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DIREITO COMO LITERATURA EM FRANÇOIS OST: A REABILITAÇÃO DA

NARRATIVA PARA A VERDADE E A JUSTIÇA


Gilberto Guimarães Filho1 (UNISINOS)

RESUMO: Este trabalho trata sobre a recente pesquisa de François Ost sobre a
reabilitação da narrativa para a verdade, a justiça e uma futura crítica da razão
narrativa. Para isto, primeiro situamos onde se localiza a pesquisa, o que seria o
Direito como literatura, a sua necessidade e importância e o narrative turn. Então
desenvolvemos as ideias de Ost e o papel das narrativas ao Direito, que pode ser
melhor compreendido a partir da teoria narrativa.

PALAVRAS-CHAVE: François Ost. Direito como literatura. Direito e narrativa.

ABSTRACT: This paper treats on the recent François Ost’s research on the
rehabilitation of the narrative to the truth, justice and a future critique of narrative
reason. For this, first we situate where is that research, what is law as literature, its
necessity, importance and the narrative turn. So we developed the ideas of Ost and
the role of narrative for the law, which an be better understood using the narrative
theory.

KEYWORDS: François Ost. Law as literature. Law and narrative.

1 INTRODUÇÃO

François Ost é jurista, filósofo e dramaturgo belga, professor na Universidade


Saint-Louis em Bruxelas, co-diretor da Academia europeia de teoria do direito
(l’Académie européenne de théorie du droit), e conhecido mundialmente pelas
pesquisas em Direito e literatura. Tem como principais obras O Tempo do Direito e
Contar a lei: Fontes do imaginário jurídico, nas quais aborda grandes questões do
Direito a partir das narrativas, da contação de história que dá sentido ao tempo.
Este trabalho enfoca uma das suas mais recentes publicações “Para uma
crítica da razão narrativa” (Pour une critique de la raison narrative) publicada em 2014,

1 Mestre pelo Programada Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos –
UNISINOS. Graduado em Direito pelo Centro Universitário do Pará – CESUPA.

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considerando que este artigo desenvolve de modo mais preciso diversos fundamentos
do seu pensamento e ajuda a iluminar as outras obras.
Para isto, buscaremos compreender dois pontos de modo circular (um
ajudando na compreensão do outro): 1) o pensamento de François Ost sobre o papel
fundamental da narrativa para a verdade e a justiça; 2) a potência do Direito como
literatura para iluminar elementos ocultos na compreensão do Direito que ignora o seu
caráter narrativo.
Neste sentido, inicialmente iremos posicionar os trabalhos de Direito e narrativa
dentro dos trabalhos de Direito e literatura, demonstrar a necessidade da
compreensão do aspecto narrativo e a força crescente, principalmente na Europa, de
um narrative turn.
Posto o panorama em que Ost se insere, desenvolvemos suas principais ideias
que reabilitam a importância e necessidade da narrativa para o conhecimento e,
naturalmente, para o Direito.

2 DIREITO E NARRATIVA OU DIREITO COMO LITERATURA: UMA TEORIA


NARRATIVA DO DIREITO?

Antes de falarmos propriamente do pensamento do jusfilósofo belga François


Ost, faz-se necessário situá-lo em relação a uma série de pesquisas já existentes
sobre narrativa no âmbito jurídico. Para isto, cabe primeiro distinguir o Direito e
narrativa das diversas pesquisas dentro do que ficou conhecido como Direito e
literatura. Então explorar como o Direito é essencialmente narrativo e, portanto, a
importância do Direito e narrativa para a compreensão do objeto jurídico.
Há diversas obras de natureza metodológica distinta dentro do direito e
literatura2. Pensamos de imediato que todo trabalho nesta área será desenvolvido
pela abordagem de um tema jurídico guiado por uma obra literária, o que corresponde

2 Optou-se por escrever direito com letra minúscula, evitando uma possível superioridade de uma
disciplina sobre a outra no momento em que entram em contato. Esta questão foi desenvolvida em
outro artigo chamado “A Transacionalidade entre direito e literatura: aproximações a partir de Benedito
Nunes” publicado na Revista espaço acadêmico, n.160, set, 2014. Disponível em:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/23518/13514

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apenas a parte destas pesquisas. Devemos, antes de tudo, classificar as correntes do


pensamento jurídico que, de formas distintas, relacionam-se com a literatura, já que
existem diversas perspectivas e objetos completamente distintos.
Calvo Gonzáles (2007, p.309) situa as pesquisas em direito e literatura (em
sentido amplo) como uma especialidade dentro do quadro e das problemáticas da
disciplina filosofia do direito. Neste especialidade, há três correntes, três modos de
relacionar direito e literetura (OST, 2007, p.48; GONZÁLES, 2007, p.310): 1) direito
da literatura, que se refere ao que há de jurídico, em um sentido prático, como as leis
ou a jurisprudência, em um mundo fictício de uma obra literária; 2) O direito na
literatura, que é analisar nas obras literárias como as questões de justiça, do sentido
do direito e outros diversos elementos tocantes ao mundo jurídico são representados
e pensados nas obras literárias – é o modo mais popular, como, por exemplo, analisar
questões processuais em O Processo de F. Kafka. É a perspectiva adotada por
François Ost no Contar a lei – As fontes do imaginário jurídico, obra que não será
nosso foco neste momento; 3) O direito como literatura, que analisa o jurídico
utilizando recursos da teoria literária, especialmente a teoria narrativa – o qual iremos
nos deter.
O direito acontece essencialmente de maneira narrativa, seja ao proferir uma
sentença ou ao redigir uma legislação. Importa perceber que o direito já foi narrado
de diversas maneiras, mas os juristas do nosso tempo limitaram-se a pensar pelo
modo como o direito moderno é escrito, a partir do estilo narrativo dos seus códigos.
As leis já foram escritas de maneiras curiosas aos nossos olhos, como leis versificadas
de Licurgo e Drácon; a lei romana das XII Tábuas foi escrita em versos adônios, estilo
que Cícero imitou na redação de suas leis. Há diversos outros exemplos que mostram
a antiga (e abandonada pela modernidade) relação entre o justo e o belo, o que fez o
texto que trata sobre a justiça ser exposto de modo harmônico.
A escrita do direito se transformou na modernidade com os modelos
racionalistas e as diversas cisões que o pensamento científico realizou. No século XIX
“o sucesso das codificações traduzem o ideal de unidade e coerência lógica da ordem
jurídica” (OST, 2007, p.54). Ou seja, quem escreve é um legislador racional,
onipotente, o mesmo narrador onisciente dos romancistas realistas da época – estilo

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já superado na literatura, mas ainda não pelos códigos. Estando fora da ação, mas a
controlando. (OST, 2007, p.53-54). É o ponto de vista de Deus. Afinal, como escreveu
Jean-Jacques Rousseau (1963, p.35) no seu Do contrato social: “Il faudrait des dieux
pour donner des lois aux hommes”.3
A importância do direito como literatura nasce desta limitação moderna do
jurista, que não se volta ao horizonte maior da linguagem e da narrativa, mas fecha-
se em um discurso normativo próprio. A interação com a literatura aproxima o jurista
de uma realidade que não é acessível ou compreensível pela via hegemônica do
conhecimento jurídico. Portanto, uma face que estava escurecida pode ser trazida à
luz (GONZÁLES, 2013, p.31-32).
O estudo da teoria narrativa, que compõe uma disciplina dentro da teoria
literária, permite compreender as narrativas em um sentido muito mais amplo, o qual
possibilita colocar a narrativa jurídica como uma das maneiras que o ser-humano
desenvolveu de narrar o seu mundo, junto com outros grandes modos, sejam
ficcionais ou verdadeiras, como a Bíblia, Hamlet, Dom Quixote, as narrativas
populares (folklore) ou mesmo narrativas familiares.
É a partir dos métodos e compreensões sobre a narrativa e a escrita que surge
a importância desta corrente, já que é indiscutível que há algo de narrativo no direito,
começando pelo evidente, como os depoimentos em juízo, a narrativa que compõe a
sentença etc. Mesmo no polêmico Law and literature de Richard A. Posner (2009,
p.425), a narrativa é colocada como fundamental ao direito: “Narrative plays an
important role in law, a role that is not without an element of fiction”4. Mas cabe
questionarmos: até onde chegará o caráter narrativo do direito?
José Calvo Gonzáles (2007, p.312) expõe um elemento essencial da relação
entre Direito e literatura:

Con todo, Derecho y Literatura sí se imbrican a una función social indiscutible


y común a través de su fundamento en el Mito (Mythos); en ambas creaciones
humanas la función mítica se halla presente a través de la vocación
instituyente de dar sentido al desorden de la experiencia; la institución jurídica
otorga sentido reordenando el conflicto social, la literaria socializa mediante
la ficción una «promesa de sentido» frente al desconcierto de la experiencia.

3 “Seriam precisos deuses para dar leis aos homens” (Tradução nossa).
4 “A narrativa exerce um importante papel no Direito, papel que não existe sem um elemento ficcional.”
(Tradução nossa)

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Há algo na literatura que, por uma linguagem distinta da jurídica, também


permite dar sentido, dar ordem à experiência e ao conflito – ou será que o direito que
utiliza de recursos de outras narrativas? Antes de aprofundarmos nestas questões,
importa tratar da inequívoca presença da narrativa no direito, tratando, assim, das
diversas maneiras que ocorrem as relações entre narrativa e direito. Calvo Gonzáles
(2007, p.322-324) aponta três: 1) refere-se às tramas narrativas relatadas pelos
diversos operadores do direito, das partes ou quaisquer envolvidos em litígios; seja
para caracterizar gestos processuais de relevância ou relatos passionais; 2)
compreende que, nas teorias do Direito, há um elemento narrativo (teoria narrativista
do Direito ou narrative jurisprudence). Gonzáles ressalta que, como “hipótese
estética”, a capacidade explicativa de tais teorias não é completa – como se
pressuporia em uma teoria analítica; 3) O Direito e narrativa como narrative Criticism
of law. Apoiando-se na natureza narrativa dos institutos processuais (como a
confissão), as razões jurídicas e decisões judiciais.
Deste modo, os desenvolvimentos de Ost enfocados aqui se encontram na
segunda vertente do direito e narrativa, a qual busca ampliar temas de filosofia ou
teoria do direito, recusando a redução positivista ou analítica sobre o campo jurídico
(reduzindo basicamente o direito a questões de validade ou interpretação), e
compreendendo elementos do direito a partir do caráter narrativo que há nestes. Esta
classificação não significa uma limitação metodológica. François Ost utilizará obras
literárias para desenvolver pontos, por exemplo. Mas estas distinções têm papel
fundamental para que não nos percamos do central nestes trabalhos.

2.1 O NARRATIVE TURN NO DIREITO

Michele Tarufo (2011, p.113), referindo-se a questões processuais, coloca a


existência de um narrative turn no Direito. Não é possível acreditar em um giro tão
forte quanto o famoso linguistic turn na filosofia (no qual todas as pesquisas filosóficas
voltaram-se à questão da linguagem), mas podemos utilizar esta expressão para

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discutir o crescimento da teoria narrativista e, principalmente, do reconhecimento do


caráter narrativo do direito e suas implicações.
A presença da narrativa no direito, como já comentado inicialmente, é evidente.
Um dos exemplos é a teoria e filosofia do direito que segue criando narrativas para
compreender o fenômeno jurídico. Grandes exemplos estão em Ronald Dworkin
(1986), com o Romance em cadeia (Chain Novel) ou o juiz Hércules. Não é
coincidência que Paul Ricoeur (1997, p.147) compreende que há um elemento
hermenêutico em Dworkin a partir da interpretação via modelos literários, o que a
filosofia analítica tradicional não aceitaria. Mesmo Hans Kelsen, o maior juspositivista
do século XX, que tenta desenvolver um método rigoroso e purificado de todo
elemento não-científico, não ligado à ciência do direito como ciência normativa,
também utilizou da narrativa. O que mais seria a norma fundamental de Hans Kelsen
se não uma ficção, uma narrativa para dar validade ao direito? Mesmo uma teoria
“pura”, com seu rigor epistemológico, mostra-se tributária de uma grande narrativa
fundadora5.
Entretanto, o que ainda domina o estudo e a teoria do direito é o caráter
analítico que rejeita a importância e, por vezes, mesmo a existência (no âmbito da
ciência do direito) da narrativa no direito. Ost (2007, p.41-42) exemplifica parte destas
consequências:

O direito analisado postula, com a força de um dogma, a diferença irredutível


do ser e do dever-ser; disso decorre, em particular, a distinção entre fato e
direito (“o Supremo Tribunal de Justiça não conhece fato”, acaba-se então
por afirmar). Contrariamente a essa tese, já mostramos o quanto o fato é
penetrado de significações mais ou menos valorizadas e, em sentido inverso,
de que maneira, por meio de suas regras constitutivas, o direito, como o jogo
ou qualquer outra prática convencional, é capaz de criar o “seu” fato. Com
isso, a prática jurídica não cessa de relativizar a distinção canônica do fato e
do direito – especialmente no plano da validação das regras -, mas a teoria
dominante ainda finge ignorá-lo.

A analítica esquece que o ser-humano não é sempre racional, mas também


busca, no direito, satisfações simbólicas, significações instituintes, um sentido. Há

5
Assim é dito por Kelsen (2011, p.256): “As is obvious from the foregoing, the Basic Norm of a positive
moral or legal system is not a positive norm, but a merely thought norm (i. E. A fictitious norm), the
meaning of a merely fictitious, and not a real, act of will”.

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tantos elementos simbólicos quanto normativos e argumentativos. Não é só de


direitos, deveres, normas, princípios etc. de que trata o direito. Mas há um papel
simbólico e de constituição de identidade que não é percebido pela analítica. Não nos
cabe, neste trabalho, apontar detalhadamente as falhas da analítica 6, mas nos cabe
desvelar que, para além do direito analisado, do qual as faculdades de direito se
ocupam, devemos compreender que nossas regras jurídicas estão cercadas de
narrativas e assim estas dão sentido ao mundo (OST, 2007, p.45).
François Ost (2007, p.27) faz a seguinte comparação:

Assim como o ouro não é naturalmente moeda (mesmo se algumas


qualidades predispunham esse metal a exercer a função de equivalente
universal), ou o indivíduo não é naturalmente ou logicamente cidadão, assim
também a cidade escapa a toda determinidade desse gênero: é da
imaginação instituinte que ela procede, das grandes narrativas que homem
conta-se a si mesmo.

Portanto, toda construção política existe a partir de uma narrativa fundadora.


Do mesmo modo, qualquer discurso sobre o direito, no âmbito da teoria, da filosofia
ou até da dogmática, é uma narrativa que localiza o direito ou o elemento jurídico
dentro de um contexto maior e com uma função específica. Para isto, basta
compreender que o discurso jurídico não afeta apenas a quem o estuda como
operador do direito, mas atinge todo ser-humano do qual faz parte do seu mundo este
ordenamento jurídico; e, atualmente, afeta até quem não faz parte, pois mudanças
legislativas em um mundo globalizado repercutem em pedidos de mudança ou a
condenações pela mudança em todo o mundo – não sendo o Estado tão soberano
quanto a filosofia política moderna acreditou.
Cabe, então, compreender, neste narrative turn, o que a narrativa muda sobre
a compreensão de elementos centrais ao direito. O direito seleciona uma das
possíveis escolhas político-jurídicas e as coloca em jogo, no mundo. Isto visa a
garantir a ordem e se dá pela função de nomeação, que é a função própria do direito,
anterior mesmo à repressiva e reguladora (OST, 2007, p.43). Ordenar não é apenas
prescrever, mas é essencialmente nomear e classificar – e este ato apenas

6 Uma das relevantes desvantagens da perspectiva analítica para a narrativa é que a analítica não
compreende a história e suas mudanças. Mas trata de momentos isolados, sincopados, sem explicar
a sequência e o trama. O Direito narrado restitui o roteiro da narrativa. (OST, 2007, p.46).

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eventualmente se dá por prescrição. Nomear é ao mesmo tempo normatizar e instituir,


é dizer e fazer – sendo mais claro, dizer é fazer, é um ato performativo. O direito
identifica pessoas, coisas, institutos, criando existência jurídica às vezes estranhas a
quem não é do mundo jurídico, como normatizar, que é território sujeito à jurisdição
estrangeira a sede diplomática de outros países localizadas no Brasil, bastando
atravessar uma porta para que esteja sujeito à jurisdição brasileira – isto é uma ficção
jurídica.
Ao que se identifica, são atribuídos direito e deveres que possivelmente nunca
existiram, são convenções. Portanto, a veracidade da nomeação é construída por
dentro do próprio discurso, da própria narrativa jurídica. É como no adágio “res iudicata
pro veritate habetur” (“a coisa julgada é tida como verdadeira”), que indica o que deve
ser “tido como verdadeiro”, ou seja, convencionado. Deste modo, as ficções, criações
e a própria desconstrução do real por uma narrativa não são exceções no direito, mas
fazem parte da sua própria natureza, da discursividade jurídica. (OST, 2007, p.43-44)
Neste sentido, diz Robert M. Cover na sua obra The Supreme Court, 1982 Term
– Foreword: Nomos and narrative (1983, p.5):

In this normative world, law and narrative are inseparably related. Every
prescription is insistent in its demand to be located in discourse - to be
supplied with history and destiny, beginning and end, explanation and
purpose. And every narrative is insistent in its demand for its
prescriptive point, its moral. History and literature cannot escape their
location in a normative universe, nor can prescription, even when embodied
in a legal text, escape its origin and its end in experience, in the narratives that
are the trajectories plotted upon material reality by our imaginations. (Grifo
nosso)7

Eis a situação do direito diante dos aportes narrativos e da narração diante do


direito. Se a narração era tida como acidental no direito, torna-se inseparável,
fundamental. Entende-se que o direito, antes de falar aos juristas, fala ao homem ou
à mulher, por sentidos que são partilhados socialmente. Como em outras áreas, obras

7 No mundo normativo, lei e narrativa são inseparáveis. Cada prescrição insiste que a sua demanda
seja localizada no discurso - a ser fornecido com história e destino, começo e fim, explicação
e propósito. E toda narrativa insiste em sua demanda por seu ponto prescritivo, a sua moral.
História e literatura não podem escapar de sua localização em um universo normativo, nem pode
prescrição, mesmo quando incorporado em um texto legal, escapar de sua origem e seu fim na
experiência, nas narrativas que são as trajetórias traçadas pela nossa imaginação sobre a realidade
material. (Tradução livre e grifo nosso)

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de Darwin, Freud, Nietzsche não fazem parte apenas do mundo dos especialistas que
os estudaram, mas do imaginário e ambiente de quem estes afetam. O direito também
atua assim, para além das contendas e dos acontecimentos especializados, dos
tribunais.
Eis o princípio “ex fabula ius oritur”, pois é da narrativa, da fábula que surge o
Direito (OST, 2007, p.24). A sua forma é narrativa. É como se a sociedade
selecionasse uma intriga e a normatizasse. Naturalmente, mesmo sendo escolhidas,
estas são discutidas, modificadas – as narrativas são sempre reabertas e os sentidos
se multiplicam, pois as narrativas normatizadas são sempre questionadas. As
certezas dogmáticas são reconduzidas a novas interrogações.
Deste modo, há uma ideia central em Cover (1983, p.4-5):

No set of legal institutions or prescriptions exists apart from the narratives that
locate it and give it meaning. For every constitution there is an epic, for
each decalogue a scripture. Once understood in the context of the
narratives that give it meaning, law becomes not merely a system of rules to
be observed, but a world in which we live. (Grifo nosso)8

A Epopeia (epic) é um poema que narra feitos do herói que representa a


coletividade, a fundação de um povo, de um mundo – Os lusíadas, a Ilíada. Deste
modo, a epopeia dá presença ao povo em um acontecimento do passado; nos torna
presentes no acontecimento fundador de nossa cultura, de quem somos. Do mesmo
modo, a Constituição, com um estilo narrativo distinto, outro modo de escrita, realiza
em certa parcela esta função, e de modo mais adequado aos anseios da sociedade
plural, laica para a qual, ausentes as epopeias, a deliberação política gera um texto
que assume tal papel.
Os constitucionalistas, como é natural, muitas vezes reduzem a compreensão
da constituição ao seu sentido jurídico-político, mas este deve abrir a sua reflexão a
outros sentidos da experiência constitucional, compreendendo o que é a Constituição
para outras áreas e saberes. Deste modo, posto o narrative turn no direito, torna-se

8 Nenhum conjunto de instituições legais ou prescrições existe apartado das narrativas que os localizam
e lhes dão sentido. Para cada constituição há uma epopeia, para cada decálogo, uma escritura. Uma
vez entendido no contexto das narrativas que lhe dá sentido, a lei torna-se não apenas um sistema
de regras a serem observadas, mas o mundo no qual vivemos. (Tradução livre)

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latente a sua importância para pensar os documentos mais importantes do direito, as


constituições a partir dos avanços no conhecimento das narrativas.
Percebemos também que há aproximações recentes com a narrativa no
discurso político pelos desenvolvimentos comunitaristas, como M. Sandel e C. Taylor,
ou então McIntyre, que restauram, em oposição à atomicidade do liberalismo, a ideia
de comunidade política que partilha um imaginário histórico, elementos identitários,
memórias e projetos comuns. Tudo isto devido às narrativas fundadoras.
Ian Ward (1995, p.ix) no prefácio do seu Law and literature, trata de modo
enfático a importância das narrativas9. De modo que ler a peça Ricardo II, de William
Shakespeare, seria uma melhor maneira de compreender o direito constitucional
inglês do que ler um tratado de direito constitucional, pois coloca o estudo na história
e não o reduz à dogmática das normas. A obra determina toda uma tradição do
pensamento. A comunidade narrativa é o mundo no qual os juristas atuam. As
Constituições redigidas são, portanto, “o relato da história da moralidade política
dessa comunidade” (OST, 2007, p.29). São documentos que representam uma
(dentre diversas outras) das narrativas fundamentais de um povo, relatando a história,
memórias, objetivos e dando sentido à vida individual e coletiva.
Dominique Rousseau (2000, p.9) expõe a dificuldade do homem moderno de
se representar como um “homem sem qualidades”, referindo-se ao título do famoso
romance de Robert Musil. A condição do homem moderno é uma tensão entre o ser
de sentido e a ausência de qualidades, o flerte com o niilismo. A Constituição é o ato
que permite a vida desta dualidade, garante esta fundação do homem moderno que
não aceita politicamente uma fundação religiosa ou metafísica.
Deste modo, D. Rousseau (2000, p.14) chega a sua ilustre frase:

Autant de constitutions, autant d'exemples de récits qui racontent l'histoire des


hommes, donnent un sens à leur vie individuelle et collective et répondent à
leurs interrogations existentielles : Qui suis-je? Un être de droit; D'où suis-je
issu? De la longue suite des événements qui ont fait le peuple français - ou
allemand, ou bulgare... -; Pourquoi suis-je là? Pour continuer cette histoire et

9
“One of the purposes of this particular book, indeed perhaps its primary purpose, is to suggest that
students might better enjoy, and thus, inevitably, better understand the origins of English constitutional
thought by reading Richard II, the inadequacies of rape law by reading The Handmaid's Tale and the
psychology of English property law just by looking at the pictures in The Tale of Peter Rabbit“ (WARD,
1995, p.ix).

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accomplir le souhait d'une société de paix et de liberté. Pour répondre à ces


questions, les sociétés anciennes avaient leurs mythologies ; les
constitutions sont, aujourd'hui, les mythologies des sociétés modernes.
(grifo nosso)10

O Direito e narrativa chega a diversas possibilidades e consequências, como


considerar as Constituições como mitologias das sociedades modernas. Um caminho
mostra-se aberto para uma teoria narrativa do Direito e da Constituição. Postas estas
aberturas, sigamos ao pensamento de François Ost que reabilita a narrativa.

3 A REABILITAÇÃO DA NARRATIVA PARA A VERDADE E A JUSTIÇA

Je souhaite donc plaider en faveur de l’importance,


réellement constitutive, du récit, et ce tant dans la
constitucion imaginaire des peuple, qu’au plan du
“roman personnel” que nous nous racontons à nous-
même en vue d’édifier notre identité11
(François Ost)

François Ost escreveu em 2014 um artigo chamado Pour une critique de la


raison narrative sobre o tema da narrativa no âmbito filosófico – e não jurídico.
Naturalmente, as consequências ao Direito (por motivos óbvios o seu exemplo
favorito) são marcantes e visa que as ciências jurídicas repensem o alcance do seu
estudo e reconheçam uma área renegada como fundamental e, muitas vezes, mais
importante que o próprio estudo técnico do Direito. É guiado por este último avanço
de Ost no tema que daremos o passo inicial na reabilitação da narrativa para a ciência
e a sua importância constitutiva para a identidade pessoal.
De todas as características que compõem o homem, como a linguagem, o
caráter político, a razão, seria para François Ost a faculdade ficcional a mais
fundamental. O ser-humano é o animal que conta (raconte) histórias. Antes de ser

10 Há muitas constituições, muitos exemplos de narrativas que contam a história dos homens, dando
sentido à sua vida individual e coletiva e respondendo às suas questões existenciais: quem sou eu?
Um sujeito de direito; de onde sou? Da longa série de eventos que fizeram o povo francês - ou alemão
ou búlgaro ... -; Por que estou aqui? Para continuar esta história e cumprir o desejo de uma sociedade
de paz e liberdade. Para responder a estas perguntas, as sociedades antigas tinham suas mitologias;
as constituições são hoje as mitologias das sociedades modernas. (Tradução livre e grifo nosso)
11 “Eu quero, portanto, pleitear em favor da importância, realmente constitutiva, da narrativa,

abrangendo tanto a constituição imaginária das pessoas, quanto o plano do ‘romance pessoal’ que
nós nos contamos a nós mesmos em via de edificar nossa identidade.” (Tradução nossa)

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Direito como literatura em François Ost: a reabilitação da narrativa para a verdade e a justiça

sujeito racional, produtor de conhecimento, sujeito moral e tudo que caracteriza o


homo sapiens, o homem é um homo fabulans e todas estas outras características só
fazem sentido ao redor deste mundo de histórias. Isto seria uma característica
essencial, ontológica do homem. (OST, 2014, p.1)
Defender esta tese possui um lado difícil e um lado fácil. É fácil por as nossas
vidas estarem envolvidas nas narrativas desde a infância, não podemos sequer
pensá-la sem estas ou sem narrar a nossa própria vida. Mas difícil por ser considerado
um pensamento comum, uma doxa, que é alvo de suspeitas pelo nosso modelo do
pensamento que acredita poder neutralizar estes elementos em prol de um
pensamento científico, compromissado com a verdade e a universalidade.
A primeira desqualificação que a narrativa recebeu foi a platônica e repousa no
corte entre a realidade e a ficção, considerando a realidade associada à verdade e à
justiça (e o belo associado a estas, nunca isolado), o que não ocorre com a ficção. Os
guardiões devem proteger a pólis das sedutoras poesias12; deve-se banir os poetas,
pois a sua arte mistura o verdadeiro e o falso, não distingue bem e mal. O Estado
regido por leis sábias não deve deixar espaço para artes que possam fazer mal ao
cidadão. (OST, 2007, p.10)
A segunda é moderna e remonta a David Hume. Hume fez a grande divisão
entre fato e direito, descrição e prescrição. A narrativa não poderia ter nenhuma parte
em relação ao fato, nem à prescrição da norma. Distinção muito importante para Hans
Kelsen (2006, p.5) na sua teoria pura do direito, do qual não podemos extrair juízo
sobre como as coisas são a partir de como as coisas devem-ser e vice-versa.
A terceira negação é pós-moderna, habermasiana. Nas sociedades que se
apresentam como Estados de Direito que respeitam os Direitos fundamentais,
multiculturais, com espaços de diálogo e discussão racional, deve-se pressupor a

12Neste trecho de A República, podemos perceber como Platão não aceitava o que na modernidade
virou o belo autônomo, ou seja, o belo independente do bem e da verdade. Estes deveriam estar
juntos em Platão: “Não é também claro que a respeito do justo e do belo muita gente prefere a
aparência que, embora seja igual a nada, todos fazem questão de praticar e possuir ou parecer que
possuem? No entanto, com relação ao bem, ninguém se contenta em parecer; só almejam a realidade
e desprezam as aparências.”(PLATÃO, 2000 p.308). Importa notar que até hoje há em muitos
momentos uma relação entre o belo e o justo. Não à toa que é comum ouvir mães ensinando a seus
filhos o que é errado com a expressão “isso é feio”, que melhor compreendido pelas crianças do que
uma explicação realmente.

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pretensão de poder se exprimir livremente. As demandas de reconhecimento e as


pretensões identitárias seriam, desta forma, supostamente formadas em
procedimentos dialógicos e judiciários que as sociedades modernas dispõem aos
indivíduos e grupos. O espaço para a narrativa é absorvido pelos modos de
argumentação jurídica, supondo que fazer justiça às pretensões dos indivíduos em
busca de reconhecimento é um procedimento institucional, judiciário. (OST, 2014, p.2)
François Ost acredita que, se bem entendida, a narrativa não desaparece ou
perde valor diante destas três negações.
A modernidade e seu grand partage entre o ser e o dever-ser conduz à
formidável pretensão de explicação científica do mundo com base na lei a priori, a
partir da teoria hipotético-dedutiva e a experiência científica de laboratório; e de outro
lado há a redação de constituições políticas e de códigos inspirados numa filosofia
positivista do Direito que se pretende aproximar-se das ciências naturais. Já que a
verdade está na pretensão científica e o direito é o direito positivo, a narrativa é
enviada à “préhistoire de la raison, associe aux superstitions ou aux faux prestiges de
l’apparence”13 (OST, 2014, p.3). Mas compreendido de modo adequado, as
sociedades não param de se contar e recontar. É no meio do individualismo que
prospera o romance, seguindo à margem da aventura da razão moderna e do
Progresso – apesar de haver autores imbricados nessa relação entre escrita literária
e ciência.
Mas a observação nos mostra que, mesmo nos nossos tempos, a narrativa
nunca perdeu espaço e continua se proliferando, cada vez mais liberta do
constrangimento de gêneros, formas e da figura do autor. A contação de histórias
ganha todas as esferas de atividade, seja a publicitária, setores religiosos etc.
Este é o paradoxo que acompanha os pensamentos sobre a narrativa:
“omniprésent depuis l’aube de l’humanité, il reste sous-pensé et même disqualifié dans
la tradition occidentale dominante, toujours renvoyé dans les marges de la raison”14
(OST, 2014, p.3-4). Ela é destratada como mero divertimento, algo infantil (contar

13 “Pré-história da razão, associada a superstições e ao falso prestígio as aparências” (Tradução


nossa).
14 “Onipresente desde o alvorecer da humanidade, permanece um pensamento inferior e até mesmo

desclassificado na tradição dominante, sempre reenviada à margem da razão.” (Tradução nossa).

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Direito como literatura em François Ost: a reabilitação da narrativa para a verdade e a justiça

historinha) ou espaço privado e diversas outras expressões que a ciência utilizou para
qualificar como não-científico, não apto a produzir conhecimento.
Rompendo com estes pensamentos, um vasto espaço filosófico se abre, tendo
o papel de recolocar a narrativa ao lado da razão e da constituição das sociedades.
Podemos, portanto, reavaliar o papel da ficção ao lado do que se pode chamar de
realidade, verdade e justiça. Isto revisita a grande separação moderna entre fato e
dever, elementos que o pensamento analítico insiste em manter separados, mas que
a narrativa permite realizar mediações, como é próprio da vida – apenas ciência
moderna que esta separação se impõe. Há algo na narrativa que lida com a parte do
“não-dito”, o indizível que os procedimentos racionais da comunicação democrática
não alcança sem ceder aos fáceis equívocos do storytelling15(OST, 2014, p.4).
Após reabilitar a narrativa, portanto, deve-se realizar algo como uma “critique
de la raison fabulatrice”, o que ainda está em etapa inicial em François Ost. É a tarefa
necessária e delicada de elucidação das relações que cada sociedade e cada
indivíduo têm com estas ficções, tarefa a toda hora ameaçada pelas negações no
plano individual e pela censura no plano da sociedade. É ainda tarefa indispensável
compreender que a narrativa é uma atividade em si exposta a diversos riscos e muitas
vezes devemos assumi-los. O aforismo de Paul Ricoeur refere-se ao símbolo: “le
symbole donne à penser”, mas Ost acredita que não apenas ao símbolo, mas também
à narrativa pode servir de indicador para esta reflexão. A narrativa dá a pensar. (OST,
2014, p.4-5)
Ost retoma as negações para aprofundar o tema da validade das narrativas e
opta por tratar da refutação platônica de modo mais detalhado. O pensamento
ocidental dominante é marcado pela ditadura do real, caracterizada pelo a priori e do
dado, ou da forma estável (a essência ou ideia). Apenas neste quadro estaríamos em
um caminho correto para o conhecimento. Este real que é associado irresistivelmente
à verdade e à justiça. Ost (2014, p.5) diz que:

Tout se passe alors comme si nous étions impérativement requis de nous


conformer à ce cadre, sous peine d’erreur, de folie, d’infraction ou de péche,

15Storytelling, neste sentido, é a exposição de algo através de um contador de histórias que realiza um
relato. É utilizado como uma simplificação do que é narrativa, já que esta extrapola em todos os
sentidos a simples contação. Apesar de esta não perder o seu valor.

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au cas où nous nous en écarterions, a fortiori si nous en contestions le bien-


fondé.16

Apesar deste quadro, observando o mundo é impossível negar o composto, a


mudança, a impureza, mas isto é implicitamente integrado pelo pensamento
dominante por um sistema de classificação que tem por efeito subordiná-los à forma
e à ideia de verdade e de justiça. Este quadro de representação posiciona tudo aos
limites inalteráveis do que se mantém no decorrer do tempo. (OST, 2014, p.5)
Neste contexto, a narrativa tem uma grande suspeita. É isto que abre espaço
para uma rachadura no quadro que vincula o real com o verdadeiro e o a priori. Um
campo imenso e virtual se abre quando o narrador pronuncia as palavras “Era uma
vez”. Um imaginário se ativa e nos coloca em movimento, recusando as certezas,
animado pelo apetite do possível (l’appétit du possible). E então: “Voilà que la version
officielle du monde fait l’objet d’une subversion généralisée.”17 (OST, 2014, p.6).
Arquétipo do pensamento dominante, Platão em A República baniu das cidades
os poetas e os dramaturgos. Os guardiões da República consideram que a arte destes
é corruptora, mistura o verdadeiro e o falso, que nos faz ver os mesmos personagens
como grandes e como pequenos, evocam os fantasmas e não respeitam a distinção
entre bem e mal. Em um Estado regido pelas leis dos sábios, não deve haver lugar
para este tipo de arte18. Em As leis, os legistas da colônia de Magnetos se opõem
igualmente à entrada dos tragediógrafos na cidade, ou então seriam admitidos por
meio de uma severa censura. Só as autoridades decidiriam se a obra é boa para ser
entendida pelo público (PLATÃO, 1999, p.193-195). Conscientes do imenso poder da
ficção, os legistas entendem como melhor manter os poetas à distância para preservar
a integridade do direito e da justiça. Esta separação entre realidade e ficção é tão
grande que a narrativa sequer possui Direitos na cidade. (OST, 2014, p.6).

16 “Tudo se passa então como se nós fossemos obrigados a nos conformar a este quadro, sob pena de
erro, de loucura, de infração ou de pecado, caso nós a separemos deste, principalmente se nós
contestamos seus méritos.” (Tradução nossa).
17 “Eis que a versão oficial do mundo torna-se objeto de uma subversão generalizada” (Tradução

nossa).
18 Após Sócrates falar sobre um divertido poeta que chega à cidade e que, por ser excessivamente

deslumbrante, depois deverá ser embora, este diz: “(...) Teremos de recorrer a um poeta ou contador
de histórias mais austero e menos divertido, que corresponda aos nossos desígnios, só imite o estilo
moderado e se restrinja na sua exposição a copiar os modelos que desde o início estabelecemos por
lei, quando nos dispusemos a educar nossos soldados” (PLATÃO, 2000, p.154).

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Direito como literatura em François Ost: a reabilitação da narrativa para a verdade e a justiça

Mas a reabilitação da narrativa pressupõe que o problema está no quadro em


questão e não na narrativa. Este quadro canônico supõe qualquer coisa como um
tempo artificialmente imobilizado. É como se, para estabelecer a verdade, a razão
devesse parar o curso do devir e considerar as coisas sub specie aeternitatis. O real
deve ser preservado do virtual e do possível. Não à toa que Platão trata de temas
como a eternidade da alma. Mas, na verdade, o homem é mortal, a realidade
modificável, a linguagem imperfeita, a verdade e a justiça são controversas. (OST,
2014, p.7).
Eis a escolha a ser feita: ou a verdade ortodoxa (que é a da ordem político-
jurídico: a justiça legalista), ou a aventura do sentido no tempo que passa e nos
conduz até a morte. (OST, 2014, p.8). Com um esforço de nos dar certezas
inalteráveis, a razão ocidental fez a escolha pela primeira opção, privando-nos das
fontes de sentido que sugerem as narrativas que a precedem. Porque não pode negar,
esta orgulhosa razão analítica, que o homem está sempre já narrado, contado
(Raconté) pelas histórias que dão sentido à sua existência. (OST, 2014, p.8).
Ost (2014, p.9) então relê A República à luz das observações feitas e percebe
que apesar de haver a sobredeterminação de uma metafísica para um governo que
deseja banir a liberdade artística, o que faz Platão se não contar histórias? Mito da
caverna, a narrativa do banquete, diálogos imaginários. Platão é um filósofo-conteur.
Depois de expulsar os poetas, ele confessa: “nous composons nous-mêmes un
poème tragique dans la mesure de nos moyens, à la fois le plus beau et le plus
excellent possible; notre organisation politique tout entière consiste en une imitation
de la vie la plus belle et la plus excelente!”19. Pensávamos que a poesia estava
denegrida como mero prazer sensível e de repente se eleva à Constituição do Estado.
“étaient les auteurs d’un drame le plus magnifique: celui précisément dont seul un code
authentique de lois est le metteur en scène naturel”. 20

19 “Compomos nós mesmos um poema trágico em nosso meio, tanto o melhor e o mais excelente
possível; toda nossa organização política é a imitação da vida mais bela e mais excelente!” (Tradução
nossa).
20 “foram os autores do mais magnífico drama: só um verdadeiro código de leis é precisamente o diretor

em cena natural” (Tradução nossa).

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GUIMARÃES FILHO, Gilberto

Para avançarmos, precisamos pensar contra Platão e com Platão. Contra o


Platão que busca a razão independente da narrativa e com o Platão que filosofa como
um grande mitógrafo, um filósofo-poeta.
Ost (2014, p.9), agora também com Platão, desenvolve a transformação da
frase de Paul Ricoeur em “A narrativa dá a pensar”. A narrativa dá a pensar, pois,
como o símbolo, ela vem em primeiro lugar. Nem Platão contesta isso. A diferença é
que aqui será pensado como uma fonte fundadora (source fondatrice) e não um erro
preliminar. Deve-se pensar o caráter “constitutivo” dessas narrativas originárias.
Nestas sensações e impressões a imaginação constitutiva, que fala por narrativas,
seleciona dentre uma diversidade virtualmente infinita os ritos e práticas, os fatos
pertinentes e o seu valor significativo aos olhos do seu cenário inicial. O imaginário
histórico-social das pessoas se compõe de uma história própria, que sempre haverá
de escrever os episódios sucessivos. (OST, 2014, p.9-10)
Quais são os avatares posteriores do trabalho de uma cultura que opera sobre
ela mesma (rejeitando, às vezes, violentamente certos planos que lhe são legados).
É sempre a partir de certo dado (donation) inicial que se operam as elaborações
conceituais e suas opções normativas. Literalmente, nós aprendemos a pensar – a
partir dos elementos das narrativas (récits) originais. Isto, pois estas narrativas são
nosso passado compartilhado. Mas não um “passado simples”, estático e distante do
presente; e sim um “passado composto”, escrito e recriado no presente. Não
aprendemos o passado e as narrativas do modo que elas se deram, mas as
atualizando. Reconstruímos a tradição no presente (BLOCH, 2001, p.56-57). Estas
memórias e narrativas, portanto, não nos prendem, mas são a própria possibilidade
de trabalharmos o nosso horizonte, de nos apropriarmos delas. Deste modo, todo lidar
com a narrativa e as memórias é uma apropriação, um exercício.
Afinal, qual seria a nossa concepção de tempo sem o mito de Kronos devorando
seus filhos? Do amor sem Romeu e Julieta? De perversão sem Sodoma e Gomorra?
Mitos gregos, parábolas evangélicas, romances nacionalistas, fábulas de la Fontaine,
mitos modernos etc. Sobre isto Ost (OST, 2014, p.11) diz: “voilà le terreal fondateur
de notre culture”21.

21 “Eis o terreno fundador de nossa cultura.” (Tradução nossa).

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Direito como literatura em François Ost: a reabilitação da narrativa para a verdade e a justiça

Mesmo sem a nossa tomada de consciência da importância destas narrativas,


este paciente trabalho de autoelucidação, estas selecionam os temas de interesse, os
personagens dignos de atenção, os valores suscetíveis de serem adotados ou
rejeitados; um vocabulário está implicitamente posto em circulação, uma estrutura
temporal experimentada, os gêneros são impostos (por que algumas línguas adotam
o neutro e outas não?), os esquemas de ação e reação propostos. As dicotomias são
naturalizadas, com limites e normas não-escritas: a divisão de sexos, a distinção das
gerações, separação entre vivos e mortos etc. (OST, 2014, p.11)
Ost (2014, p.12) enfatiza que cada civilização e cada cultura operam por um
trabalho crítico incessante a partir do que é herdado. É a partir deste quadro que ela
se constrói. Isto é verdade no plano coletivo se verificado igualmente à escala de
nossas histórias individuais. Cada um de nós reivindica sua identidade e assume lugar
na sociedade, nós nos constituímos de um “romance pessoal” (roman personnel).
Largamente inconsciente ou mesmo ilusório em vários aspectos, este romance não
se torna por isso menos constitutivo de nossa própria fragilidade. Ao escritor ou
contador, a narrativa opera como um instrumento heurístico de descoberta, de
constituição de si-mesmo. Ao leitor, esta narrativa exerce o mesmo efeito, uma vez
que coloca em jogo mecanismos de empatia e de identificação na direção de seus
personagens.
Sobre outra cena, a cena judiciária, é também a narrativa de vida que tenta
fazer um caminho no tribunal, por meio dos advogados, mas dificilmente é ouvida
diante das malhas que compõem o processo judicial. Nesta questão, a literatura
possui uma abundância de narrativas que tentam, às vezes desesperadamente, fazer
entender os magistrados. (OST, 2014, p.12)
É deste modo que a narrativa (récit) opera (donne). Resta, porém, mostrar que
ela dá a pensar (donne à penser) (OST, 2014, p.13):

Matrice de représentations mentales, l’imaginaire constitutif est à la source de


l’élaboration conceptuelle, et ainsi, par étapes sucessives, du travail de
construction de la raison théorique sous son double versant spéculatif et
nomothétique; matrice de valorisations implicites, le même imaginaire est
également à la source de nos élaborations normatives, et ainsi, par étapes

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sucessives, du travail d’édiction de la raison pratique sous son double versant,


moral e juridique.22

Ost diz que seria muito alusivo em relação à razão teórica, porque esta o
conduziria a uma vasta questão epistemológica que não está sendo proposta neste
trabalho. Mas Ost (2014, p.13) expõe rapidamente a sua intuição: “Je soutiens que
l’imagination joeu un rôle heuristique (un rôle de ‘mise en route”) irremplaçable dans
la découverte scientifique et la formulation des lois qui en découlent”23.
A origem dos paradigmas científicos nasce de vastas “visões de mundo”,
traduzidos numa rede de “metáforas” (rede metafórica) que orientam a pesquisa em
sentido decisivo. Cada grande descoberta científica se apoia sobre a intuição de um
mundo possível traduzido numa espécie de embrião especulativo da narrativa. Bem
entendido, o momento seguinte, a razão teórica, apreende o real em um laboratório,
em lógica matemática, mas não foi o equipamento laboratorial que pôs em cena a
escrita sugerida pela intuição narrativa do pesquisador. Isso faria voltar ao papel do
jogo da imaginação na Crítica da faculdade de julgar kantiana. Lá a imaginação
criadora está liberada da tutela do conceito e do seu papel na faculdade de julgar
determinante. Ost questiona que imaginação animou Darwin e a guerra das espécies,
Newton e a força de atração, Einstein e a relatividade? Aqui a imaginação dá a pensar
ao entendimento. (OST, 2014, p.13-14).
A fortiori, Ost diz que acredita poder sustentar que os grandes avanços em
ciências humanas e sociais são devedores da fecundidade imaginativa de certos
pesquisadores-pioneiros como Freud, Jung, Lévi-Strauss, Auguste Comte. Ost atenta
um detalhe desses “pionniers-narrateurs”, pois todos tiveram grande atenção à escrita
das suas teorias, possuindo um “estilo” próprio que não é apenas um modo de
reproduzir seu trabalho. O estilo do filósofo é algo que deve ser colocado à vista, um
domínio promissor.

22 Matriz de representações mentais, o imaginário constitutivo é fonte da elaboração conceitual, e


assim, por etapas sucessivas, do trabalho de construção da razão teórica em sua dupla vertente
especulativa e nomotética; matriz de valores implícitos, o mesmo imaginário é igualmente fonte de
nossas elaborações normativas, e portanto, por etapas sucessivas, do trabalho de promulgação da
razão prática em sua dupla inclinação, moral e jurídica. (Tradução nossa).
23 “Afirmo que a imaginação exerce um papel heurístico (um papel de "arranque") insubstituível na

descoberta científica e na formulação de leis subsequentes” (Tradução livre)

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Direito como literatura em François Ost: a reabilitação da narrativa para a verdade e a justiça

Donaldo Schüler (2009, p.38-43) escreve sobre a os estilos de escrita, os


gêneros dos textos filosóficos, desde os pré-socráticos até filósofos contemporâneos,
demonstrando a relevância de não apenas perceber o que foi escrito, mas o como
escrito como parte fundamental do trabalho filosófico, pois o modo como se expõe tem
íntima relação com o a época, as intenções e o conteúdo. Agostinho escreveu suas
Confissões na primeira pessoa, Descartes fez o Discurso sobre o método como um
romance de ideias, Kant escreveu suas mais famosas obras como Críticas,
Wittgenstein e Nietzsche utilizaram dos aforismas, de tal maneira que parte da riqueza
exposta pelos filósofos está no modo como estes narram.
Mas se a narrativa ocupa ou joga um papel heurístico no plano da invenção
científica e da especulação teórica, ela também faz o mesmo na formação das ideias
morais e sua tradução na forma de regras jurídicas. Aqui a narrativa é primeira e
constitutiva. Laboratório do humano, a narrativa literatura experimenta todos os tipos
de julgamentos avaliativos que são como “la propédeutique de l’étique en situacion”24
(OST, 2014, p.14-15).
François Ost (2007, p.69 e ss) pensa, como já havia escrito no Contar a Lei,
nas narrativas fundadoras de doação da lei (donation de la loi) – mais precisamente a
narrativa do Sinai e a narrativa grega do Protágoras. Mas evoca também as narrativas
modernas, como Hobbes, Locke ou Kant, que têm por base a crença racionalista de
estarem libertos da fábula – sem perceberem que isto também é uma fábula. Talvez
essa contradição fique mais latente no exemplo do Leviatã, pois não é um personagem
bíblico? E o contrato social não é produto da imaginação política?
As relações do direito com a literatura, ou da norma com a ficção se inscrevem
no quadro que Ost tentou mostrar: uma dialética entre duas ordens de atividade, a
prescritiva e a que narra, que conta (raconter). Duas ordens que se distanciam, pois
podem ser identificados exemplos em que apenas uma atua, mas que por suas
diferenças se aproximam e, muitas vezes, se imbricam.

24 “A propedêutica da ética em situação.” (Tradução nossa).

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GUIMARÃES FILHO, Gilberto

4 CONCLUSÃO
Inicialmente definimos o que é o direito como literatura ou direito e narrativa e
onde está no quadro do direito e literatura; desenvolvemos o modo narrativo com que
o direito acontece e a importância de aprofundar estes elementos essenciais à
linguagem jurídica; e o narrative turn, onde estes elementos estão cada vez mais
presentes em grandes estudos.
Então desenvolvemos ideias de François Ost no seu “Pour une critique de la
raison narrative”, chegando nos fundamentos das negações da narrativa diante da
verdade, como mera ficção, sem valor científico; e então a reabilitação que Ost
desenvolve, encontrando o elemento narrativo no próprio discurso filosófico ou
científico.
Deste modo, percebe-se a necessidade de pensar o Direito, a sua
concretização e a sua própria humanização a partir do seu caráter narrativo,
extrapolando os pensamentos meramente subsuntivos e permitindo avanços na
compreensão da justiça e do direito.

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