2019 Tese Crpinheiro
2019 Tese Crpinheiro
2019 Tese Crpinheiro
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
FORTALEZA
2019
CHARLES RIBEIRO PINHEIRO
FORTALEZA
2019
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca Universitária
Gerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Odalice de Castro Silva (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará – UFC
______________________________________________
Prof. Dr. Francisco Agileu de Lima Gadelha
Universidade Estadual do Ceará – UECE
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Denise Noronha Lima
Universidade Estadual do Ceará – UECE
_____________________________________________
Prof. Dr. Marcos Vinicius Medeiros da Silva
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN
_____________________________________________
Prof. Dr. Wesclei Ribeiro da Cunha
Universidade Federal do Ceará - SME
Dedico esta pesquisa à memória de minha
amada mãe: Rosa Maria Ribeiro Pinheiro
(1952 – 2014).
AGRADECIMENTOS
Rodolfo Teófilo (1853-1932) foi um intelectual multifacetado, que se destacou como cientista
e homem de letras. Produziu obras historiográficas, de divulgação científica, crônicas,
memórias, ficção, poesia e, esporadicamente, crítica. Como não foi um crítico profissional, os
textos que escreveu foram reações aguerridas contra juízos desfavoráveis à sua obra, tal como
a famosa contenda com Adolfo Caminha, em virtude da recepção de seu primeiro romance, A
fome (1890). Por meio de dois artigos no jornal O pão (1895), da Padaria Espiritual, ele
defendeu a sua missão literária e desqualificou Caminha como romancista. Constatamos que
não existe polêmica sem a leitura conflitiva do outro, pois é oriunda do espírito crítico da era
moderna. Os jornais e revistas serviam de ‘cenário’ (MAINGUENEAU, 2001) para as
interações polêmicas entre os escritores, tanto para conquistar a opinião pública, quanto para
transformar a palavra em arma para demolir o adversário. Ruth Amossy (2005) considera que
todo ato de tomar a palavra implica a configuração de uma imagem de si, que colabora na
construção de uma reputação literária. O choque entre opiniões antagônicas dissimula várias
tensões entre projetos estéticos e civilizatórios, entre gerações artísticas, entre instituições
literárias (coteries) e entre indivíduos que almejam a perduração de seus nomes, ou seja, a
“mortal imortalidade” (CASTAGNINO,1969). A presente pesquisa pretende investigar as
polêmicas literárias de Rodolfo Teófilo, enfatizando os textos críticos publicados na imprensa
cearense, como estratégias para atingir a glorificação literária. O escritor confrontou Adolfo
Caminha, José Veríssimo, Rodrigues de Carvalho, Gomes de Matos, Osório Duque Estrada e
Meton de Alencar em textos estampados em diversos periódicos, posteriormente reunidos na
obra Os meus zoilos (1924). O livro dialoga intensamente com os debates da inteligência
nacional do final do século XIX, os quais revelam tensões entre vários centros literários, tais
como o Rio de janeiro, Recife e Fortaleza. O escritor integra uma tradição de polemistas
brasileiros, a qual teve como importantes representantes José de Alencar e Silvio Romero.
Para o desenvolvimento da pesquisa, situamos Rodolfo Teófilo na agitada vida cultural de
Fortaleza, bem como a sua participação em várias agremiações literárias. Para o exame da
ideia de glorificação literária, apoiamo-nos em O que é a literatura?, de Jean Paul Sartre (1ª
ed. 1947), e O que é literatura?, de Raul Castagnino (1969); além de T. S. Eliot com o ensaio
“Tradição e talento individual” (1989) e Pierre Bourdieu, com a categoria “consagração”
(1996). Para o estudo do caráter discursivo da polêmica utilizamos Ruth Amossy, Apologia
da polêmica (2017), Dominique Maingueneau, com a perspectiva da polêmica como
interincompreensão, em Sémantique de la polemique, (1983), O contexto da obra literária
(2001) e Gênese dos discursos (2005), a teoria de campo literário de Pierre Bourdieu, em As
regras da Arte (1996) e a interpretação da literatura como um ‘esporte de combate’ (2017) de
Antoine Compagnon. O embasamento historiográfico para o estudo da crítica e polêmica no
Brasil: de Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2 volumes (1888), José Veríssimo,
História da Literatura Brasileira (1916) e Estudos de literatura brasileira, 6 séries (1901-
1907) e Araripe Jr. Júnior, Obra Crítica (1958-1966) 5 volumes. Também contribuíram para
o enriquecimento dessa pesquisa: Alfredo Bosi (1992) e (2002); Roberto Ventura (1991);
Antônio Cândido (1959) e (1988); Luiz Roberto Veloso Cairo (1996); Hans Robert Jaus
(2004); Alberto Ferreira (1988); João Alexandre Barbosa (1974), (1996) e (2002); João Cezar
de Castro Rocha (2011) e (2013) e Sânzio de Azevedo (1976), (1982), (1999) e (2011).
Rodolfo Teófilo (1853-1932) fue un intelectual de múltiples faces, que se destacó como
científico y hombre de letras. Produjo obras historiográficas, de divulgación científica,
crónicas, memorias, ficción, poesía y, ocasionalmente, crítica. Como no fue un crítico
profesional, los textos que escribió fueron reacciones aguerridas contra juicios desfavorables a
su obra, tal como la famosa contienda con Adolfo Caminha, en virtud de la recepción de su
primera novela, A fome (1890). A través de dos artículos del periódico O Pão (1895), de la
Padaria Espiritual, él defendió su misión literaria y descalificó Caminha como novelista.
Constatamos que no existe polémica sin lectura conflictiva del otro, puesto que es oriunda del
espíritu de la era moderna. Los periódicos y revistas servían de ‘escenario’
(MAINGUENEAU, 2001) para las interacciones polémicas entre los escritores, tanto para
conquistar la opinión pública, como para transformar la palabra en arma para demoler el
adversario. Ruth Amossy (2005) considera que todo acto de tomar la palabra implica la
configuración de una imagen de sí, que colabora en la construcción de una reputación
literaria. El choque entre opiniones antagónicas disimula varias tensiones entre proyectos
estéticos y civilizador, entre generaciones artísticas, entre instituciones literarias (círculos) y
entre individuos que anhelan la perduración de sus nombres, o sea, la “mortal inmortalidad”
(CASTAGNINO,1969). El presente trabajo pretende investigar las polémicas literarias de
Rodolfo Teófilo, enfatizando los textos críticos publicados en la prensa de Ceará, como
estrategias para alcanzar la glorificación literaria. El escritor confrontó Adolfo Caminha, José
Veríssimo, Rodrigues de Carvalho, Gomes de Matos, Osório Duque Estrada y Meton de
Alencar en textos estampados en diversos periódicos, posteriormente reunidos en la obra Os
meus zoilos (1924). El libro dialoga intensamente con los debates de la inteligencia nacional
del final del siglo XIX, los cuales revelan tensiones entre varios centros literarios, tales como
Rio de Janeiro, Recife y Fortaleza. El escritor integra una tradición de polemistas brasileños,
la cual tuvo como importantes representantes José de Alencar y Silvio Romero. Para el
desarrollo de la investigación, ubicamos Rodolfo Teófilo en la agitada vida cultural de
Fortaleza, así como su participación en varias agremiaciones literarias. Para el examen de la
idea de glorificación literaria, nos apoyamos en O que é a literatura?, de Jean Paul Sartre (1ª
ed. 1947), y O que é literatura?, de Raul Castagnino (1969); además de T. S. Eliot con su
ensayo “Tradição e talento individual” (1989) y Pierre Bourdieu, con la categoría
“consagración” (1996). Para el estudio del carácter discursivo de la polémica utilizamos Ruth
Amossy, Apologia da polêmica (2017), Dominique Maingueneau, con la perspectiva de la
polémica como interincomprensión, en Sémantique de la polemique, (1983), O contexto da
obra literária (2001) y Gênese dos discursos (2005), la teoria de campo literario de Pierre
Bourdieu, en Regras da Arte (1996) y la interpretación de la literatura como un ‘deporte de
combate’ (2017) de Antoine Compagnon. La base historiográfica para el estudio de la crítica
y polémica en Brasil: de Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2 volúmenes
(1888), José Veríssimo, História da Literatura Brasileira (1916) y Estudos de literatura
brasileira, 6 series (1901-1907) y Araripe Jr. Júnior, Obra Crítica (1958-1966) 5 volúmenes.
También contribuyeron para el enriquecimiento de esta investigación: Alfredo Bosi (1992) y
(2002); Roberto Ventura (1991); Antônio Cândido (1959) y (1988); Luiz Roberto Veloso
Cairo (1996); Hans Robert Jaus (2004); Alberto Ferreira (1988); João Alexandre Barbosa
(1974), (1996) y (2002); João Cezar de Castro Rocha (2011) y (2013) y Sânzio de Azevedo
(1976), (1982), (1999) y (2011).
Rodolfo Teófilo (1853 – 1932) était un intellectuel aux multiples facettes, qui s’est distingué
en tant que scientifique et homme de lettres. Il a produit des œuvres historiographiques, des
diffusions scientifiques, des chroniques, mémoires, fictions, poésies et, sporadiquement, des
critiques. N’étant pas un critique professionnel, les textes qu’il a écrits étaient des réactions
féroces contre des jugements défavorables à son œuvre, comme la fameuse querelle avec
Adolfo Caminha, en vertu de la réception de son premier roman, A fome (1890). À travers
deux articles dans le journal O pão (1890), de la Padaria Espiritual, il a défendu sa mission
littéraire et il a disqualifié Caminha en tant que romancier. Nous constatons qu’il n’y a pas de
polémique sans la lecture conflictuelle de l’autre, car elle vient de l’esprit critique de l’ère
moderne. Les journaux et les magazines ont servi de « scénario » (MAINGUENEAU, 2001)
aux interactions polémiques entre les écrivains, à la fois pour gagner l’opinion publique et
pour transformer le mot en une arme pour démolir l’adversaire. Ruth Amossy (2005)
considère que tout acte de prise de parole implique la configuration d’une image de soi, qui
contribue à la construction d’une réputation littéraire. La confrontation d’opinions
antagonistes dissimule diverses tensions entre projets esthétiques et civilisateurs, entre
générations artistiques, entre institutions littéraires (coteries) et entre individus qui aspirent à
la perduration de leurs noms, à savoir, la ‘mortelle immortalité” (CASTAGNINO, 1969). La
présente recherche a pour objectif d’enquêter sur les polémiques littéraire de Rodolfo Teófilo,
en mettant l’accent sur les textes critiques publiés dans la presse cearense, en tant que
stratégies pour atteindre la glorification littéraire. L’écrivain a confronté Adolfo Caminha, à
José Veríssimo, à Rodrigues de Carvalho, à Gomes de Matos, à Osório Duque Estrada et à
Meton de Alencar dans les textes imprimés dans plusieurs périodiques, réunis ensuite dans
l’œuvre Os meus zoilos (1924). Le livre dialogue de manière intense avec les débats de
l’intelligence nationale de la fin du XIXe siècle, qui révèlent tensions entre divers centres
littéraires, comme Rio de Janeiro, Recife et Fortaleza. L’écrivain intègre une tradition de
polémistes brésiliens, qui a eu comme importants représentants José de Alencar et Silvio
Romero. Pour le développement de la recherche, nous avons situé Rodolfo Teófilo dans la vie
culturelle trépidante de Fortaleza, ainsi que sa participation à diverses associations littéraires.
Pour l’examen de l’idée de glorification littéraire, nous nous sommes appuyés sur Qu’est-ce
que la littérature ? (1er éd. 1947), et O que é literatura?, de Raul Castagnino (1969), et en
outre sur l’essai de T. S. Eliot “La tradition et le talent individuel” (1989) et Pierre Bourdieu,
avec la catégorie « consécration » (1996). Pour l’étude du caractère discursif de la polémique,
nous avons utilisé Ruth Amossy, Apologie de la polémique (2017), Dominique Maingueneau,
avec la perspective de la polémique comme intercompréhension dans Sémantique de la
polémique, (1983), Le contexte de l’œuvre littéraire (2001) et Genèse du discours (2005), la
théorie du champ littéraire de Pierre Bourdieu, dans Les règles de l’art (1996) et
l’interprétation de la littérature comme un « sport de combat » (2017) d’Antoine Compagnon.
Les bases historiographiques pour l’étude de la critique et de la polémique au Brésil
s’appuient sur : de Sílvio Romero, História da literatura brasileira, 2 volumes (1888), José
Veríssimo, História da Literatura Brasileira (1916) et Estudos de literatura brasileira, 6
séries (1901 – 1907) et Araripe Jr. Júnior, Obra Crítica (1958 – 1966), 5 volumes. Ils ont
aussi contribué à l’enrichissement de cette recherche : Alfredo Bosi (1992) et (2002) ;
Roberto Ventura (1991) ; Antônio Cândido (1959) et (1988) ; Luiz Roberto Veloso Cairo
(1996) ; Hans Robert Jaus (2004) ; Alberto Ferreira (1988); João Alexandre Barbosa (1974),
(1996) et (2002) ; João Cezar de Castro Rocha (2011) et (2013) et Sânzio de Azevedo (1976),
(1982), (1999) et (2011).
Meu interesse pela obra literária e intelectual de Rodolfo Teófilo ocorreu antes do
ingresso na graduação em Letras, na Universidade Federal do Ceará. Desde adolescente, fui
um entusiasta da história e da cultura do Ceará. Descobri a figura de Teófilo, ao pesquisar a
controversa história de Padre Cícero (1844-1834) e me deparei com o seu polêmico livro: A
sedição de Juazeiro (1922). Pesquisando mais, constatei que o referido escritor não foi apenas
um observador passivo de importantes acontecimentos da história cearense, ele também
narrou, analisou e interpretou os graves fatos de que participou.
Durante o Curso de Letras, no ano de 2006, ingressei no grupo de pesquisa
“Espaço de leitura: cânone e bibliotecas”, coordenado pela Professora Titular de Teoria
literária, Odalice de Castro Silva. Decidi estudar a obra literária de Rodolfo Teófilo e o meu
projeto de pesquisa consistiu em um exame inicial da formação literária e intelectual do
escritor. Foram dois anos de trabalho que resultaram em alguns artigos, resenhas e
apresentações de comunicações em congressos e encontros de literatura.
Em seguida, no ano de 2009, ingressei no Curso de Mestrado, no Programa de
Pós-graduação em Letras da UFC, dando continuidade à pesquisa de graduação, que resultou
na dissertação Rodolpho Theophilo: a construção de um romancista1, na qual investigamos a
formação intelectual e literária do escritor, verificando como ocorreu o seu amadurecimento
como ficcionista em O paroara (1899). Enfatizamos os seus romances escritos na década de
1890: A fome (1890), Os Brilhantes (1895), Maria Rita (1897), O Paroara (1899) e a novela
Violação (1898). Foi nessa pesquisa que nos deparamos com uma das mais famosas
polêmicas literárias, ocorridas no Ceará, em relação à concepção de romance naturalista, com
a publicação da primeira obra de ficção de Rodolfo Teófilo, A fome (1890) e a mordaz crítica
de Adolfo Caminha, posteriormente, publicada no livro Cartas literárias (1895).
Baiano por acidente e cearense de coração2, Rodolfo Teófilo viveu entre os anos
de 1853 a 1932, atravessou importantes fatos históricos e culturais da cidade de Fortaleza, em
suas conturbadas transformações urbanas e sociais, no afã de tornar-se uma capital
“moderna”, durante a passagem do século XIX até as três primeiras décadas do século XX.
1
Essa dissertação foi financiada pela FUNCAP.
2
Na obra Coberta de tacos (1931), Rodolfo Teófilo publica a carta que enviou a Affonso Costa, explicando sua
cearensidade: “nasci baiano por um acidente; sou de coração todo cearense, como nenhum será mais do que eu”
(24 de abril de 1923).
18
Constatamos que a polêmica literária não revela apenas desavenças pessoais, ela é
um importante meio para examinar o contexto literário cultural da época, para entender como
se configurava a crítica nos jornais, as influências de leituras, o diálogo com os polos
intelectuais, no Brasil e no exterior, as visões estéticas acerca dos romances e as agitadas
disputas na formação do cânone.
Portanto, a presente tese tem como propósito investigar as polêmicas literárias de
Rodolfo Teófilo, enfocando os seus textos críticos publicados na imprensa cearense,
empregados como meios de defesa de sua produção poética e de ataque às obras de seus
adversários literários, além de estratégia para a glorificação literária. O nosso interesse não é
servir de advogado de Rodolfo Teófilo, pois as suas polêmicas se assemelhavam a de
escritores cearenses e de outros estados, do mesmo período, que também tinha uma postura
paradoxal, ao defenderem um discurso cientificista e racionalista, mas em seus textos críticos
assumiam uma perspectiva parcial e apaixonada. Muitas vezes, a obra literária era pretexto
para atacar o seu autor, em casos extremos, recorrendo ao mau humor e ao uso de termos
chulos.
O desejo de estudar as polêmicas de Rodolfo Teófilo colabora para entendermos
uma conduta de crítica literária específica, erigida pelo discurso das ideias ‘modernas’,
desenvolvidas, publicadas, lidas e compartilhadas ao longo do século XIX. As polêmicas
tiveram ringues privilegiados: os jornais e periódicos que nos estados brasileiros; cujo palco
principal foi o Rio de Janeiro, capital federal, espaço de maior visibilidade política e cultural.
Para a compreensão do desenvolvimento desse gênero específico de crítica,
dialogaremos com Estilo tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil (1991),
do professor paulista Roberto Ventura (1957-2002). Nessa pesquisa, ele investiga as bases
teóricas dos intelectuais brasileiros da chamada ‘Geração de 1870’, da qual emerge a figura
do crítico combatente. O coração dessa pesquisa, conforme o autor, está no minucioso exame
das
polêmicas de Silvio Romero que se inserem no movimento crítico da Escola do
Recife, participante da virada antirromântica a partir de 1870. Esse movimento
correspondeu, em termos de crítica literária, à introdução do naturalismo, do
evolucionismo e do cientificismo, e tomou as noções de raça e natureza, com o fim
de dar fundamentos ‘objetivos’ e ‘imparciais’ ao estudo da literatura. A adoção de
tais modelos, predominantes até o início do século XX, tornou possível a abordagem
da literatura e da cultura de um ponto de vista histórico-social (VENTURA, 1991, p.
11).
3
No capítulo posterior, serão postos em discussão as ideias: moderno, modernização e modernidade.
21
Rodolfo Teófilo era muito pacato e reservado, preferia ficar em sua casa na Serra
de Pacatuba a vir a Fortaleza, à qual só se dirigia para trabalhar no seu vacinogênico. Na
citação, ele salienta as transformações ocasionadas pela chegada da energia elétrica. Para ele,
o cinema4 como um espaço de corrupção dos costumes. A cidade iluminada à noite, permite
que as pessoas transitem durante mais tempo, gerando aglomerações e beneficiando a boêmia.
Ele comenta a ânsia constante em mudar e substituir o cenário urbano.
Outro famoso caso que gerou comoção entre os fortalezenses, acerca da revolta
contra o progresso, foi o corte do grande oitizeiro que ficava ao lado da igreja do Rosário5.
Em 1929, o então prefeito de Fortaleza, Álvaro Weyne, mandara cortar a árvore. Tal ato foi
amplamente comentado na imprensa (os jornais O povo, o Correio da Manhã) e intitulado
como um ‘grande crime’ pelo cronista João Nogueira e, no jornal A razão, foi denominado de
“machado do progresso”:
O tradicional oitizeiro que se erguia majestoso em frente ao edifício onde funciona
atualmente a Secretaria do Interior e Justiça, teve ontem o seu ultimo dia de vida. O
machado do progresso iniciou, pela manhã de ontem, a sua ação e, dentro de poucas
horas, via-se, com tristeza, manter-se de pé tão somente o tronco da velha arvore.
Muitos foram os protestos que se levantaram contra o gesto do sr. prefeito
municipal, havendo mesmo quem o classificasse de bárbaro. Hoje, restará do grande
oitizeiro apenas a lembrança. Já é, porém um mal sem jeito. Conformemo-nos (A
Razão, 17/05/1929, p. 2 apud NOGUEIRA, 1980).
A explicação dada pelo prefeito era que a árvore estava atrapalhando o trânsito já
intensificado pelo aumento de veículos que trafegavam pelas ruas de Fortaleza (carros
particulares e de aluguel, bondes) que queria crescer, mas nas palavras de Otacílio de
Azevedo, ainda era uma cidade “descalça”. “O que seria uma árvore para o crescimento da
4
Outros Cinemas de Fortaleza: Polytheama (1911), o Majestic (1917), o Pathé, de Vítor di Maio, o
Estereopticon, o Rio Branco, Amerikan Kinema.
5
Templo católico mais antigo de Fortaleza, construída por escravos, está situada na Rua do Rosário, na Praça
General Tibúrcio ou Praça dos Leões.
22
cidade? Nada” — talvez fosse a lógica dos dirigentes. O oitizeiro seria um resquício da cidade
do século XIX, provinciana e pacata.
Rodolfo Teófilo, como outros escritores de sua geração, foi testemunha dessa
tentativa de modernização na capital cearense. Porém, a modernização é um fenômeno da Era
moderna que também compreende outro, que é a modernidade, específico da segunda metade
do século XIX em diante, conforme reflexões do poeta francês Charles Baudelaire, em seu
famoso ensaio “O pintor da vida moderna”, publicado na França, em 1869.
O poeta escreveu o ensaio ao examinar as pinturas e ilustrações do artista
Constantin Guys, as quais se destacavam em registrar não apenas o dia a dia nas ruas de Paris,
mas captar a vida pulsante e elegante. A vida cotidiana, a vida moderna, nas grandes cidades,
sofreu mudanças constantes. O artista da modernidade deverá estar atento a estas sutis
mudanças, para captar e eternizar o instante efêmero que nunca mais ocorrerá. É,
concomitantemente, uma visão paradoxal do tempo e uma visão estética da história, que serão
reforçadas pela interpretação do filósofo alemão Walter Benjamin em seus ensaios sobre
Baudelaire e a modernidade em “Um lírico no auge do capitalismo” (1989).
Também trabalharemos com a perspectiva de Brito Broca, na obra A Vida
Literária no Brasil-1900 (1956). Para o autor, a vida literária é compreendida como uma
crônica específica, em que os personagens são literatos, críticos e jornalistas. Ele narra o
contexto dos escritores e suas obras na passagem do século XIX para o XX. São fragmentos
biográficos, contendo histórias pitorescas, não apenas de indivíduos, mas de agremiações
literárias, jornais e periódicos. Brito Broca age como um fixador de aspectos transitórios,
mesmo sendo pequenos detalhes, e muitos dos seus cenários são bares, cafés, academias,
clubes; e a rua, esta é uma das grandes protagonistas. Enfim, um retrato cultural da cidade. A
ideia de vida literária nos será de muita valia para entender como se relacionara com as
transformações sociais e materiais que Fortaleza passou.
Para alicerçar literária e culturalmente o estudo da vida literária, nos apoiaremos
na obra de Dominique Maingueneau, O contexto da obra literária (2001), a partir de
categorias como obra, escritor e público, analisando os conflitos e tensões relacionados entre
elas. Ele encara o escritor literário como um sujeito enunciador e, ao analisar o contexto,
demonstra atenção às condições de enunciação desse escritor e de seu papel na história. O
pesquisador discute em sua obra que o escritor não escreve em um “solo institucional neutro e
estável” (2001, p. 28) e que “nutre seu trabalho com o caráter radicalmente problemático de seu
próprio pertencimento ao campo literário e à sociedade” (2001, p. 27).
23
6
COMPAGNON, Anointe. Les tropes de la guerre littéraire. Cours La littérature comme sport de combat, em
Collège de France. Disponível em: https://www.franceculture.fr/emissions/les-cours-du-college-de-france/la-
litterature-comme-sport-de-combat-111-les-tropes-de-la
25
7
Round |ráunde| (palavra inglesa) - substantivo masculino. 1. [Esporte] Cada um dos períodos em que é dividido
o combate, em certos esportes de luta. 2. Cada uma das partes de um confronto (rodada, etapa). Sinônimo Geral:
Assalto. Round In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa 2008-2013,
Disponível em: https://dicionario.priberam.org/round [consultado em 12-12-2018].
8
Na época de sua organização, chancelada pelo Rei Luís XIII, a Academia Francesa foi instituída para promover
debates entre homens aptos e proeminentes, com o fim de decidir o futuro da sociedade francesa, cultural e
cientificamente. A Academia foi composta por 40 imortais, ou seja, homens de letras e ciências destacados da
sociedade.
28
em sua fala, estava em uma instituição, cuja função era manter viva a tradição literária
cearense, que possuía, à época, mais de 100 anos de produção literária.
Fora as questões políticas e extraliterárias existentes para a composição e escolha
dos membros das academias, a existência de tais agremiações em determinado contexto,
espelhadas no modelo francês, demonstra que o sistema literário no Ceará, mesmo diminuto,
estava ficando mais complexo.
O crítico Antônio Cândido (1918-2017), na introdução de Formação da literatura
brasileira (primeira edição - 1959), desenvolve a categoria sistema literário, ou seja, “obras
ligadas por denominadores comuns, que permitem reconhecer as notas dominantes duma
fase” (1981, p. 23). Ele compreende a literatura como um conjunto de fatores internos (língua,
temas, imagens) e externos de ordem cultural, política e psíquica, caracterizando-a como um
importante aspecto orgânico da civilização.
Em um âmbito sociocultural, a literatura se constituirá quando existir um conjunto
de produtores literários, mais ou menos conscientes do seu papel comunicativo e estético; um
mecanismo transmissor (a língua transformada em texto artístico por meio do estilo) e um
conjunto de receptores, formando diferentes tipos de público, sem o qual a obra não vive
(1981. p. 23-24). Resumindo: para que haja literatura, é preciso que haja o conjunto integrado
pelos escritores, pelas obras e pelos leitores.
O conjunto dos três elementos dá lugar a um tipo de comunicação inter-humana e
a literatura aparece nesse ângulo como um sistema simbólico, pelo qual os homens expressam
e interpretam diferentes esferas da realidade e profundos dramas da humanidade, quando um
escritor toma consciência que integra um sistema literário, ou seja, faz parte de uma
complexa cadeia, onde há circulação de obras de escritores de tempos remotos ou mais
recentes, ocorre “a transmissão da tocha” (1981, p. 24), metáfora utilizada por Cândido para
indicar que o conhecimento literário é passado em frente, por meio da leitura, ocasionando a
existência de novos autores e construindo uma continuidade literária.
Antônio Cândido nos explica que:
É uma tradição [...] isto é, transmissão de algo entre os homens, e o conjunto de
elementos transmitidos, formando padrões que se impõem ao pensamento ou ao
comportamento, e aos quais somos obrigados a nos referir, para aceitar ou rejeitar.
Sem esta tradição não há literatura, como fenômeno de civilização (ibidem, p. 24).
explicar é que no contexto cearense existia e continua existindo um conjunto de escritores que
trabalham numa perpetuação da tradição literária local, participando também da tradição
nacional. A literatura como fenômeno estético e social se expande e se frutifica por meio de
aproximações, de rupturas, de interligações e de hibridizações.
Otacílio Colares estava saudando Rodolfo Teófilo, cuja importância para a
respectiva instituição era patente. Atualmente, a maioria da população, quer seja cearense,
quer seja nacional sequer tem ciência de sua passagem pela história. No início do seu
discurso, o poeta descreve as atividades que Teófilo exerceu, demonstrando assim, a imagem
que o escritor construiu perante a sociedade, a partir de suas ações.
Ele foi um homem de letras e de ciência, movido por um ideal de justiça que
procurava atender a população menos assistida e tentava cultivar o aperfeiçoamento moral por
meio da ciência e da conscientização política.
Para Otacílio, Rodolfo Teófilo era considerado uma figura ilustre e sua casa era
uma referência histórica na cidade. Nascido em 1918, ao referir-se na conferência sobre sua
reminiscência, no qual afirmou que tinha 13 anos, então, supomos que o episódio ocorreu
entre 1931. E Rodolfo faleceria em 1932.
Como farmacêutico e sanitarista, a sua casa funcionava como botica e laboratório,
em que fabricava remédios, xaropes e vacinas. Foi nessa residência que ele, junto com a
esposa e colaboradores, fabricou as vacinas que auxiliaram na erradicação da varíola no
estado do Ceará. A linha do bonde do Benfica passava em frente à casa de Teófilo, na
Boulevard Visconde do Cauípe (atualmente, Av. da Universidade9, Fortaleza). A parada dessa
região era conhecida como a ‘parada da vacina’, em referência ao ilustre morador.
Na citação, também observamos alguns contrastes. Otacílio Colares é um escritor
novo, de uma geração bastante posterior à de Rodolfo Teófilo. O autor homenageado
pertenceu à ‘Geração de 1870’, responsável pela introdução das ideias novecentistas, ditas
‘modernas’, tais como o positivismo, o determinismo, o evolucionismo, o darwinismo, o
progressismo. Otacílio pertenceu à geração, que constituiu o Grupo Clã10 (década de 1940),
9
Em 1985, ela foi demolida e deu lugar a um prédio residencial. Na época, o jornalista Miguel Ângelo de
Azevedo, o Nirez, publicou a denúncia no jornal O Povo.
10
O Grupo Clã foi fundado em 1943 e reuniu, no Ceará, alguns escritores que se aproximaram, estética e
ideologicamente, à chamada Geração de 45 do Modernismo. O grupo criou mais coesão por meio da publicação,
em 1946, da Revista Clã. Segundo Artur Eduardo Benevides, “O Grupo Clã, responsável, em grande parte, pela
literatura cearense nos últimos trinta nos, procurou, por todos os meios, criar em Fortaleza um clima cultural em
que escritores e artistas pudessem atingir status profissional e recebessem, ao lado de vantagens pecuniárias, o
estímulo necessário à produção literária” (Evolução da Poesia e do Romance Cearense, 1976, p. 10). Seus
membros fundadores foram: Aluísio Medeiros (1918-1971), Antônio Girão Barroso (1914-1990), Antônio
Martins Filho (1904-2002), Artur Eduardo Benevides (1923-2014), Braga Montenegro (1907-1979), Eduardo
30
Campos (1923-2007), Fran Martins (1913-1996), João Clímaco Bezerra (1913-2006), José Stênio Lopes (1916-
2010), Lúcia Fernandes Martins (1924-2004), Milton Dias (1919-1994), Moreira Campos (1914-1994), Mozart
Soriano Aderaldo (1917-1995), Otacílio Colares (1918-1990).
11
A expressão Belle Époque foi cunhada pelos franceses, durante a década de 1920, para se referirem, de
maneira nostálgica, ao período de quase vinte anos anteriores a Grande Guerra (1914-1918). Período marcado
pelo cosmopolitismo e pelas transformações sociais e políticas, onde houve uma efervecência artística,
intelectual, científica, tecnológica que agitou a França e o resto da Europa. Foi a época em que a burguesia
europeia viveu com esplendor, em passeios nos boulevares, nos cafés, em barcos a vapor. Os grandes marcos da
Belle Époque, na França, foram: as reformas urbanisticas de Haussmann (1853-1870), os cabarés como o
Moulin Rouge; a Torre Eiffel (1889); uma das primeiras exibições de cinema, pelos irmãos Lumière (1895); o
metrô de Paris (1900).
12
Exemplos de outros colégios de Fortaleza: Seminário Episcopal (1864); Colégio da Imaculada Conceição;
Panteon Cearense (1870), dirigido pelo Professor Pedro da Silva Sena; o Colégio Cearense, dirigido por Padre
Luís Vieira da Costa Perdigão; O Colégio São José (1876), do Padre. Ananias Correia do Amaral; Instituto
Cearense de Humanidades, do Padre Bruno Rodrigues da Silva Figueiredo; Colégio Universal (1875); e a partir
da década de 1880, são criados o Ginásio Cearense; Colégio Nossa Senhora da Vitória; o Jardim da Infância, o
Telemaco; Externato Florisa; a Escola Cristã; Partenon Cearense, (Ver GIRÃO, Raimundo. Educandários de
Fortaleza. In: Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza, Ceará. s/editor, 1955).
31
13
No sentido de homem que opina e intervém nos acontecimentos relevantes na sociedade, (Jean-Paul Sartre, O
que é Literatura - 1947). Discutiremos mais sobre essa categoria no quarto capítulo.
14
O termo se refere ao livro do historiador Nicolau Sevcenko, intitulado Literatura como missão: tensões
sociais e criação cultural na Primeira República (1985), defendida como tese de doutorado pelo departamento de
História da USP, em 1981, no qual o autor investiga o papel da literatura como instrumento de ação política e de
denúncias dos problemas sociais ocorridos pela abruta implantação da República, por meio das obras de Lima
Barreto e de Euclides da Cunha.
32
em que pudesse ‘fotografar a realidade’ e buscar uma pretensa verdade. Ele observava a
realidade, colhia dados, efetuava análises, a fim de buscar uma veracidade radical em suas
obras literárias.
Devido às críticas que sofreu, pelo exacerbado cientificismo, pela falta de “beleza
estética” de seus textos, ele se utilizou das letras para efetuar a defesa de sua verdade poética
e para avaliar e atacar as obras e o caráter de seus detratores. Na sua atuação jornalística,
inúmeras foram as polêmicas de que participou: contra Adolfo Caminha (1867-1897), José
Veríssimo (1857-1916), Osório Duque Estrada (1870-1927), Gomes de Matos (1909-1966),
Meton de Alencar (1875-1932). Isso só no âmbito literário, pois na imprensa cearense, vários
foram os ataques contra o caráter de Rodolfo e seu trabalho sanitarista15, advindos de
membros simpatizantes da Oligarquia Accioly, da qual o escritor era fervoroso opositor.
Antes de estudar os textos polêmicos, precisamos entender o contexto cultural e
histórico em que esse gênero específico se desenvolveu e de uma postura de crítica, no
discurso moderno dezenovista.
Os textos de crítica veiculados nos periódicos cearenses dialogavam com os
debates da inteligência nacional daquela época. Remetendo às ideias de continuidade do
sistema literário, Rodolfo Teófilo faz parte de uma tradição de polemistas brasileiros, que
teve início em José de Alencar16 e estendeu-se até as primeiras décadas do século XX.
A partir da década de 1870, as polêmicas apareceram com mais frequência nos
jornais, tendo Sílvio Romero17 como o intelectual que mais as cultivou, pois era o seu estilo
15
No ano de 1900, uma terrível epidemia de varíola assolou o Ceará. Devido à falta de interesse do governo
cearense em combater a peste, Rodolfo Teófilo decide sozinho fabricar a vacina e imunizar toda a população da
capital (abertura do Instituto Vacinogênico do Benfica, em 1º/01/1901), além de publicar livros descrevendo e
denunciando os problemas relativos às secas e às epidemias: Secas do Ceará: segunda metade do século XIX
(1901), Varíola e Vacinação no Ceará (1905). Os membros da Oligarquia Accioly viram esse ato como uma
afronta política e deram início a uma grande polêmica em torno da campanha de vacinação de Rodolfo Teófilo
na imprensa cearense. No jornal A República (governista), a partir de 1905, o Dr. Meton de Alencar, escreve
uma série de artigos tentando desqualificar o trabalho sanitário de Teófilo, cuja defesa fez através da publicação
de artigos no Jornal do Ceará.
16
Cartas sobre a Confederação dos Tamoios foi uma notável polêmica ocorrida em 1856, por meio de cartas
publicadas no jornal Diário do Rio de Janeiro, em que José de Alencar critica a obra poética de Gonçalves de
Magalhães, poeta protegido pelo Imperador Pedro II.
17
Alguns exemplos de algumas polêmicas do crítico: Em virtude da publicação de Introdução à História da
Literatura brasileira (1882), Araripe Júnior a resenha no jornal Gazeta da tarde. Em seguida, é rebatido por
Sílvio Romero no Jornal O globo. Travou polêmica contra Capistrano de Abreu, em defesa de sua obra: A
literatura brasileira e a crítica moderna (1880). Por conta da publicação de Cantos populares no Brasil (1883) e
Contos Populares do Brasil (1885), publica contra Teófilo Braga, Uma Esperteza: os cantos e contos populares
do Brasil e o Sr. Theophilo Braga (1887) e Passe Recibo (1904). Em 1897, publica Machado de Assis, onde
critica a ficção machadiana, mas quem entra em defesa a favor do autor de Quincas Borba é Lafayette Rodrigues
Pereira. Em 1909, publicou, Zeverissimações ineptas da crítica (1909), com o intuito de desqualificar a obra e a
pessoa de José Veríssimo. Consultar a obra Estilo tropical: História cultural e polêmicas literárias no Brasil,
1870-1914, de Roberto Ventura, publicado pela Companhia das Letras em 1991.
33
de crítica, uma vez que “nas polêmicas, os letrados lutavam por suas ideias e grupos, pela
‘sobrevivência’ ou ‘morte’ na cena da literatura e do jornalismo. Época de escritores
combativos, de polemistas irados, de bacharéis em luta” (VENTURA, 1991. p. 13).
Leonardo Mota (1891-1948), em Padaria Espiritual (1938), nos relata que desde
a metade do século XIX, a cidade de Fortaleza era uma capital de agitada vida literária. Na
respectiva obra, ele listou mais de 100 agremiações literárias, não só em Fortaleza, como em
outras cidades do estado. Grande parte da produção literária e dos periódicos que foram
publicados e que circularam dentro e fora do Ceará, era construída a partir dessas associações
literárias.
Investigaremos, a seguir, como se desenvolveu a vida literária da cidade de
Fortaleza, no final do século XIX, e início do XX, enfatizando os espaços sociais de leitura e
divulgação de ideias modernas como praças, cafés, clubes, livrarias, colégios.
Estudaremos o hábito da leitura crítica como meio de sociabilidade literária nas
agremiações de que Rodolfo Teófilo foi contemporâneo, como Academia Francesa (1873-
1975)18; Clube Literário (1886-1888) e Padaria Espiritual (1892-1898).
Sobre o estudo da vida literária em Fortaleza, nos apoiaremos na ideia de vida
literária, desenvolvida por Brito Broca, como uma crônica do contexto literário e cultural da
cidade. Para ampliar e aprofundar esse estudo, utilizaremos as categorias de contexto e campo
literário, respectivamente, estabelecidas por Dominique Maingueneau, em O contexto da
obra literária (2001) e por Pierre Bourdieu, em As regras da arte (1996).
Para as questões históricas, filosóficas e culturais sobre as transformações urbanas
e sociais pelos quais passou Fortaleza, trabalharemos com as categorias de moderno e
modernidade, a partir de Baudelaire (1995), Benjamin (2000), Berman (2007) e Le Goff
(2003).
18
Rodolfo Teófilo não fez parte da Academia francesa, contudo fez parte da geração que constituiu esse grêmio.
Enquanto alguns de seus ex-colegas do Ateneu cearense reuniam-se na Academia Francesa, o escritor estava
estudando na Faculdade de Farmácia da Bahia. Outro fator importante é que a Academia Francesa foi a grande
precursora das agremiações literárias no Ceará.
34
19
O incremento da produção de algodão deu-se na década de 60, quando os Estados Unidos da América, um dos
principais fornecedores de algodão para o mercado consumidor europeu, estavam envolvidos na Guerra de
Secessão (1861-1864), e o Ceará passou a fornecer o produto em grande escala, através do porto de fortaleza.
Assim, os teares ingleses começaram a ser abastecidos diretamente pelo algodão cearense, cultivado no interior
da Província, mas exportado via Fortaleza. (PONTE, Sebastião Rogério. In: Fortaleza, a gestão da cidade, 1995,
p. 37).
35
No período em que João Lopes tece sua crítica, o Regime Imperial 21 estava no seu
crepúsculo. Rio de Janeiro, sede do império, é denominado pelo escritor como “metrópole da
civilização sul americana”, ou seja, era uma cidade enriquecida com a agricultura canavieira
da Região de Campos e do café do Vale de Paraíba. Como Centro do país, concentrava a vida
política e era o espaço onde havia a maior oferta de produção literária e intelectual. No
entanto, essa produção era bastante restrita. O escritor nos fala de uma dicotomia: metrópole e
província. Se na metrópole, a leitura de produção literária e intelectual era inócua, na
20
Oliveira Paiva faleceu em Fortaleza, no dia 29 de setembro de 1892, vítima da tuberculose. Na ocasião de sua
morte, variadas manifestações entre os amigos escritores, inclusive, no jornal A República, de 04 de outubro de
1892, houve a publicação de uma Polianteia, na qual foram dedicados vários depoimentos sobre Oliveira Paiva,
tal como o de Adolfo Caminha: “fui vê-lo, na antevéspera de sua morte, e, por Deus, não pude conter um grande
desgosto, deplorando intimamente a sorte daquele moço que se finava ali assim numa água do outeiro, como
qualquer pária obscuro, num abandono pungente e torturado por essa dor que gela o coração ao mais forte, e que
nasce do desespero injusto e revoltante dos homens” (A República, 04/10/1892).
21
A queda do Regime monárquico e o advento da República ocorreram por meio de vários fatores sócio-
políticos e econômicos, dentre os quais se destacam: a Questão religiosa (confronto entre a Igreja Católica, que
estava reagindo contra os ideais do laicismo e do liberalismo que estavam em ascensão na Europa e na América,
e a Maçonaria), a Abolição da Escravatura (perda do apoio de grandes fazendeiros descontentes e prejudicados
com o fim do regime escravista) e a Questão militar (sucessão de disputas políticas entre oficiais do exército,
fortalecidos após a vitória brasileira na Guerra do Paraguai e a Monarquia, a partir da década de 1880).
36
província era mais inócua, irrisória. Os homens práticos que o escritor critica são aqueles que
não apegados às letras, às produções do espírito, sem requinte, sem senso estético, não
familiarizados com as ‘novidades’ culturais produzidas na Europa. Portanto, o cultivo da
literatura era sinônimo de civilização e escrever sobre letras na Província, era uma tentativa de
aperfeiçoamento cultural. Para João Lopes, não bastava apenas a modernização material para
colocar Fortaleza no mapa da civilização, era preciso cultivar as letras para ser ‘moderno’.
Antes de estudarmos o processo de transformação urbana em Fortaleza, precisamos discutir as
complexas ideias acerca do moderno e da modernidade.
No trecho, o filósofo tece uma aguda observação a fim de desconstruir uma ideia
positiva dos pensadores e cientistas da época (década de 1880) sobre a necessidade de
alcançar a verdade. Ele sustenta que a verdade é um verdadeiro mistério, evocando o mito de
Édipo, pois se existe a verdade, por que muitos homens, se de fato a atingissem, não entram
em comunhão com ela e entre si? A verdade universal ou cósmica é possível de ser atingida?
Ou, ao contrário, a verdade é relativa a cada indivíduo?
A busca filosófica pela verdade era um empreendimento complexo e problemático
antes do período moderno. Na época do pensador, esse exercício de busca, contava com várias
sistematizações. Nietzsche estava questionando a própria metodologia que lhe permitiu o
exercício do questionamento. Um dos fatores que podem caracterizar a Era moderna,
22
O filósofo exerce a sua crítica contra a tradição metafísica ocidental, ao combater as ideias socrático-
platônicas, enquanto denunciava a ‘fraqueza’ da moral cristã. O Cristianismo concebe o mundo como palco de
sofrimentos em detrimento o mundo feliz no além. É uma retomada do dualismo: o além é o ideal, o verdadeiro,
o autêntico, enquanto do mundo terrestre é o sensível, o provisório, o falso. Portanto, Nietzsche entendia que o
cristianismo era um “platonismo para as massas” (Além do bem e do mal [1886] e O Anticristo [1888]).
37
sobretudo, é a dúvida. No final do século XIX, o racionalismo atingiu o seu auge com o
positivismo.
Ortega y Gasset (1883-1940), investigou vigorosamente os fundamentos da Era
moderna, suas crenças e sua crise. No livro História como sistema (1940), ele nos explica que
uma das vozes que deu início à dessa Era foi René Descartes (1596-1650). O livro do filósofo
francês, o Discurso do método, serviu como paradigma para uma época nova, cuja convicção
nascia por meio da célebre frase cogito, ergo sum. A frase citada aparece na Trad. latina do
trabalho de Descartes, Discours de la Méthode (1637), escrito originariamente em francês e
traduzido para latim anos depois. A frase original é "Puisque je doute, je pense; puisque je
pense, j'exist” (Uma vez que eu duvido, eu penso; uma vez que eu penso, eu existo). Para
Ortega y Gasset, “Essas palavras são o canto de galo do racionalismo, a emoção da alvorada
que inicia toda uma idade, que chamamos Idade Moderna” (1982. p 29).
A sentença latina citada é o arremate filosófico de Descartes, alcançado após um
longo processo de reflexão que executou durante toda a vida. Ele pretendia fundamentar o
conhecimento humano em bases sólidas e seguras. Para essa árdua missão, pôs em dúvida
todo o conhecimento aceito como correto e verdadeiro de seu tempo, operando a razão como
guia. Após exaustivas ponderações, chegou à conclusão de que os métodos existentes eram
ineficientes. Com base na própria metodologia de ponderação, construiu uma nova
abordagem: a dúvida metódica. Com essa nova proposta de racionalismo, duvidar tornou-se
sinônimo de saber. Não é qualquer tipo de dúvida, mas uma dúvida posta de modo
sistemático. Após esta severa investigação, tentou questionar o seu próprio pensamento e
percebeu que ao duvidar, inevitavelmente, pensava, e se pensava, inevitavelmente existia.
Esta conclusão, a de julgar que a dúvida é a operação primordial do pensamento,
acarretará uma crença radical na razão. Por meio do método racional, o homem acreditou
encontrar um instrumento extraordinário, que o auxiliaria no esclarecimento dos segredos da
natureza e da vida. Em o Discurso do Método, a razão é a protagonista, o grande herói do
Ocidente. Com a divulgação do cogito cartesiano e da dúvida metódica no mundo letrado
europeu, o homem tornou-se o senhor de si, cultivando recursos para julgar com segurança.
Sobre a importância do racionalismo cartesiano Ortega y Gasset considera que:
Nos últimos anos do século XVI e nos primeiros do XVII, nos quais Descartes medita,
o homem do Ocidente acredita, portanto, que o mundo possui uma estrutura racional,
quer dizer, que a realidade tem uma organização coincidente com a do intelecto
humano, entende-se com a sua forma mais pura; com a razão matemática (ibidem, p.
30).
38
23
A partir do final do século XV, uma série de pensaores europeus, querendo ir além do conhecimento herdado,
rompeu com os métodos científicos da Idade Média. Foi com base na observação escrupulosa (o cientista teve
que descrever os mecanismos da natureza e entendê-los), sobre as experiências (em vez de o conteúdo do que foi
escrito nos livros antigos) e do raciocínio que foi desenvolvido o método experimental. Eles tiraram vantagem da
invenção de novos instrumentos como o telescópio, o microscópio, o termômetro, o barômetro. Os avanços
científicos permitiram uma melhor compreensão de como o mundo funciona, descrevendo-o com base na
matemática. Os protagonistas dessa Revolução Científica foram Galileu, Descartes, Francis Bacon, Copérnico,
Kepler e Newton.
24
Escolástica vem do latim schola (æ, f), “escola” e serve para designar uma filosofia desenvolvida e ensinada
em universidades na Idade Média para reconciliar a metafísica de Aristóteles com a teologia cristã,
principalmente, Tomás de Aquino tenta empreender essa tarefa com a obra Suma Teológica. Um dos
fundamentos do escolasticismo é o estudo da Bíblia Septuaginta, traduzida do hebraico para o grego em
Alexandria. Posteriormente, foi traduzida do grego para o latim, por São Jerônimo, que deu a Vulgata, que se
torna o texto de referência para os pensadores da Idade Média.
39
Para realizar esta faina, não se confiava apenas nos artifícios da razão, mas esta
era chamada em seu amparo. A fé cristã era representada pela autoridade da Igreja Católica.
Na Idade Média, o poderio da Igreja Católica se estendeu em campos variados, tais como o
religioso, o político e o cultural. O seu principal instrumento ideológico era a fé.
A fé era o guia infalível para conduzir o homem em sua conturbada existência. Se
Deus é perfeito, toda a sua criação era considerada perfeita e não existia espaço para
questionamentos. A mudança era vista como algo negativo, uma interferência no plano
divino. Os membros da igreja (padres, bispos, cardeais, teólogos) eram os responsáveis para
transmitir as verdades reveladas, a fim de que as pessoas pudessem segui-la fielmente. A
verdade estava em Deus, mas a sua mensagem era decodificada e transmitida pelos doutores
da Igreja Católica.
Esse mundo medieval era permeado de inúmeras categorias espirituais e
valorativas como o bem e o mal, o céu e o inferno, o pecado e a graça, entre outros. O avanço
e o desenvolvimento da ciência [com Nicolau Copérnico (1473-1543), Galileu Galilei (1564-
1642), René Descartes (1596-1650), Isaac Newton (1642-1727)], trouxe uma libertação dos
dogmas e das superstições, ou seja, das crenças que não eram pautadas em fatos observáveis e
materiais. Essa libertação científica trouxe uma sensação de estranhamento perante o mundo.
Segundo Tarnas, “A ciência revelava um mundo frio e impessoal, mas um mundo
verdadeiro [...] o mundo não era mais uma criação divina; parecia ter perdido certa nobreza
espiritual, empobrecimento esse que também necessariamente dizia respeito ao homem,
outrora apogeu da Natureza” (2002, p. 351).
A mudança drástica ocorreu quando os pensadores decidiram apoiar o seu
trabalho científico na observação séria da natureza e do universo e não com base no que foi
escrito na Bíblia ou por estudiosos da antiguidade, como Aristóteles e Ptolomeu. Eles não
rejeitaram, no entanto, o património intelectual dos cientistas gregos ou romanos. Os
pensadores modernos tentaram corrigir erros ou imprecisões dos antigos, mesmo destronando
o homem do centro do universo.
Além do racionalismo e do culto à ciência, outro aspecto importante da Era
Moderna é a Utopia.
Outrora, na Idade Média, vimos que tempo e espaço eram tidos por absolutos,
pois eram obras de Deus. A Utopia germinou a partir do momento em que o homem percebeu
que podia modificar a sua realidade. Na linguagem corrente, utopia significa ‘impossível’, no
entanto, os autores que utilizaram o termo, a partir do século XVI, alargaram o seu
40
25
Outras utopias: A Cocanha era um país lendário narrado e cantado durante a Idade Média. Nela, não havia
trabalho e a comida e o vinho eram fartos, o clima era agradável. O pintor Pieter Bruegel tem um quadro
chamado “O país da Cocanha”. Em 1532, François Rabelais propôs sua visão pessoal da cidade ideal utópica, a
Abadia de Télema, descrevendo em Gargantua (1534), Francis Bacon, escreve uma obra Nova Atlandida (1627),
em que apresenta um modelo de estado ideal regulado pela ciência. Tommaso de Campanella, em 1623, publica
A cidade do Sol, em que descreve a ideia de uma republica filosófica numa cidade construída nas encostas de
uma colina formada por sete círculos concêntricos. Na obra, Cândido, de Voltaire (1759) também descreve um
“Eldorado”. O pensador francês Charles Fourier, em O Novo Mundo Industrial e Societário (1829), descreve a
busca de uma sociedade ideal organizada em forma de Falanstérios (comunidades).
26
Novum Organum (1620), de Francis Bacon, foi uma das obras filosóficas responsáveis por lançar os alicerces
do método científico moderno. Ele faz uma severa revisão da filosofia antiga, especialmente, Platão e
Aristóteles, ao refutar o caráter especulativo da ciência grega e também da Escolástica medieval. A sua ambição
era a de construir novos fundamentos para a ciência, calcadas no empirismo e em conhecimentos práticos.
41
27
Shelling (1775-1854), palestrando em Berlim, em 1841, começa a falar em “filosofia Positiva”, que se baseia
na experiência a priori contra o racionalismo abstrato. Na França, o termo ‘filosofia positiva’ era um
direcionamento crítico contra o pensamento hegeliano, considerado ‘equivocado’, pois prezava uma
‘objetividade’ presumida em uma ideia de totalidade, negando as singularidades das experiências individuais. O
termo ‘positivo’ apareceu em livro, pela primeira vez na obra O catecismo dos industriais (1823), de Saint
Simon, contudo entra na terminologia da filosofia europeia por meio de Comte. O filosofo francês criticou a
dialética hegeliana, principalmente a ideia de que tudo poderia ser transformado no seu oposto e a afirmação de
que era possível conhecer as coisas por uma metafísica especulativa.
28
O termo ‘cabeça bem feita’ é contemporaneamente utilizado pelo filósofo Edgar Morin, na obra A cabeça
bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2003). Ele retoma o pensamento de Michel de
Montaigne, no qual ‘mais vale uma cabeça bem-feita que bem cheia’. Para Morin, a ‘cabeça bem-feita’ não é
apenas para acumular saber, mas construir e cultivar princípios de seleção e organização que dê sentido aos
problemas, com o fim de entendê-los e resolvê-los.
42
sua vida, escrever a sua própria narrativa. A expectativa foi demasiadamente avassaladora e o
homem, em um estado radical de miopia, acreditou que atingira o ápice da civilização. Em
seguida, por uma série de conflitos políticos, econômicos e étnicos, estava em uma guerra
devastadora (1914), na qual as ‘nações civilizadas’ utilizaram-se da ciência e da técnica para
aprimorar o extermínio humano. Modris Eksteins, em seu livro A sagração da primavera: a
Grande Guerra e o nascimento da Era Moderna29 (1991), considera que a consciência
moderna nasceu nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial.
O pensador Marshall Berman (1940-2013), em Tudo que é sólido desmancha no
ar, nos traz uma pertinente consideração acerca da condição desse período da história
humana:
Ser moderno é encontrar-se em ambiente que promete aventura, poder, alegria,
crescimento, autotransformação e transformação das coisas em redor – mas ao mesmo
tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos. A
experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas e raciais,
de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido, pode-se dizer que a
modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade paradoxal, uma unidade de
desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão de permanente desintegração e
mudança, de luta e contradição, de ambiguidade e angústia (BERMAN, 2007, p. 24).
29
O título e o tema do livro vêm do balé de Stravinsky, A sagração da primavera, que estreou em Paris, em
1913, quando a arte ainda tinha a capacidade de chocar. O balé narra a lenda popular de uma donzela que
literalmente dança até a morte, em um ritual pagão para homenagear os deuses da primavera e da fertilidade. É
nessa inversão de vida e morte que Eksteins encontra sua metáfora central para o que viria a ser da Europa. Ele
então aponta para a Alemanha antes da Grande Guerra, como a nação em que esses ideais foram os mais
pronunciados, como a nação modernista por excelência, que serviu de modelo para o nosso mundo. Para
Eksteins, a Primeira Guerra Mundial foi um conflito entre a antiga ordem mundial estabelecida, baseada nos
ideais iluministas, e representada principalmente pela Grã-Bretanha e, até certo ponto, pela França, e, por outro
lado, a Alemanha, a representante das novas ideias do mundo moderno lutando pela libertação e emancipação da
velha ordem. Enquanto a Alemanha perdeu a guerra, muitas das ideias e atitudes que caracterizaram a sociedade
alemã acabaram vencendo e são características da consciência moderna.
43
Na citação, o crítico nos fala que o termo ‘moderno’ vem do latim vulgar, mas a
sua raiz encontra-se na Roma antiga, no adverbio modo, que significa ‘agora, de certa
maneira’, a partir da palavra modus, ‘medida, maneira’. Na obra Dos deveres (44 a.C), Cícero
44
(106 a.C-43 a.C) ao criticar um político, diz “modo hoc malum republicam invasit”30 (“este
mal agora invade a República”). Na sentença, ‘modo’ indica o presente atual. Com o passar
dos séculos, durante a Idade Média, a oposição efetuou-se entre o atual e o antigo, ou seja,
este último relacionado à antiguidade greco-latina. O referencial cultural estava ficando mais
distante no tempo.
A aceleração da história não é uma aceleração do tempo, este continua a passar
como antes, o que se alterou foi a sua percepção. Entre a antiguidade greco-latina e a Idade
média, a separação entre o antigo e o moderno não era temporalizada, mas absoluta, total.
Compagnon nos explica que
Se, no século V, modernus não contém ainda a ideia de tempo, no século XII, por
ocasião do que se chama de primeira Renascença, o lapso de tempo que define os
moderni face aos antiqui equivale apenas a algumas gerações. Perguntou-se muito
se, desde o século XII, a noção já incluía a ideia de um progresso que evoluiria dos
antiqui aos moderni, ideia inseparável de nossas concepções da época moderna
(2010, p. 18).
30
Na edição de nossa consulta: “de facto, teria de esperar por muitas gerações: é que esta praga assolou
recentemente a nossa República.” (§75, p. 108). Dos deveres (De officiis), Cícero. Trad. de Carlos Humberto
Gomes. Lisboa, Edições 70, 2000.
31
Horácio [Epistulae, II, I, 76-89] e Ovídio [Ars amatoria, III, 121].
45
32
Constantin Guys (1802-1892) foi um ilustrador de jornais que fez a cobertura da Guerra da Criméia
(atualmente, a região do sul da Ucrânia), enviando ilustrações do exército em ação para o jornal Ilustrated
London News. A sua representação da vida em Paris, durante o Segundo Império, foi o seu grande destaque.
46
tinham uma vinculação radical com o passado. Em seus ensaios, o poeta dá ênfase ao presente
e ao individualismo como novos valores estéticos. O artista só deve ter fidelidade a si mesmo.
A liberdade de pintar a partir de sua própria visão passou ser a regra de ouro.
Baudelaire defende que para um bom pintor que desejasse captar a beleza da
realidade para o conteúdo de sua arte, o seu principal recurso seria a memória. Os temas das
pinturas seriam imagens extraídas da memória do artista. O pintor deveria ser uma espécie de
jornalista, de cronista. O modelo do artista moderno é Constantin Guys, devido a sua
particular forma de descrever o cotidiano de seu tempo.
Como a memória é fugidia, portanto, o artista não devia ter “medo de não agir
com suficiente rapidez, de deixar o fantasma escapar antes que sua síntese tenha sido extraída
e captada” (BAUDELAIRE, 1995, p. 863). O referido artista observa atentamente os
acontecimentos do dia a dia, coletando dados e, em seguida, executa os desenhos com
extrema rapidez, antes de esquecer algum detalhe visto.
Para Baudelaire, Constantin Guys é o artista representante da vida moderna, pois
ele é capaz de captar e expressar a modernidade. Esse conceito é permeado pelo paradoxo
porque:
a modernidade é o transitório, o fugidio, contingente, a metade da arte, cuja outra
metade é o eterno, o imutável. Houve uma modernidade para cada pintor antigo; a
maioria dos belos quadros que nos restam dos tempos anteriores estão vestidos com
os trajes de sua época. Eles são perfeitamente harmônicos, pois a roupa, o penteado
e mesmo o gesto, o olhar e o sorriso (cada época possui seu porte, seu olhar e seu
sorriso), formam um todo de uma completa vitalidade. Não temos o direito de
desprezar ou de prescindir desse elemento, transitório, fugidio, cujas metamorfoses
são frequentes (Ibidem, 1995, p. 859 – 860).
33
O Bois de Boulogne (O bosque de Bolonha) é o maior parque público localizado em Paris, estabelecido e de
muito sucesso durante o reinado de Napoleão III. Foi o espaço preferido pelo cientista Santos Dumont, entre
1898 e 1903, para realizar as suas experiências aerostáticas; no qual voou com seu avião 14bis, em 1906.
48
Esse quadro nos revela alguns pontos da técnica do artista. Ele trabalha os seus
desenhos a partir de um conjunto de croquis. É um esboço bastante especial, pois a figura é
apenas delineada. Ele enviava ao jornal no qual trabalhava em Londres, vários esboços de
uma mesma cena. O retrato não tem desenhos e traços absolutamente definidos, deixando a
ideia de que o quadro nunca está terminado. Esse caráter de esboço é uma tentativa de
representar o movimento, o aspecto transitório da vida. Na cena retratada, vemos pedestres,
expectadores e cavaleiros no palco social da Avenida Champs-Elysées. Percebemos o grande
número de cartolas que se espalham ao redor do quadro, e em primeiro plano, algumas damas
com suas sombrinhas. São homens e mulheres elegantes, membros da aristocracia.
Constantin Guys, segundo Baudelaire, é um homem que conhece os mistérios da
sociedade, seus costumes, seus valores, seus movimentos. Ele se encanta pela multidão e, ao
mesmo tempo, se camufla nela, é o grande observador das metrópoles nascentes. O seu deleite
se encontra no movimento frenético das multidões nas ruas, como fluxo de um rio. É o flâneur
que está na multidão, imerso em si mesmo, anônimo. Um ponto na massa.
Um cronista brasileiro, do início do século XX, que amou a rua de modo
entusiasmado foi João do Rio (1881-1921). No livro, A alma encantadora das ruas (1908),
através de conjunto de crônicas sobre o Rio de Janeiro narra os seus processos de
transformação urbana e social, durante a Belle époque. Uma de suas crônicas mais famosas é
um elogio à rua.
Eu amo a rua [...] Tudo se transforma, tudo varia — o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje
é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando
as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações
50
cada vez maior, o amor da rua. Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da
vida das cidades, a rua tem alma! Em Benares ou em Amsterdão, em Londres ou
Buenos Aires, sob os céus mais diversos, nos mais variados climas, a rua é a
agasalhadora da miséria. [...] A rua é o aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos
miseráveis da arte (Rio, 2008, p. 28).
O cronista nos dá o seu testemunho, como um autentico flâneur. Ele ama a rua,
assim como Constantin Guys, pois é o espaço da vida cotidiana, a vida moderna, que sofre
constantes mudanças. A rua é uma metonímia da vida. O cronista flâneur, estava atento às
mudanças da sociedade por meio dos movimentos da rua, observando e tentando captar sua
realidade fugaz. Como espaço democrático, por ela passam ricos e pobres, miseráveis e
elegantes.
Ou seja, o flâneur reconstrói a cidade por meio de sua escrita, dinamizada pelos
processos de modernização. Segundo João do Rio, “flanar é ser vagabundo e refletir, é ser
basbaque e comentar, ter o vírus da observação ligado ao da vadiagem [...] Flanar é a
distinção de perambular com inteligência” (2008, p. 29). Flanar é a arte de ver o cenário
urbano.
Na passagem do século XIX para o XX, a rua mais famosa do Rio foi a do
Ouvidor. Era o espaço aonde a burguesia ia para se cobrir de requinte e passear defronte às
lojas de nomes afrancesados. O escritor e político português, João Chagas 34, no seu livro De
bond, relata, na sua viagem ao Brasil, o charme que o Ouvidor exercia perante a população da
época:
A rua é estreita. Um corredor, uma sala. Vê-se tudo, ouve-se tudo. Passam homens
de braço dado falando com cordialidade, passam bandos que se conhecem, porque a
cada instante se saúdam, passam indivíduos atarefados, rompendo a custo a multidão
ociosa, passam sobretudo mulheres! Quantas mulheres! Em geral vestem todas com
requintado luxo. Observo isto: que as mulheres vêm ver ou mostrar alguma coisa.
Poucas parecem passar por acaso por esta rua atravancada de curiosos; quase todas
parecem passar de propósito e, com efeito, assim é (CHAGAS, 1897, p.46-47).
O escritor português se impressiona com a rua estreita ser o centro vivo da cidade.
Como um flâneur, seus olhos descortinam o cenário múltiplo da Rua do Ouvidor, inclusive
repleto de mulheres. A rua é um palco de troca de olhares, de exposição. Ao debruçar-se sobre
a essa rua, microcosmo da cidade, seu olhar se fixa perplexamente sobre o espetáculo urbano.
A cidade de Fortaleza, cenário principal de nosso estudo, durante a passagem do
século XIX para o XX, no afã de modernização de seus dirigentes, também passa por variadas
reformas urbanas. As ruas são alargadas, são construídos bulevares e praças são reformadas.
34
João Pinheiro Chagas (1863-1925) foi um jornalista, escritor, diplomata e primeiro presidente do ministério da
I República de Portugal.
51
Um logradouro preferido da cidade, palco da modernidade era o Passeio Público (figura 3),
cujo nome oficial é Praça dos Mártires, instituída em 11 de janeiro de 1879.
35
Em 1864, por iniciativa do então prefeito, Dr. Fausto Augusto de Aguiar, o espaço que era conhecido como
Largo da Fortaleza ou Campo da Pólvora (Confederação do Equador, 1817) é reformado para ser o novo Passeio
Público da cidade, com três níveis. Em 1879, houve uma nova reforma e os dois níveis mais baixos, atualmente,
na Avenida Leste-Oeste, foram removidos, e o nível restante, foi dividido em três setores, destinado à classe rica,
média e pobre. A Avenida Caio Prado, próxima à praia era a destinada aos ricos, a classe média ficou com o lado
da Rua Dr. João Moreira, enquanto os pobres ficaram com o setor central.
52
Figura 4 - Cartão-postal do cruzamento da Rua Guilherme Rocha com Major Facundo, 1911 – Arquivo Nirez.
obra de arte, como expressão do cotidiano como signos dinâmicos, tais como a rua, a
multidão, os vendedores, os carros, as tropas em marcha.
Baudelaire nos legou a lição de refletir, a partir de uma época moderna que
passava pelo auge do capitalismo, repleta de constantes mutações, na qual o homem é
atingido por inúmeros fenômenos transitórios, como a obra de arte encontrou meios técnicos
para expressar e interagir com o seu próprio tempo presente.
Na primeira metade do século XX, o filósofo alemão Walter Benjamin (1892-
1940) efetuou uma leitura singular da obra lírica e ensaística do poeta francês. A partir das
imagens da cidade de Paris poetizada por Baudelaire, Benjamin interpretou os temas da
caducidade e da fragilidade como chaves importantes da experiência do homem moderno
(Benjamin, 1989, p. 81).
As inovações técnicas, não apenas de transporte, mas, sobretudo, de comunicação,
como a fotografia e prensas mais rápidas, distribuindo informação e imagens às massas,
trouxeram uma aceleração da ideia de tempo. O tempo não era mais um elemento
cronológico, mas um dos fundamentos radicais do capitalismo: o tempo como mercadoria,
como prazos a cumprir, como horas trabalhadas e horas extras, como horas de lazer para
poucos privilegiados. A metrópole se tornou um lugar privilegiado para a observação dessa
aceleração do tempo e das experiências que afetaram a vida no cotidiano
A modernidade, vista como misto de eterno e transitório, nos chama mais a
atenção pelo seu aspecto fenomênico, pois, segundo Benjamin, se define pela sua
caducidade36, isto é, o rápido envelhecer das coisas, uma tensão entre o esquecimento e a
lembrança. O artista moderno trava uma luta sem tréguas para reter os instantes fugidios do
tempo que flui sem cessar. Essa é a missão paradoxal do artista da vida moderna; a tentativa
de imobilizar o tempo, ou seja, o transitório, imortalizando-o por meio da arte.
36
Walter Benjamin, no ensaio “Modernidade” (Obras escolhidas III, editora Brasiliense), investiga a relação da
teoria da arte moderna de Baudelaire e sua visão da modernidade. O pensador analisa os poemas que constituem
a parte “Quadros parisienses”, pertencentes à obra As flores do mal. No poema “O cisne”, o poeta canta: “(...)
Foi-se a velha Paris (de uma cidade a história/depressa muda mais que um coração infiel);/Paris muda! Mas nada
em minha nostalgia/Mudou! Novos palácios, andaimes, lajeados,/Velhos subúrbios, tudo em mim é alegoria. E
essas lembranças pesam mais do que rochedos (...) (“O cisne”, v. 7–8 e 30–33. BAUDELAIRE, 1995, p.173).
Percebemos que o poema pode ser lido como uma expressão radical do sentimento da transitoriedade. A cidade
de Paris é recriada em diversas imagens que expressam sua fragilidade hibrida de modernidade e antiguidade. As
imagens da caducidade expressas por Baudelaire podem ser entendidas como as ruínas de Paris.
54
37
Sobre o caráter da obra, numa nota da 1ª edição, Brito Broca nos diz que a obra seria o 3º volume de um
trabalho mais amplo, sobre a Vida literária no Brasil. O período Colonial e o Romantismo constituiriam o
primeiro; o período Naturalista o segundo; a fase Modernista, o quarto. Por questões circunstanciais, ele
escreveu, antecipadamente, o referido volume, que teve uma recepção estrondosa. Ele não prosseguiu com o
projeto e A vida Literária no 1900 permaneceu como obra autônoma.
38
Os livros que formam o conjunto da obra são, La Vie littéraire en France au Moyen Âge (1949), por Gustave
Cohen ; La Vie littéraire sous la Renaissance (1952), por Auguste Bailly; La Vie littéraire au XVIIe siècle
(1947), por Georges Mongrédien; La Vie littéraire en France au XVIIIe siècle (1954) por Jules Bertaut;
L'Epoque romantique (1947), por Jules Bertaut; L'Epoque réaliste et naturaliste (1945), por René Dumesnil ;
L'Epoque 1900 (1895-1905), (1951), por André Billy ; L'Epoque contemporaine (1905-1930), (1956), idem.
55
No trecho, vemos que Brito Broca ressalta que André Billy é o criador do gênero
“vida literária”. O detalhe interessante é que o livro escrito por Billy, L’Époque 1900, é
praticamente o mesmo título da obra de Broca; este acrescenta a particularidade, “no Brasil”.
Literariamente, Billy define 1900, como a última década do século XIX e os primeiros anos
do século XX, antes das divulgações das vanguardas artísticas.
Broca adota a mesma perspectiva em relação ao Brasil: o ‘1900’ será a passagem
entre séculos, durante o período de sincretismo estético (Realismo, Naturalismo,
Parnasianismo, Simbolismo, Impressionismo), com o intuito de sermos mais honestos do que
denominar ‘Pré-modernismo’39, mero clichê didático. O cenário principal é o Rio de Janeiro,
em sua fase de remodelação. Época da boêmia literária, dos cafés, das academias.
A vida literária para Billy seria, então uma história narrada, à feição de uma
crônica. A história da vida literária é uma espécie de biografia da época:
E esse estudo fascinante, longe de constituir uma resistência à ‘volta ao texto’, à
crítica estilística harmoniza-se perfeitamente com ela. Pois devemos evitar os pontos
de vista unilaterais. Cingir-se apenas ao texto é reduzir a complexidade do fenômeno
literário: superestimar os fatores biográficos, recair numa simplificação cômoda. Um
método não exclui o outro, tudo concorrendo para a compreensão de uma obra na
sua totalidade. Vida literária e literatura são coisas que se completam e se ilustram
(BROCA, O Estado de São Paulo, 19-09-1959).
39
O termo “pré-modernismo” foi cunhado por Tristão de Athayde (pseudônimo de Alceu de Amoroso Lima
(1893-1983), no livro Contribuição à história do modernismo (1939), no qual quis descrever “momento de
alvoroço intelectual, marcado pelo fim da grande guerra [1914-1918] e, entre nós, por toda uma ansiedade de
renovação intelectual, que alguns anos mais tarde redundaria no movimento modernista” (Athayde, 1939, p. 07).
Percebemos que o crítico quis enfatizar o movimento modernista, contudo o termo não compreende um
movimento ou período literário que antecedeu as reinvindicações estéticas da Semana de Arte de Moderna de
1922 ou mesmo uma espécie de preparação. Entendemos que o caráter sincrético desse momento histórico, as
duas primeiras décadas do século XX, é compreendido pela convivência de escritores simbolistas, parnasianos,
realistas, românticos, impressionistas e naturalistas, tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo, foi
compreendido, posteriormente, mais como um período de transformações intelectuais e culturais do que uma
fase de transição.
56
complexo, que será mais bem compreendido, examinando-se também as circunstâncias de sua
origem.
Brito Broca adota o método de Billy e o emprega no exame dos acontecimentos
mais interessantes relativos aos escritores no ambiente do Rio de Janeiro que passava, na
primeira década do século XX, por um período de euforia civilizatória.
Um exemplo da onda ‘civilizatória’ ocorre ao relatar sobre o prefeito da Capital,
Pereira Passos (1836-1913), segundo Broca, o ‘Barão de Haussmann do Rio de Janeiro’,
devido ao seu afã de modernizar as ruas estreitas e tortas da velha cidade colonial, contudo,
com uma diferença: Haussmann remodelou Paris, tendo em vista objetivos políticos-
militares, dando aos bulevares um traçado estratégico, a fim de evitar as barricadas
das revoluções liberais de 1830 e 48; enquanto o plano de Pereira Passos se
orientava pelos fins exclusivamente progressistas de emprestar ao Rio uma
fisionomia parisiense, um aspecto de cidade europeia. Foi o período do bota-abaixo
(1960, p. 3).
das agremiações literárias, das quais Rodolfo Teófilo foi contemporâneo ou participante. Para
esta discussão, utilizaremos de Maurice Agulhon40 (2009) o conceito de sociabilidade.
40
Nasceu em 20 de dezembro de 1926, em Uzes (França) e morreu 28 de maio de 2014. Estudou na
École Normale Supérieure de Lettres, entre 1946 a 1950. Foi professor em diversas instituições acadêmicas
francesas, sendo Professor no Collège de France (1986-1997).
41
A obra de nossa consulta: Agulhon. Maurice. El círculo burguês. Buenos Aires, Siglo XXI, 2009. A
referência da edição original francesa: é Le cercle dans la France bourgeoise. 1810- 1848. Étude d'une mutation
de sociabilité. Paris, Armand Colin, 1977.
42
Segundo Agulhon, o historiador e filósofo francês Jules Michelet (1798-1874) aplicou o termo sociabilidade,
em seus escritos, no contexto da psicologia coletiva, então em voga na historiografia francesa do século XIX
(2009, p. 22).
58
Ele destaca a capacidade especial para viver em grupos e consolidar estes através
da formação de associações voluntárias.
O associativismo foi desenvolvido segundo determinados padrões, com territórios
bem delimitados e, por via disso, a sociedade burguesa francesa soube criar o seu próprio
espaço social, impondo os seus valores e sinais distintivos. Numerosos espaços de
sociabilidade, com as mais variadas motivações, surgiram na França, daquele período, sob
designações várias: sociedades, gabinetes, círculos, assembleias, clubes, formando ou não,
algum grau de especialização, para além daqueles marcadamente informais que acolhiam os
diversos grupos sociais.
Maurice Agulhon trabalha, em sua investigação, a sociabilidade a partir do
desenvolvimento do conceito de círculo, que foi construído especificamente para o contexto
da classe burguesa francesa, da segunda metade do século XIX. O nosso intuito não é trazer a
ideia de círculo de Agulhon para a Fortaleza do final do século XIX: o nosso interesse é
discutir a ideia de sociabilidade para pensar as agremiações literárias, que surgiram ao longo
da segunda metade do século XIX. A sociabilidade está associada aos diversos modos pelos
quais os homens se relacionam em conjunto, no âmbito formal ou informal. O interessante é
entender que a sociabilidade nos espaços literários da cidade, pois permite verificar as
relações amistosas entre os escritores, a camaradagem no sentido do auxilio mútuo em se
aperfeiçoar culturalmente, o prazer em estar em grupo.
Em nosso estudo da vida literária em Fortaleza, a contribuição do intelectual
francês acontece a partir da possibilidade de estudarmos a sociabilidade em um âmbito
literário.
Pela citação, o autor nos esclarece que as obras literárias falam do mundo, mas
não constituem reflexos objetivos dele. O contexto é uma situação social e histórica do texto
literário, que não envolve apenas as instituições, mas outros textos produzidos no seu entorno
e os seus relacionamentos. O contexto é uma espécie de moldura problemática do texto.
Maingueneau estabelece uma crítica à visão dicotômica que separa as coisas do mundo e suas
pretensas representações. A literatura não e apenas um discurso sobre o mundo, porém é uma
força transformadora e atuante no mundo. A complexidade do fenômeno literário reside em
seu aspecto relacional e paradoxal. Essa visão acerca do contexto é pragmática devido à
preocupação em relação ao sujeito, às condições de sua enunciação e sua história. A literatura
é vista como uma zona conflituosa no qual o escritor alimenta a sua obra com a problemática
desse próprio conflito (idem, 2001, p. 27).
Tensão, lugar indefinido, zona intermediária, são traços arrolados por
Maingueneau, para estruturar a sua revisão da ideia de contexto e para caracterizá-lo. Ele
constrói o seu conceito a partir da contribuição da teoria dos campos, de Pierre Bourdieu.
O termo campo literário foi cunhado pelo sociólogo Pierre Bourdieu para
descrever ao espaço social que reúne diferentes grupos de literatos, romancistas e poetas, que
mantêm relações determinadas entre si e também com o campo do poder. Ele desenvolve o
60
Ora, esse campo possui uma gravidade específica que estabelece a sua lógica a
todos os agentes que nele entram. Frédéric entrou nesse jogo social. Ele possuía um objetivo
amoroso, para atingir esse fim, mas, teve que entrar no círculo de Jacques Arnoux, a sede da
Arte Industrial que era frequentada por burgueses, artistas ortodoxos, boêmios, homens de
prestígios, parasitas sociais. A reflexão acerca da ideia de campo, construída a partir do estudo
do romance de Flaubert, é levada para estudos de contexto de outras obras literárias.
61
A investigação da vida literária, da qual Rodolfo Teófilo fez parte, exige o estudo
de sua bio/grafia. Este conceito grafado, com uma barra que delimita, mas não separa as duas
raízes, é desenvolvido por Dominique Maingueneau.
A bio/grafia não é um mero levantamento de dados acerca da vida do escritor. A
palavra biografia remete-nos a um gênero textual que tem por objetivo narrar a vida de uma
pessoa. Maingueneau põe uma barra entre as duas raízes de origem grega: bio, de βíος – bíos,
é vida e grafia, de γράφειν – gráphein, escrever. O escritor vive em determinada sociedade e o
seu texto será um ponto de interseção dinâmico, instável, constantemente desafiado. Ao
43
Bourdieu, relacionando ao âmbito literário francês, define campo do poder como “as relações de forças entre
as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de
modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, ente as quais possuem
uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legitima do poder” (O poder simbólico, p.
28-29). Nas palavras do pensador, no campo do poder, existem individualidades pertencentes à classe
dominante, pessoas reais possuidoras de capital econômico, detentoras de poder material que interferem na
sociedade em prol de seus interesses.
44
Para este trabalho, delimitamos a noção de intelectual aos sujeitos produtores de bens simbólicos (Pierre
Bourdieu, Economia das trocas simbólicas, 2009). Veremos, posteriormente, o exemplo da revista A quinzena
que pode ser considerada um bem simbólico produzido por um grupo (Clube Literário), e que propiciava certo
reconhecimento intelectual entre os seus componentes.
63
45
Um exemplo moderno de homem solitário é o do personagem Robinson Crusoé, do livro de Daniel Defoe
(1919). Mesmo perdido numa ilha deserta, não deixou de levar consigo a sociedade em que vivia. Com os
objetos e os instrumentos recuperados do navio, ele tratou de ‘civilizar’ o ambiente selvagem em que naufragou.
A vida na ilha não era apenas para sobreviver, mas para criar as condições para viver adequadamente, por meio
de uma disciplina de trabalho. As práticas, as condutas são fruto de uma convivência social. O que o fez subsistir
não foi apenas o instinto de sobrevivência, mas um habitus que o mantinha ocupado em produzir meios de
sustento e em mimetizar os confortos de uma vida moderna, pautados em uma lógica do trabalho, de valores e de
práticas oriundos de uma Inglaterra mercantil, pré-Revolução industrial. O herói não era apenas um aventureiro,
era um empreendedor. Ao encontrar o nativo Sexta Feira, Crusoé desejou logo ‘civilizá-lo, ensinando-lhe uma
nova língua e uma nova fé. Ou seja, o homem em isolamento absoluto é uma quimera.
64
46
O padre Tomás Pompeu de Sousa Brasil (Senador Pompeu) é o inspirador e orientador do nascimento do
Liceu do Ceara, do qual durante muitos anos se fez o primeiro diretor. “começa daqui – afirme-se sem exagero –
a sistematização do cultural mental cearense” (GIRÂO, 1955, p. 51).
65
47
Bourdieu, Pierre. Les trois états du capital culturel. In : Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 30,
nov. L’institution scolaire. 1979. p. 3-6. Artigo consultado em:
http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1979_num_30_1_2654
67
várias agremiações literárias como a Academia Francesa, o Clube Literário, Padaria Espiritual
e Academia Cearense.
Quando Rodolfo Teófilo matriculou-se no Ateneu, em 1865, recebeu o nº 79 do
internato. No artigo referido, ele nos descreve seu funcionamento;
O internato era dividido em classes, conforme a idade dos meninos. De sete a onze
anos, primeira classe; de doze a quinze anos, segunda classe; de dezesseis a vinte
terceira classe. Fui classificado na segunda classe, embora os meus onze anos; mas eu
era um menino comprido, de muito boa saída, como diz o povo. As classes não
viviam juntas. Comiam, dormiam, recreavam-se e banhavam-se separadas. A polícia
dos dormitórios era vigilante quando podia ser. Os leitos eram distantes um metro uns
dos outros. Em cada salão dormia um sensor, que rondava até tarde da noite (1922. p.
507-508).
Os alunos eram separados por idade, num regime de internato, para garantir a
formação de grupos de convivência. Havia aulas de Catecismo, Gramática, Latim, Inglês,
Francês, História, Geografia, Geometria, Filosofia, Retórica, além de Música, Dança e
Ginástica. As aulas, frequentadas por mais de 20 alunos, eram divididas em seções.
É interessante observar da citação de Teófilo que esse sistema de convivência no
internato, com a formação de grupos de estudo, marcou laços profundos de debate intelectual
e de sociabilidade entre os alunos, que depois de formados, levariam para os seus círculos
sociais. Não era somente pelo fator econômico, pelo fato da maioria dos alunos pertencerem
às elites, mas os alunos se identificavam entre si intelectualmente.
Essa convivência, relacionada aos métodos de ensino dos educandários, através de
grupos de estudos e de círculos sociais, que pode ter gerado o gosto do intelectual cearense
pelas academias e agremiações literárias.
O historiador Dolor Barreira (1893-1967) afirma que a “evolução das letras no
Ceará se fez, quase sempre, preponderantemente, em torno das associações, academias ou
grêmios literários e dos seus órgãos especiais” (1948, p. 59).
O interessante das palavras do historiador é que ele não atesta que a literatura
cearense no seu todo se realizou por meio de Academias, mas boa parte. Perceberemos, mais
adiante, que a participação da vida literária por meio desses círculos intelectuais, culturais e
políticos por meio da sociabilidade é preponderante para o indivíduo se destacar no campo
literário local.
No artigo citado, Rodolfo Teófilo traça um sintético perfil de seus colegas mais
notórios do Ateneu, alguns já mortos. Ele fala de Capistrano de Abreu, Rocha Lima,
Domingos Olímpio, Paula Ney e João Lopes. Esse último, na opinião, era inteligente,
conversador e com muito talento para as relações pessoais. Foi membro importante da
68
Academia Francesa, e uma década depois, após a campanha da Abolição, um dos fundadores
do Clube Literário.
Segundo Sânzio de Azevedo (1976, p.92), João Lopes levou para o Clube
Literário o hábito da ‘leitura crítica’, instrumento de sociabilidade literária e intelectual
bastante importante para o comércio de ideias e o acúmulo do capital cultural. Esse aspecto
será estudado em páginas posteriores
Rodolfo Teófilo foi contemporâneo de alguns alunos que, anos depois,
organizaram a Academia Francesa. Embora da mesma geração, não participou do grêmio,
porque na época estava estudando na Faculdade de Farmácia, na Bahia.
No Ateneu, reocupado com suas próprias disciplinas, além de ser monitor dos
alunos mais novos, Teófilo não conseguiu acompanhar o ritmo e foi reprovado. Com a
responsabilidade de ser o mais velho de seis irmãos, ao ver a família passar sérias
necessidades, trabalhou no comércio de Fortaleza inicialmente, como caixeiro-vassoura na
casa comercial Albano & Irmão, período importante de sua juventude.
Ele narra esse período de sua vida na obra O caixeiro (1927):
A esse tempo eu era encarregado das compras do algodão na praia. O Ceará inteiro
estava coberto por um imenso algodoal por causa do elevado preço devido à guerra
da Secessão. [...] Os fardos de algodão eram pesados ao tempo à beira-mar. A
balança suspensa a uma tripeça de madeira, o caixeiro ao lado com um caneco de
tinta e um pincel examinava o peso da saca de lã que fazia o trabalhador e o escrevia
na testa do fardo. A claridade era tão intensa que para não me encadear usava óculos
pretos [...] Os armazéns estava cheios e a praia coalhada de fardos. A produção
havia sido de 6.507.540 quilogramas. Assim mesmo sem porto, pior do que hoje,
todo esse algodão embarcou para a Europa, pois as fábricas brasileiras de tecido
ainda não existiam (sic) (TEÓFILO, 2003, p. 36-38).
Europa. Muitas das ideias que faziam a cabeça dos intelectuais cearenses chegaram via
navios. Contudo, vemos que o consumo desses bens simbólicos apenas agregava capital
cultural para poucos indivíduos privilegiados como, no exemplo, Tomás Pompeu.
Os livros importados traziam as novas tendências da filosofia e da literatura do
velho mundo. São obras das décadas de 60 e 70, em sua maioria acerca do materialismo e
cientificismo.
Deve-se à influência francesa a penetração das ideias “modernas” do século XIX no
Brasil. Foi larga e profunda a influência francesa. Os ideais do século, os princípios
libertinos e sediciosos, a “mania francesa”, sacudidos pela Revolução, pelo
Iluminismo, pelo movimento crítico da Enciclopédia, traduzidos em doutrinas de
libertação filosófica, de racionalismo, de materialismo, de emancipação política e
social, no sentido nacionalista, abolicionista e republicano, desde cedo no século
varriam o país de norte a sul (COUTINHO, 1988, p. 191).
48
Para uma compreensão do homem burguês, no século XIX, destaca-se a coleção Experiência burguesa: da
Rainha vitória a Freud, composta por cinco volumes, por Peter Gay (1923-2015). Os volumes A educação dos
sentidos (1988), A paixão terna (1990), O cultivo do ódio (1995), O coração desvelado (1999) e Guerras do
prazer (2001), não investigam apenas como a burguesia tornou-se uma classe que dirigiu o destino político e
econômico da Europa, mas também investiga as suas paixões, ou seja, as ambiguidades que constituíram a
condição do homem burguês, estudo que estabelece um rico diálogo com a psicanálise de Freud.
71
A exploração era tão acentuada, que no mesmo ano, Rodolfo e mais 50 colegas se
reuniram para discutir os seus direitos. Eles organizaram uma associação que, depois se
chamaria Beneficente Caixeiral. No entanto, os patrões não gostaram da ideia e tentaram
proibir qualquer tipo de associação.
Diante das dificuldades, com o gênio altivo e pensando no seu futuro e no de sua
família, ele declara: “Compreendi que só o livro me podia libertar. Devia estudar; mas como?
Os dias eram do patrão, só dispunha eu das noites” (idem, 2003. p. 25).
Ele possuía uma grande força de vontade para suportar essas provas. Como filho
mais velho, sentia-se responsável pela sua família. Desde cedo, adquiriu plena consciência de
que somente através dos estudos, poderia sair daquele círculo de provações.
Nesta época, existia um colégio na Praça dos Voluntários, onde funcionava o
antigo Liceu. Os diretores do colégio eram os professores Arcelino de Queirós e Praxedes.
Rodolfo procurou-os e contou-lhes a sua triste condição e o desejo de voltar aos estudos. Os
professores decidiram ajudá-lo, dando-lhe aulas à noite.
Rodolfo descreve o seu cotidiano, enquanto trabalhava e estudava:
A vida agora era mais cansada. Passava o dia na praia exposto ao sol, no serviço de
algodão. Ao escurecer, sentado à carteira a copiar o borrador! Voltava ás 9 horas da
noite das aulas e recolhia-me ao quarto, uma espelunca quente e com mais muriçocas
do que as florestas do Amazonas. Ia preparar as lições alumiado por uma miserável
vela de carnaúba, de vintém, pois não podia comprar estearina. Estudava três horas, o
tempo que durava a luz. Extinta, deitava-me e adormecia pesadamente (sic) (2003, p.
26).
O depoimento de Rodolfo Teófilo revela quão grande foi o seu esforço para sair
de sua condição de pobre. Depois de trabalhar o dia inteiro, ia ter aulas com os professores
particulares. Tarde da noite, ao voltar, no seu quartinho nos fundos da loja, ambiente
insalubre, ainda estudava até a vela se apagar. Não foi somente o jovem caixeiro que percebeu
que os estudos eram um instrumento de ascensão social e intelectual. Outros jovens
trabalhadores do comércio também tinham esse afã de cursar uma faculdade e adquirir um
diploma de ‘doutor’.
Ora, a dicotomia entre a população pobre e a aristocracia, tão brutal nos séculos
anteriores da província, aos poucos, devido ao florescimento do comércio, começa a ser
irrompida por uma nova classe social, envolvida no desenvolvimento cultural da sociedade
cearense, no entendimento de José Ramos Tinhorão (1928), no estudo A província e o
Naturalismo:
O aparecimento dos numerosos movimentos intelectuais no Ceará, surgidos à
sombra de academias, gabinetes de leitura e sociedades literárias – desde a
Academia francesa, de 1872, até a Padaria Espiritual, de 1892 – prende-se,
72
geral. Nas páginas adiante, sobre o Clube literário e sobre a Padaria Espiritual, discutiremos
com mais afinco o divórcio entre os intelectuais oriundos da classe média e a burguesia.
O desenvolvimento material e cultural da capital da província acarreta a
ampliação da vida literária, entre o final do século XIX e o início do XX, e como já foi
mencionado, a difusão de inúmeras associações literárias.
A febre das associações era tão grande que Leonardo Mota (1994), em seu livro
sobre a Padaria Espiritual (1938), arrolou, em ordem cronológica, 37 sociedades intelectuais
que surgiram entre os anos de 1870 e 1900 no Ceará: Fênix Estudantil (1870), Academia
Francesa (1873), Gabinete Cearense de Leitura (1875), Gabinete de Leitura - Baturité (1875),
Instituto Histórico e Geográfico Cearense (1877), Gabinete de Leitura/Aracati (1879),
Associação Literária Uniense/União (1879), Gabinete de Leitura/Granja (1880), Recreio
Instrutivo (1881), Gabinete de Leitura/Pereiro (1883), Clube Literário Cearense (1884),
Gabinete de Leitura/Campo Grande (1884), Sociedade Rocha Lima (1884), Grêmio Literário
(1885), Gabinete de Leitura/Ipu (1886), Clube Literário (1887), Instituto do Ceará (1887),
União Cearense/Baturité (1887), Sociedade Ensaios Literários (1887), Clube Literário e
Recreativo Ipuense (1887), Gabinete de Leitura/Barbalha (1889), Sociedade União e
Concórdia (1890), Clube Literário e Democrático/Porangaba (1890), Biblioteca 16 de
Novembro/Baturité (1890), Sociedade Silva Jardim (1892), Sociedade José de Alencar
(1892), Sociedade Literária 11 de Janeiro/Cariri (1892), Padaria Espiritual (1892), Centro
Literário (1894), Academia Cearense (1894), Congresso de Ciências Práticas (1894),
Apostolado Literário/Baturité (1894), Congresso Estudantil (1895), Clube Literário e Musical
Alberto Nepomuceno/Quixadá (1895), Clube Adamantino (1898), Iracema Literária (1899),
Boemia Literária (1899), Romeiros do Porvir/Crato (1900).
Rodolfo, com muita dificuldade, e muito estudo, consegue juntar economias,
oriundas de uma pequena fábrica de tintas que ele mesmo desenvolveu. O jovem estudante é
liberado pelo patrão e parte ao Recife, onde realizava as provas preparatórias para os cursos
da Faculdade de Medicina da Bahia. Ele tinha o sonho de seguir a carreira do pai, porém
decide cursar Farmácia, pois o curso de Medicina era longo e caro.
Era final do ano de 1872, passa com facilidade nas provas e, no ano seguinte,
ingressa no curso de Farmácia, agregado à Faculdade de Medicina da Bahia.
Portanto, percebemos como era importante a obtenção de cultura letrada para ser
uma voz ativa e respeitada no interior do campo literário e intelectual. Desde cedo, Rodolfo
Teófilo adquiriu a consciência de que só o livro o salvaria da inutilidade e do “anonimato”
social e literário, pois ele já escrevia pequenas composições poéticas.
74
49
Sobre esse círculo, Dolor Barreira nos explica que “preocupado, também, com as coisas do espírito, introduziu
Sampaio, em Fortaleza, segundo nos noticia o Barão de Studart – e é de inegável tradição -, o uso dos chamados
Oiteiros, por virtude dos quais os intelectuais do tempo, agrupados, no palácio do governo, em torno do
governador, faziam literatura, de preferência poética. Vinha-lhes o nome dos oiteiros ‘que se celebravam, em
Portugal, nas cidades e subúrbios, especialmente nos conventos de freiras, por ocasião da festa dos oragos, da
eleição das preladas, ou dos seus aniversários natalícios’, e em que os poetas glosavam os motes propostos pelas
esposas do Senhor” (BARREIRA, 1943, p. 149).
75
em tecer elogios ao governador Sampaio e celebrar os feitos de sua administração. Esse mote
elogioso é encontrado nos sonetos “Para o chafariz da vila da Fortaleza” e “Ao aumento da
vila da Fortaleza” de Pacheco Espinosa50.
Esteticamente, as peças literárias possuíam pouco valor literário. Eram textos
escritos e lidos nos saraus do Palácio do governador, espécie de mecenas para os poetas ali
reunidos. Eram apenas manifestações literárias51. Portanto, um tipo de produção que tinha
mais interesse em estar alinhado ao campo do poder do que se engajar na produção de uma
literatura ousada ou criativa. O seu maior mérito dos Oiteiros é histórico, pois essas reuniões
palacianas, mesmo com feição aristocrática, desenvolveram um tipo de sociabilidade
literária, ensaiando os primeiros passos de uma literatura no Ceará.
Após os Oiteiros, assim podemos resumir a atividade intelectual e jornalística no
estado: surgiu o primeiro jornal cearense, o Diário do Governo, cujo primeiro número é de 1
de abril de 1824. Em 1840, os partidos políticos se organizaram em Conservador e Liberal e
publicaram, respectivamente, o Pedro II e O Liberal. Thomaz Pompeu de Sousa Brasil (1810-
1877) faria circular o jornal O Cearense52, publicação de ordem política, mas que divulgava
algumas produções literárias. Em 1845, surge o Liceu. Em 1849, instala-se a primeira loja em
Fortaleza, do português Manuel Antônio da Rocha (?-1871) que vendia e alugava livros.
Depois, na Praça do Ferreira, é inaugurada outra livraria, a de Joaquim José de Oliveira (?-
1900). É de 1856, a publicação dos Prelúdios Poéticos, livros com poemas românticos de
50
Os sonetos de Pacheco Espinosa são um exemplo claro da poesia de louvor ao Governador Sampaio, tais
como o “Soneto Para o Chafariz da Vila Fortaleza”, onde se lê: “Esta que vês, curioso passageiro,/Límpida
Fonte, clara, sussurrante,/De cristalinas águas abundante,/ Edificada foi incontinenti,/No memorável, ótimo
Governo,/De Sampaio, Varão reto, ciente” (apud Azevedo, 1976, p. 20-21). Outro soneto conhecido é “Soneto
Ao Aumento da Vila de Fortaleza”, no qual o poeta se expressa: “Dize que já se vê fausto e grandeza,/Na sua
Capital do Chefe assento:/Que polícia já tem, tem luzimento,/E tem o que não tinha,/Fortaleza./Dize que do
Governo a alta mente/Estas obras brotou assaz louvadas” (apud AZEVEDO, 1976, p. 21).
51
O termo “manifestações literárias” se encontra no livro História da Literatura Brasileira (1916), de José
Veríssimo, no capítulo referente à produção literária na época colonial, séculos XVI e XVII. A discussão em
torno da ideia das manifestações literárias no Brasil foi repercutida, na Formação da Literatura brasileira,
1959, de Antônio Cândido e por José Aderaldo Castello, na obra Manifestações literárias da era colonial, 1962.
Cândido entende a literatura como um sistema, ou seja, um fenômeno complexo e orgânico, organizado em torno
do triângulo “autor-obra-público”, em interação dinâmica, e de certa continuidade da tradição. O pesquisador,
em livro posterior (Iniciação à Literatura Brasileira, 1997), faz uma interessante esquematização, pautada em
sua concepção formativa, distinguindo na literatura brasileira três etapas: “(1) a era das manifestações literárias,
que vai do século XVI ao meio do século XVIII; (2) a era de configuração do sistema literário, do meio do
século XVIII à segunda metade do século XIX; (3) a era do sistema literário consolidado, da segunda metade do
século XIX aos nossos dias” (1997, p.14).
52
A 1º publicação do jornal ocorreu em Fortaleza, no dia 04/10/1846. De ideologia liberal, teve como
fundadores Tristão Araripe, Thomaz Pompeu e Frederico Pamplona.
76
Juvenal Galeno (1838-1931), marco inicial da Literatura cearense, segundo Antônio Sales53
(1939). Em 1867, a Biblioteca Pública é inaugurada.
Até o início da década de 1870, o Ceará não possuía uma associação literária de
relevo. Havia muitas reuniões de grupos políticos, mas nenhuma em que a literatura fosse o
principal foco de interesse. Leonardo Mota nos diz que:
Não hesito em apontar em Rocha Lima o verdadeiro precursor dos ideadores da
socialização de nossos letrados. O, mais tarde, autor de “Crítica e literatura” tinha
jeito para controlar inteligências. Em 1870, com João Lopes e Fausto Domingues,
ele fundara a “Fênix Estudantil”, que era um sodalício de rapazelhos, de vez que
Rocha Lima tinha, então, 15 anos, João Lopes 16 e Fausto Domingues 19. Note-se:
quem, um triênio depois, daria na famosa “Academia Francesa”, provas de ferrenho
agnosticismo, começará pondo a “Fênix Estudantil” sob o patrocínio de São Luiz de
Gonzaga [sic] (1994, p. 26).
53
Essa opinião é expressa no ensaio historiográfico “História da Literatura Cearense”, publicado no livro O
Ceará (1939), editado por Raimundo Girão e Antônio Martins Filho.
77
54
“Alguns moços inteligentes, inspirados dos mais nobres sentimentos, resolveram abrir uma aula noturna, que
denominam Escola Popular. Sua inauguração terá lugar amanhã, na Casa n. 98 na Rua Conde d’Eu, e funcionava
das seis e meia às dez da noite” (O cearense, 30/05/1874, apud BARREIRA, 1948, p. 90).
55
O notável jornalista não foi membro da Academia francesa, sendo colaborador apenas do jornal A
fraternidade.
79
Percebemos pela descrição de Rocha Lima, que o tom da aula era bastante sério e
a sua disposição e condução, remetem mais a um culto religioso, ou seja, ao culto da razão.
Ora, Tomás Pompeu era referido como ‘apostolo da verdade’ e no texto temos vários
sintagmas que professam a visão de mundo do intelectual, a defesa das ideias iluministas, já
ressignificadas pelo positivismo. Os intelectuais têm posse do conhecimento, ou seja, da luz, e
estão nessa terra bárbara, repleta de trevas. Rocha Lima também utiliza termos referentes à
disputa, ‘batalhador’, ‘guerreada’, demonstrando a dificuldade da empreitada. O inimigo era a
ignorância e tudo que atrapalhasse o desenvolvimento. Os membros da Academia Francesa
acreditavam que possuíam uma nobre missão: levar o aperfeiçoamento cultural para o restante
da população.
Sobre a Escola Popular, Capistrano de Abreu nos fala de sua importância:
Os que tiveram ocasião de visita-la recordam-se da animação, da cordialidade, do
estimulo [...] Grande foi a influencia da Escola Popular não só sobre as classes a
que se destinava, como sobre a sociedade cearense em geral, por intermédio de
conferências ali feitas, em que o ideal moderno era apregoado por pessoas altamente
convencidas de sua excelência (1931, p. 118).
Pela fala de Capistrano, percebemos que os membros da Academia Francesa
agiam como apóstolos do conhecimento. Era um trabalho voluntário, no qual o ideal moderno
era o fogo que nutria o espírito dos jovens professores. A Escola popular era o espaço público
da socialização das obras estudadas pelos seus membros. Antes, entre si, os jovens realizavam
a sociabilidade literária, exemplificada na célebre passagem de Capistrano:
Era em casa de Rocha Lima que se reuniam os membros do que chamávamos
"Academia Francesa" Quanta ilusão! quanta força! quanta mocidade! França Leite
advogava os direitos do comtismo puro e sustentava que o Système de Ia Politique
80
56
Esse mesmo artigo sobre a Academia Francesa foi publicado na segunda edição do livro Crítica e literatura,
1968, de Rocha Lima.
81
40
Instalou-se, a 2 de dezembro de 1875, no sobrado nº 92 da então Rua Formosa (hoje Barão do Rio Branco).
82
letramento. Eis o lema do Clube Literário: “O Livro e a palavra em ação”. O livro era mais
que um mero veículo editorial de circulação de ideias, ele seria “como arma”, um recurso para
aquisição do capital cultural da população da cidade. Tanto para Oliveira Paiva, quanto para
os outros membros da referida agremiação, o desenvolvimento intelectual do povo cearense
significava atingir um estágio civilizatório comparável ao modelo europeu. Criticamente,
sabemos que o capital cultural não era acessível a toda camada da população. A educação
formal do povo não foi um interesse imediato para os altos membros do campo do poder.
A maioria dos membros do Clube estrearam literariamente, por meio de poemas e
textos ficcionais curtos nas páginas da A Quinzena. As obras literárias se constituíram na
implicação de certos ritos normatizados (leituras, comentários, saraus, conferências, aulas) no
interior dessa instituição específica, materializadas por meio da revista, circulando assim na
sociedade. Os intelectuais e escritores só podem dizer algo do mundo, tratando da
problemática de seus funcionamentos. Os escritores se colocam em jogo. Dominique
Maingueneau nos esclarece que “a vida literária está estruturada por essas ‘tribos’ que se
distribuem pelo campo literário com base em reivindicações estéticas distintas: círculo,
grupo, escola, cenáculo, bando, academia...” (2001, p. 30).
No caso de Rodolfo Teófilo, que escrevera poemas desde sua juventude, publica
na Quinzena também alguns poemas. Contudo, a sua incursão no grêmio não foi
literariamente, mas pelo seu prestigio científico e intelectual, por meio da publicação de
contos e artigos científicos. Como homem formado, ele podia circular entre seus pares.
A ‘leitura crítica’, como forma de sociabilidade literária ocorria em sessões
noturnas (espaço de tempo marginalizado, devido ao dia dedicado ao trabalho) do Clube, onde
se liam e apreciavam os livros recentes. Todas as noites aconteciam palestras sobre arte,
literatura, filosofia e ciência.
O Clube Literário surgiu como uma associação formal, firmada por meio da
elaboração de estatutos, elegendo um presidente, um tesoureiro e cada membro possuindo sua
função.
Art. I – O clube Literário tem por fim promover a ativar o progresso intelectual de
seus associados. Art. II – compõe-se de sócios efetivos e correspondentes. [...] Art.
V – Só podem ser sócios do clube os homens dados às letras. [...] Art. VII – Haverá
sessão da diretoria as semanas e da assembleia geral uma vez por mês. Art. VIII –
Para realização de seu programa o clube Literário manterá um órgão na imprensa,
promoverá conferências publicas, procurará relacionar-se com os vultos da
literatura, das artes, e da ciência, corresponder-se-á com as corporações congêneres
do império e do estrangeiro, e intervirá perante os poderes públicos quando assim
for necessário (A quinzena, Nº 17, 17 de setembro de 1887, p.136).
88
Páginas atrás, vimos que Rodolfo Teófilo ganhou notoriedade com a publicação
de História da Seca do Ceará (1883) e participou do grupo de intelectuais que apoiou a
libertação dos cativos no Ceará. A sua participação na vida literária se estreita ao participar
do Clube literário, publicando poemas e contos científicos.
Segundo José Ramos Tinhorão “a grande seca de 1877 a 1879 – que
impressionaria toda uma geração de moços da classe média urbana cearense, explicando mais
tarde o aparecimento da literatura das secas – desorganizara completamente a vida da
Província” (1966. p. 48). As calamidades provocadas pela grande seca marcaram a alma do
farmacêutico. Os sertanejos ficaram reduzidos a um estado extremo de miséria e de fome,
além da epidemia de varíola que matava aos milhares.
Inicialmente, ele narrou o terrível evento por meio da História e da Ciência em seu
primeiro livro, pois os anos da seca seriam amaldiçoados “por uma geração inteira deixando
ao povo cearense dolorosas recordações” (1883, p. 71).
91
Com periodicidade mensal, o próprio editor, escreveu artigos sobre livros que
estrearam no ano anterior, de Antônio Sales e de Rodolfo Teófilo (Versos diversos (1890) e A
fome, 1890) questiona os méritos artísticos dos respectivos autores, causando polêmicas.
Até aquele momento, A Revista Moderna foi o acontecimento que gerou um novo
ânimo na vida literária da cidade, até a formação da Padaria Espiritual.
Dos vários jornais que circulavam em Fortaleza, o humorístico O bond, em 1890,
segundo Sânzio de Azevedo já falava do ‘Grêmio do Café Java” (2012, p. 19). De modo
sarcástico, era uma referência aos rapazes que se reuniam no dito café. Mané Coco, o
proprietário do quiosque, um dos quatro que existiam na Praça do Ferreira, era um entusiasta
das veleidades literárias dos jovens boêmios que frequentavam o seu café.
Segundo Antônio Sales
Mané Coco, que antes do Java já possuíra um Estaminet, tinha o gênio do cabaretier:
em Paris ele estaria à frente de um dos famosos cafés excêntricos de Montmartre.
Essa sua aptidão se manifestava pela sua simpatia aos intelectuais: João Lopes,
Justiniano de Serpa, Oliveira Paiva, Antônio Martins e todos os jornalistas e
escritores do seu tempo o estimaram e recebiam dele todas as provas de
consideração. E foi no Java que, com a colaboração material de Mané Coco, nasceu
a Padaria Espiritual. Éramos um pequeno grupo de rapazes – Lopes filho, Ulisses
Bezerra, Sabino Batista, Álvaro Martins, Temístocles Machado, Tibúrcio de Freitas
e eu, que ali nos juntávamos a uma mesa para conversarmos de letras (2010, p. 16-
17).
93
Segundo o poeta o Café de Mané Coco era frequentado por intelectuais, artistas e
escritores. Ao contrário do Passeio público, que era um espaço destinado, principalmente, a
Avenida Caio Prado, à sociedade elegante e séria da cidade, alguns cafés da Praça do Ferreira
eram ambientes da boêmia. A Praça do Ferreira era o centro econômico e cultural da cidade,
espaço da efervescência de vida literária. Como nos diz Sales, os cafés se inspiravam nos
cafés franceses, tentavam transmitir a atmosfera da modernidade. Os cafés eram o espaço do
flâneur, onde os boêmios observavam a vida social e eram observados pelos passantes.
Essa reunião de jovens artistas e escritores que comungavam o mesmo ideal
estético é outro exemplo de ‘tribo’ literária. O Café Java, (Figura 5) portanto, era uma zona
de fronteira do espaço social. Como a sociedade burguesa os ‘excluía’, eles viviam como
errantes, às margens da cidade. O escritor boêmio procede como um contrabandista de bens
simbólicos, tentando driblar o jogo do poder que o oprime e o ignora.
Figura 5 - O Café Java, de Manuel Pereira dos Santos (Mané Coco), na Praça do Ferreira,
onde nasceu a ideia da Padaria Espiritual (Arquivo Nirez).
Sul entre os nossos escritores da mais justa nomeada. (...) (O Pão nº 21, 1 de agosto
de 1895. p.6).
Nesse trecho do artigo do Pão, que trata das motivações da criação do grêmio,
percebemos que havia uma conscientização literária em não ser apenas um grupo de jovens a
viver de pilherias. Os futuros padeiros queriam fazer uma diferença. Assim como outras
associações anteriores, eles tinham também um desejo progressista, de desenvolver as letras
do Norte (e Nordeste). Eles tinham a ambição de fazer da Padaria o núcleo da Literatura no
Ceará.
Os membros da Padaria Espiritual, assim como os do Centro literário fazem parte
dos “Novos do Ceará”. O que os diferenciam do grupo que formou a “Mocidade cearense”,
geração anterior que desenvolveu a Academia Francesa e o Clube literário, a maioria dos
padeiros eram oriundos de cidades do interior do estado que vieram a Fortaleza em busca de
um pretenso ‘mercado’ intelectual maior, de vida literária mais ativa e atraente. A Mocidade
cearense foi uma geração ‘moderna’, que, movida pelas leituras das ideias modernas, tinha
uma atitude apaixonada e apoteótica de reforma da sociedade. Eles eram apaixonados pelo
progresso e pela civilização. A Padaria Espiritual formou-se após a República e quem
aguardava, ingenuamente, o aperfeiçoamento da sociedade teve um abissal desapontamento.
José Murilo de Carvalho (1939), a partir da crônica de Aristides Lobo, afirmou
que o povo assistiu bestializado à proclamação da República. A expressão do cronista não
pode ser apenas vista como um discurso da elite. A implantação da República no país teve
nula participação das camadas populares.
O historiador nos explica que:
Vimos também que o período foi marcado, especialmente no Rio de Janeiro, pelo
rápido avanço de valores burgueses. Velhos monarquistas, como Taunay,
expressaram seu escândalo frente à febre de enriquecimento, ao domínio absoluto de
valores materiais, à ânsia de acumular riquezas a qualquer preço, que tinham
dominado a capital da República. Mesmo republicanos ardorosos, como Raul
Pompeia, não deixaram de estranhar o novo espirito que dominava as pessoas.
Segundo Pompeia, longe iam os dias do romantismo abolicionista e do dantonismo
da propaganda. “o que há agora é pão, pão, queijo, queijo. Dinheiro é dinheiro.”
Todos se ocupam de negócios e até a política é dominada pelas finanças: A
República discute-se consubstanciada no Banco da Republica (1987, p.42).
Os amigos de Antônio Sales o interpelaram para criar uma associação, visto que
eles se reuniam sempre no Café Java para discutir literatura. Sales aceitou contudo, não queria
associar-se a um grêmio grave e oficial. Sales, que já havia publicado um livro de versos, só
participaria se fosse ‘uma cousa nova’, se distanciando da seriedade e da sacralização das
Academias literárias, e onde que não figurassem a retórica artificial e a eloquência elogiosa.
Os padeiros não tinham interesse em se enquadrar no campo do poder naquele momento. Os
padeiros queriam construir uma associação boêmia e irreverente. Eis o motivo de todo o
simbolismo relativo ao oficio de padaria: era um modo de realizar uma pilheria com as
associações literárias oficializantes, ironizando inclusive a burguesia, por meio de signos de
uma atividade comercial popular, humilde.
Após entrarem em acordo, Sales elaborou o Programa de instalação da Padaria.
No trecho, ele declarou que a burguesia ficou perplexa com o conteúdo do programa. Esse é
o primeiro exemplo da relação de ‘ódio’ que os Padeiros expõem sobre essa classe social.
Do referido Programa de instalação, destacamos os dois primeiros itens que nos
falam do intuito e da organização da Padaria:
I - Fica organizada, nesta cidade de Fortaleza, capital da "Terra da Luz", antigo Siará
Grande, uma sociedade de rapazes de Letras e Artes, denominada Padaria Espiritual,
cujo fim é fornecer pão do espírito aos sócios em particular, e aos povos, em geral.
II - A Padaria Espiritual se comporá de um Padeiro-Mor (presidente), de dois
Forneiros (secretários), de um Gaveta (tesoureiro), de um Guarda-livros na acepção
intrínseca da palavra (bibliotecário), de um Investigador das Coisas e das Gentes,
que se chamará Olho da Providência, e demais Amassadores (sócios). Todos os
sócios terão a denominação geral de Padeiros (AZEVEDO, 1996, p. 59).
96
Pelo primeiro item, vemos que a Padaria era uma associação literária e artística;
não há dúvida disso, contudo, o seu caráter humorístico o distinguia dos outros grêmios. Era
um grupo que tinha um espírito progressista, mas o seu progressismo era mais cultural do que
político. Eles tinham o objetivo de ‘fornecer o pão de espirito’ aos sócios e à sociedade. O pão
como metáfora do alimento espiritual, ou seja, cultural. Espírito como sinônimo da
inteligência. A nota humorística está na própria brincadeira com progressismo positivista de
outras sociedades, pois levar o ‘pão de espírito’ aos povos em geral seria um fato um tanto
quanto improvável.
Sobre o segundo item, temos a descrição do funcionamento e dos ‘cargos’, todos
ligados ao campo semântico do oficio de padeiro. Sobre o “Investigador das Coisas e das
Gentes” conhecido como “Olho da Providência” é outra paródia, nesse caso de um símbolo da
maçonaria. Segundo Sânzio de Azevedo (1996), até hoje não há nenhum documento que
ateste sobre o envolvimento dos padeiros na maçonaria. Contudo, no contexto da Padaria, é
muito difícil considerar que eles não conhecessem o discurso e os símbolos dessa sociedade
ou membros dela.
A célebre e pitoresca primeira fornada foi narrada por Adolfo Caminha, Antônio
Sales e Rodolfo Teófilo. No livro Cenas e tipos, numa página de reminiscência, é transcrita a
ata da primeira fornada. Como já narramos uma parte por meio de Antônio Sales, citaremos
outros pontos da fornada por Rodolfo Teófilo:
O edifício da Padaria achava-se embandeirado e adornado de festões de flores
naturais e retratos de celebridades artísticas. [...] Acabou-se a fornada às 8:30 da
noite. Depois de retirarem-se os cidadãos ignaros, serviu-se cerveja aos Padeiros que
fizeram espirito até 10 da noite. Todos saíram então à rua acompanhados de
violinos, flauta e violão, e dirigiram-se em serenata ao Café Tristão, onde tomaram
café. Percorreram diversas ruas e chegaram afinal à Avenida Ferreira, onde cada
qual tomou seu rumo (TEÓFILO, 2009, p. 31-32).
Percebemos, que o tom dessa fornada foi festivo e repleto de bom humor. Foi
feito assim de propósito para escandalizar a sociedade “cidadãos ignaros”. A fornada acabou
tarde e os padeiros ainda continuaram a festa na rua, num tipo de sociabilidade literária de
feição explicitamente boêmia, uma vez que a Padaria foi criada para agitar a vida cultural e
social de Fortaleza. E o seu periódico, o Pão, conforme Antônio Sales, “era menos o veículo
literário da Padaria do que uma válvula para a pilhéria petulante que se fazia lá dentro”
(“Retrospecto” apud, AZEVEDO, 2011, p. 87).
Na reunião da Padaria, conforme o artigo III, do Programa de Instalação “ fica
limitado em 20 o número de sócios, inclusive a diretoria, podendo-se, porém admitir sócios
honorários que se denominarão padeiros livres (AZEVEDO, 1996, p. 59)”. Eis os membros
97
Figura 6 - Famosa foto da segunda fase da Padaria Espiritual, onde Rodolfo Teófilo está destacado no centro.
Teófilo, cujo nome de guerra foi Marcos Serrano, ‘Marcos’, em homenagem ao pai, e
‘Serrano’, em homenagem à região em que vivia, Pajuçara.
O pesquisador Sânzio de Azevedo, apoiando-se nos registros de Antônio Sales,
tanto no “Retrospecto”, quanto na página de Retratos e lembranças (2010), explica que o
movimento teve duas fases.
Podemos dividir, como fez o próprio Antônio Sales, a existência da Padaria
Espiritual em duas fases: a primeira, cheia de espírito, primando, acima de tudo, pela
pilhéria. Era a época em que, da sacada do segundo prédio que serviu de sede ao
grêmio, um dos padeiros, de barbas postiças, fazia conferência para o povo da rua,
tempos em que o Mane Coco embandeirava o Café Java, distribuía aluá aos
fregueses e soltava um imenso balão com o letreiro “Padaria Espiritual”, a fim de
levar ao Padre Eterno a notícia dos feitos do grêmio; faziam-se piqueniques onde os
padeiros, ao som de violinos, conduziam um pão de três metros de comprimento; a
segunda, a partir de 1894, seria aquela em que, deixando de existir, o Forno, as
reuniões se faziam uma vez por semana em casa dos Padeiros... que tinham casa,
como pitorescamente informa Antônio Sales. Esta fase, menos boêmia, mas nem por
isso alheia às brincadeiras e às anedotas, caracterizou-se por maior seriedade nos
Trabalhos e sobretudo pela publicação de quase todos os livros da sociedade (1996,
p. 76-77).
Vemos nesse trecho, as tensões do campo do poder, pois os homens materiais não
vêm com bons olhos os produtores de bens artísticos. No trecho acima, Antônio Sales trata o
burguês58 como um verdadeiro vilão. Burguês, que os padeiros não tanto pela classe social;
mas, para os homens que não têm afinidades com as letras e com as coisas artísticas e as
58
Segundo, Franco Moretti, “a palavra bourgeoisie; e surgiu na França do século XI, sob a forma burgeis, para
designar os habitantes de cidade medievais (bourgs) que desfrutavam do direito legal de serem ‘livres e isentos
da jurisdição feudal’ (Robert). Em fins do século XVII, a acepção jurídica do termo – ‘liberdade em relação a’ –
foi acompanhada de um sentido econômico que se referia, com a peculiar série de negativas, a ‘alguém que não
pertencesse nem ao clero nem à nobreza, não trabalhasse com seus braços e possuísse recursos independentes’
(Robert)” (2014. p. 16).
101
rejeitam, vendo-as como algo sem utilidade para a sociedade. É interessante, pois muitos
padeiros são oriundos da classe média. Os padeiros acreditavam no aperfeiçoamento
intelectual como meio de ascensão social.
O próprio burguês é um ser paradoxal. O burguês não quer ser chamado por esta
palavra. Se nos reportarmos ao contexto de sua origem, durante a baixa Idade Média, outras
classes como reis, padres e cavaleiros eram chamados, respectivamente, de reis, padres e
cavaleiros.
Conforme Franco Moretti (1950),
O burguês surgiu em algum lugar ‘mediano’, é certo – ‘não era um camponês nem
um servo, mas também não era um nobre’, como Diaz Wallerstein-, porém essa
medianidade era justamente o que ele almejava superar: nascido na ‘condição
mediana’ na Inglaterra do início da era moderna, Robinson Crusoé rejeita a ideia de
seu pai de que essa é ‘a melhor condição do mundo’ e dedica sua vida inteira a ir
além dela. Por que optar por uma denominação que devolve essa classe aos seus
indiferentes primórdios em vez de reconhecer seus êxitos? (2014, p. 17).
consagrados, a Padaria Espiritual vai decaindo, rolando para o nível comum. É hoje
uma sociedade literária grave, “ajuizada”, com uma ponta de oficialismo, sem os
ideais doutro tempo, sem aquela orientação nova, sem aquelas audácias que faziam
dela um exemplo a imitar, alguma cousa superior a um rebanho de ovelhas... Basta
comparar o Programa de Instalação com o Retrospecto. Há naquele mais liberdade
no dizer, mais leveza na forma e o espírito sutil de um novo esmaltando a frase. Por
aí se vê que o forno era um pretexto para a gente não ficar em casa embrutecendo. À
noite, ao acender do gás, lá íamos trincando o cigarro, com uma página inédita no
bolso, palestrar ao forno, discutir livremente Antônio Nobre, Os simples, Verlaine e
Zola (CAMINHA, 1999, p. 130).
As reuniões agora eram mais sérias, devido o caráter do anfitrião, que ocorriam,
tanto na residência de Fortaleza, quanto na de Pajuçara. Nesse sentido, a sociabilidade mais
familiar materializou o lema do grêmio ‘amor e trabalho’ levado a todo o vapor. Como o Café
Java era um espaço fronteiriço, paratópico, na Praça do Ferreira, espaço cultural e econômica
da cidade, a casa de Teófilo, na Pajuçara, também era um espaço paratópico, que realmente
não estava inserida no Centro da cidade. Nesse ‘pequeno mundo’, afastado e ao mesmo tempo
parte da sociedade, os laços afetivos e intelectuais se entrelaçam, fermentando a produção
literária daquela época.
Rodolfo Teófilo, nesse momento da agremiação, participa de vários números do
periódico. Nos números 10 e 11, apresentou um artigo científico, “As Manchas do Sol e as
Secas”. No número 18, publica trecho do romance Os Brilhantes, em outros números quatro
excertos de Maria Rita, e diversos poemas que serão publicados no livro Telésias.
Com a morte de José Carlos Júnior, Teófilo fora eleito como padeiro-mor e no
livro de atas, assinado no dia 19 de julho de 1896 por Moacir Jurema (A. Sales), atestando
que “além das muitas resoluções já consignadas, devo registrar também que as fornadas se
realizarão de hoje em diante às quartas-feiras e que o forno fica montado definitivamente em
casa de Marcos Serrano, que não é homem para andar acima e abaixo” (2015, p. 78).
E nessa mesma sessão, como assinala o escrivão
à vista do procedimento pouco correto e mesmo gravemente desleal que têm tido
para com esta associação, decretou-se a eliminação dos Padeiros Eduardo Saboia e
Adolfo Caminha, ora residentes na Capital Federal. Votou contra a exclusão do
primeiro. Concordou-se na readmissão de Lúcio Jaguar (Tibúrcio de Freitas) visto
107
ter-se averiguado a sua não coparticipação nos atos reprováveis que deram lugar à
expulsão de T. Machado – único autor de tais safadezas (ibidem, p. 78).
59
Posteriormente, adotou o nome de Academia Cearense de letras e teve quatros fases: primeira - de 1894 a
1922; a segunda - de 1922 a 1930; a terceira - de 1930 a 1951 e a quarta - de 1951 até hoje.
109
O maior paradoxo dos padeiros, o que caracteriza sua paratopia, era que eles
queriam ser reconhecidos como literatos em uma sociedade, a qual, apesar do repentino
aformoseamento urbano e econômico, ainda estava eivada de valores provincianos e materiais
e os enxergava como boêmios.
Além da busca pelo aperfeiçoamento intelectual, apesar do fazer artístico ser
marginalizado pela burguesia local, Rodolfo Teófilo prosseguiu em sua luta para penetrar na
difícil dinâmica do campo literário regional e nacional.
Nesse contexto, de uma rica e conturbada vida literária, os escritores, a partir das
ideias modernas, cultivaram um discurso crítico. Na arena simbólica do campo literário,
Rodolfo e os outros escritores, em defesa de suas obras, efetuaram um pugilismo literário.
Rodolfo, para defender sua produção literária e para julgar e atacar as obras de outros
escritores, partiu de algumas ideias de crítica literária. Esse ramo dos estudos literários estava
em efervescência no Brasil, a partir da repercussão das ideias modernas. O desenvolvimento
da crítica literária no Brasil será tema do nosso próximo capítulo, em que o objetivo desta
pesquisa – Rodolfo Teófilo, sua obra, seu contexto – será posto em relação de diálogo com os
nomes que se integraram ao desenvolvimento deste tipo de discurso: o da Crítica.
112
Como homem de letras e cientista, Rodolfo Teófilo, teve uma longa e atuante
vida. Ele publicou mais de duas dezenas de livros que repercutiram em todo o Brasil,
inclusive no Rio de Janeiro. Sua obra, composta por poemas, crônicas, contos, romances,
livros de divulgação científica e historiográficos, gerou uma importante e contraditória
fortuna crítica. Contraditória, porque recebeu ataques e elogios. Devido ao seu
posicionamento político, que alçava o combate às injustiças, o desvelamento da verdade, a
defesa dos oprimidos e pelo seu apelo messiânico-iluminista, sofreu vários ataques
discursivos, materializados por meio de livros e de periódicos.
Ao longo das décadas de 1910 e 1920, Rodolfo Teófilo esteve envolvido em
diversos conflitos no campo do poder cearense60, publicando diversas obras historiográficas,
memorialistas, científicas e de denúncia, tais como: Secas do Ceará: segunda metade do
século XIX (1901), Varíola e vacinação do Ceará (1904), Violência (1905), Memórias de um
Engrossador (1912), Libertação do Ceará (1914), Sedição de Juazeiro (1915), A seca de
1915 (1919), Varíola e vacinação no Ceará (1905-1909) (1919) e A seca de 1919 (1922). Os
livros foram diversificados, no entanto apresentam pontos em comum: são frutos da ação
política e sanitarista de Rodolfo Teófilo, escritos com o intuito de defender a terra cearense e
seu povo, da injustiça, do descaso, da corrução, dos desmandos políticos existentes no estado.
No âmbito regional, os combates políticos entre Rodolfo Teófilo e seus inimigos
se estenderam até o fim de sua vida. Sobre a recepção de sua obra literária, em relação ao
resto do país, especialmente à Capital da República, a crítica não ficou indiferente ao escritor.
Na construção de seus textos ficcionais, Rodolfo Teófilo não se preocupou em ser
artesão da palavra, no sentido de trabalhar a linguagem, de maneira retórica e adornada. Ele
adotou o cientificismo como seu estilo literário. O engajamento político de sua atividade
intelectual, o experimentalismo, a busca pela verdade foram canalizados para o estudo do
homem e da terra cearense.
60
As duas primeiras décadas do século XX foram marcadas por uma luta política acirrada entre a oligarquia
Accioly e Rodolfo Teófilo. Juntamente com Violência (1905), ele publica uma série de obras que denunciam os
descasos do velho comendador: Memórias de um engrossador (1912) e Libertação do Ceará (1914).
113
A sua escritura61 é oriunda de seu particular trabalho com a linguagem, com base
nas suas leituras de matrizes europeias, provindas da sua formação em Farmácia. Essas
matrizes são o positivismo, o naturalismo, o determinismo e o cientificismo. A sua escritura
nasce de uma confrontação do cientificismo zolariano com o regionalismo tropicalizante,
expressão dos usos e costumes do povo cearense.62
Portanto, como literato, desenvolveu uma escritura naturalista-regionalista. Das
variadas atividades de letras que exerceu, a crítica literária profissional nunca foi uma delas.
Os textos de crítica que escreveu na imprensa local e em outros estados tiveram um fim
específico: de defender os seus livros e de atacar os adversários literários. Algumas polêmicas
literárias famosas foram reunidas em livro e publicadas com o sugestivo título de Os meus
Zoilos, em 1924.
Nesse momento da pesquisa, não entraremos na análise de suas polêmicas.
Todavia, uma delas nos indicará pontos que serão investigados nesse capítulo. A polêmica
que abre o livro é contra Osório Duque Estrada (1870-1927). O crítico e poeta carioca teceu
comentários em sua sessão ‘Registro literário’, no periódico Correio da Manhã, sobre a obra
A libertação do Ceará (1915) que não agradaram o seu autor. O crítico diz de modo
desdenhoso que ‘não é preciso perder muito tempo em analise e comentários’, pois bastava a
leitura de apenas um trecho para ter uma ideia completa da obra (apud TEÓFILO, 1924. p.
16).
Rodolfo Teófilo, bastante indignado, nos declara que a crítica “me despertou o
desejo de ler os seus livros e saber o valor de sua individualidade literária” (1924, p. 5). Ele
não teve receio de desafiar o referido crítico, que tinha uma pena famosa e temida,
apelidando-o com vários termos, sendo o principal, o “Papão literário”.
No texto, Teófilo contextualiza os conflitos entre a literatura produzida no Rio de
Janeiro, a capital política e intelectual do Brasil, e o restante do país. O que interessa a nós é
um trecho, no qual ele esclarece sua opinião sobre a crítica literária contemporânea:
Não temos críticos. O Brasil ainda é muito novo para ter um Taine. Os três literatos
nossos que se davam a esses estudos eram Araripe Jr. Júnior, José Veríssimo e
61
Sobre escritura, diz-nos Roland Barthes que “é uma realidade ambígua: de um lado, nasce incontestavelmente
de uma confrontação do escritor com a sociedade” (BARTHES, 1974. p. 125). É outra realidade, independente
da língua e do estilo do escritor. A escritura liga o escritor a sua sociedade, de modo conturbado,
conscientizando-nos de que não existe literatura sem uma moral da linguagem. Para um maior esclarecimento
acerca das categorias estilo, língua e escritura, consultar a seguinte obra de Roland Barthes: Novos ensaios
críticos/O grau zero da escritura. Trad. Heloysa de Lima Dantas, Anne Arnichand e Álvaro Lorencini. São
Paulo: Cultrix, 1974.
62
Sobre a discussão do estilo e escritura de Rodolfo Teófilo, consultar a pesquisa: PINHEIRO, Charles Ribeiro.
Rodolpho Theophilo: a construção de um romancista. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Ceará,
Programa de Pós-Graduação em Letras, Fortaleza, 2011.
114
63
O texto capital para a sistematização da crítica determinista é a “Introdução” Histoire de la littérature
anglaise (1864). Em língua portuguesa, o texto faz parte da coletânea Uma ideia moderna de literatura: textos
seminais para os estudos literários (1688-1922), publicada em 2011, pela editora Argos, organizada por Roberto
Acízelo de Souza.
116
64
O termo ‘crítica’, vem de ‘kritikos’ e designava a própria faculdade de pensar, de escolher, da faculdade de
atribuir valor e de discernir, tanto do legislador, quanto do médico ou do filósofo (ROGER, 2002. p. 7).
65
Seu mestre, Platão, havia rejeitado os poetas em sua República, pois estes seriam sujeitos que trariam
‘desordem e mentira’ à sociedade com seus textos que traziam uma imitação imperfeita da realidade, um desvio
de nível inferior da sua postulação das ideias puras.
117
em Atenas, entre 334 a 323 a. C. Na sua obra didática, Poética, interessou-se no exame das
obras da “arte poética propriamente ditas”, levando em consideração o efeito estético que tais
obras produziam nos leitores ou expectadores.
Cada um dos gêneros por ele estudados, ‘a epopeia, a tragédia e a comedia’ não
expõe um saber comum ou científico, por meio da linguagem, ‘imitam’, isto é, recriam a vida.
Nem todos são poetas, pois “costuma-se dar esse nome a quem publica matéria métrica ou
científica em versos, mas, além da métrica, nada há de comum entre Homero e Empédocles;
por isso, o certo seria chamar poeta ao primeiro e, ao segundo, antes naturalista do que poeta”
(ARISTÓTELES, 2007, p. 20).
Empiricamente, o público daquela época tinha consciência do que era poético ou
não. A poesia era uma mimese da vida, o seu valor estava justamente no seu distanciamento
do real. O pensador organiza os primeiros critérios do que era uma obra digna de ser chamada
de poética, além de seus efeitos específicos no público (catarse66). Esse estudo foi pautado na
observação empírica de uma prática cultural que ocorria entre os povos gregos, há séculos.
Todavia, ele não tinha o intuito de estabelecer regras de produção literárias ou de julgamento
crítico. Na Poética, Aristóteles constrói o primeiro cânone da literatura ocidental (Homero,
Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, Aristófanes etc.), além de descrever o funcionamento de alguns
gêneros poéticos, inspirando nos modelos classificatórios das ciências naturais. Séculos
depois, na Roma antiga, a civilização que se influenciou em muitos aspectos da cultura grega,
a crítica ganhará novas perspectivas, incluindo o acréscimo de elementos da retórica.
Durante o desenvolvimento do pensamento ocidental, a atividade de crítica
literária acompanhou as transformações e revoluções que ocorreram na História. Em muitos
momentos se aproximou da perspectiva cristã, ora de aspectos mais materialistas, ora se
espelhou nos modelos estéticos do mundo greco-latino, ora esteve ligado mais aos aspectos
retóricos.
No decorrer do tempo, a crítica nos ensinou e ensina a efetuar profundos
questionamentos em torno da obra literária. Entendemos que o exercício crítico deve atuar de
modo contextual, deve colocar as obras em relação umas com as outras, situá-las, observar o
seu provável posicionamento no conjunto histórico das obras literárias. A literatura é mais do
66
De acordo com Aristóteles, na Poética, catarse (do grego κάϑαρσις, kátharsis, “purificação”, derivado de
καϑαίρω “purificar”) é um termo utilizado, no contexto da tragédia, para descrever um efeito estético que causa
um sentimento de terror e piedade nos expectadores, provocados pelas ações das personagens trágicas, em sua
trajetória da ventura para o infortúnio. Exemplo: Édipo-Rei, de Ésquilo. Após uma intensa investigação, o
protagonista, outrora auspicioso rei de Tebas, descobre que assassinou o pai e desposou a mãe, gerando quatro
filhos. Desesperado, como autopunição, fere os olhos, ficando cego.
118
que um conjunto de obras, é um sistema de relações, um campo de tensões, onde o poeta gere
uma rede de afinidades e oposições.
Como nos ensina Umberto Eco67, o texto literário é ‘aberto’, ao longo do tempo,
suscetível a diferentes leituras críticas, inventivas. Cada momento histórico nos oferece alguns
pontos para efetuarmos leituras que atualizam a mensagem do texto, enriquecendo o seu
registro sincrônico. O crítico não deveria esquecer que o seu objeto de estudo é construído por
uma arquitetura textual. A sua atividade é metalinguística. A estrutura verbal de seu objeto
determina os limites do seu alcance. A literatura constrói um mundo imaginário que não tem
existência fora da linguagem. O texto literário tem uma linguagem que expressa um número
diversificado de significados que recriam, exageram, focalizam contradições da nossa
realidade.
A crítica deve levar em consideração a historicidade da obra literária, a fim de
ultrapassar o impressionismo da primeira leitura do texto. A História da literatura não pode
ser apenas uma catalogo cronológico de obras, deve-se apoiar em um pressuposto crítico-
teórico.
René Wellek nos diz que
a história literária também é altamente importante para a crítica literária tão logo esta
ultrapassa o pronunciamento mais subjetivo do "gosto" e "não gosto". Um crítico
que se contentasse em ignorar todas as relações históricas iria se perder
constantemente nos seus julgamentos. Não poderia saber qual obra é original e qual
é derivativa, e, pela sua ignorância das condições históricas, erraria constantemente
na compreensão de obras de arte específicas. O crítico com pouca ou nenhuma
história inclina-se a fazer adivinhações desleixadas ou permitir-se "aventuras entre
obras-primas" autobiográficas e, no todo, evitará ocupar-se do passado mais remoto,
deixando-o com satisfação ao antiquário e ao "filólogo" (2003, p. 45).
67
Consultar ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 2003.
119
68
Nasceu em una cidade de Vouziers, em 1828 e morreu em Paris, em 1893. A sua vida foi plena de um
ininterrupto trabalho intelectual. Foi professor, jornalista, escritor e filósofo. No início da carreira, foi professor
em algumas províncias francesas e logo após, estreou no jornal Revue des Deux Mondes. Em 1853, obteve o
título de doutor com uma tese sobre as fábulas de La Fontaine. Em seguida, viajou por toda a Europa. Foi
professor na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Em 1878, entrou para a Academia Francesa. Escreveu
dezenas de obras sobre História da França, literatura e arte. Entre as suas obras mais famosas são Histoire de la
littérature anglaise (1864) e Philosophie de l'art (1865 e 1882).
69
Madame de Staël (1766-1817) foi uma famosa romancista e ensaísta francesa. Afinada ao ideal iluminista, em
1800, surge com a obra De la littérature considérée dans ses rapports avec les institutions sociales, trabalho
precursor da crítica literária, que defende uma visão moral e sociológica da obra literária.
70
Abel-François Villemain (1790-1870) foi um importante escritor, professor e político francês. A obra
representativa de Villemain é seu Cours de littérature française (1828-1829, editado em 5 volumes; na 2ª edição
de 1864, 6 volumes).
121
71
François Guizot (1787-1874) foi um importante historiador, professor da Sorbonne e ministro francês.
122
Essa busca investigativa pelo homem é acentuada em outra passagem, quando cita
o exemplo de poetas franceses:
O que é que existe sob as lindas folhas acetinadas de um poema moderno? Um poeta
moderno, um homem como Alfred de Musset, Hugo, Lamartine ou Heine, que fez
seus estudos e viajou, usando luvas e roupas preta, apreciado pelas senhoras e
oferecendo à noite na sociedade mundana umas cinquentas saudações e vinte frases
de efeito, lendo os jornais de manhã, morando geralmente num sobrado, [...] Isso é o
que percebemos em Meditações ou sonetos modernos (ibidem, p. 529).
Ora, percebemos que o historiador está interessado nos mínimos detalhes da vida
dos poetas. Sob a observação do homem visível, Taine quer buscar o homem invisível. Nessa
procura, o texto literário é sempre algo insuficiente, pois não explica de imediato, a sua
origem, a sua causa primeira, que é o poeta. As informações da causa original da obra devem
ser buscadas na biografia e na história dos costumes da sociedade em que vive.
Oculta sob a página, o historiador nutriu um afã de chegar à mão de quem
escreveu. No estilo do texto, estão configurados os gestos que a fixaram. Devido a esse
direcionamento, Taine postula que o historiador será, nesse um mundo subterrâneo que é o
interior do artista,
é capaz de desentranhar sob cada ornamento de uma arquitetura, sob cada traço de
um quadro, sob cada frase de um escrito, o sentimento particular de onde saíram o
ornamento, o traço, a frase; assiste ao drama interior que se travou no artista ou no
escritor; a escolha das palavras, a brevidade ou o comprimento dos períodos, o tipo
de metáforas, a acentuação do verso, a ordem do raciocínio, tudo para ele constitui
um índice; à proporção que seus olhos leem um texto, a alma e espírito seguem o
desenrolar continuo e a série mutante das emoções e concepções que originam o
texto; ele faz a psicologia do texto (ibidem, p. 531).
Verificamos que cada detalhe do texto serve como indício para a investigação da
evolução espiritual do indivíduo que produziu a peça literária. Ao priorizar uma lógica da
causalidade, ou seja, a obra considerada como resultante dos três fatores já citados, associar-
se-á ao naturalismo de Zola.
O crítico explica que a atualidade de seu método está na sua aproximação com a
ciência “ hoje em dia, a história, tal como a zoologia, encontrou sua anatomia, e qualquer que
seja o ramo histórico ao qual estejamos ligados, filologia, linguística ou mitologia, é por essa
via que trabalhamos para fazê-lo produzir novos frutos” (ibid, p 531); e, mais adiante, ele nos
diz “a procura das causas deve intervir após a coleta dos fatos. Que os fatos sejam físicos ou
morais não importam, eles sempre têm causas, há causas para a ambição, a coragem, a
sinceridade, assim como para a digestão, o movimento muscular, o calor animal” (ibid. 532).
Ele compara a literatura à zoologia, ciência da natureza, através de uma visão
totalizante e determinista da história, firmemente construída a partir da visão positiva do
pensamento de Augusto Comte, no qual as obras humanas são fatos e produtos que precisam
125
Percebemos que raça não tem apenas o sentido de características externas, para o
crítico são o temperamento, o caráter. A raça, como um conjunto de ações e de sensações, é
produto de vários séculos de evolução. Percebemos o diálogo do pensador com A origem das
espécies, de Darwin, obra que pelo seu título, indica o interesse do cientista em desvendar o
mistério que intrigava os cientistas da época. Taine traz essa perspectiva evolucionista para a
história e para a literatura, sendo um dos primeiros pensadores a fazer esse cruzamento de
ciências. Outro indício é a comparação que faz das variedades de povos humanos com raças
de cavalos, de touros e de cães, porém determinando a existência de raças humanas inferiores
e superiores.
Ele sustenta que clima e situações acarretam necessidades específicas em cada
povo, ao desenvolver aptidões e instintos diferentes. O ser humano, obrigado a enfrentar suas
126
Nesse trecho, ele salienta o meio como outro importante traço diferencial dos
povos. Ele atribui valores aos povos (as raças) pautando-se nas regiões geográficas em que
vivem, e na influência climática. Ele cita o exemplo das raças germânicas, helênicas e latinas.
As raças germânicas que viviam em densas florestas na Europa são melancólicas e violentas,
desenvolvendo, então, uma vida bélica. Já as raças helênicas e latinas, ao viverem no clima
ameno do mediterrâneo, regiões de belas paisagens (o crítico associa beleza natural para a
constituição de um caráter de um povo!), cultivaram organização política, a arte retórica e a
ciência. O clima determina o desenvolvimento da civilização.
O ‘meio’, ao longo dos milênios vai modelando o homem, tirando do
primitivismo e fazendo avançar rumo à civilização (isto, do ponto de vista eurocêntrico).
Nesse sentido, o ‘estado de espírito’, as influências no humor, são oriundas do meio, que
agem não apenas no nosso exterior, mas vão enraizando na mente da população.
Dialeticamente, a raça faz o individuo e o país faz a raça.
Taine exemplifica com os povos germânico e grego. Os germânicos, situados em
uma região fria e úmida, próximo aos pântanos, estariam propícios à melancolia, à grosseria
na alimentação e nos atos e a uma vida violenta (uma visão clichê dos bárbaros). Os povos
que formam a Grécia, por viverem próximos ao mar resplandecente e de clima quente,
127
72
Charles Augustin Sainte-Beuve, (1804-1869) historiador literário e crítico francês, conhecido por seus estudos
da literatura francesa, do Renascimento ao século XIX, do jornalismo e pelos retratos biográficos dos escritores.
128
E, no entanto, é em seus livros que encontraremos hoje em dia os ensaios mais para
desbravar o caminho que tentei descrever. Ninguém melhor que ele ensinou a abrir
os olhos e a olhar, primeiramente, os homens ao redor e a vida presente, depois os
documentos antigos e autênticos, a ler para além do branco e preto das páginas, a
enxergar sob a velha impressão, sob os rabiscos de um texto, o sentimento preciso, o
movimento de ideias, o estado de espírito no qual se escrevia. É nos seus escritos,
em Sainte-Beuve, nos críticos alemães que o leitor verá todo o partido que se pode
tirar de um documento é rico e sabemos interpretá-lo, encontramos nele a psicologia
de uma alma, frequentemente a de um século e, às vezes, a de uma raça. A esse
respeito um grande poema, um belo romance, as confissões de um homem superior
são mais instrutivos que um amontoado de historiadores e historias id. (p. 540).
Abandonou o curso de medicina, começando a escrever no jornal Le Globe, logo ganha reputação no La revue de
Paris, chamando a atenção de Johann Wolfgang von Goethe e Victor Hugo. Em seguida, passa a escrever no La
Revue des Deux Mondes. Durante várias décadas escreveu uma coluna, Portraits (Retratos), que depois foram
publicadas em 7 volumes. Em 1844, foi eleito para Academia Francesa. Paralelamente, ocupou um cargo na
Biblioteca Mazarin, e também ensinou literatura francesa na Universidade de Liège, na Bélgica. Ele também
ensinou poesia latina brevemente no Collège de France entre 1858-1862.
73
Texto consultado em SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Sobre o meu método. Trad. Annabella Blyth. In:
SOUZA, Roberto Acízelo de. (Org). Uma ideia moderna de literatura: textos seminais para os estudos literários
(1688-1922). Chapecó: Argos, 2011.
129
Nesse trecho, vemos a síntese de tudo que discutimos até aqui: o desejo de
encontrar as causas primeiras da obra literárias (os motores), a influência desses fatores para a
construção de uma civilização e uma visão evolucionista e progressista da história.
Assim como outros pensadores contemporâneos seus, Taine valorizou
extremamente a ciência, colocando-a no centro do quadro do mundo moderno e como força
decisiva no progresso da humanidade. Taine, com sua História da Literatura Inglesa,
Filosofia da Arte, entre tantos outros escritos, exerceu uma imensa influência na segunda
metade do século XIX. Virou sinônimo de rigor e objetividade. Com o advento da crítica
moderna, os seus escritos serviram para se estabelecer um paradigma que anunciava a entrada
130
da ciência nos Estudos literários. Seus discípulos mais famosos foram Émile Hennequin
(1858-1888) e Ferdinand Brunetiére (1849-1907).
O determinismo defendido por Taine, em síntese, preconiza que o homem é um
títere nas mãos de forças internas e externas; a interna, os mecanismos biológicos, oriundos da
raça, transformada ao longo da evolução; e externas, o fator histórico, ou seja, o momento em
que o homem vive e a influência do meio ambiente. O homem é um refém da natureza.
Após analisar as propostas metodológicas do prefácio da obra de Taine,
entraremos no estudo da formação da crítica literária brasileira, cujo foco é o estudo dos
críticos naturalistas, mas, no nosso percurso cronológico, trabalharemos dos precursores da
crítica, na época romântica, para depois, abordar o surgimento da Escola do Recife.
74
Foi um viajante francês que morou no Brasil entre os anos de 1816 e 1820. Ele foi responsável por uma das
primeiras obras de crítica literária brasileira, logo após a independência do país - Résumé de l´histoire littéraire
du Brésil [Resumo da história literária do Brasil, 1824]. O livro fez sucesso e alcançou duas edições no mesmo
ano. Foi traduzido no Brasil por Henrique Luís de Niemeyer Bellegarde (1802-1839) e, de acordo com Joaquim
Norberto, foi adotado como documento pelo governo, como leitura obrigatória dos colégios primeiros que
existiam no país.
131
75
O texto foi consultado em Garrett, Almeida. O Retrato de Vênus e Estudos de História Litterária. 3a. Edição. Porto:
Ernesto Chardron Editor, 1884. Disponível em: http://www.archive.org/details/1884oretratodeve00alme
132
Um intelectual que foi um destacado crítico, apesar de sua juventude, à época, foi
Machado de Assis. Ele começou a carreira com publicações de textos poéticas, textos
jornalísticos e peças de teatro. O seu primeiro romance, Ressurreição, é de 1872. Os seus
textos críticos76 datam do final da década de 1850. O primeiro a ter destaque na imprensa
carioca foi o ensaio “O passado, o presente e o futuro da literatura brasileira”, de 1858, tendo
ele, então, 19 anos.
Sabemos que Machado seria, décadas depois, o renovador da ficção brasileira,
afastando-se radicalmente da estética romântica. Contudo, no início de sua carreira
dada a preocupação do crítico literário, se voltou para problemas relacionados com o
gosto da época. Demonstrou conhecer a doutrina dos românticos, realistas-
naturalistas, parnasianos, bem como a lição dos clássicos. Soube orientar-se
criticamente a si mesmo, no combate aos lugares comuns e aos excessos de uns e de
outros, dos clássicos aos contemporâneos (CASTELLO, 2008, p. 18).
76
A produção crítica machadiana, iniciada em 1858 e findada em 1904, ocorreu em jornais e revistas, tais como
A marmota, A semana ilustrada, O novo mundo, Correio mercantil, O cruzeiro, Gazeta de notícias, Revista
brasileira, sendo coligida em volume (em 1910) por Mário de Alencar.
134
Sua adesão à visão nacionalista era plena nesse ensaio. Anos depois, ao tratar do
tema indianista, a propósito da crítica sobre o recém lançado livro de José de Alencar
(Iracema, 1865), Machado revê sua posição: " se a história e os costumes indianos inspiraram
poetas como José Basílio, Gonçalves Dias, e Magalhães, é que se podia tirar dali criações
originais, inspirações novas" (Diário do Rio de Janeiro, 23/01/1866).
Nesse mesmo ano, escreve o ensaio “O ideal do crítico” (1865), texto
importantíssimo, no qual fala de critérios para a coerente e honesta crítica literária. Ele
lamenta que a crítica seja exercida por incompetentes ou esteja à mercê dos “caprichos da
opinião”, porque considera a
profissão do crítico deve ser uma luta constante contra todas essas dependências
pessoais, que desautoram seus juízos, sem deixar de perverter a opinião. Para que a
crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial, – armada contra a insuficiência dos
seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários [...] 78.
Para Machado, a imparcialidade é o ideal que o crítico deve atingir, algo bastante
difícil em variados contextos literários brasileiros, em que a crítica é exercida sob a ótica das
relações pessoas, permeadas de opiniões positivas, desafetos, indiferença e desaprovação.
Machado aponta para que o crítico faça “o julgamento de uma obra, cumpre-lhe
meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas,
ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção”
(1994).
77
Os artigos de Machado de Assis foram consultados a partir da edição das obras completas: ASSIS, Machado.
O passado, o presente e o futuro da literatura. In: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, vol. III, 1994.
78
In: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/107_128211801a2d496ca76d98609f0fe81f
135
79
Notícia da atual literatura brasileira. Instinto de nacionalidade. Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de
Assis. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, vol. III, 1994. In: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-
lista/item/download/95_a034209a67594696a9b556534ff73116
136
Não apenas o índio deverá ser o único tema, mas Machado atenta para o caráter
histórico da literatura, já que o escritor deve estar atento ao tempo, a suas discussões, a seus
temas etc. Essa consciência histórica leva o país para a sua autonomia estética, fruto do
trabalho de futuras gerações.
Não há dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve
principalmente alimentar-se dos assuntos que lhe oferece a sua região; mas não
estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a empobreçam. O que se deve exigir do
escritor antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu tempo e
do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço (idem,
ibidem).
crítica a Eça de Queiros, ressaltando que “voltemos os olhos para a realidade, mas excluamos
o realismo; assim não sacrificaremos a verdade estética” (ASSIS, 1994)80.
O autor cita Carlton Hayes81, que compila no termo ‘materialismo’ uma série de
ideias e práticas adotadas por intelectuais do período. A busca pelas ideias materialistas
80
Eça de Queirós: O Primo Basílio. Texto-Fonte: Obra Completa de Machado de Assis, Rio de Janeiro: Nova
Aguilar, vol. III, 1994. Publicado em O Cruzeiro, 16 e 30/04/1878.
In: http://machado.mec.gov.br/obra-completa-lista/item/download/93_ba9e781d3821d32a9cbffc78fbfa5bda
138
eclodiu, no mesmo período, em Portugal e no Brasil. As ideias ditas modernas são frutos do
Iluminismo e do enciclopedismo do século XVIII. Com as revoluções que ocorreram na
Europa e nos E.U.A, a ideia de progresso foi uma poderosa mola que conduziu o projeto da
civilização ocidental.
O processo de ‘mecanização do trabalho e do pensamento’ (Hayes) repercutiu na
pragmática de diversas ciências, como as físicas, naturais, biológicas e sociais. Como vimos
anteriormente com Taine, na França, a ciência era o método de investigação que se
institucionalizou, moldando a visão de mundo dos homens letrados, aguçando o espírito de
observação e rigor. A ciência guarneceu os homens com uma visão de mundo, cuja crença
principal era a explicação de todos os fenômenos, pois estes eram explicáveis e governados
por leis mecânicas e matemáticas.
As ideias darwinistas de seleção natural e evolucionismo ampliaram a de
determinismo do meio. O homem é visto como um organismo vivo, como todos os outros; e,
dependendo do ambiente em que vive, tem reações físicas e mentais diversas.
O clima de apego às ciências encontrou respaldo na filosofia positivista de Comte,
que vinha das décadas de 1830 e 1840, e ofereceu uma forte atração entre os jovens bacharéis.
O positivismo tentou repelir a explicação metafísica e providencialista, exaltando a ciência
natural como grande modelo para a construção da ciência social. Segundo Coutinho “os
estudos sociológicos, dirigidos pelo positivismo, orientaram-se para a coleta de fatos,
sintetizando-os e formulando leis e tendências para explicar a conduta e evolução da
sociedade humana” (1981. p. 118). Outro filósofo que contribuiu para a visão de mundo
materialista foi Herbert Spencer, que enxergava a sociedade como um organismo vivo, em
evolução, e em seu interior, a luta pela sobrevivência ocasionava um constante antagonismo
entre forças sociais. Esse princípio evolucionista foi introduzido nos estudos históricos e
perdurou até as primeiras décadas do século XX.
No caso do Brasil, quando falamos na Geração de 70, estamos falando de grupos
de intelectuais, tanto no Rio de Janeiro e nos estados do nordeste, como Pernambuco, Bahia e
Ceará que estavam lendo e divulgando o ideário moderno, entre as décadas de 1860 e 1870.
Porém, na Europa, principalmente na França, desde a década de 1850, as ideias filosóficas e
estéticas estavam revolucionando os paradigmas do pensamento.
81
Carlton Joseph Huntley Hayes (1882- 1964) foi professor e diplomata estadunidense. Pesquisador da História
europeia, ele se destacou como um importante pesquisador do nacionalismo. A obra a que Afrânio Coutinho o
referencia é A generation of materialism, 1871-1900, publicado em 1941, durante a 2ª Grande Guerra.
139
bém novas. São exemplos a Escola de Recife, de Tobias Barreto e Sílvio Romero, a
Academia Francesa do Ceará, de Araripe Jr. Júnior, Rocha Lima e Capistrano de
Abreu, entre outros, ou mesmo a obra precursora de Inglês de Souza, tendo por
cenário o norte do país (1974, p. 27-8).
82
Hoje é atual Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pernambuco. A instituição se constituiu a partir
da transferência, em 1854, da Faculdade de Direito de Olinda, (fundada em 1827), por Dom Pedro II, para o
Recife.
141
83
Formou-se na Faculdade de Recife, e posteriormente atuou como promotor público, como político e consultor
jurídico do Ministério do Exterior. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras e membro do
Instituto Histórico e Geográfico. Foi o autor do projeto do Código civil brasileiro, em 1901. O código foi
promulgado em 1916 e vigorou até 2002.
84
Estudada no primeiro capítulo dessa pesquisa.
85
Tobias Barreto de Menezes (1837-1889) fez o curso de Direito na Faculdade de Recife (1864-69), onde foi
colega de Castro Alves. Ambos nutriam uma grande admiração pela poesia de Victor Hugo. Depois de formado
e atuando como jornalista, aproxima-se dos escritos de pensadores alemães, por exemplo, Haeckel. Em 1882,
vence o concurso da Faculdade de Direito do Recife, onde foi o grande entusiasta e mestre da chamada “Escola
do Recife.” Grande divulgador das ideias germânicas, teve entre os seus discípulos Sílvio Romero, Graça Aranha
e Artur Orlando.
142
Capistrano descreve que o primeiro pensador que animou o crítico foi Vacherot,
com o seu Science et conscience. Em seguida, o “edifício de suas crenças foi abalado por
Taine” (Capistrano, 1968). Contudo, firmou a sua crença no determinismo com o pensador
inglês Buckle. No frenesi de suas leituras, foi arrebatado pelo positivismo de Comte. Tornou-
se um apóstolo da razão e sua ação intelectual e política se embasou pelo positivismo,
inclusive a sua adesão à maçonaria, às polêmicas contra a Igreja Católica e ao projeto da
Escola Popular.
As leituras não se restringiam a sua individualidade, eram partilhadas entre os
colegas bacharéis, como nos diz Capistrano
Era em casa de Rocha Lima que reuniam-se os membros do que chamávamos
Academia Francesa. Quanta ilusão! Quanta força, quanta mocidade! França Leite
advogava os direitos do comtismo puro e sustentava que o Systhème de Politique era o
complemento do Cours de Philosophie. Melo descrevia a anatomia do cérebro, com a
exatidão do sábio e o estro do poeta. Pompeu Filho dissertava sobre a filosofia alemã e
sobre a Índia, citava Laurent e combatia Taine. Varela – o garboso abnegado paladino,
- enristava lanças a favor do racionalismo. Araripe Jr. Júnior encobria com a máscara
de Falstaff a alma colorida de René. Felino falava da Revolução Francesa, com o
arrebatamento de Camilo Desmoulins. Lopes, ora candente como raio de sol, ora
lôbrego como uma noutre de Walpurgis, dava asas a seu humor colossal. Por vezes
das margens do Amazonas chegava o eco de uma voz, doce como poesia. Suas águas
sem fim, - a de Xilderico de Faria, hoje para sempre mudo no regaço do Oceano (sic)
(apud LIMA, Rocha, 1968. p 77-78).
Essa citação é importante, pois mostra o rol de leituras que eram debatidas entre
os membros da Academia Francesa, vários pensadores que estavam em voga na Europa,
inclusive em Portugal. O foco eram filósofos franceses, como Comte e Taine, além de
alemães. Portanto, os intelectuais cearenses já tinham bagagem de leituras quando foram ao
Recife.
Conforme Clovis Bevilaqua, a Escola do Recife não era um conjunto doutrinário
de ideias, um sistema. Na verdade, era a reunião de um conjunto de ideias progressivas de
várias fontes, que tivessem critérios ‘científicos’. Cada aluno era livre para escolher um
sistema filosófico ou combinar sistemas aos seus interesses intelectuais.
Paim (1999. p. 50-51), após esmiuçar livros, artigos, jornais, documentos e
depoimentos sobre a Faculdade de Direito de Recife, estabelece que a instituição atravessou
quatro fases: Na primeira, (do final da década de 1860 até 1875), os seus fundadores,
professores e alunos tinham interesse em desenvolver uma renovação do pensamento,
rejeitando o ecletismo espiritualista. As suas armas teóricas eram o positivismo e o
darwinismo. Poeticamente, a Escola era dominada pelo amor a Byron, e em seguida, a adesão
ao movimento romântico condoreirista, tendo ainda como ídolo Vitor Hugo. Os estudantes
143
dessa época estavam repletos de paixão nacional, concomitante à agitação política da Guerra
do Paraguai. Os corifeus dessa fase são Castro Alves e Tobias Barreto.
Na segunda, segue uma transição do hugoanismo para o realismo, na poesia86. A
partir do início de 1870, influenciado pelas novas ideias filosóficas, Sílvio escreve vários
artigos atacando as principais fortalezas do romantismo: o sentimentalismo, o indianismo, o
hugoanismo, o lirismo subjetivista, o humorismo.
O ano de 1875 é o da ruptura. Tobias Barreto, que caminha para se tornar a figura
central da Escola, publica o texto “Deve a Metafísica Ser Considerada Morta?” e nesse
mesmo ano, Romero publica o livro A filosofia no Brasil, obra em que marca o rompimento
com o positivismo. O evento que irá desencadear um processo diferenciador nos rumos da
Escola é o incidente na defesa de Romero, no qual ele declarou que a metafísica estava morta.
Em seguida, na terceira fase, que compreende de meados da década de 80 até o
início do século XX, é marcado pela morte de Tobias em 1889. Os seus últimos trabalhos são
reeditados por Romero, gerando uma efervescência filosófica na Escola.
Sílvio Romero publica as obras livros Doutrina contra Doutrina (1894), Ensaios
de Filosofia do Direito (1895) e Ensaios de Sociologia e Literatura (1901); Clóvis Beviláqua
publica os seus primeiros ensaios, que depois estarão em Esboços e Fragmentos (1889); Artur
Orlando e Fausto Cardoso publicam Concepção Monística do Universo: Cosmos do Direito e
da Moral (1894). Com o início do regime republicano, os membros da Escola do Recife
atuam mais na imprensa local, incluindo os periódicos, alguns efêmeros, Revista Acadêmica e
Cultura Acadêmica, com defesa do cientificismo.
Voltando para 1873, perceberemos que as ideias modernas, pautadas no
racionalismo e no cientificismo ganham força no Recife, tais como
as doutrinas positivista, ortodoxa e heterodoxa de Littré; o evolucionismo spenceriano
(o qual Tobias sempre combateu); as teorias de Taine, cujos livros eram muito lidos; o
monismo, que de Kant, Schopenhauer e Hartman, passou para Haeckel e Noirée, isto
é, o ‘alemanismo’ de Tobias, mas que, segundo Beviláqua, só se revela em 1881, no
seu regresso a Recife. Portanto a curva da evolução foi do positivismo ao monismo
haeckeliano, sendo que alguns seguiram Spencer e Mill, outros o materialismo, mais
tarde aplicando ao direito os mesmos postulados filosóficos, segundo Jhering, Post etc
(COUTINHO, 1981. p. 113).
86
As produções líricas antirromânticas de Recife foram denominadas de poesia científica, termo desenvolvido
por Sílvio Romero e Martins Júnior (1860-1904). Martins Júnior foi um dos mais entusiastas dessa singular
concepção poética. Ele entendia que a poesia escrita no Brasil passava por um estado de anormalidade (o período
a que ele se referia era o do romantismo do final da década de 1870 e início da década de 1880). Declarando
patentemente a influência do positivismo comteano, Martins Júnior defende suas ideias no livro A poesia
científica, esforço de um livro futuro, de 1883. Nesta obra, ele defende a substituição da imaginação romântica
pela verdade científica.
144
87
Sílvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero foi crítico, folclorista, ensaísta, professor, polemista e
historiador da literatura brasileira. Nasceu em Lagarto (SE), em 21 de abril de 1851, e faleceu no Rio de Janeiro,
em 18 de julho de 1914. Participou da instalação da Academia brasileira de letras, em 28 de Janeiro de 1897,
ficando com a cadeira Nº 17, cujo patrono escolhido foi Hipólito da Costa.
146
1905). Ele se autovaloriza, não negando as influências recebidas, mas relata que as leituras só
desabrocharam o caráter reflexivo e combativo que germinavam no jovem. Ele queria atrelar
aspectos de hereditariedade a suas conquistas intelectuais. Na capital pernambucana, declara
que “foram um estudo de Emílio de Laveleye acerca dos Niebelungen e da antiga poesia
popular germânica, um ensaio de Pedro Leroux sobre a Goethe e um livro de Eugênio Poitou
sob o título — Filósofos Franceses Contemporâneos” (sic) (João do Rio, 1905), que lhe
serviram para fortalecer a sua visão de mundo.
Em outro depoimento, em Filosofia do Brasil, uma de suas primeiras obras,
comenta as leituras recifenses e seu abandono da doutrina positivista:
a doutrina de Auguste Comte trouxe inapreciáveis vantagens a filosofia, mas que no
grande todo depara-se com ideias inaceitáveis e perigosas para a ciência. Tal é. O
positivismo é um fecundo sistema, no caso de alguns outros que têm havido. Por
mais que se esforcem os seus discípulos, na hora atual, para , coloca-lo ao nível dos
últimos avanços do espirito. É sempre verdade que o grande edifício já nos fica
pelas costas. Vamos para adiante. Julgo-me, seja dito de passagem, com plena
isenção de espirito' para aprecia-lo; outrora seu sectário; na ramificação dirigida por
E. Littré, só o deixei quando livros mais desprevenidos e fecundos me chegaram as
mãos. Comte só foi largado por amor a Spencer, a Darwin, a Haeckel, a Büchner, a
Vogt, a Moleschott, a Huxley, e ainda hoje o lado inatacável, aquilo que sempre
restará de sua brilhante organização filosófica, me prende completamente (sic)
(1878. p. 68).
Nesta formação nota-se, desde logo, o predomínio das influências cientificistas.
Na segunda metade do século XIX, o advento, no Brasil, do positivismo e do evolucionismo,
exigia de quem se aventurasse pela filosofia uma fundamentação científica do pensamento.
Romero trouxera a forte influência de sua estada no Recife, especialmente, Tobias
Barreto, no seu esforço em pensar o Brasil a partir da filosofia alemã. Na corte, seu primordial
embate é a sua condição de provinciano, pois o Rio de Janeiro:
detinha o maior mercado de trabalho para os homens de letras, que encontravam
oportunidades no ensino, na política e no jornalismo. A capital atraia os
representantes dos movimentos críticos do Norte e do Nordeste, como Sílvio
Romero, José Veríssimo, Araripe Jr. Júnior e Capistrano de Abreu. Todos foram
membros ou do instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, criado em 1838, ou da
Academia Brasileira de Letras, fundada em 1897. Romero, Veríssimo e Capistrano
foram professores do prestigioso Colégio Pedro II. Encontraram na imprensa lugar
para exercer a crítica literária e divulgar as suas ideias (VENTURA, 1991, p. 10).
Muitos dos artigos e ensaios que publicou na Faculdade de Direito do Recife, ele
os reorganiza e publica em 1880, A Literatura Brasileira e a Crítica Moderna. O livro reúne
artigos publicados entre 1872 e 1874, composto também por um prólogo e um epílogo, em
que explicita a doutrina que o acompanhará no seu percurso crítico.
Nesses artigos, já percebemos a construção de uma visão da sociedade brasileira
como produto da miscigenação, da mescla de raças e culturas. A mestiçagem será a marca que
nos diferencia do português, incluindo a contribuição dos povos africanos. Mas para causar
uma revolução na inteligência brasileira, seria necessário que os críticos e historiadores se
fundamentassem na ciência e na filosofia moderna. No seu livro A filosofia no Brasil (1878),
dá início a uma campanha contra a grande influência da filosofia francesa (mais adiante
discutiremos as leituras francesas de Romero, principalmente Taine), efetuando a propaganda
das leituras germânicas. Na obra, eleva a figura de Tobias Barreto como grande baluarte do
pensamento moderno brasileiro.
Em 1880, publica mais um livro, O naturalismo em Literatura, onde burila o seu
método crítico, e em 1881, com A Interpretação Filosófica dos Fatos Históricos, é a tese com
a qual obtém uma cadeira de Filosofia no Colégio Pedro II. Além dos pensadores alemães,
adere com mais ênfase à ideia do determinismo do meio sobre a civilização, a partir da obra
de Thomas Buckle.
Quase no final da década, em 1888 vem a público sua obra primordial, História
da literatura brasileira, originalmente publicada em dois volumes. O primeiro volume é
teórico, no qual o autor focaliza e discute os fatores determinantes para a formação da cultura
brasileira. No segundo volume, o historiador cataloga as produções espirituais do povo
brasileiro, incluindo textos jurídicos e textos da tradição oral, até a data de publicação da obra,
em 1880, mas omite os ficcionistas do século XIX, sobretudo, ele privilegia o estudo da lírica
brasileira, que culmina,
numa desconcertante apoteose de Tobias Barreto, que ocupa 120 páginas, ou seja,
mais espaço do que o século XVIII com Escola Mineira e tudo, e se vê guindado
praticamente à posição de maior escritor brasileiro, superior a Castro Alves como
poeta, a Machado de Assis como prosador e a toda a gente como pensador
(CÂNDIDO, 1989. 107).
O curioso é que em artigos anteriores e no livro em questão, ele demonstra o seu
pioneirismo e sua modernidade, pela aproximação com os métodos científicos, porém, realiza
uma apologia da obra lírica de Tobias Barreto, de modo propagandístico e proselitista, não
escondendo sua paixão pelo confrade. É preciso um desconto na leitura da obra, pois sua
escrita oscila entre graves análises e juízos apaixonados, elogios, birras, enfim, uma escrita
repleta de altos e baixos.
149
Sílvio efetuou algumas revisões da obra, lançando em 1902 uma segunda edição,
que é a referência, pois foi a última edição revista em vida pelo autor. Na terceira edição, de
1943, há uma reformulação completa da obra, feita por seu filho Nelson Romero, que ampliou
a obra para cinco volumes, incorporando ao texto original diversos trabalhos de diferentes
épocas e finalidades.88
Na História da Literatura brasileira, o autor divide as Letras brasileiras em
quatro épocas: a) formação (1500 e 1750); b) desenvolvimento autônomo (1750 e 1830); c)
transformação romântica (1830 e 1870); d) reação crítica (depois de 1870) (ROMERO, 2001,
p. 60). Na edição de 1888, Romero trata dos dois primeiros períodos, no primeiro volume; o
Romantismo será matéria de análise do segundo volume; o último período, de “reação
crítica”, do qual ele mesmo faria parte, não chegou a ser escrito.
A primeira grande parte do livro, “Fatores da literatura brasileira”, é constituída
pelos seguintes capítulos: “Capítulo I | Trabalhos estrangeiros e nacionais sobre a literatura
brasileira | Divisão desta | Espírito geral deste livro”; “Capítulo II | Teorias da história do
Brasil”; “Capítulo III | A filosofa da história de Buckle e o atraso do povo brasileiro”;
“Capítulo IV | O meio | Fisiologia do brasileiro”; “Capítulo V | A nação brasileira como grupo
etnográfico e produto histórico”; “Capítulo VI | Raças que constituíram o povo brasileiro| O
mestiço”; “Capítulo VII | Tradições populares – Cantos e contos anônimos | Alterações da
língua portuguesa no Brasil”; “Capítulo VIII | Relações econômicas | As instituições políticas
e sociais da Colônia, do Império e da República” e “Capítulo IX | Psicologia nacional |
Prejuízos de educação | Imitação do estrangeiro”.
No plano da obra, percebemos os seus critérios de estudo literário, no qual a
literatura seria apenas uma causa imediata da conjunção de fatores naturais e sociais,
enfatizando a raça como fator primordial e uma visão progressista, orientado por uma visão
linear dos fatos históricos, que culminam no aperfeiçoamento da civilização.
88
Os acréscimos feitos por Nelson Romero são: No volume I, acrescentou “Novas contribuições para o estudo
do folclore brasileiro”, em três partes; “o Brasil social e os elementos que o plasmaram”, “Conclusões gerais”,
extraídas do livro Compêndio de literatura brasileira [da segunda edição, 1909] e contendo “I. O meio; II. A
raça; III. Influxo estrangeiro; IV. Sentido teórico da literatura brasileira; V. Fases evolutivas da literatura
brasileira”; da obra Da crítica e sua exata definição, o organizador introduziu no volume II: “Terceira época ou
período de transformação romântica – teatro e romance”, com estudo sobre “Macedo Martins”, “Pena”,
“Alencar”, “Agrário”, “Franklin Távora”, “Pinheiro Guimarães”, “Manuel de Almeida”, “Taunay”, “Machado de
Assis”; “Diversas manifestações na prosa – história”, incluindo estudo sobre Martius e “historiadores”;
“Diversas manifestações na prosa – publicistas e oradores”, “Retrospecto literário”, incluindo “Retrospecto
literário”, de 1888, e “Confronto em retrospecto”, de 1904; “Reações antirromânticas na poesia – evolução do
lirismo”, “Artigos esparsos” sobre Barão do Rio Branco, João Ribeiro, Farias Brito, Tito Lívio de Castro, Lopes
Trovão, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha e Nestor Vitor; “Quadro sintético da evolução
dos gêneros na literatura brasileira”, somando o livro com este nome, de 1909.
150
Cândido nos esclarece que Romero está mais para sociólogo no seu tratamento
dado à literatura, uma vez que o texto literário é visto como reflexo do espírito da sociedade.
Literatura, de acordo com os pensadores alemães eram “todas as manifestações da inteligência
de um povo: — política, economia, arte, criações populares, ciências… e não, como era de
costume supor-se no Brasil, somente as intituladas belas-letras, que afinal cifravam-se quase
exclusivamente na poesia!…” ( ROMERO, 2001, p. 61. Vol I).
A expressão da cultura de um povo é feita pelos poetas e historiadores,
responsáveis por criar as imagens e as intepretações da nação, contribuindo para a formação
de uma tradição. Romero nos diz que “sem ideal e sem tradições impossível é formar-se um
povo; sem poesia e sem história não pode haver literatura; poetas e historiadores são os
sacerdotes ativos e oficiantes da alma de uma nacionalidade” (2001, p. 378).
151
89
De acordo com Câmara Cascudo, Ratzel traduzia o termo “kultur” como um conjunto de disponibilidade
mentais de um povo para uma época (1994. p. 40). Portanto, cultura pode ser entendida como conjunto de
técnicas de produção, doutrinas e atos, normas, que são transmissíveis pela convivência e ensino, de geração em
geração. Cada cultura forma um rico patrimônio material e imaterial.
152
vezes o trabalho de Buckle90, que era um historiador inglês, quem veiculou a crítica e a
historiografia literária à ciência foi Taine.
Ele dedica um capítulo da obra, “A filosofia da história de Buckle e o atraso do
povo brasileiro” para explicar suas teorias e elogiá-lo como ‘pintor do atraso’ de alguns
povos. O pensador inglês rejeita as ideias metafísicas e defende um empirismo científico para
a teoria da história, ao afirmar que todas as ações humanas podem ser explicada à luz dos
métodos das ciências naturais, métodos que também são influenciados pela ação do meio.
Segundo Paim, sobre
as leis que dirigem a história são físicas (clima, alimentação e aspecto geral da
natureza) e mentais (intelectuais e morais), das quais as primeiras seriam mais
importantes. Divide a civilização em dois grandes ramos: a da Europa (predomínio
do esforço do homem sobre a natureza) e o resto do mundo (predomínio da natureza
ou das leis naturais) (1999. p. 87).
O ponto de vista eurocêntrico será paradoxalmente aceito por Romero, pois ele é
leitor das teorias e admirador dos pensadores e cultiva uma visão progressista para si e para o
Brasil. Todavia, essa mesmas leituras cientificistas e deterministas condenam o Brasil, por
não ser europeu e estar situado numa zona de clima quente, resultado de uma mistura de
raças, ao atraso econômico, cultural e político, permitindo-se ser colonizado, explorado e
‘civilizado’ pelos povos mais “avançados”.
Antônio Cândido nos informa sobre um conjunto de influências deterministas em
Romero, que esse
tomou o fator mesológico, que mais tarde criticaria com pertinência, e que na
primeira fase da sua obra é apenas indicado. Mais presentemente nela encontramos o
fator raça, um dos cavalos de batalha da crítica cientifica. Convencido da
relatividade do conceito de raça pura, aprendera, inclusive em Haeckel, que as raças
históricas são produto de hibridizações multiplicadas (1988. p. 50).
Essa ênfase no ‘fator raça’ será o mote de sua teoria crítica da mestiçagem, a sua
contribuição ao pensamento brasileiro. Somos mestiços, tanto física e quanto moralmente.
Cada raça legou sua peculiaridade à nossa cultura, na qual o crítico interpretou a literatura
como um fenômeno de instabilidade. Nós não éramos mais índios, negros ou europeus,
constituímo-nos uma mistura, nos tornávamos fracos intelectualmente. Esse é um grande
impasse, não só do pensamento de Romero, mas da Geração de 70 que reiteramos: como
desenvolver uma civilização brasileira, se pelo fator racial estamos determinados ao atraso
cultural e material? O impasse do crítico ocorre, porque o ponto de vista que assumiu, o de
90
Henry Thomas Buckle (1823/1862) foi um historiador e sociólogo britânico, que bebeu das fontes filosóficas
de Comte, Stuart Mill, Quetelet e outros. Autor de História da Civilização na Inglaterra, obra idealizada em três
volumes, que inacabada, teve apenas os dois primeiros volumes publicados, em 1857 e 1861, respectivamente.
154
91
Estudo de Sílvio sobre Martius: Carlos Frederico F. Martius e suas ideias acerca da História do Brasil,
publicado na Revista da Academia Brasileira de Letras, 2012.
92
O estudo do embate entre os dois críticos será feita no 3º capítulo.
93
Joseph Arthur de Gobineau nasceu em 14 de julho de 1816. Em Paris, atuou como funcionário público,
servindo como diplomata nas cidades de Berna, de Hanôver, de Frankfurt, de Teerã, do Rio de Janeiro e de
Estocolmo. Também trabalhou como secretário do escritor Alexis de Tocqueville. Ambicioso, adotou o título de
‘conde’, mesmo nascido em uma família humilde e tinha pretensões de ser conhecido como grande intelectual.
155
Gobineau foi um pensador influente no final do século XIX; sua obra Ensaio
sobre a desigualdade das raças humanas (1854), era leitura comum entre os intelectuais que
defendiam o evolucionismo. Contudo, esse pensador era bastante pessimista em relação à
mistura de raças. As chamadas raças branca, amarela e negra são produto de diversos
cruzamentos de outras raças, que ao longo da história foram se estabilizando e se
uniformizando; como exemplo, ele cita os países europeus colonizadores, como Espanha,
Portugal, França. Quando uma raça branca, ‘estável’ cruza com uma inferior, ocorre a
mestiçagem, uma raça misturada e instável e ele exemplifica com o caso brasileiro – o
‘mulato’. Ele explica que a degeneração racial ocorre, porque os conquistadores, de algum
modo, se misturam com os povos conquistados, ‘poluindo’ a pureza da raça dos
conquistadores, de origem ariana94. A miscigenação era inevitável e levaria as raças
‘superiores’ a degraus cada vez mais baixos, física e intelectualmente. Era lamentável, mas
fundamental para a construção das civilizações.
Romero mantém a ideia da desigualdade das raças, contudo tenta construir uma
perspectiva otimista:
O povo brasileiro, como hoje se nos apresenta, se não constitui uma só raça
compacta e distinta, tem elementos para acentuar-se com força e tomar um
ascendente original nos tempos futuros. Talvez tenhamos ainda de representar na
América um grande destino cultur-histórico (sic) (2001, p. 101).
Ele admite a nossa condição, todavia, por meio da mestiçagem, que abrirá o
caminho para o desenvolvimento civilizatório brasileiro, se a raça branca prevalecer. Cândido
nos esclarece sobre essa adaptação feita por Romero:
Manteve a ideia de desigualdade mas, colocando-se de certo modo no ângulo de um
povo colonizado, deu realce implicitamente à elevação das raças “inferiores” (índio
e negro) por meio da mistura com o branco, que julgava nobilitante; e profetizou o
predomínio deste no aspecto das pessoas, num futuro remoto mas garantido de
estabilização [...] Aceitando, segundo Gobineau, que a maior ou menor qualidade
dos povos e grupos sociais depende da maior ou menor parcela de sangue ariano que
contêm, ele deu feição sistemática a um dos preconceitos defensivos mais correntes
do brasileiro médio, expresso na ideia de “melhorar a raça”, isto é, ficar mais claro
(CÂNDIDO, 1978. p. XXI).
Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas (1855) é o seu livro mais famoso e polêmico. É um dos
primeiros tratados sobre racismo e eugenia publicado na Europa a ter repercussão internacional, sobretudo, fora
do velho continente.
94
Obra consultada em: https://fr.wikisource.org/wiki/Essai_sur_l’inégalité_des_races_humaines
156
Dentro de dois ou três séculos, a fusão étnica estará talvez completa e o brasileiro
mestiço bem caracterizado (ROMERO, 2001. p. 102).
A sua fé cientificista era tão extrema que acreditava que, como animais ou
vegetais, a força da seleção natural, garantiria a prevalência da raça branca sobre as ditas
inferiores ‘indígena’ e ‘negra’. Na verdade, percebemos um desejo latente, não só de Romero,
mas de muitos intelectuais brasileiros de que o Brasil se tornasse uma Europa Tropical.
O historiador não deixa de ressaltar ideais racistas, uma vez que considera a
mistura racial uma depreciação, que pode ser ultrapassada com a vitória evolutiva da raça
mais forte, de origem europeia.
Silvio Rabelo, biografo do crítico, nos esclarece que
É possível que Sílvio Romero, de todos os críticos do Brasil, tivesse sido o de mais
extensa erudição – o que tivesse assimilado a mais vasta experiência de leitura. À
crítica literária não repugna uma preparação como a que ele chegou a possuir –
certamente maior que a de Araripe Jr. Júnior e a de José Veríssimo. Entretanto, toda
essa soma de conhecimentos teria de ser mal-utilizada à falta de qualidades
propriamente artísticas. Sempre que se apresentava a oportunidade para a discussão
de doutrina, de sistemas e escolas, ele se afirmaria com desembaraço e quase sempre
com lucidez. A estrutura do seu espírito foi coerentemente a mesma em todos os
momentos – um espírito geométrico que, por ausência de imaginação, se deixou
comprimir dentro do já experimentado, do já discutido – da experiência feita em
ideias e soluções que não se cansava de manipular com sensual volúpia. O que
dependesse, porém, de uma apreensão pela sensibilidade ou pela intuição escaparia
sempre à sua capacidade crítica. Por isso, Sílvio Romero cometeu em literatura os
mais graves erros de julgamento (1967 p. 94-5).
Para Rabelo, Romero era mais filósofo e sociólogo do que crítico literário, visto
que quase toda a primeira parte da História é dedicada a estudar os fatores da literatura
brasileira, que serão desenvolvidos, de modo mais incisivo no segundo volume. O sergipano
era mais atraído pela síntese do que pela análise.
Ao longo da obra, as explicações em torno da formação ou da ‘qualidade’ da
nossa literatura são direcionadas a fatores externos, pois para Romero, “o estado de riqueza
ou pauperismo de um povo influi diretamente na formação de sua literatura” (2001, p. 139). O
país, dominado politicamente e economicamente durante quase quatrocentos anos, produziu
poucas obras literárias de valor como os poetas baianos do século XVIII, como Gregório de
Matos e os poetas árcades mineiros, como Tomás Antônio Gonzaga, Claudio Manuel da
Costa.
Depois de uma vasta descrição do povo brasileiro e de sua cultura, incluída nesse
amplo conjunto, melancolicamente, nos diz que
A mais completa indiferença pelo que é produto intelectual brasileiro aqui reina [...]
A grande pobreza das classes populares, a falta de instrução e todos os abusos de
uma organização civil e social defeituosa, devem ser contados entre os empecilhos
ao desenvolvimento de nossa literatura. As academias são poucas e de criação
157
recente. Ainda hoje há muita dificuldade para a aquisição de cultura neste país; os
cursos, além de raros, são espalhados a grandes distâncias da mor parte dos estados.
Os livros são caros; a carreira das letras não traz vantagens; a vida intelectual não
oferece atrativos; não há editores nem leitores para obras nacionais; por isso quase
ninguém escreve, para não ser esmagado pela concorrência estranha. O meio social
não é estimulante; o abandono nos comprime; a vida brasileira é dura e prosaica.
Reina aí a monotonia e a submissão, ou esta seja dos agregados aos fazendeiros; dos
votantes aos chamados chefes de partido; dos deputados aos ministros; dos ministros
ao chefe do Estado; do chefe do Estado aos governos estrangeiros; ou seja do
comércio nacional aos capitalistas ingleses; dos lavradores ao comércio; do povo aos
políticos e dos políticos às conveniências; ou seja de certos jornalistas aos governos;
dos literatos aos maus livros franceses, sempre e sempre é a submissão... Ousados
ímpetos, tumultuosos arrancos de juvenilidade e força raras vezes têm saído do seio
do povo brasileiro, na esfera política e na literária. Poucos se me deparam no curso
de nossa história (ROMERO 2001. p. 141 e 143).
O historiador nos informa que o nosso meio não é propício para as atividades
intelectuais mais complexas, tais como a literatura. Percebemos o determinismo racial,
pontualmente em seu livro, contudo, no trecho, observamos também, por mais que ele
considere o problema relacionado à qualidade misturada da ‘raça brasileira’, que são várias as
adversidades, de ordem social e histórica que indicam os motivos de nossa desigualdade e
dependência cultural: a falta de escolas e universidades, que poderiam desenvolver
materialmente a literatura, propiciando o capital cultural, o desdém dos governantes, quer seja
do tempo da colonização, quer seja do país já independente.
Modernamente falando, o nosso país possui riqueza e diversidade cultural
extraordinária, mesmo com as desigualdades e desmandos políticos. O que Sílvio Romero
considera miserável no seu tempo é a falta de uma cultura formal, livresca, capaz de produzir
pensadores originais e artistas. Mas como produzir um pensamento original em uma nação
onde a maioria das pessoas não foi escolarizada? Onde não existem leitores, livros, editoras?
O historiador teve a sua formação no romantismo, mas a sua História se encerra
profundamente pessimista. Após essa obra de fôlego, a partir dos anos 1890, Sílvio Romero
dedicou-se à política, afastando-se do estudo sistemático da história literária. Ele se destacará
mesmo como um dos maiores polemistas do Brasil, defendendo causas literárias, filosóficas,
políticas e jurídicas. A polêmica literária de Sílvio será tratada em capítulo posterior.
Seus trabalhos subsequentes são: duas monografias, “Machado de Assis” (1897),
‘verdadeira catástrofe do ponto de vista crítico’ (Cândido, 1989. 108), no qual faz um ataque
pessoal ao autor de Dom Casmurro e “Martins Pena” (1897), Depois publica Novos Estudos
de Literatura Contemporânea (1898) Evolução da literatura brasileira e Evolução do lirismo
brasileiro (1905); Compêndio de literatura brasileira (1906), com João Ribeiro, de onde seu
filho Nelson retira os textos para a 3ª edição de História; Quadro sintético da evolução dos
gêneros na literatura brasileira (1909) e “Da crítica e sua exata definição”, na Revista
158
Americana (1909), obras que não fogem à conjuntura esboçada pela História da literatura
brasileira, mas de missão didática e menos controvertida.
Na apresentação da seleta de textos críticos do pensador sergipano, Antônio
Cândido constrói uma metáfora bastante significativa sobre a atuação intelectual dele:
A obra de Sílvio Romero dá uma certa ideia de turbilhão, no sentido próprio e no
figurado. Um movimento forte e agitado, que arrasta ideias e paixões,
destruindo pelo caminho; um movimento circular que gira incessantemente
sobre si mesmo e progride, parecendo permanecer (1978. p. I).
Se também evocarmos a ideia metafórica de Bourdieu (As regras da arte, 1996),
de campo literário e intelectual, análogo ao campo gravitacional, Romero seria um elétron
repleto de energia que colidia incessantemente com os outros elétrons da partícula do átomo.
Colisões que geravam mais energia. A sua própria natureza é colidir. Para os seus pares,
demonstrava ser contraditório, inquieto, apaixonado, generalista.
Cometeu exageros e equívocos, assim como diversos críticos e intelectuais de seu
tempo. Mas teve a impetuosidade de pensar soluções para interpretar a história cultural do
Brasil. Imaginemos que, nesse contexto, não seria fácil a vida de um intelectual que queria
exercer e fazer frutificar o pensamento crítico entre nós. O principal método de que se utilizou
para tentar animar, atiçar a inteligência entre os seus pares foi a polêmica. É quase impossível
dissociar a polêmica do seu método crítico. A sua pena ferina era a sua arma de combate. No
próximo capitulo dessa pesquisa, efetuaremos uma análise de seus textos polêmicos. Agora,
passaremos para o exame do outro pensador fundador de nossa crítica literária.
Tristão de Alencar Araripe Jr. Júnior nasceu no ano de 1848, em Fortaleza, e veio
a faleceu no Rio de Janeiro, em 1911. Jurista, crítico literário e ficcionista. Faz parte de uma
importante família cearense, sendo primo de José de Alencar. Fez a sua educação básica em
Fortaleza no Ateneu cearense. Forma em direito, pela Faculdade do Recife, em 1869,
contemporâneo de Tobias Barreto e Sílvio Romero. Em 1871, voltou ao Ceará, onde atuou
como Juiz Municipal, em Maranguape até 1875. Em 1880, mudou-se para o Rio de Janeiro
definitivamente, exercendo cargos públicos95 até o fim da vida.
95
Exerceu funções na Secretaria de Estado dos Negócios do Império, de Diretor Geral como Diretoria do
Interior do Ministério da Justiça e, a partir de 1903, de Consultor Geral da República, em cujo exercício
permaneceu até a morte, ocorridas a 29 de outubro de 1911.
159
Diferente de Sílvio Romero e José Veríssimo, não escreveu uma obra compacta
como uma história da literatura brasileira, todavia percebemos um direcionamento
metodológico historiográfico, sem radicalismos teóricos, eclético e preocupado com o
problema da identidade nacional, distinto dos dois outros pensadores mencionados, nos 47
anos em que publicou resenhas, artigos e ensaios na imprensa nacional.
No prefácio de seu ensaio biográfico sobre José de Alencar, ele nos fala de sua
formação filosófica, aludindo aos tempos da Academia Francesa, no Ceará:
A reconstituição de minhas ideias data de 1873. Foi neste ano que li pela primeira vez
as obras de Spencer, a História da civilização da Inglaterra, de Buckle, e os trabalhos
críticos de Taine. Residia eu então na província do Ceará, quando aí formou-se um
círculo de moços estudiosos, do qual constitui-se centro o falecido Raimundo da
Rocha Lima, discípulo de Comte (Obra crítica, vol. 1 p,133).
Ora, para desenvolver um estudo sobre crítica literária nesse contexto, Araripe Jr.
se deparou numa encruzilhada de ideias, sistemas, movimentos variados e divergentes.
Autores e filosofias contraditórias. Dos vários ‘ismos’, todavia, a ciência foi um imperativo da
160
Essa ideia da influência do meio e do clima será uma das bases de sua teoria da
obnubilação. Percebemos também uma oposição ao europeu racionalista e ao americano
dominado pelo sentimento e pela imaginação. Portanto, o europeu se modifica ao chegar no
Brasil. Ele explica que a nossa terra, repleta de viço e de abundancia natural, permitiria o
surgimento de uma arte original, pois
de impressões completamente estranhas, de uma natureza tão cheia de esplendores
como a da América, dessas florestas seculares, desses rios colossais, não deve por
certo surgir senão uma literatura original, melancólica ao mesmo tempo pasmosa,
impregnada desse poderosíssimo sentimento religioso, que por si só se expande toda
vez que o homem curva-se ante o Senhor, abismado pelos portentos da criação.
Poesia soberba! poesia filha do assombro e da admiração. Foi da contemplação dos
magníficos espetáculos do encantado Novo Mundo, que nasceram os Ercilla, os
Chateaubriand, os Cooper, os Durão e os Basílio da Gama (1978. P. 10).
O Brasil é repleto de riquezas naturais e culturais. Para Araripe Jr., não há porquê
os poetas buscarem inspiração ou temas na Europa, nos montes Pindo e Arcádia, da Grécia. É
preciso que o poeta brasileiro cante a sua terra, para que as outras nações enxerguem o seu
esplendor.
A estética romântica predominava, na época em que Araripe Jr. estava na Escola
do Recife, e como uma tradição literária, sofria ataque dos jovens bacharéis, repletos de
paixão, mas ávidos por novidades intelectuais. O cearense conscientizou-se de sua vocação
para os estudos literários e passou a ler e a estudar incessantemente. O seu principal veículo
de atuação foram os periódicos do Rio de Janeiro. É uma obra tão vasta que foi reunida em
cinco volumes, por Afrânio Coutinho, no final dos anos 1950, com apoio da Fundação Casa
de Rui Barbosa.
Do complexo trabalho crítico e historiográfico de Araripe Jr., um assunto percorre
de ponta à ponta os seus escritos: o da nacionalidade. No início da carreira, como no artigo
que examinamos páginas anteriores, o ponto de vista é o do nativismo romântico; em seguida,
na sua fase naturalista, examinará o problema da obra de arte como produto original do nosso
país, oriundo da influência do meio e do clima sobre os escritores, partindo de perspectivas
científicas e racionalistas. A questão do determinismo que gerou o embate entre o homem e o
meio é o motor de sua problematização do tema do nacionalismo.
A adequação da obra ao meio torna-se um predicado, em detrimento da
valorização das obras originais europeias, modelos literários. Uma terra nova requer uma obra
nova, uma linguagem nova: “Como traduzir em outra língua o calor paterno que se irradia
desta inovação [...] o fato da intraduzibilidade de uma estrofe não será acaso, a prova mais
evidente do seu caráter original, do seu nacionalismo?” (Obra Crítica. v. 5. p. 200). A
tentativa de construir uma linguagem nova, brasileira foi o grande empreendimento de José de
Alencar, alvo do primeiro perfil escrito por Araripe Jr..
No famoso prefácio do romance Sonhos d’ouro (“Benção paterna”), José de
Alencar, refletindo sobre a ficção romântica brasileira e sobre sua própria produção nos alerta
que “O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a jabuticaba, pode falar uma língua com
igual pronúncia e o mesmo espírito do povo que sorve o figo, a pera, o damasco e a
nêspera”?96 Alencar se opõe à simples importação de modelos literários europeus, estranhos
aos nossos costumes e às nossas regiões.
96
ALENCAR, José de. Benção paterna. In Sonhos d’ouro. São Paulo: Ática, 1981.
163
Além do destaque ao ‘meio’, Araripe Jr. também deu atenção aos processos
genéticos da obra literária, ou seja, à escrita de biografias literárias, comuns a essa época.
Com o planejamento de efetuar um panorama da literatura brasileira, o crítico põe em prática
o projeto dos "Perfis literários". Os mais ambiciosos perfis foram o de José de Alencar e o de
Gregório de Matos. Escreveu sobre outros autores, mas não foi com a mesma complexidade e
fôlego quanto os já mencionados. Os outros trabalhos foram sobre Tomás Antônio Gonzaga,
Raul Pompéia, Machado de Assis, Aluísio Azevedo, Coelho Neto, Juvenal Galeno, José do
Patrocínio, Olavo Bilac, Afrânio Peixoto, José de Anchieta, Rui Barbosa, Euclides da Cunha,
Cruz e Sousa (COLARES, 1980. P. XIII). Esses estudos eram muito bem contextualizados,
demonstrando a preocupação em situar os escritores no tempo e no ambiente em que viveram
e produziram.
Não escreveu um livro de História propriamente dita, no entanto observamos o
seu projeto historiográfico nos perfis que escreveu. Cada perfil funciona como esboço de uma
metodologia que poderia ser aplicada a um trabalho de maior fôlego. Podemos exemplificar
com o ensaio “Literatura brasileira”, publicado em 1887, no jornal A Semana.
É interessante acentuar que antes de iniciar os seus ensaios mais longos, Araripe
Jr. elabora um sumário com os temas e os métodos tratados no texto.
Ponto de vista para o estudo da história literária do Brasil. - 1. Os três fatores e as
exagerações parciais de Taine, Otto Muller e Nisard. - 2. Todos nós exageramos o
momento. Ação e razão. - 3. O verdadeiro método. A loba do sofisma. Material de
estudo. Classificação. Questões abertas. - 4. O século XVI. Necessidade de limitar o
assunto. - 5. O meio. Leis físicas e mentais, segundo H. T. Buckle. Sua aplicação ao
Brasil. - Obnubilação do colono (1958, Vol. I, p. 491).
O índice nos revela a epistemologia organizada por ele para efetuar o estudo do
literário. Percebemos o método cientificista, na procura de leis que possam explicar a origem
do fenômeno literário. Ele cita autores, tais como Taine e Buckle e, como aplicar as teorias
deles no contexto brasileiro. No final, destaca o fenômeno da obnubilação97.
Esse fenômeno é uma “forma de entorpecimento mental, em que o indivíduo se
sente como que envolvido em uma nuvem, não associa bem as ideias e percebe mal os
objetos; pode surgir nos distúrbios da circulação cerebral e preceder a perda da
consciência”98. É um problema relacionado à consciência psíquica, no qual o individuo
apresenta um estado letárgico, com pouca ou nenhuma reação a estímulos externos, como luz,
sons, temperatura. O estado de obnubilação causa deterioração da consciência, tornando o
97
Etimologia: Do Latim. Obnubilar, “cobrir com nuvens ou névoa”, de ob-, “à frente”, mais nubis, “nuvem,
nevoeiro”.
98
Consultado em: http://www.dicionáriomédico.com/obnubila%C3%A7%C3%A3o.html
Outra fonte pesquisada: http://www.psiquiatriageral.com.br/glossario/o.htm
164
examinar, tudo indagar sentir todos os fenômenos. Pode, daí, ter decorrido exagero,
tolerância, imperfeição mesmo, em definir ou exprimir (1974. p. 27).
99
Ibsen foi publicado pela Livraria Chardron, de Lello e Irmãos Editores, do Porto, em Portugal, em 1911.
166
Não o renego, não só por esse motivo, mas também porque vejo que, sendo o perfil o
primeiro trabalho sobre um autor nacional, que se escreveu no Brasil, aplicando os
métodos de H. Taine, antecipava alguns processos depois postos em prática pelo
malogrado E. Hennequin, discípulo do grande crítico francês e, ao mesmo tempo,
modificador, no que ele chamava estopsicologia, dos excessos doutrinais do autor da
História da Literatura Inglesa (1958. Vol I. p.132).
No trecho, ele nos fala que o método do crítico francês era bastante divulgado nos
meios intelectuais brasileiros, contudo, em seus próprios trabalhos de análise literária comenta
que alguns de seus processos, coincidiam com os de Hennequin. Afirma que o jovem crítico
efetuou modificações no método tainiano, desenvolvendo a chamada estopsicologia. O termo
é um neologismo que indica a aplicação da psicologia, sob o ponto de vista estético. A
fórmula de Hennequin, “estética + psicologia”, foi usada por Araripe Jr. no perfil de José de
Alencar e no ensaio sobre a obra O ateneu, de Raul Pompeia.
É interesse citar a opinião de Sílvio Romero sobre Hennequin em seu trabalho
“Da crítica e sua exata definição”, incluída na 3ª edição de História da literatura brasileira.
Esse jovem, cujo merecimento era grande, mas não deve ser exagerado, como é
hábito em certos círculos, procurou sistematicamente colocar-se em pontos de vista
opostos ao do autor da História da Literatura Inglesa. Poderia, por isto, ser chamado
um Taine retourné. Este procurava tornar na crítica, quero dizer na estética, salientes
os fatores mesológicos, etnográficos e fisiológicos; o autor d'A Crítica Científica
procura batê-lo nestes pontos e substituir no estudo dos autores aqueles elementos
explicativos por considerações puramente psicológicas, sociais e estéticas. Taine
procurava mostrar a gênese, a formação do gênio dos escritores; Hennequin tentava
de preferência mostrar-lhes a influência, procurando ver quem os lia, quem os
admirava. Era o tainismo às avessas (1960, p.331).
Romero não concorda com essa mudança de perspectiva realizada pelo discípulo
de Taine. O sergipano considera que os três fatores determinantes são os responsáveis para
explicar as obras literárias, o que ocasionou um avanço extraordinário na ciência literária, e
que Hennequin envereda no erro, ao considerar os aspectos psicológicos e estéticos do autor.
Sílvio defendia que a literatura não era apenas os ‘belos textos’, eram todos os registros
escritos de um povo.
Cairo considera que Hennequin não é um Taine reverso (1996. p. 41), mas que o
jovem crítico o revisitou. Araripe Jr. compreendeu que era preciso lê-lo atentamente
Para que o método do mestre, dizia a mim mesmo, não se torne inútil e banal, é
indispensável que haja sinceridade; que se não abuse do instrumento de
demonstração; que finalmente à aplicação desse instrumento, que é tão exato como
pode ser exato o teodolito, preceda um critério filosófico, com quem afirma uma
ontologia positiva e uma ética clara e de utilidade prática. Ora, sob esses dois pontos
de vista, o autor da História da Literatura Inglesa estava muito longe de interessar-
me. As suas conhecidas tendências pessimistas, o seu determinismo seco e a sua
falta de lirismo, sem equivalentes de ordem moral e prática na vida humana,
contrariavam a cada instante as tendências opostas, que constituem o fundo de
minha natureza. Daí originou-se para mim um combate contínuo no sentido de
descobrir outro ponto de apoio, sem contudo perder a riqueza dos processos
tainianos (1970, vol. 5. p.33-4).
167
Percebemos nessa definição que a crítica literária é juízo de valor, é notícia sobre
a obra. O caráter interpretativo e sistemático será realizado pela crítica científica, onde os
autores
procuram outro objetivo, tendem para deduzirem dos caracteres particulares da obra
alguns princípios de estética, ou a existência de determinado mecanismo cerebral no
autor, ou ainda uma condição definida do conjunto social em que se formou,
explicando por leis orgânicas ou históricas as emoções que suscita e as ideias que
exprime (idem, 1910, p. 6).
Admitido, pois, que um artista não depende essencialmente do seu meio, da sua
raça, do seu país e que, por essas causas, não podemos assimilá-lo aos seus
compatriotas e aos seus contemporâneos ou, por outros termos, que não há causa
comum entre estes e aquele, devemos fazer um rodeio para obtermos da estética
dados sociológicos. Devemos dirigirmo-nos não ao artista, mas ao seu produto;
devemos ter em consideração não os que o rodeiam, mas os admiradores das suas
obras. Toda a obra de arte, se por um extremo toca no homem que a criou, toca pelo
outro no grupo de homens que emociona (id. ibid, p.85).
O crítico enuncia uma ousadia para o contexto intelectual da época: o artista não
está necessariamente preso aos fatores deterministas para criar a sua obra literária. Como
sujeito sensível à beleza estética, o escritor é tocado por outros livros, outras obras de arte.
Isso molda a sua imaginação e sua sensibilidade. Para Taine, o foco é o artista (o homem) e
tenta buscar as causas que esculpiram sua personalidade. Hennequin especifica a obra como
objeto estético que desperta as emoções do leitor.
Para o estudioso francês, a crítica científica da literatura seria um dispositivo para
servir de suplemento útil à inteligência da época, segundo Velloso Cairo, ela
visava muito mais auxiliar as demais ciências do que conhecer o objeto de seu
estudo: a literatura. Aos olhos de hoje, esta seria, aparentemente, uma das falhas do
cientificismo presente também nos escritos de Araripe Jr. Júnior. Ao estudar a obra
literária, buscava-se desvendá-la através do conhecimento da personalidade do autor
e da sociedade que a produziu e a consumiu. Esse acabava sendo, talvez, consciente
ou inconscientemente, o objetivo primeiro da crítica (1996. p. 46).
Mesmo no entrechoque com o determinismo cientificista, Araripe Jr. Júnior, a
partir da leitura de Hennequin, estava buscando uma especificidade da crítica literária. A
crítica literária, no contexto finissecular, estava muito imbricada com a ciência, os críticos
estavam perdendo o foco, mais preocupados com o homem, ao invés do objeto literário. A
busca pela especificidade encontrará um grau maior em José Veríssimo.
Nas afinidades de leitura com Taine, Spencer, Ruskin e Hennequin, Araripe Jr.
tentava aos poucos construir o seu próprio método. Um importante momento da aplicação do
método estético e psicológico será a leitura da obra de Raul Pompeia.
Os ensaios sobre o autor do Ateneu são publicados no Rio, enquanto Araripe Jr.
era um crítico militante que se ocupava das tendências literárias em voga na época: o realismo
e o naturalismo. Os tempos do nativismo, cujo maior ícone foi Alencar passaram. A maioria
dos romancistas está interessada em uma literatura de análise social e psicológica. Enquanto
“Araripe Jr. Jr. estava atento à mudança, que é a presença racial da sua geração. É com
extremo interesse que acompanha as manifestações do naturalismo brasileiro, ora rastreando
suas fontes europeias, ora descobrindo aspectos peculiares ao nosso meio” (BOSI, 1978. p.
112).
169
(A) – A obra de arte é uma máquina de emoções. (B) – Há uma perspectiva interior
que todo artista procura reproduzir no espírito de outrem. (C) – Essa reprodução não
se pode fazer, na arte escrita ou falada, senão pela ordem direta do discurso; daí uma
sintaxe superorgânica, alma de todo o livro ou peça literária. (D) – Os órgãos
capitais dessa sintaxe são o acento periodal e a elipse interior; é por meio deles que
conseguem exercer a sua ação especial os temperamentos, que mais geralmente se
dividem em subjetivistas e objetivistas. (E)– O estilo é a resultante, em parte
imprevista, do conflito entre o temperamento de cada indivíduo e o mecanismo das
formas literárias já criadas por um povo, por um grupo ou por uma escola. (F) – Não
é impossível reduzir todos estes princípios à lei que os gramáticos denominam de
menor esforço, e que Spencer, na mecânica mental, designa sob o nome de
economia de funções (1960, p. 125).
é um aspecto do temperamento do autor. É uma força que é transmitida por meio da obra
literária. O estilo tropical nasce de uma fusão dos aspectos psicológicos e do determinismo
geoclimático.
Essa visão original do estilo será fundamental para o estudo do naturalismo
brasileiro. Araripe Jr. foi o crítico que mais escreveu sobre o naturalismo estrangeiro e
brasileiro. Não escrevia simples resenhas. Eram ensaios longos, publicados ao longo de vários
números dos jornais. No jornal A semana, publicou dois textos: “Germinal” (1885) e
“Naturalismo e pessimismo” (1887). O ano de 1888 foi o auge de sua interpretação do
naturalismo. O cenário desse labor foi o periódico A semana. Em certos casos, eram blocos de
ensaios: “A Terra, de Emílio Zola”; “O Homem, de Aluízio de Azevedo”; “Influencia do
naturalismo sobre as formas do romance. – Atrofia dos elementos supérfluos. O maravilhoso
moderno. – Tendências de E. Zola”; “O romance experimental: aquisições de formas. Do
Assommoir. A terra. Evolução transversal do caráter de Zola”; “Aluízio Azevedo o romance
no Brasil”; “Estilo tropical: formula do naturalismo brasileiro” e “O romance no Brasil -
invasão do naturalismo”.
No artigo “Casa de Pensão – O satírico Juvenal e o romance realista – Carta a
Aluísio Azevedo”, publicada em Gazeta de Notícias, em 31 de maio de 1884, Araripe Jr.
conversa com o escritor maranhense sobre a repercussão dos romances de Zola na França,
principalmente Germinal, a novidade da época. Ele admira o talento do francês, mas
considera, devido ao seu pessimismo, improvável que se transpusesse a técnica do romance
experimental abaixo da linha do equador.
O primeiro ponto que ataco é a adaptação do Zolismo no Brasil. Já em um artigo
dirigido ao sr. T. Braga declarei que achava a concepção do romancista francês
impossível para o Brasil, - país novo, apenas lavrado por vícios de transição e,
portanto, muito diferente da França, onde o parti pris bonapartista e o pessimismo
zolaico acha todo o cabimento.O autor do Assommoir é um mestre pernicioso,
quanto tem uma garra adunca, horrível, medonha, que fisga, prende e não se retrai
nunca. Zola, ao meu ver, é uma roda exclusiva da engrenagem parisiense. Tirai-o do
grande meio que o produziu, que concentrou nele todos os miasmas de uma
civilização putrefata; tirai-o desse meio, que ele hoje domina, por sua vez, e sobre o
qual reage impiedosamente, e teremos o tóxico inaplicável, ou o vesicatório aderido
a um corpo são, e por isso impróprio para receber uma semelhante irritação.
Leiamos, pois, o notável romancista; - mas com as cautelas necessárias (sic) (1958,
p. 379).
escritores, que têm o hábito de copiar as modas literárias europeias, não poderão fazê-lo,
segundo Araripe Jr., devido à força do nosso clima.
O crítico cearense tem a ousadia de afirmar e defender que o naturalismo
produzido no Brasil é algo novo, quiçá superior ao de Zola. Aluísio de Azevedo demonstra o
talento necessário para construir uma arte nova, porque
Em um país cujo clima entorpecedor e voluptuoso até o momento atual, só tem sido
favorecido um lirismo alto e incomparável, na frase de um desafeto orgânico; em um
país aonde a mocidade é constantemente flagelada pelas congestões hepáticas, aonde
não se consegue trabalhar senão por intermitências, no meio de langores
intercadentes, é óbvio que o romance realista, o romance de observação, de notação
contínua e de estudo profundo não pode ser desempenhado senão por um escritor de
pulso rijo, de natureza equilibrada, pujante e completamente isenta de blue devils
(1978, p. 119)
Percebemos que Araripe Jr. considerava que não era possível copiar o naturalismo
de Zola no Brasil e a solução proposta está no ensaio “Estilo tropical: a fórmula do
naturalismo brasileiro”, em que demonstra as características da tropicalidade brasileira para o
desenvolvimento de uma ficção nova:
O tropical não pode ser correto. A correção é o fruto da paciência e dos países frios;
nos países quentes, a atenção é intermitente. Aqui, aonde os frutos amadurecem em
horas, aonde a mulher rebenta em prantos histéricos aos 10 anos, aonde a vegetação
cresce e salta à vista, aonde a vida é uma orgia de viço, aonde tudo é extremoso, e
extremados os fenômenos; aqui, aonde o homem sensualiza-se até com o contato do ar
e o genesismo terrestre assume proporções enormes, vibrando eletricidade, que em
certas ocasiões parece envolver toda a região circundante em um amplexo único,
fulminante, - compreende-se que fora de todas as coisas a mais irrisória por peias à
expressão nativa e regular o ritmo da palavra pelo diapasão estreito da retórica
civilizada, mas muito menos expansiva. O estilo, nesta terra, é como o sumo da pinha,
que, quando viça, lasca, deforma-se, e, pelas fendas irregulares, poreja o mel
dulcísssimo, que as aves vêm beijar (...). É esse estilo desprezado pelos rigoristas que
justamente me apraz encontrar na mocidade que agora surge no Brasil; e se há um
escritor capaz de incorporá-lo a uma literatura nascente, como é a nossa, imprimindo-
lhe direção salutar, isocrônica e frutificante, esse escritor é o autor d’O Mulato, em
cujas páginas já encontram-se audácias dignas dos melhores, e que, nos capítulos
inéditos d’O Cortiço, vai derramando todo o luxuriante tropicalismo desta América do
Sul (1978, p. 126).
conseguiu sobrepujar. O que diferencia a visão dele, por exemplo, da de Sílvio Romero, é o
seu otimismo.
O traço que caracteriza o estilo do homem brasileiro é a incorreção, que na
literatura, será transposto para a obra. No caso especifico do naturalismo de Zola, quando essa
estética emigrou para o Brasil, não foi recebida como na França. O naturalismo passou por
uma transformação radical. No nosso solo, passou pelo fenômeno da obnubilação brasílica e
tornou-se outra coisa. Ao falar da influência do clima, Araripe Jr. justifica a originalidade de
Aluísio de Azevedo, pois este não copiou o autor de Germinal. Zola na obra O romance
experimental (1880), estabeleceu regras para desenvolver uma ficção naturalista, apoiado na
ideia do romance como um espaço de experimentação das patologias contemporâneas do
homem da sociedade burguesa. Aluísio leu os livros de Zola, compreendendo suas ideias e as
adaptou às nossas circunstâncias. O molde francês não se adequaria à nossa realidade:
Emigrando para o Brasil, o naturalismo não podia deixar de passar por uma
modificação profunda. Zola, neste clima, diante desta natureza, teria de quebrar
muitos dos seus aparelhos para adaptar-se ao sentimento real, aqui. O fato é intuitivo,
e eu direi porquê. A concepção do mestre, os seus métodos de expectação, os seus
processos experimentalistas, tiveram em vista uma sociedade decadente, de natural
tristonha, que decresce, míngua dentro das próprias riquezas, perante sua antiguidade,
cansada, exausta, senão condenada a perecer. No Brasil, o espetáculo seria muito
outro, - o de uma sociedade que nasce, que cresce, que se aparelha, como a criança,
para a luta. Ora, nada mais natural do que uma inversão nos instrumentos. Um cadáver
não se observa do mesmo modo que um ser que ofega de vigor. Aluísio, constituindo-
se o corifeu do naturalismo em sua terra, não cometeu o erro de copiá-lo servilmente;
ele compenetrou-se, primeiro, do espírito da revolução operada pelo mestre; mas,
organicamente diferente de Zola, impelido pela força de sua índole, talvez mais do
que ele pensa, enveredou pela trilha única que o há de levar ao acampamento
triunfante.(...) A fórmula que melhor nos cabe para exprimir a nova fase literária não
pode ser senão esta: - O naturalismo brasileiro é a luta entre o cientificismo
desalentado do europeu e o lirismo nativo do americano pujante de vida, de amor, de
sensualidade. É da limitação apenas das tendências dessa mestiçagem, reconhecida
por todos que têm estudado o problema do nosso nacionalismo; é dessa, e não de outra
limitação, que tiraremos toda a nossa força, toda a nossa segurança, e riquezas
literárias (1978. p.126-128).
Mais uma vez, Araripe Jr. transmite uma ideia de tensão entre um cientificismo
frio do europeu e o lirismo quente do americano, repleto de vida, de energia. Nesse sentido, o
estilo tropical serve como característica nativista, aspecto definidor da nossa literatura. Do
ponto de vista eurocêntrico, o que era limitação, transformou-se em força capaz de gerar
novos modos de criação literária. Aluísio de Azevedo tropicalizou o naturalismo de Zola,
dotando os seus personagens de traços típicos brasileiros, tais como os do romance O cortiço
(1890).
No ensaio “O Romance no Brasil. Invasão do Naturalismo” (1888) Araripe Jr.,
que já havia efetuado a comparação entre os meios brasileiros e francês, explica-nos que cada
175
Até o ano de sua morte (1911), o crítico cearense continuou a sua labuta, lendo e
estudando, com novos projetos de perfis literários. Métodico e eclético, foi ousado ao se
176
100
O trabalho A tradição do impasse: linguagem da crítica e crítica da linguagem, publicado em 1974,
concebido, inicialmente como pesquisa de doutorado, é até hoje um dos mais completos trabalhos sobre a
trajetória crítica de José Veríssimo. A especificidade da pesquisa de Barbosa foi a sua ampla arqueologia
documental, ao levantar artigos e ensaios dispersos em diversos periódicos no Rio de Janeiro e no Pará,
documentos pessoais e de instituições. Em seguida, efetuou uma rigorosa ordenação, não apenas cronológica, a
fim de extrair de Veríssimo, uma biografia intelectual, ao contemplar à sua trajetória e suas principais matrizes
teóricas. Assim, a pesquisa remontou a trajetória do crítico, dialogando com as séries literárias e intelectuais e
analisando a dinâmica da construção de seus textos críticos e de seu projeto literário para a interpretação da
cultura brasileira.
178
campo literário da Capital, como educador, como estudioso de etnologia e história, como
crítico regular de periódicos e editor da Revista Brasileira; a terceira fase, segundo Barbosa, é
o momento de maturidade, na qual Veríssimo luta contra os impasses teóricos, advindos da
ironia e do ceticismo, frutos da proximidade intelectual com Machado de Assis.
Ele tenta conciliar o estudo etnológico e cientificista, combinado com um
propósito nacionalista e o enfoque estético, pautado no impressionismo francês. Barbosa o
interpreta com a figura de “Janus de dupla face” (1974, p. 157), devido a esse impasse entre a
leitura científica e mesológica da literatura, tradição construída durante o século XIX e uma
visão artística e retórica, que, de certa maneira, traz à tona pressupostos estéticos do século
XVIII. Nessa fase, é publicada a obra História da Literatura brasileira, em 1916, no mesmo
ano de sua morte.
Na sua maturidade no Rio de Janeiro, estava no centro dos “impasses”, pois entre
os escritores e intelectuais havia dissidências em torno dos métodos de abordagem do texto
literário e, sobretudo, sobre o próprio conceito de literatura. Nos seus textos, Veríssimo reflete
a “dualidade que a sustenta basicamente: a aspiração por uma especificidade da crítica
literária e o intuito de uma participação, enquanto homem de letras na vida nacional”
(Barbosa, 1977, p. XXXII).
Ainda no Pará, Veríssimo participa, por meio de sua contribuição intelectual, das
mudanças na sociedade de sua província. Nos periódicos paraenses, tentava informar ao
público leitor sobre as modificações do pensamento brasileiro, suas causas e repercussões:
Em 1873 – se é possível assentar nos estreitos limites de um ano o inicio de um
movimento da ordem daquele de que trato – em 1873, uma evolução salutar, e
inesperada porque seria difícil encontrar-lhe antecedentes no país, dá-se na
mentalidade brasileira. Procurando as causas geradoras deste fenômeno – que não
podia deixar de as ter – acho-as todas em fatos estranhos por assim dizer à vida
intelectual: a guerra do Paraguai, o movimento republicano de 1870, a guerra
franco-prussiana e por fim a questão impropriamente chamada religiosa, que, em
verdade, não passou de uma questão sem nenhum alcance filosófico, entre as
sacristias e as lojas maçônicas. Todos estes movimentos, despertando cada um por
seu modo a consciência nacional, chamaram-na à realidade dos grandes interesses
que se debatiam fora daqui no mundo moral e puseram-se em comunidade de
sentimentos consigo mesmo (1977, p. 237).
embates entre a Igreja Católica e os maçons, envolviam, no plano ideológico, o conflito entre
o novo e o antigo, entre a tradição e o moderno.
Políticos, escritores, professores, enfim, a camada letrada da população se
inspirava nas ideias acerca do progresso, da razão e da ciência para tentar promover
primeiramente revoluções ‘espirituais’, ou seja, modificar e aperfeiçoar a mentalidade da
maioria das pessoas para modernizar o Brasil. O aperfeiçoamento da sociedade brasileira só
ocorreria quando despertasse “cada um por seu modo a consciência nacional” (Veríssimo.
1998. p. 125). Contudo, os escritores são os primeiros que deveriam despertar a consciência
nacional.
A primeira fase da produção crítica de José Veríssimo está situada em meio à
discussão da nacionalidade, no embate das renovações teóricas-metodológicas, provocadas
pelas ‘ideias modernas’ e por temáticas oriundas do romantismo, como ‘nação’ e ‘povo’, que
ainda permaneciam no discurso crítico de intelectuais e escritores brasileiros.
Em seus primeiros escritos, a nacionalidade era o tema preponderante,
principalmente a discussão sobre a origem e constituição do povo brasileiro. Em 1877, ele
escreve o artigo “A literatura brasileira, sua formação e destino”, que, no ano seguinte será
publicado em Primeiras páginas101 (1878) e, posteriormente, em Estudos brasileiros (1889),
cuja perspectiva está aliada a uma visão historiográfica:
O Brasil precisa romper as faixas de criança que ligam-no ainda à Europa. Não basta
afirmar que somos um povo independente com a carta de alforria de 29 de agosto de
1825 na mão. É preciso mais. Cumpre que as nossas letras, a nossa ciência, as
nossas ideias, os nossos costumes tenham uma feição própria [...] Não é
simplesmente autonomia política e separação geográfica que fazem uma
nacionalidade; são as suas tradições, a sua língua e o seu território em primeiro lugar
e depois as suas crenças, as suas ideias, os seus costumes, as suas leis, etc.
(VERÍSSIMO, 1977, p 155).
101
O livro é formado pelos “Quadros paraenses”, conjunto de seis curtas narrativas sobre os hábitos, os tipos e
formas de vida na Amazônia, que depois foram anexados à obra Cenas da vida Amazônica (1886), e pelos
“Estudos”, compreendendo ensaios sobre etnografia e literatura.
180
102
O Tratado do Rio de Janeiro foi assinado na respectiva cidade, no momento, capital do império, com a
mediação da Rainha Vitória, regente do Reino Unido da Grã-Bretanha. O tratado estabeleceu a amizade e a
aliança entre El-Rei dom João VI e seu filho Dom Pedro I. O documento tinha onze artigos, e garantia a
soberania do Brasil como império independente de Portugal. Percebemos que a Coroa Britânica não mediou o
tratado por altruísmo, mas por interesses econômicos e políticos, visto que o Brasil, aos poucos, tornou-se um
grande cliente da indústria e dos bancos ingleses.
181
suas origens, suas qualidades e suas transformações. A pauta da mestiçagem era comum entre
os intelectuais da geração de 70. Para entender a literatura, primeiro devia-se recorrer ao
estudo do cruzamento racial, observando os tipos raciais negros vindos da escravidão e a
exploração da mão de obra indígena. Esses critérios foram levados em conta por Martius e
Sílvio Romero.
Em trecho final do artigo, ele esboça a sua metodologia crítica:
Para se compreender perfeitamente o espirito de um povo é necessário estudar os
diferentes elementos que o compõem. É sobre este critério que assentamos o nosso
modo de pensar de que é do estudo bem feito dos elementos étnicos e históricos de
que se compõe o Brasil, na compreensão perfeita do nosso estado atual, de nossa
índole, de nossas crenças, de nossos costumes e aspirações que poderá sair uma
literatura que se possa chamar conscientemente brasileira, à qual ficará reservado o
glorioso destino de fazer entrar este país, pela forte reação de que falamos atrás, n’
uma nova via de verdadeira civilização e verdadeiro progresso (1977, p. 162).
103
O livro é composto por artigos publicados anteriormente em dois jornais distintos: Jornal do Commercio e
Correio da Manhã, entre 1899 e 1903. Alguns dos artigos: “Que é Literatura?”, “O futuro da poesia”, “A
182
pelo fator etnológico. Buscava, cada vez mais, observar a obra literária sob o ponto de vista da
crítica literária.
Com passar dos anos, vivendo em um meio político e cultural bastante
conturbado, Veríssimo vai burilando a sua concepção de literatura. No artigo, “O que é
literatura?”, que abre o livro homônimo, o crítico nos fala da complexidade de tal missão e
que
a muitos parecerá impertinente a pergunta: quem há aí que não suponha saber o que
é literatura? Esta inocente presunção (e no gênero todos a temos, a respeito disto ou
daquilo), talvez se desvanecesse em face da simples necessidade de uma
classificação de livros por matérias, de uma separação de obras nas duas grandes
espécies da produção espiritual humana: ciência e arte. Veriam que a questão não é
ociosa, quando, trabalhando de boa-fé, hesitassem, parassem, sem saber, em casos
numerosos, que solução dar-lhe. Pensariam então que não fora porventura inútil
examiná-la. Façamo-lo, pois, que algum de nós se terá forçosamente visto no
embaraço figurado (2001, p. 23).
Como já dissemos em parágrafos anteriores, ele vai se afastando de uma
concepção nacionalista e etnográfica, influência da Geração de 70. Percebemos que ele
discute a delimitação das obras humanas em científicas e artísticas. Para os intelectuais da
Geração de 70, como Sílvio Romero e outros, os critérios científicos serviram de base para as
analises literárias. Até a classificação de crítica moderna vinha desse sentido. Veríssimo busca
uma especificidade do fenômeno literário, oriundo de inúmeras influenciam de leituras,
francesas, inglesas e alemãs.
Quando ele prioriza os elementos estéticos da obra, quer seja ela lírica ou
ficcional, à personalidade do escritor, ele se aproxima de uma crítica de Sainte-Beuve. No
entanto, não deixa de lado o meio, as condições materiais, a história dos movimentos
literários. O artigo é uma síntese de sua postura crítica, naquele momento, ao tentar definir
literatura:
Várias são as acepções do termo literatura: conjunto da produção intelectual humana
escrita; conjunto de obras especialmente literárias; conjunto (e este sentido, creio,
nos veio da Alemanha) de obras sobre um dado assunto, ao que chamamos mais
vernacularmente bibliografia de um assunto ou matéria; boas letras; e, além de
outros derivados secundários, um ramo especial daquela produção, uma variedade
da Arte, a arte literária. É principalmente neste último sentido que a tomamos aqui.
E ainda assim restringida a sua compreensão, mais de uma dificuldade se antolha ao
que a precisa aplicar numa classificação exata (2001, p. 23-4).
crítica literária”, “Questões Literárias”, “A Literatura Provinciana”, “Rio Branco”, “Sobre alguns conceitos
do Sr. Sílvio Romero” e “Post Scriptum”.
183
Sobre o naturalismo, a moda literária que fazia sucesso no Rio de Janeiro, sob um
ponto de vista estético, não se demonstra favorável. De acordo com Ventura,
Veríssimo rompeu, em parte, com o naturalismo a partir da segunda série dos
Estudos brasileiros, de 1894. Adotou uma linguagem impressionista e preocupações
marcadas pela estética e retórica, que o afastaram das concepções críticas de
Hipollyte Taine e Ferdinande Brunetière. Incorporou a crítica impressionista de
Anatole France e Jules Lemaître, como forma de oposição ao cientificismo
naturalismo e substitui disciplinas, como a biologia, fisiologia e sociologia, pela
psicologia como instrumento de investigação. Desse modo, procurou superar as
limitações da crítica naturalista da ‘geração’ de 1870. Prova dessa ruptura é seu
ensaio sobre Quincas Borba, de Machado de Assis, no qual questionou o critério
nacionalista e propôs o enfoque da realização literária ou estética das obras (1991.
p.115).
arte nova e a antiga, mas entre métodos novos e antigos. O paradoxo é explicado adiante:
“sim, como um Janus de dupla face: uma voltada para os desígnios de nossas primeiras buscas
de auto-identificação (critérios de nacionalidade/substratos etnográficos) e a outra proposta
pelas modificações da sociedade (aspiração da especificidade crítica/começo de um novo
modelo de reflexão)” (1974, p.157).
A solução para esse impasse seria a difícil instauração de um discurso crítico que
assimilasse as duas faces, tentando especificar a linguagem do fenômeno literário para o
exercício da crítica. Contudo, a concepção estética não abandona os critérios históricos e
culturais, pois, segundo o crítico paraense uma literatura “não é só uma coleção de obras
primas. É alguma coisa mais ou menos que isso. Expressão social por excelência, para ser
representativa e completa” (1977, p. 29).
Esse trecho se encontra no ensaio “O primeiro poeta brasileiro”, enfeixado na 4ª
serie dos Estudos literários. O que trata de Bento Teixeira, considerado o primeiro autor
literário brasileiro. Para Veríssimo, o estudo das atividades literárias de um povo deve seguir
os rastros de sua origem, considerando a tradição espiritual. Para a História da literatura,
documentos escritos, frutos de um pensamento são dados históricos, são índices para entender
o fenômeno literário. A crítica, ao observar a psicologia, os costumes, tais como a religião e a
moral, o estágio inicial de um povo e o seu desenvolvimento, poderia verificar o fenômeno
literário como uma evolução dessa sociedade, ou seja, a expressão estética como um
componente mais refinado do progresso civilizatório.
Contudo, nessa perspectiva evolucionista, o critério de originalidade enxerga o
predecessor como fonte qualificativa de autenticidade, pois o olhar do intelectual era voltado
para a Europa, que era uma espécie de ‘espelho do mundo’, principalmente dos países recém-
independentes ou colonizados. A Europa, como um continente antigo e berço das civilizações
colonizadoras, é a fonte dos temas, das técnicas, dos gêneros, das teorias. Os países novos,
frutos da colonização, como no caso brasileiro, para os intelectuais de base eurocêntrica, eram
vistos como prolongamento de literaturas feitas, um ramo de manifestações literárias em
pleno viço (1977, 3ª Série. p. 30). As manifestações literárias brasileiras, portanto, são frutos
dessa influência. Em relação à literatura europeia, possuíam um grau estético menor, visto que
“não têm sociologicamente a mesma importância que as primeiras produções de uma
literatura que começa originalmente com um povo original” (1977, 3ª Série. p. 30).
Em um comentário pessimista, Veríssimo nos fala de nosso lugar na literatura
universal e aponta algumas soluções para o nosso progresso:
186
É que falta nessa hibridação a completa homogeneidade mental, que uma longa
evolução literária constituiu no povo principal e gerador. Uma grande literatura,
como uma grande arte, supõe esse lento e extenso desenvolvimento das capacidades
literárias e estéticas, exercitadas em obras numerosas. Não é possível, senão como
uma presunção da vaidade nacional, supor um povo, uma nação nova, como são as
americanas, com uma literatura equivalente às dos povos donde procedem. Um
Shakespeare, um Cervantes, um Camões são impossíveis, e o serão por séculos, na
América. E não hesito em estender essa apreciação a todas as ordens de atividade
mental (1977. 3ª série, p. 30).
Não apenas os escritores que escrevem com intenção literária, mas a qualidade
estética é um critério fundamental, por que os ‘melhores’ (num sentido evolucionista)
permanecerão na tradição literária brasileira. O autor demonstra insatisfação, pois em sua
História há mais autores mortos, do que vivos, afirmando que “igualmente não desejo
continuar a fazer da história da nossa literatura um cemitério, enchendo-a de autores de todo
mortos, alguns ao nascer” (idem, p. 32).
Com o seu critério estético, tenta abarcar uma ‘honestidade’ crítica, ao definir que
tratará apenas dos autores que têm mérito para ingressar no rol da tradição literária brasileira.
189
contingente” (op. cit. p. 32). Ele concentra a sua visão na Capital Federal, como polo
irradiador da literatura e da cultura do Brasil. O que era publicado, lido e discutido lá, serviria
como reflexo para o resto do país.
Percebemos que não há muito interesse de Veríssimo pela literatura de cunho
regional, bem diferente do início de sua carreira, quando a etnografia era a força motriz de sua
atuação intelectual. O ápice do livro é o capítulo referente ao autor de Dom Casmurro:
“chegamos agora ao escritor que é a mais alta expressão do nosso gênio literário, a mais
eminente figura da nossa literatura, Joaquim Maria Machado de Assis” (1998. p. 223).
Paradoxalmente, ao tentar se desviar do nacionalismo romântico, exalta Machado como a
nossa maior glória nacional, fruto da evolução da cultura brasileira. Contudo, percebemos que
Machado é um caso tão isolado, que não reflete a inteligência literária de seus patrícios, mais
integrados ao naturalismo zolariano.
Há questões particulares que percorrem a obra, uma tensão entre a formação
naturalista do crítico e as novidades literárias, tais como a poesia simbolista. Segundo
Barbosa, “Assim como Lanson não soube ver a novidade revolucionária de Mallarmé, assim
Veríssimo não conseguiu vislumbrar a importância da linguagem de um Cruz e Souza. Em
termos de poesia, a História termina com os parnasianos sobre os quais Veríssimo encontrava
o que dizer, sem se desfazer de sua herança naturalista” (1974 p. 25). Há ensaios rápidos
sobre os poetas simbolistas, como Alphonsus de Guimaraens e Cruz e Souza, mas pouco
inspirados. A estética em que o crítico mais se demora, que constitui o centro do livro é o
romantismo.
O triunfo da literatura brasileira, segundo o crítico, é assunto do capítulo XIX de
sua história: Machado de Assis. O autor carioca é a perspectiva de futuro literário, pois
também foi um crítico. Como escritor e crítico privilegiou os aspectos estético e universalista
da literatura. A ficção madura machadiana influenciou o discurso crítico de Veríssimo.
Em História da Literatura brasileira, o crítico paraense tentou traçar um
panorama cultural e literário e estabeleceu uma
divisão de águas fundamental: de um lado estava o país, a sua estrutura social,
política e econômica corroída pelos primeiros momentos de vida republicana; de
outro lado, estava o intelectual que refletia sobre esta mesma estrutura, recusando-a
como favorável à criação e jogando num posterior renascimento fundado na
desvinculação que o tempo haveria de possibilitar. Quanto ao presente, não havia
alternativa: era assumir uma posição de pessimismo quanto às suas realizações e
considerá-lo apenas como estágio de transição para o que, talvez, houvesse de surgir
no futuro (BARBOSA, 1974, p. 128).
Coutinho utiliza a expressão ‘vida literária brasileira’, mas quase todos confrontos
desses letrados ocorreram no Rio de Janeiro (capital do Império, depois da República), que se
constituiu como uma ruidosa arena intelectual, onde escritores utilizavam a pena como arma.
As controvérsias datam desde o início do século XIX e não versavam apenas sobre literatura e
arte, mas, sobretudo, sobre política, direito e até gramática. São figuras consideradas
importantes na vida nacional, que se notabilizaram pela atuação pública por meio das letras,
valendo-se dela para expressar e dar visibilidade às suas ideias.
Rodolfo Teófilo, ao nascer, em 1853, há quase duas décadas, a primeira geração
de intelectuais e artistas românticos tentavam defender a implementação de uma tradição
romântica nacional, mesmo que os matizes fossem importados. Três anos depois, ocorre a
polêmica entre José de Alencar e Gonçalves de Magalhães.
Como vimos no capítulo 1, Teófilo teve sua formação no advento das ideias
modernas que aportavam no Brasil. Darwinismo, racionalismo, evolucionismo, cientificismo
contribuíram para que ele adotasse uma cosmovisão crítica e que, por meio das letras,
firmasse a sua atividade pública. Estudar as polêmicas de Rodolfo Teófilo é adentrar numa
complexa tradição de polemistas, como os exemplos arrolados na citação anterior.
Ao visualizarmos a polêmica, pressupomos de que haja um sujeito que domine as
letras, que se utilize de um suporte material (panfleto, jornais, livros), uma audiência para
exibir a sua destreza belicosa, um adversário, quer seja um homem (escritor, crítico), quer seja
um livro ou sistema de ideias. A polêmica necessita dos componentes do sistema literário,
195
Sempre ligada aos grandes momentos da história, a arte não se basta em apenas
ser um testemunho particular, mas tem a missão de dialogar e desafiar os seres humanos ética
e esteticamente. Assim, o fenômeno da guerra há tempos inspira pintores, escultores,
filósofos, escritores a denunciar suas injustiças ou a glorificar o patriotismo e o auto
sacrifício. Através da obra de arte, o artista representa a guerra e suas consequências
devastadoras sobre as pessoas, as cidades, a natureza. As imagens frequentemente são as de
uma máquina destrutiva, de um massacre sangrento que destrói a humanidade e que a engolfa
na miséria. Assim, o artista se torna um intermediário que traduz a imagem real, efêmera e
inexprimível em uma imagem imortal que expressa numa representação coletiva ou num
sentimento individual.
196
Antoine Compagnon (2017) nos relata que a relação entre a literatura ou a vida
literária como uma guerra, na tradição ocidental, vem desde a Ilíada, de Homero. A Ilíada é
essencialmente uma história da guerra, com o propósito de cantá-la, glorificá-la. A
experiência da guerra foi a mais alta, a mais nobre para muitas sociedades. Nós não nos
reconhecemos mais nesses valores, mas nós viemos de lá, não de sociedades pacifistas. Nós
viemos de sociedades que glorificaram a guerra, como a grega e a romana.
Não estamos fazendo apologia às guerras e conflitos, mas devemos ter em mente
que fazem parte do ser humano, da nossa história e a literatura, posteriormente, foi um meio
de expressá-la e de lhe usar como comparação do próprio fazer literário. São muitos
questionamentos que nos levam a tentar entender porque muitos poetas e críticos se utilizam
de metáforas de guerra para falar de arte: são literatura e arte (poesia, pintura, cinema, música,
dança), meios eficazes para denunciar a injustiça da guerra ou para defender a ideia de uma
guerra justa, ou para demonstrar e afirmar o contrário, estigmatizando-a? Os artistas pintam a
guerra inspirada na realidade ou dão rédea solta à sua imaginação para expressar sofrimento,
humilhação, miséria, até glorificação? A obra de arte pode ser um testemunho ou um
inspirador das guerras? Como um trabalho comprometido, em sua relação com a guerra,
representa um sistema de valores e uma visão do mundo?
Ora, para entender as polêmicas literárias, é preciso observar que os conflitos
fazem parte da história humana.
Antoine Compagnon, professor titular de Literatura Francesa Moderna e
Contemporânea: História, Crítica, Teoria104, ministrou um curso em 2017 no Collège de
France, muito importante para o nosso estudo, intitulado “Literatura – esporte de combate”105.
O título do curso é uma alusão às teorias dos campos de Pierre Bourdieu e,
sobretudo, da concepção do pensador de ‘sociologia como esporte de combate’, enfatizando o
seu caráter militante, e também título de um documentário sobre o sociólogo106.
Ao interpretar a literatura como esporte de combate, Compagnon enfatiza a vida
literária como competitiva e agonística. É evidente que há cooperação e solidariedade entre
escritores que fazem parte de escolas, movimentos, grupos e gerações. Porém, ressalta que a
literatura sempre esteve associada a jogos, competições em busca de louros de vitória.
104
“Littérature française moderne et contemporaine: histoire, critique, théorie”, o texto teórico e programa da
disciplina disponível em https://www.college-de-france.fr/site/antoine-compagnon/index.htm
105
Todas as aulas do Curso de Compagnom estão disponíveis em áudio e vídeo no site do Collège de France,
constituindo-se como uma rica experiência de estudo literário. Segue o link
http://www.college-de-france.fr/site/antoine-compagnon/course-2013-2014.htm
106
La sociologie est un sport de combat (2002), documentário dirigido por Pierre Carles.
197
Para trabalhar com essa concepção, cita Pierre Bourdieu, em As regras da Arte
(1996), ao evocar a ideia de campo literário como campo de lutas, pelo esforço dos escritores
em ‘marcar época’, engajados na competição literária. O professor francês também remete a
Harold Bloom, com o destaque que dá ao agon como aspecto central nos relacionamentos
literários.
Sobre essa questão, o próprio Bloom declara que a sua ideia de literatura como
agon107, uma das bases do conceito de ‘angústia da influência’, foi combatida durante muito
tempo no meio acadêmico
Porém, agora, na primeira década do século XXI, o pêndulo oscilou para o outro
extremo. Na esteira dos teóricos da cultura franceses, como o historiador Michel
Foucault e o sociólogo Pierre Bourdieu, o mundo das letras é frequentemente
representado como uma esfera hobbesiana de pura estratégia e conflito. Bourdieu
reduz a realização literária de Flaubert à sua capacidade quase marcial de grande
romancista que avaliava os pontos fracos e fortes de seus concorrentes literários e
tomava-os como base de seus posicionamentos. (2013, p. 21).
107
Segundo Bloom “a poesia ocidental, talvez diferindo da oriental, é incuravelmente agonística. O conflito de
Homero foi com a poesia do passado, mas, depois de Homero, todos lutaram contra ele: Hesíodo, Platão,
Píndaro, os autores de tragédia atenienses e os retardatários latinos. A poesia hebraica da Bíblia é mais
sutilmente agonística, mas a disputa entre autoridade e inspiração continua predominando. Dante
triunfantemente incorporou Virgílio e a Idade Média latina, dando ao Ocidente o único rival possível a
Shakespeare”. (2013, p.21)
198
âmbitos, os fatores econômicos e políticos interferem, além de ser um objeto estético, o livro
é um objeto material e produto de consumo. Mesmo os mais idealistas dos poetas,
ambicionam que sua obra esteja em todas as prateleiras das livrarias, o seu nome nos jornais e
ser lido pelo máximo número de leitores. A literatura não é uma luta etérea entre escritores
guerreiros no monte Parnaso, como idealiza Bloom.
Voltando a Compagnon que nos fala, a partir da contribuição de Bourdieu, que
essa concepção de literatura como esporte de combate floresce no início do século XIX, na
França, em que a era industrial aperfeiçoa a imprensa, multiplicando os jornais e revistas
literárias. Como um produto, os editores investem cada vez mais nos jornais para que vendam,
atinjam o maior número de pessoas. Os jornalistas e escritores lutam para ser lidos. O modelo
de esportista bélico desse período é Honoré de Balzac. Compagnon o define como como
escritor-esgrimista e o seu florete é ‘pena de aço’ e cita o romance As Ilusões perdidas como a
maior representação da guerra literária na imprensa francesa, no século XIX. Outros grandes
escritores-jornalistas-esgrimistas foram Charles Baudelaire e Marcel Proust.
108
Segundo Magnoli, “A história das guerras é uma história de alteridades. Cada guerra é um fenômeno único,
singular, irredutível. Os gregos guerreavam em nome da virtude, os “bárbaros” germânicos e os cavaleiros das
estepes asiáticas, em nome do saque. Os cruzados lutaram na Terra Santa por Deus e pela Igreja. Os franceses e
protestantes alemães combateram o império Habsburgo, portando o estandarte da soberania secular. Napoleão
Bonaparte marchou sob a bandeira do império. A glória nacional animou o exército prussiano de Bismarck; o
“Reich de mil anos”, a Wehrmacht de Hitler. Os vietnamitas enfrentaram a França e os Estados Unidos para
conseguir a independência e a soberania. Árabes e israelenses bateram-se por fragmentos de território.” In
Magnoli, Demétrio (org.). História das guerras. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 13-14.
109
Thomas Hobbes, no capítulo XIII da obra Leviatã (1651), tece a fórmula “a guerra de todos contra todos”
(bellum omnia omnes) como o estado natural (pré-social) do homem é a tensão constante com a sobrevivência
diante da ameaça da morte.
110
Hegel trata desse assunto no capítulo intitulado "Dominação e Escravidão", da obra A Fenomenologia do
Espírito, 1807, ao tecer uma longa consideração entre luta que proporciona uma dialética entre o senhor e o
escravo.
200
Após a conquista dos territórios gregos pelo Império Romano (146 a. C), Éris foi
relacionada, tanto com a deusa da guerra Ênio (Enyó), que fazia parte do sangrento cortejo de
Marte, quanto com a deusa da guerra Belona, de acordo com Junito de Souza Brandão (1986,
111
As obras que Gaston Bouthoul explora o conceito de polemologia em Cent millions de morts, 1946 e Traité
de polémologie: sociologie des guerres, 1951.
112
"Discord is the last of the gods to close an argument." (Antigone to a Herald. Aeschylus, Seven Against
Thebes, 1057).
113
HESIODO. Teogonia. Trad. Jaa Torrano. São Paulo Editora Iluminuras Ltda. 2007, p. 130.
201
114
ENEIDA, edição de 1854, Trad. Manuel Odorico Mendes (1799-1864).
Outra versão: "Discórdia caminha exultando em seu manto rasgado, seguido por Bellona empunhando um
flagelo manchado de sangue." (Virgil, Aeneid 7.702).
115
HESIODO. Os trabalhos e os dias. Trad. Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo: Editora Iluminuras Ltda.
1996. P. 23
202
próximo, no âmbito do trabalho. Nos versos, observamos que o oleiro inveja o oleiro, o
carpinteiro o outro carpinteiro, inclusive, o aedo o aedo. O aprimoramento dos homens ocorre
por meio da concorrência, da competição sadia. É muito diferente da ideia de Éris/Luta na
Teogonia, na qual as discórdias levam a combates, guerras e massacres. A Éris como ‘boa
luta’, “em lugar de destruir, constrói, em vez de semear ruínas, é portadora de fecunda
abundância” (Brandão, p. 182).
Ruth Amossy alega que
a discórdia tem, sem dúvida, efeitos negativos nas relações interpessoais, mas ela é
funcional nos grupos sociais em que as forças convergentes e divergentes estão
sempre em interação, criando uma dinâmica que é fonte de vida. Segundo Simmel,
é, portanto, a tensão do positivo e negativo que constitui o grupo como tal: a
combinação de positivo e negativo é necessária, porque um grupo totalmente
harmonioso seria privado de estrutura e vitalidade (2017, p. 20).
Por isso, a partir da citação, entendemos que não se pode resolver todas as
discórdias da vida em sociedade por meio da força física, da guerra materializada. A palavra
foi e é utilizada para intermediar os conflitos. José Luiz Fiorim no diz que o aparecimento da
argumentação está ligado à vida em sociedade (2015, p. 9), juntamente com o surgimento das
primeiras democracias.
Num contexto político, os homens são impelidos a se utilizarem da linguagem
para resolver os seus problemas pessoais e deliberar sobre as questões mais urgentes de sua
comunidade. Fiorin nos ensina, por meio de Bakhtin que “todo discurso tem uma dimensão
argumentativa” (idem, p.9), porque o seu funcionamento é dialógico, pressupõe a presença e
oposição do outro, além do enunciador sempre tentar que suas posições e opiniões sejam
acolhidas. Nessa perspectiva, observamos que a linguagem não é apenas um meio de
comunicação, é a capacidade de expressar um pensamento e de refutar outro.
Entrando na esfera dos conflitos discursivos, desde a antiguidade, os pensadores
refletiram sobre os melhores mecanismos de argumentação, desenvolvendo aquilo que
conhecemos hoje por Retórica.
As origens da retórica remontam à Grécia antiga, no século V a.C. na Sicília
quando um aluno do filósofo Empédocles, chamado Corax, desenvolveu alguns princípios,
acompanhados de exemplos concretos de como falar em público, com fins jurídicos. Os dois
princípios básicos são recorrentes até hoje: a retórica visa defender interesses e para isso, ela
se esforça para persuadir uma audiência.
Enquanto os escritos de Corax privilegiaram a fala oral, posteriormente,
Aristóteles escreveu a sua Arte retórica, estendendo as técnicas à escrita. Um discurso
203
116
A Erística é uma técnica de disputa argumentativa, usada para ganhar uma discussão e não, necessariamente,
para descobrir a verdade de um problema. Essa técnica foi criada pelos sofistas gregos e, no século XIX, que a
desenvolveu com vigor foi Arthur Schopenhauer. O filósofo diz na introdução de sua “Dialética Erística” (no
Brasil, publicada com o título Como vencer um debate sem precisar ter razão – em 38 estratagemas), que ela é
uma arte de lutar com as palavras com o objetivo de derrotar o oponente na discussão. A Erística é diferente da
retórica, porque não tenta convencer com a atratividade de um bom argumento, em vez disso, nos obriga a
aceitar uma opinião, independentemente de que seja verdade ou não. Há uma manipulação do discurso e
transgressões das regras da lógica. Para aqueles que praticam Erística, não importa se o argumento é falacioso,
uma vez que o seu principal objetivo é ter certeza de que o adversário não seria capaz de refutá-lo.
204
poetas comparados a guerreiros, logo visam também eternizar o seu nome. E Euclides da
Cunha estava, por meio de um rito, uma tradição inventada, tornando-se ‘imortal’, membro de
uma elite literária. Por três vezes, Romero usa a ideia de luta vinculada à glória.
Um dos objetivos da guerra literária seria a glorificação do poeta? Mas devemos
especificar que tipo de glória relacionaremos à literatura nessa pesquisa, pois direta e
indiretamente será o pivô de inúmeras polêmicas.
117
Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/gl%C3%B3ria/
118
Glória, In: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, Disponível em:
https://dicionario.priberam.org/gl%C3%B3ria [consultado em 22-11-2018].
119
Como podemos observar no evangelho de Lucas 2:9, após o nascimento do menino Jesus, um anjo
mensageiro aparece para José e Maria e “a glória do Senhor os cercou de resplendor, e tiveram grande temor”.
205
120
“A todos os que são chamados pelo meu nome, e os que criei para a minha glória: eu os formei, e também eu
os fiz”. Isaías 43:7
121
O pesquisador Mircea Eliade, em O sagrado e profano: a essência das religiões, denomina de hierofania a
irrupção do sagrado que possibilita a experiência/revelação de uma realidade de caráter absoluto.
122
“Novamente o transportou o diabo a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória
deles”. Mateus 4:8.
206
Aquiles fala a sua mãe as duas maneiras que pode encontrar o seu fim (telos).
Esse é um ponto crucial do épico homérico. É essa pergunta importantíssima para os heróis
clássicos. Eles morrem jovens e gloriosamente, e seus nomes vivem para sempre? Ou vivem
vidas longas e humildes, mas morrem como velhos anônimos?
A resposta de Aquiles tem a ver com o poder imortalizante da kleos. No verso, o
termo glória é acompanhado do adjetivo “sempiterno”, ou seja, eterno ou imperecível. Se
retornar a sua casa, a sua fama (kleos) perecerá. Essa preocupação, e dita pelo guerreiro
123
“Renome glorioso”, na Trad. de Frederico Lourenço.
208
troiano Heitor: “Não quero vil e sem glória morrer. Algo de grande quero aos vindouros
legar.” (HOMERO. Ilíada , XXII, vv. 304-306)
A morte que os guerreiros se empenham são em meio a grandes feitos que serão
ouvidos pelos que virão.
Tombar no campo de batalha, de modo honroso e bravo, é chamado por Jean-
Pierre Vernant de kalos thanatos, a bela morte124. O pensador nos diz que “la belle mort, c’est
aussi bien la mort glorieuse (eukleês thanatos)” Ou seja, a bela morte está relacionada ao
ideal de kleos que se atribui ao nome do guerreiro celebrado.
Aquiles sabia que, retornando à batalha, ele estava sacrificando sua própria vida.
Essa decisão de escolher a glória eterna (kleos aphthiton) ao longo da vida foi vista como o
maior sinal de heroísmo. A morte na batalha é o ponto mais alto da civilização homérica,
Ele atinge o objetivo principal do herói: ter sua identidade registrada
permanentemente por meio de kleos, em certo sentido, alcança a imortalidade.
A razão pela qual a imortalidade é atraente para a mente humana porque a morte
sempre foi um mistério para o ser humano. A partir do momento em que alguém para respirar
e seu coração não bate mais, as coisas mudam de maneira irreversível. Segue-se naturalmente
que os seres humanos gostariam de encontrar uma maneira de evitar esse fim, e as lendas da
imortalidade estão no folclore humano desde as eras.
Então agora chegamos a entender a ideia paradoxal de que, para viver para
sempre, um herói deve primeiro morrer gloriosamente. Para nós, uma forma comum de
expressar esse objetivo é dizer: “você entrará para a história”.
Já falamos de vários tipos de glorificação, Pierre Bourdieu, nas As Regras da Arte,
abordará esse afã dos escritores como ‘consagração’.
124
No famoso artigo - La belle mort et le cadavre outragé, “A bela morte e o cadáver ultrajado” (1978).
209
O conto narra o diálogo entre o pai e o filho (Janjão), após o término da festa de
aniversário deste, que atingiu a maioridade. O principal conselho é que o filho se torne um
medalhão
mas, qualquer que seja a profissão da tua escolha, o meu desejo é que te faças
grande e ilustre, ou pelo menos notável, que te levantes acima da obscuridade
comum. A vida, Janjão, é uma enorme loteria; os prêmios são poucos, os
malogrados inúmeros, e com os suspiros de uma geração é que se amassam as
esperanças de outra. Isto é a vida; não há planger, nem imprecar, mas aceitar as
coisas integralmente, com seus ônus e percalços, glórias e desdouros, e ir por
diante126.
Como o pai relata que seu sonho era ter sido medalhão, algo que não conseguiu,
portanto instrui o filho para ser um homem oco, sem personalidade para atingir carreira na
vida pública e agindo como peça da engrenagem social. Os conselhos são: ser bajulador; não
125
O caso de Machado de Assis. In: Revista USP, Nº 8, 1991. p159-168.
Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i8p159-168
126
Teoria do Medalhão. In: Obra Completa, de Machado de Assis, vol. II, Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.
Publicado originalmente por Lombaerts & Cia, Rio de Janeiro, 1882.
211
ter ideias próprias, contudo parecer inteirado de assuntos medianos e banais; e, sobretudo, não
entrar em contendas.
O medalhão seria uma falsa imagem da glorificação, que se utiliza da publicidade
para atingir esse fim, contudo, na vida literária brasileira, em todos os estados, existem esses
medalhões literários.
Um exemplo interessante é apresentado por Gilberto Freyre, no seu depoimento
sobre os fardões das academias de letras, como falos meios de consagração.
É uma ideia feliz, a do eminente sr. Prof. Dr. Netto Campello, querendo que o
sodalício acatado e respeitável que é a Academia Pernambucana de letras,
constelação das nossas glórias já consagradas nas várias províncias literárias, adote
fardão e espadim, à maneira de sua congêneres, a gloriosa Academia Francesa e a
não menos gloriosa Academia Brasileira. Não se compreende uma Academia
destinada à solene glorificação literária sem essa nota de dignidade olímpica, de
tanta influência sobre a imaginação das massas, que é o fardão verde ou azul
debruado a vermelho e rendilhado no peito e nos punhos a outo vivo e brilhante –
todo esse esplendor coroado pelo chapéu armado com uma rica pluma a cair para
trás (sic)127.
Freyre usa o termo chave para nossa pesquisa: a ‘glorificação literária’ para o
processo de distinção entre os escritores. No próximo capítulo, enfatizamos de exemplos de
escritores e críticos utilizando a expressão ‘glória ou glorificação’ para expressar os seus
objetivos poéticos, motivações para rixas, disputas e polêmicas, como Adolfo Caminha,
Rodolfo Teófilo, Frota Pessoa, Antônio Sales tem ‘glória’ como palavra constante em seu
vocabulário crítico. Portanto, utilizaremos a expressão ‘glorificação literária’ como um
correspondente a categoria de consagração de Pierre Bourdieu. É interessante porque o termo
empregado por Bourdieu também, no seu sentido primordial, vem de um contexto religioso.
Ao falarmos de glorificar ou consagrar um poeta, estamos falando de sua ânsia de
imortalidade, ou seja, a sua mortal imortalidade.
O crítico argentino Raul Castagnino, em sua obra O que é literatura? (1ª ed.
1954) tece cinco conceitos do fenômeno literário: sinfronismo, ludismo, evasão, compromisso
e ânsia de imortalidade.
Castagnino nos fala de dois tipos de aspirações de imortalidade, uma negativa e
outra positiva. A negativa seria um idealismo alienante que toma alguns poetas que
“entregam-se à obra como quem sobe num veículo que os conduzirá à glória, à mortal
imortalidade” (1969, p. 169). Profundamente influenciado por Jean Paul Sartre, o crítico
127
FREYRE, Gilberto A ideia do fardão. In: Diário de Pernambuco, Recife, 20 de setembro de 1925, Nº 218.
212
aponta que imerso num estado de alienação é o poeta que escreve pensando numa perenidade
futura, esquecendo-se de que a literatura é uma mensagem aos homens do tempo presente.
Mas Castagnino aponta que há a glória ou imortalidade positiva manifestando-se
na presença de obras significativas ao longo do tempo. Essa perenidade ocorre pela constante
renovação da obra pela leitura. Ao lermos os poetas, remetendo ao ensaio de T. S. Eliot,
‘Tradição e o talento individual”, nas partes mais individuais de sua obra, percebemos a
presença dos poetas mortos, os antepassados atuando com vigor (1989, p. 38). A imortalidade
como forma de sobrevivência do fato literário, oferece-nos fontes de novas obras,
evidenciando o sentido dinâmico da continuidade histórica da literatura (CASTAGNINO,
1969, p. 190).
Ter consciência do sentido histórico da literatura é importante pois acarreta na
percepção do passado e de sua presença no presente. Por exemplo, Ovídio foi um poeta
romano que teve sua existência há mais de dois mil anos que, no entanto, sentimos a presença
de sua poesia como uma herança cultural herdada. O poeta que entende a atualidade do
passado também compreende suas responsabilidades e dificuldades como artista. Tal artista
vai perceber que ele é inevitavelmente julgado pelos padrões do passado. E deve estar bem
ciente do fato óbvio, de que a arte não melhora ou evolui num sentido progressista, mas a arte
nunca é a mesma. Assim, a tradição exige não apenas o conhecimento do passado, mas
também a vontade de assimilar o melhor do passado e um desejo compromissado de se
relacionar com o presente.
Ao aproximarmos do fim desse debate, levanto em conta o processo de recepção
(Jauss, Iser), público leitor está no centro do processo que leva à consagração de uma obra
como um clássico da literatura. Essa consagração opera em etapas de seleção; diz respeito a
obras que foram recebidas pela primeira vez pelo público contemporâneo e relidas por várias
gerações sucessivas. Requer práticas de interpretação, de comentário e de análise literárias
que garantam a permanência de uma obra. Por outro lado, a perspectiva de Bourdieu baseia-se
no pressuposto de que a posteridade do autor e de sua obra dependem essencialmente de sua
capacidade de se posicionar dentro do campo literário, a fim de satisfazer esse público leitor.
E na luta pela glorificação literária que as polêmicas ocorrem como um poderoso mecanismo
de inserção e de deslegitimação do outro. Agora, especificaremos os conceitos de polêmica
dessa pesquisa.
213
Muitos pensadores querem distância das controvérsias, tal como Michel Foucault.
Ele declara que não tem interesse em participar de polêmicas, pois elas se afastam do que
seria um processo ideal de discussão: um diálogo como jogo sério de perguntas e respostas,
um esclarecimento recíproco e onde o direito de cada interlocutor e respeitado (2010, p. 225).
Percebemos que ele prefere uma discussão com características dialéticas. Um
confronto polêmico
pelo contrário, procede atrelado a privilégios que detém antecipadamente e que não
aceita nunca de pôr em discussão. Possui, por princípios, os direitos que o autorizam
à guerra e que fazem desta luta uma empresa justa; diante dele não está um
companheiro na busca da verdade, mas um adversário, um inimigo que errou, que é
prejudicial e cuja existência constitui uma ameaça. Para ele, portanto, o jogo não
consiste em reconhecer o outro como sujeito que tem direito à palavra, mas em
anulá-lo como interlocutor de qualquer possível diálogo, e o seu objetivo final não
será o de aproximar-se quanto possível de uma verdade difícil, mas o de fazer
triunfar a justa causa de que se proclama, desde o início, o porta-voz. O polêmico
apoia-se em legitimidade da qual o seu adversário é, por definição, excluído (2010,
p. 225-226).
128
Opiniães: Revista dos alunos de Literatura Brasileira / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo. Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas. – v. 1, n. 3 (2011). – São Paulo:
FFLCH: USP, 2011. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/opiniaes/issue/view/8641/658
214
declara porta-voz da verdade e o seu interlocutor imerso no erro. O enunciador diz a verdade
em forma de juízo com a autoridade que conferiu a sim mesmo. Por isso, Foucault conceitua a
polêmica como uma “figura parasitária da discussão e o obstáculo à busca da verdade” (2010,
p. 226).
Como já afirmamos, a antipatia de Foucault refere-se ao discurso polêmico na
esfera das disputas políticas, principalmente na imprensa. Contudo, outros pensadores
destacam que as polêmicas não residem só na política, estão presentes no cotidiano da vida
pública, porque os confrontos verbais são diversificados e incontáveis. Partindo dessa
premissa, para delimitar perspectivas discursivas e linguísticas da polêmica, vamos nos
fundamentar nos trabalhos de Ruth Amossy, Marcelo Dascal e Dominique Maingueneau.
Uma importante contribuição é da pesquisadora Ruth Amossy129, com Apologia
da polêmica (2017). Ela parte da ideia de que o conflito de opiniões é o princípio essencial
numa sociedade democrática, onde possa residir a pluralidade e a liberdade de pensamento e
de expressão.
Nesse contexto, a polêmica - que gerencia os conflitos valendo-se do choque das
opiniões contraditórias - não permite nem conduzir a um acordo, nem assegurar um
modo de coexistência numa comunidade dividida entre posições e interesses
divergentes. É que, na sua virulência e até nos seus excessos, ela permite que os
participantes dividam o mesmo espaço sem recorrer à violência física - e isso
justamente nos casos de dissensão profunda, nos quais as premissas são diferentes
demais para autorizar uma partilha da razão. A polêmica preenche, por esse motivo,
funções importantes que vão da possibilidade do confronto público no seio de
tensões e de conflitos insolúveis à formação de comunidades de protesto e de ação
pública (2017, p. 13).
129
Professora emérita do Departamento de língua francesa da Universidade de Tel-avi, (Israel), coordenadora do
Grupo de pesquisa Análise do Discurso, Argumentação e Retórica (ADARR).
215
130
“A linguagem representa o instrumento de representação em termos básicos de forma e conteúdo; o emissor é,
aqui, o produtor da mensagem; o receptor, aquele a quem a mensagem é dirigida; o contexto é o conjunto virtual
de informações envolvidas naquele processo comunicativo; e o tópico é o assunto de que o discurso trata”.
Wainberg, Jacques A. /Campos, Jorge/Behs, Edelberto. Polemista, o personagem esquecido do jornalismo. In
Revista Brasileira de Ciências da Comunicação Vol. XXV, nº 1, janeiro/junho de 2002 p. 53.
216
Querela entre os Antigos e modernos foi uma expressão engendrada pelo escritor
francês Charles Perrault, no final do século XVII, na França, que dicotomizou a disputa entre
adversários, que, de um lado, defendiam a superioridade de grandes autores do passado, de
outro, pensadores que valorizavam a produção literária dos autores presentes.
A Academia Francesa foi palco dessa famosa querela, salientando que as
controvérsias não ocorriam em um espaço intelectual abstrato, mas em arenas específicas
governadas por instituições e regras131.
Na interpretação de DeJean132 (2005), o fin de siècle francês foi uma das primeiras
‘guerras culturais’ modernas do mundo intelectual ocidental, porque a literatura tornou-se
131
Na Idade média, a argumentação oral era utilizada como método científico e de ensino-aprendizagem. A
oralidade constituía a tradição medieval da disputatio, cujos excessos foram criticados séculos depois, mas com
o mérito reconhecido. No Renascimento, no âmbito das academias científicas, essas disputas geralmente
tomavam a forma de desafios que mobilizavam toda uma ética de confronto intelectual, em que a honra dos
eruditos estava em jogo, e muitas vezes defendida por seus alunos, que agiam como defensores.
132
Joan DeJean (1948), professora de francês na Universidade da Pensilvânia. A obra Antigos contra Modernos:
as guerras culturais e a construção de um fin de siecle (2005) pretende historizar a idéia do fin de siècle, além de
outros termos fundamentais: "século, público, sensibilidade, cultura e civilização".
217
matéria da história em vez de matéria da história literária, não é mais apenas atividade ou
evento, mas evento político.
A Querela ocorreu no contexto do reinado de Luís XIV (1638-1715), conhecido
como o Rei Sol, que ocupou o trono da França por 72 anos, o mais longo reinado do planeta.
A sua influência na história política e cultural foi vasto, tanto que o século XVII ficou
conhecido como o Grande Século Francês. Além do poder político e bélico, o monarca
patrocinou dezenas de artistas, artesãos, alfaiates e arquitetos para exaltar a sua imagem.
Como um sol, todos deveriam gravitar ao seu redor.
Uma instituição que teve muito prestígio no reinado do Rei Sol foi a Academia
Francesa133, que foi fundada por seu antecessor, Luís XIII, em 1635, e era o centro
institucionalizado da magnificência cultural e científica da coroa.
A controvérsia se iniciou a partir da leitura de um poema, em 1687, por Charles
Perrault, perante os membros da Academia Francesa, intitulada Le Siècle de Louis, le
Grand (“O século de Luís, o Grande). Este poema teve a pretensão de mostrar o brilho das
letras, artes e ciências sob o reinado de Luís XIV, no entanto abalou a harmonia do
microverso palaciano ao criticar os antigos valorizar os escritores contemporâneos.
Essa polêmica contrasta duas tendências distintas134: os clássicos/antigos liderados
por Nicolas Boileau, que defendiam uma concepção da criação literária como uma imitação
dos poetas da antiguidade greco-latina, bem como Homero e Virgílio entre outros, tidos como
representações da perfeição artística. As tragédias de Jean Racine, tais como Ifigênia em
Áulida (1674) e Fedra (1677) escritas a partir de temas já tratados por tragédias gregas,
ilustram uma concepção artística respeitosa às regras descritas do teatro clássico,
principalmente, na Poética de Aristóteles. Os Modernos, liderados por Charles Perrault,
apoiavam poetas e dramaturgos contemporâneos e não os consideravam inferiores aos autores
antigos.
133
A criação da Academia Francesa marca, pela primeira vez, a importância da língua na organização da
sociedade. Os primeiros acadêmicos pretenderam criar regras específicas para a língua francesa para que,
eventualmente, substituísse o latim. A Academia Francesa foi criada sob a liderança do Cardeal Richelieu, que
era então o seu “chefe e protetor", e foi composta por 40 membros, chamados de "imortais", um título que
encontra sua origem no lema gravado no selo dado à Academia por Richelieu: "para a imortalidade".
134
Principais lutadores da Querela dos Antigos e dos Modernos: ANTIGOS - Jean de La Fontaine (1621-1695);
Jacques-Bénigne Bossuet (1627-1704); Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711); Jean Racine (1639-1699); Jean
de La Bruyère (1645-1696) e François Fénelon (1651-1715). MODERNOS - Pierre Corneille (1606-1684);
Charles de Saint-Evremond (1615-1703); Charles Perrault (1628-1703); Philippe Quinault (1635-1688) e
Bernard de Fontenelle (1657-1757).
218
Ele utiliza o léxico militar para tratar do conflito de gerações que ocorria na
literatura portuguesa do período. As ‘seitas’ em disputas são entre os escritores de Coimbrã e
219
135
Na antologia publicada por Alberto Ferreira e Maria José Marinho, Bom senso e bom gosto (A questão
Coimbrã) 1865/1866, em dois volumes, estão organizados os principais textos da polêmica, alguns nunca
publicados em livro.
220
só responsável por seus atos e palavras...Agora quem move estes ridículos combates
de frases é a vaidade ferida dos mestres e dos pontífices; é o espirito de rotina
violentamente incomodado por mãos rudes e inconvenientes; é a banalidade que
quer dormir sossegada no seu leito de ninharias; é a vulgaridade que cuida que a
forçam-nos só lhe queremos puxar as orelhas! (QUENTAL, 1865, p. 4)
Antero assinala que a atitude de Castilho foi o início da guerra aos jovens hereges
de Coimbrã, porque buscam a independência artística. A atitude crítica adquirida do ideário
moderno e a busca por uma revolução heroica herdada do romantismo alemão dão o tom do
discurso do poeta. Há o questionamento da liderança literária de Castilho em Portugal, da sua
suposta autoridade em designar quem é um bom poeta ou não. Antero declara que o poeta
deve ser julgado por seu talento, inteligência, novidade. Ser amigo, apadrinhado ou bajulador
do “Pontífice” ou “grão-mestre” não é critério estético. Estava em jogo a luta do monopólio
da legitimação literária (Bourdieu) e o texto de Antero é a explicitação desse confronto
simbólico. Ele defende, sobretudo, a independência dos poetas, mas sabemos que os
agrupamentos literários adquirem bastante força social. Essas ‘tribos’ (Maigueneau) ao se
aproximarem do campo do poder econômico, estabelecem os seus próprios critérios de
legitimação. Os homens de letras portugueses assim como no Brasil estavam ligados ao
trabalho jornalístico como questão financeira, o sustento, mas também pela busca de
notoriedade.
A partir do texto de Antero de Quental, ao longo do ano de 1865, que mobilizou a
opinião pública portuguesa, surgiram vários textos que, ora defendem Castilho e seus
seguidores, ora defendem os jovens de Coimbrã. De questões literárias, o foco se estendeu às
relações pessoais, detração de desafetos ou bajulação dos amigos.
Após essa rápida apresentação, salientamos que a polêmica da Questão Coimbrã
fora importante, pois foi um maciço uso da imprensa para colocar os debates estéticos na
esfera pública, ao alcance de leitores. As discussões não ficaram restritas aos livros ou às
universidades. O público alfabetizado teve acesso às disputas pessoas, as defesas estéticas e
interpretações literárias dos livros dos principais escritores portugueses do período. Uma luta
pela legitimação das reputações literárias, perante a audiência, para decidir quem eram os
melhores interpretes culturais da vida portuguesa.
Percebemos que a polêmica é um texto de recepção violenta e criativa. Os poetas
mais velhos foram tomados como metonímias de valores conservadores identificados pelo
romantismo já institucionalizado e retórico, que apenas colhia louros. O ataque de Antero a
Castilho nos revelou que o cânone de autores representativos não é fixo, que para a renovação
221
literária, deve sim, haver uma flutuação de autores, desde que sejam comprometidos com a
arte e com o desejo de progresso social
136
José Martiniano de Alencar (1829-1877) Natural de Messejana, Ceará, foi filho do importante senador de
mesmo nome. Formado em Direito em São Paulo (1950), teve uma ilustre carreira como advogado, jornalista e
político. Após diplomar-se em direito, em meados de 1854, iniciou a colaboração no jornal carioca Correio
Mercantil, como folhetinista. Como sucesso de suas crônicas e folhetins, depois, assume a direção do Diário do
Rio de Janeiro, o mais antigo jornal do tempo. Como jornalista, a sua atividade é incessante e copiosa,
escrevendo política, história, economia e administração, literatura, costumes etc. Nesse período nasce a sua dupla
ambição: a política e a literatura.
137
O pseudônimo de Ig. foi tirado das primeiras letras do nome Iguaçu, heroína do poema (Idem, p. 863).
222
138
A primeira formada por oito cartas sobre O gaúcho, publicadas entre 14 de setembro e 12 de outubro de 1871;
a segunda é formada por 13 cartas acerca de Iracema, publicadas entre 13 de dezembro de 1871 e 22 de fevereiro
de 1872.
223
“precoce decadência literária”, isto é, está ultrapassado ao usar uma linguagem incorreta e
artificial, além de pecar na inexatidão da representação dos cenários e do povo nos romances
e no excesso de fantasia.
De acordo com Eduardo Vieira Martins
Távora não é o detrator de Alencar; é um crítico contundente, por vezes injusto,
mas, em todo caso, um escritor que explora habilmente a polêmica como meio de
conquistar a atenção dos leitores e de se autopromover, assim como era comum no
período e assim como o próprio Alencar fizera com relação a Gonçalves de
Magalhães (2013, p.62).
Desde a primeira carta, Semprônio representa o Rio de Janeiro como uma ‘arena
das letras’, onde o escritor não deve ser apenas um guerreiro, mas um ‘sacerdote’ (2011, p.
48). Logo, na segunda carta, ele nos apresenta a sua visão de crítica literária.
Não ponho em dúvida os créditos e a autoridade, de que Sênio goza neste gênero de
labor intelectual. [...]Tanto mais me receio dos males que da aberração possam
porvir, quanto é inegável a espécie de idolatria, que existe em certo círculo para com
as obras oriundas da pena de Sênio (2011, p. 49).
139
O daguerreótipo foi descoberto em 1835 pelo francês Louis Daguerre (1787-1851). Foi a cooperação entre
este grande fotógrafo e Nicéphore Niepce que tornou possíveis tais resultados. No entanto, por causa da morte de
Niepce em 1833, foi Daguerre quem continuou e finalizou o trabalho, desenvolvendo assim o primeiro processo
que pode gravar a imagem permanentemente. O daguerreótipo, como todas as câmeras, usa o sistema de câmara
escura.
224
140
Joaquim Nabuco, filho do Senador Nabuco de Araújo, regressava de uma estadia de dois anos na França e se
lançara na vida literária brasileira, atuando principalmente no jornalismo.
141
Conta a história de Samuel, padre Jesuíta, que, disfarçado de médico, tenta promover, secretamente, um plano
de independência do Brasil. Escrita em alusão aos quarenta anos do processo de independência brasileira, não foi
encenada na época, pois o famoso ator João Caetano recusou a participar do drama como protagonista.
225
Alencar lutava por sua manutenção no campo literário carioca, tarefa difícil ao
longo dos anos. Seus romances eram bastante populares no público médio brasileiro, contudo
despertavam opiniões adversas entre os críticos e profissionais. Ele ganhou notoriedade, pois
confrontou Magalhães e seu Mecenas, Pedro II, ao defender um projeto estético para o Brasil,
rompendo a barreira e entrando com impetuosidade no campo literário. E colocou o seu
projeto em prática, descrendo dezenas de livros, sem medo de ousar, aos poucos construindo
uma linguagem própria, tentando traçar um extenso panorama cultural do país. Além do
trabalho literário, era preciso legitimar a sua missão por meio dos jornais. Na última grande
polêmica literária contra Joaquim Nabuco, já estava dando sinais do ‘envelhecimento’ do
escritor, saindo do protagonismo das letras nacionais.
A batalha em atingir o sucesso literário e mantê-lo é árdua, como nos diz Brito
Broca
a glória literária em si mesma não ofereceria nenhuma vantagem econômica nesse
Brasil remoto. Antes de tudo, para preciso viver, e os que, à semelhança de Manuel
Antônio de Almeida e de Alencar, faziam um curso superior, -o primeiro, médico, o
segundo, bacharel – tinham motivos par aspiraras altas posições. Daí a necessidade
de separar a literatura da vida civil, principalmente quando se tratava de gêneros
menos nobres, como o romance. Por certo, as aspirações literárias de um Alencar
seriam bem grandes; mas no momento em que ele se estava iniciando na advocacia,
visava uma cadeira no Parlamento, e quiçá poder, a cautela impunha o anonimato,
mesmo para um best-seller como o Guarani (1957. p. 105).
Os tempos eram outros e os escritores “querem, antes de tudo, vencer nas letras,
porque, bem ou mal, o jornalismo e a literatura lhes proporcionam recursos para não
morrerem de fome” (idem p. 106).
Esse texto é uma das mais interessantes e engenhosas páginas de nossa crítica
literária. Há uma riqueza de comparações, ligadas à guerra para relacionar ao espírito de
combatividade de Romero142, como gladiador e bárbaro. Também há uma alusão, de cunho
naturalista, “cascavel de mortífera peçonha”. A serpente aparece aí pelo seu valor metafórico
de animal predador. Portanto, as imagens são: cascavel; atleta antigo; bárbaro; gladiador.
Araripe Jr. também tece, por meio de alguns adjetivos, uma dicotomia que
estabelece diversas polêmicas entre centro e periferia, quer dizer, entre intelectuais da
metrópole e do ‘norte’ do Brasil. Sílvio é descrito como uma ‘cascavel’ que vem dos sertões
142
Em outra passagem, Araripe Júnior busca inspiração na Idade Média para comparar a Romero: “Não permite
a sua índole franca e rude o uso de arma florentina. Se é agredido, defende-se a cacete, e não o aflige ver os
miolos do adversário espalhados pela arena ensanguentada. (p. 318).
228
de Sergipe, um ‘bárbaro nortista’, ou seja, um animal selvagem, um rude que chega ao Rio de
janeiro, o centro, cidade ‘civilizada’, onde impera a polidez artificial.
Em relação às metáforas de guerra, luta, conflito, que já discutimos com
Compagnon, o pesquisador paulista Roberto Ventura, enriquece a nossa discussão, nos
advertindo que
A abordagem da polémica com metáforas de guerra e luta aparece em Silvio Romero
e foi seguida por Araripe Júnior e por muitos de seus intérpretes, como Sylvio
Rabelo, Carlos Süssekind de Mendonça e Clovis Beviláqua. As metáforas de luta
proliferam sobretudo nas abordagens apologéticas em que o intelectual é valorizado
como herói em conflito com o mundo. A manutenção da linguagem de luta e
combate indica que muitos intérpretes se mantém no mesmo discurso metafórico e
em atitude combativa próxima a de Romero, o que impede a adoção de uma
perspectiva crítica em relação às polémicas. A linguagem da luta é parte do discurso
da polémica, em que se valorizam predicados como a ‘valentia’ e a ‘coragem’, parte
de um código de honra que exige a reparação direta das ofensas pessoais. A ciência
evolucionista, com ênfase na luta entre espécies, justificava a violência de tais
debates como necessária é propagação das novas ideias e ao aperfeiçoamento
cultural e social. Afinal, na ótica de Sílvio Romero e de seus contemporâneos, cabia
à polémica contribuir para o processo de seleção e depuração das obras e escritores,
lançados ao público na luta pela existência (1991, p. 80).
Nesse trecho, Romero conclama os homens de letras para lutar nas guerras
literárias em prol do aperfeiçoamento da pátria brasileira. Em outra parte, ele especifica que
143
Lançado em 1897, Machado de Assis - Estudo Comparativo de Literatura Brasileira, concomitantemente a
eleição do autor de Dom Casmurro como presidente da Academia brasileira de letras, foi a tentativa de Romero
de destruir a reputação do escritor apontando a ausência de nacionalismo e da incapacidade de acompanhar o
ritmo das ideias modernas. Segundo Antônio Cândido (1988), e uma “verdadeira catástrofe do ponto de vista
crítico”, em que glorifica Tobias Barreto, segundo Romero, em tudo “superior a Machado de Assis”.
144
ROMERO, Sílvio. Machado de Assis – estudo comparativo de literatura brasileira [1897]. In: ____. Autores
Brasileiros. Luiz Antônio Barreto (org.). Rio de Janeiro: Imago Editora; Aracajú: Universidade Federal de
Sergipe, 2002, (edição comemorativa).
229
na arena das lutas nacionais, nesse tumultuar pela fama, pela glória nas letras, tive a
leviandade de tomas em meus ombros, que, ai de mim! não são dos mais robustos, o
tríplice encargo de me defender, advogar a escola do Recife, e pugnar
nomeadamente pela justiça a que tem direito o seu chefe, o poeta dos Dias e as
Noites, o jurista dos Menores e Loucos, o filósofo e crítico dos Estudos Alemães
(idem, 2002, p. 187).
Na ‘arena de lutas’, que interpretamos como o campo literário, ele relaciona a sua
atividade beligerante com a busca pela glória literária. Ele é o porta-voz, advogado e guarda-
costas da Escola de Recife e de seu corifeu, Tobias Barreto. Não se situa apenas como
guerreiro, mas como o portador da justiça. Ao interpretar o conflito entre o indivíduo e a
sociedade, a polêmica serviria como instrumento de evolução social.
No entanto, Romero não era um desconhecido no Rio de Janeiro. Em 1875, na
defesa de sua tese de doutorado em ciências jurídicas e sociais, na Faculdade de Direito do
Recife, constituiu um rito de iniciação para a publicidade de sua carreira intelectual, ao
abandonar a sessão, declarando a morte da metafísica e tratando os componentes da banca
como ineptos e estúpidos. Essa atitude polêmica foi amplamente comentada nos círculos
letrados do Rio de Janeiro.
Apesar de forjar a imagem de injustiçado e independente, Ventura nos alerta que
Romero não
não escapava aos valores clãnicos e oligárquicos criticados. Sua oposição à
“panelinha” fluminense se tornou uma disputa entre grupos, em que a Escola do
Recife contestava a influência dos escritores da Livraria Garnier e da Rua do
Ouvidor, reunidos em tomo de Machado de Assis e José Veríssimo. Em sua primeira
obra, A filosofia no Brasil (1878), Sílvio já declarara sua oposição ao Rio de Janeiro
e propusera uma “cruzada santa” contra a Corte, cuja “aura mórbida e corrupta”
sufocaria as livres aspirações das províncias, sobretudo as do Norte". A abordagem
da obra de Machado se converte no confronto entre o grupo fluminense e o
movimento do Recife, que Carlos de Laet chamou, com malícia, de “escola tento-
sergipana", em alusão ao germanismo cultural e a naturalidade de seus líderes.
Romero contra-atacou e apelidou os escritores do Rio de Janeiro de “escola galo-
fluminense", adepta do francesismo (1991, p. 103).
No trecho, observamos uma síntese das lutas que Sílvio Romero travou para se
legitimar como intelectual no Rio de Janeiro, desde que chegou à capital, na década de 1870.
Na década seguinte, já havia publicado obras de poesia, filosofia e ensaios jurídicos, começou
a tecer seus pontos de vista sobre a poesia, filosofia, folclore e etnologia brasileira. Com a
publicação de História da literatura brasileira, em 1888, a sua busca por legitimação se
amplia, tornando-se uma figura dominante da cena intelectual e política do Rio. Uma vez
integrado na elite carioca, ele confronta com golpes de clava com os maiores pensadores
brasileiros e portugueses do período.
230
um ethos que adota a luta justa como a verdadeira missão de um escritor. E fica evidente que
ele assevera ser o portador da justiça.
Romero explora a origem “nortista” de Veríssimo para construir epítetos
depreciativos, relacionados a sua região, tais como “criticalho paraense” (p. 10), “caboclo
paraense” (p.12), “ilustre emigrado” (p. 13), “marajoara atucanado” (p. 53), “pescador da
Amazonia” (p. 25) e “pescador e seringueiro” (p. 114). No título e no restante do livro, cria
um neologismo zéverissimações, como sinônimo de má crítica, de asneiras, de opinião
vendida.
De acordo com Amossy, esse é um caso típico de violência verbal por meio do
argumento denominado ad hominem, em que se ataca a pessoa do adversário em vez de se
atacar sua tese A principal acusação é a aproximação dele com os medalhões literários
O sr. José Veríssimo é um homem hábil, um indivíduo jeitoso. Possui, n'este
particular, uma finura capaz de escapar ao geral do público, mas patente aos olhos
adestrados do psicólogo. Seu renome e sua posição são uma resultante, um tecido
manipulado por essa discreta diplomacia que, fingindo sobranceira e indiferença,
afetando desdém e despreocupação, sabe pretender, sem o mostrar, apetecer
negaceando, adquirir como por acaso, por coincidência, fortuitamente,
inesperadamente. [...] A primeira d'elas foi o jeitinho manhoso com que se
aproximou e se fez camarada de todos os medalhões literários, principalmente os
que aluavam às prosápias letradas certa influência política e social [...]Com os
medalhões fundou revistas, ajudou a formar academias, fez círculos de palestras
[...]Escragnolle Taunay, Joaquim Nabuco, Ruy Barbosa (este meio arredio, mas
muito procurado e afagado), Machado de Assis, Lúcio de Mendonça, Ferreira de
Araújo, Araripe Júnior, Capistrano de Abreu, João Ribeiro, Arthur de Azevedo,
Medeiros e Albuquerque. eram os principais (ROMERO, 1909, p.11).
detrimento da obra de outro intelectual ou escritor. Visto que os textos de polêmicas que
estudaremos são, na maioria, de escritores, portanto, estamos diante de um fenômeno duplo:
de leitura e de escrita. Jauss oferece uma pertinente contribuição para essa pesquisa, pois nos
alerta que o estudo da história da literatura deve levar em conta a recepção. Sem refletir sobre
o modo de como livros foram lidos, avaliados e transmitidos, não saberemos o motivo de sua
permanência, qual o valor eles tinham na sua época e para a geração posterior e, atualmente,
para nós.
Outra adição valiosíssima para a nossa discussão, é a visão da literatura como
compromisso, de Jean Paul Sartre, em O que é a literatura? (1947) escrito após os horrores da
Segunda Grande Guerra. Ele descreve que os homens de letras no século XX foram atraídos
para o ativismo, como resultado de circunstâncias políticas e sociais que reavivaram a
memória do papel positivo desempenhado por eles no passado, durante os tempos
conturbados de nossa história (especialmente a Revolução Francesa), e que tornaram os seus
espíritos mais presentes por um ideal de ação e com a ilusão de eficácia imediata de que o
livro e a arte trazem, principalmente a liberdade.
E nessa vereda belicosa, continuam conosco Pierre Bourdieu, Dominique
Maingueneu, Marcelo Dascal, Ruth Amossy, Jacques Alkalai Wainberg, Roberto Ventura e
Antônio Candido
Como uma pesquisa de literatura comparada, restringimos a nossa análise apenas
às polemicas que tem como assunto a obra literária de Rodolfo Teófilo. Desde a publicação de
História das Secas no Ceará (1883), até o fim de sua vida, o escritor esteve envolvido em
controvérsias políticas, sendo a mais famosa, que percorreu a primeira década do século XX,
acerca da campanha de vacinação contra varíola, que foi vista como um ato de afronta contra
a Oligarquia Accioly. Foram centenas de críticas, pasquins, textos anônimos e pornográficos
para desmoralizar a reputação do sanitarista e de sua vacina antivariólica. Mas não
examinaremos essas verrinas e os textos de denúncias do farmacêutico, além de outras
polêmicas posteriores, pois são matérias para outras pesquisas e metodologias. Nosso foco são
os textos literários e as polêmicas como textos de recepção dialógicas e belicosas. Sobretudo,
privilegiaremos as polêmicas que tiveram como arenas os jornais cearenses e nacionais, pois
muitos livros dos autores alencarinos eram lidos e resenhados no Rio de Janeiro, Recife, etc.
A repercussão desses textos em Fortaleza caiu como bombas, como os textos de Adolfo
Caminha e Osório Duque Estrada, ocasionando réplicas e treplicas e entretendo os leitores.
Após esse breve aquecimento, chegou a hora de examinarmos os embates. Todo
cuidado é pouco porque as penas são afiadas como as línguas.
235
No rico pluralismo que é a crítica, o texto polêmico surge como uma modalidade
de leitura conflitiva. Não existe polêmica sem a leitura do outro. Observamos em variados
exemplos de embates entre escritores no século XIX, que a polêmica está relacionada para
aquilo que João Alexandre Barbosa denominou de “paixão interpretativa”, isto é, quando o
crítico passa ao lado da racionalidade e desbanca para o impressionismo crítico. A suma dessa
paixão paradoxal é a História da literatura brasileira (1888), de Sílvio Romero. Barbosa nos
esclarece que a leitura polêmica das obras literárias está articulada com as circunstâncias,
ocasionando uma tensão entre a forma e a História. Como observamos nos capítulos dois e
três dessa pesquisa, os críticos desenovistas alimentavam as suas análises com fatores
externos (socio-históricos), ou internos, as impressões pessoais e até tirar o foco do texto e
falar de si.
A polêmica ‘em si’ não constitui um gênero textual ou de crítica literária, mesmo
alguns críticos que se utilizaram da nomenclatura em seus textos como Frota Pessoa, Osório
Duque Estrada, Medeiros de Albuquerque etc. Não queremos deslegitimar como esses críticos
nomeavam seus textos, mas o discurso polêmico ou a polemicidade (Maingueneau, Amossy e
Dascal) apresenta características que não abrangem apenas algumas modalidades de texto, de
modo coeso e homogêneo.
A pesquisadora Sonia Valente Rodrigues nos diz que
A polémica configura-se como um espaço discursivo originado por um acto verbal
fundador de oposição/divergência: à palavra de alguém, um outro alguém diz não. O
espaço discursivo fundado com esse acto de oposição/divergência abre-se à
emergência de textos/discursos de vário formato, marcados, implícita ou
explicitamente, pela polemicidade. A polémica, no campo discursivo, toma a forma
de diferentes corpos textuais/discursivos que vão desde as produções discursivas que
145
BARBOSA, João Alexandre. In: Letras de hoje. Porto Alegre: PUCRS, V 17, setembro de 1984, p. 7.
http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/view/17570/11299
236
Zoilo146 (Zoilus, Ζωΐλος; 400-320 a.C.) foi um gramático, filosofo sofista grego,
da cidade de Anfípolis, (atualmente na Macedônia). De acordo com o arquiteto romano
Marcos Vitrúvio, autor da famosa obra De Architectura, Zoilo, ele viveu na época de
Ptolomeu Filadelfo (285-247 a.C.), por quem foi mandado ser apedrejado e crucificado, como
punição de suas críticas ao rei. Mesmo como aluno de Isócrates, escreveu contra o seu
professor, além de atacar Platão e Lísias. No entanto, o maior alvo de suas amarguras foi
Homero. É considerado o seu primeiro crítico, tanto no sentido positivo, quanto no negativo.
Em sua análise, mencionou veemente diversos erros de continuidade na narrativa, além de
desqualificar a representação dos deuses por Homero, devido à descrição de comportamentos
supostamente inapropriados. Devido às duras censuras ao poeta, principalmente ao caráter
fabuloso das epopeias, foi alcunhado de “Homeromastix” – o chicoteador de Homero. Ao
longo do tempo, a reputação dele fora colocada em descrédito, e por metonímia, o passou a
ser geralmente usado por um crítico rancoroso e maligno.
Nos tempos modernos, há inúmeros exemplos do uso do qualitativo zoilo como
mau crítico. No prefácio do primeiro volume de Dom Quixote, Cervantes se refere aos
possíveis críticos de seu livro como ‘zoilos’, com o sentido de ‘caluniadores’ e ‘maldizentes’.
146
In https://en.wikisource.org/wiki/1911_Encyclop%C3%A6dia_Britannica/Zo%C3%AFlus
238
147
O Tratado sobre a tolerância (1763) é uma obra escrita por Voltaire depois da condenação à morte de Jean
Calas, em 1762, acusado injustamente pela morte de seu filho. A acusação ocorre devido ao preconceito contra o
comerciante que professava a fé protestante, no contexto das guerras religiosas na França. Voltaire escreveu um
eloquente grito de protesto contra a intolerância e o fatalismo religioso por parte dos católicos franceses,
sobretudo, dos dirigentes jesuítas. Depois da repercussão do livro, o processo é reaberto e Jean Calas e sua
família foram reabilitados.
240
jornalistas, cientistas, estudantes, artistas, etc.). Na virada do século XIX para o XX, o termo
ganhou força com o chamado "partido dos Intelectuais", criado na França para defender a
inocência do capitão judeu Alfred Dreyfus e exigir níveis mais elevados de justiça e
moralidade pública e nacional.
Assim, embora não se queira reivindicar uma data ou um acontecimento que
esteja na origem do nascimento dos "intelectuais", não é menos verdade que a intervenção dos
intelectuais franceses no caso Dreyfus acelerou a transformação do conceito. Portanto,
embora seja verdade que o caso Dreyfus possa ser considerado como um protótipo do conflito
político-ideológico francês, o debate na França sobre esse assunto foi imediatamente ecoado
por todo o mundo ocidental.
O intelectual é um pensador que intervém no debate político ou público para
tomar posição, defender seus valores ou propor soluções para os problemas encontrados,
conforme descrito pelos historiadores Pascal Ory e Jean-François Sirinelli, para os quais a
categoria é "um homem cultural, criador ou mediador, colocado em situação de político,
produtor ou consumidor de ideologia" (1986), portanto não é um simples profissional do
pensamento, um técnico do saber, é um ator que intervém publicamente.
Essa tradição do pensador que se engaja na vida pública tornou-se expressiva na
França e muitos pensadores atuaram no debate público. O intelectual também se envolve em
questões sem se preocupar se sua reputação pudesse ser danificada. Albert Camus é um
exemplo. Ele se engajou profundamente no processo de independência da Argélia (1954-
1962), defendendo uma posição corajosa que o fez ganhar inimigos entre os franceses e entre
os argelinos. Então, ele tentou defender seus valores e ideias, tal como a justiça, em um
acalorado debate político.
Rodolfo Teófilo, como um homem de atuação pública, como nos exemplificou a
imagem descrita por Antônio Sales, é um exemplo de intelectual cearense que se engajou em
diversas causas, inclusive a literatura. Como herdeiro do iluminismo, nutriu uma poderosa fé
no poder da razão humana, materializada na ciência. Como intelectual, o seu nome começou a
ganhar notoriedade com a publicação de seu primeiro livro científico-historiográfico sobre as
secas e a sua participação no movimento abolicionista.
Como tratamos, de maneira pormenorizada, sobre alguns pontos da campanha
abolicionista cearense no primeiro capítulo dessa pesquisa, focaremos a bibliografia
historiográfica de Teófilo que, desde a primeira obra, suscita polêmicas.
Em 1876, de volta ao Ceará após cursar farmácia na Bahia, monta uma botica,
onde fabrica e comercializa remédios e xaropes. Um evento que marcou agudamente o
241
farmacêutico e o povo cearense foi a grande seca de 1877 a 1879, que secou açudes e rios,
destruindo plantações, reduzindo a vegetação a um estado desértico. Assolada pela fome, pela
peste e pela falta de recursos, milhares de sertanejos migram maciçamente para Fortaleza.
Rodolfo Teófilo testemunhou o terrível estado de miséria a que as pessoas ficaram reduzidas e
as centenas de mortes devido à epidemia de varíola.
Inconformado com a situação, percorre toda a cidade vacinando e cuidando dos
doentes, a maioria, pobres desassistidos pelo poder público. Essa não foi a primeira estiagem
que presenciara, pois, décadas mais tarde, declara que foi “testemunha ocular de todas as
secas que tem havido no Ceará, nesses últimos cinquenta anos” (1904, p. 155). De acordo
com José Ramos Tinhorão “a contemplação desses horrores teve para ele uma dupla
influência: criou-o escritor e despertou-lhe a ideia de combater a varíola, cujas devastações
transformaram Fortaleza num círculo dantesco” (1966).
Após a atenuação da seca, Rodolfo Teófilo, no começo da década de 1880,
“engajou-se decisivamente nas lutas políticas, nos movimentos antiescravagistas. Não era do
seu temperamento presenciar acontecimentos e, sim, deles participar, desencadeá-los.
Comandou em Pacatuba, Maranguape e Maracanaú, a luta pela libertação dos negros”
(Sombra, 1999, p. 63). Escreve vários textos para o jornal O libertador, atuando ao lado de
José Liberato Barroso, General Tibúrcio, Justiniano de Serpa, Alvaro Gurgel de Alencar,
Frederico Borges. Duas associações se destacaram nesse período: a Sociedade Cearense
Libertadora e o Centro Abolicionista.
Waldy Sombra, em sua biografia sobre Rodolfo Teófilo, publica uma carta de 7
de maio de 1919, endereçada a sobrinha Julinha Galeno de Sant'Ana, em que, ao relatar a sua
atuação na campanha abolicionista, enfatiza que
Não fui um general, apenas um simples soldado. Só entrei em um combate, em
Pacatuba, contra o baluarte do Centro da Legalidade. Foi um loucura. Um mês de
luta. Eu e minha mulher, tão abolicionista quanto eu, fomos para Pacatuba,
abandonando nossos interesses em Fortaleza, e ali ficamos até a vitória. O que foi
esta renhida peleja está escrito no meu livro a publicar Abolição no Ceará. (Apud
SOMBRA, 1997, p. 69).
O texto acima, com uma sinopse bastante chamativa para os fatos mais horrendos
e extraordinários que ocorreram durante o flagelo. O livro promete ser um relato apegado à
verdade, pois é ‘minucioso’ e ‘completo’, sobretudo, nas descrições das cenas fortes, com o
intuito de chocar os leitores em prol da conscientização.
O livro representa a estreia do autor como historiador e cientista das secas e serve
como porta de entrada no concorrido e restrito campo do saber da província cearense. É
evidente que o livro é polêmico, pois narra diversas secas na história cearense, porém
denuncia que a maior parte da catástrofe de morte e miséria que assola o sertão e a capital é
oriunda do descaso e do despreparo do poder público.
Como ressaltamos, o nosso foco são as polêmicas literárias, mas esse livro
ocasiona uma grande repercussão em torno da figura de Teófilo, positiva e negativa, trazendo-
lhes inúmeros adversários. Ele relata que um ‘papão’148 (que ele não menciona o nome) lhe
atacou por censurar José de Alencar, que na época da seca, meses antes de sua morte, era
deputado que representava o Ceará na capital do Império.
Quando publiquei a História da seca do Ceará, de 1877 a 1888 me saiu ao encontro
um dos nossos cronistas porque eu tivera o atrevimento de censurar José de Alencar,
uma glória nacional, por ter este na Câmara como nosso deputado, afirmado, com o
prestigio de seu nome, que em sua província os invernos, as vezes, começavam em
Junho, estava afirmativa nos fez muito mal. Estávamos na seca de 1877, a capital
cheia de retirantes e o governo do Império, à vista do que afirmara Alencar, fazia
148
Sobre esse epíteto, explicaremos em páginas posteriores.
243
149
“José de Alencar levianamente afirmava uma inexatidão ao parlamento, deixava-se levar pela febre da
política, esquecendo-se do prestígio que tinha no país e da grande responsabilidade que sobre ele pesava como
representante de sua província, tratando de assunto tão grave. Despeitado talvez com a oposição, alucinado pela
discussão, José de Alencar asseverava ao país que os invernos do Ceará começavam às vezes em maio ou junho!
E nenhum dos representantes da província levantou-se para refutar asserção tão errônea e que tão fatal nos veio a
ser!” (TEÓFILO, 1883, p. 96).
244
150
Dascal, Marcelo. “Epistemology, Controversies, and Pragmatics”. Tel Avi University, 1995.
Disponível em: https://www.tau.ac.il/humanities/philos/dascal/papers/dascal3.htm
245
literários e artísticos. O movimentado porto da cidade colaborou para essa agitação, pois era
uma ‘porta de entrada’ para livros, jornais e revistas do Brasil, da Europa, dos EUA. Além das
ideias, os jornais locais reproduziam as notícias dos periódicos da corte, ou traduziam notícias
dos jornais estrangeiros que chegavam, principalmente os franceses. Dos livros151 que
chegavam, tanto de Portugal, da Inglaterra, França, além de vendidos e lidos, eram
comentados e discutidos nos jornais.
É nesse contexto de agremiações e de jornais e revistas que aparecem com mais
vigor as apreciações e críticas literárias, que futuramente serão palcos das polêmicas em torno
de livros e poetas.
Uma década antes, uma das mais importantes agremiações (já discutida no
primeiro capítulo) foi a Academia Francesa (1873-1875). Os textos produzidos pelos seus
membros eram editados no jornal maçônico Fraternidade, fundado em 1873 por Tomas
Pompeu e Xilderico de Faria e também teve colaboração de João Brígido e Rocha Lima.
Inspirados pelas ideias positivistas, os acadêmicos criaram a Escola Popular, a qual eram
ministradas aulas gratuitas aos operários, a fim de desenvolver a sociedade cearense.
Do grupo de intelectuais, apenas o jovem Rocha Lima nos legou um livro com as
produções da Academia, editado postumamente em 1878: Crítica e literatura.
Um artigo que está no livro intitulado “Nosso jornalismo” fora publicado no
Jornal Cearense, em 10 de janeiro de 1876 e nos dá um importante testemunho daquele
período.
A nossa crítica, que apenas balbucia os primeiros monossílabos, ainda não volveu
um olhar sequer de compaixão para o jornalismo. A não ser uma apreciação justa e
profunda de um jovem ilustrado pensador, permanece fora da esfera crítica esse
produto tão especial da civilização moderna. Pensamos mesmo que inaugurar uma
crítica, que procure aquilatar o valor literário da imprensa política, além de estéril,
podia de alguma sorte, segundo sua maior ou menor influência, requintar o estilo e
perverter a intenção os políticos, esse diretores do momento presente, quase sempre
desprovidos de senso filosófico para os problemas do passado e sem previdência
para frustrar as tempestades que se condensam no horizonte do povir. Este sistema
de impressionar e arrastar os espíritos pelo magnetismo da frase converteu o
jornalismo e o parlamento franceses em um circo olímpico onde vão lutar os
gladiadores da palavra (ROCHA LIMA, 1968, p. 2).
151
Em Fortaleza, entre a década de 1870 e 1890, o número de livrarias em funcionamento dobrou. Enquanto, em
1870, os estabelecimentos formais registrados nos almanaques do Ceará eram apenas dois (Livraria de Joaquim
José de Oliveira & Cia. E Livraria de João Luiz Rangel), nos anos de 1880 e 1890 esse número passava para
quatro (Livraria de Joaquim José de Oliveira & Cia., Libro-papelaria de Gualter R. Silva, Livraria de Satyro
Verçosa e Livraria Evangélica de De Lacy Wardlaw) (Silva, Ozângela de Arruda, 2009, p. 32)
246
Francesa, Sales arrola alguns participantes do grupo e três livros publicados, sendo A
Afilhada, de Oliveira Paiva, o mais significativo para nós, pois o escritor o denomina de
“romance de costumes”, categoria que discutiremos adiante.
É por meio da revista A quinzena que Oliveira Paiva publica seus contos e vários
artigos noticiando e defendendo a estética naturalista e que Rodolfo Teófilo participou,
através das colunas “História natural” e “Ciências naturais”, alguns poemas e textos de caráter
didático, exaltando a ciência. Oficialmente, era a divulgação das ideias da estética realista-
naturalista em Fortaleza. Além de poemas nos jornais, o autor publica as seguintes obras de
caráter histórico e científico: Monografia do Mucunã (1888), Ciências naturais em contos
(1889), Curso elementar de história natural (1889).
Com mais experiência e com uma reputação se construindo como farmacêutico,
sanitarista, professor, industrial, abolicionista e historiador das secas, Teófilo conjectura
ambições mais desafiadoras.
Durante o ano de 1877, início da seca, Rodolfo Teófilo tinha 24 anos. Quando
publica o seu primeiro romance, A fome, já contava com 46 anos, distante 22 anos dos
terríveis acontecimentos. Os três anos de martírio, de 1877 a 1879 foram narrados pelo autor
na obra História da seca do Ceará (1883). Como a seca e seus problemas são endêmicos em
nosso estado, para ampliar a denúncia em torno desse assunto, Rodolfo escreve o já citado
romance.
No jornal O Cearense, o livro é anunciado
A fome: o editor Gualter R. Silva, estabelecido com a livraria e papelaria nesta
capital, ofereceu-nos um exemplar de mais um trabalho do Sr. Rodolfo Teófilo.
Intitula-se A fome e te por objeto descrever algumas das tristes cenas que costumam
dar-se por ocasião das secas que periodicamente flagelam este Estado. É precedido
de um prefácio, assinado pelo Dr. Virgílio Brígido em que é biografado o autor da
obra que temo em mãos. A obra divide-se em quatro capítulos em que são narrados
com precisão e verdade diversas cenas da seca de 77, observadas pelo autor que as
descreve em linguagem fluente e correta. Agradecemos a oferta. (O cearense, Nº
271, 17 de dezembro de 1890).
Pelo texto percebemos que Rodolfo não é mais tratado como um estreante das
letras. Descreve em poucas linhas o enredo do livro e o nome do prefaciador, Dr. Virgílio
Brígido, recurso muito comum entre os escritores em que solicitam indivíduos com certo
248
prestígio social e cultural para escrever prefácios e orelhas, um modo de legitimar a autoria
da obra. Detalhe é que o anúncio declara que o livro fora escrito com “precisão e verdade”,
frutos da observação de Teófilo, características do método científico, mais adequado a uma
obra historiográfica, mas que foi adotado em seu primeiro ambicioso projeto ficcional.
Também é mencionado que sua linguagem é ‘fluente e correta’, atributos que serão
questionados por seus zoilos.
No dia 20 de dezembro, pelo mesmo jornal, o próprio dono da Editora, o Gualter
R. Silva, publica um grande texto que ocupa toda a página lateral, para anunciar o livro de
Teófilo: “Acaba de sair de uma das melhores oficinas do Porto, este precioso livro. É um
volume de mais de quinhentas páginas, bom tipo, bom papel, servindo-lhe de capa um
excelente cromo representando um dos quadros da seca” (O cearense, Nº 274, 20 de
dezembro de 1890, p. 3). Percebemos que a publicação do livro fora um grande investimento,
impresso em Portugal, artifício muito comum entre os autores cearenses no final do século
XIX.
No próprio anúncio, ele cita integralmente um texto de um dos redatores do jornal
Gazeta do norte
Vai entrar para o prelo um belo livro, um romance, devido à pena do Sr. Rodolfo
Teófilo. A rápida leitura que do manuscrito fizemos, convenceu-nos de que irá
produzir a sensação, não somente no mundo literário, como entre a gente que se
ocupa de remediar os males deste desgraçado Ceará. É um livro de imaginação, é
verdade, mas no qual, rigorosamente, não entrou a imaginação senão para enfeixar
num molho racional e lógico a longa série de fatos, de episódios dolorosos e
tremendos de miséria e de prostituição, que todo mundo viu, de que todo mundo foi
testemunha durante a passada seca de 77 a 79. [...] Então, a verdade cientifica com
que são descritas certas manifestações da fome, despertam horror e uma grande
piedade n’alma de quem as lê. Um bom livro, enfim é um livro terrível. Imaginai
uma série de contos de Edgar Poe, ligados logicamente para formar uma história
única e tereis o romance do Sr. Rodolfo Teófilo (O cearense, Nº 274, 20 de
dezembro de 1890, p. 3).
O redator do texto salienta que o livro é uma obra ficcional, que prevalece a razão
e a lógica, descritas por meio da ‘verdade científica’. É interessante que desde a publicação, a
opinião sobre o cientificismo é destacada, mas o enredo romântico, heroico e maniqueísta não
oferece problematização ainda. Caráter que será apontado como uma deficiência por Adolfo
Caminha. O juízo acerca do livro é paradoxal, “bom e terrível”, além da comparação com as
narrativas mórbidas do escritor americano Edgar Alan Poe.
Após a longa citação, o editor diz-se que está prestando um útil serviço às letras
pátrias e ao estado do Ceará, ao publicar o livro, pois suas denúncias nos reservam muitas
lições.
249
152
As mamas reduzidas a pelancas, presas nas costelas, com os bicos atrofiados, assim, mesmo eram sugadas
pelas crianças com uma avidez famélica! Os vagidos dos filhos desalentados por não encontrarem uma gota de
leite irritava -as em vez de comovê-las, irritava-as a mamadura anormal porque produzia-lhes um frenesi que as
desesperava e que em parte era excitado pela presença do sangue, um sangue cor de salmoura, em vez de leite e
que tingia os lábios dos pequeninos (TEÓFILO, 1979, 85).
251
153
No artigo “Protetorado de Midas”, das Cartas literárias, Caminha descreve a Arte (em maiúscula) como uma
seara virgem, terra prometida e que os artistas, como trabalhadores independentes, deveriam ter o talento
reconhecido.
254
tom subjetivo que o texto se desenvolve. Percebemos que ele nos explica que a imprensa é
responsável pelo ‘aplausos’ ao escritor, criando uma imagem positiva dele. Caminha surge
como uma voz dissonante, para desconstruir o seu “merecimento literário”.
Adiante,
Não duvido que A Fome seja a melhor, a mais bem-acabada, a mais conscienciosa
produção do Sr. Teófilo. Acredito-o piamente, uma vez que a imprensa foi uníssona
em dizê-lo, pois não tenho a honra de conhecer a História da Seca, nem a
Monografia da Mucunã, nem a Botânica Elementar, nem as Ciências Naturais em
Contos, nem as obscuras Campesinas (versos). Creio, entretanto, que toda essa
volumosa bagagem cientifico-literária é de pequena importância, a julgar pela Fome
que se diz ser a principal obra do autor (idem, p.113).
No início, ‘acredita’ que A fome é um ‘bom’ livro fato declarado nos jornais
cearenses, como nos anúncios exemplificados. Como o discurso polêmico, pressupõe a
investigação do outro, observamos que ele cita todos os livros editados por Teófilo, na área de
História e Ciência, e um anunciado livro de poemas. Porém, afirma que não leu tais livros e
julga que, como não são obras literárias, não devem ser usados como requisitos para se
afirmar que A fome é a principal obra do autor. De fato, concordamos com ele, um romance
deve ser julgado por critérios estéticos, diferente de um livro de botânica ou de divulgação
científica. Contudo, ao fazer esse paralelo, em tese, deveria lê-los, para um juízo justo. No
entanto, declara que não leu e esse será um questionamento feito por Teófilo futuramente. O
fato de atestar que não leu os livros anteriores demonstra desdém e motivo de descrédito.
Acerca do enredo do livro, classifica-o como “frívolo, pueril quase, insignificante
e monótono a ponto de cansar o leitor” (idem, p. 114). São adjetivos fortes para descrever o
romance, mas o alvo principal é a individualidade do escritor.
O que desde já vou afirmando é que o Sr. Teófilo pôde ser um cidadão muitíssimo
trabalhador, um ativíssimo fabricante de vinho de caju (que o é), incansável mesmo
nos labores de sua profissão, extremamente amoroso para com a sua terra natal,
pôde ter todas as qualidades de bom cidadão; mas em tempo algum conseguirá um
lugar proeminente na literatura nacional. Falta-lhe certo quid, largueza de vistas,
orientação e bom gosto, predicados indispensáveis a quem se aventura nesse terreno.
Um assumpto como as secas do Ceará, digamos com franqueza, inteligentemente
aproveitado por José de Alencar ou por Aluísio Azevedo, fosse como romance, fosse
como simples narrativa dramática, daria, estou certo, páginas admiráveis de estilo e
verdade, enquanto o Sr. Teófilo, que é nortista, que sempre residiu em sua terra, que
assistiu de visa todas aquelas cenas canibalescas e incríveis de miséria e de fome,
não conseguiu dar senão páginas sem estilo, sem arte, sem verdade ás vezes, e eu
diria sem interesse, si a grandeza do assumpto, a própria essência da obra não nos
obrigasse a ler todo o livro, pondo de parte sua feição literária. E isto é tanto mais
lamentável quanto Guerra Junqueiro, que nunca veio ao Brasil, escreveu, a propósito
da tremenda seca de 77, que se tornou legendaria, oito estrofes que valem mil vezes
A Fome (id. p. 114).
explicitamente, constrói uma dicotomização. Caminha não apenas é um crítico, ele age
discursivamente como um oponente de uma ideia materializada pelo livro em discussão. O
primeiro componente retórico é a tentativa de desqualificar seu alvo como romancista,
paradoxalmente, referindo-se a ele por meio de outras atividades não literárias: cientista e
industrial. Cita que é um bom cidadão e excelente fabricante de cajuína, mas não terá lugar na
literatura nacional.
Ele traça uma breve poética do que deveria ser um genuíno romance. Afirma que
Aluísio de Azevedo ou José de Alencar escreveriam sobre a seca com mais arte, mais
verdade; diferente de Teófilo que acompanhou todas as mazelas. Essa associação é
problemática, porque os dois autores citados fazem parte do cânone pessoal de Caminha. Em
vários artigos declara que são os melhores escritores da literatura brasileira. Porém, ambos
têm projetos literários e tipos de escritas distintos. Observamos no capítulo anterior, que o
motivo da controvérsia de Franklin Távora contra Alencar é justamente a falta de verdade que
ele imprimia em seus romances, o excesso de fantasia, que ele não ‘fotografava’
adequadamente a natureza em seus textos. A comparação dos escritores feita por Caminha
ficará mais estranha, em parágrafos posteriores, ao falar de Zola. Para Teófilo, que era um
homem engajado em causas sociais, foi um duro golpe ser acusado de escrever sem arte, sem
estilo e principalmente, sem verdade. Segundo Sânzio de Azevedo (1982), foi o motivo de
Teófilo responder essa acusação com fúria no jornal O Pão.
O que é mais paradoxal na crítica de A fome, é que ele mistura dois autores de
estilos diferentes, os atrela a uma ideia de ‘verdade’, que entendemos que estava se referindo
à ‘verossimilhança’ para desqualificar Teófilo. Contudo, em outro artigo publicado nas Cartas
literárias, ao tecer uma série de características que o bom escritor deve possuir, nos declara o
seguinte:
o artista deve obedecer ao meio que o cerca, preferindo sempre os temas nacionais,
respeitando a uma toponímia real ou imaginaria, criando personagens que
obedeçam, por sua vez, a tais ou tais influencias mesológicas. A crítica dirá que
ambos os processos conduzem a um mesmo resultado desde que o escritor seja um
verdadeiro artista e obedeça ao seu temperamento (1999. p. 44).
científico, uma mescla entre a história e ficção, uma tensão complexa. Mas Rodolfo Teófilo,
se observamos sua biografia, não estava seguindo o seu ‘temperamento’?
Percebemos que Caminha não usa só o critério naturalista para o julgamento da
obra, se arvora também do impressionismo. Se os dois escritores estão buscando o
Naturalismo como estilo de expressão literária, qual o motivo do desagravo de Caminha?
Em outro trecho, ele nos diz
Como nos dramalhões decadentes, o Sr. Teófilo, no seu livro, faz triunfar a virtude
por meio de tramas falsas e falsas situações. No desfecho, então, a verdade é
completamente sacrificada, e faz-nos rir o tom profético e imperioso com que o
romancista pretende comover e moralizar. [...] Sendo o romance o estudo ou a
reprodução artística de uma parte qualquer da sociedade, segundo o ponto de vista
em que se coloca o escritor, para quê esses longos sermões de moral, esses arranjos
montepineanos de cenas falsas, que só servem de desequilibrar espíritos juvenis?
[...] O romancista deve ser lógico e coerente, qualidades estas que faltam ao operoso
industrial. (id. p.115).
Como um educador, Caminha traça uma Paideia romanesca para Teófilo. Define o
gênero como ‘estudo’ e ‘reprodução’ de algum fenômeno social, uma concepção alinhada aos
romances realistas e naturalistas, que circulavam no Brasil e que serviam de parâmetro
estético. Afrânio Coutinho ressalta que “o escritor realista tomará a sério as suas personagens
e se sentirá no dever de descobrir lhes a verdade, no sentindo positivista de dissecar os móveis
do seu comportamento (2004, p. 188). A ressalva de Caminha recai, sobretudo, na estrutura
romanesca do livro, afinada às ficções românticas, como as de Victor Hugo e Alexandre
Dumas.
Outro destaque negativo foi a artificialidade e inverossimilhança na construção
das personagens
Mas o Sr. Theophilo não soube penetrar na alma do sertanejo, não soube perscrutar
todo o segredo do coração dos simples... E aquele retirante que Freitas depara em
caminho para a capital cearense, quando anda na mata a explorar a mucunã? O Sr.
Theophilo empresta ao pobre homem uma linguagem de sábio, polida e técnica,
certo modo de dizer as cousas, extraordinário num filho do sertão [...] como si fosse
um doutor diplomado! Depreende-se que o Sr. Teófilo ama as exibições e deseja
também um lugar entre os ilustrados da terra, supondo, talvez, que o romance
moderno de observação e análise presta-se a digressões científicas de qualquer
natureza. (id. p. 116).
154
São diversas passagens que o crítico cita para atestar o uso indiscriminado de termos científicos: “Encontra-
se à pag. 102 a seguinte descrição, que também se encontra nos compêndios de fisiologia: "O coração que a
pouca densidade do sangue, a abundância de leucócitos tornara irregular e tumultuosa, os afligia com
sofrimentos atrozes. A sístole e diástole eram incompletas, acelerados os movimentos do motor da circulação, as
257
público restrito, que conheça ciências naturais e medicina. Comenta que quem quer ler sobre
medicina, que procure o livro de Claude Bernard155. Para ele, o intuito do romancista moderno
é fazer literatura e não tratados de fisiologia e recomenda, “se a sua vocação é a ciência pura,
valia mais a pena enriquecer a bibliografia nacional com obras de ciência” (id. p.117) Mais
uma vez, observamos que o crítico desenvolve argumentos para tirar Teófilo do campo
literário, relegando a outros espaços e reafirmando a imagem de mau escritor.
Outra comparação é feita com o corifeu do naturalismo
válvulas, funcionando mal, deixavam refluir em parte a onda sanguínea, já bastante reduzida, determinando a
anemia do cérebro...” (sic) (id. p. 117).
155
Autor da obra Introdução à Medicina Experimental (1885), desenvolve a ideia de que o comportamento
humano seria determinado por sua fisiologia e de que o conhecimento vem da observação de um fato, a partir
desse observação que o cientista concebe uma ideia. Essa concepção empírica e indutiva da realidade, influência
profundamente Emile Zola, que a leva a literatura, materializando-a na obra O romance experimental (1880).
156
Exemplo do entusiasmo de Caminha, em um texto dedicado ao autor em Cartas literárias: “Quanto mais o
leio maior é a minha admiração, maior o meu entusiasmo por essa obra colossal que vem, desde a Fortune des
Rougon, estuando como um rio caudaloso e límpido, até ao Docteur Pascal, até Lourdes... (1999, p. 23)
258
157
Na linguagem do teatro, refere-se à cortina que separa o palco do espaço reservado ao público.
259
dos grandes cantores, desses espíritos privilegiados que nunca precisaram de panos
de boca, quero dizer de cartas de apresentação (apud AZEVEDO, 1996. p. 41).
fim de 1892, muda-se com a família para o Rio de Janeiro, onde possa nutrir o “ideal literário,
a ambição de renome”.
Ele colabora no jornal Gazeta de notícias e publica o seu romance A normalista,
que, inspirado no modelo de romance balzaquiano e zolariano, segundo o próprio autor, uma
‘singela narrativa de um escândalo de província”, retratadas “com firmeza de observação,
levemente penumbrada de um pessimismo irónico e sincero, que está no meu próprio
temperamento” (CAMINHA, 1999, p. 73).
Esboça um perfil da sociedade fortalezense, repletas de tipos mesquinhos,
hipócritas, frívolos e degenerados.
Caminha, nos apresenta o motivo do enredo e sua justificativa
O esqueleto do livro, o assumpto principal que constitui a parte dramática, é muito
simples. João da Matta, um amanuense que se intitula pensador livre, sujeito
devasso para quem a família é uma questão secundaria na vida da sociedade, João da
Matta abusa de Maria do Carmo, sua afilhada, rapariga muito nova e ingénua, de
uma excepcional brandura de caráter, educada numa casa de caridade e depois
normalista, a qual, em determinado momento psicofisiológico, influenciada
irresistivelmente por circunstâncias poderosas, mais fortes que a sua vontade,
entrega-se ao padrinho toda inteira com uma submissão tocante de ser irresponsável.
Esta é a cena capital do livro, à cumeeira do edifício. (idem, p. 72-73).
158
Em outro trecho, Frota Pessoa, acerca de A normalista: Moldou-a num estilo característico e simples, sem
torneios escusados de retórica e sem preocupações de rebuscamento. O Ceará burguês e o Ceará moleque estão
retratados nessas páginas perduráveis com uma argúcia e uma naturalidade que não são de nenhum escritor deste
momento. Foi talvez agressivo, mas na sua situação deviam ser desculpados esse ardor e essa represália contra a
sociedade que o perseguiu e que não lhe quis perdoar. Lavrou assim, ele próprio, a sua absolvição, desvendando
as misérias que nela fermentavam (1902, p. 229).
262
Com uma visão da arte pautada em sua nobre missão estética e na sinceridade
crítica, ataca diversos “ídolos pregados a pedestais de fancaria pela boçalidade
contemporânea” (CAMINHA, 1999. p. 87).
Não poupa ninguém, inclusive a Padaria Espiritual, grêmio em que ficou apenas
alguns meses, mas no artigo, menciona ter sido um dos fundadores, além de afirmar que está
decadente e não representa mais o renascimento literário cearense.
A Padaria Espiritual cujo nome hors ligne tão depressa viajou merecendo aplausos
de toda a imprensa norte-sul, fazendo-se querida até por poetas e escritores
consagrados, a Padaria Espiritual vae decaindo, rolando para o nível comum. É hoje
uma sociedade literária grave, ajuizada, com uma ponta de oficialismo, sem os
ideais doutro tempo, sem aquela orientação nova, sem aquelas audácias que faziam
delia um exemplo a imitar, alguma cousa superior a um rebanho de ovelhas... (1999,
p.130).
Leonardo Mota cita um estudo de Antônio Sales “Pelo Ceará Intelectual”, em que
este relaciona saída dos dois escritores, Temístocles Machado e Álvaro Martins, como motivo
da criação do Centro literário em 1894. Essa opinião é contestada por Sânzio de Azevedo
Acreditamos que Álvaro Martins e Temístocles Machado não hajam sido expulsos
da Padaria Espiritual por serem responsabilizados “pela fundação do grêmio com o
qual ela teria de emular”, consoante a observação de Leonardo Mota, mas por
263
motivos de ordem interna, por intrigas pessoais, talvez. Do contrário, teria ocorrido
o mesmo com Jovino Guedes, que chegou a assinar a Carta-Circular do novo grêmio
(2011, p. 38-39).
escritos, pois, como ressalta Maingueneau, as polêmicas exibem marcas de oralidade (2011, p.
21), porque fazem do discurso seu espetáculo de guerra.
Amossy destaca que o termo ethos, para os antigos, designava uma construção de
uma imagem de si, apoiada na individualidade e na autoridade do orador, para garantir
sucesso no empreendimento retóricos (2005, p.10). São os traços de caráter que o orador deve
mostrar ao auditório, independentes se são autênticos ou não. Ao falar de si, o ethos se
configura como um fenômeno dialógico, pois quando “o orador enuncia uma informação e, ao
mesmo tempo, diz: eu sou isto, não sou aquilo” (BARTHES, 2002, p. 78). Ou seja,
implicitamente aponta para o outro.
Seguindo a perspectiva de Maingueneau, observamos que o ethos é
uma noção discursiva, ele se constrói através do discurso, não é uma “imagem” do
locutor exterior a sua fala; é fundamentalmente um processo interativo de influência
sobre o outro; é uma noção fundamentalmente híbrida (sócio-discursiva), um
comportamento socialmente avaliado, que não pode ser apreendido fora de uma
situação de comunicação precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura
sócio-histórica (2011, p. 17).
muito interesse. Pelo rotulo fiquei logo inteirado de que as cenas que o autor
descrevia eram patrícias e alguma passadas na Escola Normal de Fortaleza, onde era
eu, a esse tempo, professor de Ciências Naturais (1924, p.41).
159
O texto da epigrafe pode ser consultado no livro disponível em:
https://fr.wikisource.org/wiki/Page:Balzac_-
_%C5%92uvres_compl%C3%A8tes,_%C3%A9d._Houssiaux,_1855,_tome_18.djvu/74
160
Tradução livre: Uma das obrigações as quais o historiador dos costumes não deve jamais faltar é de forma
alguma desgastar a verdade através de arranjos em aparência dramática, sobretudo, quando a verdade tomou a si
a pena de se tornar romanesca.
161
A divisão dos Esplendores e misérias das Cortesãs: Comment aiment les filles (Como amam as cortesãs); À
combien l’amour revient aux vieillards (Por quanto o amor fica aos velhos); Où mènent les mauvais chemins
(Aonde os maus caminhos vão dar) e La dernière incarnation de Vautrin (A última encarnação de Vautrin).
162
O romance Ilusões perdidas, dividido em três partes publicadas entre 1836 e 1843, possui dois cenários
fundamentais: a cidade do interior, Angoulême, e Paris. O herói, Lucien Chardon (em Paris, Rubempré) é um
jovem escritor renomado em sua província, que sonha com a glória literária na metrópole francesa. Ele e seu
266
circularem em diversas obras. O texto da epígrafe é uma fala de uma figura das mais
importantes: Voutrin.
Essa personagem aparece em vários romances da Comédia humana e é um de
seus pontos vitais. A fala está na parte final intitulada “A última encarnação de Voutrin”, mas
está sob a identidade de Abade Carlos Herrera. Como chefe do crime, ela assumiu vários
nomes como Vautrin, Trompe-la-Mort (Engana-a-morte), sr. Saint-Estève, Abade Carlos
Herrera e William Barker, a fim de esconder sua verdadeira identidade, assume o nome de
Jacques Collin, um homem da justiça. Dotado de um misterioso conhecimento dos
mecanismos sociais de Paris, se incube da missão de ajudar jovens ambiciosos, primeiramente
Eugène de Rastignac, em O Pai Goriot, depois Lucien de Rubempré, em Esplendores e
misérias das Cortesãs.
Vautrin tem a sua primeira aparição em O pai Goriot (1835), considerado o
primeiro grande romance de Balzac, abordando temas centrais da Comédia Humana, tais
como dinheiro, ascensão social, amor.
Ele morava, no início do romance, na pensão Vauquer e passa a ‘tutelar’ o jovem
Eugène de Rastignac para ascender socialmente, valendo de variados recursos, lícitos e
ilícitos. É uma famosa passagem do livro, Vautrin mostra a Eugéne os verdadeiros
mecanismos atrozes do jogo social de Paris:
Subir! Subir a qualquer preço. [...]Avalie os esforços que terá de fazer e a ferocidade
do combate. Como não há cinquenta mil bons lugares, vocês terão de se devorar uns
aos outros como aranhas num frasco. Sabe como é que a gente faz carreira aqui?
Pelo brilho da inteligência ou pela habilidade da corrupção. É preciso penetrar nessa
massa humana, como um projétil de canhão, ou insinuar-se no meio dela como uma
peste. A honestidade não serve para nada. Todos se curvam ao poder do gênio;
odeiam-no, tratam de caluniá-lo, porque ele recebe sem partilhar; mas curvam-se, se
ele persiste. Numa palavra, adoram-no de joelhos quando não o podem enterrar na
lama. A corrupção representa uma força, porque o talento é raro. (BALZAC, 2012,
p. 101-102).163
amigo, David Séchard, que comprara uma tipografia de seu pai, querem revolucionar a indústria do papel. Ao
mesmo tempo, Lucien torna-se amante da Madame de Bargeton, que o introduz no meio social interiorano.
Desprezado pelos próceres da cidade, ele e sua amante partem para Paris. A vida parisiense é, a princípio, uma
decepção para Lucien, que logo é abandonado por sua amante. Obtém fracasso ao tentar publicar seus livros. Ele
encontra consolo em frequentar O Cenáculo (um círculo de homens de letras) e se volta para o jornalismo, que
antes condenara, mas que o permite obter sucesso material. Cada vez mais ambicioso, escreve para jornais de
tendências políticas diversas, atitude mal vista no meio jornalístico. Com uma nova amante, uma atriz que
também que obter o sucesso, e na tentativa de consagrar o romance histórico que finalmente publicara e, após
uma sucessão de eventos infelizes ocasionados por suas atitudes desonestas, vê o seu sonho de glória literária se
arruinar.
163
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e
notas de Paulo Rónai; Trad. de Gomes da Silveira e Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012. V. 4.
267
bastante à ideias de campo, de Bourdieu. Claro, a diferença é grande, porque Vautrin pinta a
vida como um darwinismo social, mas para entrar com ímpeto e ficar em evidência nos
círculos sociais, é preciso de violência como um ‘projétil de canhão’. Trazemos essa citação
também pela similitude do estado de guerra social descrito por Balzac, em que personagem
pinta de modo maquiavélico as suas engrenagens.
Depois de auxiliar Eugéne a tentar enriquecer, Vautrin aparece sob nova
identidade para ajudar o escritor fracassado Lucien.
Voltando a epígrafe, o contexto é que Vautrin está dissertando para Lucien as
qualidades que um bom romancista deve ter, posto que os planos inicias do escritor foram,
inicialmente, arruinadas. Ele consegue enriquecer por meio de um pacto sinistro com Vautrin
em 1822, contudo faltou-lhe a consagração literária.
Mesmo sendo uma personagem bastante distinta de seu criador, percebemos em
algumas passagens, algumas ideias romanescas do próprio autor. Numa perspectiva
metalinguística, o personagem declara que para atingir o sucesso literário deve ser um
historiador dos costumes, ou seja, estava dando ênfase aos enredos que se passavam em sua
época contemporânea. Mas, sabemos que o próprio Balzac será o modelo desse tipo de
romance com a Comédia Humana, projeto literário, em quantidade e complexidade textual,
ainda não ultrapassada. Essa fala de Vautrin seria uma espécie de fundamento teórico
romanesco que o escritor queria promulgar, porque, não diferente de seus personagens,
também perseguiu a consagração literária.
Para Auerbach, Balzac foi uma peça chave para o desenvolvimento do realismo
moderno na literatura
da forma que se formou no começo do século XIX na França, realiza como
fenômeno estético uma total solução daquela doutrina, mais total e significativa para
a formação posterior da visão literária da vida do que a mistura do sublime com o
grotesco, proclamada pelos românticos contemporâneos. Quando Stendhal e Balzac
tomaram personagens quaisquer da vida cotidiana no seu condicionamento às
circunstâncias históricas e as transformaram em objetos de representação séria,
problemática e até trágica, quebraram a regra clássica da diferenciação dos níveis,
segundo a qual a realidade cotidiana e prática só poderia ter seu lugar na literatura
no campo de uma espécie estilística baixa ou média, isto é, só de forma
grotescamente cômica ou como entretenimento agradável, leve, colorido,
elegante164.
Ou seja, a vida cotidiana das cidades tornou-se espaço central dos romances e a
epígrafe é uma síntese bastante poderosa da escrita e do método de Balzac, porque foi um
164
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 6ª
ed, 2013, p. 499-500.
268
autor muito ancorado ao seu tempo. Em relação à conturbada história da França165, não
apenas uma testemunha privilegiada, atuou como uma espécie de repórter romancista e um
historiador social.
Rodolfo Teófilo prossegue
Um romance nos moldes do naturalismo moderno, expurgado das obscenidades da
“Carne” do homem, da “Terra”, pensei, iniciando a leitura. Logo nas primeiras
páginas vi que o autor afastava-se do plano, desprezando o conselho de Balzac, que
a descrição da vida burguesa em Fortaleza não exprimia a verdade, faltava cor local,
que o esboço era imperfeito e a ação seria defeituosa. Um casebre de porta e janela
na rua do Trilho nos subúrbios, com um piano na sala de visitas! O pincel de Adolfo
Caminha foi infiel logo no primeiro traço. Como novelista de costumes sacrificando
a verdade a arranjos dramáticos e romanescos. O instrumento de música era lhe
necessário para uma passagem, uma cena do romance, e pô-lo em casa de um pobre
amanuense, que vive mal á custa de seus setenta e cinco mil reis mensais! (1924, p.
43)
165
A França pós-Revolução Francesa, o Império Napoleônico, a Restauração, A Revolução de 1830, A
monarquia de Julho, a Revolução de 1848 e o Segundo império.
166
Segundo Aristóteles: “pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício do poeta narrar o que
aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer, quer dizer: o que é possível segundo a
verossimilhança e a necessidade” (Poética, Abril Cultural, 1984).
269
Supor que os indivíduos inchados durante a seca eram doentes de elefantíase, revela
nenhum conhecimento de patologia, cujas noções são indispensáveis a um escritor.
Adolfo Caminha podia ter evitado este erro, e inúmeros outros, se tivesse consultado
qualquer dicionário de medicina. Um escritor criterioso não aborda um assunto sem
o conveniente preparo. Leia o autor da “Normalista” alguma coisa sobre elefantíase
e se convencerá da sua falta. (id. p. 45)
167
Sobre a História da Igreja do Coração de Jesus, consultar em:
http://santuariosagradocoracaodejesus.com/a-igreja-do-coracao-de-jesus-em-fortaleza/
271
Assim com a Fortaleza de papel, Teófilo toma a Escola Normal do romance como
real. Entendemos que nenhum escritor tem a obrigação de transpor a realidade para o texto,
algo impossível, porque sabemos que é uma estilização da linguagem, materializada pelo
código linguístico. Nesse tipo de julgamento que Teófilo se desvia da crítica e foca em buscar
erros para deslegitimar o romancista.
Não podemos descartar que Caminha se inspirou em pessoas reais para compor
seus personagens, contudo não se pode tomar por absoluto qualquer tipo de associação, como
Teófilo faz, ao afirmar que o diretor do romance é uma caricatura do professor José de
Barcelos168.
Ao tentar defender um princípio moralizante em relação ao romance, em alguns
momentos, para nós torna-se hilário. Num trecho do romance, Zuza conversa com um amigo
sobre as jovens normalistas e destacam que são ‘modernas’
Todas elas sabem mais do que nós outros. Lêem Zola, estudam anatomia humana e
tomam cerveja nos cafés. Então as tais normalistas, benza-as Deus, são verdadeiras
doutoras de borla e capelo em negócio de namoros. Sei de uma que foi encontrada
pelo professor de história natural a debuchar um grandíssimo falo com todos os seus
petrechos... — O quê, homem?
— É o que estou a dizer-te, por sinal acabou amigando-se com um bodegueiro de
Arronches e lá vive muito bem com o sujeito. Creio até que já tem filhos.
— Ó senhor, então, ao que me vai parecendo, está muito adiantada a nossa pequena
sociedade! exclamou o Zuza muito admirado, cavalgando o pince-nez. Pois olha, eu
supunha isto aqui uma santidade (CAMINHA, 1997. p. 43-44)
Ora, o autor d’A fome se irrita profundamente com essa passagem pois
Como professor de História Natural da Escola Normal naquele tempo, protesto
solenemente com essa inverdade e essa monstruosa calunia, cujo fim principal é
desacreditar o nosso melhor estabelecimento de educação. Maria do Carmo
precisava de um meio que corrompesse e Adolfo Caminha entendeu encontrar a
Escola Normal (1924, p. 50).
168
Do diretor, a quem responsabiliza por tudo quanto de ruim acontece na Escola, assim descreve a figura na
pág. 98: “Fez-se um silencio respeitoso, e dai a pouco surgia no alto da escada a figura antipática do diretor, um
sujeito baixo, espadaúdo, cara larga e cheia cm uma venta excessivamente grande e chata, dilatando a uma sestro
especial, cabelo grisalho descendo pelas têmporas em costeletas compactas e brancas olhos miúdos e vivos, testa
inteligente...” (TEÒFILO, 1924. p. 51).
272
169
É crível que uma moça inteligente, com certa instrução, apaixonada por um rapaz bonito, com o qual tem
entrevistas diárias, deixe-se sequestrar por um velho nojento, Bêbado e, sobretudo, seu pai de criação? Só um
estado mórbido, uma lesão mental, acessos de ninfomania podiam determinar essa depravação do sentido
genésico, essa tendendo para criatura do sexo diferente, qualquer que seja a sua condição, e, Maria do Carmo
não era uma desequilibrada, não era uma enferma. O defeito é somente de observação: o autor ainda uma vez
sacrificou a verdade. (1924, p. 51).
273
descrição da cena da normalista: “Sentia-se melhor respirando aquele ar, bebendo toda a
selvagem frescura do campo, todo o delírio e inefável perfume que se levantava dos crótons
essas bravas, lê-se à página 267” (idem, p. 63).
Por essa passagem, Teófilo atesta a ignorância do autor em matéria de botânica ao
situar o cróton nas areias da Aldeota, além de não ter “conhecimento de vegetal algum
daquele gênero com perfume delicioso e inefável” (id. p. 63). Atesta como os crótons
brasileiros cheiram mal.
Mas como um cientista experimental,
Quis informar-me de viso, e fui á Aldeota. Não encontrei plantas do gênero croton,
porém da mesa família das Euphorbeaceas, o pinhão de purga (Jatropha Curcas L.)
a mamoneira (Ricinus communis L.) Quem conhece essas plantas pode muito bem
avaliar a extravagancia do olfato de Adolfo Caminha, o seu erro de observação,
qualificando o cheiro delas de delicioso e inefável. (id. p. 64).
O cúmulo do empirismo: ir à Aldeota para averiguar de que não há o vegetal lá,
para ter o prazer de atestar de que está com a verdade.
Ao chegarmos ao fim dessa primeira série de artigos, observamos que Teófilo só
considera o texto se estiver de acordo com os preceitos científicos. Esse tom normativo é
expresso em diversos julgamentos e conselhos: “Adolfo Caminha como escritor naturalista
não deve ignorar o como dos fenômenos, embora o porquê lhe escape como a todos os que
são sábio mesmo” (p. 70); “deve estudar um pouco História Nacional, ciência que todo
homem deve conhecer” (p. 69) e, e modo imperativo, conclui “recolha-se, medite o autor da
‘Normalista’ e convença-se de que escreveu um livro falso em todos os sentidos. (idem,
ibidem).
Ao afirmar que todo escritor é obrigado a estudar ciência, é uma postura bastante
radical, porque
A formação científica de Rodolfo Teófilo leva-o a aproximar, de forma exagerada, o
seu modo de fazer ficção com o seu modo de fazer ciência. Ele não pondera com
leveza a diferença entre as grandezas dos fenômenos literário e natural. O fenômeno
literário, a seu ver, é verificável como o natural; assim, se este é para ele examinado
na natureza natural, o outro também pode ser averiguado e determinado pelas
relações de natureza social. Sabemos que a densidade do literário encontra-se
assentada na realidade imediata. Acontece que o fenômeno literário dá-se por meio
de figuras textuais modalizadas através de uma ordenação ficcional confiada ao
texto, momento em que recebe acomodações da linguagem em configurações
literárias (GUINSBURG, 2017, p. 366).
Contudo, todos esses aspectos giram em torno de sua condição como cientista,
como sujeito que adotou a ciência como modo de interpretação da vida e como método de
escrita literária.
No segundo artigo estampado nas páginas d’O pão, “Cartas literárias”, Rodolfo
Teófilo defende novamente seu romance contra as “calúnias” de Adolfo Caminha e, dessa
vez, passados alguns meses, percebemos que a mágoa tornou-se maior. Além como
romancista, Teófilo engendra um discurso para desqualifica-lo enquanto crítico e os traços de
seu ethos ficam mais explícitos.
Assim como o artigo anterior, Teófilo contextualiza a situação e o motivo da
escrita de seu texto. Além do aparecimento escandaloso de A normalista, noticia a publicação
das Cartas literárias, denominado por ele como “literatolices”
Acabo de ler o novo livro de Adolfo caminha no qual são apreciados alguns de
nossos mais distintos homens de letras. [...] Agora vejamos porque nelas figura o
meu nome. Li o que me dizia respeito e aos meus companheiros. A mim coube uma
apreciação á “Fome”, livro que publiquei em 1890. Recordei-me de ter lido algures
cousa parecida e recorrendo ao meu “Livro azul” fui encontrar a tal apreciação,
anônima, menos pulha, mas também, menos desenvolvida, na “Revista moderna”,
que se publicou em Fortaleza em 1891. (1924, p. 73)
Assim como a primeira série de artigos, Teófilo vai citando diversos trechos do texto de
Caminha, para estabelecer o ponto de discórdia e apresentar o argumento contrário.
Depois de dizer que não conhece os livros que tenho publicado, antes de mostrar os
defeitos da ‘Fome’, diz ex-catedra: “O que se desde já vou afirmando é que o sr.
Teófilo pode ser cidadão muitíssimo trabalhador, o ativíssimo fabricante de vinho de
caju (que o é) incansável mesmo nos labores de sua profissão, extremamente
amoroso para com sua terra natal ter todas as qualidades de bom cidadão, mas em
tempo algum conseguirá um lugar proeminente na literatura nacional, falta-lhe certo
quid, largueza de vista, orientação, bom-gosto, predicados indispensáveis a quem se
aventura neste terreno.” (id. p. 74)
Maingueneau nos alerta que a polêmica nunca será um debate sincero, pois o
locutor quando cita ou comenta o enunciado do seu oponente, o faz como um simulacro para
triunfar o seu ponto de vista (2005, p. 103). Ele cita diversos trechos do artigo para balizar a
sua argumentação. A sua escrita é performática, dando-nos uma imagem de sua reação
perante o outro “Quase esbofei com a leitura deste período, afinal tomei folego e vamos
continuar. Dos dizeres acima, embora com a linguagem de polemista de roça, tive um lucro, o
reclame que faz Adolfo Caminha do meu vinho de caju” (id. 74).
Nesses trechos e em outros, Teófilo tece-lhe os epítetos de “pulha”,
“monstrengo”, “zabumba”, “polemista de roça”. Ao desqualificar o escritor, ressaltando as
suas ‘faltas’, Teófilo traça alguns pontos de sua visão de crítica literária: critério,
conhecimento, sinceridade.
O contraditório é que, quiçá, nem ele mesmo, absolutamente, os utilize. São
critérios ligados à sinceridade e a erudição, mas que ele abandona em virtude do ataque
pessoal.
É a partir desses três pontos apresentados que ele deprecia Adolfo Caminha como
escritor e crítico, pautando a análise de seu artigo. O texto é visto como uma metonímia, uma
extensão de seu autor. Ao atacar o texto, ataca o autor.
Anteriormente, Caminha traçou um perfil de Teófilo em seu artigo, a partir da
leitura do romance A fome: um moralista, artificial, romântico, piegas, pedante, apegado a
digressões científicas. Teófilo responde afirmando
Talvez o meu crítico supusesse que eu me molestava dizendo ser eu fabricante de
vinho de caju; se assim pensou enganou-se, a minha vaidade não chega a empáfia
balofa; tenho muita honra em ser industrial, em harmonizar o útil ao agradável. Nas
horas vagas escrevo sonetos e contos e por desfastio às vezes aponto as parvoíces
literárias de romancistas pulhas. [...] O que estranho é ter Adolfo Caminha quando
desarrumou a minha bagagem literária cientifico, (como chama) encontrado vinho de
caju; mas se o encontrou foi bom, bem manipulado, feito com aqueles cajus doces da
Aldeota, vendidos pela tia Joaquina do mestre Cosme. Há pouco tempo quando
escrevi uma ligeira apreciação da ‘Normalista’ não indaguei se Adolfo Caminha era
alfaiate, sapateiro ou sacristão (idem, p. 74-75).
276
Ele afirma que o conhecimento científico é fundamental para obter sucesso como
escritor naturalista. Julga-se superior, pois ele já é um cientista, fabricante de remédios,
xaropes e bebidas e não apenas um romancista que deveria estudar ciência para embasar a sua
escrita. Ele adotou a ciência como critério da ‘verdade’ e se outorga no discurso uma posição
institucional e marca sua relação com um saber científico.
O critério da sinceridade é relacionado ao terrível episódio da Seca de 1877, que
estão presentes em ambos os romances. O autor afirma que
Adolfo Caminha não conhece a seca, o maior mal que pode flagelar um povo. Se
tivesse assistido uma dessas calamidades, como eu, embora ao abrir-se das
necessidades materiais da vida, havia de perder parte de sua musculatura e quase a
paz do espirito. Se não tivesse n’alma anestesiados os sentimentos de piedade (id. p.
76).
Nesse trecho, Teófilo afirma a sua autoridade em relação à seca, porque além de
ser testemunha ocular, atuou como sanitarista, conferindo um status de verdade ao seu
discurso. Não era um romancista de gabinete, esteve presente no episódio histórico e o
277
escreveu a partir de seu testemunho e de critérios científicos, requisito mais importante do que
os estéticos.
Teófilo cita e comenta outro trecho que revela um recurso desleal de seu
adversário
Ouçamos o desgraçado retirante a respeito da mucunã: sua massa é de cor de carne,
o sabor super adocicado e os tecidos de uma macieza que agradecem ao paladar... E
assim por diante, o homem fala em tecidos vegetais como um doutor!”. Ninguém
suporá lendo este trecho e não tendo lido o que está escrito na ‘Fome’, página 93,
que Adolfo Caminha fosse capaz de uma inverdade, mais ainda adulterar um fato,
um período de uma narração para pode-lo criticar. Quem lê o que escrevi á citada
página vê que não se trata de mucunã e sim de outro vegetal, terrível veneno, cuja
ingestão produz a destruição completa de alguns dos sentidos em poucas horas.
Porque Adolfo Caminha não transcreveu toda a informação do retirante sobre a
planta? Porque a mutilou? Foi porque publicando-a em sua integra, não convinha a
sua crítica. (id. p. 76)
170
Na versão editada pela Academia Cearense de letras, o trecho se encontra na página 46 (1979).
278
aponta as más qualidades do seu romancista opositor adjetivando a falsidade de suas páginas
escritas.
Adolfo Caminha criticou o exagero cientificista do romance A fome. Para
estruturar a sua defesa, Rodolfo Teófilo comparou o protagonista de seu livro, Manoel de
Freitas com o personagem d’A normalista, o retirante pai de Maria do Carmo, Mendonça.
Ele alega que o seu personagem, por remeter a um modelo real de retirante, é mais
cearense, mais verdadeiro. Mesmo assim, no texto, Teófilo remete aos leitores para que
‘digam qual é mais real’, ou seja, o público é o juiz da polêmica.
A seguir, Teófilo declara o ponto que lhe causou mais mágoa, no comentário do
seu oponente.
De todas as injustiças que o Srº Caminha faz A fome a que mais me doeu e me
revoltou mesmo foi a falta de verdade nas cenas que descrevo. Tenho consciência do
contrário; percorri os abarracamentos, ouvi com grande atenção e piedade as
narrativas dos infelizes famintos e assim julguei ter fotografado no meu livro, não
todos os episódios d’essa angustiosa época, pois os que julguei mais extraordinários
sob o ponto de vista das misérias humanas. Esse assumpto tratado por Alencar,
Aluísio ou Guerra Junqueiro daria páginas admiráveis de estilo e verdade, diz o meu
crítico. O meu amor próprio nunca cogitou de elevar-me às grandes alturas onde
pairam as águias. Não foi a ambição de glórias, de renome que me fez escrever a
história da seca, mas a necessidade de deixar escritas algumas informações d’esse
tempo aos nossos pósteros. A minha envergadura é pequena para alar-me as cumeadas
onde estão Alencar, Aluísio e Junqueiro, e sei que descrevendo a seca eles dariam
páginas de melhor estilo, de mais arte, porem de mais verdade a minha consciência diz
que não (sic) (id. p. 80).
citados. Alencar, Aluísio, Guerra Junqueiro são comparados à águias, aves que atingem
alturas elevadas, conotando uma distância estética com Teófilo, que reconhece
Ele assume que escreveu A fome pela “necessidade de deixar escritas algumas
informações d’esse tempo aos nossos pósteros”, por uma questão humanitária, dando a sua
literatura, uma função jornalística e memorialística.
Sobre o seu cientificismo, ele declara:
Outro defeito que Adolfo Caminha aponta em A Fome é o abuso que faço de termos
científicos. Não duvido que a leitura quotidiana de obras de ciência tenha feito
incorrer nessa falta, mas não a ponto de sacrificar as cenas que descrevo, a estética
dos quadros que pinto, que reproduzo do natural. Quer o meu critico que eu chame
passarinha em vez de baço [...] Não, o modo de dizer deve estar de acordo com a
cultura do indivíduo. Antes de qualquer justificativa estranho o procedimento do
meu critico, a sua delealdade, pois, além de transcrever erradas as palavras que vão
em itálico, leucolitos, em vez de leococitos, [...] Não, Sr. Caminha, o modo de dizer
deve estar de perfeito acordo com a cultura intelectual do indivíduo. (id. p. 87).
Pelo tom do texto, percebemos que é severo, mas não apresenta polemicidade. Ele
indica pontos positivos e negativos do escritor. Assim como Adolfo Caminha, atesta a
dificuldade de se cultivar o gênero romance no Brasil, com ressalvas, afirma que Rodolfo
171
José Rodrigues de Carvalho (1867-1935), paraibano, se estabeleceu no Ceará como advogado e bancário. Fez
parte do Grêmio literário e da Academia Cearense de letras. Como poeta e folclorista, publicou: Coração (1894),
Prismas (1898). Poema de Maio (1901), Cancioneiro do Norte (1903).
172
Carvalho, Rodrigues de. Maria Ritta, de Rodolpho Theophilo. In: Revista da Academia Cearense. Fortaleza:
Typ. Studart, 1899.
284
Teófilo pode se tornar um. Enquanto louva o seu poder de imaginação, censura-lhe pelo
descuido da linguagem.
Rodolfo não compenetra-se do verdadeiro papel do romanista, que é observação
exata, análise sem exageros, simplicidade do entrecho, tudo como a resultante de
uma época, que no romance deve ficar estudada e perpetuada. O Maria Ritta està
fora dos moldes do romance de analise, é destituído de todos os requisitos próprios
do romance atual que é a psicologia das sociedades... (sic) (1899, p. 244).
Avalia que o romance não se enquadra como romance naturalista e nem estuda,
por meio de suas personagens, a psicologia do povo cearense. Também acusa a
inverossimilhança do romance, devido à linguagem formal empregada, em que “... diálogo
entre vaqueiros parece uma polemica de sábios” (1898, p. 246). E por fim, com um tom
pedagógico, aconselha que se manejasse “a língua vernácula com mais cuidado, domasse o
pensamento na descrição dos cenários, dos fatos, e seríamos nós os primeiros a laurear lhe a
fronte (idem. p. 247). Mesmo não sendo um texto polêmico, também não fora simpático.
O terceiro romance com a mesma acusação e como adquiriu experiência crítica
com a polêmica contra Caminha, decide entrar na arena para defender novamente a sua
reputação literária. Escreve “Em volta do Maria Rita” e questiona o arbítrio dos críticos e das
academias como ‘legitimadores’ do valor literário.
Muito disseram os críticos do romance “Maria Rita”. Li com grande atenção tudo
que se escreveu e dei entrada no meu Livro Azul, repertorio do que se tem dito de
minha individualidade. A críticomania é uma doença que se tornou endêmica no
Ceará. Nos países mais antigos do que o nosso, que tem literatura, um crítico é coisa
rara e tanto que os Taines não são comuns (1924, p. 93).
Ele denomina seu romance de ‘livro azul’, uma referência aos milhares de livretos
publicados na França, no século XVIII, geralmente com a capa azul, de material muito
ordinário e barato. Uma ironia à opinião perpetrada ao seu romance. Desmerece a mania de
crítica na cidade, ao afirmar que, mesmo nos países europeus, difícil o surgimento de um
Taine.
Já estudamos a sua famosa “Introdução a História da literatura inglesa” no
segundo capítulo dessa pesquisa, um texto básico para a compreensão da atitude científica
sendo aplicada às críticas literárias. Para Taine, ao estudar o texto literário como um
documento, pode-se entender a psicologia de seu autor.
Teófilo continua a sua dissertação em relação a crítica no Brasil.
O Brasil conta na Capital Federal três escritores notáveis, todos nortistas, que se dão
a este gênero de estados, mas que não se podem chamar críticos na verdadeira
acepção da palavra. São eles Araripe Jr. Junior, José Veríssimo e Silvio Romero,
todos falecidos. O primeiro peca por seu otimismo, o segundo pelo seu pessimismo
e o terceiro pelo modo apaixonado de julgar. Já se vê que faltam aos três os
caracteres de um bom juiz. Araripe Jr. Junior, por exemplo, empregava mais ou
285
menos os processos da crítica moderna, mas a sua bondade inata, fazia esquecer, às
vezes, os deveres de sua tarefa, tornando o indulgente a ponto de prejudicar os seus
ditames. O crítico na análise de um livro só deve ter em vista a verdade; é como o
anatomista dissecando o cadáver. (idem, p.93).
Nessa rica passagem, salienta que os destacados intelectuais são nortistas e dá, a
cada um, qualitativos de sua personalidade associada à suas atividades críticas: Araripe Jr. –
otimista; Veríssimo – pessimista e Romero - apaixonado. Os três críticos173 assim como
outros da Geração de 70, com formação taineana, cada um à sua maneira, tentou construir
uma crítica de caráter cientificista e racionalista. Diante dessa informação, percebemos que
Teófilo não estava à margem dos grandes debates literários promovidos na Capital Federal.
Enquanto os adjetivos, ao observamos as características de cada um, é fácil entender que
Sílvio Romero seja um sujeito tomado pela “paixão crítica”, Veríssimo, talvez pelo rigor
formal em que analisa os textos literários e Araripe Jr. Júnior, quiçá, por não ser radicalmente
severo. O que mais se destaca é a sua imagem de crítico literário, uma metáfora radicalmente
naturalista: anatomista dissecando o cadáver. Isto é, o cadáver é o texto literário em que o
crítico analisa todos os seus pormenores, praticamente um cientista forense.
Em seguida, nega à autoridade do crítico e da instituição que ele representa.
A Academia Cearense, a julgar pelo título, devia agremiar a flor de nossos homens
de letras. Não era assim, era mais o rótulo. Dela entretanto saiu o crítico na pessoa
do ilustre acadêmico e poeta Sr. Rodrigues de Carvalho. Fez a sua estreia na
“Revista da Academia”, e, se tudo que é longo e complexo é promissor, ela o foi,
não há dúvida. Todos os gêneros da literatura foram estudados e mais de seis autores
receberam do imortal, que descia do aeropago, a sua glorificação, ou condenação.
Entre os livros apreciados está “Maria Rita”. Embora a apreciação emane de núcleo
tão ilustre, onde reconheço alguns homens híbridos em sua maioria, nego autoridade
ao crítico oficial da Academia, e direi porquê (id. p. 95).
173
Em polêmica contra Osório Duque Estrada, Teófilo também descreve os três críticos: “José Veríssimo era
mais filólogo do que critico, sempre preocupado cum minudencias gramaticais, como um mestre-escola antigo,
armado de férula, procurando a colocação dos pronomes; enfim apreciando um livro parecia estar corrigindo a
prova de português de um colegial. Silvio Romero, muito culto e muito competente, mas completamente falho de
senso crítico, era um estouvado e um abaixado juiz. Todos eram acadêmicos, mas por isso não se segue que
todos os membros daquela corporação sejam inteligentes e cultos” (1924, p. 17).
286
Outro trecho que traz informações valiosas da poética de Teófilo, inclusive sobre
sua evolução estética. Diferente da polêmica em torno do romance A fome, e depois de
escrever mais dois romances, apresenta mais consciência da sua evolução literária. Com o
distanciamento histórico, observa os problemas de seu romance de estreia. Ele alega que o
motivo de A fome ser um ‘mau livro’ foi a inexperiência e o desejo de ‘mostrar saber’, pontos
colocados por Adolfo Caminha, agora assumidos. Mesmo com problemas, declara ter
287
174
Joaquim Osório Duque-Estrada (1870-1927) foi um poeta, professor e crítico literário. Bacharel em Letras.
Participou das Campanhas da abolição dos escravos e da proclamação da República. Na década de 1890, exerce
o cargo de diplomata e no início da década de 1900, torna-se professor da Escola Normal e do Colégio Pedro II.
Em 1905, deixa o magistério e colabora em vários periódicos cariocas como o Imparcial e Jornal do Brasil e no
Correio da Manhã, o qual cria a seção de crítica Registro literário, entre 1914 a 1917. Muitas das críticas ácidas
são reunidas no livro Crítica e polêmica (1924). Em 1909, vence o concurso, com o poema parnasiano em versos
decassílabos, criado por lei de autoria de Coelho Neto, para "a melhor composição poética que se adapte, com
todo o rigor do ritmo, à música do Hino Nacional Brasileiro". O poema torna-se oficialmente a letra do hino
nacional em 1922. Ocupou a cadeira 17 da Academia Brasileira de Letras, na sucessão de Silvio Romero, em
1915.
289
pertencentes aos Caçanjes ou à sua língua, grupo étnico de Angola; a segunda, depreciativa,
com uso antigo, o português mal falado ou mal escrito. Ou seja, a escrita de Teófilo é
associada a um dialeto africano, denotando uma escrita aquém da norma culta. Procedimento
elitista, eurocêntrico e preconceituoso. Mas, esse julgamento, vide o uso do verbo ‘creio’, é
ambíguo visto que se não leu a obra completa e mesmo assim age como um severo juiz.
É óbvio que Rodolfo Teófilo, ao tomar conhecimento da crítica depreciativa de
seu livro, parte para o combate. É um dos seus textos polêmicos mais interessantes, pois
estabelece uma discussão repleta de antagonismos, opiniões e denúncias sobre os mecanismos
de consagração literárias e as hierarquias políticas e culturais entre regiões literárias,
questionando a centralidade do Rio de Janeiro e da Academia Brasileira de Letras.
O texto tem o jocoso título de “O papão da literatura”. A metáfora é muito
significativa, pois relaciona Duque Estrada ao medo e terror. O bicho-papão175 é uma criatura
mítica, presente em variadas culturas, comumente retratado como um algum tipo de espírito
ou entidade que aterroriza as crianças desobedientes durante a noite. Assume variadas formas
para que possa estar em qualquer lugar a qualquer hora, quer isso signifique espreitar debaixo
da cama ou no armário, ou atrás de uma árvore na floresta. Como um poderoso subterfugio
imaginário, é utilizado para garantir que as crianças sigam as regras. O termo "bicho-papão"
às vezes é usado como uma personificação ou metonímia para o terror e, em alguns casos,
para o diabo.
O texto de Teófilo inicia-se traçando o perfil de seu zoilo.
A petulância de Osório Duque-Estrada, da Academia Brasileira, arvorado em crítico
no Rio, me despertou o desejo de ler os seus livros e saber o valor de sua
individualidade literárias. Já havia lido do Duque alguns artigos na imprensa do Rio,
na seção – Registro Literário – e a impressão que me deixaram foi de que o Osório
Duque é um grande malcriado, tendo se imposto naquele grande e fútil meio pela
audácia. Sua pena foi ganhando fama e tornando-se temida. A maioria dos homens
fica apavorada só com a ideia de ver o seu nome mal tratado no jornal. São espíritos
timoratos, ordinariamente sem valor intrínseco, que se deixam dominar pelo medo.
Se o indivíduo é literato principiante, então uma crítica mordaz, na imprensa do Rio,
é uma morte, é o acabamento de todas as esperanças, o fechamento da sonhada porta
da Academia de Letras. Para os que se iniciam os Duques são a encarnação fiel da
figura do papão com que se mete medo às crianças. Para o novo literato que reside
nos Estados a imprensa do Rio é um constante pesadelo. O nome dos Duques o
aterra. Não têm nome feito e para fazê-lo é preciso que o papão não apareça no seu
caminho. È verdade que nem todos são assim. Eu, por exemplo, fui novo e hoje sou
velho e nunca tive medo de semelhante bicho (1924, p. 5).
175
As descrições dos bichos-papões ou seres que lhes correspondem variam de país para país, embora haja
algumas semelhanças: a Inglaterra bogeyman/bogieman; El Coco em alguns países latino-americanos e Homem
do Saco, na Espanha; Bokkenrijders na Holanda; Baba Yaga nos países eslavos; Butzemann na Alemanha;
H’awouahoua na Argélia; Tokoloshe na África do Sul; Namahage na península Oga, Japão entre muitos outros.
A entidade é popularizada na canção de ninar portuguesa "Vai-te papão, vai-te embora/ de cima desse telhado,
deixa dormir o menino/um soninho descansado". A variação no Brasil: "Bicho papão, /sai de cima do
telhado/deixe esse menino/dormir sossegado."
290
Ou seja, por mais que haja um discurso sobre o cultivo da arte e das belas letras,
o entrelaçamento com o poder político era inevitável. É evidente que houve e há homens de
291
talento e de sincera erudição na instituição, mas nas primeiras décadas do século XX também
houve a presença de medalhões da política e militares com o fardão.
Duque Estrada agia como um coronel literário, dotado de autoridade para
consagrar o literário efebo ou jogá-lo ao ostracismo. O crítico, para Teófilo é interpretado
como uma metonímia pejorativa do corporativismo da Academia, uma espécie de porteiro da
‘igrejinha’.
Em seguida, Teófilo crítica o Rio de janeiro como único centro literário legítimo
da literatura brasileira.
O carioca não conhece as cousas e os homens dos Estados do Norte. A sua visão não
vai além da baia de Guanabara. Os letrados, quase na sua totalidade, são nortistas;
plantas exóticas para ali transplantadas tenras ainda, se adaptaram ao meio
obedecendo à lei fatal da biologia. [...] Esquecerem depressa a terra que lhes foi
berço e compreenderam que naquele grande cenário vencem as exterioridades, mas é
preciso serem vistas por aquela multidão empenhada na luta intensa da vida. Basta
um ato vulgar para abrir caminho à fortuna, à celebridade, mas é preciso que seja
praticado com arte, com audácia, com reclamo. Quantos nulos se têm assim ali
entronizado! Os letrados compreenderam e melhor assimilaram o meio a que se
tinham adaptado. Congregaram-se e pontificam excluindo da comunhão brasileira
todo aquele que não tem o Pão de Açúcar debaixo dos olhos, monopolizando as
letras pátrias. (1924, p. 6-7).
176
Disponível em: http://www.poetafilgueiraslima.art.br/artigos/funcao_social_politica.html
292
177
Discussão efetuada no primeiro capítulo dessa pesquisa.
178
Literatura, espelho da América? In: Remate de males. Campinas, UNICAMP, 1999. Disponível em:
https://doi.org/10.20396/remate.v0i0.8635995
293
Teófilo não defende só a si, mas a classe dos escritores de sua terra, que cultivam
o nativismo. Os escritores regionalistas cearenses, como Teófilo, Adolfo Caminha (A
normalista), Oliveira Paiva, Domingos Olímpio, Antônio Sales, etc. são importantes para a
literatura nacional:
Mesmo porque, dada a distribuição espacial de um território nacional, da
sua diferenciação geográfica, encontram-se presentes, na composição do seu povo,
homens da cidade e do campo. Afinal, uma unidade nacional dà-se no interior de
uma variedade regional; grupos sociais, desse modo, distinguem-se no interior de
uma coletividade e de um conjunto cultural. Dessa maneira, transparecem diferenças
entre valores vividos no campo e na cidade, ambos com características regionais e
universais (GUINSBURG, 2017, p. 367)
Observamos as críticas que Rodolfo Teófilo faz a Osório Duque Estrada, revelam
disputas para a descentralização da literatura brasileira, assim como a defesa da literatura
regional.
Em seguida, Teófilo revela que irá
Ao longo do texto, o polemista vai analisando livro por livro, inclusive os líricos
A quarta mala contem um bonito exemplar, a “Flora de Maio”. O título é pomposo e
sugestivo. Percorri devagar a flora rimada e não encontrei nela o perfume agradável
dos manacás, das orquídeas, das rosas. Nos jardins e nos campos há flores de toda
espécie. As flores do Duque não tem perfume; se alguma o tem, é tão acre como o
da flor da catingueira. Por ser uma questão de gosto, de ser impressionado. Para
alguns serão olorosas. Não duvido, porque há pessoas que gostam de peixe moído,
de café sem açúcar, dos congos e do bumba meu boi. O título do livro devia ser
Flora de Outubro, mês da inflorescência do chichazeiro (idem, p. 11-12)
179
Com o falecimento de Sílvio Romero, em 18 de junho de 1914, a cadeira número 17 da ABL ficou vaga.
Farias Brito se candidata, mas é derrotado por Osório Duque Estrada, que teve 14 votos, Almáquio Diniz, em
segundo com 7 votos, aquele ficando em terceiro com 6 votos. Numa biografia sobre o filósofo, Antônio Carlos
295
Desde o início da década de 1910, Farias Brito tinha a intenção de publicar uma
revista, fato que só o fez, em novembro de 1916, após a sua derrota na eleição para a ABL.
Com o título de O panfleto, escreveu um radical desabafo contra a mediocridade e falta de
ética de seu contexto literário e político. O texto é assinado com o pseudônimo, “Marcos
José”, inspirado no pai do pensador. O panfleto caiu como uma bomba no Rio de Janeiro e a
recepção foi devastadoramente negativa. O filósofo mandara recolher os exemplares que
ainda restavam. Junto com a derrota acadêmica, a má recepção do livreto causara um desgaste
psicológico em Farias Brito.
Conhecido por se um homem pacato e sereno, no Panfleto, a sua índole se transfigurou
em um polemista voraz e iconoclasta, como podemos ver na apresentação da Revista
Mas estamos dispostos a reagir, no campo da discussão, ou no terreno da luta das
ideias contra todo e qualquer poder, contra toda e qualquer avalanche que se nos
apresente pela frente. Não recuaremos. É verdade que nossos recursos materiais são
precários, e quase podemos dizer, sob esse ponto de vista, que nos arriscamos & um
combate no vácuo, quer dizer, a um combate em que nos faltam todos os elementos
de vida e todas as condições positivas do êxito [...] De certo modo não trazemos a
paz, mas a guerra. Mas o momento é de guerra. E nós, sob muitos pontos de vista,
precisamos de guerras. Pelo menos, há, entre nós muitos ídolos que precisam de ser
destruídos; uns de barro, e quase todos são desta espécie; outros, muito raros, de
ouro. Para desmoronar os primeiros basta, o mais das vêzes, um sôpro viril e
enérgico. Mas para destruir um ídolo de ouro, em regra, só fogo. Nós nos saberemos
servir, conforme as circunstâncias, das armas que se fizerem necessárias. Em todo o
caso nossos processos serão sempre os da verdade e da sinceridade (1916, p. 5-6)
Klein nos alerta que para Medeiros e Albuquerque, Osório venceu porque amedrontava alguns imortais com sua
crítica literária ferina que saía nas páginas do Correio da Manhã. Pouco depois de empossado, não restava, no
cenáculo da ABL, quem deixasse de censurar “a grosseria, a brutalidade, a falta de compostura” dele. Apesar de
ser o autor da letra do Hino Nacional, era mesmo uma unanimidade no quesito aversão. Coelho Neto achava-o
repugnante e Carlos de Laet, motivado por sua conduta, sugeriu a inclusão do seguinte artigo no Regimento:
“Não se admitem cafajestes” (KLEIN, 2004. p. 80).
296
imagem corrupta da imprensa da capital carioca, de um lado os letrados vendidos que servem
às folhas oficiais, do outro, os panfletários, os marginais, os que têm a consciência livre.
Ele define o panfletário como o homem que julga (1916, p. 9) e para ser um
combatente do pensamento precisa ser independente e imparcial, rigoroso, implacável e,
sobretudo, violento.
“Marcos José” não generaliza, ele afirma que há exceções, pouquíssimos
jornalistas que são honrosos, independentes e dignos, porém, a maioria representa o “esgoto
da vida espiritual do país”.
Além dos jornalistas, a sua pena afiada se dirige aos Homens de Letras e à ABL,
num insulto tão devastador para tirar toda a aura de sacralidade que tenta arvorar para si.
Homens de letras – eis uma raça que, entre nós, prolifera de uma maneira espantosa.
Literatos temos de todo o tamanho e de todos os feitios. Alguns há que se
apresentam sob a forma de urso; outros, de cobras, réptis ou víboras danadas.
Alguns fazem a figura do jaboti; outros, a do cágado; e ainda outros, a da lesma ou
do porco. A Academia Brasileira, por exemplo, não sei bem se de letras ou de tretas,
dá bem, disto, uma prova colossal e magnífica. Um de seus membros já chamou
aquilo de curral. Curral, que certamente, não deve ser de bestas, nem de vacas, mas
onde o ilustre acadêmico (Carlos de Laet, e este é ilustre de verdade, e um dos mais
ilustres) desejava ver o efeito que havia de produzir a entrada de um touro bravo
(Emílio de Menezes). E melhor se poderia chamar a Academia, para falar em
linguagem menos zoológica, alojamento de pedantes e nulos que, nada valendo,
imaginam poder valer alguma coisa através daquela ficção já desfeita e
completamente desmoralizada, de parte alguns homens de valor, poetas, tenho o
mais vivo prazer em dizê-lo de alto merecimento e brilhantes escritores e também
sábios e políticos que ali ainda existem, mas que, sem dúvida, já se devem sentir
enojados daquela corja (BRITO, 1916, p. 29).
— Estou a vê-lo explicar com ironia que fui militante e esforçado amigo de
contendas e descomposturas, com a pretensão de quem vinha botar abaixo a
Academia e salvar o mundo da grande praga dos Signos. Que quer? No Rio as
cousas são assim. Quem deseja vencer, deverá começar demolindo, porque, no fim
de contas, só essa fúria iconoclasta pode ter a virtude de arrombar a porta e facilitar
a entrada. Fora disso, o que resta é apenas a docilidade passiva, o respeito aos
medalhões, a subserviência miserável e ignóbil — elemento seguro e infalível para a
subida rápida. Imaginem o atroz dilema! — Devora ou és devorado180.
O discurso de Pacheco é bastante ferino e desencantado, bem próximo de Vautrin,
sobre o funcionamento do campo literário. Esse depoimento foi publicado em 1905, e o
iconoclasta poeta entrou para a ABL em 1912.
Como já citamos, Teófilo escreve esse texto antes de ingressar na Academia
cearense, em 1922, contudo, percebemos que a sua desaprovação gira em torno da ABL, ao
afirmar que nunca cogitou entrar no “Pantheon”
Pelo contrário, sendo convidado pelo coelho Neto para apresentar-me na vaga de
Raimundo Correia, disse o que pensava sobre essas associações. Se tenho valor
intrínseco, se não sou metal ruim galvanizado a ouro, hei- e valer quer seja ou não
acadêmico. Se sou latão galvanizado, não há academia que me dê valor intrínseco.
Quando soube que Farias Brito era candidato a um lugar na Academia Brasileira de
Letras, fiquei estupefato com a sua franqueza. Grande é o poder da adaptação ao
meio. Amigo, seu, lamentei-o. Não me contive e escrevi dizendo-lhe no recesso de
nossa intimidade que ele havia dado um passo em falso quando se propôs a um lugar
na Academia; que não alimentasse esperanças, que seria fatalmente derrotado por
um desses elegantes da Avenida que com ele concorresse. E realizou-se o meu
vaticínio! (1924, p. 30-31)
Pelo trecho, percebemos que ele tem consciência de seu valor, “escrúpulos de
provinciano”, e como um autêntico ‘nortista’, ironiza que não é um ‘metal ruim’ e que
também é ‘ilustre’, ao contrário dos “elegantes medalhões do Rio” Lamenta a tentativa de
ingresso de Farias Brito, sendo que seu Panfleto constitui um grito de revolta. Novamente,
observamos a dicotomia entre o espaço regional, Ceará, e metrópole literária, o Rio de
Janeiro, sobretudo, entre o mérito literário e os apadrinhamentos. Ao invés da ABL, ‘viveiro
de celebridades’ (1924, p. 30), ele considera “mais decente o modo de admissão no Instituto
180
(PACHECO, Félix. In: RIO, João do. O momento literário. Capítulo XVIII, 2006, p. 118-119).
298
Teófilo encerra o seu texto, salientando, o crítico deve ter talento, cultura e
critério e não apenas agir como um professor corrigindo provas de português. Teófilo encerra
o seu texto.
Por conta desse histórico de mais de vinte anos de ataques sofridos, quando
Teófilo toma conhecimento de um livro, A polyanthea, em homenagem a Nogueira Accioly,
composto de textos variados, tais como poemas e discursos, escreve mais um artigo
apaixonado, estampado em Meus Zoilos. O alvo principal de sua crítica é Gomes de Matos,
advogado e amigo do governador, além de seu grupo de ‘engrossadores’.
O polemista relata que o advogado, numa perspectiva darwinista, adaptou-se ao
meio, isto é, o campo político cearense obedecendo às leis da biologia de adaptação ao meio
político e social.
Interessante é que o autor não poupa as palavras, é bastante direito em acusar
Gomes de Matos, considerado o engrossador-mor de Accioly
Acho o seu artigo um pouco desorientado e até ilógico. Não é tarefa fácil sustentar
falsas ideias, passar paradoxos por verdades. O engrossamento nos leva a praticar
atos contrários a consciência. Esta arte que ensina a viver bem neste mundo á custa
181
O Dr. Meton de Alencar, em A República (25/10/1905, 27/10/1905, 28/10/1905, 31/10/1905, 3/11/1905,
6/11/ 1905 e 8/11/1905), em artigos sob o titulo “Sr. Rodolfo Teófilo”, procurou mostrar, de maneira agressiva,
os erros do cientista no campo da vacinação e as injustiças por ele cometidas. A todas as pesadas acusações,
respondeu Rodolfo Teófilo no Jornal do Ceará (06/09/1905, 30/10/1905, 19/01/1905, 03/11/1905 e 06/11/1905),
defendendo-se com altivez e condenando os órgãos assistenciais pela incúria, descaso, incompetência e
irresponsabilidade (SOMBRA, 1997).
300
da vaidade dos outros, mormente dos tolos presumidos, é bastante difícil (1924, p.
116).
No contexto dessa polêmica, percebemos mais uma vez que a literatura é utilizada
como instrumento de glorificar uma pessoa e os agentes de tal missão são chamados pelo
polemista de engrossadores. Mas, que são eles?
Rodolfo Teófilo tem um romance que narra a história desses sujeitos, intitulado
Memórias de um engrossador. Foi publicado em 1912, numa tipografia em Lisboa. Narrado
em primeira pessoa por um advogado mau-caráter e vigarista, que se articulou por meio de
várias falcatruas para obter um cargo vantajoso no staff do Governo de Nogueira Accioly.
Engrossador era uma gíria do início do século XX que significava “chaleira”,
‘bajulador”, hoje correspondendo ao termo “puxa-saco”.
A parte mais difícil da arte de engrossar, como chamarei o modo de bem viver em
todos os meios, é, escolher o momento psicológico de queimar incenso ao ídolo. A
oportunidade é tudo, mormente quando se trata de certas predisposições do espírito
humano. Os meus triunfos, devo-os, em parte, ao grande interesse que ligava ao
momento de; pôr em ação a minha força. Outros cultores desta mesma arte, aliás tão
301
entendidos nela e tão inteligentes quanto eu, sofreram grandes fracassos por fazer
engrossamentos fora de tempo (TEÒFILO, 1912, p. 5).
Apesar de não citar nomes, as situações tecidas pelo narrador, diversos atos de
corrupção, desmandos, são facilmente identificados pelos cearenses que viviam no contexto
daquele governo.
O narrador nos apresenta uma visão darwinista da vida em sociedade, dando-nos
um tom pessimista de que a corrupção no Ceará e no Brasil
Três anos levei a aparelhar-me para entrar como homem pratico, na luta pela vida.
Custou-me muito a enterrar uns restos de escrúpulo que de quando em quando me
incomodavam a consciência. [...] Passava horas inteiras em frente de um espelho
escolhendo um traço que devia apresentar no rosto em certo e determinado momento
[...](1912, p.13).
Portanto, esse texto polêmico tem profunda relação com o romance de Teófilo,
pois dá nome há alguns personagens estampadas na história. Os engrossadores de Nogueira
Accioly, segundo o autor, não tiveram nenhuma estima verdadeira, apenas buscavam o “cofre
da graça (1912. p. 21).
Teófilo foi bastante impetuoso de acusar publicamente um advogado de não ter
“valor jurídico” (1924, p. 117), de ser um bajulador do governo e de possuir uma retórica
vazia e sem provas (idem, p. 119).
Como desafeto, o médico Meton de Alencar, diretor de Higiene do Estado, no
período da Oligarquia Acciolyna, destaca-se na missão por mais de vinte anos de
deslegitimar a campanha de vacinação de Rodolfo Teófilo.
Em meados de 1920, indignado pelas críticas do escritor, ele tentou publicar nos
jornais Correio do Ceará e ao Diário do Ceará, artigos acusatórios, mas foram recusados.
Diante da negativa, faz-se publicar o livro O Sr. Rodolfo Teófilo e sua Obra - Estudo Crítico,
de 128 páginas,
Provocado, em dias do mês de novembro de 1920, por um escrito do sr. Rodolfo
Teófilo intitulado – A varíola, - vim a público com o artigo que linhas a baixo se lê e
em que assumi o compromisso de analisar a sua obra pelo prisma da verdade,
mostrando seus erros, o seu desamor à verdade, o seu apego às pornografias e a sua
inconsciência no próprio exercício profissional [...] no sempre firme e invejável
propósito de dizer bem de si e mal dos outros, engenhoso processo com que há
conseguido alicerçar-se fama de escritor, de benemérito e... quiçá de sábio. Diz mal
dos outros, e, por não perder o costume, reedita, contra mim, uma das suas muitas
provocações (ALENCAR, 1923, p. 3).
É constante a acusação das ações de Teófilo com o fim de obter ‘glória’ e para
desqualificá-lo, assim como fizera Adolfo Caminha, tenta reduzir seu valor literário citando
suas atividades profissionais, com um tom bastante sarcástico
É que para o Sr. Rodolfo Teófilo só há nesta terra um romancista que é ele próprio,
um cientista que é ainda ele próprio, quando vacina de cócoras pelas areias no morro
do Moinho e quando fabrica os seus xaropes e suas laranjinhas e vinhos de caju,
com e sem álcool: só há um benemérito que, finalmente é ele próprio, por todas
essas coisas e mais algumas. [...] Nas páginas precedentes [...] sem preocupações
literárias, cremos que fica o Sr. Rodolfo Teófilo reduzido às suas justas proporções
sob diversos aspectos com que se pretende impor a admiração e a gratidão do povo
cearense ( 1923, p. 128).
Para embasar o descrédito literário de seu alvo, Meton utiliza-se como argumento,
as palavras de autoridade de dois críticos que desapreciaram a obra de Teófilo: Osório Duque
Estrada “distinto e notável jornalista carioca” (idem, p.12) e Adolfo Caminha ‘primoroso
crítico’ (idem, p. 15). Ele usa 5 páginas de citações das Cartas literárias, de Caminha e da
crítica de Osório Duque Estrada, para embasar a sua opinião.
303
O texto de Meton, por mais que afirme que pretenda estudar a “personalidade
literária” de Teófilo, não pode ser configurada como uma crítica justa. Aqui não fazemos o
papel advogado do autor d’A fome, porque o texto de Meton é altamente parcial, eivado de
ataques pessoais.
Após diversas citações, cujos “críticos de reconhecido mérito negam engenho e
arte para um tal mister” (id. p. 17), ele apela ao leitor que julgue o valor literário do escritor,
porque mesmo a “crítica sincera, desapaixonada e justa de Adolfo Caminha, naquele tempo, e
a de Duque Estrada, ultimamente, não conseguiram calar no espírito do irrequieto
escrivinhador de coisas inúteis” (id. p. 19). Como já analisamos, páginas atrás, como
considerar a crítica de Caminha “desapaixonada” em torno de Teófilo? E Duque Estrada, que
afirmou que leu apenas um capítulo de Libertação do Ceará para escrever um texto
depreciativo sobre ele?
Sobre o merecimento literário de Rodolfo Teófilo, para confirmar o juízo de que o
escritor possui uma linguagem simplória, incorreta e o “natural pendor para fantasias e contos
inverídicos” (id. p. 20) traz 24 páginas de trechos de O Paroara182, para mostrar ao leitor, os
possíveis erros de escrita, sinais crassos de ‘asneiras’.
No fim de seu livro, que pretendeu ser de análise literária, Meton de Alencar
assume o ethos de médico e realiza o diagnóstico psiquiátrico de Teófilo, utilizando-se de
argumentos da medicina legal, afirmando que ele sofre com ‘estados de exagero e
hiperconsciência’ que ocasionam “imaginações, fantasias, persistências, prolixidade,
incoerências, ideias fixas e confusão” (1923, p. 125), que ocasionam as “invencionices do
espírito”.
Enfim, ele diagnostica Teófilo como um paranoico e o compara aos personagens
D. Quixote e Tartarin. A alusão a esses personagens clássicos é importante para a imagem que
Meton tenta construir ao atacar o escritor.
Tartarin de Tarascon é um romance de 1872 escrito pelo autor Alphonse Daudet,
importante clássico da literatura francesa que nos legou uma personagem tão caricata quanto o
182
Rodolfo Teófilo, em sua última obra publicada, Coberta de Tacos (1931), transcreve um texto do Padre M
Feitosa acerca do livro de Meton de Alencar. Ele classifica a escrita do crítico como “desleal, repleta de ódio e
vingança” (1931, p. 97). A partir do exame de O paroara, ele confere todos os trechos do romance citados por
Meton e observa que o médico omitiu trechos para realizar uma falsa acusação de solecismo, entre outros
desvios gramaticais: “Os calores do estio... despia as árvores, o chão juncando...” Como está ai, todo mundo
condenará Rodolfo Teófilo como autor de um solecismo imperdoável: o sujeito ‘calores’, no plural, com o verbo
‘despia’, no singular. Mas não foi tal o que escreveu o sr. Rodolfo Teófilo. O que no seu livro se encontra é o
seguinte: “ Os calores do estio, que ia em meio no sertão cearense, haviam amarelecido o manto verdoengo, que
cobria o arvoredo; e o vento de leste, remoinhando dia e noite, despia as árvores etc.” O sujeito de ‘despia’ é
vento e não ‘calores’, como dá a entender o dr. Meton (1931, p.97-98).
304
Dom Quixote. O livro narra o cotidiano de uma cidade, ao sul da França, chamada Tarascon,
onde os seus moradores são apaixonados pela caça de animais. Tartarin, protagonista
rechonchuda e mentirosa, engana constantemente à população com histórias de grandes
façanhas, criando fama de herói. Na verdade, prefere à leitura de livros e o sossego de sua
poltrona ao tomar chocolate quente. Devido a um quiproquó, a contragosto, é impelido a
viajar à Argélia para caçar leões. Tartarin é aludido com o intuito pejorativo, com o valor de
trapaça e invencionice. Já D. Quixote, a referência tenta ser depreciativa, contudo,
interpretamos com um valor diferente.
O engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha foi escrito por Miguel de
Cervantes Saavedra (1547-1616) em duas partes. A primeira começou a escrever na prisão e
foi publicada em 1605, com 52 capítulos. A segunda foi publicada em 1615 e é composta por
74 capítulos. O enredo é aparentemente simples: a história de um nobre espanhol do século
XVII, Alonso Quijano, que gosta de livros de cavalaria, que perde a cabeça devido ao extenço
número de romances que lê, e acreditando ser um cavaleiro errante, nomeia-se Dom Quixote
de la Mancha.
Os protagonistas, Don Quixote de la Mancha e seu escudeiro Sancho Pança, cujas
relações e diálogos são parte essencial do desenvolvimento da obra, se encontra com diversos
personagens183, à medida que a ação avança, formando uma galeria do povo que viveu na
Espanha do século XVII. Originalmente concebido como uma sátira contra os romances de
cavalaria, Dom Quixote de la Mancha é considerado o primeiro romance moderno e obra-
prima da literatura espanhola. Sua importância está na crítica social que Miguel de Cervantes
faz à sociedade do século XVI através de paródias e sátiras.
Mas, o que significa ser um Quixote? O termo como adjetivo tem várias acepções.
De modo pejorativo, como Meton quis se referir a Rodolfo Teófilo, ‘quixote ou quixotesco” é
usado para se referir ao comportamento de quem está convencido da existência de coisas que,
na realidade, são imaginárias, ou que se esforçam para realizar coisas impossíveis.
Contudo, Quixote é mais do que um louco ou uma pessoa que persegue causas
impossíveis. A força da personagem criado por Cervantes o transformou em um arquétipo
humano com uma validade artística permanente, pois a energia quixotesca para empreender
183
As intenções das andanças de Dom Quixote é ajudar os pobres e desfavorecidos, e, em seguida, alcançar o
amor da suposta Dulcinéia do Toboso, que na verdade é uma camponesa chamada Aldonza Lorenzo. Na sua
primeira jornada encontra o camponês Sancho Pança, o qual faz o seu escudeiro. Na segunda jornada, Dom
Quixote ataca alguns moinhos de vento, ao imaginar que eram terríveis gigantes, confunde um rebanho de
ovelhas com um exército, entre outras situações esdrúxulas. Finalmente, depois de fazer penitência em uma
floresta, é capturado por um padre e um barbeiro e levado para casa em uma gaiola para ser ludibriado por uma
suposta princesa Micomicona.
305
novas aventuras apesar das prováveis derrotas tem sido admirada por muitos leitores ao longo
dos séculos.
Ser “um Quixote” mais do que uma herança cultural é também uma representação
da condição espanhola, como nos atesta Ortega y Gasset (Meditações do Quixote).
Ao longo da história europeia, houve centenas de cavaleiros errantes, dos quais
Cervantes extraiu o modelo para construir sua sátira. O caráter de Dom Quixote foi atribuído
às características de um sonhador e de um idealista que leva ao extremo o cumprimento dos
valores dos espelhados aos ideais da cavalaria, como a cortesia, a coragem, a generosidade, a
justiça e a perseverança.
O escritor Gustavo Barroso, no romance Mississipi, ao narrar o trabalho
vacinogênico de Teófilo, o compara a D. Quixote, mas observamos que o seu intuito é
positivo
O escritor Rodolfo Teófilo, todas as manhãs, montado no seu cavalinho branco,
magro como D. Quixote e tão idealista como o herói de Cervantes, percorria as
vielas dos morros do Moinho e do Croatá, vacinando gratuitamente crianças e
adultos. Assistira em menino às devastações da varíola na seca de 1877 ou dos dois
setes, e jurara a si próprio dedicar a vida a combater o flagelo. Como pertencesse ao
partido da oposição, o governo, em lugar de auxiliá-lo no benemérito mister, metia-o
a ridículo nos seus jornais e fazia caluniosa propaganda contra ele, declarando que
sua vacina era ruinosa. Não teve, porém, ânimo de proibi-la (1996, p. 183).
Voltando ao livro de Meton de Alencar, por mais que ele tentasse destruir a
reputação de Rodolfo Teófilo, inversamente do que se propunha, constrói uma imagem do
escritor. No seu diagnóstico de paranoico, ele ressalta justamente as atividades literárias,
científicas e políticas em que Teófilo se destacou: no romance, na campanha de abolição dos
escravos e na vacinação antivaríola. Ao interpretá-lo como um D. Quixote, alude à metáfora
bélica da ‘cruzada santa’ de suas atividades intelectuais.
Até Rodrigues de Carvalho, com quem travou uma polêmica, apesar dos pesares,
reconhece o mérito do autor.
Vê-se por esta bagagem que trata-se de um homem de ciência e de um beletrista. Os
seus romances são cheios de vida pela imaginação, e estampam o meio e a época em
que se dá a ação. É descuidado na forma; e nem sempre a gramática é respeitada.
Apesar de senões que a imprensa em geral apontou nos livros de Rodolfo Teófilo, a
literatura do Ceará muito deve a este escritor (1899, p. 191)
Por mais que seja acusado de ser excessivamente cientificista e de ter uma
linguagem incorreta, há uma consciência de que a sua obra científica, historiográfica e
literárias terão perdurabilidade (Castagnino, 1969), Teófilo nos diz que
Criei a literatura regionalista aqui. Quase sozinho, ou bem, ou mal, neste meio
século, tenho sustentado as letras no Ceará, publicando algumas dezenas de livros.
Alguns deles ficarão pela importância do assunto. A História das Secas, por
exemplo, viverá porque o flagelo não se acaba. Publicando-os, tive em vista tornar
conhecida a calamidade no sul e impressionar os governos. Consegui que o sulista
conhecesse o que era uma seca. Epitácio Pessoa, quando presidente da República,
308
mandou editar e reeditar os meus livros sobre a calamidade para que não se
extinguissem (Correio do Ceará. 3/7/1930).
Seus textos são polêmicos porque os usa como forma de denúncia contra as
calamidades da seca. Seus livros tiveram reconhecimento nacional e cita o presidente para
legitimar suas ações, o esforço de fixar, por meio da memória, o efémero e o perecível
Como romancista, o Ceará foi a sua matéria principal, motivo de seu amor. Da sua
geração de escritores cearenses nascidos no século XIX, Rodolfo foi o que mais escreveu
livros e romances.
No centenário de seu nascimento, 1953, Rachel de Queiroz escreveu uma
belíssima crônica na Revista O Cruzeiro, dando o reconhecimento histórico de Rodolfo
Teófilo, retratando como ‘scholar’, isto é, um daqueles homens do “triunfante século
dezenove, crente aferrado na solução científica para todos os problemas da alma e do corpo,
inclusive os da arte” (16 de maio de 1953).
E como romancista, ele
foi dos primeiros a usar como tema dos seus livros dois assuntos que ainda hoje são
a espinha dorsal da literatura nordestina: o cangaço e a sêca. [...] E a sêca serviu-lhe
de tema para o seu famoso “A Fome", que é dos primeiros, senão o primeiro
romance escrito tendo como heróis as vítimas do nosso flagelo regional, e abriu
caminho para todos os exploradores do filão, que iriam culminar na obra-prima do
gênero, o insuperável “Vidas Secas”, do nosso imenso Graciliano (idem, 1953).
Ela, autora de O quinze (1930), livro que teve um forte impacto na história de
nossa literatura, elogia o autor que podemos chamar de seu precursor, traçando os temas
ligados à representação das condições da vida do nordeste, seus cenários e sua gente, que
foram trabalhados por autores regionais, contemporâneos a ele, e posteriores.
Sartre, sobre a luta para se firmar na tradição literárias, nos alerta que
Os autores também são históricos; e é justamente por isso que alguns deles almejam
escapar à história por um salto na eternidade. Entre esses homens mergulhados na
mesma história e que contribuem do mesmo modo para fazê-la, um contato histórico
se estabelece por intermédio do livro. Escritura e leitura são as duas faces de um
mesmo fato histórico (2004. p. 57)
Escrever para ser lido e para permanecer no rol de leitura das pessoas é uma forma
de imortalidade. A perdurabilidade situada por Raul Castagnino, que é uma forma
intermediária entre o fugaz e a eternidade, se configura como uma luta do escritor para evitar
a sua morte e de desejar que tudo que escreve permaneça para sempre. Isso ocorre porque o
ser humano tem a capacidade de projetar um futuro, o que permite estabelecer projetos. Mas
só ter a ânsia de imortalidade não basta para atingir a glorificação literária. Muitos imortais
309
acadêmicos só tem a reputação entre os seus pares, donos de obras medíocres, que sequer são
lidas ou conhecidas pelas pessoas.
Nesse percurso sobre a história e crítica literária, sobre o desejo de glorificação e,
sobretudo, sobre a perspectiva, através de um prisma agônico da literatura como um esporte
de combate, as polêmicas foram fenômenos de destaque.
Ruth Amossy nos auxilia na distinção entre o discurso polêmico e a interação
polêmica, que não podem ser confundidos com a expressão “uma polêmica”. Ela se refere a
uma Polêmica como o conjunto das intervenções antagônicas que se constrói, através de todas
as interações públicas ou semi-públicas que tratam de uma questão social, e se manifesta na
circulação dos discursos. (2017, p. 59)
A famosa Querela entre os antigos e modernos na França, a Questão Coimbrã, as
cartas e artigo sobre a Confederação de Tamoios, o confronto entre Sílvio Romero e Teófilo
Braga são exemplos de polêmicas.
O discurso polêmico é a produção discursiva de um sujeito, que remete ao
discurso do outro. “Ele é, por definição, dialógico, no sentido de que dialoga com os discursos
antecedentes, aos quais se opõe; mas ele não é dialogal, já que não há interação direta com o
adversário.” (2017, p.59).
Por exemplo, História da Literatura brasileira, de Sílvio Romero, é uma obra
escrita com uma carga de polemicidade. O outro livro publicado por Romero para atacar
Machado de Assis era polêmico, mas não instaurou uma polêmica entre eles, pois o autor de
Dom Casmurro nunca lhe respondeu. Outro exemplo é o Panfleto de Farias Brito.
Já a interação polêmica é quando há uma interação face a face, um confronto
direto: “Ela implica que dois ou mais adversários se engajem em uma discussão falada ou
escrita, em que um tenta levar a melhor sobre o outro.” (AMOSSY, 2017, p. 59) As interações
de José de Alencar na imprensa carioca na década de 1870, para defender a sua obra literária,
são bons exemplos.
A partir desses apontamentos, percebemos que os textos polêmicos de Rodolfo
Teófilo não se constituíram como interações efetuadas no momento da escrita dos seus
adversários. Em relação à literatura, sempre são reações e defesas de seus livros publicados.
Ele nunca iniciou uma polêmica literária, diferente de textos que escreveu sobre as secas e
sobre a varíola, que serviam para denunciar os descasos do governo perante esses assuntos.
Seus romances, contos, memórias e textos historiográficos despertaram opiniões
provocativas e apaixonadas e ele travou combate contra outros escritores, contra críticos e
contra inimigos políticos para defender sua obra literária.
310
Muito observadas pelo seu caráter erístico, as polêmicas não eram vistas como
uma modalidade de crítica literária. O que sobressaía, para manter a audiência do público ao
invés de acompanhar um debate de ideias, era assistir, sadicamente, uma performance de
agressão mutua.
Roberto Ventura, ao caracterizar a polêmica como um embate em que a defesa da
honra era essencial, ao se aproximar da imagem de uma peleja entre repentistas nordestinos,
em que o importante era mostrar superioridade em relação ao oponente: “Ao invés do debate
de ideias, os debatedores assumiram uma orientação autoritária, marcada pela preocupação
em contradizer as colocações dos oponentes, caindo em uma série insondável de monólogos,
em que cada um dos participantes se esforçava em reafirmar suas próprias crenças” (1991, p.
87).
Porém, a partir dessa pesquisa, entendemos que a polêmica é um importante meio
para investigar as principais questões e motivações que levam escritores e críticos a lutar para
se estabeleceram na tradição literária brasileira.
A luta pela tradição literária, interpretada por Pierre Bourdieu como luta pelo
monopólio do poder da consagração
Por conseguinte, se o campo literário (etc.) e universalmente o lugar de uma luta
pela definição do escritor, não existe definição universal do escritor e a análise
nunca encontra mais que definições correspondentes a um estado da luta pela
imposição da definição legitima do escritor. Mas pode-se também romper o círculo
construindo um modele do processo de canonização que leva a instituição dos
escritores, através de uma análise das diferentes formas de que se revestiu o panteão
literário, nas diferentes épocas, nos diferentes quadros de honra propostos tanto em
documentos - manuais, trechos escolhidos etc. - quanto em monumentos - retratos,
estatuas, bustos ou medalhões de "grandes homens" (1996, p. 253-256).
Como nos ensina T. S. Eliot um escritor não tem significação sozinha. Ao estrear,
num sistema literário complexo, verifica que já existem diversos atores, instituições que vão
intermediar o seu valor literário: outros escritores, leitores, críticos, professores, a imprensa, a
escola, editores, livreiros etc.
E nessa perspectiva de concorrência que surgem os confrontos literários, as
polêmicas entre os escritores. Para não demonstrar que seria uma espécie de visão pessimista
da arte, egoísta, que tira o sublime véu da ideia do belo, da contemplação, da evasão,
exemplificamos com um depoimento do acadêmico Afrânio Peixoto
Não há rapazinho que escreva o primeiro conto, antes de o ter vivido, que não se
reconheça prejudicado pelos que o precederam, na consideração, na fama, no
prestígio, junto aos editores e ao público. Cada um destes jovens, ainda inéditos,
começa a história literária, senão a história universal. A propaganda, as
comparsarias, a demolição tão grata dos valores cotados na esperança de novas
cotações, fazem das reputações loterias, ou bolsa, ou tavolagem, de jogo ou de azar.
[...] Os prêmios literários são disputados, a empenho. Os editores têm revistas e
311
Nesse jogo literário, a reputação dos escritores se comporta como ações na bolsa
de valores. As polêmicas nesse contexto podem construir ou destruir a reputação de um
escritor, vide o exemplo de José de Alencar. Por mais abstrato ou metafisico que o artista
procure demonstrar, ele tem sérias preocupações sobre a materialidade e a perdurabilidade do
seu sucesso, se sua glória literária
o aparente paradoxo de imortalidade mortal com que se explica a natureza da
literatura em virtude das ânsias de seu criador; isto é, esta imortalidade sonhada não
é eterna nem transcendente e, embora dure mais que a vida temporal de seu
possuidor, há de conservar-se enquanto perdure a memória do Homem, enquanto
perdure o próprio Homem, não além. É uma perenidade, tem duração aparentemente
ilimitada, mas teve começo e poderá acabar (CASTAGNINO, 1969).
Sobre esse sonho de imortalidade, Jean Paul Sartre nos alerta que a glória literária
é uma luta contra a História (2004, p. 116). Rodolfo Teófilo discorre sobre a sua ideia de
glorificação na crônica “Estátuas”, que condena a construção da estátua de Padre Cícero, que
ainda era vivo, numa praça de Juazeiro, a mando de Floro Bartolomeu.
Atravessamos o período ridículo das estátuas. Há uma monomania de sagrar os
heróis, como se os heróis não se sagrassem a si próprios, fosse preciso sagrá-los.
Temos uma ideia muito falsa das homenagens prestadas aos benfeitores da
humanidade. Perpetuar os grandes homens na pedra ou no bronze é desconhecer o
poder do tempo, que tudo consome, o demolidor eterno. A memória do benemérito,
daquele que viveu para os seus semelhantes, perpetua-se por si mesma nos
contemporâneos, que por sua vez a irão transmitindo às gerações que se sucedem até
a consumação dos séculos (1931. p. 42-43).
Rodolfo Teófilo condena essa falsa glorificação por meio de estátuas, um suporte
material, perecível pelo poder devorador do tempo. Ele nos fala que a verdadeira glorificação,
situando como exemplo, Louis Pasteur não é feita no bronze ou na pedra “que é efêmera – o
transcorrer dos séculos decompõe ou corrói – mas no coração da humanidade. A estátua de
Pasteur é espiritual; ergueu-a a gratidão do gênero humano: passará de geração em geração
até que deixe de pulsar o coração do derradeiro homem.” (1931, p. 42).
Por meio de sua lucida consciência história e do seu papel como escritor, podemos
perceber uma particularidade nessa perspectiva de Teófilo: ele critica a validade das estátuas
alegando que o verdadeiro monumento à memória está no coração da sociedade, porém chega
a explicar que elas são grandes formas de homenagear a memória de alguém, exclusivamente
após a morte. Ou seja, uma forma de kleos moderna.
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Osman Lins nos ensina que a “glória, para o verdadeiro escritor, é ser lido -
principalmente pelo seu povo e poder viver do seu trabalho sem precisar de envilecê-lo”
(1977, p. 47). Enquanto escritor, assim como os outros, o que Rodolfo Teófilo queria era ser
lido. E o ideal de continuar a ser lido, por gerações futuras, foi o estopim de inúmeras guerras
intelectuais e literárias.
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