TINDÓ SECCO - As Literaturas Africanas
TINDÓ SECCO - As Literaturas Africanas
TINDÓ SECCO - As Literaturas Africanas
As Literaturas Africanas de Língua Portuguesa são ainda jovens, com aproximadamente, 160
anos de existência. Apesar de os primeiros textos datarem da segunda metade do século XIX, só no
século XX, na década de 30 em Cabo Verde (com Claridade), e nos anos 50 em Angola (com
Mensagem), é que essas literaturas começaram a adquirir maioridade, se descolando da literatura
portuguesa trazida como paradigma pelos colonizadores. Embora não se tenham desenvolvido sempre
em conjunto, devido aos seus respectivos contextos sócio-culturais diferenciados, essas literaturas são,
geralmente, estudadas, nos meios universitários ocidentais, sob denominação abrangente que envolve
a produção literária de Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, ex-
colônias de Portugal na África.
Tal designação se deve à relevância que as literaturas africanas tiveram, nas décadas de 40, 50
e 60 do nosso século, quando, reunidos na Casa dos Estudantes do Império de Lisboa, estudantes
africanos _ entre eles Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Eduardo Mondlane, Mário Pinto de Andrade,
Francisco José Tenreiro, António Jacinto _ iniciaram, sob os ecos da negritude francesa, do negrismo
afro-americano e sob o signo do anticolonialismo, um movimento político-literário de valorização das
literaturas de seus países. Nesse processo, além da negritude, cuja influência levou à defesa da
africanidade no campo literário, tiveram também importância o Neo-Realismo português e o
Modernismo brasileiro por seus conteúdos sociais que serviram de modelo à fundação do
nacionalismo nessas literaturas.
Em Angola e Moçambique, nos anos 50, surge uma poesia direcionada para a afirmação das
raízes africanas e da identidade a ser recuperada. Sob o lema “Vamos descobrir Angola”, o
Movimento dos Novos Intelectuais de Angola propunha o resgate da angolanidade, também
reivindicada pelos poetas de Mensagem, entre eles Viriato Cruz, António Jacinto, Agostinho Neto,
autor do livro de poemas Sagrada Esperança, de quem lembramos o poema:
MÃOS ESCULTURAIS
Eu vejo
as mãos esculturais
dum povo eternizado nos mitos
inventados nas terras áridas da dominação
as mãos esculturais dum povo que constrói
sob o peso do que fabrica para se destruir
e rosas e pão
e futuro.
(Sagrada Esperança,1975)
Em Moçambique, também nessa época, se inicia uma poética voltada para a moçambicanidade,
cujas principais vozes foram as de Noêmia de Souza, Marcelino dos Santos e José Craveirinha, poeta
que, em 1992, recebeu o Prêmio Camões de Literatura, e continua a escrever até hoje, tendo passado
por várias fases. O seu livro Xigubo (1964) reúne poemas desse período, versando sobre temas
africanos e fazendo a crítica ao racismo, ao colonialismo, aos séculos de escravidão. Citamos do poeta
o poema inédito:
SAMBO
Do mar
Vieram os lívidos navegantes
com espadas e missangas
e ficaram.
Em Angola, a poesia de Agostinho Neto, em sua fase da negritude, também clamou contra a
opressão sofrida pelos negros, denunciando a exploração escrava. Tanto em Angola, como em
Moçambique, nesse período, a poesia se afasta dos cânones portugueses e recusa a civilização
européia. É uma poética acusatória, de forte impacto social, que faz ecoar o grito negro da rebeldia.
Em busca das raízes profundas do ser africano, utiliza vocábulos das línguas nativas, de modo a
macular o idioma do colonizador. Craveirinha, por exemplo, traz para seus poemas os sons das
marimbas e do tambor, mesclando o português com palavras em ronga. Poetas angolanos desse
momento também procedem assim, introjetando ao português expressões do quimbundo, do mbundo,
do quicongo e de outras línguas, de modo a assinalar, com odores e saberes africanos, o idioma trazido
pelo colonizador.
Representando a poesia de São Tomé e Príncipe, temos as vozes de Francisco José Tenreiro, de
Maria Manuela Margarido e de Alda do Espírito Santo, entre outras, defendendo os paradigmas da
negritude e/ ou a identidade das ilhas. Com a palavra, Dona Alda, uma das " grandes damas" das
Literaturas Africanas:
EM TORNO DA MINHA BAÍA
Aqui, na areia,
Sentada à beira do cais da minha baía
do cais simbólico, dos fardos,
das malas e da chuva
caindo em torrente
sobre o cais desmantelado,
caindo em ruínas
eu queria ver à volta de mim,
nesta hora morna do entardecer
no mormaço tropical
desta terra de África
à beira do cais a desfazer-se em ruínas,
abrigados por um toldo movediço
uma legião de cabecinhas pequenas,
à roda de mim,
num vôo magistral em torno do mundo
desenhando na areia
a senda de todos os destinos
pintando na grande tela da vida
uma história bela
para os homens de todas as terras
ciciando em coro, canções melodiosas
numa toada universal
num cortejo gigante de humana poesia
na mais bela de todas as lições:
HUMANIDADE.
(in Poetas de São Tomé e Príncipe, 1963. Apud No Reino de Caliban II, p. 449 e 450)
Em Cabo Verde, desde a década de 30, Claridade já clamava por uma poesia autêntica, que
buscava afirmar a cabo-verdianidade. Essa poética, ao contrário do que ocorre em Moçambique e
Angola, na década de 50, não reivindicava os temas da negritude, tendo em vista a predominância
mestiça em Cabo Verde, cujas ilhas, desertas na ocasião da descoberta, foram povoadas por
portugueses oriundos da Madeira e negros vindos da Guiné.
Claridade representou uma virada na lírica do Arquipélago. Influenciada pelo Modernismo
brasileiro, essa geração rompeu com as formas clássicas da poesia, incorporando o verso livre, a não
preocupação com as rimas, o uso do crioulo, os temas cabo-verdianos. Ouçamos Jorge Barbosa, uma
das mais representativas vozes de Claridade:
O mar
Ai o mar
que nos dilata sonhos e nos sufoca desejos!
— Ai a cinta do mar
que detém ímpetos
ao nosso arrebatamento
e insinua
horizontes para lá
do nosso isolamento!
—Ai o cântico
estranho
do Atlântico,
que se não cala em nós!
Talvez um dia
inesperado remoinho de águas
passe
borbulhante,
envolvente,
alguma onda mais alta
se levante...
Talvez um dia...
— Quem sabe!...
Depois
na senda dos tempos
continuará
a marcha dos séculos
Esta
a minha mão de milho & marulho
Este
o sol a gema E não
o esboroar do osso na bigorna
E embora
O deserto abocanhe a minha carne de homem
E caranguejos devorem
esta mão de semear
Há sempre
II
Poeta! todo o poema:
geometria de sangue & fonema
Escuto Escuta
Um pilão fala
árvores de fruto
ao meio do dia
E tambores
erguem
na colina
Um coração de terra batida
E lon longe
Do marulho à viola fria
Reconheço o bemol
Da mão doméstica
Que solfeja
Na Guiné-Bissau, surgem nomes importantes na poesia : Vasco Cabral, Hélder Proença, entre
outros. É publicada a primeira antologia da Guiné: Mantenhas para quem luta!, cujas poesias,
tornando-se guerrilheiras, cantam o desejo de libertação.
Nessa época, em Moçambique, são editados vários fascículos sob a denominação Poesia de
Combate. Na prosa moçambicana, escritores como Orlando Mendes, com o romance Portagem, e Luís
Bernardo Honwana, com o livro de contos Nós Matamos o Cão-Tinhoso, denunciam a opressão e a
miséria vivida pelo povo.
São muitos os poetas também em Angola a produzirem poemas nessa dicção: Costa Andrade,
Jofre Rocha, e outros. Na ficção, diversos escritores optam pela temática da guerra e pela denúncia
das carências sociais. Luandino Vieira, desde os anos 60 e passando pelas décadas subseqüentes,
envereda por esse caminho, mas se afirma por um estilo próprio que busca, à maneira de Guimarães
Rosa, recriar a língua de colonização, “quimbundizando-a” pela opção de transcriar a fala dos
habitantes dos musseques, isto é, as favelas de Luanda, onde o povo oprimido vivia em condições
subumanas. Outros escritores desse período também se destacam, entre eles Pepetela, com o seu
famoso romance Mayombe, o qual, ultrapassando a dimensão apenas ideológica das narrativas
comprometidas com a utopia da Revolução, discute valores humanos universais, como o amor, o sexo
e a amizade, além de criticar o tribalismo e as contradições da própria guerra. Pepetela é um dos
grandes escritores angolanos, cuja obra apresenta várias fases, na medida em que continua a escrever
até hoje.
Nos fins dos 60 e início dos 70 , com a intensa repressão da PIDE ( polícia salazarista), a
literatura se torna bastante metafórica para driblar a censura. A poesia, principalmente em Angola e
Moçambique, se torna elaborada, voltando-se sobre ela mesma. É a fase da “Poesia do Gueto”, do
grupo Caliban, em Moçambique, com poetas como Rui Knopfli, Sebastião Alba, Alberto de Lacerda,
entre outros, e, em Angola, com poetas como David Mestre, Manuel Rui, Arlindo Barbeitos, Ruy
Duarte de Carvalho, para citar somente alguns.
Com a independência, retornam as utopias. São vários os poetas a celebrarem a liberdade
conquistada. Em Angola, lembramos o nome de Manuel Rui com seu livro Cinco vezes onze: poemas
em novembro, obra literariamente muito bem construída. Em Moçambique, citamos o livro Monção,
de Luís Carlos Patraquim , que celebra os bons ventos libertários.
O fim dos 80 e os 90 são marcados por um desencanto na esfera social, que se reflete na área
literária. A poesia dessas décadas se caracteriza pela superação da poética “cantalutista” e pelo
desaparecimento das referências circunstanciais presentes na poesia revolucionária. Há a radicalização
do projeto de recuperação da língua literária, aproveitada em suas virtudes intrínsecas e universais,
sem os regionalismos característicos da literatura dos anos anteriores. Há a metaconsciência e o traço
crítico, mas sem o panfletarismo ideológico. Ironia, paródia, desencanto são procedimentos de
denúncia à corrupção e às contradições do poder. Dialogando com poetas das gerações anteriores, essa
lírica aponta para a crise das utopias e funda um novo lirismo que procura cantar os sentimentos
existenciais, desvinculados do canto coletivo social. Há uma intensificação poética, através da
depuração da linguagem literária que, em alguns poetas, se manifesta por experimentalismos, por
corporizações plásticas de palavras, por metáforas surrealistas, por jogos verbais que acentuam a
relação entre a ética e a estética.
Afinados a essa nova dicção, em Angola, os principais poetas atuais são João Melo, Lopito Feijóo,
João Maimona, Ana Paula Tavares, Eduardo Boavena, José Luís Mendonça, de quem citamos o
poema:
EU QUERIA ABSTER-ME
Eu queria abster-me
de olhar as lentas
feras madrugadas
paridas entre a unha e a polpa
dos meus dedos de sangue.
(assim seja!).
Em São Tomé, não poderíamos esquecer de mencionar Conceição Lima, que faz uma poesia de
revisão crítica da história de seu país, como podemos observar em seu poema a seguir:
ANTES DO POEMA
Na Guiné-Bissau, a mais pobre das ex-colônias, também algumas vozes novas surgem, entre as
quais as de Domingas Samy e Carlos Lopes, embora , na maior parte das vezes, as narrativas ainda
circulem apenas oralmente. Na poesia, nesses tempos de distopia, há, por exemplo, o canto lúcido do
poeta António Soares Lopes Júnior, conhecido pelo pseudônimo Tony Tcheka:
TECTO DE SILÊNCIO
Na angústia
liberto o verbo
mordo o pólo da desgraça
que grassa
nesta África desventurada
em obra
e graça
subdesenvolvendo-se
Coloco andaimes
nos alicerces do tempo
perscruto os ventos
circunciso as ondas
nego a convivência da paciência
que amordaça a fala
e cala o sentimento.
Exorcizo o paludismo
apeio a poliomielite
amputo a desgraça
e eis a graça da criança
florescendo a vida
Bissau, 1990
(apud Noites de Insónia na Terra Adormecida, 1996. p. 125)
Já nos caminhos
Da África
América
Europa
Tua partida foi necessária
Na conjugação das coisas
De porto a porto
Crescem sílabas na saliva da boca
E revive no teu rosto
A cicatriz da saudade
Na têmpera de catabolismos
Trazes nas páginas da vida
Lágrimas salgadas da partida
Regresso
Terra amor-mãe-cretcheu
Amargura-tristeza-saudade
(São sentimentos esquecidos)
Que confluem
Em ambiente
De festa & alegria
II
De sol-a-sol
Estampam no teu rosto
Moléculas de suor
Pitagoricamente
Teorias + teoremas
Pão & suor
Razão & resistência + certeza
E
Enquanto as enxadas
Sucumbem à estiagem
Sacrifícios nossos continuarão
E
Suor & certeza
Espigarão no teu rosto
Procriando o pão!
1983
( Canabrava. Apud Mirabilis de Veias ao Sol,
p.95-96)
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