrita foi permeada de impressionismo e
expressões passionais. Através de sua escrita, nos ofereceu a imagem de um crítico moralista
e normativo, professor de ciências naturais, cronista das secas e romancista naturalista.
274

Contudo, todos esses aspectos giram em torno de sua condição como cientista,
como sujeito que adotou a ciência como modo de interpretação da vida e como método de
escrita literária.
No segundo artigo estampado nas páginas d’O pão, “Cartas literárias”, Rodolfo
Teófilo defende novamente seu romance contra as “calúnias” de Adolfo Caminha e, dessa
vez, passados alguns meses, percebemos que a mágoa tornou-se maior. Além como
romancista, Teófilo engendra um discurso para desqualifica-lo enquanto crítico e os traços de
seu ethos ficam mais explícitos.
Assim como o artigo anterior, Teófilo contextualiza a situação e o motivo da
escrita de seu texto. Além do aparecimento escandaloso de A normalista, noticia a publicação
das Cartas literárias, denominado por ele como “literatolices”
Acabo de ler o novo livro de Adolfo caminha no qual são apreciados alguns de
nossos mais distintos homens de letras. [...] Agora vejamos porque nelas figura o
meu nome. Li o que me dizia respeito e aos meus companheiros. A mim coube uma
apreciação á “Fome”, livro que publiquei em 1890. Recordei-me de ter lido algures
cousa parecida e recorrendo ao meu “Livro azul” fui encontrar a tal apreciação,
anônima, menos pulha, mas também, menos desenvolvida, na “Revista moderna”,
que se publicou em Fortaleza em 1891. (1924, p. 73)

Nesse trecho, percebemos que Rodolfo Teófilo se enquadra entre os homens de


letras, os mais “distintos”, posição legitimada pelo seu curso superior em Farmácia, situação
muito comum no século XIX, em que os bacharéis se julgavam homens do espírito,
destacados dos homens comuns. O seu nome figurou no livro do crítico, porque publicara um
livro, outro sinal de distinção. Se não tivesse publicado nada, não haveria de receber uma
‘apreciação pulha’, como atestou.
Adiante, afirma “Adolfo Caminha havia perfilhado o seu mostrengo e o
estampado nas “Cartas literárias”. Como não se trata mais de um anônimo, assistindo-me o
direito de defesa vou mostrar a falta de critério, de conhecimentos, de sinceridade do meu
crítico” (id. p. 73. p.). Também. percebemos Teófilo utiliza o jargão jurídico, ao afirmar que
seu texto é um “direito de defesa” contra as acusações do crítico, o espaço do Jornal O pão
adquire uma cenografia de um Tribunal, no qual os leitores serão os juízes de quem teve a
melhor performance retórica. No texto polêmico, publicado no jornal, os leitores não
buscavam uma verdade, mas qual adversário seria derrotado. Uma luta disfarçada de razão.
Outro ponto interessante, é que por meio de adjetivos pejorativos, o alvo de
Teófilo é a pessoa de Adolfo Caminha, recurso retórico-argumentativo chamado de ‘ad
hominem’, que ataca seus traços morais e sua personalidade no lugar de refutar os argumentos
que ele lança.
275

Assim como a primeira série de artigos, Teófilo vai citando diversos trechos do texto de
Caminha, para estabelecer o ponto de discórdia e apresentar o argumento contrário.
Depois de dizer que não conhece os livros que tenho publicado, antes de mostrar os
defeitos da ‘Fome’, diz ex-catedra: “O que se desde já vou afirmando é que o sr.
Teófilo pode ser cidadão muitíssimo trabalhador, o ativíssimo fabricante de vinho de
caju (que o é) incansável mesmo nos labores de sua profissão, extremamente
amoroso para com sua terra natal ter todas as qualidades de bom cidadão, mas em
tempo algum conseguirá um lugar proeminente na literatura nacional, falta-lhe certo
quid, largueza de vista, orientação, bom-gosto, predicados indispensáveis a quem se
aventura neste terreno.” (id. p. 74)

Maingueneau nos alerta que a polêmica nunca será um debate sincero, pois o
locutor quando cita ou comenta o enunciado do seu oponente, o faz como um simulacro para
triunfar o seu ponto de vista (2005, p. 103). Ele cita diversos trechos do artigo para balizar a
sua argumentação. A sua escrita é performática, dando-nos uma imagem de sua reação
perante o outro “Quase esbofei com a leitura deste período, afinal tomei folego e vamos
continuar. Dos dizeres acima, embora com a linguagem de polemista de roça, tive um lucro, o
reclame que faz Adolfo Caminha do meu vinho de caju” (id. 74).
Nesses trechos e em outros, Teófilo tece-lhe os epítetos de “pulha”,
“monstrengo”, “zabumba”, “polemista de roça”. Ao desqualificar o escritor, ressaltando as
suas ‘faltas’, Teófilo traça alguns pontos de sua visão de crítica literária: critério,
conhecimento, sinceridade.
O contraditório é que, quiçá, nem ele mesmo, absolutamente, os utilize. São
critérios ligados à sinceridade e a erudição, mas que ele abandona em virtude do ataque
pessoal.
É a partir desses três pontos apresentados que ele deprecia Adolfo Caminha como
escritor e crítico, pautando a análise de seu artigo. O texto é visto como uma metonímia, uma
extensão de seu autor. Ao atacar o texto, ataca o autor.
Anteriormente, Caminha traçou um perfil de Teófilo em seu artigo, a partir da
leitura do romance A fome: um moralista, artificial, romântico, piegas, pedante, apegado a
digressões científicas. Teófilo responde afirmando
Talvez o meu crítico supusesse que eu me molestava dizendo ser eu fabricante de
vinho de caju; se assim pensou enganou-se, a minha vaidade não chega a empáfia
balofa; tenho muita honra em ser industrial, em harmonizar o útil ao agradável. Nas
horas vagas escrevo sonetos e contos e por desfastio às vezes aponto as parvoíces
literárias de romancistas pulhas. [...] O que estranho é ter Adolfo Caminha quando
desarrumou a minha bagagem literária cientifico, (como chama) encontrado vinho de
caju; mas se o encontrou foi bom, bem manipulado, feito com aqueles cajus doces da
Aldeota, vendidos pela tia Joaquina do mestre Cosme. Há pouco tempo quando
escrevi uma ligeira apreciação da ‘Normalista’ não indaguei se Adolfo Caminha era
alfaiate, sapateiro ou sacristão (idem, p. 74-75).
276

Como o assunto era literatura (a bagagem literária), Caminha tentou depreciar


Rodolfo Teófilo pela profissão – farmacêutico e fabricante de cajuína, atividades
extraliterárias. Teófilo não o nega e se sente honrado por ser conhecido como por isso, de sua
imagem social. Até o fim de sua vida, todos os dias eram estampados nos jornais do Ceará, a
propaganda da Cajuína e de remédios fabricados por ele.
Outro dado de suma relevância é o uso da expressão “nas horas vagas” que
delimita que a literatura não é a atividade principal de Teófilo. Ele era professor do Liceu,
farmacêutico, industrial e, como jornalista, escrevia para jornais textos de divulgação
científica e de sua atividade sanitarista. Percebemos que os projetos literários constituíam uma
complementação de sua atividade intelectual.
E como crítico, ressalta-se mais a sua atitude de polemista a apontar, ‘por
desfastio’, ou seja, com satisfação, as possíveis ‘parvoíces’ de literatos de mau caráter. Fica
implícito que Adolfo Caminha se enquadra nessa categoria. Enquanto taxa o outro de canalha,
se descreve como escritor digno e honrado.
O argumento que Teófilo mais ressalta, novamente, é falta de conhecimento
científico de Adolfo Caminha.
Reconheço em Adolfo Caminha talento e um certo quid para o romance; mas falta-lhe
orientação e sobretudo um certo preparo cientifico. Estudando, pode vir a fazer figura
nas letras pátrias. O que me revoltou na apreciação que Adolfo Caminha fez da
‘Fome’ foi sua falta de critério e de sinceridade, como provarei (p. 75).

Ele afirma que o conhecimento científico é fundamental para obter sucesso como
escritor naturalista. Julga-se superior, pois ele já é um cientista, fabricante de remédios,
xaropes e bebidas e não apenas um romancista que deveria estudar ciência para embasar a sua
escrita. Ele adotou a ciência como critério da ‘verdade’ e se outorga no discurso uma posição
institucional e marca sua relação com um saber científico.
O critério da sinceridade é relacionado ao terrível episódio da Seca de 1877, que
estão presentes em ambos os romances. O autor afirma que
Adolfo Caminha não conhece a seca, o maior mal que pode flagelar um povo. Se
tivesse assistido uma dessas calamidades, como eu, embora ao abrir-se das
necessidades materiais da vida, havia de perder parte de sua musculatura e quase a
paz do espirito. Se não tivesse n’alma anestesiados os sentimentos de piedade (id. p.
76).

Nesse trecho, Teófilo afirma a sua autoridade em relação à seca, porque além de
ser testemunha ocular, atuou como sanitarista, conferindo um status de verdade ao seu
discurso. Não era um romancista de gabinete, esteve presente no episódio histórico e o
277

escreveu a partir de seu testemunho e de critérios científicos, requisito mais importante do que
os estéticos.
Teófilo cita e comenta outro trecho que revela um recurso desleal de seu
adversário
Ouçamos o desgraçado retirante a respeito da mucunã: sua massa é de cor de carne,
o sabor super adocicado e os tecidos de uma macieza que agradecem ao paladar... E
assim por diante, o homem fala em tecidos vegetais como um doutor!”. Ninguém
suporá lendo este trecho e não tendo lido o que está escrito na ‘Fome’, página 93,
que Adolfo Caminha fosse capaz de uma inverdade, mais ainda adulterar um fato,
um período de uma narração para pode-lo criticar. Quem lê o que escrevi á citada
página vê que não se trata de mucunã e sim de outro vegetal, terrível veneno, cuja
ingestão produz a destruição completa de alguns dos sentidos em poucas horas.
Porque Adolfo Caminha não transcreveu toda a informação do retirante sobre a
planta? Porque a mutilou? Foi porque publicando-a em sua integra, não convinha a
sua crítica. (id. p. 76)

Diante da acusação, verificamos a primeira edição de A fome170 e constatamos que


Teófilo tem razão, Caminha suprimiu um grande trecho do texto para associar a mucunã a
referida descrição, para embasar à crítica em relação à erudição do sertanejo. O romance tem
diversos trechos com uso demasiados de termos científicos, não havia necessidade de
Caminha adulterar, intencionalmente, o texto de Teófilo para criticar o seu cientificismo. Do
ponto de vista da crítica literária, foi um ato de má fé.
Teófilo defende que a seca assolava a todos, camponeses, fazendeiros, letrados,
médicos, etc. A linguagem do fazendeiro embora não seja ele doutor diplomado, é limada.
Conta a história de sua desgraça, não como um analfabeto, mas como homem de certa cultura.
Em seguida, a discussão é desenvolvida em torno da comparação dos estilos de
escrita de A fome e A normalista
Outro defeito d’ A fome é o estilo, que, no dizer de Caminha, é frouxo, as cenas
sem arte e sem verdade. Sei que aquele livro tem grandes defeitos, divagações
cientificas que prejudicam o entrecho; mas as cenas são verdadeiras e não falsas
como diz Caminha. Nego competência ao autor da “Normalista” para avaliar o estilo
e estética de qualquer escrita. Eu podia citar páginas e páginas dos livros de Adolfo
Caminha escritas em estilo manco e repletas de cenas pulhas, e quem tem
semelhante trave nos olhos não pode ver o argueiro no olho do vizinho (id. p. 79).

Aqui, Teófilo reconhece que há problemas e o uso demasiado de ‘divagações


científicas’, em compensação são mais verdadeiras. Assim, como a primeira polêmica, a
distinção entre a verdade e a mentira são as medidas usadas por ele para a atribuição de valor
literário. O seu desejo de atingir a verdade configura o seu discurso literário e crítico. Assim,

170
Na versão editada pela Academia Cearense de letras, o trecho se encontra na página 46 (1979).
278

aponta as más qualidades do seu romancista opositor adjetivando a falsidade de suas páginas
escritas.
Adolfo Caminha criticou o exagero cientificista do romance A fome. Para
estruturar a sua defesa, Rodolfo Teófilo comparou o protagonista de seu livro, Manoel de
Freitas com o personagem d’A normalista, o retirante pai de Maria do Carmo, Mendonça.
Ele alega que o seu personagem, por remeter a um modelo real de retirante, é mais
cearense, mais verdadeiro. Mesmo assim, no texto, Teófilo remete aos leitores para que
‘digam qual é mais real’, ou seja, o público é o juiz da polêmica.
A seguir, Teófilo declara o ponto que lhe causou mais mágoa, no comentário do
seu oponente.
De todas as injustiças que o Srº Caminha faz A fome a que mais me doeu e me
revoltou mesmo foi a falta de verdade nas cenas que descrevo. Tenho consciência do
contrário; percorri os abarracamentos, ouvi com grande atenção e piedade as
narrativas dos infelizes famintos e assim julguei ter fotografado no meu livro, não
todos os episódios d’essa angustiosa época, pois os que julguei mais extraordinários
sob o ponto de vista das misérias humanas. Esse assumpto tratado por Alencar,
Aluísio ou Guerra Junqueiro daria páginas admiráveis de estilo e verdade, diz o meu
crítico. O meu amor próprio nunca cogitou de elevar-me às grandes alturas onde
pairam as águias. Não foi a ambição de glórias, de renome que me fez escrever a
história da seca, mas a necessidade de deixar escritas algumas informações d’esse
tempo aos nossos pósteros. A minha envergadura é pequena para alar-me as cumeadas
onde estão Alencar, Aluísio e Junqueiro, e sei que descrevendo a seca eles dariam
páginas de melhor estilo, de mais arte, porem de mais verdade a minha consciência diz
que não (sic) (id. p. 80).

Para defender-se da acusação de faltar com a verdade, mostra o seu método de


trabalho para escrever o romance: pesquisas de campo, entrevistas com os retirantes, o exame
de documentos. São as mesmas metodologias empregadas no desenvolvimento de suas obras
historiográficas: História das secas (1877-1880), A seca de 1915, A seca de 1919, A
libertação do Ceará e A sedição de Juazeiro.
O método empírico de ‘coleta de dados’, a “observação e estudo direto da
realidade foi assaz empregada por Zola. Para escrever Germinal, passou meses numa região
mineira. Ele frequentou cortiços, bebeu cerveja nos botequins, desceu ao fundo dos poços
para observar atentamente o trabalho dos operários” (PINHEIRO, 2011).
Rodolfo Teófilo segue a metodologia científica para escrever seu romance. Para
explicitar ainda mais a sua observação rigorosa, ele utiliza a metáfora “fotografar”, como
sinônimo de seu fazer literário. Apesar de afirmar que “fotografa” a realidade, ele faz uma
seleção dos fatos mais extraordinários sob o ponto de vista das misérias humanas.
Outra imagem que Rodolfo cria para si é a do intelectual modesto, que não atua na
sociedade visando a glorificação como literato, tornar-se consagrado como os escritores
279

citados. Alencar, Aluísio, Guerra Junqueiro são comparados à águias, aves que atingem
alturas elevadas, conotando uma distância estética com Teófilo, que reconhece
Ele assume que escreveu A fome pela “necessidade de deixar escritas algumas
informações d’esse tempo aos nossos pósteros”, por uma questão humanitária, dando a sua
literatura, uma função jornalística e memorialística.
Sobre o seu cientificismo, ele declara:
Outro defeito que Adolfo Caminha aponta em A Fome é o abuso que faço de termos
científicos. Não duvido que a leitura quotidiana de obras de ciência tenha feito
incorrer nessa falta, mas não a ponto de sacrificar as cenas que descrevo, a estética
dos quadros que pinto, que reproduzo do natural. Quer o meu critico que eu chame
passarinha em vez de baço [...] Não, o modo de dizer deve estar de acordo com a
cultura do indivíduo. Antes de qualquer justificativa estranho o procedimento do
meu critico, a sua delealdade, pois, além de transcrever erradas as palavras que vão
em itálico, leucolitos, em vez de leococitos, [...] Não, Sr. Caminha, o modo de dizer
deve estar de perfeito acordo com a cultura intelectual do indivíduo. (id. p. 87).

No trecho, Teófilo exibe os erros de fisiologia de Caminha, desautorizando a sua


escrita. Consultamos a primeira edição de A normalista e contatamos o erro ortográfico.
Contudo, como sabemos que erros tipográficos eram muito comuns nessa época, não
podemos atestar que o equívoco era do próprio Caminha. Mas essa passagem como outras,
deu margem às censuras.
Ele revela que as suas preferências são as leituras científicas, tornando a ciência o
seu estilo de escrita literária. Ele usa o romance para realizar seus estudos de caso, como por
exemplo, o caso dos efeitos da anasarca no organismo dos indivíduos. Sendo o romance, na
sua visão, um tratado cientifico, ele não pode abandonar o seu discurso específico.
E conclui a sua série de artigos dando ao “Sr. Caminha”, como sugestão de
leitura, o seu próprio livro História das secas, pois julgou o autor do Bom-criolo
desconhecedor dos assuntos das secas.
Concluindo, peço a Adolfo Caminha para ler a – História da Seca do Ceará 1877 a
1880- essa tragédia tremenda que teve por teatro a sua terra e a minha, pois
encontrará nela um farto manancial de fatos extraordinários, todos devidamente
documentados (id. p. 92).

O livro de Teófilo tem um longo apêndice repleto de fac-símiles de documentos,


que constituem as ‘provas jurídicas’ de seus argumentos, atestando a sua crença no
documento.
O pesquisador Sânzio de Azevedo, tece o seu balanço do referido confronto
Na verdade, o admirável pintor d’A Normalista não deixa de ter alguma razão no
que tange ao aspecto puramente estético, a literariedade em Rodolfo Teófilo,
notadamente em seu romance de estreia, mas é evidente a injustiça quanto ao
problema da verdade nas cenas descritas n’A Fome [...]. Ninguém será tão
inadvertido que julgue estarmos esquecendo que existe uma verdade na vida e uma
280

verdade na arte: um escritor de pulso poderá infundir, literariamente, maior dose de


verdade num episódio puramente ficcional do que um autor medíocre o fará num
fato realmente acontecido. Não é este porém o caso de Rodolfo Teófilo: a falta de
um melhor instrumento linguístico não chega a prejudicar a realidade das cenas
descritas n’A Fome, como, por outro lado, a falta da verdade científica n’A
Normalista não a compromete como obra literária (1985, p. 60-61).

Após o estudo dessa polêmica, constatamos que Rodolfo Teófilo, como um


sujeito enunciador, não escreveu seus textos em “solo institucional neutro e estável”
(MAINGUENEAU, 2001), utilizou o jornal O pão para responder ao texto de Adolfo
Caminha e para desmoralizá-lo como romancista. Teófilo, adotando um caráter normativo,
preocupou-se, não apenas em garimpar defeitos do romance, mas em investir contra a pessoa
do escritor. Era um pugilato textual, no qual as destrezas argumentativas e o volume do ‘grito’
determinariam o prêmio ao vencedor: o título de melhor escritor naturalista. Ao adotar um
ethos polêmico e panfletário, ele constituiu uma escrita provocativa para legitimar o seu
conhecimento científico e seu engajamento intelectual.
Se “todo homem traz em si uma espécie de rascunho” (Lejeune, 2014, p. 78) de
sua vida, Rodolfo Teófilo, vai moldando ao longo dos anos para a sociedade uma imagem de
si relacionada à sua formação e sua profissão – farmacêutico/cientista –, mas também
relacionando às suas atividades intelectuais, explicitando o seu domínio formal das letras e
dos instrumentais teóricos e científicos.
Por meio de antonomásias, Teófilo constrói uma série de desqualificativos de
Adolfo Caminha, organizados em dois eixos, no âmbito da escrita e da crítica. No primeiro
artigo, o traço como naturalista infiel a verdade; escritor sem critério; desconhecedor de
psicologia; ignorante em botânica e autor de livro falso. No segundo, como literatolo;
polemista de roça; monstrengo; papão; falta de orientação e de preparo científico; mau juiz;
crítico incompetente; romancista de costumes; injusto e incoerente.
Como leitores críticos dos romances entre si, os dois cometeram os mesmos erros:
o impressionismo, a incessante procura de erros linguísticos e de verossimilhança, a pedância
e a vontade de derrotar o adversário. Mas os dois tinham problemas de romancistas estreantes.
Mesmo lutando pelo título de melhor romancista naturalista cearense, percebemos que cada
um foi um naturalista à sua maneira.
281

4.4 José Veríssimo leitor de Os Brilhantes

Os Brilhantes é o segundo romance de Rodolfo Teófilo, publicado em 1895. Após


a experiência de escrever A fome, o autor tenta aperfeiçoar-se na estética naturalista. Ele pinta
mais um cenário da seca, enfatizando uma de suas consequências mais evidentes – o cangaço
e a luta entre bandos de cangaceiros. No seu afã de romancista, Rodolfo Teófilo tentou
delimitar a temática e o método do romance como “psicologia de um bandido.”
Embasado sob este subtítulo, José Veríssimo não poupa o autor de uma severa
análise, assim como outros críticos, salienta que Teófilo é um grande conhecedor da natureza
e dos costumes do Ceará e já tem várias obras conhecidas, tanto de caráter literário, quanto de
história e de ciência, contudo falha no esforçado empreendimento que é a feitura de um
romance.
Veríssimo aponta um aspecto importante do livro que é a sua
epígrafe que lhe pôs de “estudo de psicologia”. É talvez ambiciosa, e força a crítica a
ser menos condescendente na apreciação dele. Sou dos que pensam que se está, à
conta de Stendhal, de Balzac e modernamente de certos naturalistas, abusando deste
termo de psicologia e psicólogos. O mais insignificante conto, a mais trivial história
novelesca, se pretendem condecorar com o qualitativo de “estudo psicológico”, e a
cada passo nos surdem (sic) Shakespeares a esgaravatar a alma humana e pô-la nua
perante os nossos olhos. Deixemos em paz a psicologia. No livro do Sr. Teófilo não há
de encontrá-la. O caso de Jesuíno Brilhante, o herói, o protagonista do livro, é antes
fisiológico que psicológico (VERÍSSIMO, 1976. p. 161).

Como observamos no segundo capítulo dessa pesquisa, o critério de julgamento


de José Veríssimo era o estético e o linguístico. Se o autor promete um estudo psicológico,
espera-se tal estudo. Nesse quesito, concordamos com o crítico paraense. O projeto de
Rodolfo Teófilo foi bastante ambicioso, ao declarar que seu romance seria um estudo
psicológico. Porém, a causa da adesão à bandidagem do protagonista Jesuíno Brilhante é
hereditária, ou seja, o apreço pela violência mostrado é de origem genética.
Para nota de rodapé
Viajava com o seu parente Francisco Botelho, autoridade policial do Patu, em tempo
de grande agitação popular, devida ao recrutamento que então se fazia. Ao
atravessarem uma picada, já ao morrer do dia, foi disparado sobre Botelho um tiro
de bacamarte, cuja bala, despedaçando-lhe o crânio, matou-o imediatamente (...) O
sangue da vítima havia-lhe borrifado o rosto, e a fisionomia do Brilhante foi pouco a
pouco perdendo a expressão de assombramento, para se carregar de uma ferocidade
que metia medo. Aquele semblante plácido de outrora era crispado agora pelas
fundas linhas do ódio. Uma mudança radical havia se operado naquela criatura.
Portador da nevrose do homicídio, herdada de um de seus ascendentes maternos,
mas até então em estado latente, Jesuíno teria talvez logrado viver sem matar, se não
tivesse sido testemunha do assassinato de seu parente ( TEÒFILO, 1972. p.76).
282

A análise da formação da bandidagem de Jesuíno deu-se à luz do determinismo


geoclimático e genético. José Veríssimo pondera sobre a obra:
O livro do Sr. R. Teófilo é de uma leitura um pouco difícil e desprazível, não só
porque carece das qualidades de uma obra de arte como pela multiplicidade enfadonha
de fatos e cenas, cuja repetição, sem interesse real para o estudo do tipo, nos podia ser
poupada. Como romancista faltam ao Sr. Teófilo não só a forma, pois a sua é
inadequada ao gênero, sem distinção, nem relevo, mas a imaginação e o poder senão
criador, evocador, que é apenas a imaginação. Os processos descritivos do autor,
principalmente quando quer referir estados d’alma, tem a secura e o descolorido de
um inventario ou de um corpo de delito. Cometendo um erro grave de ofício, o autor,
como já notei, multiplica a terminologia da técnica médica e fisiológica. (1976. p.
162).

As falhas apontadas no trecho são os processos descritivos carregados de


cientificismo e o desleixo da forma. José Veríssimo encerra a crítica sugerindo que
desbastasse o livro das repetições e da terminologia cientifica e reescrevesse o texto com mais
simplicidade, entregaria um melhor romance. As críticas sobre os romances de Rodolfo
Teófilo eram recorrentes e taxativas que pareciam até um slogan do escritor: descuido na
forma e no estilo, mas sincero intérprete dos problemas dos cearenses.
Ao ler as opiniões negativas sobre o seu livro, Teófilo sai em defesa de sua
reputação literária
No Brasil, como disse, são aqueles três escritores que mais se ocupam deste gênero
de Literatura. O Sr. José Verissimo considerado, por seus admiradores, o primus
inter pares, é ás vezes incoerente, desce a minudencias, tornando-se banal. Quando
publiquei “Os brilhantes” disse ele na “Revista Brasileira” de 1 de Agosto de 1896 o
seguinte: “O livro do Sr. Rodolfo Teófilo não é de todo ruim e a extensão desta
noticia é prova suficiente de meu apreço, desvalioso o mais sincero.” Outro, que
desse importância á critica brasileira teria quebrado a pena.

Teófilo tenta desqualificar o crítico o taxando de incoerente. Contudo, Veríssimo


foi severo, mas apontou que o romance tem graves ‘defeitos’ e também ressaltou que tinha
qualidades, além de sugerir ao escritor alguns pontos em que poderia melhor seu texto. A
observação de Veríssimo é de ordem textual, contudo Teófilo acreditara que o modo como
escreveu o seu romance era uma expressão de verdade.
Mais adiante o Sr. José Verissimo se contradiz assim: “Com boas e inatas qualidades
de romancista faltam entretanto ao Sr. Rodolfo Teófilo outras necessárias á sua arte,
como a língua, que é nele incorreta, pobre, descolorida, pouco artística.” Como se
pode escrever com sentimentos e verdade páginas que chegam a ser intensas em uma
linguagem incorreta, pobre, descolorida, sem arte?! O Sr. José Veríssimo é ou não
incoerente? As minhas boas e inatas qualidades de romancista, sem arte, ficariam
como as de um diamante sem lapidação, pedra preciosa, porém sem brilho (1924, p.
94-95)
283

4.5 Teófilo contra o crítico da Academia Cearense

Os impasses com a crítica continuaram com a publicação dos romances de


Teófilo, principalmente em relação ao terceiro romance, Maria Rita, de 1897. Inicialmente,
em seu processo de preparação, foram publicados 5 capítulos do romance, até então chamado
“história de um rapto”, no jornal O Pão em 1896: “o pombal” no N° 31, de 15/08/96;
“história de um rapto”, no N° 32 de 31/08/96; “a farinhada”, no N° 33 de 15/09/96; “Luta pela
vida” no N° 34 de 30/09/86 e “o boi estrela” no N° 35 de 15/10/96.
O enredo do romance ocorre num período histórico próximo ao fim do regime
colonial no Ceará. A protagonista é Maria Rita, filha do português José Maria, rico dono de
terras no sertão cearense. Um jovem caboclo chamado Joaquim de Queirós, apaixona-se por
ela. Como a família da moça era contra a união por Joaquim ser mestiço, decide rapta a jovem
e os dois fogem pelo sertão. Segue-se então uma série de buscas pelos fugitivos.
Pelo enredo, a princípio, pensaríamos que o romance giraria em torno do
preconceito racial, mas os seus desdobramentos narrativos lembram mais os de uma história
romântica, devido à questão do heroísmo das personagens e o tom aventuresco. Nesse livro,
Rodolfo Teófilo atenuou a linguagem cientificista, não deixando de lado suas concepções
deterministas e naturalistas.
Na Revista da Academia Cearense (posteriormente de Letras), em 1898,
Rodrigues de Carvalho171 resenha os livros lançados nos últimos anos, entre os quais Maria
Ritta172.
São tão raras as verdadeiras vocações para o romance no meio literário brasileiro,
que Rodolfo Teófilo não pode deixar de ser chamado de romancista. As suas obras,
porém, ricas pelo enredo quase todas, tem por característica o descuido da
linguagem, a despreocupação do estilo e muita inverossimilhança. O “Maria Ritta”
(porque não Maria Rira?) é, talvez, o que mais acentuadamente vem mostrar os dons
de imaginação do fecundo escritor cearense, e ao mesmo tempo o abuso desses
dons, que muitas vezes tocam ao ridículo (1899, p. 243)

Pelo tom do texto, percebemos que é severo, mas não apresenta polemicidade. Ele
indica pontos positivos e negativos do escritor. Assim como Adolfo Caminha, atesta a
dificuldade de se cultivar o gênero romance no Brasil, com ressalvas, afirma que Rodolfo

171
José Rodrigues de Carvalho (1867-1935), paraibano, se estabeleceu no Ceará como advogado e bancário. Fez
parte do Grêmio literário e da Academia Cearense de letras. Como poeta e folclorista, publicou: Coração (1894),
Prismas (1898). Poema de Maio (1901), Cancioneiro do Norte (1903).
172
Carvalho, Rodrigues de. Maria Ritta, de Rodolpho Theophilo. In: Revista da Academia Cearense. Fortaleza:
Typ. Studart, 1899.
284

Teófilo pode se tornar um. Enquanto louva o seu poder de imaginação, censura-lhe pelo
descuido da linguagem.
Rodolfo não compenetra-se do verdadeiro papel do romanista, que é observação
exata, análise sem exageros, simplicidade do entrecho, tudo como a resultante de
uma época, que no romance deve ficar estudada e perpetuada. O Maria Ritta està
fora dos moldes do romance de analise, é destituído de todos os requisitos próprios
do romance atual que é a psicologia das sociedades... (sic) (1899, p. 244).

Avalia que o romance não se enquadra como romance naturalista e nem estuda,
por meio de suas personagens, a psicologia do povo cearense. Também acusa a
inverossimilhança do romance, devido à linguagem formal empregada, em que “... diálogo
entre vaqueiros parece uma polemica de sábios” (1898, p. 246). E por fim, com um tom
pedagógico, aconselha que se manejasse “a língua vernácula com mais cuidado, domasse o
pensamento na descrição dos cenários, dos fatos, e seríamos nós os primeiros a laurear lhe a
fronte (idem. p. 247). Mesmo não sendo um texto polêmico, também não fora simpático.
O terceiro romance com a mesma acusação e como adquiriu experiência crítica
com a polêmica contra Caminha, decide entrar na arena para defender novamente a sua
reputação literária. Escreve “Em volta do Maria Rita” e questiona o arbítrio dos críticos e das
academias como ‘legitimadores’ do valor literário.
Muito disseram os críticos do romance “Maria Rita”. Li com grande atenção tudo
que se escreveu e dei entrada no meu Livro Azul, repertorio do que se tem dito de
minha individualidade. A críticomania é uma doença que se tornou endêmica no
Ceará. Nos países mais antigos do que o nosso, que tem literatura, um crítico é coisa
rara e tanto que os Taines não são comuns (1924, p. 93).

Ele denomina seu romance de ‘livro azul’, uma referência aos milhares de livretos
publicados na França, no século XVIII, geralmente com a capa azul, de material muito
ordinário e barato. Uma ironia à opinião perpetrada ao seu romance. Desmerece a mania de
crítica na cidade, ao afirmar que, mesmo nos países europeus, difícil o surgimento de um
Taine.
Já estudamos a sua famosa “Introdução a História da literatura inglesa” no
segundo capítulo dessa pesquisa, um texto básico para a compreensão da atitude científica
sendo aplicada às críticas literárias. Para Taine, ao estudar o texto literário como um
documento, pode-se entender a psicologia de seu autor.
Teófilo continua a sua dissertação em relação a crítica no Brasil.
O Brasil conta na Capital Federal três escritores notáveis, todos nortistas, que se dão
a este gênero de estados, mas que não se podem chamar críticos na verdadeira
acepção da palavra. São eles Araripe Jr. Junior, José Veríssimo e Silvio Romero,
todos falecidos. O primeiro peca por seu otimismo, o segundo pelo seu pessimismo
e o terceiro pelo modo apaixonado de julgar. Já se vê que faltam aos três os
caracteres de um bom juiz. Araripe Jr. Junior, por exemplo, empregava mais ou
285

menos os processos da crítica moderna, mas a sua bondade inata, fazia esquecer, às
vezes, os deveres de sua tarefa, tornando o indulgente a ponto de prejudicar os seus
ditames. O crítico na análise de um livro só deve ter em vista a verdade; é como o
anatomista dissecando o cadáver. (idem, p.93).

Nessa rica passagem, salienta que os destacados intelectuais são nortistas e dá, a
cada um, qualitativos de sua personalidade associada à suas atividades críticas: Araripe Jr. –
otimista; Veríssimo – pessimista e Romero - apaixonado. Os três críticos173 assim como
outros da Geração de 70, com formação taineana, cada um à sua maneira, tentou construir
uma crítica de caráter cientificista e racionalista. Diante dessa informação, percebemos que
Teófilo não estava à margem dos grandes debates literários promovidos na Capital Federal.
Enquanto os adjetivos, ao observamos as características de cada um, é fácil entender que
Sílvio Romero seja um sujeito tomado pela “paixão crítica”, Veríssimo, talvez pelo rigor
formal em que analisa os textos literários e Araripe Jr. Júnior, quiçá, por não ser radicalmente
severo. O que mais se destaca é a sua imagem de crítico literário, uma metáfora radicalmente
naturalista: anatomista dissecando o cadáver. Isto é, o cadáver é o texto literário em que o
crítico analisa todos os seus pormenores, praticamente um cientista forense.
Em seguida, nega à autoridade do crítico e da instituição que ele representa.
A Academia Cearense, a julgar pelo título, devia agremiar a flor de nossos homens
de letras. Não era assim, era mais o rótulo. Dela entretanto saiu o crítico na pessoa
do ilustre acadêmico e poeta Sr. Rodrigues de Carvalho. Fez a sua estreia na
“Revista da Academia”, e, se tudo que é longo e complexo é promissor, ela o foi,
não há dúvida. Todos os gêneros da literatura foram estudados e mais de seis autores
receberam do imortal, que descia do aeropago, a sua glorificação, ou condenação.
Entre os livros apreciados está “Maria Rita”. Embora a apreciação emane de núcleo
tão ilustre, onde reconheço alguns homens híbridos em sua maioria, nego autoridade
ao crítico oficial da Academia, e direi porquê (id. p. 95).

Um dado histórico importante é que Rodolfo Teófilo, durante a escrita desse


texto, não pertencia à Academia. Seu ingresso ocorreu em 1922, com a sua reorganização e
mudança de nome para Academia cearense de letras.
Teófilo participou de vários grêmios literários, mas a sua crítica em relação à
Academia se refere a hierarquização que estabelece entre os escritores, os que estão do seu
círculo são os ‘ilustres’, os imortais. Aliás, o termo imortal é ironizado porque, na sua
concepção, a Academia deveria ser formada pela ‘fina flor’ dos escritores, coisa que não é.
Rodrigues de Carvalho, como o ‘crítico oficial da Academia’ tinha o poder de

173
Em polêmica contra Osório Duque Estrada, Teófilo também descreve os três críticos: “José Veríssimo era
mais filólogo do que critico, sempre preocupado cum minudencias gramaticais, como um mestre-escola antigo,
armado de férula, procurando a colocação dos pronomes; enfim apreciando um livro parecia estar corrigindo a
prova de português de um colegial. Silvio Romero, muito culto e muito competente, mas completamente falho de
senso crítico, era um estouvado e um abaixado juiz. Todos eram acadêmicos, mas por isso não se segue que
todos os membros daquela corporação sejam inteligentes e cultos” (1924, p. 17).
286

‘glorificar’ ou ‘condenar’ um escritor. Um poder mais temporal do que estético. No seu


entender, pela crítica negativa que sofrera, foi expurgado dos círculos dos escritores da terra.
Num plano simbólico, Teófilo age como um iconoclasta ao contestar o poder legitimador de
Rodrigues de Carvalho. Num exercício de nossa imaginação, e se fosse o contrário? E se
Rodrigues tivesse feito uma crítica favorável e elogiosa? Será que Teófilo escreveria esse
texto polêmico?
Voltando ao problema da crítica, Teófilo a considera como um gênero complexo e
difícil. Para praticá-la, o pensador deverá cultivar a erudição, bom senso e critério.
Antes de entrar na apreciação dos falsos testemunhos levantados pelo Sr. Rodrigues
de Carvalho a mim e a algumas personagens de “Maria Rita”, chamo a atenção dos
leitores para o “Ceará Literário”, obra daquele ilustre acadêmico publicada na
Revista da Academia Cearense. Quem fizer leitura demorada e atenta dessas poucas
páginas aqui, onde todos nós nos conhecemos, ficará completamente convencido de
que o crítico oficial da Academia julga consoante as suas paixões (id. p. 96).

Se na polêmica com Adolfo Caminha, o ponto de divergência era o status de


melhor romancista naturalista, nesse conflito textual, Teófilo disputa com Rodrigues de
Carvalho quem tem os melhores critérios para exercer a crítica literária.
Teófilo se dirige aos leitores, como se estivesse num tribunal e faz o papel de
acusação: “pondo de parte o veredito do Sr. José Rodrigues, sobre a minha individualidade
literárias, dito em tom catedrático, pergunto aos leitores que tal a forma e gramática do ilustre
acadêmico?” (1924, p. 97).
Sobre o juízo do seu crítico em relação ao descuido da linguagem, nos informa
que
A “Fome” foi o meu romance de estreia. É livro mal feito, livro de quem começa.
Tive bons modelos, convivi com famintos, vi a miséria em suas múltiplas
modalidades, mas a minha vaidade de noviço, querendo mostrar saber, prejudicou a
arte, a ação do romance. Os críticos condenaram-me então para todo o sempre a
forma e o estilo. Não me pude mais lavar daquela pecha. Publiquei depois duas
dezenas de livros, todos mais cuidados, e continuaram a dizer: tem boas e inatas
qualidades de romancista, tem imaginação, escreve páginas que chegam a ser
intensas, mas sua linguagem é pobre, incorreta, sem arte, não sabe colocar os
pronomes (id. p. 97).

Outro trecho que traz informações valiosas da poética de Teófilo, inclusive sobre
sua evolução estética. Diferente da polêmica em torno do romance A fome, e depois de
escrever mais dois romances, apresenta mais consciência da sua evolução literária. Com o
distanciamento histórico, observa os problemas de seu romance de estreia. Ele alega que o
motivo de A fome ser um ‘mau livro’ foi a inexperiência e o desejo de ‘mostrar saber’, pontos
colocados por Adolfo Caminha, agora assumidos. Mesmo com problemas, declara ter
287

representando a verdade, pois conviveu com os ‘famintos’ e ‘miseráveis’, mas a condenação


da ‘forma e o estilo’ o acompanha como um carma.
Acusado de escrever incorretamente, tenta demonstrar com o seu texto, a falta de
critérios de Rodrigues de Carvalho. Contudo, retoricamente, apela para o recurso do ad
hominem
O Sr. Carvalho, como mestiço que é, não pode morrer de amores pelos portugueses.
E mestiço filho de um estado onde há um lugar chamado Pedras de Fogo, onde ainda
hoje marinheiro não pernoita. O mais patriota e medianamente instruído lusitano
não se ofenderá com a minha asserção, uma vez que sabe ter sido o Brasil por
muitos anos presidiu de Portugal, como ainda hoje o são na África as suas
possessões. Para aqui vinham os facínoras e não os sevandijas (1924, p. 99).

Rodolfo aponta a sua condição de mestiço para depreciá-lo. Os ataques pessoais


que distinguem a polêmica de uma crítica literária. Como nos ensinou Antônio Candido, o
objeto da crítica é o que o texto exprime. Como Teófilo concebe a escrita como expressão da
individualidade do escritor, as desqualificações do seu crítico fazem parte de suas armas
retóricas.
Ao longo do texto, Teófilo rebate a acusação de erros históricos na representação
do Ceará colonial, principalmente sobre o episódio do boi estrela. Ele defende os possíveis
‘erros lexicais e tipográficos’ grafados na linguagem de seus personagens, pois são expressões
da língua regional. Acusa Rodrigues de Carvalho de seguir a cartilha estética de José
Veríssimo, em detrimento da ‘cor local’, aspecto considerado mais importante para Rodolfo
Teófilo.
Rodrigues de Carvalho tinha a expectativa de um romance de costumes, moderno
e Rodolfo entrega aos seus leitores um romance histórico e regionalista. A polêmica contra
Rodrigues de Carvalho, deixa lições valiosas, por mais que fosse oriunda de desagravo, para
Rodolfo Teófilo.
Maria Rita, adensa a sua ótica regional, apesar do didatismo da obra, calcado num
desejo de descrever o caráter da História, da Geografia e da cultura do Ceará. Em relação às
críticas aos seus romances, a polêmica é um mecanismo usado por Rodolfo Teófilo pra
defender o seu projeto estético, que se direciona, a partir do metade de década de 1890 ao
regionalismo
288

4.6 O papão da Academia Brasileira de Letras

“Quem poderia viver só de letras e belas letras, nesta era


de tretas e feias tretas?” Filgueiras Lima, 1953.

Osório Duque Estrada174 se ocupou do livro A Libertação do Ceará na sessão


“Registro literário”, do jornal Imparcial do Rio de janeiro. Bastante depreciativo, inicia o
texto afirmando que um famoso publicista cearense, autor de outros livros, acabara de
publicar um “desenxabido volume de catilinárias políticas sobre a queda de oligarquia
Accioly” (apud Alencar, 1923. p. 12) e, em seguida, nos traça o perfil do autor e as
singularidades de sua linguagem literária:
Fez-se agora o sr. Rodolfo Teófilo escritor e panfletista político, função para que
decididamente lhe falta a embocadura, como facilmente se deduz da banalidade das
arguições e da argumentação quase pueril de alguns ataques, em que o assunto està
exigindo a envergadura e destreza de um esgrimista de pulso forte. A incorreção de
linguagem, principal defeito e lamentável desprimor em obra de literato e romancista,
ressalta a passo em quase todas as páginas do volume, em que se deparam aos olhos
do leitor teratologias gramaticais ... (Apud Meton de Alencar, 1923, p. 12-13).

Como a obra narra diversos episódios da deposição do governador Accioly, o


crítico declara que Teófilo não tem envergadura para ser um panfletista político e nem
destreza de um esgrimista. E o motivo, o mesmo de sempre: a incorreção da linguagem.
Creio que todas as páginas do livro afinam pelo mesmo diapasão (digo creio porque
não me foi possível ir além do primeiro capítulo), e tanto basta para recomendar a
obra do Sr. Rodolfo Teófilo, escrita em cassange como a de qualquer principiante
paetastro de poucas letras”. O fato de ser o literato cearense autor de uma meia dúzia
de romance, torna imperdoável o deslize, mesmo em trabalho de outra natureza, como
a “Libertação do Ceará” – livro enfadonho e pouco interessante, que de nenhum modo
compensa o sacrifício e o esforço da leitura. (idem. 1923, p. 13).

Duque Estrada, em termos de crítica, comete um deslize ao declarar que somente


leu o primeiro capítulo do livro. Em seguida, é bastante taxativo ao declarar que a linguagem
é pueril, inadmissível a um autor de mais de uma dezena de livros. Para tanto, associa a
escrita de Teófilo à expressão cassange. O dicionário Aurélio traz duas acepções: relativo ou

174
Joaquim Osório Duque-Estrada (1870-1927) foi um poeta, professor e crítico literário. Bacharel em Letras.
Participou das Campanhas da abolição dos escravos e da proclamação da República. Na década de 1890, exerce
o cargo de diplomata e no início da década de 1900, torna-se professor da Escola Normal e do Colégio Pedro II.
Em 1905, deixa o magistério e colabora em vários periódicos cariocas como o Imparcial e Jornal do Brasil e no
Correio da Manhã, o qual cria a seção de crítica Registro literário, entre 1914 a 1917. Muitas das críticas ácidas
são reunidas no livro Crítica e polêmica (1924). Em 1909, vence o concurso, com o poema parnasiano em versos
decassílabos, criado por lei de autoria de Coelho Neto, para "a melhor composição poética que se adapte, com
todo o rigor do ritmo, à música do Hino Nacional Brasileiro". O poema torna-se oficialmente a letra do hino
nacional em 1922. Ocupou a cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Silvio Romero, em
1915.
289

pertencentes aos Caçanjes ou à sua língua, grupo étnico de Angola; a segunda, depreciativa,
com uso antigo, o português mal falado ou mal escrito. Ou seja, a escrita de Teófilo é
associada a um dialeto africano, denotando uma escrita aquém da norma culta. Procedimento
elitista, eurocêntrico e preconceituoso. Mas, esse julgamento, vide o uso do verbo ‘creio’, é
ambíguo visto que se não leu a obra completa e mesmo assim age como um severo juiz.
É óbvio que Rodolfo Teófilo, ao tomar conhecimento da crítica depreciativa de
seu livro, parte para o combate. É um dos seus textos polêmicos mais interessantes, pois
estabelece uma discussão repleta de antagonismos, opiniões e denúncias sobre os mecanismos
de consagração literárias e as hierarquias políticas e culturais entre regiões literárias,
questionando a centralidade do Rio de Janeiro e da Academia Brasileira de Letras.
O texto tem o jocoso título de “O papão da literatura”. A metáfora é muito
significativa, pois relaciona Duque Estrada ao medo e terror. O bicho-papão175 é uma criatura
mítica, presente em variadas culturas, comumente retratado como um algum tipo de espírito
ou entidade que aterroriza as crianças desobedientes durante a noite. Assume variadas formas
para que possa estar em qualquer lugar a qualquer hora, quer isso signifique espreitar debaixo
da cama ou no armário, ou atrás de uma árvore na floresta. Como um poderoso subterfugio
imaginário, é utilizado para garantir que as crianças sigam as regras. O termo "bicho-papão"
às vezes é usado como uma personificação ou metonímia para o terror e, em alguns casos,
para o diabo.
O texto de Teófilo inicia-se traçando o perfil de seu zoilo.
A petulância de Osório Duque-Estrada, da Academia Brasileira, arvorado em crítico
no Rio, me despertou o desejo de ler os seus livros e saber o valor de sua
individualidade literárias. Já havia lido do Duque alguns artigos na imprensa do Rio,
na seção – Registro Literário – e a impressão que me deixaram foi de que o Osório
Duque é um grande malcriado, tendo se imposto naquele grande e fútil meio pela
audácia. Sua pena foi ganhando fama e tornando-se temida. A maioria dos homens
fica apavorada só com a ideia de ver o seu nome mal tratado no jornal. São espíritos
timoratos, ordinariamente sem valor intrínseco, que se deixam dominar pelo medo.
Se o indivíduo é literato principiante, então uma crítica mordaz, na imprensa do Rio,
é uma morte, é o acabamento de todas as esperanças, o fechamento da sonhada porta
da Academia de Letras. Para os que se iniciam os Duques são a encarnação fiel da
figura do papão com que se mete medo às crianças. Para o novo literato que reside
nos Estados a imprensa do Rio é um constante pesadelo. O nome dos Duques o
aterra. Não têm nome feito e para fazê-lo é preciso que o papão não apareça no seu
caminho. È verdade que nem todos são assim. Eu, por exemplo, fui novo e hoje sou
velho e nunca tive medo de semelhante bicho (1924, p. 5).

175
As descrições dos bichos-papões ou seres que lhes correspondem variam de país para país, embora haja
algumas semelhanças: a Inglaterra bogeyman/bogieman; El Coco em alguns países latino-americanos e Homem
do Saco, na Espanha; Bokkenrijders na Holanda; Baba Yaga nos países eslavos; Butzemann na Alemanha;
H’awouahoua na Argélia; Tokoloshe na África do Sul; Namahage na península Oga, Japão entre muitos outros.
A entidade é popularizada na canção de ninar portuguesa "Vai-te papão, vai-te embora/ de cima desse telhado,
deixa dormir o menino/um soninho descansado". A variação no Brasil: "Bicho papão, /sai de cima do
telhado/deixe esse menino/dormir sossegado."
290

Polêmica é sinônimo de investigação e nosso autor nos relata que conhecia a


temível fama de Duque Estrada e o relaciona a cidade ‘meio grande fútil’ de sua atuação
crítica, onde ele se impôs. O Rio é a sede da República do Brasil, onde se encontra a
Academia de Letras, o Instituto Histórico e os principais jornais do Brasil. Como aprendemos
com Bourdieu, além da cidade física, há uma cidade simbólica e invisível, mas real, onde os
intelectuais e escritores concorrem pelo poder literário. Teófilo estabelece uma dicotomia
entre o Rio, metrópole literária e as outras cidades. Contudo, ele nos oferece uma visão
negativa da capital, onde a vida literária é dotada de artificialidade e desejo de fama.
De acordo com Rama, no centro de toda cidade há uma cidade letrada, formada
por indivíduos que manejam a linguagem e o saber, sacerdotes, advogados, juízes,
professores, jornalistas, escritores etc., compõe “o anel protetor do poder e o executor de suas
ordens” (2015, p. 38).
O Rio de Janeiro, como uma cidade letrada, centro do poder do Império e da
República, os letrados se utilizam da palavra como arma e ela serviu de arena de inúmeros
combates. A Academia Brasileira de Letras era formada por um grupo que exercia uma
supremacia constituída por diversos fatores, tais como ser um grupo organizado dentro de um
espaço citadino, de “dominarem os instrumentos de comunicação social” e por “dominarem a
letra numa sociedade desguarnecida de letras”, utilizando-as como instrumentos de
sacralização (2015, p. 44).
Ingressar no clube fechado da Academia ofereceria alguns privilégios ligados ao
renome alcançado: a ocupação de cargos públicos; a participação de atividades de
sociabilidade literária, tais como saraus, conferencias, jantares; a colaboração na imprensa e a
divulgação de seus livros, chancelado com o selo da ‘instituição’, com tiragens maiores e com
possibilidades de se adotar em escolas.
Não se pode negar que A Academia brasileira de Letras se tornou referência
cultural brasileira, que ditava regras literárias e linguísticas e
buscava agrupar os nomes mais significativos da época, privilegiando não só as
figuras ligadas à literatura, mas também as ligadas à política. O acadêmico deveria
ser, sobretudo, homem de inabalável reputação literárias e pessoal, a fim de que
pudesse compartilhar dos privilégios oferecidos pelo ambiente acadêmico. O perfil
desses homens era, de certo modo, traçado por Machado de Assis, o qual, apesar da
defesa de uma neutralidade aparente, tinha como intento claro povoar a ABL com
partidários de suas convicções ou com membros de sua geração intelectual
(PEREIRA, 2008, p. 24).

Ou seja, por mais que haja um discurso sobre o cultivo da arte e das belas letras,
o entrelaçamento com o poder político era inevitável. É evidente que houve e há homens de
291

talento e de sincera erudição na instituição, mas nas primeiras décadas do século XX também
houve a presença de medalhões da política e militares com o fardão.
Duque Estrada agia como um coronel literário, dotado de autoridade para
consagrar o literário efebo ou jogá-lo ao ostracismo. O crítico, para Teófilo é interpretado
como uma metonímia pejorativa do corporativismo da Academia, uma espécie de porteiro da
‘igrejinha’.
Em seguida, Teófilo crítica o Rio de janeiro como único centro literário legítimo
da literatura brasileira.
O carioca não conhece as cousas e os homens dos Estados do Norte. A sua visão não
vai além da baia de Guanabara. Os letrados, quase na sua totalidade, são nortistas;
plantas exóticas para ali transplantadas tenras ainda, se adaptaram ao meio
obedecendo à lei fatal da biologia. [...] Esquecerem depressa a terra que lhes foi
berço e compreenderam que naquele grande cenário vencem as exterioridades, mas é
preciso serem vistas por aquela multidão empenhada na luta intensa da vida. Basta
um ato vulgar para abrir caminho à fortuna, à celebridade, mas é preciso que seja
praticado com arte, com audácia, com reclamo. Quantos nulos se têm assim ali
entronizado! Os letrados compreenderam e melhor assimilaram o meio a que se
tinham adaptado. Congregaram-se e pontificam excluindo da comunhão brasileira
todo aquele que não tem o Pão de Açúcar debaixo dos olhos, monopolizando as
letras pátrias. (1924, p. 6-7).

Rodolfo analisa a busca pela glorificação literária, no cenário carioca, a partir de


uma concepção darwinista de luta pela vida, similar à de Sílvio Romero. Estabelece a
discussão em torno da dicotomia província versus metrópole. O Rio, como capital literária é o
espaço onde migram escritores de todo o Brasil, sobretudo do ‘norte’ (norte e nordeste). Os
escritores nortistas são comparados às ‘plantas exóticas’, que, para sobreviver, tem que se
adaptar ao meio. Nessa luta, que interpretamos como batalha de inserção no campo literário,
há escritores que adotam as regras do jogo e se integram às artificialidades do ambiente
moderno das metrópoles, permeada de influências estrangeiras. O polemista não nega que
para ser conhecido literariamente, obter ‘fortuna’, ‘celebridade’, é preciso lutar com arte e
audácia.
O questionamento do Rio de Janeiro ser sinônimo da literatura nacional, assim
como é feita por Teófilo, foi citado como bastante vigor por Filgueiras Lima, em discurso na
Academia Cearense de Letras
Já disse certa vez que, se o Brasil é uma federação política, certamente está muito
longe de ser uma federação literária. O Rio é a corte das letras nacionais, e a
centralização hipertrófica por ela exercida, no domínio do espirito. Apaga, estiola,
senão anula qualquer manifestação de vida mental nos Estados. Se é da essência do
regime democrático o assegurar a todos as mesmas oportunidades, no campo das
letras reina a mais estreita e rígida ditadura: - “ditadura de um centro regulador das
ideias”, como disse, condenando-a o grande Silvio Romero (15/08/1951).176

176
Disponível em: http://www.poetafilgueiraslima.art.br/artigos/funcao_social_politica.html
292

Seria perigoso e injusto afirmar que a literatura brasileira é somente a lista de


autores e obras que aparecem nos livros didáticos, ou ganhadores de concursos literários,
ou de livros que algumas editoras ou críticos do Rio de Janeiro e São Paulo chancelam. Em
todos os estados há poetas e escritores. Contudo, a problemática da afirmação da literatura
nacional versus literatura regional ou de outros estados é algo que persiste até hoje. Esse
poder simbólico e material que o Rio de janeiro exercia pode ser considerado uma espécie de
‘colonização’177 (Bosi) entre os estados? O Rio de janeiro literário da República velha foi um
colonizador perante os outros estados?
Teófilo continua a desenvolver o seu questionamento e se contrapõe ao bairrismo
metropolitano
O público ledor, este, então, é impagável, não lê o que se escreve fora de sua cidade.
O livreiro por sua vez não aceita livros publicados fora da capital federal. E para
quê? Para não vendê-los? O carioca chega à vitrina de uma livraria onde se acham
expostas as últimas novidades literárias; lê o título de um livro, às vezes
interessante, sugestivo mesmo, depois o nome do autor, um desconhecido. Dobra a
folha para ver a procedência – um Estado do Norte. Fecha o livro com um sorriso de
mofa e coloca-o na vitrina. [...] O Ceará tem a sua história e os seus romances de
costumes. É o Estado do Brasil que melhor pode ser conhecido através de seus
livros. A sua literatura é nativista. Os seus letrados afastaram se por completo dos
prosadores franceses. Desprezaram o assunto predileto – o adultério e escreveram o
viver do nosso povo (1924. p.7).

Ao denunciar a discriminação contra a literatura produzida nos estados


provincianos, abraça a causa do regionalismo literário. Franklin Távora defendia o
regionalismo como projeto (O cabeleira, 1876), ao mesmo tempo político e artístico, ao
escrever ficções que descrevessem a vida nas regiões campesinas, no Norte e Nordeste,
indicando a existência de uma cultura autêntica.
Teófilo, mesmo tecendo uma severa crítica, não adota um separatismo, mas a
defesa de uma literatura de expressão própria, que faz parte do Brasil, mas tem suas
singularidades socioculturais.
Antônio Cândido, nos esclarece que
No primeiro momento o regionalismo parece um instrumento de descoberta do país
através da ficção. Ao localizar o entrecho numa zona remota, descrevendo os seus
costumes e a sua paisagem, o escritor parecia estar revelando a realidade aos
leitores. Isso o fazia sentir-se mais brasileiro, e ser brasileiro, ser diferente através da
literatura, era o principal critério de valor no quadro da jovem nação que afirmava a
própria identidade. Nesses casos, o regionalismo aparece como triunfo do particular,
concebido à maneira de referência externa que justifica e dá sentido, tanto ao texto,
quanto à função do escritor.178

177
Discussão efetuada no primeiro capítulo dessa pesquisa.
178
Literatura, espelho da América? In: Remate de males. Campinas, UNICAMP, 1999. Disponível em:
https://doi.org/10.20396/remate.v0i0.8635995
293

A rica produção literária do Ceará, até o momento de sua escrita, é exemplificada


pelo autor:
“Juvenal Galeno, nas “Lendas e Canções Populares”; Domingos Olímpio, na “Luzia
Homem”; Antônio Sales, nas “Aves de Arribação”; Gustavo Barroso, na “Terra do
sol”, confirmam o meu dizer. A esses livros juntam-se os trabalhos de história do
Ceará do senador Pompeu, de Thomaz Pompeu de Perdigão de Oliveira, do Barão
de Stuart, de João Brígido de Pompeu Sobrinho e outros. Aos romances citados
reúnam se “A fome, “O paroara”, “Maria Rita”, “Os Brilhantes”, Violação
pertencendo a nova escola, da qual esses livros foram os primeiros publicados e
escritos pelo autor destas linhas” (1924. p. 8)

Teófilo não defende só a si, mas a classe dos escritores de sua terra, que cultivam
o nativismo. Os escritores regionalistas cearenses, como Teófilo, Adolfo Caminha (A
normalista), Oliveira Paiva, Domingos Olímpio, Antônio Sales, etc. são importantes para a
literatura nacional:
Mesmo porque, dada a distribuição espacial de um território nacional, da
sua diferenciação geográfica, encontram-se presentes, na composição do seu povo,
homens da cidade e do campo. Afinal, uma unidade nacional dà-se no interior de
uma variedade regional; grupos sociais, desse modo, distinguem-se no interior de
uma coletividade e de um conjunto cultural. Dessa maneira, transparecem diferenças
entre valores vividos no campo e na cidade, ambos com características regionais e
universais (GUINSBURG, 2017, p. 367)

Observamos as críticas que Rodolfo Teófilo faz a Osório Duque Estrada, revelam
disputas para a descentralização da literatura brasileira, assim como a defesa da literatura
regional.
Em seguida, Teófilo revela que irá

desarrumar a bagagem do Estrada. O primeiro volume é “O norte”; dele já me


ocupei: é um livro de falsidades e fancaria. O segundo é um livro de 200 páginas,
impresso em papel de jornal, escrito para comercio e intitula-se – “Leituras
militares.” O duque tem essa mania da apresentação. Tem uma ideia muito falsa da
carta de recomendação. Escolhe sempre para padrinho de seus meninos os homens
de grande nomeada, como se o paraninfo empreste valor ao afilhado. [...] As
“Leituras” são apresentadas pelo General Caetano de Faria, [...] Sobre o valor do
autor e do livro diz somente: que é um belo esforço de patriotismo (1924, p. 8).

Os adjetivos que julga os livros, as ‘malas’, de seu crítico são taxativos e


depreciativos. Ele denuncia a prática do apadrinhamento exercida por Duque Estrada, na
tentativa de legitimar o seu status de escritor, ao apresentar uma descendência militar e
aristocrática. Teófilo indaga o “que tem a genealogia do Estrada com o livro?” Esse seria um
critério para julgá-lo? (idem).
Sobre o livro citado, “Leituras militares”, Teófilo atesta que só foi comprado 200
exemplares pelo Governo do Ceará, pela importância de quatrocentos mil réis, devido a
influência política do autor. Além de não ‘possuir arte’ e servir de banquete para cupins, não
incitará o soldado o amor á pátria, porque “o nosso soldado não saber ler.”
294

Ao longo do texto, o polemista vai analisando livro por livro, inclusive os líricos
A quarta mala contem um bonito exemplar, a “Flora de Maio”. O título é pomposo e
sugestivo. Percorri devagar a flora rimada e não encontrei nela o perfume agradável
dos manacás, das orquídeas, das rosas. Nos jardins e nos campos há flores de toda
espécie. As flores do Duque não tem perfume; se alguma o tem, é tão acre como o
da flor da catingueira. Por ser uma questão de gosto, de ser impressionado. Para
alguns serão olorosas. Não duvido, porque há pessoas que gostam de peixe moído,
de café sem açúcar, dos congos e do bumba meu boi. O título do livro devia ser
Flora de Outubro, mês da inflorescência do chichazeiro (idem, p. 11-12)

Nessa passagem, Teófilo destila um comentário jocoso em torno das qualidades


dos poemas do Duque. Ele alude que o título do livro deveria fazer referência ao chichazeiro,
árvore típica do cerrado e do nordeste brasileiro. A alusão ocorre, pois o nome científico da
arvore é “sterculia striata”, ou seja, o primeiro termo em latim, por sua aproximação
morfológica, é uma referência ao odor da flor de chichá, bastante próximo ao de fezes.
Praticamente, Teófilo chamou o conjunto de versos do Duque como um livro de excrementos.
Percebemos que o autor usa as mesmas táticas de seus adversários, o discurso acusador e
rotulador, o sarcasmo. Ele poderia responder as acusações, mas também disfere farpas contra
seu zoilo.
Um dos pontos altos desse texto, com o intuito de desautorizar Duque Estrada,
Teófilo traz a tona o escândalo da eleição dele para a Academia Brasileira de Letras, tratando-
a como uma patifaria
A última eleição para um membro da nossa Academia de Letras sendo candidato
Farias Brito e Osório Duque Estrada, é uma prova do que acabo de dizer. Diga me
leitor, depois de inventariado todo o espolio literário do Estrada, com que livro
consegue ele entrar para aquele Pantheon, derrotando Farias Brito, o nosso maior
filósofo? Só um capítulo de finalidade do mundo vale centenas de vezes a “Flor ade
maio”, As “Leituras militares” e tudo que o Duque escreveu e escreverá até que
Deus o chame para sua santa glória. Os homens do Rio têm certas obsessões que se
não explicam: ali há homens de muito mérito, cultos, de grande talento, sábios. São
exceções naqueles formigueiros humano onde se vem entronizadas nulidades que
vencerem a golpes de audácia [...] Enviou-me, tempos depois, um panfleto sobre o
caso com o pseudônimo de Marcos José. Antes nunca o tivesse escrito. Aquele grito
de revolta cortado de quando em quando dos fundos gemidos de sua alma alanceada
pela injustiça dos homens devia ser abafado, nunca devia ter ouvido por aqueles que,
em vez de arrependimento de sua torpeza teriam gargalhadas escarninhas à dor
daquele mártir á beira da sepultura. Dessas decepções estou livre. Farias Brito
nasceu muito pobre, pelo seu esforço e pelo seu talento chegou a ser o que foi.
(1924, p. 18).

Sobre a questão suscitada, convém fazermos uma digressão para entender o


contexto da polêmica179 de Farias Brito.

179
Com o falecimento de Sílvio Romero, em 18 de junho de 1914, a cadeira número 17 da ABL ficou vaga.
Farias Brito se candidata, mas é derrotado por Osório Duque Estrada, que teve 14 votos, Almáquio Diniz, em
segundo com 7 votos, aquele ficando em terceiro com 6 votos. Numa biografia sobre o filósofo, Antônio Carlos
295

Desde o início da década de 1910, Farias Brito tinha a intenção de publicar uma
revista, fato que só o fez, em novembro de 1916, após a sua derrota na eleição para a ABL.
Com o título de O panfleto, escreveu um radical desabafo contra a mediocridade e falta de
ética de seu contexto literário e político. O texto é assinado com o pseudônimo, “Marcos
José”, inspirado no pai do pensador. O panfleto caiu como uma bomba no Rio de Janeiro e a
recepção foi devastadoramente negativa. O filósofo mandara recolher os exemplares que
ainda restavam. Junto com a derrota acadêmica, a má recepção do livreto causara um desgaste
psicológico em Farias Brito.
Conhecido por se um homem pacato e sereno, no Panfleto, a sua índole se transfigurou
em um polemista voraz e iconoclasta, como podemos ver na apresentação da Revista
Mas estamos dispostos a reagir, no campo da discussão, ou no terreno da luta das
ideias contra todo e qualquer poder, contra toda e qualquer avalanche que se nos
apresente pela frente. Não recuaremos. É verdade que nossos recursos materiais são
precários, e quase podemos dizer, sob esse ponto de vista, que nos arriscamos & um
combate no vácuo, quer dizer, a um combate em que nos faltam todos os elementos
de vida e todas as condições positivas do êxito [...] De certo modo não trazemos a
paz, mas a guerra. Mas o momento é de guerra. E nós, sob muitos pontos de vista,
precisamos de guerras. Pelo menos, há, entre nós muitos ídolos que precisam de ser
destruídos; uns de barro, e quase todos são desta espécie; outros, muito raros, de
ouro. Para desmoronar os primeiros basta, o mais das vêzes, um sôpro viril e
enérgico. Mas para destruir um ídolo de ouro, em regra, só fogo. Nós nos saberemos
servir, conforme as circunstâncias, das armas que se fizerem necessárias. Em todo o
caso nossos processos serão sempre os da verdade e da sinceridade (1916, p. 5-6)

Observamos um discurso inflamado, em que a crítica se transforma em luta de


ideias com o intuito de destruir falsos valores. Marcos José, a imagem que o filósofo cria
nesse panfleto, é regida por uma performance discursiva pautada na controvérsia e violência.
Ruth Amossy distingue o gênero panfleto pela forte presença do enunciador do
discurso e pela maneira como “se engaja e se coloca como fiador do que constata e procura
influenciar o auditório” (2017). O panfletário clama com violência, pois seu maior adversário
é a incompreensão e seu texto serve para expressar a sua resistência contra os falsos ídolos
jornalísticos e literários.
Ao longo do texto estabelece uma série de dicotomias relacionadas ao contexto de
guerra: ele se coloca como uma nova e moderna voz contra os velhos ídolos; e outra é a

Klein nos alerta que para Medeiros e Albuquerque, Osório venceu porque amedrontava alguns imortais com sua
crítica literária ferina que saía nas páginas do Correio da Manhã. Pouco depois de empossado, não restava, no
cenáculo da ABL, quem deixasse de censurar “a grosseria, a brutalidade, a falta de compostura” dele. Apesar de
ser o autor da letra do Hino Nacional, era mesmo uma unanimidade no quesito aversão. Coelho Neto achava-o
repugnante e Carlos de Laet, motivado por sua conduta, sugeriu a inclusão do seguinte artigo no Regimento:
“Não se admitem cafajestes” (KLEIN, 2004. p. 80).
296

imagem corrupta da imprensa da capital carioca, de um lado os letrados vendidos que servem
às folhas oficiais, do outro, os panfletários, os marginais, os que têm a consciência livre.
Ele define o panfletário como o homem que julga (1916, p. 9) e para ser um
combatente do pensamento precisa ser independente e imparcial, rigoroso, implacável e,
sobretudo, violento.
“Marcos José” não generaliza, ele afirma que há exceções, pouquíssimos
jornalistas que são honrosos, independentes e dignos, porém, a maioria representa o “esgoto
da vida espiritual do país”.
Além dos jornalistas, a sua pena afiada se dirige aos Homens de Letras e à ABL,
num insulto tão devastador para tirar toda a aura de sacralidade que tenta arvorar para si.
Homens de letras – eis uma raça que, entre nós, prolifera de uma maneira espantosa.
Literatos temos de todo o tamanho e de todos os feitios. Alguns há que se
apresentam sob a forma de urso; outros, de cobras, réptis ou víboras danadas.
Alguns fazem a figura do jaboti; outros, a do cágado; e ainda outros, a da lesma ou
do porco. A Academia Brasileira, por exemplo, não sei bem se de letras ou de tretas,
dá bem, disto, uma prova colossal e magnífica. Um de seus membros já chamou
aquilo de curral. Curral, que certamente, não deve ser de bestas, nem de vacas, mas
onde o ilustre acadêmico (Carlos de Laet, e este é ilustre de verdade, e um dos mais
ilustres) desejava ver o efeito que havia de produzir a entrada de um touro bravo
(Emílio de Menezes). E melhor se poderia chamar a Academia, para falar em
linguagem menos zoológica, alojamento de pedantes e nulos que, nada valendo,
imaginam poder valer alguma coisa através daquela ficção já desfeita e
completamente desmoralizada, de parte alguns homens de valor, poetas, tenho o
mais vivo prazer em dizê-lo de alto merecimento e brilhantes escritores e também
sábios e políticos que ali ainda existem, mas que, sem dúvida, já se devem sentir
enojados daquela corja (BRITO, 1916, p. 29).

Com um viés naturalista, compara os Homens de letras a vários tipos de animais,


inclusive os peçonhentos como cobras, répteis, víboras. Ao explicitar o caráter conflitivo e
ardiloso de alguns membros da instituição, sem eufemismos, denomina-a como Academia de
“tretas” e também compara a um ‘curral’, que podemos aludir à metáfora utilizada por
historiadores, no contexto da República Velha, ao se referirem a uma região dominada por um
político (coronel), ou seja, o ‘curral eleitoral’, onde o voto era garantido mediante a coação
armada.
Nessa denúncia, ele ressalta que o poder político estendia a sua sombra nas
eleições de novos imortais, na prática do elogio mútuo, na promoção de livros e poetas de
pouco valor estético, no forjamento de reputações, no dilaceramento e silenciamento de seus
opositores. Ou seja, para o panfletário, a Academia como uma coterie, serve como uma
‘depravação do espírito’ dos homens de letras.
O texto de Farias Brito é bastante passional, escrito como um ato de protesto e de
indignação. Isso deve ser levando em conta, porém traz importantes apontamentos sobre os
297

meandros do funcionamento da academia brasileira de letras, criada por Machado de Assis,


Lúcio de Mendonça e José Veríssimo para ser um espaço privilegiado de sociabilidade e de
promoção da literatura, mas que é atravessada tensões do campo político e do poder.
Outros escritores ressaltaram o caráter polêmico da instituição, interpretando-a
pelo viés da luta pela sobrevivência, tanto material, quanto simbólica.
Félix Pacheco, num depoimento ao escritor João do Rio, nos descreve como um
homem de letras poderia sobreviver no Rio de Janeiro:

— Estou a vê-lo explicar com ironia que fui militante e esforçado amigo de
contendas e descomposturas, com a pretensão de quem vinha botar abaixo a
Academia e salvar o mundo da grande praga dos Signos. Que quer? No Rio as
cousas são assim. Quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim
de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar
a entrada. Fora disso, o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos
medalhões, a subserviência miserável e ignóbil — elemento seguro e infalível para a
subida rápida. Imaginem o atroz dilema! — Devora ou és devorado180.
O discurso de Pacheco é bastante ferino e desencantado, bem próximo de Vautrin,
sobre o funcionamento do campo literário. Esse depoimento foi publicado em 1905, e o
iconoclasta poeta entrou para a ABL em 1912.
Como já citamos, Teófilo escreve esse texto antes de ingressar na Academia
cearense, em 1922, contudo, percebemos que a sua desaprovação gira em torno da ABL, ao
afirmar que nunca cogitou entrar no “Pantheon”
Pelo contrário, sendo convidado pelo coelho Neto para apresentar-me na vaga de
Raimundo Correia, disse o que pensava sobre essas associações. Se tenho valor
intrínseco, se não sou metal ruim galvanizado a ouro, hei- e valer quer seja ou não
acadêmico. Se sou latão galvanizado, não há academia que me dê valor intrínseco.
Quando soube que Farias Brito era candidato a um lugar na Academia Brasileira de
Letras, fiquei estupefato com a sua franqueza. Grande é o poder da adaptação ao
meio. Amigo, seu, lamentei-o. Não me contive e escrevi dizendo-lhe no recesso de
nossa intimidade que ele havia dado um passo em falso quando se propôs a um lugar
na Academia; que não alimentasse esperanças, que seria fatalmente derrotado por
um desses elegantes da Avenida que com ele concorresse. E realizou-se o meu
vaticínio! (1924, p. 30-31)

Pelo trecho, percebemos que ele tem consciência de seu valor, “escrúpulos de
provinciano”, e como um autêntico ‘nortista’, ironiza que não é um ‘metal ruim’ e que
também é ‘ilustre’, ao contrário dos “elegantes medalhões do Rio” Lamenta a tentativa de
ingresso de Farias Brito, sendo que seu Panfleto constitui um grito de revolta. Novamente,
observamos a dicotomia entre o espaço regional, Ceará, e metrópole literária, o Rio de
Janeiro, sobretudo, entre o mérito literário e os apadrinhamentos. Ao invés da ABL, ‘viveiro
de celebridades’ (1924, p. 30), ele considera “mais decente o modo de admissão no Instituto

180
(PACHECO, Félix. In: RIO, João do. O momento literário. Capítulo XVIII, 2006, p. 118-119).
298

Histórico Geográfico Brasileiro. O candidato é proposto, não se propõe”. Ou seja, prevalece o


mérito intelectual.
Enfim, ao tentar desautorizar Duque Estrada como crítico, Teófilo expõe sua
visão acerca da crítica literária
A má vontade do Estrada vê se no tom agressivo do artigo. Isto foi o que me irritou.
Pouco me importava a sua opinião desvaliosa, porque não considero o Duque um
crítico; não tem talento, cultura e muito menos critério para julgar o que os outros
escrevem (1924. p. 31).

Teófilo encerra o seu texto, salientando, o crítico deve ter talento, cultura e
critério e não apenas agir como um professor corrigindo provas de português. Teófilo encerra
o seu texto.

4. 7 Teófilo contra os engrossadores e desafetos de Accioly

Assim, após o fim da Padaria Espiritual, Teófilo continuou a conciliar suas


atuações como sanitarista, farmacêutico, industrial, professor e literato.
No início do século XX, durante a epidemia de varíola que assolou o Ceará,
Teófilo, devido ao seu conhecimento das modernas técnicas farmacêuticas, enxergou a si
como apto a levar o “alívio” à população cearense, ou seja, “tomou uma decisão inédita na
história da medicina no Ceará: resolver fabricar, às próprias expensas, a vacinar aplica-la,
sozinho, na população fortalezense, em domicilio e gratuitamente entre 1900 e 1904”
(PONTE, p. 107).
O relato de sua campanha, além das dificuldades de produzir a vacina e a
perseguição que sofreu do Governo Acioly, é registrado na obra Varíola e vacinação no
Ceará (1904). Ela é formada por variados tipos de textos e tem um caráter híbrido, ou seja,
pode ser vista como um relato historiográfico, divulgação científica e como um texto de
denúncia. O livro é festejado pela imprensa nacional. O Jornal do Comércio, O País, a Folha
Nova, de São Paulo e o Diário de Pernambuco.
Em represália aos diversos livros que escreveu denunciando o governo e a
campanha antivariola e a abertura do instituto Vacinogênico do Benfica (01/01/1901), Teófilo
sofreu ataques difamatórios até o fim de sua vida.
Além do próprio jornal representante do governo, A República, dezenas de
pasquins e panfletos detratores foram publicados para destruir a reputação de Teófilo e de sua
vacina. Estamos contextualizando essas questões, pois elas repercutiram nas polemicas contra
299

o escritor, durante a campanha antivariola e, posteriormente, culminando em ataques assíduos


de Meton de Alencar181.
Uma das consequências de sua luta política contra o governo acciolyno, foi sua
demissão do Liceu do Ceará.
Teófilo atuou desde 1889, na Escola Normal como professor de ciências naturais.
Em 1890, passa a integrar o corpo docente do Liceu, nas disciplinas de Mineralogia,
Geografia e Meteorologia. Em 1905, o Presidente do Estado decreta a extinção da cadeira de
mineralogia e designa Teófilo para a de Lógica. Como se negou a assumir a disciplina, foi
demitido de seu cargo vitalício. Indignado contra o que considerou um ato de “violência” pelo
seu desafeto político, começa a publicar no jornal do Ceará, a partir de 1905, uma série de
artigos contra a falsa reforma. Ainda em 1905, reúne os artigos e lança o livro Violência.
O meu crime vem da publicação a meu livro Secas do Ceará em que tratando das
administrações que tem tido o estado durante as secas, tive o atrevimento de criticar,
com muita benevolência, é verdade, a passada administração do atual presidente do
estado. [...] Violar a lei para tomar uma vindicta não é só um crime, é uma iniqüidade!
[...]Foi por ter tido a coragem de dizer, essa verdade suprema, que fui condenado a
perder a cadeira de professor do Liceu do Ceará. Não hesitou o sr. presidente do
estado em cometer o grande atentado contra a lei demitindo um funcionário vitalício.
Esqueceu-se de que a violência é a norma de conduta dos governos fracos. [...] O sr.
presidente do estado com seu ato arbitrário não atentou somente contra meu direito,
mas contra os direitos de todos os cearense (TEÒFILO, 1905. p. 55-67).

Por conta desse histórico de mais de vinte anos de ataques sofridos, quando
Teófilo toma conhecimento de um livro, A polyanthea, em homenagem a Nogueira Accioly,
composto de textos variados, tais como poemas e discursos, escreve mais um artigo
apaixonado, estampado em Meus Zoilos. O alvo principal de sua crítica é Gomes de Matos,
advogado e amigo do governador, além de seu grupo de ‘engrossadores’.
O polemista relata que o advogado, numa perspectiva darwinista, adaptou-se ao
meio, isto é, o campo político cearense obedecendo às leis da biologia de adaptação ao meio
político e social.
Interessante é que o autor não poupa as palavras, é bastante direito em acusar
Gomes de Matos, considerado o engrossador-mor de Accioly
Acho o seu artigo um pouco desorientado e até ilógico. Não é tarefa fácil sustentar
falsas ideias, passar paradoxos por verdades. O engrossamento nos leva a praticar
atos contrários a consciência. Esta arte que ensina a viver bem neste mundo á custa

181
O Dr. Meton de Alencar, em A República (25/10/1905, 27/10/1905, 28/10/1905, 31/10/1905, 3/11/1905,
6/11/ 1905 e 8/11/1905), em artigos sob o titulo “Sr. Rodolfo Teófilo”, procurou mostrar, de maneira agressiva,
os erros do cientista no campo da vacinação e as injustiças por ele cometidas. A todas as pesadas acusações,
respondeu Rodolfo Teófilo no Jornal do Ceará (06/09/1905, 30/10/1905, 19/01/1905, 03/11/1905 e 06/11/1905),
defendendo-se com altivez e condenando os órgãos assistenciais pela incúria, descaso, incompetência e
irresponsabilidade (SOMBRA, 1997).
300

da vaidade dos outros, mormente dos tolos presumidos, é bastante difícil (1924, p.
116).

Gomes de Matos transformou-se em desafeto de Teófilo, pois o acusara de ser


caluniador, após a publicação do livro A libertação do Ceará, que narra a deposição de
Nogueira Accioly do governo do Ceará em 1912. Ele direciona o texto ao seu algoz,
afirmando que “muito injusto taxando me de caluniador. Caluniadores foram os que o
chamaram eminente estadista, santíssimo homem e depois de morto glorificaram-no” (1924,
p. 118).
Esse comentário sarcástico é importante porque nele se encontra a palavra-chave
de nossa discussão: a glorificação. Pouco tempo após o falecimento, os confrades políticos,
familiares estabelecem um compromisso de homenagear o ex-governador, construindo uma
série de discursos positivos, a fim de rivalizar e de tentar amenizar ou silenciar as opiniões
negativas em relação a ela, que não foram poucas. Como os organizadores e autores das peças
literárias são partícipes e simpáticos ao campo do poder, a tendência desses ‘escritos’ a se
legitimarem em maior em decorrência da influência econômica e política.
Nessa polêmica, Teófilo surge como uma voz dissonante e apela para a memória
recente dos seus leitores, a quem direciona o seu discurso, como se estivesse num tribunal,
Concluindo, peço-lhe, amigos Gomes de Mattos, o grande obséquio de procurar na
“Libertação do Ceará” e em todos os meus escritos, as calunias que ataquei ao
Governo Accioly e as publique, contestando porém com documentos. Se isto
conseguir, eu lhe prometo penitenciar me em público, pedindo perdão á memória do
morto, a família deste, e quebrar para sempre a pena (1924, p.119).

No contexto dessa polêmica, percebemos mais uma vez que a literatura é utilizada
como instrumento de glorificar uma pessoa e os agentes de tal missão são chamados pelo
polemista de engrossadores. Mas, que são eles?
Rodolfo Teófilo tem um romance que narra a história desses sujeitos, intitulado
Memórias de um engrossador. Foi publicado em 1912, numa tipografia em Lisboa. Narrado
em primeira pessoa por um advogado mau-caráter e vigarista, que se articulou por meio de
várias falcatruas para obter um cargo vantajoso no staff do Governo de Nogueira Accioly.
Engrossador era uma gíria do início do século XX que significava “chaleira”,
‘bajulador”, hoje correspondendo ao termo “puxa-saco”.
A parte mais difícil da arte de engrossar, como chamarei o modo de bem viver em
todos os meios, é, escolher o momento psicológico de queimar incenso ao ídolo. A
oportunidade é tudo, mormente quando se trata de certas predisposições do espírito
humano. Os meus triunfos, devo-os, em parte, ao grande interesse que ligava ao
momento de; pôr em ação a minha força. Outros cultores desta mesma arte, aliás tão
301

entendidos nela e tão inteligentes quanto eu, sofreram grandes fracassos por fazer
engrossamentos fora de tempo (TEÒFILO, 1912, p. 5).

Apesar de não citar nomes, as situações tecidas pelo narrador, diversos atos de
corrupção, desmandos, são facilmente identificados pelos cearenses que viviam no contexto
daquele governo.
O narrador nos apresenta uma visão darwinista da vida em sociedade, dando-nos
um tom pessimista de que a corrupção no Ceará e no Brasil
Três anos levei a aparelhar-me para entrar como homem pratico, na luta pela vida.
Custou-me muito a enterrar uns restos de escrúpulo que de quando em quando me
incomodavam a consciência. [...] Passava horas inteiras em frente de um espelho
escolhendo um traço que devia apresentar no rosto em certo e determinado momento
[...](1912, p.13).

Portanto, esse texto polêmico tem profunda relação com o romance de Teófilo,
pois dá nome há alguns personagens estampadas na história. Os engrossadores de Nogueira
Accioly, segundo o autor, não tiveram nenhuma estima verdadeira, apenas buscavam o “cofre
da graça (1912. p. 21).
Teófilo foi bastante impetuoso de acusar publicamente um advogado de não ter
“valor jurídico” (1924, p. 117), de ser um bajulador do governo e de possuir uma retórica
vazia e sem provas (idem, p. 119).
Como desafeto, o médico Meton de Alencar, diretor de Higiene do Estado, no
período da Oligarquia Acciolyna, destaca-se na missão por mais de vinte anos de
deslegitimar a campanha de vacinação de Rodolfo Teófilo.
Em meados de 1920, indignado pelas críticas do escritor, ele tentou publicar nos
jornais Correio do Ceará e ao Diário do Ceará, artigos acusatórios, mas foram recusados.
Diante da negativa, faz-se publicar o livro O Sr. Rodolfo Teófilo e sua Obra - Estudo Crítico,
de 128 páginas,
Provocado, em dias do mês de novembro de 1920, por um escrito do sr. Rodolfo
Teófilo intitulado – A varíola, - vim a público com o artigo que linhas a baixo se lê e
em que assumi o compromisso de analisar a sua obra pelo prisma da verdade,
mostrando seus erros, o seu desamor à verdade, o seu apego às pornografias e a sua
inconsciência no próprio exercício profissional [...] no sempre firme e invejável
propósito de dizer bem de si e mal dos outros, engenhoso processo com que há
conseguido alicerçar-se fama de escritor, de benemérito e... quiçá de sábio. Diz mal
dos outros, e, por não perder o costume, reedita, contra mim, uma das suas muitas
provocações (ALENCAR, 1923, p. 3).

No trecho, o médico afirma que foi provocado publicamente com o artigo de


Teófilo e seu intuito é analisar sua personalidade “literária, cientifica e até pornográfica”. Há
302

uma polarização, como já vimos em outras polêmicas em que o autor assume um


compromisso com a verdade.
Em relação a essa pretensão, observamos uma contradição logo na epigrafe: “la
verité toute nue sortit un jours de son puits”. O verso é de uma fábula do escritor francês
Jean-Pierre Claris de Florian (1755-1794). Depois de La Fontaine, é considerado o melhor
fabulista do período do classicismo francês. O verso, que literalmente expressa – “a verdade,
toda nua, um dia saiu do poço” – é um trecho da fábula “A fábula e a verdade”, a qual a
verdade personificada em mulher não tem nenhuma roupa e os jovens e velhos fogem de sua
vista, enquanto a Fábula anda ricamente vestida, com peles e brilhantes.
Voltando ao livro, este se constitui num vasto arsenal de argumentos retóricos e
erísticos, cujo objetivo explícito é abater, desmerecer perante a opinião pública, a ponto de
lançar fora Teófilo da arena discursiva. Por mais que o ethos discursivo anuncie ‘verdades’,
percebemos que ele tenta ludibriar seu leitor com falácias.
Muitas das críticas consistem na acusação de que farmacêutico, na produção de
sua vacina, sob o capuz de benemérito, busca o renome perante o público, ou seja, a ‘buzina
da fama’ (1923, p.6). Em relação a isso, no uso de argumentos ad hominen, utiliza-se
fartamente de expressões irônicas e de adjetivos pejorativos
Sr. Rodolfo Teófilo, em ligeiro confronto entre nós ambos, chego a julgar, com
franqueza, que sou, não a descompassada besta, como lhe aprouve chamar-me; mas,
sim, um bobo, um perfeito besta, na expressão corrente e vulgar; enquanto o sr. muito
sabido, esperto, vivando uma vida toda de glórias e fantasmagorias, é um ‘águia’ no
sentido genuinamente moderno do vocábulo (1923, p. 10).

É constante a acusação das ações de Teófilo com o fim de obter ‘glória’ e para
desqualificá-lo, assim como fizera Adolfo Caminha, tenta reduzir seu valor literário citando
suas atividades profissionais, com um tom bastante sarcástico
É que para o Sr. Rodolfo Teófilo só há nesta terra um romancista que é ele próprio,
um cientista que é ainda ele próprio, quando vacina de cócoras pelas areias no morro
do Moinho e quando fabrica os seus xaropes e suas laranjinhas e vinhos de caju,
com e sem álcool: só há um benemérito que, finalmente é ele próprio, por todas
essas coisas e mais algumas. [...] Nas páginas precedentes [...] sem preocupações
literárias, cremos que fica o Sr. Rodolfo Teófilo reduzido às suas justas proporções
sob diversos aspectos com que se pretende impor a admiração e a gratidão do povo
cearense ( 1923, p. 128).

Para embasar o descrédito literário de seu alvo, Meton utiliza-se como argumento,
as palavras de autoridade de dois críticos que desapreciaram a obra de Teófilo: Osório Duque
Estrada “distinto e notável jornalista carioca” (idem, p.12) e Adolfo Caminha ‘primoroso
crítico’ (idem, p. 15). Ele usa 5 páginas de citações das Cartas literárias, de Caminha e da
crítica de Osório Duque Estrada, para embasar a sua opinião.
303

O texto de Meton, por mais que afirme que pretenda estudar a “personalidade
literária” de Teófilo, não pode ser configurada como uma crítica justa. Aqui não fazemos o
papel advogado do autor d’A fome, porque o texto de Meton é altamente parcial, eivado de
ataques pessoais.
Após diversas citações, cujos “críticos de reconhecido mérito negam engenho e
arte para um tal mister” (id. p. 17), ele apela ao leitor que julgue o valor literário do escritor,
porque mesmo a “crítica sincera, desapaixonada e justa de Adolfo Caminha, naquele tempo, e
a de Duque Estrada, ultimamente, não conseguiram calar no espírito do irrequieto
escrivinhador de coisas inúteis” (id. p. 19). Como já analisamos, páginas atrás, como
considerar a crítica de Caminha “desapaixonada” em torno de Teófilo? E Duque Estrada, que
afirmou que leu apenas um capítulo de Libertação do Ceará para escrever um texto
depreciativo sobre ele?
Sobre o merecimento literário de Rodolfo Teófilo, para confirmar o juízo de que o
escritor possui uma linguagem simplória, incorreta e o “natural pendor para fantasias e contos
inverídicos” (id. p. 20) traz 24 páginas de trechos de O Paroara182, para mostrar ao leitor, os
possíveis erros de escrita, sinais crassos de ‘asneiras’.
No fim de seu livro, que pretendeu ser de análise literária, Meton de Alencar
assume o ethos de médico e realiza o diagnóstico psiquiátrico de Teófilo, utilizando-se de
argumentos da medicina legal, afirmando que ele sofre com ‘estados de exagero e
hiperconsciência’ que ocasionam “imaginações, fantasias, persistências, prolixidade,
incoerências, ideias fixas e confusão” (1923, p. 125), que ocasionam as “invencionices do
espírito”.
Enfim, ele diagnostica Teófilo como um paranoico e o compara aos personagens
D. Quixote e Tartarin. A alusão a esses personagens clássicos é importante para a imagem que
Meton tenta construir ao atacar o escritor.
Tartarin de Tarascon é um romance de 1872 escrito pelo autor Alphonse Daudet,
importante clássico da literatura francesa que nos legou uma personagem tão caricata quanto o

182
Rodolfo Teófilo, em sua última obra publicada, Coberta de Tacos (1931), transcreve um texto do Padre M
Feitosa acerca do livro de Meton de Alencar. Ele classifica a escrita do crítico como “desleal, repleta de ódio e
vingança” (1931, p. 97). A partir do exame de O paroara, ele confere todos os trechos do romance citados por
Meton e observa que o médico omitiu trechos para realizar uma falsa acusação de solecismo, entre outros
desvios gramaticais: “Os calores do estio... despia as árvores, o chão juncando...” Como está ai, todo mundo
condenará Rodolfo Teófilo como autor de um solecismo imperdoável: o sujeito ‘calores’, no plural, com o verbo
‘despia’, no singular. Mas não foi tal o que escreveu o sr. Rodolfo Teófilo. O que no seu livro se encontra é o
seguinte: “ Os calores do estio, que ia em meio no sertão cearense, haviam amarelecido o manto verdoengo, que
cobria o arvoredo; e o vento de leste, remoinhando dia e noite, despia as árvores etc.” O sujeito de ‘despia’ é
vento e não ‘calores’, como dá a entender o dr. Meton (1931, p.97-98).
304

Dom Quixote. O livro narra o cotidiano de uma cidade, ao sul da França, chamada Tarascon,
onde os seus moradores são apaixonados pela caça de animais. Tartarin, protagonista
rechonchuda e mentirosa, engana constantemente à população com histórias de grandes
façanhas, criando fama de herói. Na verdade, prefere à leitura de livros e o sossego de sua
poltrona ao tomar chocolate quente. Devido a um quiproquó, a contragosto, é impelido a
viajar à Argélia para caçar leões. Tartarin é aludido com o intuito pejorativo, com o valor de
trapaça e invencionice. Já D. Quixote, a referência tenta ser depreciativa, contudo,
interpretamos com um valor diferente.
O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha foi escrito por Miguel de
Cervantes Saavedra (1547-1616) em duas partes. A primeira começou a escrever na prisão e
foi publicada em 1605, com 52 capítulos. A segunda foi publicada em 1615 e é composta por
74 capítulos. O enredo é aparentemente simples: a história de um nobre espanhol do século
XVII, Alonso Quijano, que gosta de livros de cavalaria, que perde a cabeça devido ao extenço
número de romances que lê, e acreditando ser um cavaleiro errante, nomeia-se Dom Quixote
de la Mancha.
Os protagonistas, Don Quixote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Pança, cujas
relações e diálogos são parte essencial do desenvolvimento da obra, se encontra com diversos
personagens183, à medida que a ação avança, formando uma galeria do povo que viveu na
Espanha do século XVII. Originalmente concebido como uma sátira contra os romances de
cavalaria, Dom Quixote de la Mancha é considerado o primeiro romance moderno e obra-
prima da literatura espanhola. Sua importância está na crítica social que Miguel de Cervantes
faz à sociedade do século XVI através de paródias e sátiras.
Mas, o que significa ser um Quixote? O termo como adjetivo tem várias acepções.
De modo pejorativo, como Meton quis se referir a Rodolfo Teófilo, ‘quixote ou quixotesco” é
usado para se referir ao comportamento de quem está convencido da existência de coisas que,
na realidade, são imaginárias, ou que se esforçam para realizar coisas impossíveis.
Contudo, Quixote é mais do que um louco ou uma pessoa que persegue causas
impossíveis. A força da personagem criado por Cervantes o transformou em um arquétipo
humano com uma validade artística permanente, pois a energia quixotesca para empreender

183
As intenções das andanças de Dom Quixote é ajudar os pobres e desfavorecidos, e, em seguida, alcançar o
amor da suposta Dulcinéia do Toboso, que na verdade é uma camponesa chamada Aldonza Lorenzo. Na sua
primeira jornada encontra o camponês Sancho Pança, o qual faz o seu escudeiro. Na segunda jornada, Dom
Quixote ataca alguns moinhos de vento, ao imaginar que eram terríveis gigantes, confunde um rebanho de
ovelhas com um exército, entre outras situações esdrúxulas. Finalmente, depois de fazer penitência em uma
floresta, é capturado por um padre e um barbeiro e levado para casa em uma gaiola para ser ludibriado por uma
suposta princesa Micomicona.
305

novas aventuras apesar das prováveis derrotas tem sido admirada por muitos leitores ao longo
dos séculos.
Ser “um Quixote” mais do que uma herança cultural é também uma representação
da condição espanhola, como nos atesta Ortega y Gasset (Meditações do Quixote).
Ao longo da história europeia, houve centenas de cavaleiros errantes, dos quais
Cervantes extraiu o modelo para construir sua sátira. O caráter de Dom Quixote foi atribuído
às características de um sonhador e de um idealista que leva ao extremo o cumprimento dos
valores dos espelhados aos ideais da cavalaria, como a cortesia, a coragem, a generosidade, a
justiça e a perseverança.
O escritor Gustavo Barroso, no romance Mississipi, ao narrar o trabalho
vacinogênico de Teófilo, o compara a D. Quixote, mas observamos que o seu intuito é
positivo
O escritor Rodolfo Teófilo, todas as manhãs, montado no seu cavalinho branco,
magro como D. Quixote e tão idealista como o herói de Cervantes, percorria as
vielas dos morros do Moinho e do Croatá, vacinando gratuitamente crianças e
adultos. Assistira em menino às devastações da varíola na seca de 1877 ou dos dois
setes, e jurara a si próprio dedicar a vida a combater o flagelo. Como pertencesse ao
partido da oposição, o governo, em lugar de auxiliá-lo no benemérito mister, metia-o
a ridículo nos seus jornais e fazia caluniosa propaganda contra ele, declarando que
sua vacina era ruinosa. Não teve, porém, ânimo de proibi-la (1996, p. 183).

Voltando ao livro de Meton de Alencar, por mais que ele tentasse destruir a
reputação de Rodolfo Teófilo, inversamente do que se propunha, constrói uma imagem do
escritor. No seu diagnóstico de paranoico, ele ressalta justamente as atividades literárias,
científicas e políticas em que Teófilo se destacou: no romance, na campanha de abolição dos
escravos e na vacinação antivaríola. Ao interpretá-lo como um D. Quixote, alude à metáfora
bélica da ‘cruzada santa’ de suas atividades intelectuais.

4.8 Polemista em busca da glória

O escritor Osman Lins, em entrevista expressa que “perseguir o escritor, incendiar


suas obras, tudo é menos prejudicial”, pois estas formas de combate e interdição da “obra de
um escritor é ainda reconhecer o prestígio e a potência de seus livros” (1977, p.34).
306

A sua atribulada atuação pública em Fortaleza o levou a se envolver em diversas


polêmicas e batalhas políticas. Como intelectual, dotado de uma cosmovisão iluminista e com
uma fé inabalável na razão e na ciência, lutou em prol da justiça social contra a corrupção,
contra a miséria e contra as péssimas condições sanitárias da população cearense.
O espírito altruístico do farmacêutico desdobra-se espontaneamente no atendimento
aos enfermos e subnutridos. Parece sua Farmácia o consulado da miséria. Põe à
prova todos os seus conhecimentos a favor dos indigentes, assistindo-os,
socorrendo-os. O Ceará, pelos traços aparentes, celebrava um contrato de
exclusividade com a fome, a penúria, insignificantes dos recursos oriundos da Corte
para amenizar tanto sofrimento.” (SOMBRA, 1997, p. 39).

Devido a assistência que fazia aos pobres e enfermos, juntamente com as


denúncias que fazia, cultivou adversários inúmeros. Agressões e calúnias nos jornais e
pasquins eram frequentes. Porém, nada disso o abateu. Lutou em diversas frentes: a favor do
abolicionismo, contra as pestes que assolavam o Ceará, contra as adversidades provocadas
pelas secas, contra os desmandos políticos. Com a erradicação da varíola no Ceará, nos dois
relatos da Campanha (Varíola e vacinação no Ceará, v I, 1904 e v II, 1910), constrói para si a
imagem de Apostolo do Bem público, do sujeito que luta contra as injustiças da sociedade de
seu tempo.
Obviamente, fora os inimigos políticos e seus zoilos, teve a sua atuação como
sanitarista, abolicionista, historiador das secas consagrada pelo povo cearense. Contudo,
sabemos que, além de farmacêutico-cientista, implicitamente, buscava as suas glórias
literárias.
Num texto ficcional estampado em O cunduru (1910), ele imagina a sua morte e
seu espírito se desprende do corpo, faz um balanço de sua vida, enquanto observa o seu
próprio velório. Como um autor defunto, com muita curiosidade, percebe que “chegaram os
jornais do dia. Com que sofreguidão foram recebidos! Queriam saber o que o mundo pensava
de mim. Que falsa ideia tinha da opinião pública e da imprensa!...” (1910, p. 43)
O seu eu-espiritual é uma metáfora do distanciamento que se exige para analisar
globalmente o contexto de sua missão enquanto vivo.
A minha vida foi uma luta sem tréguas pela verdade. Raros os que me
compreenderam. Nessa amorosa tenda tive inúmeras vezes de combater os
presumidos, os viciosos. Não escapei por isso ao dente da inveja, da maledicência:
desprezei-o. Estive sempre ao lado dos fracos, dos oprimidos. O que por eles senti,
reflete-se em meus escritos. Convivi com o povo, chorei com ele as suas desventuras
e cantei as suas glórias. Quanto mais cultivava o espírito, mais piedade tinha dos
desgraçados. Nunca ri das jogralidades de um bêbado nem das astúcias de um
ladrão. Eram infelizes, dignos somente de compaixão. Descobri-me sempre diante
da desgraça (1910, p. 43).
307

Percebemos que o conto é mais do que um episódio maravilhoso, é uma narrativa


simbólica, uma autoficção em que Teófilo tenta traçar uma trajetória coerente da história de
sua vida (Bourdieu). O seu projeto literário é entrelaçado com o seu projeto intelectual.
Percebemos que a sua forma de ação ocorre pela polêmica, devido ao uso de expressões que
conotam ‘conflito e por entender que estava em uma guerra justa, assim como um paladino.
Ao afirmar que atua pelos oprimidos, de modo crítico e também pessimista, demonstra que o
mundo é repleto de desigualdades sociais e econômicas. Esse sentimento humanista de
compaixão e de militância fazem parte de sua literatura.
Com segurança, podemos entender que a produção literária de Rodolfo Teófilo é
engajada, construída em busca de luta contra alienação política e social, para denunciar as
injustiças e para representar as grandezas e misérias do povo cearense. Encontrou no
naturalismo o seu método de escrita e a ciência era o seu filtro para atingir, supostamente, o
real e a verdade.
Como estudamos páginas atrás, a sua linguagem literária era alvo constante de
críticas. Porém, a recepção positiva de seus livros, ocorria quando se associava a sua imagem
de homem público, benemérito, ao julgamento literário.
Por exemplo, o jornalista Euclydes Cesar, no jornal A razão, chama o escritor de
Tosltoi cearense e nos diz que
consagrado para sempre em livros admiráveis como Os brilhantes, Violação, no
reino de Kiato, Maria Rita, A fome e tantos outros, é enormíssima a sua bagagem
literárias. Ia me esquecendo de dizer que nenhum homem de parcos recursos como
ele o terá sobrepujado na prática da caridade (23 de junho de 1929).

Até Rodrigues de Carvalho, com quem travou uma polêmica, apesar dos pesares,
reconhece o mérito do autor.
Vê-se por esta bagagem que trata-se de um homem de ciência e de um beletrista. Os
seus romances são cheios de vida pela imaginação, e estampam o meio e a época em
que se dá a ação. É descuidado na forma; e nem sempre a gramática é respeitada.
Apesar de senões que a imprensa em geral apontou nos livros de Rodolfo Teófilo, a
literatura do Ceará muito deve a este escritor (1899, p. 191)

Por mais que seja acusado de ser excessivamente cientificista e de ter uma
linguagem incorreta, há uma consciência de que a sua obra científica, historiográfica e
literárias terão perdurabilidade (Castagnino, 1969), Teófilo nos diz que
Criei a literatura regionalista aqui. Quase sozinho, ou bem, ou mal, neste meio
século, tenho sustentado as letras no Ceará, publicando algumas dezenas de livros.
Alguns deles ficarão pela importância do assunto. A História das Secas, por
exemplo, viverá porque o flagelo não se acaba. Publicando-os, tive em vista tornar
conhecida a calamidade no sul e impressionar os governos. Consegui que o sulista
conhecesse o que era uma seca. Epitácio Pessoa, quando presidente da República,
308

mandou editar e reeditar os meus livros sobre a calamidade para que não se
extinguissem (Correio do Ceará. 3/7/1930).

Seus textos são polêmicos porque os usa como forma de denúncia contra as
calamidades da seca. Seus livros tiveram reconhecimento nacional e cita o presidente para
legitimar suas ações, o esforço de fixar, por meio da memória, o efémero e o perecível
Como romancista, o Ceará foi a sua matéria principal, motivo de seu amor. Da sua
geração de escritores cearenses nascidos no século XIX, Rodolfo foi o que mais escreveu
livros e romances.
No centenário de seu nascimento, 1953, Rachel de Queiroz escreveu uma
belíssima crônica na Revista O Cruzeiro, dando o reconhecimento histórico de Rodolfo
Teófilo, retratando como ‘scholar’, isto é, um daqueles homens do “triunfante século
dezenove, crente aferrado na solução científica para todos os problemas da alma e do corpo,
inclusive os da arte” (16 de maio de 1953).
E como romancista, ele
foi dos primeiros a usar como tema dos seus livros dois assuntos que ainda hoje são
a espinha dorsal da literatura nordestina: o cangaço e a sêca. [...] E a sêca serviu-lhe
de tema para o seu famoso “A Fome", que é dos primeiros, senão o primeiro
romance escrito tendo como heróis as vítimas do nosso flagelo regional, e abriu
caminho para todos os exploradores do filão, que iriam culminar na obra-prima do
gênero, o insuperável “Vidas Secas”, do nosso imenso Graciliano (idem, 1953).

Ela, autora de O quinze (1930), livro que teve um forte impacto na história de
nossa literatura, elogia o autor que podemos chamar de seu precursor, traçando os temas
ligados à representação das condições da vida do nordeste, seus cenários e sua gente, que
foram trabalhados por autores regionais, contemporâneos a ele, e posteriores.
Sartre, sobre a luta para se firmar na tradição literárias, nos alerta que
Os autores também são históricos; e é justamente por isso que alguns deles almejam
escapar à história por um salto na eternidade. Entre esses homens mergulhados na
mesma história e que contribuem do mesmo modo para fazê-la, um contato histórico
se estabelece por intermédio do livro. Escritura e leitura são as duas faces de um
mesmo fato histórico (2004. p. 57)

Escrever para ser lido e para permanecer no rol de leitura das pessoas é uma forma
de imortalidade. A perdurabilidade situada por Raul Castagnino, que é uma forma
intermediária entre o fugaz e a eternidade, se configura como uma luta do escritor para evitar
a sua morte e de desejar que tudo que escreve permaneça para sempre. Isso ocorre porque o
ser humano tem a capacidade de projetar um futuro, o que permite estabelecer projetos. Mas
só ter a ânsia de imortalidade não basta para atingir a glorificação literária. Muitos imortais
309

acadêmicos só tem a reputação entre os seus pares, donos de obras medíocres, que sequer são
lidas ou conhecidas pelas pessoas.
Nesse percurso sobre a história e crítica literária, sobre o desejo de glorificação e,
sobretudo, sobre a perspectiva, através de um prisma agônico da literatura como um esporte
de combate, as polêmicas foram fenômenos de destaque.
Ruth Amossy nos auxilia na distinção entre o discurso polêmico e a interação
polêmica, que não podem ser confundidos com a expressão “uma polêmica”. Ela se refere a
uma Polêmica como o conjunto das intervenções antagônicas que se constrói, através de todas
as interações públicas ou semi-públicas que tratam de uma questão social, e se manifesta na
circulação dos discursos. (2017, p. 59)
A famosa Querela entre os antigos e modernos na França, a Questão Coimbrã, as
cartas e artigo sobre a Confederação de Tamoios, o confronto entre Sílvio Romero e Teófilo
Braga são exemplos de polêmicas.
O discurso polêmico é a produção discursiva de um sujeito, que remete ao
discurso do outro. “Ele é, por definição, dialógico, no sentido de que dialoga com os discursos
antecedentes, aos quais se opõe; mas ele não é dialogal, já que não há interação direta com o
adversário.” (2017, p.59).
Por exemplo, História da Literatura brasileira, de Sílvio Romero, é uma obra
escrita com uma carga de polemicidade. O outro livro publicado por Romero para atacar
Machado de Assis era polêmico, mas não instaurou uma polêmica entre eles, pois o autor de
Dom Casmurro nunca lhe respondeu. Outro exemplo é o Panfleto de Farias Brito.
Já a interação polêmica é quando há uma interação face a face, um confronto
direto: “Ela implica que dois ou mais adversários se engajem em uma discussão falada ou
escrita, em que um tenta levar a melhor sobre o outro.” (AMOSSY, 2017, p. 59) As interações
de José de Alencar na imprensa carioca na década de 1870, para defender a sua obra literária,
são bons exemplos.
A partir desses apontamentos, percebemos que os textos polêmicos de Rodolfo
Teófilo não se constituíram como interações efetuadas no momento da escrita dos seus
adversários. Em relação à literatura, sempre são reações e defesas de seus livros publicados.
Ele nunca iniciou uma polêmica literária, diferente de textos que escreveu sobre as secas e
sobre a varíola, que serviam para denunciar os descasos do governo perante esses assuntos.
Seus romances, contos, memórias e textos historiográficos despertaram opiniões
provocativas e apaixonadas e ele travou combate contra outros escritores, contra críticos e
contra inimigos políticos para defender sua obra literária.
310

Muito observadas pelo seu caráter erístico, as polêmicas não eram vistas como
uma modalidade de crítica literária. O que sobressaía, para manter a audiência do público ao
invés de acompanhar um debate de ideias, era assistir, sadicamente, uma performance de
agressão mutua.
Roberto Ventura, ao caracterizar a polêmica como um embate em que a defesa da
honra era essencial, ao se aproximar da imagem de uma peleja entre repentistas nordestinos,
em que o importante era mostrar superioridade em relação ao oponente: “Ao invés do debate
de ideias, os debatedores assumiram uma orientação autoritária, marcada pela preocupação
em contradizer as colocações dos oponentes, caindo em uma série insondável de monólogos,
em que cada um dos participantes se esforçava em reafirmar suas próprias crenças” (1991, p.
87).
Porém, a partir dessa pesquisa, entendemos que a polêmica é um importante meio
para investigar as principais questões e motivações que levam escritores e críticos a lutar para
se estabeleceram na tradição literária brasileira.
A luta pela tradição literária, interpretada por Pierre Bourdieu como luta pelo
monopólio do poder da consagração
Por conseguinte, se o campo literário (etc.) e universalmente o lugar de uma luta
pela definição do escritor, não existe definição universal do escritor e a análise
nunca encontra mais que definições correspondentes a um estado da luta pela
imposição da definição legitima do escritor. Mas pode-se também romper o círculo
construindo um modele do processo de canonização que leva a instituição dos
escritores, através de uma análise das diferentes formas de que se revestiu o panteão
literário, nas diferentes épocas, nos diferentes quadros de honra propostos tanto em
documentos - manuais, trechos escolhidos etc. - quanto em monumentos - retratos,
estatuas, bustos ou medalhões de "grandes homens" (1996, p. 253-256).

Como nos ensina T. S. Eliot um escritor não tem significação sozinha. Ao estrear,
num sistema literário complexo, verifica que já existem diversos atores, instituições que vão
intermediar o seu valor literário: outros escritores, leitores, críticos, professores, a imprensa, a
escola, editores, livreiros etc.
E nessa perspectiva de concorrência que surgem os confrontos literários, as
polêmicas entre os escritores. Para não demonstrar que seria uma espécie de visão pessimista
da arte, egoísta, que tira o sublime véu da ideia do belo, da contemplação, da evasão,
exemplificamos com um depoimento do acadêmico Afrânio Peixoto
Não há rapazinho que escreva o primeiro conto, antes de o ter vivido, que não se
reconheça prejudicado pelos que o precederam, na consideração, na fama, no
prestígio, junto aos editores e ao público. Cada um destes jovens, ainda inéditos,
começa a história literária, senão a história universal. A propaganda, as
comparsarias, a demolição tão grata dos valores cotados na esperança de novas
cotações, fazem das reputações loterias, ou bolsa, ou tavolagem, de jogo ou de azar.
[...] Os prêmios literários são disputados, a empenho. Os editores têm revistas e
311

jornais para engrandecer a mercadoria própria e detratar a mercadoria alheia. Às


suas publicações chamam-se modestamente “bibliotecas de obras-primas”, “coleção
de grandes livros nacionais”, ou “universais” (Discursos acadêmicos, ABL, 1934).

Nesse jogo literário, a reputação dos escritores se comporta como ações na bolsa
de valores. As polêmicas nesse contexto podem construir ou destruir a reputação de um
escritor, vide o exemplo de José de Alencar. Por mais abstrato ou metafisico que o artista
procure demonstrar, ele tem sérias preocupações sobre a materialidade e a perdurabilidade do
seu sucesso, se sua glória literária
o aparente paradoxo de imortalidade mortal com que se explica a natureza da
literatura em virtude das ânsias de seu criador; isto é, esta imortalidade sonhada não
é eterna nem transcendente e, embora dure mais que a vida temporal de seu
possuidor, há de conservar-se enquanto perdure a memória do Homem, enquanto
perdure o próprio Homem, não além. É uma perenidade, tem duração aparentemente
ilimitada, mas teve começo e poderá acabar (CASTAGNINO, 1969).

Sobre esse sonho de imortalidade, Jean Paul Sartre nos alerta que a glória literária
é uma luta contra a História (2004, p. 116). Rodolfo Teófilo discorre sobre a sua ideia de
glorificação na crônica “Estátuas”, que condena a construção da estátua de Padre Cícero, que
ainda era vivo, numa praça de Juazeiro, a mando de Floro Bartolomeu.
Atravessamos o período ridículo das estátuas. Há uma monomania de sagrar os
heróis, como se os heróis não se sagrassem a si próprios, fosse preciso sagrá-los.
Temos uma ideia muito falsa das homenagens prestadas aos benfeitores da
humanidade. Perpetuar os grandes homens na pedra ou no bronze é desconhecer o
poder do tempo, que tudo consome, o demolidor eterno. A memória do benemérito,
daquele que viveu para os seus semelhantes, perpetua-se por si mesma nos
contemporâneos, que por sua vez a irão transmitindo às gerações que se sucedem até
a consumação dos séculos (1931. p. 42-43).

Rodolfo Teófilo condena essa falsa glorificação por meio de estátuas, um suporte
material, perecível pelo poder devorador do tempo. Ele nos fala que a verdadeira glorificação,
situando como exemplo, Louis Pasteur não é feita no bronze ou na pedra “que é efêmera – o
transcorrer dos séculos decompõe ou corrói – mas no coração da humanidade. A estátua de
Pasteur é espiritual; ergueu-a a gratidão do gênero humano: passará de geração em geração
até que deixe de pulsar o coração do derradeiro homem.” (1931, p. 42).
Por meio de sua lucida consciência história e do seu papel como escritor, podemos
perceber uma particularidade nessa perspectiva de Teófilo: ele critica a validade das estátuas
alegando que o verdadeiro monumento à memória está no coração da sociedade, porém chega
a explicar que elas são grandes formas de homenagear a memória de alguém, exclusivamente
após a morte. Ou seja, uma forma de kleos moderna.
312

Ao citar o exemplo de Pasteur como cientista e benfeitor da humanidade,


percebemos que, implicitamente, toma-o como modelo persegue a mesma ambição: a
verdadeira glorificação.
Já discutimos bastante nessa pesquisa, que Teófilo construiu em torno de si uma
imagem de cientista e que abraçou o cientificismo como visão de mundo e como método de
escrita literária.
Mas, tanto como cientista ou como literato, destacamos a sua ação de usar a
palavra como arma de denúncia, para divulgar a ciência e para narrar a vida do nosso povo.
Como escritor, também quer ser perpetuado, como nos relata no prefácio de A
sedição de Juazeiro:
Coube-me a tarefa de ser o cronista dos infortúnios do Ceará nesse meio século.
Tive de contar a fome de todas as secas naquele período. [...] Fui sempre no meio
em que tenho vivido um incompreendido. A injustiça, portanto, perdoo, como tenho,
perdoado no correr da vida a todos que me têm ofendido. Passei alheio às lutas da
política, que sempre detestei, sem aspirar às honras de seus cargos. Vivi até hoje
para os meus livros, para a família e para os infelizes que me pediram proteção
(1969, p. 16).

Constrói a imagem de benemérito e de escritor compromissado, que deve ser


lembrado pelas gerações futuras como um modelo ético, porque “o medo do esquecimento
obcecou as sociedades europeias da primeira modernidade. Para dominar sua inquietação, elas
fixaram, por meio da escrita, os traços do passado, a lembrança dos mortos ou a glória dos
vivos e todos os textos que não deviam desaparecer (CHARTIER, 2007, p. 7).
Portanto, Rodolfo Teófilo luta contra o seu memoricídio, contra o apagamento de
seu nome na História. E as polêmicas são um poderoso mecanismo para esse fim. Enquanto
polemizava com o Osório Duque Estrada, perante os seus leitores, descreve a sua trajetória
literária e intelectual.
Estreei publicando a “História da Seca do Ceará”, 1877 a 1880. A imprensa do Rio
recebeu o livro sem pedradas, pela importância do assunto e lhe concedeu honras de
fonte subsidiária para a futura história do Ceará. Aqui apareceu um papão, que me
bateu o pé porque tive o desaforo de censurar o nosso grande José de Alencar em
assunto das secas, que ignorava completamente e nos fez muito mal. Respondi-lhe
sobranceiro, porque a verdade estava comigo. Continuei a escrever. Publiquei o
romance a “Fome” e saiu a recebê-lo o outro papão, Adolfo Caminha, que aqui
pontificava nas letras, e condenou o livro como cousa muito ruim. Não lhe dei
importância. Depois de ter publicado uma vintema de livros neste meio inóspito a
todo o trabalho intelectual, é que os letrados do Rio, salvo algumas exceções,
começaram a enxergar-me neste esquecido Ceará. A visão deles aumentou com a
crítica lisonjeira do meu romance “O Paroara”, que André Bonnier fez em Paris, no
“Fígaro”. Fiquei mais conhecido em um mês, depois do artigo do literato francês, do
que em trinta anos de letras no Brasil. Note se que havia mais de dez anos que “O
Paroara” tinha sido publicado e agora é que a imprensa do Rio noticiava a existência
dele e achava o livro bom, porque o francês o havia achado. O próprio “Jornal do
313

Comercio” transcreveu a crítica de Bonnier, sob a epígrafe, em letras gordas – “Um


romance cearense estudado no ‘Fígaro” (1924, p. 5).

Osman Lins nos ensina que a “glória, para o verdadeiro escritor, é ser lido -
principalmente pelo seu povo e poder viver do seu trabalho sem precisar de envilecê-lo”
(1977, p. 47). Enquanto escritor, assim como os outros, o que Rodolfo Teófilo queria era ser
lido. E o ideal de continuar a ser lido, por gerações futuras, foi o estopim de inúmeras guerras
intelectuais e literárias.
314

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreendemos, por meio dessa investigação, que a polêmica não apenas


integrou, mas foi um importante mecanismo de atuação intelectual de Rodolfo Teófilo,
sobretudo, na defesa de sua ficção e no seu discurso crítico. Ele interpretava as suas múltiplas
missões intelectuais com a metáfora da ‘guerra justa’ e, em inúmeros escritos, concebeu uma
imagem de si como um paladino, um cavaleiro andante, tal como o D. Quixote. E para a
formação desse combatente literário, ressaltamos o papel que desempenhou na agitada vida
literária de Fortaleza.
Ele atuou em diversas agremiações literárias e científicas como o Instituto
Histórico e Geográfico do Ceará, o Clube Literário, a Padaria Espiritual, o Centro Literário, e
a Academia Cearense de Letras (tendo sido depois escolhido como patrono da cadeira nº 33),
que divulgavam as ideias racionalistas, progressistas, evolucionistas no estado cearense.
Nesses círculos, a “leitura crítica” funcionava como meio de sociabilidade literária
e intelectual para cultivar e partilhar o capital cultural entre seus membros. Escritores como
Oliveira Paiva, Antônio Sales, João Lopes, Rocha Lima, Araripe Jr. Júnior, Adolfo Caminha
entre outros, por meio de suas ações, mesmo tomando a civilização europeia como modelo,
com o olhar irradiado pelas luzes da Era moderna, ansiavam por uma sociedade nova em que
a vida literária fosse ativa, com a livre e intensa circulação de livros e ideias.
Como homem de letras e de ciências, o seu ideal moderno residiu na missão de
fotografar a sua época, os costumes e a índole da civilização cearense (TEÓFILO, 1997. p.
116), que era o propósito comum a todas as atividades que exerceu, como a ciência, a
indústria, a ação sanitarista, o ensino, o jornalismo, a historiografia e a literatura.
Mesmo acentuando sua abnegada luta a favor da justiça social, Rodolfo Teófilo,
não diferente dos seus contemporâneos, também queria ‘marcar época’ (Bourdieu) com sua
obra literária.
Concluímos que a busca pela glorificação literária é uma luta contra a
efemeridade do tempo, em que o campo literário atua como arena primordial para a promoção
do escritor e de sua obra. Ao adotar um ethos polêmico, Rodolfo Teófilo construiu uma
escrita provocativa para advogar o seu fazer literário e projeto intelectual, com o intuito de
persuadir seus leitores sobre a legitimação de sua reputação como romancista e cronista.
Constatamos que a polêmica entre escritores não expõe apenas hostilidades
pessoais. Como modalidade argumentativa, desempenha um papel essencial nas sociedades
315

democráticas, porque a coexistência do dissenso permite a preservação do pluralismo e da


diversidade na esfera social.
A polêmica é um importante meio para estudar o contexto literário e cultural do
século XIX, para entender como se configurou a crítica literária nos jornais, para refletir sobre
o paradoxo dos críticos desenovistas entre cientificismo e a ‘paixão interpretativa’ (Barbosa,
1974) e os embates dos escritores para se autopromover, na tentativa de inserção no cânone
literário.
316

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi, Ivone Castilho Benedetti
5. ed. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2007.

ABREU, Capistrano de. Ensaios e estudos: crítica e história. 1º série. Rio de Janeiro:
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________. A literatura brasileira contemporânea. In Ensaios e estudos: crítica e história. 1ª.


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