Paulo Valadares
Paulo Valadares
Paulo Valadares
Blog: www.bestaesfolada.blogspot.com/
Esta fala estimulou-me a conhecer mais o universo dos Malês que herdaram seus
costumes de ancestrais africanos trazidos como escravos para o Brasil, gerando uma
cultura específica2. Percebi também que havia semelhanças entre elas e os descendentes
de cristãos-novos, através da mesma origem mítica no patriarca Abraão, passando por
suas estratégias de resistência, segredo e biculturalidade e nas biografias de dois de seus
líderes. São estas semelhanças que pretendo mostrar neste trabalho.
1 Nelson Maleiro (Nelson Cruz, Saubara, 1902 – Salvador, 1982). Artesão e músico afrobaiano, fundador
de vários grupos carnavalescos. Vestia-se de forma arabizada como se fosse um personagem das “mil e
uma noites”.
2 Por delimitação geográfica e também para limitar o recorte do tema estudado deixei de lado os
afroamericanos, descendentes de judeus portugueses, como: o líder islâmico Louis Farrakhan, pelo pai
Percival Clarke (-1936), filho de judeus portugueses; os latifundiários sulistas Galphin, descendentes dos
Nunes Ribeiro; a antropóloga Eslanda Cardozo Goode (1896-1965), esposa do cantor Paul Robeson,
mesmo percebendo que eles fazem parte do mesmo universo pesquisado. Esta influência sefaradita
estendia-se até na alimentação destes personagens. Apenas como um ligeiro exemplo. A mulata grenadina
Louise Helen Norton (1897-1991), oriunda de uma área de influência judaico luso-brasileira, apesar de
cristã, recomendava: “Não deixe que eles dêem carne de porco ao meu filho” (o futuro líder muçulmano
Malcolm X, 1925-1965).
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GÊNESE
4 Foram queimados como judaizantes os “brasileiros” (que viviam ou eram originários do Brasil): o
soldado e sapateiro Gaspar Gomes (1644), o comerciante José de Liz (Isaac de CastroTartas, 1647), o
Figura . Os malês Tibúrcio Luiz Souto, José Maria Mendonça e Manuel (Gibirilu) Nascimento Santos Silva, circa 1942. Foto: Monteiro, 7
o primeiro muçulmano oriundo da Bahia encontrado pela Inquisição foi Diogo, escravo
que pertencia ao cristão-novo Francisco de Paiva. Ele vivia em Lisboa e saiu num auto-
de-fé privado em 29 de maio de 1615 quando então foi apenas orientado a ser
“instruído na fé católica” 5.
lavrador Teotônio da Costa Mesquita (1686), o boticário Rodrigo Álvares (1709), o senhor de Engenho
João Dique de Souza (1714), o soldado e mineiro Mateus de Moura Fogaça (1720), Teresa Pais de Jesus
(1720), o padre Manuel Lopes de Carvalho (1726*não era cristão-novo), o médico João Tomás de Castro
(1729), o comerciante Félix Nunes de Miranda (1731), Guiomar Nunes (1731), o comerciante Miguel de
Mendonça Valadolid (1732), o médico Diogo Correia do Vale (1732), o comerciante Domingos Nunes
(1732), o lavrador Luis Miguel Correia (1732), o lavrador Fernando Henrique Álvares (1733), o
comerciante Manoel da Costa Ribeiro (1737), o comboeiro Luis Mendes de Sá (1739), o teatrólogo
Antonio José da Silva, o Judeu (1739) e o boticário João Henriques (1748).
5Processo do escravo Diogo por Islamismo. Inquisição de Lisboa, processo nº 5964, 1615.
6 Conceição tornou-se por esta razão um sobrenome afrobrasileiro par excellence. Carmem Teixeira da
Conceição (Salvador, 1879 – Rio de Janeiro, 1988) é exemplo disto. Ela percorreu várias religiões, saiu
do islamismo familiar, foi iniciada depois como olorixá por João Alabá e terminou fervorosa católica
romana, o que não impediu de na década de oitenta passada saudar numa igreja católica o pesquisador
Nei Lopes com o cumprimento islâmico “Al-salamaleiku”, o que restava de sua herança malê. V. Tia
Carmem, negra tradição da Praça Onze (2009), de sua neta Yara da Silva.
5
“Nesta casa entro, / não adoro o pau nem a pedra / só a Deus, que em tudo
“(...) ia a missa adorar pau que está no altar porque as imagens não são
santos (...)” (REIS: 238).
3 – ETNÔNIMOS DEPRECIATIVOS
O medo da repressão aos seus costumes levou os dois grupos a exercerem suas
atividades em segredo e fundamentalmente dentro do grupo familiar.
“(...) Eu, Antonio dos Santos Lima, como mulsumano (sic) que sou e qual
religião, nasci criei-me e conservo-me esperando morrer deliberei fazer meu
testamento (...) É do meu gosto que após a morte o meu corpo fosse
envolvido de acordo com meu rito (...) mais ainda o que lhe recomendei EM
SEGREDO (..)”. (ALBUQUERQUE: 222).
Na visão malê:
“(...) E não foi preciso pouco trabalho para conseguir também alcançar a
confiança destas velhotas, que, na sua simplicidade, ignoravam por
completo a existência doutros judeus, diferentes nos processos de culto dos
cristãos-novos. Estranhando que um judeu não procurasse fazer segredo da
fé judaica (...)” (SCHWARZ: 11).
a) Os jejuns são feitos em datas conhecidas pelo grupo. Curiosamente são datas
equivalentes nas duas religiões.
“(...) Vai-te tigre da Hircânia / A ida que fez o fumo faças tu, / Contigo vai
dar a Ru Ru, / Contigo a Mauritânia / Aos barrancos alto subas, / Aos baixos
venhas cair, / Nunca vejas a sege dourada, / Assim como tens cara de hereje /
O vento te leve, /As pedras te apedrejem, / o fogo te queime, / A terra te
sepulte, / o rio te afogue, / o pau te bata, / o cão te morda, / o gato te
arrebunhe, / te peles com um rolho de silvas ao rabo, / E depois de pelado, te
leve o diabo” (VASCONCELOS: 202).
8 – ALIMENTAÇÃO
9 – A BÍBLIA E O ALCORÃO
11 Uma das ferramentas dos historiadores culturais para a identificação como cristãos-novos dos
personagens que estudam é a contagem das citações vetero-testamentários em seus textos. Cito
dois casos apenas, foi assim com S. Juan de la Cruz (1542-1591) e com Francisco Sanches (1551-
1623). No caso espanhol o padre Federico Ruiz Salvador contou 684 citações entre 1060 e no de
Sanches, o historiador Manuel Bermúdez Vázquez encontrou no Quod nihil seitur dez citações
entre doze.
pelos descendentes de cristãos-novos, por necessidade religiosa e literária.
“(...) José Maria Mendonça. Era carpinteiro de profissão, foi prior da Igreja
do Rosário dos Pretos do Pelourinho (...). Lia sempre o Alcorão em
companhia de Gibirilu, de quem era companheiro inseparável, todas as terças
e sexta-feiras na sacristia da Igreja do Pelourinho (...)” (MONTEIRO: 85).
Ambos tiveram uma ligação com a Bahia. Os sobrinhos do capitão Barros Basto
se radicaram na Bahia13, enquanto Inácio Paraíso era filho de baiano.
CONCLUSÃO
O que restou destas duas tradições ou culturas: orações, gestos, leitura de textos
sagrados e alimentação?
13 Dois tios do capitão português Barros Basto, os comerciantes António Carlos (1843-) e Henrique Carlos
de Barros Basto (1860-), imigraram para Salvador onde deixaram farta descendência.
Já os cristãos-novos brasileiros nunca chegaram a ter uma sinagoga exclusiva para
si. Nos anos setenta o professor José Nunes Cabral (1913-1979) e o engenheiro João
Medeiros buscaram organizar uma comunidade judaica em Natal com descendentes ou
alegados descendentes cristãos-novos da região. Ela subsiste até hoje. Enquanto isto
alguns indivíduos desta origem migraram para Israel, como Yaakov Mordechai
(Francisco de Assis Oliveira) 14, filho de baianos de Bom Jardim, onde foi soldado de
elite no IDF (exército israelense) e também recebeu a semihá (ordenação rabínica); ou o
Dr. Yehoshua Maor (Josué Bezerra)15, premiado como cientista em Israel; dentre outros.
No final ficou muito pouco destes dois grupos para as pessoas. Restou deles
apenas alguns estereótipos positivos. Atribue-se aos políticos negros ou mulatos a
coragem e o interesse político a esses ancestrais malês. Basta examinar algumas destas
biografias, como as de Luis Gama (1830-1882), cujo interesse político e coragem viriam
de sua mãe Luiza; ou de Carlos Marighella (1911-1969), pela mãe Maria Rita do
Nascimento. No caso dos cristãos–novos, atribue-se o senso moral e criatividade deles, a
estes ancestrais, como nas biografias do romancista Jorge Amado (1912-2001) ou do
cineasta Glauber Rocha (1939-1981).
BIBLIOGRAFIA
15 Nasceu em Bacabal (08/07/1970), filho de João Alves de Moraes Bezerra e Alice Maria
Aguiar Pereira.
ALBUQUERQUE, Wlamira Ribeiro de. “Esperanças de Boaventuras: construções da
África e africanismos na Bahia (1887-1910)”. Estudos Afro-asiáticos, Rio de Janeiro,
vol. 24, nº 2, 2002, pp. 215-245. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?
pid=S0101-546X2002000200001&script=sci_arttext. Acesso em: 01/07/2011.
MONTEIRO, Antonio. Notas sobre negros Malês na Bahia. Salvador: Ianamá, 1987.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil. A história do Levante dos Malês em 1835.
Edição revista e ampliada. S. Paulo, Companhia das Letras, 2003.
SANCHES, Pedro Alexandre. “Mito e verdade. Carlinhos Brown, 38, afirma que é “pop
chão””. Folha de S. Paulo, 06/02/2001, p. E1.
VALADARES, Paulo. “As genealogias do capitão Barros Basto, o “Guia dos Maranos”.
Cadernos de Estudos Sefarditas, nº 5, 2005, pp. 299-311.