Genero PCNS PDF
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ABSTRACT: The current article presents the analysis of thee “VERA VACA” text, Frate (1996) from the book
“Stories do Wake up”. The purpose is to point out the linguistics-enunciated short narrative. The present article
belongs to the narrative order and the work is organized in the following way: In the beginning we have the
theoretical foundations that guide our reflections about the mother language teaching under the theoretical
assumptions of the discursive gender, and after, the selected text analysis, where we made a survey about its
production conditions –support, speakers, purpose and circulation place – and its textual arrangement, with the
objective of discussing the possible meaning effects and contributing for a proposition of a linguistics analysis of a
didactical organization of the discursive gender in question. And to end, there is the point out of some reading
pedagogical suggestions of linguistic reading and analysis with the approached gender, as well as the
bibliographical references.
1 Introdução
O presente artigo traduz parte dos estudos efetuados por um grupo de pesquisa da
Universidade Estadual de Londrina, do Departamento de Letras Vernáculas e Clássicas,
intitulado Escrita e ensino gramatical: um novo olhar para um velho problema. O objetivo do
projeto, de cunho etonográfico, na área de Lingüística Aplicada, é investigar a relação ensino
gramatical e a escrita, na escola pública. Após inúmeras pesquisas envolvendo professores do
ensino superior, alunos de graduação e pós-graduação desta instituição e docentes da rede pública
estadual, as discussões apontam que o trabalho com os gêneros discursivos é de suma
importância enquanto eixo de articulação e progressão curricular. Diante do exposto,
sedimentados nos estudos de Bakhtin (1979), Bronckart (1999), Dolz & Schneuwly (1996),
Barbosa (2000) e de Perfeito (2006), neste artigo apresentaremos a análise de uma narrativa
intitulada Vera Vaca (Frate, 1996), destacando as marcas lingüístico-enunciativas de uma
narrativa curta. Concomitantemente, será procedido um levantamento de suas condições de
produção (suporte, interlocutores, finalidade e local de circulação) e de seu arranjo textual, com o
intuito de discutir seus possíveis efeitos de sentido e contribuir com uma proposta de organização
didática de análise lingüística do gênero discursivo em questão.
2. Fundamentação teórica
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Bakhtin (op. cit. p.281-282.), afirma que o sujeito se constitui à medida em que ouve e
assimila o discurso do outro. Para ele, os gêneros do discurso são os padrões de construção
composicional de um todo verbal e o estudioso divide o discurso em primário e secundário. O
gênero do discurso primário é aquele usado no cotidiano, logo, é o mais simples. Já o gênero do
discurso secundário aparece em comunicações sociais mais complexas como, por exemplo, em
produções artísticas, científicas e na escrita. Este discurso bakhtiniano é encontrado nos PCNs de
Língua Portuguesa (BRASIL, 1998, p. 18), que sedimentados nessa teoria, propõe que o texto
seja a unidade de ensino e os gêneros discursivos o objeto de ensino na sala de aula. Então, o
texto desenvolverá o papel do agente integrador (unidade de significação) entre as práticas de
leitura, análise lingüística e produção de texto.
Considerando que toda teoria pressupõe a formulação de conceitos e noções, teceremos, a
seguir, algumas observações sobre algumas convergências e divergências que se instauraram na
escola no decorrer dos tempos. Como um ponto convergente, em língua materna, podemos
destacar que os professores corroboram que é preciso trabalhar com uma diversidade textual, uma
vez que não existe um texto modelo capaz de retratar as múltiplas formas textuais existentes. Por
outro lado, um aspecto divergente, relaciona-se à oralidade, visto que escrita e oralidade, durante
muito tempo, foram tratadas de forma isolada, de modo que o ensino da primeira era enfatizado e
o da segunda, muitas vezes, ignorado. O professor não ressaltava que esses dois aspectos apenas
são diferentes formas do dizer, utilizadas em situações comunicativas. Ao proceder a leitura em
classe, o educador, às vezes, esquece de destacar especificidades da oralidade, como o ritmo, a
altura, as pausas, a entonação, os gestos, a expressão facial, dentre outros.
Se a prática nos aponta que há uma contradição entre o que é ensinado e o que é avaliado,
uma possibilidade é que o professor não saiba como estabelecer critérios de avaliação, e, neste
aspecto, a adoção dos gêneros discursivos como objeto de ensino possibilitaria ao educador
abordar as formas do dizer que circulam socialmente, permitindo que o professor tenha
parâmetros do que deve ensinar e como poderá avaliar.
De acordo com Barbosa (2000, p. 152) um dos questionamentos do educador é como
estabelecer critérios de seleção que contemplem os diferentes tipos de texto em circulação social.
Como o professor pode possibilitar ao aluno ter contato, gradativo, com os diversos tipos no
decorrer de sua permanência na escola.
Quanto às tipologias existentes, de acordo com a autora acima, muitas foram propostas ou
importadas de teorias lingüísticas. Os critérios que as norteiam são estruturais/formais (narração,
descrição, dissertação, entre outros) ou funcionais (textos informativos, textos literários, textos
apelativos, e assim sucessivamente). A problemática se estabelece à medida que os aspectos da
enunciação e do discurso são ignorados, ou se são observados, isto ocorre de forma externa às
classificações.
Mediante ao exposto, corroboramos com a opção bakhtiniana por eleger os gêneros do
discurso – escrito e oral - como objeto de ensino. À proporção que o autor se preocupa com o
sujeito, enquanto um ser sócio-historicamente constituído, são privilegiados aspectos
enunciativos e do discurso, logo há maior contemplação de como funciona o complexo processo
de produção e compreensão de textos.
De acordo com Barbosa (2000) a noção de gêneros:
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- permite incorporar elementos da ordem do social e do histórico (que aparecem na
própria definição de noção);
- permite considerar a situação de produção de um dado discurso (quem fala, para
quem, lugares sociais dos interlocutores, posicionamentos ideológicos, em que situação,
em que momento histórico, em que veículo, com que objetivo, finalidade ou intenção,
em que registro, etc);
- abrange o conteúdo temático – o que pode ser dizível em um dado gênero;
- a construção composicional – sua forma de dizer, sua organização geral que não é
inventada a cada vez que nos comunicamos, mas que está disponível em circulação
social;
- seu estilo verbal – a seleção de recursos disponibilizados pela língua, orientada pela
posição enunciativa do produtor do texto. Neste sentido, a apropriação de um
determinado gênero passa, necessariamente, pela vinculação deste com seu contexto
sócio-histório-cultural de circulação.
(BARBOSA, 2000, p. 152-153)
Como podemos observar, trata-se de uma leitura mais abrangente de como o professor
pode trabalhar na sala de aula.
Segundo Dolz & Schneuwly (1996, p.8) os gêneros são megainstrumentos, ou seja,
metaforicamente, um instrumento que contém vários outros. Logo, o livro didático é um gênero
e, como tal, é portador de conteúdos específicos de ensino. Estamos defendendo a proposta que o
professor passe a fazer um trabalho com os diferentes gêneros do discurso ao invés dos diferentes
tipos de texto. A seguir, baseados em Barbosa (2000), justificaremos nossa proposta.
Um trabalho em sala de aula sedimentado nos gêneros do discurso permite ao professor
abordar os aspectos estruturais e os sócio-históricos e culturais, lembrando que os PCNs
(BRASIL, 1998, p. 7) já apontavam para a relevância de o professor contemplar o princípio de
respeito à pluralidade de realidades culturais, certamente cabendo ao educador proceder à
adaptação ao público-alvo.
Outro aspecto importante é que um trabalho com os gêneros discursivos possibilita
mostrar ao educando, de forma mais concreta, contundente, os gêneros de circulação social do
mundo que o cerca de forma a fornecer parâmetros mais claros tanto para ele produzir como para
compreender os textos. O professor, por sua vez, ao observar que há maior clareza, por parte dos
alunos, também terá maior subsídio na hora de intervir no processo de compreensão e produção
textual.
Há que se destacar, ainda, os agrupamentos. Estes fornecem ao educador instrumentos
que subsidiam a categorização dos gêneros, orais e escritos, presentes na prática de uso da
linguagem nas diversificadas situações de comunicação.
Nossa intenção é apontar ao professor uma nova possibilidade para o ensino de Língua
Portuguesa, ou seja, o mestre poderá optar por uma prática pedagógica com uma perspectiva de
base enunciativo-discursiva, sendo os gêneros do discurso o objeto de ensino. Portanto, ao invés
de se privilegiar aspectos textuais, privilegiam-se os da ordem da enunciação, considerando-se os
vários elementos como, por exemplo, a condição de produção de um texto, o meio de veiculação
(o objetivo maior do meio, o posicionamento ideológico), qual o suposto leitor, a que público se
destina, que escolhas lingüísticas foram feitas pelo autor para dizer o que disse e quais os efeitos
de sentido causados, a posição enunciativa assumida, a imagem que se quis passar, dentre outros.
Diante do exposto, no intuito de estabelecer uma classificação, os pesquisadores Dolz &
Schneuwly (1996) apud Barbosa (2000), ligados à Universidade de Genebra, propõem cinco
agrupamentos, que podem ser sintetizados em:
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a) gêneros da ordem do narrar – cujo domínio de comunicação social é o da cultura
literária ficcional, enquanto manifestação estética e ideológica que necessita de
instrumentos específicos para sua compreensão e apreciação (exemplos destes gêneros
seriam: contos de fadas, fábulas, lendas, narrativas de aventura, narrativas de ficção
científica, romance policial, crônica literária, etc.). Envolvem a capacidade de mimesis
da ação através da criação de uma intriga no domínio do verossímil;
b) gêneros da ordem do relatar - cujo domínio de comunicação social é o da
memória e o da documentação das experiências humanas vivenciadas (exemplos destes
gêneros seriam: relatos de experiência vivida, diários, testemunhos, autobiografia,
notícia, reportagem, crônicas jornalísticas, relato histórico, biografia, etc.). Envolvem a
capacidade de representação pelo discurso de experiências vividas e situadas no tempo;
c) gêneros da ordem do argumentar – cujo domínio de comunicação social é o da
discussão de assuntos sociais controversos, visando um entendimento e um
posicionamento perante eles (seriam exemplos de gêneros: textos de opinião, diálogo
argumentativo, carta de leitor, carta de reclamação, carta de solicitação, debate regrado,
editorial, requerimento, ensaio, resenhas críticas, artigo assinado, etc.). Envolvem as
capacidades de sustentar, refutar e negociar posições;
d) gêneros da ordem do expor – que veiculam o conhecimento mais sistematizado
que é transmitido culturalmente – conhecimento científico e afins (exemplos de gêneros:
seminário, conferência, verbete de enciclopédia, texto explicativo, tomada de notas,
resumos de textos explicativos, resumos de textos expositivos, resenhas, relato de
experiência científica, etc.). Envolvem a capacidade de apresentação textual de
diferentes formas dos saberes;
e) gêneros da ordem do instruir ou do prescrever – que englobariam textos variados
de instrução, regras e normas e que pretendem, em diferentes domínios, a prescrição ou a
regulação de ações (exemplos de gêneros: receitas, instruções de uso, instruções de
montagem, bulas, regulamentos, regimentos, estatutos, constituições, regras de jogos,
etc.). Exigem a regulação mútua de comportamento.
(BARBOSA, 2000, p. 170-171)
Quando nos referimos ao item “e”, lembramos que um mesmo gênero pode ser
abordado em séries diferenciadas, naturalmente que caberá ao educador adequar o grau de
complexidade à série trabalhada.
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Os PCNs, por sua vez, apud Barbosa (2000), apontam como critérios de agrupamentos:
a) seleção de gêneros;
b) elaboração de uma progressão curricular;
c) coleta de um corpus de texto pertencentes ao gênero em questão;
d) análise de um corpus de textos pertencentes a um gênero em questão;
e) descrição do gênero, tendo em vista sua sócio-história de desenvolvimento, seus
usos e funções sociais, suas condições de produção, seu conteúdo temático, sua
construção composicional e seu estilo;
f) Elaboração de um projeto de trabalho, levando em conta questões relativas à
transposição didática, decidindo que textos deverá selecionar e que elementos da
descrição irá privilegiar;
g) Elaboração de uma seqüência didática de gênero.
(BARBOSA, 2000, p. 173-174)
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destinatário (grau de complexidade do objeto e grau de exigência da tarefa), cremos ser possível
o educador estabelecer uma seleção de diversos gêneros e, a partir deles, delimitar os objetivos e
as atividades.
3 A análise
VERA VACA
Vera era uma vaca com um problema: não tinha leite. Já pensaram que
drama deve ser isso para uma vaca? Pois Vera, por causa da falta de leite,
tinha crises de depressão. Seu Manoel Verdureiro, um homem muito
sensível, compreendeu a situação de Vera. Não se aproximou mais dela
com o baldinho achou que deveria fazer alguma coisa para alegrá-la.
Chamou o Boi Barrica, que providenciou uma lindíssima festa de bumba-
meu-boi. Na festa, Vera conheceu Zebu, um boizão cinza que era um gato.
Logo estavam dançando, beijando, e sabem como são essas coisas... logo
estavam fazendo um bezerrinho. Não preciso nem dizer que Vera sarou do
seu problema do leite: amamentou o bezerrinho Lucas até ele virar um
bezerrão e ainda sobrou muito leite para o baldinho do seu Manoel.
(FRATES, 1996)
A narrativa
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Contexto de produção
O texto “Vera Vaca” que analisaremos está no livro “Histórias para acordar” de Diléa
Frate. A autora e jornalista começou sua carreira no Jornal O Estado de São Paulo e na Editora
Abril. Dentro do jornalismo e da televisão, trabalhou em diversos setores, inclusive fez o projeto-
piloto para o “Programa do Jô”, em 1998, para o SBT-Sistema Brasileiro de Televisão. A
parceria com Jô Soares dura mais de quinze anos e permanece até hoje. Atualmente, ela escreve
humor para o programa “Jô Soares Onze e Meia” e segundo as próprias palavras da autora “Sou
também escritora. Tenho vários contos publicados em revistas e dois livros infantis (“História
para Acordar, Cia das Letras e Procura-se Hugo, Ediouro”. Diléa Frate escreve também para o
teatro e fez a direção e o roteiro de “Mulher Invisível”, seriado de documentário exibido pela
GNT. A autora é paulista e mora no Rio há mais de 20 anos. Segundo ela mesma, sua rotina
cotidiana é no computador. Quando não está escrevendo para o programa, dedica-se a seu site
(www.ciaboanoticia.com.br) e a seus livros infantis. O primeiro, “Procurando Hugo”, foi
inspirado no sumiço de um cão e deverá virar um espetáculo musical. Segundo Frate (1996), "A
história mudou, mas mantém a questão da busca de liberdade, de as pessoas viverem em
apartamentos. Não são só os cachorros que estão presos, as crianças também". Quanto ao
segundo livro, do qual a narrativa selecionada para esta análise faz parte, discorreremos a seguir.
O livro “Histórias para acordar” foi lançado em 1996, pela Companhia das Letrinhas, é
uma obra altamente recomendada pela Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil – FNLIJ.
Trata-se de uma editora respeitada em nossa sociedade, sobretudo pela preocupação com o leitor-
criança. Os temas abordados na obra são atuais e relacionados ao cotidiano da criança. Como
podemos observar, pela citação de alguns dos muitos textos presentes no livro: O celular do céu,
O pneu vaidoso, A galinha poliglota, Stela Stress, Mamãezinha punk, Pum de cupim, Lição de
casa, etc.
O livro é composto por 60 histórias curtas e visa a atingir um público infanto-juvenil e
para isso usa de recursos lingüísticos e vocabulário simples que permite fácil assimilação e
compreensão do conteúdo que o compõe, tornando-se prazeroso para quem o lê. Os personagens
são seres humanos de verdade, animais com pretensão de serem humanos e com sentimentos. Em
todas as histórias temos uma abertura para uma observação, uma reflexão ou qualquer outra coisa
que aproxime a criança do adulto e vice-versa. No livro encontramos vários gêneros de narrativas
curta, variando desde a narrativa fantástica, fabulística, etiológica e de aventura.
Construção composicional
Conteúdo temático
Podemos sintetizar a história da seguinte forma: Vera é uma vaca que não produz leite,
seu dono fica sensibilizado e pede ajuda a um boi para resolver a situação. O conflito é resolvido
quando o boi entra em ação e organiza uma festa na qual Vera conhece “alguém” por quem se
apaixona e tem um bezerrinho. Dessa forma, com o nascimento de um bezerrinho, o conflito é
solucionado e todos ficam felizes.
Como podemos observar, o narrador discorre sobre um assunto muito em voga na
atualidade: a depressão. Para exemplificar o quão sério e grave é essa questão utiliza-se da
personagem Vera Vaca e aponta para o leitor que diante do quadro de tristeza, desânimo que a
mesma se encontra uma de suas principais funções não é executada: produzir leite.
O enredo é narrado em terceira pessoa, na ordem cronológica dos acontecimentos. Os
personagens que aparecem no texto são Vera (a vaca), Seu Manoel Verdureiro, Boi Barriga e
Zebu. É interessante observar que os nomes dados aos personagens Vera (a vaca), e Lucas (o
bezerrinho) são nomes comuns a humanos, ao contrário dos outros animais da mesma espécie
como Boi Barriga e Zebu.
O tempo verbal
Com relação ao tempo verbal, os verbos que constituem ações estão no pretérito
imperfeito (tinha) comum ao mundo narrado, assinalador de fatos contínuos ou ações freqüentes,
e no pretérito perfeito (achou, chamou, providenciou, conheceu, sarou, amamentou, sobrou).
No texto citado, em um curto fragmento da narração, encontramos a repetição do pretérito
imperfeito: “Vera era uma vaca com um problema: não tinha leite. Já pensaram que drama deve
ser isso para uma vaca? Pois Vera, por causa da falta de leite, tinha crises de depressão”. A
repetição do tempo verbal pode ser pelo fato do autor apresentar a causa e a conseqüência.
Marcas lingüístico-enunciativas
É interessante investigar como a autora fez para construir o seu texto. Logo na primeira
linha, através do uso dos dois pontos, há uma asserção de impacto, quando Frate (1996) avisa ao
leitor que Vera tem uma grande dificuldade: “Vera era uma vaca com um problema: não tinha
leite”. Neste momento, questionamos se a grande dificuldade era somente do animal ou do seu
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dono também. Hora, reflitamos um pouco, do que vale uma vaca se não reproduz e não produz
leite? Podemos inferir que serviria somente para engorda e abate.
Paulatinamente, ao analisarmos a forma como o texto vai sendo construído, notaremos
que a preocupação do dono de Vera, apresentada pelo autor-narrador, é mais voltada para o bem
estar da vaca do que para os possíveis prejuízos que ele possa ter com essa situação (“Já
pensaram que drama deve ser isso para uma vaca?”). Então, o problema não é para o seu
proprietário, mas sim para o psicológico do próprio animal.
Como podemos observar pela citação acima, outro recurso usado pelo enunciador do texto
foi o uso do discurso indireto livre. O narrador dialoga diretamente com o leitor por meio do
texto. Neste momento temos outra estratégia utilizada por Frates (1996) para estabelecer o
diálogo autor-leitor via texto. O objetivo é envolver o leitor de tal forma que ele reflita,
juntamente com o autor, sobre a situação caótica na qual a vaca se encontrava.
Conforme já destacamos anteriormente, em seus textos Frate (1996) aborda temas atuais.
Um desses temas é encontrado neste trecho: “Pois Vera, por causa da falta de leite, tinha crises
de depressão”. Este fragmento é interessante porque nele se inicia uma ação que vai permear
todo o texto: o narrador passa a apresentar um animal, porém, este mesmo animal, apesar de ter a
aparência física de uma vaca, psicologicamente apresenta sentimentos humanos. Podemos dizer
que ocorre a personificação, elemento característico das narrativas ficcionais, onde os
personagens têm sentimentos, isto é, neste momento o autor atribui qualidades humanas a um ser
irracional. O fato de o narrador atribuir sentimentos humanos aos animais é também um recurso
mobilizado para a produção de sentidos. O uso do advérbio indica estado psicológico e o
primeiro sentimento que se manifesta é a depressão, neste caso vinculado à tristeza, desânimo. E
mais, o sentimento não só é citado como também é justificado pelo narrador: “[...] por causa da
falta de leite [...]”
Para a construção dos efeitos de sentido o destaque de alguns termos e a sua utilização no
discurso são fundamentais. Observemos que a situação psicológica de Vera é notada por seu
dono: “Seu Manoel Verdureiro, um homem muito sensível, compreendeu a situação de Vera”.
No tocante a situação na qual a vaca se encontrava, podemos inferir que nem todo homem
poderia compreender tal situação. No entanto, o proprietário da vaca tinha uma qualidade
imprescindível: ele era muito sensível. Neste fragmento encontramos o operador argumentativo,
assinalador de intensidade “muito” enfatizando o adjetivo “sensível”. Conforme apregoa Geraldi
(1993, p.137), é relevante investigarmos as escolhas lingüísticas que o autor faz na enunciação de
um discurso. Nesse momento, o papel do professor, enquanto mediador, no processo de ensino-
aprrendizagem, é de suma importância, uma vez que é ele quem pode apontar ao educando não só
a leitura do texto, mas, sobretudo investigar como o autor fez para dizer o que disse.
A seqüência da narração reintera como a seleção dos recursos lingüístico-enunciativos
não foi aleatória: “Não se aproximou mais dela com o baldinho achou que deveria fazer alguma
coisa para alegrá-la. Chamou o Boi Barrica, que providenciou uma lindíssima festa de bumba-
meu-boi”. O fragmento se inicia com o operador argumentativo de negação por excelência: “Não
[...]”. Notemos que no meio de um contexto conturbado, Vera encontra no gesto de Seu Manuel
solidariedade. O instrumento usado para a coleta do inexistente leite foi abandonado: “o
baldinho”. Observemos que sequer era um balde, mas sim um baldinho, no diminutivo mesmo,
no sentido de pequenino, possivelmente porque voltava vazio...
Então, além de compreender a situação, Seu Manuel partiu para a ação, pensou em algo
que pudesse alterar o contexto. Observe o leitor que ele mesmo poderia ter organizado a festa,
porém a autora nos sinaliza que foi chamado um animal da mesma espécie que Vera para
promover o evento. Possivelmente a escolha do animal da mesma espécie é justificada pelo
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conhecimento de mundo próximo de Vera, logo deveria saber, com mais propriedade que Seu
Manuel o que lhe agradaria.
No que diz respeito à forma como a festa foi organizada, observamos que Boi Barriga não
preparou uma festa simples, logo inferimos que ele era um “entendido/especializado” no assunto.
Para transmitir ao leitor a idéia de como havia sido a festa, a narradora faz uso do superlativo:
“Chamou o Boi Barrica, que providenciou uma lindíssima festa de bumba-meu-boi”.
Com relação ao evento promovido, é pertinente observarmos que a escritora selecionou
uma festa que faz parte do folclore brasileiro: a festa do bumba-meu-boi. Esta festa remonta ao
Ciclo do Gado, no século XVIII, é resultante das relações desiguais que existem entre os escravos
e os senhores nas Casas Grandes e Senzalas. Em seu enredo reflete-se as condições sociais
vividas pelos negros e índios. A narração foi contada e recontada através dos tempos, na tradição
oral nordestina, e depois espalhada pelo Brasil, a lenda adquire contornos de sátira, comédia,
tragédia e drama, conforme o lugar em que se inscreve, mas sempre levando em consideração a
estória de um homem e um boi, ou seja, o contraste entre, por um lado, a fragilidade do homem e
a força bruta do boi e, por outro lado, a inteligência do homem e a estupidez do animal. Outro
dado relevante sobre a festa do bumba-meu-boi é que conforme a região do Brasil, essa festa
adquire outros nomes. Vejamos alguns exemplos: no Maranhão, Rio Grande do Norte e Alagoas
é chamado bumba-meu-boi, no Pará e Amazonas é Boi-Bumbá ou Pavulagem; em Pernambuco é
Boi Calemba ou Bumbá; no Ceará é Boi de Reis, Boi Surubim e Boi Zumbi; na Bahia é Boi
Janeiro, Boi Estrela do Mar, Dromedário e Mulinha-de-Ouro; no Paraná, em Santa Catarina, é
Boi de Mourão ou Boi de Mamão; em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Cabo Frio é Bumba ou
Folguedo do Boi; no Espírito Santo é Boi-de-Reis; no Rio Grande do Sul Bumba, Boizinho, ou
Boi Mamão; em São Paulo é Boi de Jacá e Dança do Boi e seguem as diversificadas
denominações por este Brasil afora... Outra possibilidade de inferência é que tanto na festa do
bumba-meu-boi quanto nesta narrativa há personagens semelhantes: o homem e o animal
(boi/vaca).
Dois aspectos da cultura brasileira podem ser observados no texto: o primeiro é que a
opção pela cor utilizada na ilustração aponta para um casal de cores de couro diferenciadas,
sendo Vera mais clara, quase branca e boi Zebu cinza, o que é uma característica da
miscigenação racial em nosso país. O segundo, é que a ilustração representa justamente o início
da mudança de situação no enredo, pois retrata a parte em que eles estão dançando com o toque,
o conhecimento, o aprofundamento da relação, enfim, a busca do outro.
Ainda sobre a festa acima especificada, notamos que nesse fragmento há a apresentação
da descrição do boi Zebu: “Na festa, Vera conheceu Zebu, um boizão cinza que era um gato”.
Novamente as escolhas lingüísticas fornecem pistas ao leitor sobre o possível sentido que o autor
quis transmitir. Zebu não era um boi, era um boizão cinza. Há que se destacar que pelo uso do
aumentativo podemos entender que o boi apresentado era especial. Em seguida, temos a escolha
lexical do adjetivo gato, para qualificar o personagem. Notamos as marcas do autor ao optar pela
linguagem informal e usar o adjetivo gato no sentido denotativo, uma gíria, tendo múltiplos
sentidos, porém todos voltados para adjetivos positivos, como bonito, atraente, bem apessoado,
dentre outros. Dessa forma, trata-se de uma linguagem muito conhecida pelo público infanto-
juvenil, a quem o livro se destina, sendo mais um recurso lexical usado pelo autor para se
aproximar do público-alvo.
Na finalização do texto encontramos o típico final feliz: “Logo estavam dançando,
beijando, e sabem como são essas coisas... logo estavam fazendo um bezerrinho Lucas até ele
virar um bezerrão e ainda sobrou muito leite para o baldinho do seu Manoel”. Neste momento,
fecha-se o ciclo que comentamos no início da análise, novamente Frate (1996) atribui
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ações/sentimentos humanos para descrever o romance entre os animais. E mais, ao enunciar:
“Logo estavam dançando, beijando, e sabem como são essas coisas” a autora volta a dialogar
com o leitor, na busca do sentimento de cumplicidade, acreditando que o leitor partilhará de seus
pensamentos, isto é, o leitor entenderá perfeitamente o que pode acontecer após uma dança, um
beijo, etc... O uso da repetição gerúndio (dançando, estando, fazendo) é usado para assinalar o
prolongamento da ação.
No fechamento da narrativa temos a marca da passagem do tempo na narrativa através da
expressão temporal logo, repetida para assinalar um curto período de tempo. Com a formação do
suposto lar de Vera, através do triângulo composto por mãe, pai e filho, a situação de tristeza na
qual ela se encontrava é transformada em uma situação de alegria. Alegria esta partilhada pelo
dono de Vera, visto que após o nascimento do bezerrinho o problema inicial da falta de leite é
resolvido.
Para finalizar, apresentaremos, no quadro abaixo, a descrição do gênero narrativa, como
forma de sumarização da análise:
4 Conclusão
Em nossas considerações finais, queremos ressaltar que neste texto apresentamos uma
leitura dentro das muitas possíveis, do gênero discursivo pertencente à ordem do narrar. Nossa
prática pedagógica nos aponta que mais importante do que o tamanho do texto a ser trabalhado é
a forma como o professor fará a transposição didática para a sala de aula. Dentro do projeto de
pesquisa do qual este trabalho é fruto, é consenso que a leitura, a produção textual e a análise
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lingüística devem ser abordadas simultaneamente. Outro pressuposto defendido é que ao eleger
os gêneros discursivos como objeto de ensino o educador abordará aspectos da enunciação e do
discurso. Isso posto, elementos como a condição de produção de um texto, o meio de veiculação
(o objetivo maior do meio, o posicionamento ideológico), qual o suposto leitor, a que público se
destina, que escolhas lingüísticas foram feitas pelo autor para dizer o que disse e quais os efeitos
de sentido causados, a posição enunciativa assumida, a imagem que se quis passar, dentre outros
serão considerados.
5 Sugestões metodológicas
Referências
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