Direito Como Literatura em Francois Ost PDF
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RESUMO: Este trabalho trata sobre a recente pesquisa de François Ost sobre a
reabilitação da narrativa para a verdade, a justiça e uma futura crítica da razão
narrativa. Para isto, primeiro situamos onde se localiza a pesquisa, o que seria o
Direito como literatura, a sua necessidade e importância e o narrative turn. Então
desenvolvemos as ideias de Ost e o papel das narrativas ao Direito, que pode ser
melhor compreendido a partir da teoria narrativa.
ABSTRACT: This paper treats on the recent François Ost’s research on the
rehabilitation of the narrative to the truth, justice and a future critique of narrative
reason. For this, first we situate where is that research, what is law as literature, its
necessity, importance and the narrative turn. So we developed the ideas of Ost and
the role of narrative for the law, which an be better understood using the narrative
theory.
1 INTRODUÇÃO
1 Mestre pelo Programada Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS. Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Pará – CESUPA.
considerando que este artigo desenvolve de modo mais preciso diversos fundamentos
do seu pensamento e ajuda a iluminar as outras obras.
Para isto, buscaremos compreender dois pontos de modo circular (um
ajudando na compreensão do outro): 1) o pensamento de François Ost sobre o papel
fundamental da narrativa para a verdade e a justiça; 2) a potência do Direito como
literatura para iluminar elementos ocultos na compreensão do Direito que ignora o seu
caráter narrativo.
Neste sentido, inicialmente iremos posicionar os trabalhos de Direito e narrativa
dentro dos trabalhos de Direito e literatura, demonstrar a necessidade da
compreensão do aspecto narrativo e a força crescente, principalmente na Europa, de
um narrative turn.
Posto o panorama em que Ost se insere, desenvolvemos suas principais ideias
que reabilitam a importância e necessidade da narrativa para o conhecimento e,
naturalmente, para o Direito.
2 Optou-se por escrever direito com letra minúscula, evitando uma possível superioridade de uma
disciplina sobre a outra no momento em que entram em contato. Esta questão foi desenvolvida em
outro artigo chamado “A Transacionalidade entre direito e literatura: aproximações a partir de Benedito
Nunes” publicado na Revista espaço acadêmico, n.160, set, 2014. Disponível em:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/23518/13514
já superado na literatura, mas ainda não pelos códigos. Estando fora da ação, mas a
controlando. (OST, 2007, p.53-54). É o ponto de vista de Deus. Afinal, como escreveu
Jean-Jacques Rousseau (1963, p.35) no seu Do contrato social: “Il faudrait des dieux
pour donner des lois aux hommes”.3
A importância do direito como literatura nasce desta limitação moderna do
jurista, que não se volta ao horizonte maior da linguagem e da narrativa, mas fecha-
se em um discurso normativo próprio. A interação com a literatura aproxima o jurista
de uma realidade que não é acessível ou compreensível pela via hegemônica do
conhecimento jurídico. Portanto, uma face que estava escurecida pode ser trazida à
luz (GONZÁLES, 2013, p.31-32).
O estudo da teoria narrativa, que compõe uma disciplina dentro da teoria
literária, permite compreender as narrativas em um sentido muito mais amplo, o qual
possibilita colocar a narrativa jurídica como uma das maneiras que o ser-humano
desenvolveu de narrar o seu mundo, junto com outros grandes modos, sejam
ficcionais ou verdadeiras, como a Bíblia, Hamlet, Dom Quixote, as narrativas
populares (folklore) ou mesmo narrativas familiares.
É a partir dos métodos e compreensões sobre a narrativa e a escrita que surge
a importância desta corrente, já que é indiscutível que há algo de narrativo no direito,
começando pelo evidente, como os depoimentos em juízo, a narrativa que compõe a
sentença etc. Mesmo no polêmico Law and literature de Richard A. Posner (2009,
p.425), a narrativa é colocada como fundamental ao direito: “Narrative plays an
important role in law, a role that is not without an element of fiction”4. Mas cabe
questionarmos: até onde chegará o caráter narrativo do direito?
José Calvo Gonzáles (2007, p.312) expõe um elemento essencial da relação
entre Direito e literatura:
3 “Seriam precisos deuses para dar leis aos homens” (Tradução nossa).
4 “A narrativa exerce um importante papel no Direito, papel que não existe sem um elemento ficcional.”
(Tradução nossa)
5
Assim é dito por Kelsen (2011, p.256): “As is obvious from the foregoing, the Basic Norm of a positive
moral or legal system is not a positive norm, but a merely thought norm (i. E. A fictitious norm), the
meaning of a merely fictitious, and not a real, act of will”.
6 Uma das relevantes desvantagens da perspectiva analítica para a narrativa é que a analítica não
compreende a história e suas mudanças. Mas trata de momentos isolados, sincopados, sem explicar
a sequência e o trama. O Direito narrado restitui o roteiro da narrativa. (OST, 2007, p.46).
In this normative world, law and narrative are inseparably related. Every
prescription is insistent in its demand to be located in discourse - to be
supplied with history and destiny, beginning and end, explanation and
purpose. And every narrative is insistent in its demand for its
prescriptive point, its moral. History and literature cannot escape their
location in a normative universe, nor can prescription, even when embodied
in a legal text, escape its origin and its end in experience, in the narratives that
are the trajectories plotted upon material reality by our imaginations. (Grifo
nosso)7
7 No mundo normativo, lei e narrativa são inseparáveis. Cada prescrição insiste que a sua demanda
seja localizada no discurso - a ser fornecido com história e destino, começo e fim, explicação
e propósito. E toda narrativa insiste em sua demanda por seu ponto prescritivo, a sua moral.
História e literatura não podem escapar de sua localização em um universo normativo, nem pode
prescrição, mesmo quando incorporado em um texto legal, escapar de sua origem e seu fim na
experiência, nas narrativas que são as trajetórias traçadas pela nossa imaginação sobre a realidade
material. (Tradução livre e grifo nosso)
de Darwin, Freud, Nietzsche não fazem parte apenas do mundo dos especialistas que
os estudaram, mas do imaginário e ambiente de quem estes afetam. O direito também
atua assim, para além das contendas e dos acontecimentos especializados, dos
tribunais.
Eis o princípio “ex fabula ius oritur”, pois é da narrativa, da fábula que surge o
Direito (OST, 2007, p.24). A sua forma é narrativa. É como se a sociedade
selecionasse uma intriga e a normatizasse. Naturalmente, mesmo sendo escolhidas,
estas são discutidas, modificadas – as narrativas são sempre reabertas e os sentidos
se multiplicam, pois as narrativas normatizadas são sempre questionadas. As
certezas dogmáticas são reconduzidas a novas interrogações.
Deste modo, há uma ideia central em Cover (1983, p.4-5):
No set of legal institutions or prescriptions exists apart from the narratives that
locate it and give it meaning. For every constitution there is an epic, for
each decalogue a scripture. Once understood in the context of the
narratives that give it meaning, law becomes not merely a system of rules to
be observed, but a world in which we live. (Grifo nosso)8
8 Nenhum conjunto de instituições legais ou prescrições existe apartado das narrativas que os localizam
e lhes dão sentido. Para cada constituição há uma epopeia, para cada decálogo, uma escritura. Uma
vez entendido no contexto das narrativas que lhe dá sentido, a lei torna-se não apenas um sistema
de regras a serem observadas, mas o mundo no qual vivemos. (Tradução livre)
9
“One of the purposes of this particular book, indeed perhaps its primary purpose, is to suggest that
students might better enjoy, and thus, inevitably, better understand the origins of English constitutional
thought by reading Richard II, the inadequacies of rape law by reading The Handmaid's Tale and the
psychology of English property law just by looking at the pictures in The Tale of Peter Rabbit“ (WARD,
1995, p.ix).
10 Há muitas constituições, muitos exemplos de narrativas que contam a história dos homens, dando
sentido à sua vida individual e coletiva e respondendo às suas questões existenciais: quem sou eu?
Um sujeito de direito; de onde sou? Da longa série de eventos que fizeram o povo francês - ou alemão
ou búlgaro ... -; Por que estou aqui? Para continuar esta história e cumprir o desejo de uma sociedade
de paz e liberdade. Para responder a estas perguntas, as sociedades antigas tinham suas mitologias;
as constituições são hoje as mitologias das sociedades modernas. (Tradução livre e grifo nosso)
11 “Eu quero, portanto, pleitear em favor da importância, realmente constitutiva, da narrativa,
abrangendo tanto a constituição imaginária das pessoas, quanto o plano do ‘romance pessoal’ que
nós nos contamos a nós mesmos em via de edificar nossa identidade.” (Tradução nossa)
12Neste trecho de A República, podemos perceber como Platão não aceitava o que na modernidade
virou o belo autônomo, ou seja, o belo independente do bem e da verdade. Estes deveriam estar
juntos em Platão: “Não é também claro que a respeito do justo e do belo muita gente prefere a
aparência que, embora seja igual a nada, todos fazem questão de praticar e possuir ou parecer que
possuem? No entanto, com relação ao bem, ninguém se contenta em parecer; só almejam a realidade
e desprezam as aparências.”(PLATÃO, 2000 p.308). Importa notar que até hoje há em muitos
momentos uma relação entre o belo e o justo. Não à toa que é comum ouvir mães ensinando a seus
filhos o que é errado com a expressão “isso é feio”, que melhor compreendido pelas crianças do que
uma explicação realmente.
historinha) ou espaço privado e diversas outras expressões que a ciência utilizou para
qualificar como não-científico, não apto a produzir conhecimento.
Rompendo com estes pensamentos, um vasto espaço filosófico se abre, tendo
o papel de recolocar a narrativa ao lado da razão e da constituição das sociedades.
Podemos, portanto, reavaliar o papel da ficção ao lado do que se pode chamar de
realidade, verdade e justiça. Isto revisita a grande separação moderna entre fato e
dever, elementos que o pensamento analítico insiste em manter separados, mas que
a narrativa permite realizar mediações, como é próprio da vida – apenas ciência
moderna que esta separação se impõe. Há algo na narrativa que lida com a parte do
“não-dito”, o indizível que os procedimentos racionais da comunicação democrática
não alcança sem ceder aos fáceis equívocos do storytelling15(OST, 2014, p.4).
Após reabilitar a narrativa, portanto, deve-se realizar algo como uma “critique
de la raison fabulatrice”, o que ainda está em etapa inicial em François Ost. É a tarefa
necessária e delicada de elucidação das relações que cada sociedade e cada
indivíduo têm com estas ficções, tarefa a toda hora ameaçada pelas negações no
plano individual e pela censura no plano da sociedade. É ainda tarefa indispensável
compreender que a narrativa é uma atividade em si exposta a diversos riscos e muitas
vezes devemos assumi-los. O aforismo de Paul Ricoeur refere-se ao símbolo: “le
symbole donne à penser”, mas Ost acredita que não apenas ao símbolo, mas também
à narrativa pode servir de indicador para esta reflexão. A narrativa dá a pensar. (OST,
2014, p.4-5)
Ost retoma as negações para aprofundar o tema da validade das narrativas e
opta por tratar da refutação platônica de modo mais detalhado. O pensamento
ocidental dominante é marcado pela ditadura do real, caracterizada pelo a priori e do
dado, ou da forma estável (a essência ou ideia). Apenas neste quadro estaríamos em
um caminho correto para o conhecimento. Este real que é associado irresistivelmente
à verdade e à justiça. Ost (2014, p.5) diz que:
15Storytelling, neste sentido, é a exposição de algo através de um contador de histórias que realiza um
relato. É utilizado como uma simplificação do que é narrativa, já que esta extrapola em todos os
sentidos a simples contação. Apesar de esta não perder o seu valor.
16 “Tudo se passa então como se nós fossemos obrigados a nos conformar a este quadro, sob pena de
erro, de loucura, de infração ou de pecado, caso nós a separemos deste, principalmente se nós
contestamos seus méritos.” (Tradução nossa).
17 “Eis que a versão oficial do mundo torna-se objeto de uma subversão generalizada” (Tradução
nossa).
18 Após Sócrates falar sobre um divertido poeta que chega à cidade e que, por ser excessivamente
deslumbrante, depois deverá ser embora, este diz: “(...) Teremos de recorrer a um poeta ou contador
de histórias mais austero e menos divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o estilo
moderado e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por
lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados” (PLATÃO, 2000, p.154).
19 “Compomos nós mesmos um poema trágico em nosso meio, tanto o melhor e o mais excelente
possível; toda nossa organização política é a imitação da vida mais bela e mais excelente!” (Tradução
nossa).
20 “foram os autores do mais magnífico drama: só um verdadeiro código de leis é precisamente o diretor
Ost diz que seria muito alusivo em relação à razão teórica, porque esta o
conduziria a uma vasta questão epistemológica que não está sendo proposta neste
trabalho. Mas Ost (2014, p.13) expõe rapidamente a sua intuição: “Je soutiens que
l’imagination joeu un rôle heuristique (un rôle de ‘mise en route”) irremplaçable dans
la découverte scientifique et la formulation des lois qui en découlent”23.
A origem dos paradigmas científicos nasce de vastas “visões de mundo”,
traduzidos numa rede de “metáforas” (rede metafórica) que orientam a pesquisa em
sentido decisivo. Cada grande descoberta científica se apoia sobre a intuição de um
mundo possível traduzido numa espécie de embrião especulativo da narrativa. Bem
entendido, o momento seguinte, a razão teórica, apreende o real em um laboratório,
em lógica matemática, mas não foi o equipamento laboratorial que pôs em cena a
escrita sugerida pela intuição narrativa do pesquisador. Isso faria voltar ao papel do
jogo da imaginação na Crítica da faculdade de julgar kantiana. Lá a imaginação
criadora está liberada da tutela do conceito e do seu papel na faculdade de julgar
determinante. Ost questiona que imaginação animou Darwin e a guerra das espécies,
Newton e a força de atração, Einstein e a relatividade? Aqui a imaginação dá a pensar
ao entendimento. (OST, 2014, p.13-14).
A fortiori, Ost diz que acredita poder sustentar que os grandes avanços em
ciências humanas e sociais são devedores da fecundidade imaginativa de certos
pesquisadores-pioneiros como Freud, Jung, Lévi-Strauss, Auguste Comte. Ost atenta
um detalhe desses “pionniers-narrateurs”, pois todos tiveram grande atenção à escrita
das suas teorias, possuindo um “estilo” próprio que não é apenas um modo de
reproduzir seu trabalho. O estilo do filósofo é algo que deve ser colocado à vista, um
domínio promissor.
4 CONCLUSÃO
Inicialmente definimos o que é o direito como literatura ou direito e narrativa e
onde está no quadro do direito e literatura; desenvolvemos o modo narrativo com que
o direito acontece e a importância de aprofundar estes elementos essenciais à
linguagem jurídica; e o narrative turn, onde estes elementos estão cada vez mais
presentes em grandes estudos.
Então desenvolvemos ideias de François Ost no seu “Pour une critique de la
raison narrative”, chegando nos fundamentos das negações da narrativa diante da
verdade, como mera ficção, sem valor científico; e então a reabilitação que Ost
desenvolve, encontrando o elemento narrativo no próprio discurso filosófico ou
científico.
Deste modo, percebe-se a necessidade de pensar o Direito, a sua
concretização e a sua própria humanização a partir do seu caráter narrativo,
extrapolando os pensamentos meramente subsuntivos e permitindo avanços na
compreensão da justiça e do direito.
REFERÊNCIAS
COVER, Robert M. The Supreme Court, 1982 Term – Foreword: Nomos and
Narrative. Faculty scholarship Series, 1983.
______. Teoria pura do direito. 7.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PLATÃO. A República – ou: sobre a Justiça. Gênero Político. 3.ed. Belém: EDUFPA,
2000.
SCHÜLER, Donaldo. Filosofia e revolução literária. In: ROHDEN, Luiz; PIRES, Cecília
(Orgs). Filosofia e literatura: uma relação transacional. Ijuí: Unijuí, 2009.