Teoria Narrativista Direito

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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE


PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA

PROGRAMA INSTITUCIONAL DE BOLSAS DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA –


PIBIC

A CONTRIBUIÇÃO DA LITERATURA NA FORMAÇÃO JURÍDICA:


ANÁLISE DA TEORIA NARRATIVISTA DO DIREITO NA OBRA DE CLARICE
LISPECTOR

Área do conhecimento: Ciências Sociais


Subárea do conhecimento: Direito
Especialidade do conhecimento: Direito e Literatura

Relatório Final
Período da bolsa: de (08/2017) a (07/2018)
Este projeto foi desenvolvido com bolsa de iniciação científica

PIBIC/COPES

Orientadora: Míriam Coutinho de Faria Alves


Autor: José Carlos da Silva Santos
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ............................................................................................ 3

2. OBJETIVOS: ................................................................................................ 6

3. METODOLOGIA: ....................................................................................... 7

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO: ................................................................ 8

4.1 A QUESTÃO DO JUS PUNIENDI (DIREITO DE PUNIR) ................. 8


4.2 AS FUNÇÕES DO PODER.................................................................... 12
4.3 ALTERIDADE: PENSANDO O OUTRO ............................................ 14
4.4 O TERRENO DA ALTERIDADE ........................................................ 17
4.5 GARANTISMO E DIREITOS HUMANOS EM MINEIRINHO ....... 19
4.6 A MAÇÃ NO ESCURO: ........................................................................ 21

5 CONCLUSÃO: ........................................................................................... 26

6 PERSPECTIVAS: ...................................................................................... 27

7 REFERÊNCIAS: ........................................................................................ 28

8 OUTRAS ATIVIDADES: .......................................................................... 31


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1. INTRODUÇÃO

A senda deste trabalho é pensar o direito a partir da literatura clariceana na crônica


Mineirinho e no romance A maçã no escuro. Na crônica, treze tiros ceifaram a vida de
Mineirinho, um homem cujos atos reprováveis social e juridicamente lhe qualificaram de
criminoso. O que há, entretanto, de tão profundamente perturbador no espírito de Clarice
Lispector a ponto de “Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder
esquecer que Mineirinho era perigoso e já matara demais; e no entanto nós o queríamos
vivo” (LISPECTOR, 2016, p. 386)? No romance, por sua vez, a questão está atrelada à
relação entre a busca de sentido por parte da protagonista e do Direito, perante o
desencantamento do mundo. Portanto, e ao adotar-se a perspectiva Direito na Literatura,
poder-se-ia indagar em que medida problemas jurídicos são representados na narrativa
literária clariceana.
Antes, contudo, de enfrentar esse problema posto em análise, faz-se necessário
estabelecer uma discussão teórica em torno de algumas características distintivas entre
direito e literatura para, posteriormente, discorrer sobre as possibilidades de estudo dessa
relação. Desse modo, o direito é um campo do saber que privilegia a segurança, o caráter
coercitivo, para atingir seus fins, ao passo que a literatura rompe com a normalidade, com o
mundo circunscrito – “o verbo tem que pegar delírio”, como diz Manoel de Barros (2016,
p. 17) –, de tal maneira a privilegiar a maravilha do enigma:

Quando se considera o caráter disruptor e crítico da obra literária, há de


levar em conta que ela – ao contrário da obra jurídica – é uma obra de
arte, na medida em que se caracteriza pela maravilha do enigma e por sua
inquietante estranheza, que são capazes de suspender as evidências e
afastar aquilo que é dado, dissolver as certezas e romper com as
convenções (TRINDADE E GUBERT, 2008, p. 12).

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No entanto, a possibilidade de estudo do Direito e Literatura (TRINDADE E


GUBERT, 2008), constrói-se a partir de materiais comuns a ambos, a saber: as relações
humanas, o que significa discutir a condição humana; e a importância atribuída às palavras,
isto é, ambas as áreas de conhecimento lidam com interpretação de textos. Nessa vereda, os
modos de articulação desse estudo apresentam-se em uma tríade de abordagem, cada uma
com suas características peculiares, quais sejam1: a) o direito na literatura, isto é, conceber
o direito a partir da literatura, discutindo temas como a ordem, a justiça (Antígona, de
Sófocles) e o problema da interpretação (O Mercador de Veneza, de Shakespeare); b) o
direito como literatura, no concerne à função da retórica, da narrativa e da interpretação,
tendo como um dos seus adeptos o jusfilósofo Ronald Dworkin; e c) o direito da literatura,
que talvez não se defina propriamente como uma corrente, mas sim como uma aproximação
transversal, na medida em que se limita a questões normativas.
Nessa trilha de estudo, é indispensável fazer menção à teoria narrativista do direito
do jurista José Calvo González. Interpretando a obra de Calvo, Trindade (2013) afirma que
os sistemas jurídicos, ou propriamente o mundo jurídico, não estão isolados da
ficcionalidade, muito pelo contrário: são discursos narrativos e, portanto, há implicações de
instalações ficcionais. No livro Derecho y narración (CALVO GONZÁLEZ, 1996), o
jurista argentino se propõe a discutir a dimensão narrativa do direito. Nesse sentido, na
produção legislativa, ainda que esta seja de natureza prescritiva e organizada de modo não
literário, o prólogo (preâmbulo e exposição de motivos, por exemplo) possui uma evidente
dimensão narrativa, ou seja, é um relato, no sentido de que o legislador explica os motivos
e as razões de ter escolhido determinada maneira para resolver certo problema jurídico,
além de autolegitimar a autoridade da produção legislativa (CALVO GONZÁLEZ, 1996, p.
81- 92).

1
O texto segue a classificação que André Trindade e Gubert (2008, p. 48-49) abordam em seu texto.
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Não obstante as discussões e debates sobre Direito e Literatura serem profícuas na


Europa e nos Estados Unidos da América, a partir do Movimento Direito e Literatura2
iniciado neste último, essa articulação ainda é vista com uma certa estranheza por juristas
brasileiros acomodados ao formalismo jurídico. Entretanto, essa articulação teórica, no
Brasil, data de há muito: entre outros autores, cabe mencionar Aloysio de Carvalho que
publicou, em 1958, um trabalho inovador articulando esses dois ramos do saber – O
Processo Penal de Capitu –; e Luis Alberto Warat, que é considerado como “o grande
idealizador e fundador dos estudos interdisciplinares” (TRINDADE E BERNST, 2017).
No Brasil da década de 90, o cenário se modifica com a institucionalização e
sistematização de estudos nesse campo, consolidando-se a formação de diversos grupos de
estudos e pesquisa, a exemplo do Instituto de Hermenêutica Jurídica, cujo um dos diretores
é o autor citado acima – André Karam Trindade –, além da criação do programa de
televisão Direito & Literatura e da Rede Brasileira Direito e Literatura (RDL). A despeito
dessa expansão, é importante observar que há um déficit no que concerne à questão teórica
e metodológica (TRINDADE E BERNST, 2017, p. 141).
A reflexão sobre o problema posto em análise implica um diálogo entre Direito e
Literatura, o que significa a possibilidade de reflexão jurídica a partir da narrativa literária
clariceana, sob a perspectiva do direito na literatura. Desse modo, o Direito não é
concebido tão somente como um conjunto ordenado de normas jurídicas, mas sim como
linguagem, ou seja, um relato com expressão literária. Aliás, Tobias Barreto (2001), no
século XIX, compreende o Direito como um produto da cultura humana,3 o que significa
que ele está imbricado às humanidades, e não o contrário. André Trindade e Gubert (2008,
p. 18), seguindo a esteira de Ost, afirmam que “[...] a literatura seja capaz de devolver ao

2
Ou Law and Literature Movement, movimento articulado a fim de pensar o direito, com a literatura, além do
positivismo ou formalismo jurídico.
3
Cabe ressaltar, no entanto, que esta postura de Tobias diz respeito a uma crítica ao jusnaturalismo.
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direito uma dimensão cultural que, ao longo da história, foi esquecida – ou recalcada –, a
fim de que a ele possa ser restituído o importante papel de ator da transformação social”.
É propriamente essa dimensão cultural o elemento fundamental para o estudo do
Direito e Literatura. A literatura, como expõe Antonio Candido (2011, p. 177), “confirma o
homem em sua humanidade” e, sob o foco deste trabalho, apresenta-se de maneira
indispensável4 à reflexão jurídica, uma vez que fornece chaves para compreender a
realidade jurídica e pensar o outro de uma maneira humanizada, como afirma o próprio
autor citado: “A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que
nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”
(CANDIDO, 2011, p. 182). Além desse caráter de humanização, a literatura torna os
leitores pessoas mais críticas, despregadas do senso comum jurídico, que castra, amputa
possibilidades interpretativas do jurista, na medida em que opera com um conjunto de pré-
conceitos, crenças, estereótipos (ANDRÉ E GUBERT, 2008, p. 15-16).

2. OBJETIVOS:

O presente projeto de iniciação científica objetivou evidenciar uma noção básica


do estudo Direito e Literatura, a saber: o direito enquanto uma narrativa literária, o que
pressupõe, além de contribuir para a humanização do direito, o fomento do estudo do
direito a partir da narrativa literária e aportes da perspectiva narrativista do direito. Além do
mais, foi construído visando esclarecer a importância da literatura para a formação jurídica
brasileira.
A narrativa clariceana permitiu identificar nexos que ligam direito e literatura
explorando categorias da teoria jurídica, como os aparatos de poder, violência e alteridade,

4
A literatura, em sentido amplo, é uma necessidade universal, na medida em que conduz o espírito humano a
se organizar e, em seguida, a organizar o mundo. Ela humaniza (Candido, 2011, p. 188).
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cujo ponto fulcral, no crônica Mineirinho, gira em torno da noção dos direitos humanos, a
partir do discurso garantista; ao passo que, no romance A maçã no escuro, identificou-se
como a busca de sentido está presente tanto no direito quanto na literatura.
Outro fim do presente trabalho foi explorar aportes epistemológicos na relação
entre o discurso jurídico e a estética literária na obra de Clarice Lispector ampliando o
espaço conceitual dos fundamentos do direito. Em outras palavras, visou-se ampliar a
noção de direito, indo além de um discurso que delimita o direito a um conjunto ordenado
de normas jurídicas e da dicotomia permitido/proibido, de modo a evidenciar como a
narrativa está presente no direito, isto é, objetivou-se caracterizar o direito como
linguagem.
Ao longo do presente projeto, ao contextualizar a utilização da literatura como
fonte de reflexão para o direito e a sua utilização a partir de uma discussão metodológica e
teórica, buscou-se estabelecer estratégias de utilização da literatura no ensino jurídico, as
quais restaram-se evidenciadas na contemporaneidade. Ou seja, buscou-se romper e
demonstrar a insuficiência de um ensino restrito à dogmática.

3. METODOLOGIA:

Este projeto foi construído sob os métodos descritivo, exploratório e quali-


quantitativo de caráter fenomenológico. Destarte, a metodologia adotada no percurso do
estudo do Direito e Literatura construiu perspectivas dialógicas em que os constructos
teóricos servem de método e crítica da intersubjetividade (ALVES, 2012, p.11).
Nesse sentido, para a consecução dos aspectos descritos, a metodologia proposta
subdividiu-se em dois momentos fundamentais, quais sejam: o estudo exploratório
mediante levantamento bibliográfico sobre temática literária e jusfilosófica; e, em segundo
momento, análise e discussão das interações com a teoria jurídica.

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Os objetivos específicos consistiram em identificar e analisar o imaginário


literário, construindo nexos entre direito e literatura, tecendo possibilidades de pensar as
identidades sociais inscritas no conteúdo das narrativas ficcionais, e, assim, repensar as
relações dialéticas como, por exemplo, cotidiano e direitos humanos, observando
transversalmente a perspectiva de gênero.
Eles se vinculam ao objetivo geral desta investigação no sentido de ao
compreender a construção imaginária do direito a partir da imaginação literária se produzi o
resgate de temas sociojurídicos e sua importância na formação jurídica brasileira.
Como hipótese inicial verificou-se que o imaginário clariceano no crônica
Mineirinho serve para desvelar as funções de poder características da esfera criminal
brasileira, cenário de violações aos direitos humanos, assim como repensar as questões da
alteridade na realidade ético-cultural.
Para tal fim, o método hermenêutico utilizado como instrumento da metodologia
jurídica manifestou-se de maneira fundamental, de tal modo que a obra literária passe a
figurar como obra aberta produzindo uma fusão de horizontes entre Direito e Literatura e,
dessa forma, colocando o tema da estética do direito numa dimensão dialógica, no centro
das preocupações dos estudos de introdução à teoria jurídica.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO:

4.1 A QUESTÃO DO JUS PUNIENDI (DIREITO DE PUNIR)


A crônica Mineirinho traz à lume uma discussão literária em torno de materiais
jurídicos, como a noção de justiça, a questão da violência operada pelo Estado ou o jus
puniendi (direito de punir), uma vez que a personagem é executada pela polícia, um
aparelho de repressão estatal. É importante, antes de apresentar a perspectiva da autora,
contextualizar brevemente o caso e discorrer sobre tema do direito de punir.

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José Miranda Rosa, conhecido por Mineirinho, alto, moreno e franzido, no dia 1º
de maio de 1962, foi morto pela polícia, alvo de diversos disparos, dentre os quais 13 foram
certeiros. Mineirinho era um fugitivo: ele havia escapado do Manicômio Judiciário e jurado
nunca mais voltar ao cárcere para cumprir a pena de 104 anos (ROSENBAUM, 2010, p.
170), e inevitavelmente entrou em conflito com a polícia. Não eram apenas 4, 5 policiais,
eram 100 policiais, todos armados de metralhadora e com a ordem de captura-lo de
“qualquer maneira” (WEGUELIN, 2018). À época, assim os jornais noticiaram esse
acontecimento, revelando a perplexidade, opiniões destoantes e a cena dantesca:

Com uma oração de santo antonio no bolso e um recorte sobre seu último
tiroteio com a Polícia, o assaltante José Miranda Rosa, “Mineirinho”, foi
encontrado morto no sítio da serra, na estrada Grajaú-Jacarepaguá, com
três tiros nas costas, cinco no pescoço, dois no peito, um no braço
esquerdo, outro na axila esquerda e o último na perna esquerda, que
estava fraturada, dado à queima-roupa, como prova a calça chamuscada.
(WEGUELIN, s. d. diário Carioca, 1º de maio de 1962).

Não foi a justiça quem decretou a morte do mais temível assaltante do Rio
de Janeiro, conhecido pela alcunha de “Mineirinho”, ele próprio a
procurou, desafiando a tranquilidade pública e um aparelhamento policial
cujas metralhadoras sabia não lhe dariam trégua. Carregando 104 anos de
prisão, o facínora ainda brincou pelas ruas e favelas da cidade durante
dias, assaltando e baleando – que estas eram sua razão de viver.
(WEGUELIN, s. d. Correio da manhã, 1º de maio de 1962).

E "Mineirinho" morreu. Teve o fim de todos os seus iguais. Foi talvez, o


bandido mais temível de quantos a Polícia carioca já enfrentou. Fugiu, de
maneira ainda não esclarecida, no dia 23 de abril último, do Manicômio
Judiciário, levando o propósito de eliminar diversos policiais, antes de ser
abatido, pois dos seus planos fazia parte também, só se entregar morto.
Por pouco não cumpria totalmente a promessa. Baleou dois policiais, um
dos quais - gravemente, num "entrevero"em Tomazinho, no Estado do
Rio. Ambos pertencem à 2a Subseção de Vigilância, que lhe movia a
caçada incessante. (WEGUELIN, s. d. Correio da manhã, 1º de maio de
1962).

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Retomando o tema do jus puniendi, cumpre destacar que muito embora algo
semelhante os ingleses houvessem pensado de há muito, uma grande questão jurídica e
política que se impôs na Europa do século XVIII, em especial na França do Ancien
Régime5, era a seguinte: até que ponto o Estado está autorizado ou legitimado a intervir na
vida do cidadão. Quer dizer, havia uma tensão entre dois polos: de um lado, o Estado
absolutista; do outro, a sociedade civil. Atrevendo-se com suas penas, Cesare Beccaria, em
1764, publica sua obra prima, Dos delitos e das penas, na qual propõe um modelo racional
de Estado pautado no humanismo. Nessa obra, ele pensa em como limitar o poder punitivo
do Estado, razão pela qual sugere uma série de princípios, designados por Bittencourt
(2012) de “princípios limitadores do poder punitivo estatal”. Por isso, Beccaria (1999, p.
28) arremata “[...] todo ato de autoridade de homem para homem que não derive da
absoluta necessidade é tirânico”. Em uma palavra: o Estado deve agir somente e quando for
imprescindível para proteger o repositório público.
No texto intitulado Algumas Ideias sobre o Chamado Fundamento do Direito de
Punir, cuja publicação se deu em 1881, Tobias Barreto (2013, p. 230) assevera que “O
direito de punir é um conceito científico [...] da imposição de penas aos criminosos, aos que
perturbam e ofendem, por seus atos, a ordem social”. Esta noção é sustentada como uma
necessidade da própria sociedade devido ao seu desenvolvimento. Por isso, criticando o que
ele designa de metafísica retórica”,6 Tobias (2013, p. 232) afirma que o direito de punir tem
“[...] um princípio histórico, isto é, um primeiro momento na série evolucional do
sentimento que se transforma em ideia, e do fato que se transforma em direito”.
Por sua vez, de 1939 a 1943, Clarice estudou na Faculdade Nacional de Direito,
movida pelo desejo de mudar o sistema penitenciário – embora tenha afirmado,

5
Era um modelo de Estado (absolutista), bem como de sociedade, na França, cujo período de existência é
rompido com a Revolução Francesa de 1789 (Bobbio, 1998, p. 30).
6
Ou “o velho racionalismo jurídico”, doutrina segundo a qual o direito precede à própria experiência.
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posteriormente, que o curso de Direito não lhe serviu em nada, nem para discutir sobre
direito autoral com os editores (cf. GOTLIB, 1995). Não obstante tenha se desiludido com a
ciência jurídica, a futura escritora tinha preocupações intelectuais atinente ao ser humano e,
em 1941, publica o seu primeiro artigo – Observações sobre o direito de punir –, no qual
põe em discussão a sociedade e as instituições estatais, que será importante para sua
narrativa:

Essa sociedade narcotizada pelo hábito do mau disfarce – ou má


consciência – será uma das presenças constantes nas narrativas de Clarice.
Pela ação narrativa, a escritora tentará despertá-la para a realidade desse
sonho mau. E o seu penoso despertar será um dos efeitos mais
contundentes dos projetos narrativos de Clarice Lispector (GOTLIB,
1995, p. 149, grifo da autora).

Assim, em Observações sobre o direito de punir Clarice Lispector (2005, p. 43) se


opõe à perspectiva segundo a qual há direito de punir, de modo a aduzir que “Não há direito
de punir. Há apenas poder de punir”. Isto no sentido de que as instituições objetivam a
preservação de sua estabilidade, razão pela qual se opõem a condutas que ofendam à sua
integridade. Sob esse ângulo, há uma relação entre esse texto e a crônica ora estudada,
porque “Em um e outro texto Lispector critica o aparato de poder e os diversos dispositivos
de afastamento do outro, proscrito e excluído por ser diferente de nós” (CALVO
GONZÁLEZ, 2016, p. 8).
Nesse sentido, na crônica Clarice expressa sua angústia, além de sua repulsa à
justiça de então. Do alívio de segurança nos dois primeiros tiros ao sentir-se profundamente
atingida no décimo terceiro7:

7
Conforme Rosenbaum (2010, p. 174), “do alívio de segurança com o primeiro tiro à morte do outro (e de
si) no décimo terceiro, observa-se uma inversão absoluta e crucial: de sujeito protegido pela lei, a narradora se
torna o outro perseguido pela mesma lei, dobradiça de duas faces antagônicas”.
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Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com
um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto
desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o
oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo
minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de
Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me
assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro
(LISPECTOR, 2016, p. 387).

Em outras palavras, o décimo terceiro tiro desmoronara a casa onde ela dormitava:
sacudiu-lhe. Portanto, a justiça falhou, a coletividade falhou. Não houve punição, mas sim
uma execução cruel – a exteriorização de uma espécie de vingança, desforra institucional
contra não somente o indivíduo Mineirinho, como também contra a humanidade. Como diz
Beccaria (1999, p. 29, grifo do autor), “[...] é abuso e não justiça, é fato, mas não direito”.
Logo, estritamente não há que se falar em jus puniendi dada as circunstâncias nas quais o
ato fora praticado: os treze tiros expressam a negação do reconhecimento, da humanidade, e
assim escapa a uma noção plausível de punição operada pelo Estado ou por seus aparelhos
de repressão.

4.2 AS FUNÇÕES DO PODER


O que houve, na verdade, como a própria Clarice dirá, foi uma vontade de matar,
uma prepotência. Assim, o que há por detrás do cenário em que a polícia executa alguém
rotulado de facínora com treze tiros? A resposta a tal pergunta direciona-se à crítica da
violência que Walter Benjamin faz no ensaio Crítica da violência – crítica do poder, de
1921, tendo como objetivo principal realizar um diagnóstico da atuação da polícia. Nesse
texto, o filósofo alemão põe em análise o Estado, o direito e o poder, temas deveras
importantes no início da década de vinte do século passado.
Antes de adentrar em tal texto, é importante frisar algumas notas propedêuticas em
relação a essa obra. Primeira, Walter Benjamin viveu durante a República de Weimar, a
qual perdurou do fim da primeira Guerra Mundial até o início do nazismo. Nesse contexto,
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travou algumas ideias com um jurista conservador, Carl Schmitt. A noção de Estado
Moderno, por exemplo, fora objeto de discussões entre esses pensadores, inclusive,
segundo Derrida (2007), o jurista alemão enviou uma carta felicitando Benjamin pelo texto
de 1921.
Carl Schmitt constrói a doutrina do decisionismo, para a qual o soberano é quem
estabelece o Estado de Exceção – ele age para restaurar a estabilidade social, não estando
limitado pelas leis. Outro ponto fulcral na obra desse autor orbita em sua teoria material da
constituição. O constitucionalista Bonavides (2017, p. 104) tece o seguinte comentário
sobre essa questão: “A Constituição possui assim sentido político absoluto, não podendo
sua essência ficar contida numa lei ou numa norma”, diferenciando-a de Lei Constitucional.
Aquela tem um caráter político preponderante, resultado de uma decisão política
fundamental.
O que importa refletir, pois, sobre o pensamento benjaminiano à luz do texto de
Clarice diz respeito às funções do poder, quais sejam: a função mantenedora, a qual
objetiva manter o status quo, e a função instituinte, cujo fim é a instituição de um novo
direito. Portanto, essa crítica empreendida pelo filósofo alemão concebe a violência
enquanto meio para ora manter ora instituir o direito8, condições das quais curiosamente o
aparato policial se emancipou.
Desse modo, a polícia, instituição típica do Estado moderno, apresenta-se numa
relação em que o poder instituinte e o poder mantenedor do direito se mantêm suspensos.
Em outras palavras, os fins da polícia não são sempre idênticos aos do direito, uma vez que
a polícia intervém em inúmeros casos sem qualquer referência aos fins jurídicos. Ora, “o
‘direito’ da polícia é o ponto em que o Estado - ou por impotência ou devido às inter-
relações imanentes a qualquer ordem judiciária - não pode mais garantir, através da ordem

8
No fim do supracitado ensaio, ele estabelece uma semelhança entre poder instituinte e o poder mítico, de
modo a entender aquele como violência imediata, e não enquanto meio.
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jurídica, seus fins empíricos, que deseja atingir a qualquer preço” (BENJAMIN, 1986, p.
166). O que significa, por conseguinte, que o monopólio da violência pelo Estado não é
para almejar a proteção da vida nem dos fins jurídicos (legítimos), mas para se manter, para
manter o direito por ele instituído.
Nessa esteira, Mineirinho, por ter desafiado a ordem, o direito instituído, e por
uma questão de segurança pública, foi alvo da violência operada pela polícia que, mesmo
(ou em razão disso) sem referência aos fins legítimos do direito, deliberadamente o executa
para fortalecer o direito. Eis a ambiguidade do próprio direito.
Essa discussão e crítica empreendida por Benjamin atinge veemente a ordem jurídica ou a
institucionalização do direito, uma vez que “a institucionalização do direito é institucionalização do
poder e, nesse sentido, um ato de manifestação imediata da violência” (BENJAMIN, 1986, p.
172). Quer dizer, a instauração de uma ordem jurídica se opera por meio da violência. À esteira
dessa concepção, a preocupação primordial da ordem jurídica não é quanto à forma de atingir os
fins jurídicos, mas sim em como manter e proteger o direito instituído. Enfim, a função do poder-
violência na institucionalização do direito é dupla:

[...] por um lado, a institucionalização almeja aquilo que é instituído como


direito, como o seu fim, usando a violência como meio; e, por outro lado,
no momento da instituição do fim como um direito, não dispensa a
violência, mas só agora a transforma, no sentido rigoroso e imediato, num
poder instituinte do direito, estabelecendo como direito não um fim livre e
independente de violência (Gewalt), mas um fim necessário e
intimamente vinculado a ela, sob o nome de poder (Macht) (BENJAMIN,
1986, p. 172, grifo do autor).

4.3 ALTERIDADE: PENSANDO O OUTRO


Enquanto uns vibraram pela morte de um criminoso, Clarice se sentiu angustiada,
reflexiva. Porque, por detrás das atitudes de Mineirinho – cujos atos são reprovados
socialmente – há um ser humano. Ora, ela o reconhece enquanto um homem, um ser
despido de adjetivos, em quem a fala falhou, razão pela qual critica a justiça cega. A justiça
prévia é “[...] aquela que vê o homem antes de ele ser um doente do crime” (LISPECTOR,
14
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2016, p. 388). Assim, entende a escritora que se alguém mata outrem é porque este tem
medo. Desse modo, em sua última entrevista concedida à imprensa (TV Cultura) em janeiro
de 1977, diz ela, em um dado momento da conversa, “Eu me transformei no Mineirinho,
massacrado pela polícia. Qualquer que tivesse sido o crime dele uma bala bastava, o resto
era vontade de matar. Era prepotência” (LISPECTOR, 2017). O ato da polícia,
evidentemente, caracteriza-se como prepotente, termo este que, etimologicamente, “É o que
vem antes da potentia, antes do poder, antes da força, isto é, o ‘abuso’ da potência, o abuso
do poder, o abuso da força. Por isso, a prepotência não é só poder, influência, mas sim
despotismo, tirania, uma ação ‘pré-poder’, isto é, ‘antes do poder’” (RAMOS, 2015, grifo
da autora).
Essa transformação do eu (Clarice) no outro (Mineirinho) ocorre pela ideia de
compaixão, isto é, um afeto de compromisso, algo que do outro afeta ao eu, indo a uma
direção coletiva – de construção de uma justiça social (CALVO GONZÁLEZ, 2016). É
dizer: Clarice faz um exercício de empatia, uma vez que, como ela mesma expressa, eu me
transformei em Mineirinho. Empatia no sentido de experiência estética, isto é, “A
reprodução das manifestações corpóreas alheias (devida ao instinto de imitação)
reproduziria em nós mesmos as emoções que costumam acompanhá-las, colocando-nos
assim no estado emotivo da pessoa a quem essas manifestações pertencem”
(ABBAGNANO, 2007). Daí a força e carga emotiva das palavras empregadas por Clarice:
o décimo terceiro me assassina. Sente-se assassinada porque ela reproduz em si a situação
vivenciada por Mineirinho.
Em sua análise, Calvo discute a ideia de sair para o outro, ideia esta que implica
um deslocamento, colocar-se em frente ao outro e, consequentemente, implica a
confirmação da existência deste. E aqui se encontra uma importante contribuição em
Mineirinho para pensar o outro:

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Creio, pois, que o primeiro ponto em que se apoia a passarela entre o


sujeito e a alteridade é a afetividade, são as emoções, é o apaixonamento.
Nesse sentido, a construção social da estranheza é, a meu ver, assunto
primordial de compaixão e de justiça também (CALVO GONZÁLEZ,
2016, p. 135, grifo do autor).

Nesse sentido, na crônica Clarice exprime essa ideia de estranheza por meio do
emprego da palavra doido, o que significa, consequentemente, afastar-se da normalidade,
da vida social monótona. Assim, diz ela:

Mas só feito doidos, e não como sonsos, nós o conhecemos. É como doido
que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido
compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o
amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se
irradiará de qualquer modo, se não pela confiança, pela esperança e pelo
amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição
(LISPECTOR, 2016, p. 389, grifo da autora).

Em virtude dessa profundidade, Clarice tem evidentemente uma sensibilidade


aguçada, um sentimento humanitário: ela desvela os qualificativos dados ao ser humano de
modo a reconhecê-lo em suas potencialidades; ela resiste à normalização da violência, com
olhos atentos à esfera do humano. Sendo assim, existe algo que transcende esse evento: o
coração pulsante da humanidade, e Clarice é atingida porque ela percebe que não é apenas
Mineirinho de carne e osso que está sendo assassinado, mas também a coletividade está
sendo ferida. Se alguém mata, pois, é porque a estrutura social está cambaleando; e, pior
ainda, quando a polícia ceifou a vida de Mineirinho com treze balas houve uma absurda
desumanização – o não reconhecimento da humanidade. Dito de outra forma, esse cenário é
um sintoma do distanciamento da afetividade das relações sociais. Ou, nas palavras de
Calvo (2016, p. 137, grifo do autor):

Os treze tiros descarregados sobre o corpo de Mineirinho não só


representam a cavitação dos tecidos e órgãos vitais de um criminoso; cada
um desses treze disparos, um depois do outro, penetra o organismo social,
revelando-o, denunciando-o.
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Numa trilha existencialista, cumpre citar Emmanuel Lévinas, que é um filósofo


francês cuja tônica do seu pensamento consiste na relação do Si com o Outro. Em outras
palavras, ele desenvolve uma filosofia ética. Aqui, o foco de atenção é com (pensar) o
outro, o que possibilita entender a preocupação de Clarice em relação ao sujeito
Mineirinho. Lendo as frases dela “porque eu sou o outro”, “Porque eu quero ser o outro” e
“Eu me transformei no Mineirinho” à luz desse autor, entende-se que não há uma fusão
entre ambos, mas sim uma reação ao outro, conforme o entendimento de Sarah Bakewell
(2017). Pensar o outro significa reagir a este. Sarah (2017, p. 195), em sua fascinante
narrativa, diz “Em vez de seres cooptado para desempenhar um papel em meu drama
pessoal de autenticidade, tu me fitas nos olhos – e continuas a ser o Outro. Continuas a ser
tu”. Dito de outra forma, quando Clarice diz ser o outro não significa que o é, mas sim que
ela reagiu ao outro, que este lhe afetou, o que implica pensar e sentir o outro.
Como expõe ainda Cerqueira (2003, p. 211) “os personagens e romances são
consequentemente o ser subjetivo do objeto, ou a sua alteridade; precisamente o ser de um
objeto em e através do outro” compondo assim aspectos jusliterários da alteridade. Isto é,
há uma lógica da dialética, da mediação entre objeto e sujeito: os personagens ficcionais
são o que são, embora não sejam. Cerqueira entende que os personagens são a idealização
do autor, ímpeto ou desejo deste. Essa, porém, é a estrutura de um romance, diferentemente
da crônica posta em análise, uma vez que nesta a personagem Mineirinho é incorporado ao
texto tal como se encontrava em sua vida externa e sensorial, massacrado pela polícia,
rejeitado por todos. Mineirinho-personagem é o ímpeto de Clarice em pensar a realidade
social.

4.4 O TERRENO DA ALTERIDADE


Mas, enfim, o que Clarice deseja? No fim da crônica, ela afirma que não quer o
sublime. “O que eu quero” – diz ela – “é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno”.

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O que o terreno simboliza? Calvo (2016, p. 132) apresenta uma interpretação, qual seja:
“chegar ao terreno é ‘sair para o outro’”. Dito de outra forma, Clarice quer sair para o
outro, isto é, deslocar-se de seu lugar para o outro, colocar-se em frente ao outro. E isto
pressupõe um estranhamento, ou seja, deixar-se de ser sonso e perceber que uma casa é
construída sobre o terreno, o que implica não só por-se no lugar do outro, como também
sentir, ter compaixão, quer dizer, compreender a importância da afetividade como mola
propulsora da vida social. Nas palavras do autor citado:

Chegar ao terreno é “sair para o outro”. Essa saída precisa modificar a


situação e o visor; estimula o querer ― re-quer ― ir de dentro para fora
(abintus ad foras), espichar o olhar, conduzi-lo mais além do portão da
casa, exceder o ponto do alvo com que se enfoca (CALVO GONZÁLEZ,
2016, p. 132, grifo do autor).

Na vereda fenomenológica de Lévinas, a preocupação com o outro excede o fato


de compreendê-lo. É neste sentido que a ética substitui a ontologia, para a qual enuncia-se
“no ser, importa ser”, ou seja, “ser para-si”, quer dizer, um instinto de conservação. Assim
como Clarice pensa a alteridade como necessidade frente à violência que assola o mundo,
Lévinas o faz, construindo uma filosofia ética, isto é, um discurso racional sobre a ética:

A ética, o cuidado reservado ao ser do outro que si mesmo, a não


indiferença para com a morte de outrem, e, consequentemente, a
possibilidade de morrer por outrem, chance de santidade, seria o
abrandamento desta contração ontológico que o verbo ser diz, o des-inter-
essamento rompendo com a obstinação em ser, abrindo a ordem do
humano, da graça e do sacrifício (LÉVINAS, 2004, p. 269).

Desse modo, a não indiferença para com a morte de outrem é inequivocamente


expresso no texto de Clarice, sobretudo quando esta diz que no décimo terceiro tiro se sente
atingida pela bala. A necessidade de ser o outro, não se fundindo a este, denota a
responsabilidade do sujeito da ética, possibilitando o que o autor chama de encontro do
rosto de outrem. O rosto é uma noção que em outrem diz respeito ao eu, o que do outro

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concerne ao eu [...] “lembrando, por detrás da postura que ele exibe em seu retrato, seu
abandono, seu desamparo e sua mortalidade, e seu apelo à minha antiga responsabilidade,
como se ele fosse único no mundo – amado” (LÉVINAS, 2004, p. 291). Para Lévinas, a
autenticidade do eu é a escuta do outro, uma atenção a este sem sub-rogação – é “o amor
sem concupiscência”.
Nesse sentido, entender quero o terreno implica conhecer que o terreno expressa a
relação pessoal, do eu com o outro, a responsabilidade do eu com outro que se defronta
com aquele. É em virtude da inversão do para-si em para-outro que brota a ética. Em outras
palavras, afirma Lévinas (2004, p. 269): “É na relação pessoal, do eu ao outro, que o
‘acontecimento’ ético, caridade e misericórdia, generosidade e obediência, conduz além ou
eleva acima do ser”.
Destarte, essas preocupações intelectuais de Lévinas estão relacionadas a um
projeto de sociedade, e aqui se aproximam do desejo quero o terreno de Clarice. Caberia
perguntar o papel da justiça na construção de tal sociedade, ao que responde Lévinas (2004,
p. 294):

[...] é em nome da responsabilidade por outrem, da misericórdia, da


bondade às quais apela o rosto do outro homem que todo discurso da
justiça se põe em movimento, sejam quais forem as limitações e os rigores
da dura lex que ele terá trazido à infinita benevolência para com outrem.

4.5 GARANTISMO E DIREITOS HUMANOS EM MINEIRINHO


Depois de décadas do acontecimento do caso Mineirinho, afirmar que hoje ele é
anacrônico não passa de uma forma de dormir tranquilo9, sendo indiferente à realidade,
haja vista a constatação de uma miríade de exemplos de violação dos direitos humanos,
como, por exemplo, o sistema prisional. Nessa linha, “Hoje, Mineirinho está longe de

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Aliás, diz a própria Clarice em Mineirinho; “Nós, os sonsos essenciais. Para que minha casa funcione, exijo
de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados.
Se eu não for sonsa, minha casa estremece” (LISPECTOR, 2016, p. 387).
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representar um anacronismo, de carecer de imediatismo, de ser incomunicável. Mineirinho


não é memória devastada” (CALVO GONZÁLEZ, 2016, p. 139, grifo do autor).
No ensaio intitulado Garantismo e literatura: a lição de Leonardo Sciascia sobre
o papel dos princípios na construção das decisões, André Karam e Marilin Soares analisam
a decisão por princípio do pequeno juiz no romance Portas Abertas. O importante a se
destacar é que, embora houvesse previsão de pena de morte na legislação italiana, o
pequeno juiz, na situação em que a lógica da subsunção fora a resposta dada pelos adeptos
do positivismo tecnicista, realiza um uso alternativo do direito, decidindo por princípio, isto
é, contrário à pena de morte, uma vez que a vida é um bem inegociável; ou, como os
autores afirmam, “A preservação da vida é uma questão de princípio; afinal, ela é o bem
supremo de um homem”. “Ele decide apesar da lei, e não contra a lei” (TRINDADE E
SPERANDIO, 2016, p. 2141).
Ainda que não se trate de uma decisão judicial, é possível entender o
posicionamento de Clarice enquanto um posicionamento por princípio. Isto é, a justiça
prévia, sendo aquela que vê o homem antes de ser um criminoso, significa dizer que ela é
uma justiça por princípio, no sentido de que existem bens, como a vida, que devem ser
inacessíveis à violência, de tal maneira que se houver um conflito entre, por exemplo, a
vida e as razões de Estado, aquela deve prevalecer, haja vista que se trata de um bem
inegociável.
Esse problema é bem ilustrado na crônica: de um lado, um cidadão; do outro, a
polícia, representando o Estado. Neste quadro, é importante destacar um elemento fulcral
da existência dos direitos humanos, a saber: a limitação do poder de intervenção do Estado
na vida dos cidadãos. Em outras palavras, os direitos humanos são uma conquista da
sociedade civil perante o protagonista da violação de direitos, o Estado; representam, pois,
uma faceta emancipatória. Ao longo da história, essa constatação de tensão e conquistas diz

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respeito aos direitos de primeira geração, civis e políticos, cujo papel do Estado se inverte
quando se trata das segunda e terceira gerações (SANTOS, 1997, p. 12-13).
É nesse horizonte que a crônica Mineirinho contribui para (re)pensar os direitos
humanos, como a vida e a liberdade, numa perspectiva que transcende uma mera visão de
direitos públicos subjetivos, qual seja: uma perspectiva em que tais direitos são concebidos
enquanto dimensão garantista. Isto significa que os Mineirinhos não são corpos
descartáveis, mas sim pessoas que devem ser alçadas à condição de sujeito de direito, não
apenas do ponto de vista jurídico, mas também da concretude. Clarice Lispector, portanto,
posiciona-se sobre os temas aqui delineados, denunciando e desvelando a sociedade
narcotizada.
Assim, através da análise feita em torno dessa crônica, buscou-se reforçar a defesa
dos direitos humanos e, como sintetiza Candido (2011, p. 172), “Quem acredita nos direitos
humanos procura transformar a possibilidade teórica em realidade, empenhando-se em
fazer coincidir uma com a outra”.
Finalmente, aqui, ousa-se afirmar que o desejo pelo terreno conota tanto um
deslocamento, no sentido de pensar o outro, quanto o desejo por um Estado alicerçado em
princípios, um autêntico Estado Democrático de Direito que salvaguarda o direito à vida
enquanto um bem inegociável e inacessível a qualquer tentativa de negá-lo.

4.6 A MAÇÃ NO ESCURO:


O crime, o grande pulo ou o ato – assim Martim nomeia em certos momentos de
seu itinerário o evento que fizera no passado. Um homem em fuga busca reinventar-se: “ele
próprio se tornou o centro do grande círculo, e o começo apenas arbitrário de um novo
caminho” (LISPECTOR, 1999, p. 23). O romance A maçã no escuro, escrito na década de
50 e publicado em 1961, enseja discussões de cunho filosófico; aqui, porém, opta-se por
um recorte, analisando-o sob a perspectiva do direito através da literatura, especificamente

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concernente à questão do sentido: relação entre a busca de sentido pela personagem e do


Direito, perante um mundo de desencanto. Desse modo, o direito intercala uma retórica
oriunda da dramaturgia, enquanto a literatura possibilita refletir sobre temas que permeiam
a seara do discurso jurídico (ALVES, 2012b, p.343). Não apenas é um diálogo possível,
mas também é uma condição para o pensamento crítico do direito.
A maçã no escuro é um romance de aproximação: não se prende a uma relação
bilateral sujeito-objeto, elevando-se a um contexto de identificação entre o escritor e o
problema (CÂNDIDO, 1977, p. 128-129). O itinerário da protagonista segue um ritmo de
procura, desconstruindo-se a si mesmo para poder reinventar-se: a meta é a busca do
sentido da vida. Problemas existenciais, situação de angústia e a condição humana são
temáticas profundamente abordadas na obra de Clarice. O questionamento e a angústia
apresentam-se como fundamental para a busca de sentido (ALVES, 2012b, p. 346). A
narrativa literária clariceana não se delimita a um único plano, irrompe as fronteiras de tal
modo a predispor o leitor a pensar e sentir a condição humana (ALVES & ZAGANELLI,
2015, p. 29). O que está em jogo não são apenas as realidades objetivas, o homem de carne
e osso, mas sim o estatuto do homem considerado metafisicamente (LIMA, 2009, p. 22).
Martim é um fugitivo. Ele foge com medo de ser aprisionado. O narrador, a
princípio, nada conta ao leitor: apenas descreve a tensão psicológica da personagem no
hotel, o seu medo em ser denunciado pelo Alemão, e a sua fuga noturna, sem norte, apenas
sentindo o terreno no silêncio da noite. Em sua jornada de reinvenção de si, seria necessário
despojar-se da linguagem dos outros – estes, os seus inimigos, que lhe fizeram ter uma vida
pacata, padronizada e monótona. “Aquele homem rejeitara a linguagem dos outros e não
tinha sequer começo de linguagem própria” (LISPECTOR, 1999, p. 35). É nesse momento
que vem à tona a palavra crime: “[...] ao remexer agora com fascínio ainda cauteloso na
linguagem morta, ele tentou por pura experiência dar o título antigamente tão familiar de
‘crime’ a essa coisa tão sem nome que lhe sucedera” (LISPECTOR, 1999, p. 35).

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Crime: o ato libertador com o qual Martim destrói a ordem e parte para a
reconstrução de uma nova ordem. O crime é a voz coletiva; o ato consciencial diz respeito à
esfera individual (LIMA, 2009, p. 133). É na sua andança enquanto fugitivo que ele atinge
o estado de liberdade e o seu imaginário floresce. Importa mencionar que as metáforas
“coisa sem nome”, “grande pulo” e “ato” representam o processo de autoconsciência: o
primeiro alude à ausência de linguagem; o segundo, a consciência que vai adquirindo da
condição humana; e o terceiro, o nascimento da linguagem que restabelece as
características de uma linguagem originária. O ato representa sua recusa à ordem social em
que vivia:

Fora isso: ele sentira vitória. Com deslumbramento, vira que a coisa
inesperadamente funcionava: que um ato ainda tinha o valor de um ato. E
também mais: com um único ato ele fizera os inimigos que sempre
quisera ter – os outros. E mais ainda: que ele próprio se tornara
incapacitado de ser o homem antigo, pois, se voltasse a sê-lo, seria
obrigado a se tornar o seu próprio inimigo (LISPECTOR, 1999, p. 36).

A busca de sentido existencial por Martim aproxima a narrativa literária clariceana


com o imaginário jurídico. Ela traz ao direito uma forma renovada de olhar/refletir sobre as
coisas (ALVES, p. 5), inclusive sobre o próprio papel social do direito perante a sociedade.
Em A maçã no escuro, o sentido da vida da protagonista está atrelado ao seu próprio
percurso: da fuga do hotel, do contato com a terra, pedras e rochas, de sua relação com
personagens da fazenda e posteriormente com os quatros homens. Interessante notar que o
devaneio de Martim, que lhe faz pensar sobre si mesmo e o mundo, a plenitude de sua
liberdade, irrompendo as convenções, emerge durante a noite – aliás, diz o narrador: “na
escuridão grandes barganhas se fazem” (LISPECTOR, 1999, p. 222). Nesse sentido,
“habitar no mundo de forma autêntica seria repensar a forma instituinte dos imaginários de
direitos” (ALVES, p. 5).

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Na modernidade, deuses e demônios não têm espaço; e o homem, portanto, é


condenado à procura de seu próprio sentido existencial – as coisas não estão prontas e
acabadas tal qual Minerva na cabeça de Zeus, cabendo ao sujeito a construção de sua
própria existência. Na década de 70 do século XX, aquilo que havia sido o resultado das
ideias iluministas, a sociedade moderna, desemboca em uma crise, como consequência de
vários eventos, a exemplo da política populista e conservadora – enfim, a ausência de
confiança assola as instituições ocidentais. E a ciência jurídica não está imune a esse
contexto.
Desse modo, “[...] a mudança mais fundamental nas metodologias das ciências
sociais a partir da década de 1960 tenha sido a conscientização de que a interpretação – a
hermenêutica – era inevitável” (MORRISON, 2012, p. 498). O mundo não revela ao sujeito
cognoscente a verdade de suas estruturas. O homem encontra-se numa situação de angústia,
tendo em vista a impossibilidade de sua concepção de mundo ser um reflexo de entidades
objetivas da realidade (MORRISON, 2012, p. 498). A verdade de sua visão de mundo
resulta de um ato interpretativo, inserido em uma comunidade. A verdade na moderna
hermenêutica não possui o status de objetividade, mas sim a interpretação de significado e
ação dentro de uma comunidade.
Elemento central do positivismo, o método descritivo é alvo de crítica – a
objetividade e a neutralidade não satisfazem a moderna hermenêutica. Não podendo ser
descrito, o método narrativo concebe o direito como uma narração: o direito é uma
narrativa. É possível, portanto, uma interpretação jurídica mais adequada (BARBOSA,
2017).
Dentro desse contexto, de um mundo marcado pelo desencantamento e da
importância atribuída à narração, Dworkin propõe uma metodologia interpretativa da
filosofia do direito. “Revitalizar a legalidade liberal” é uma de suas propostas. Ele busca
uma nova objetividade para as práticas jurídicas. O direito não é um conjunto de elementos

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desconexos, mas sim uma estrutura coerente e integrada. Não obstante o desencanto do
mundo, Dworkin atribui sentido ao Direito: coerência e integridade.
Outro autor importante, inserido em solo alemão e preocupado com a estrutura do
direito, é Friedrich Müller. A sua teoria estruturante do direito evidencia um nexo entre
epistemologia, compreensão da norma e questões práticas do direito (VASCONCELLOS,
2012, p. 123), ao contrário da tese kelseniana. Desse modo, “a teoria estruturante do direito
entende a norma não apenas como um dever-ser irrealisticamente apartado do ‘ser’, mas
como um fenômeno composto de linguagem e fatos, em que o ‘ser’ e ‘dever-ser’ são
elementos complementares entre si” (VASCONCELLOS, 2012, 123). Ao contrário de
Kelsen, ele propõe uma teoria impura, na medida em que a norma jurídica é construída no
caso concreto, isto é, a norma jurídica não preexiste na codificação, o que diferencia norma
jurídica de texto normativo. No que concerne a práxis constitucional, espaço de
concretização da constituição, a fundamentação serve, por um lado, a convencer os
atingidos e, por outro, tornar a decisão passível de controle pelos tribunais superiores
(VASCONCELLOS, 2012, p.26). Ele propõe a concretização da norma em vez da
interpretação do texto da norma. “A” norma, no pensamento estruturante, não está pronta e
acabada, uma vez que ela é “um núcleo materialmente circunscrível da ordem normativa”
(VASCONCELLOS, 2012, p. 129), sendo concretizado, pois, no caso concreto, dentro dos
limites admissíveis do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, a concretização de direitos não significa subsumir, aplicar e
concluir. A concretização significa produzir uma norma jurídica defensável para o caso de
conflito social que lhe provocou dentro dos limites da democracia e do Estado de Direito
(VASCONCELLOS, 2012, p. 129-130). O sentido da norma, portanto, é construído a partir
do caso concreto.
Martim também se encontra nesse contexto – o vazio lhe persegue. Nesse sentido,
“O processo entre vivenciar a angústia é dizer é algo tão intenso que a narrativa produz não

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somente intervalos de tempos sobre a própria narrativa, mas também a procura de um


silêncio que se reflete na indizibilidade de questões problematizadas pela obra literária
(ALVES, 2012b, p. 148). Na fazenda, espaço paradoxal de medo e coragem, ele “é um
homem angustiado, fugindo do tédio e da hostilidade dos homens” (LIMA, 2009, p. 180).
Em sua relação com as personagens femininas ele reafirma seus valores individuais. Ao
contrário delas, detidas e condicionadas pelo hábito, Martim é salvo pelo devaneio,
possibilitando uma abertura de possibilidades de agir: “Clarice concebe a imaginação como
único meio de despertar a vontade para novas perspectivas de criar no homem o desejo de
se diferenciar para assegurar um vir a ser” (LIMA, 2009, p. 163). Ali, o herói avança na
aprendizagem da vida: a experiência revela o porquê de seus atos cotidianamente,
colocando-se na posição de decidir sobre seus atos e discórdias íntimas.

5 CONCLUSÃO:

O estudo interdisciplinar entre Direito e Literatura a partir da narrativa literária


clariceana na crônica o Mineirinho permitiu construir o imaginário dos direitos humanos, o
qual ensejou uma discussão em torno da noção de poder, violência e alteridade. Além disso,
importa destacar a contribuição da crônica de Clarice para (re)pensar a dimensão garantista
dos direitos humanos.
No romance A maçã no escuro, buscou-se evidenciar como a angústia e o
itinerário da personagem Martim estão intimamente relacionados ao Direito, diante do
desencantamento do mundo, levando-o a uma busca de sentido, além de suas possibilidades
na contemporaneidade.
No contexto da teoria narrativista, observa-se que a contribuição da literatura na
formação jurídica é via fundamental para a crítica ao formalismo jurídico inscrevendo a
hermenêutica jurídica numa perspectiva humanista propiciando o potencial transformador

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do direito. Dito de outra forma, a teoria narrativista apresenta-se como uma construção
teórica que busca irromper com o positivismo tecnicista e, portanto, com o princípio da
subsunção. Ao longo da tradição jurídica, o positivismo tecnicista reduziu a dimensão do
direito a uma técnica, negligenciando-se de sua dimensão cultural. Este projeto objetivou
evidenciar uma noção fundamental: direito é linguagem.
Nesse sentido, a leitura das narrativas clariceanas trazem experiência estética
inovadora ao jurista, enfatizando direitos fundamentais numa complexa percepção da
alteridade, como se evidenciou através dos aportes teóricos de Lévinas e Calvo na crônica
Mineirinho. Em outras palavras, a literatura clariceana humaniza o leitor, o jurista, na
medida em que o torna mais compreensivo e aberto ao semelhante, ao outro.

6 PERSPECTIVAS:

A construção do imaginário jurídico através da obra de Clarice Lispector


possibilitou uma ampliação de horizontes. Nesse sentido, as perspectivas do tema ora
pesquisados são imensas, estendendo-se desde a discussão dos aparatos de poder à questão
de gênero, perpassando temáticas como os direitos humanos, a construção da identidade
feminina e o sujeito de direito.
Além disso, a narrativa literária de Clarice proporciona a fusão de horizontes entre
a hermenêutica jurídica e a estética literária, de tal maneira a permitir um debate sobre os
paradigmas do direito, do positivismo ao pós-positivismo jurídico, e a importância da
narrativa literária para compreender o próprio direito.
Em especial, por conta da quantidade de publicações sobre este tema, a questão de
gênero é uma via futura de exploração, permitindo, por exemplo, identificar o discurso
patriarcado e o poder sobre o corpo da mulher, isto é, como o direito contribui para manter
um discurso patriarcado.

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No que concerne à importância do estudo interdisciplinar da relação Direito e


Literatura, é importante destacar a sua contribuição para a conscientização de caráter
humanista do ensino jurídico, além de ampliar a hermenêutica jurídica e favorecer o
conhecimento crítico do direito.
Ainda, a dimensão garantista da obra de Clarice Lispector consiste em outra via
futura de análise, valendo-se dos aportes teóricos de Luigi Ferrajoli.
Desse modo, é de fundamental importância, como assinala Ost, devolver ao direito
uma dimensão cultural através da literatura a fim de que se possa restituir-lhe o seu papel
de ator da transformação social.

7 REFERÊNCIAS:

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

ALVES, Miriam Coutinho de Faria. A experiência estética no imaginário de direitos da


paixão segundo G.H. de Clarice Lispector. Disponível em:
http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=d1a69640d53a32a9. Acesso em: 01 jul.
2018.

ALVES, Miriam Coutinho de Faria. Hermenêutica Jurídica e Estética Literária. O


imaginário de direitos na Paixão segundo G.H de Clarice Lispector. Dissertação de
Mestrado. Salvador, UFBA, 2012a.

ALVES, Miriam Coutinho de Faria. A busca pelo sentido e a fusão de horizontes nas
relações entre hermenêutica jurídica e estética literária na obra de Clarice Lispector: uma
tarefa hermenêutica. In: SOARES, Ricardo Maurício Freire; MOCCIA, Luigi; NETO, José
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Juspodivm, 2012b.

ALVES, Miriam Coutinho de Faria; ZAGANELLI, Margareth Vetis. A dialética do corpo


na narrativa de Clarice Lispector: a feminilidade e os direitos da mulher na via crucis do
corpo. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI – UFS. Disponível em:

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https://www.conpedi.org.br/publicacoes/c178h0tg/4d9nht62/6Dzn123TG9prhpn8.pdf.
Acesso em: 01 jul. 2018.

BAKEWELL, Sarah. No café existencialista: o retrato da época em que a filosofia, a


sensualidade e a rebeldia andavam juntas. 1ª ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2017.

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8 OUTRAS ATIVIDADES:

Durante esse período de PIBIC, o presente discente empreendeu diversas


atividades, classificando-as em eventos e minicursos, a saber:
a) eventos: IX SEMEJ – DIÁLOGOS: QUANDO O DIREITO NÃO BASTA,
promovido pelo Centro Acadêmico Silvio Romero, de Direito, tendo uma mesa sobre

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Direito e Literatura em Clarice Lispector, ministrada pela Prof.ª Miriam Coutinho de Faria
Alves; AGENDA PELO DESENCARCERAMENTO E CELEBRAÇÃO DE 30 ANOS
DA PASTORAL CARCERÁRIA EM SERGIPE, promovido em parceria do Centro
Acadêmico Silvio Romero com a Pastoral Carcerária de Sergipe; POLEMOI III, XX
SEMINÁRIO INTERNACIONAL–JUSTIÇA FEDERAL, XXI SEMINÁRIO
INTERNACIONAL–JUSTIÇA FEDERAL e XXXV SIMPÓSIO TRANSNACIONAL DE
ESTUDOS CIENTÍFICOS – promovidos pelo NEPRIN (Núcleo de Pesquisa e Extensão
em Relações Internacionais, vinculado ao Departamento de Direito) a fim de cultivar a
cultura jurídica, problematizando temas relevantes do campo jurídico; V CONGRESSO
INTERNACIONAL DE ESTUDOS JURÍDICOS O trabalho decente e a efetividade dos
direitos humanos e II CONGRESSO INTERNACIONAL DE MEDIAÇÃO DE
CONFLITOS: DA TEORIA À PRÁTICA; IV SEMAC - CINECLUBE ENTREATO:
MOSTRA 'O CINEMA E O CORPO’, uma discussão sobre cinema; XVIII Semana de
Filosofia, cujo tema foi subjetividade e alteridade; e II JORNADA DE PSICOLOGIA
JURÍDICA: JUDICIALIZAÇÃO DO COTIDIANO, articulado pelo Departamento de
Psicologia, cujo objetivo fora discutir os problemas da judicialização da vida; Garantismo e
Literatura, ministrado pelo presidente da Rede Brasileira Direito e Literatura, André Karam
Trindade, e mediado pela Profª. Miriam Coutinho, do qual o presente pesquisador
participou da comissão organizadora.
b) minicursos: INTRODUÇÃO À LEITURA DA OBRA FREUDIANA, com
duração de 16 horas, promovido pelo Departamento de Psicologia a fim de introduzir o
pensamento freudiano aos discentes interessados; IV SEMAC - MINICURSOS PIBIC
2017, com frequência no minicurso “Gerenciamento de referências bibliográficas para
trabalhos de pesquisa; e PSICOLOGIA E POLÍTICA: PENSANDO O PRESENTE,
promovido pelo Departamento de Psicologia, com o objetivo de pensar a política brasileira
à luz de alguns autores da filosofia contemporânea, como Michel Foucault e Deleuze.

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Importa mencionar que o discente apresentou o texto sobre a crônica Mineirinho


no VII CIDIL - Colóquio Internacional de Direito e Literatura, realizado entre os dias 30 de
out. e 2 de nov. 2018, na UFMG, Belo Horizonte-MG.

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