Uma Análise Da Lógica de Frege
Uma Análise Da Lógica de Frege
Uma Análise Da Lógica de Frege
Guarulhos
2014
LUCIANO CARVALHO CARDOSO
Guarulhos
2014
Cardoso, Luciano Carvalho
97 f.
Prof. Dr.
Instituição
Prof. Dr.
Instituição
Dedico essa dissertação à Emilia e Dionísio, cujo amor, coragem e força para
viver são uma contínua fonte de inspiração e persistência.
AGRADECIMENTOS
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 9
2.1Objetividade e Subjetividade.......................................................................38
CONCLUSÃO......................................................................................................... 91
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................... 95
9
INTRODUÇÃO
O Contexto da Obra de Frege
Gottlob Frege foi o filósofo matemático que fundou o logicismo e, em certa
medida, a filosofia analítica. Da necessidade de fundamentar a própria matemática,
Frege se lançou à lógica, com o intuito de retirá-la da psicologia e do empirismo. As
mudanças de Frege, desde a introdução da função como forma de cálculo de
predicados na Conceitografia (Begriffsschrift, 1879), substituindo o binômio sujeito-
predicado, além de todas as inovações acerca dos conceitos, transformou a lógica.
Todas as mudanças realizadas por Frege no decorrer de suas obras não se devem
apenas à introdução de métodos ou de alguns elementos complementares à lógica,
mas sim a uma nova forma de articular o pensamento, no intuito de definir a relação
entre verdade e lógica de forma mais adequada do que até então havia sido
possível.
1
SANTOS, L.H.L dos. O Olho e o Microscópio, pg. 42.
2
FREGE, G. O Pensamento, trad. Alcoforado, in Anais de Filosofia, nº 6, pg. 283.
10
No entanto, há que se notar que a lógica aqui referida deve ser abordada em
seus pormenores, uma vez que, em meados do século XIX, muitas mudanças
ocorreram em seu desenvolvimento, dando origem a duas vertentes diferentes da
lógica. Esta, aos tempos de Frege, encontrava-se dividida em duas escolas muito
distintas. De um lado, encontramos a lógica anti-formalista e empirista de John
Stuart Mill (1806-1873) e seus seguidores como Sigwarth (1830-1904) e Lipps
(1851-1947), na Alemanha. Do outro, temos a lógica relacionando-se com a
matemática, como vemos em Boole (1815-1864), De Morgan (1806–1871), Peirce
(1839–1914) e Peano (1858–1932) que, fazendo uso da junção de elementos da
álgebra e da aritmética com a lógica, conseguiram ampliar os horizontes desta para
além daquilo que a lógica formal clássica e a lógica empirista conseguiam alcançar.
levariam Bertrand Russell a comentar com ironia, que "as matemáticas são uma
ciência em que não se sabe de que se fala nem se o que se diz é verdadeiro 3".
Para Kneale,
Uma vez que dúvidas foram jogadas sobre a fiabilidade da intuição espacial
como uma fonte de conhecimento matemático, tornou-se necessário
reexaminar todas as provas atualmente aceites, e o resultado foi uma
reconstrução radical da matemática por homens como Cauchy e
Weierstrass. Já foi dito, de fato, que nada foi satisfatoriamente comprovado
na análise antes do século XIX. Agora tanto na análise como na geometria o
rigor exige a formulação explícita de tudo que é essencial para uma
demonstração. E assim encontramos a atenção dirigida, no século XIX, para
as fórmulas que fornecem definições implícitas dos vários tipos de
expressões numéricas.4
3
BLANCHÉ, R. História da Lógica, pg. 307.
4
KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 400.
5
KNEALE & KNEALE. The Development of Logic, pg. 401.
12
6
BLANCHÉ, R. História da Lógica, pg. 306.
13
Creio que posso tornar mais clara a relação entre minha conceitografia e a
linguagem comum comparando-a à que existe entre o microscópio e o olho.
Este, pela extensão de sua aplicabilidade, pela agilidade com que é capaz
de adaptar-se às diferentes circunstâncias, leva grande vantagem sobre o
microscópio. Considerado como aparelho ótico, o olho exibe decerto muitas
imperfeições que habitualmente permanecem despercebidas, em virtude da
ligação íntima que tem com a vida mental. No entanto, tão logo os fins
científicos imponham exigências rigorosas quanto à exatidão das
discriminações, o olho revelar-se-á insuficiente. O microscópio, pelo
contrário, conforma-se a esses fins da maneira mais perfeita, mas,
precisamente por isso, é inutilizável para todos os demais7.
7
FREGE, G. Prefácio à Conceitografia, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 46.
14
Mas, nesse caso, se essa é a preocupação inicial de Frege, por que iniciar
sua Conceitografia com o intuito de tornar mais clara a aritmética? Por que não
buscar adentrar diretamente os domínios da linguagem? Afinal, a linguagem
matemática parece ser a mais distante da linguagem comum, sendo, portanto, uma
das mais estritas e corretas. Iniciar suas investigações pela aritmética, com o intuito
de fundamentá-la na lógica também não distancia, especificamente, Frege da
tradição filosófica.
apropriada para contornar esse problema. Frege encontra, como substitutos mais
adequados, a função e o argumento, operações próprias da Aritmética e que, por
possuírem um critério baseado em saturação e insaturação, se aplicariam a
praticamente todas as situações apresentadas pela linguagem, contendo a suficiente
generalidade.
O segundo motivo para começar pela aritmética está no fato de que tanto a
matemática quanto a lógica independeriam do mundo empírico e passariam a
depender unicamente do pensar para validar seus elementos. Dois campos nos
quais, segundo Frege, "a matéria cede terreno e é dominada pelo pensar" 8. De tal
maneira, Frege resguardaria tanto lógica quanto a aritmética de cair nos domínios
seja da psicologia, seja do empirismo.
8
FREGE, apud Santos, pg. 13.
9
SANTOS, L. H. L; O Olho e o Microscópio, pg. 15.
10
Idem.
16
Embora Frege afirme que a verdade científica passa por inúmeros estágios
de certeza, e embora um dos processos seja partir de um número limitado de casos
particulares, é por meio de inferências lógicas que uma proposição geral ganha
solidez. Essa solidez é dada pela conexão com outras verdades e é estabelecida por
meio de inferências que não dependem, necessariamente, da observação empírica.
O método de consolidação da fundamentação de uma verdade científica, ao menos
o mais seguro, segundo o autor, não é outro que o seguir as leis da lógica:
11
FREGE, Gottlob; Prefácio à Conceitografia, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 43.
12
FREGE, Gottlob; Prefácio à Conceitografia, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 44.
17
definição de verdade mais formal e com uma funcionalidade lógica mais rigorosa,
inclusive em sua terminologia. Como resultado, em Der Gedanke (O Pensamento,
1918-19), Frege nos informa que o “verdadeiro” é o objeto de toda a lógica. Essa
concepção parece ter uma conotação diferente do primeiro caso que observamos,
pois, na Conceitografia, a lógica parecia ser algo distinto e mais amplo do que as
verdades científicas. Em O Pensamento, o que podemos perceber é que toda a
lógica encontra-se orientada para o “verdadeiro” como objeto. Isso nos sugere que,
entre a Conceitografia e O Pensamento, Frege desenvolveu e ampliou sua
concepção acerca da verdade. O significado do termo objeto, conforme será
explicitado no decorrer dessa dissertação, evidenciará uma trajetória que busca
delimitar o verdadeiro em um contexto diferente daquele que costuma caracterizar
as verdades científicas, estabelecendo balizas muito consistentes entre a
consideração usual de verdade e aquela que caracterizará a mesma como objeto
lógico. O processo que estabelece esse rigor, que define o verdadeiro não apenas
como o objeto da lógica, mas como objeto lógico e que o distanciará das verdades
científicas não somente no método de prova, mas em toda sua aplicação, é
resultado de uma importante ruptura na concepção fregiana no que tange à distinção
entre forma e conteúdo da proposição.
Hans Sluga (1999), no artigo intitulado “Frege On Meaning”, faz uma análise
crítica da Conceitografia em relação à concepção de Frege a respeito da verdade
em sua teoria. Segundo Sluga, as considerações sobre a verdade existem de modo
indireto, sem que haja, em qualquer momento, uma tentativa de formalização de
uma teoria da verdade:
13
SLUGA, H. Frege on Meaning, pg. 22.
20
aqui um projeto que já havia tido em vista no meu Begriffsschrift do ano de 1879 e
que anunciei em meus Fundamentos da aritmética do ano de 1884”. 14
14
FREGE, G. Prólogo às Leis Básicas da Aritmética, pg. 3.
15
FREGE, G. Prólogo às Leis Básicas da Aritmética, pg. 4.
21
Assim, o objeto ou o argumento, para Frege, não pode ser substituído por
uma função, e nem pode aparecer como atributo ou propriedade de algo. Em um
sentido geral, portanto, podemos pensar que uma proposição baseada nessa
estrutura terá o atributo de ser verdadeira se, de fato, o objeto, enquanto argumento,
completar a função, que é insaturada. A própria proposição seria então considerada
verdadeira. Porém, Frege apresenta, logo em seguida, uma afirmação que causa
estranheza ao leitor: “Uma sentença assertiva não contém lugar vazio, e assim,
deve-se considerar que sua referência seja um objeto. Essa referência, porém, é um
valor de verdade. Logo, os dois valores de verdade são objetos. 17”
Se o verdadeiro é tomado como um objeto, então ele não pode mais ser
atributo ou propriedade de uma proposição da maneira usual, ou seja, por
comparação com o mundo. Evidencia-se, de imediato, que a concepção de verdade
de Frege passa a diferir grandemente da tradição filosófica, e carrega consigo uma
série de consequências e desdobramentos.
16
FREGE, G. Função e Conceito, pg. 96.
17
FREGE, G. Função e Conceito, pg. 97.
18
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência, pg. 139.
22
19
Greimann, D. Did Frege Really Consider the Truth as an Object?, in: Essays on Frege’s Conception of Truth,
pg. 126.
20
FREGE, G. Função e Conceito, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 92.
23
isso não implica o mesmo pensamento, em seu significado. Além disso, Frege
também afirma:
O verdadeiro, pelo que é indicado pela passagem acima, não é dado por
nada externo às próprias regras proposicionais, pois o valor verdadeiro atribuído aos
argumentos 1 e -1 só são possíveis devido às condições determinantes dadas pelas
proposições (x + 1)² = 2(x + 1) ou X²=1. Dadas as relações concernentes à função,
somente os argumentos -1 e +1 engendram o valor verdadeiro. Temos também que
duas proposições serão iguais se apresentarem as mesmas condições e os mesmos
objetos sob essas regras, pois as duas expressões acima ( (x + 1)² = 2(x + 1) e X² = 1) só
são consideradas verdadeiras para os objetos +1 e -1 e só são consideradas iguais
por, em última instância, denotarem a mesma referência: o valor de verdade
verdadeiro.
Frege toma como ponto de partida o fato que objetos possuem nomes, e
que, havendo, pois, a igualdade, ela pode referir-se tanto à igualdade entre objetos
quanto à igualdade entre nomes ou sinais de objetos. Na Conceitografia, Frege
assume a última alternativa, entendendo a igualdade como equivalência entre os
nomes dos objetos. Todavia, à medida que o próprio autor prossegue, essa escolha
acarretará problemas. Quando dizemos que um objeto A é igual a um objeto B, ou
simplesmente que A=B, estamos dizendo que dois objetos, de nomes distintos, são
a mesma coisa? Na Conceitografia, duas sentenças ou termos representados por
um sinal A e outro B serão consideradas iguais se seu conteúdo conceitual for o
mesmo. Mas o fato de serem designadas por nomes diferentes não acrescenta uma
diferença nos pensamentos asseridos? Para Frege, a designação diferente de um
mesmo objeto produz diferenças informativas significativas:
22
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência, in Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 129.
23
Idem, pg. 130.
24
Idem.
25
No que diz respeito ao sentido, Frege defende que este, como modo de
apresentação do objeto, corresponde à fuga do argumento do absurdo, pois a partir
do sentido, o valor cognitivo de sentenças como A = B fica assegurado.
Afirma Frege:
25
Ibidem.
26
26
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência, pg. 131.
27
TEXTOR, Mark. Frege – On Sense and Reference, pg. 14, v. digital.
27
relação com esse objeto, como uma relação de equivalência. Essa informação é
extremamente importante, caso seja verdadeira, pois se essa relação
(nome/sentido/objeto) é válida para a nomeação de objetos como o que
denominamos Vênus ou Estrela da Manhã, também é válida para proposições,
conforme referido acima. E tanto mais importante quando pensamos que, se o
sentido não é arbitrário, mas um dos modos de apresentação do referente, o
reconhecimento do conteúdo informativo que uma pessoa tem ao apreender a
expressão "a estrela da manhã" ou "a estrela da tarde" em relação ao objeto (que,
por sua vez, também recebe a denominação "Vênus") não será apenas o
reconhecimento formal de uma atribuição ocasional ou convencional, mas sim o
reconhecimento de que essas atribuições são verdadeiras, pois são coincidentes
com os sentidos dados pelos referentes.
Esse tipo de conexão entre sentido e referência, mesmo que ocorra dentro
do espaço da linguagem, abre o campo para a discussão acerca do juízo e do que
vem a ser o verdadeiro, pois, em uma sentença, não se trataria mais de ser apenas
uma sentença afirmada ou negada, mas reconhecida em equivalência com o
verdadeiro, por conta de ela assinalar de modo apropriado a relação entre sentido e
referência nas instâncias às quais ela (a proposição) se aplica. O sentido, como
modo de apresentação de um objeto, ou de uma referência, torna-se o centro
daquilo que deve ser levado em conta em um juízo, não por ele ser aquilo que se
pode chamar de o verdadeiro ou o falso, mas sim porque o sentido apresenta a
relação entre a referência e a linguagem, não enquanto ele é em si mesmo, mas
enquanto ele é em seus múltiplos modos de apresentação, que se evidenciariam por
meio da linguagem, dos nomes ou expressões designativas, ou mesmo juízos
completos.
Essa consideração nos leva a uma observação feita por Klement (2004) 29,
que ressalta o fato de que, para Frege, o sentido geral de uma proposição possui
uma anterioridade ao sentido de suas partes constituintes. Ao falar sobre as
influências de Frege e Russell sobre o jovem Wittgenstein, Klement diz: “A evidência
para termos Frege como a principal influência (sobre Wittgenstein) deriva quase
29
KLEMENT, K.C. Putting Form Before Function: Logical and Grammar in Frege, Russell and Wittgenstein, in
Philosopher´s Imprint, Vol. 4, nº.2, Agosto, 2004.
29
Pelo que foi expresso até o momento sobre as considerações de Frege nos
artigos posteriores a 1890, o processo para o reconhecimento de uma proposição
como verdadeira parece assumir contornos bem distintos. Usualmente, verdadeiro
se dá quando uma proposição diz algo acerca do mundo, e esse algo, por
transposição, verifica-se no mundo. Por esse viés, quanto mais próxima for uma
sentença de um fato, mais verdadeira ela será. Frege, em contrapartida, considera
que a verdade das proposições independe de qualquer comparação entre imagem e
mundo. Como já observado pelos exemplos anteriores, o verdadeiro, além de ser
considerado um objeto, é referido pelos termos de igualdade ou equivalência, dentro
de uma estrutura de nomenclaturas, cujas regras são dadas pelo próprio cálculo
proposicional. A verdade, portanto, não seria dada por comparação ou transposição
com algo empírico, mas também não seria dada por nenhuma conexão psicológica.
A verdade de qualquer proposição parece ser dada de forma analítica, a partir da
relação, possivelmente ontológica, entre sentido e referência. A linguagem, ou um
juízo, expressaria um sentido, um modo de apresentação da referência que, por sua
vez, coincidiria com o objeto verdadeiro ou não. E dizemos ontológica, pois tal
relação entre sentido e referência parece revelar-nos uma dinâmica acerca do ser
das coisas, da identidade das mesmas, que é revelado pelos muitos sentidos pelos
quais uma referência possui.
30
Idem, pg. 01.
30
O que podemos perceber por essa citação é que os princípios que formam
as leis do ser verdadeiro não são espaciais e nem temporais e, portanto, não
pertencem ao assentimento humano. Há, portanto, uma distinção quando falamos
de homens localizados no espaço e no tempo, e quando falamos diretamente de leis
31
FREGE, G. Prólogo às Leis Básicas da Aritmética, (Trad. Celso R. Braida) pg. 08. Tradução revista: FREGE,
G. The Basic Laws of Arithmetic, pg. 15.
31
O motivo de Frege ampliar o campo dos argumentos tem a ver com sua
consideração acerca de sentido e referência. Essa é a segunda circunstância
característica. Para Frege, toda equação possui uma forma linguística e toda forma
linguística apresenta uma sentença assertiva, ela afirma algo. Em tais casos, a
sentença possui um sentido, um pensamento. Portanto, Frege trafega entre os
campos da aritmética e da linguagem, posicionando qualquer sentença, bem como
qualquer pensamento, sob a estrutura de expressão funcional. Isso significa que as
questões referentes ao campo da aritmética, bem como o posicionamento de Frege
em relação a ela, valerão também para todo o campo de ampliação que Frege
realizou em Função e Conceito, o que inclui a escolha feita por Frege, em relação às
opções tomadas tanto por Kant quanto por John Stuart Mill:
32
Frege, G. Função e Conceito, pg. 95.
32
33
Frege, G. Fundamentos da Aritmética, pg. 215.
34
Textor, M. Frege On Sense and Reference, pg. 09.
33
Um juízo que é sintético a priori não será justificado pelo exercício de uma
habilidade para definir um conceito, mas será justificado independentemente
da experiência. A discussão de Kant é alimentada pela pergunta sobre o que
esta justificação pode ser. Por exemplo, ele (Kant) argumentou que a
definição dos conceitos de 7, 5 e mais não é suficiente para justificar o meu
julgamento que 7 + 5 = 12 (Kant 1781/8: B 15-16).35
Frege afirma, contra Kant, que na aritmética nós não precisamos ter
intuições, representações de coisas particulares no espaço e no tempo,
para justificar nossos juízos. Nossa habilidade para definir conceitos gerais
e para traçar inferências é nossa fonte do conhecimento aritmético. 37
35
TEXTOR, M. Idem. A citação de Textor, ao final da passagem, remete à Crítica da Razão Pura, passagens B
15 – 16.
36
KANT, I. Crítica da Razão Pura, A715 – B744.
37
TEXTOR, M. ibidem, pg. 10.
34
Frege opta pelo conhecimento aritmético ser analítico. Essa escolha não é
gratuita e carrega consigo inúmeras consequências. O principal argumento de Frege
contra Kant é que o conhecimento não pode ser construído por conceitos
instanciados de objetos espaço-temporais, pois a intuição de objetos dessa natureza
não contempla um problema de outra natureza: a de que tudo o que é pensável,
para Frege, pode ser contado. Na terminologia fregiana, isso implica dizer que tudo
o que cai sob um conceito preciso é contável. E isso acarreta uma oposição ao
pensamento kantiano. Se tudo o que cai sob um conceito preciso é contável, então
cada parte componente de um conceito é contável, e isso faz com que um conceito
torne-se, na verdade, um conjunto. De fato, Textor afirma que a definição corrente de
“contável” se aplica a conjuntos. Textor afirma:
Frege inviabiliza a atuação da intuição, tal como Kant a concebia, para lidar
com a amplitude da aritmética. Afinal, se o domínio de tudo o que é contável excede
38
Idem.
39
FREGE, G. Fundamentos da Aritmética, pg. 208.
35
o domínio dos objetos que podem ser conhecidos pela intuição espaço-temporal,
então precisamos de um elemento adicional, cuja capacidade de generalização vá
além do caso restrito da intuição a priori. E, para tal, esse conhecimento deve estar
arraigado na aritmética.
Vimos que a opção de Kant, de que o conhecimento aritmético seja sintético
a priori, acarreta a necessidade de recorrer a uma suposta intuição espaço-temporal
que, em certa medida, se aproxima perigosamente de uma visão empírica da
aritmética. Frege rejeita essa posição, e o faz por dois motivos: o primeiro deles é
que a própria aritmética, em toda sua proporção, se estende para além de quaisquer
relações espaço-temporais. Disso decorre que, se um juízo sintético a priori só pode
ser justificado pela intuição espaço-temporal, e essa intuição não é o suficiente para
justificar todas as relações da aritmética, então o conhecimento aritmético só pode
ser analítico.
O segundo motivo é que, para Frege, as complexas relações da aritmética
são coextensivas às relações entre conceitos e objetos na construção do
pensamento, expressas pelo juízo, uma vez que tudo o que pode ser pensado pode
ser contado. Porém, as regras do juízo são as regras da lógica, o que faz com que a
aritmética tenha uma relação muito profunda com as leis da lógica. E as leis da
lógica (leis do ser verdadeiro) são analíticas.
Seguir, portanto, com o raciocínio de Mill, de que a aritmética é sintética a
posteriori implica, em última instância, que o mesmo se dirá da lógica. E seguir o
raciocínio de Kant, por sua vez, acarretará sujeitarmos a lógica a uma intuição
espaço-temporal restrita, desprovida de universalidade.
O projeto de Frege não é de modo algum estrito, uma vez que sua análise
da aritmética conecta-o com a lógica e com a linguagem.
inclusivo; pois não lhe pertence apenas o efetivamente real, não apenas o
intuível, mas todo o pensável. Não deveriam, portanto, as leis dos números
manter com as do pensamento a mais íntima das conexões?40
40
FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmética, §14, pg. 217.
37
41
FREGE, G. O Pensamento, in: Anais de Filosofia, pág. 284.
38
Segundo Frege:
Em tais condições, considera Frege, nada impediria que, com o tempo, uma
pessoa pudesse chegar à conclusão de que a soma entre 2 mais 2 seja 5, ao invés
42
FREGE, G., Os fundamentos da Aritmética, pg. 227, § 27.
43
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência, pg. 134.
44
FREGE, G. Prólogo às Leis Básicas da Aritmética (Trad. Celso R. Braida), pg. 9.
40
de quatro, pois alguém poderia concluir que os números evoluem, de modo que, no
princípio, 2 + 2 era igual a 1, depois a 2 e, no presente momento, igual a 4. Nada
impediria tal pessoa de pensar que o próximo da lista seria 5. Mas tal representação
só seria possível se os próprios números e a concepção de suas relações fossem
igualmente psicológicas. Ainda segundo Frege, mesmo tal conclusão acerca dos
números não poderia ser questionada, pois ela seria verdadeira para aquela pessoa
e, sendo os números representações subjetivas, não haveria nenhuma referência
que obrigasse uma pessoa a rever sua interpretação, exceto, talvez, o consenso
popular, que continuaria afirmando ser 2 + 2 = 4. Porém, em tal situação, ninguém
poderia objetar que, talvez um dia, o consenso mudasse e se adequasse ao daquela
pessoa, e todos passassem a consentir que 2 + 2 = 5.
45
FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmética, pg. 226.
41
Sendo construídas por derivação, tais leis ou verdades não deixam de ser
arbitrárias e podem ser ressignificadas com o tempo, passando a representar outras
coisas, estabelecidas por consenso. Novamente, caímos em um relativismo. As leis
da lógica e as leis do verdadeiro estariam sujeitas ao pensar, pois não seriam
apreendidas, mas sim construídas por derivação empírica. E, como construções do
pensar, submetem-se ao domínio da psicologia, pois se enquadrariam no campo
subjetivo.
46
FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmética, pg. 226.
47
FREGE, G., Os Fundamentos da Aritmética, pg. 211.
42
48
Idem, pg. 226.
49
Idem, pg. 225.
50
Idem, pg. 226.
43
51
DUMMETT, M. Frege, Philosophy of Language, pg. 464.
52
Idem, pg. 464.
44
Frege descreve objetos físicos como wirklich, e chega perto de dizer que as
percepções e ideias subjetivas o são, também. Como exemplos do que não
é wirklich, ele instancia o eixo da terra, o centro de massa do sistema solar,
e o equador. Ele nega que os números de qualquer tipo, ou objetos lógicos,
em geral, sejam wirklich. Dos pensamentos, ele afirma que podem ser
chamados wirklich apenas num sentido especial, e que, embora não sejam
totalmente unwirklich, a sua Wirklichkeit é de um tipo muito diferente da das
coisas.54
Dummett conclui que o uso que Frege faz de wirklich seria algo equivalente
a causalmente efetivo, no sentido de algo que exerce efeito sobre outra coisa. Dessa
forma, algo que não é wirklich ainda assim poderia ser objetivo e real. Como vimos
anteriormente, o sentido de objetivo, para Frege, é o de ser independente ao nosso
53
Ibidem.
54
DUMMETT, M. Objectivity and Reality in Lotze and Frege, In: Frege and Other Philosophers, pg. 98.
45
sentir, intuir ou pensar. E não ser wirklich, ou efetivo, equivaleria a não atuar
diretamente sobre os sentidos. É o que Frege afirma na citação abaixo:
55
FREGE, G. Prólogo às Leis Básicas da Aritmética, pg. 08.
46
A única maneira, portanto, de garantir que algo seja o mesmo para todos é
tomá-lo como ser objetivo em um sentido que vai além da mera
intersubjetividade, e envolve a sua independência de todas as mentes
pensantes. Expresso de outra forma há, para Frege, uma inferência de que,
para algo ser o mesmo para todos, implica ser objetivo no sentido mais
forte. É apenas a esta inferência que ele repetidamente recorre: o fato de
que um pensamento, ou o objeto ao qual se refere, é independente de
qualquer pensador particular, deduz a sua independência de todos os
pensadores, “está defronte” de todos eles.56
sentidos (Sinne), e será fato se o pensamento for verdadeiro. E isso acarreta uma
guinada considerável em relação à concepção empirista da verdade. É o caso de um
pensamento ser verdadeiro que acarreta o fato, e não o contrário.
Por fim, vemos uma conexão que transpareceu em todo esse primeiro
capítulo que relaciona o sentido com o pensamento. Tomando como base que, a
partir desse ponto, estamos caminhando no domínio do objetivo não-sensível,
verificaremos qual a relação entre sentido e referência e o pensamento, e como um
pensamento pode ser considerado o verdadeiro ou, em outras palavras, como o
pensamento se torna um fato, ou um nome do verdadeiro, uma vez distanciados da
ideia de verdade como correspondência.
pensamentos são transmitidos de uma geração a outra. 58 Isso não pode ocorrer, por
exemplo, com as representações que temos das referências. Essas, por serem
subjetivas e pessoais, não encontram ponto de contato entre as pessoas. Na
analogia que Frege estabelece entre o olho e o microscópio, mesmo que
cristalizássemos a imagem vista pelo olho de alguém e depois mostrássemos à
mesma pessoa, ela ainda assim não teria a mesma representação, pois criaria uma
representação pessoal e única sobre outra representação pessoal e única. O mesmo
não ocorre com o sentido.
Frege afirma:
Talvez pudéssemos dizer: assim como a uma mesma palavra uma pessoa
pode associar uma representação e outra uma representação diferente,
também uma pessoa pode associar a ela um sentido e outra um sentido
diferente. Entretanto, a diferença então reside só no modo dessa conexão.
Isso não impede que ambos apreendam o mesmo sentido; seja como for,
eles não podem ter a mesma representação.59
De acordo com essa passagem, assim como duas pessoas podem atribuir
representações diferentes para a mesma referência, ambas poderiam atribuir
sentidos diferentes também. A grande diferença é que um não conseguiria jamais
compreender a ideia do outro, embora ambos pudessem apreender os diferentes
sentidos atribuídos à referência, pois, diferente das representações que temos das
coisas, que são subjetivas, os sentidos são objetivos e, portanto, possuem
objetividade e independência de minha imaginação ou de minhas concepções
pessoais e emoções, não pertencendo à subjetividade. O sentido é, portanto, o
pensamento.
Mas por que queremos que cada nome próprio tenha não apenas um
sentido, mas também uma referência? Por que o pensamento não nos é
suficiente? Porque estamos preocupados com seu valor de verdade. [...]
É, pois, a busca da verdade, onde quer que seja, o que nos dirige do
sentido para a referência.60
composto por termos conceituais (nomes de conceitos), e nomes próprios, que são
os nomes dos objetos. Cada nome ou termo designa um referente, que será um
conceito ou objeto. E a soma desses nomes, que expressam sentidos, conferirá um
sentido próprio para a sentença, como um todo. De acordo com Haddock:
proposição seria dada pela equivalência das relações que circundam as partes
constituintes desse diagrama, enunciadas por , , e . Esses elementos
correspondem à representação de relações funcionais entre os sentidos e
referências, de modo que eles não se complementam aleatória ou arbitrariamente,
mas segundo uma relação de função. Esse pensamento será verdadeiro se a
referência da sentença for equivalente ao sentido da sentença, e isso é dado por
suas partes constituintes. Portanto, para Haddock, a relação dada é intrínseca à
própria proposição e suas conexões são necessárias e decorrentes do que foi
estabelecido entre as partes constituintes, cujos sentidos e referências são
deduzidos dos nomes próprios e termos conceituais utilizados.
Haddock conclui:
64
HADDOCK, G.E.R. Op. Cit., pg. 71.
53
Mas existe um elemento que chama a atenção: em uma sentença, será que
RS ou SS corresponde à mera soma de suas partes (<S C, SN> e <RC, RN>)? Será que
o “muro” é a soma de tijolos, ou seria um objeto distinto dos próprios tijolos que o
compõem? Se uma sentença é formada por partes constituintes, quais são as regras
que determinam a formação de sentido e referência do todo a partir das partes?
Como uma referência e sentido de uma afirmação podem ser parâmetros para a
formação das partes? Acerca dessa questão, existe um ponto que gostaríamos de
abordar. Trata-se do debate empreendido por Frege contra John Stuart Mill e os
65
FREGE, Gottlob. Apud CARL, Wolfgang, pg. 07.
54
A mesma crítica ocorre no que diz respeito à linguagem. Para Frege, uma
palavra isolada não pode ser totalmente conhecida. Somente no contexto seu
significado pode aparecer. Isso significa que uma proposição é mais, em termos de
significado, do que a simples soma (agregação) de seus termos isolados. Ela tem
que ser tomada em seu todo.
66
FREGE, Gottlob; Fundamentos da Aritmética, pg. 200.
67
Idem, pgs. 200-201.
68
FREGE, G; Fundamentos da Aritmética, pg. 204.
55
69
KLEMENT, Kevin C. Frege and the Logic of Sense and Reference, pg. 59.
56
Uma terceira alternativa para o dilema parece ser oferecida por Kemmerling
(2011), que afirma, em seu artigo intitulado “Thoughts without parts: Frege´s
Doctrine”, que o “pensamento é uma entidade amorfa, mas que pode ser
decomposta, em mais de uma forma, em partes”.71
70
DUMMETT, M. apud KLEMENT, Op. Cit. pg. 59-60.
71
KEMMERLING, A.; Thoughts without parts: Frege´s Doctrine, in: Grazer Philosophische Studien, pg.
165-188.
72
Idem, pg, 166.
73
GREIMANN, D. Did Frege Really Consider Truth As An Object?, in: Essays on Frege´s Conception of Truth,
2007, pg. 125.
57
Uma palavra parece assim não ter conteúdo se lhe falta uma imagem
interna correspondente. Deve-se, porém, atentar sempre a uma proposição
completa. Apenas nela têm as palavras propriamente significado. As
imagens internas que porventura nos venham à mente não precisam
corresponder a elementos lógicos do juízo. É suficiente que a proposição
como um todo tenha sentido; isto faz com que também suas partes ganhem
conteúdo.77
77
FREGE, G. Os Fundamentos da Aritmética, pg. 249.
60
portanto, não pode ser a referência da sentença; pelo contrário, deve ser
considerado como seu sentido.78
Todo aquele que não admite que um nome tenha uma referência não lhe
pode atribuir nem negar um predicado. Neste caso, a consideração acerca
da referência do nome se torna supérflua; já que não se quer ir além do
pensamento, poder-se-ia contentar-se com o sentido. Se tudo quanto
importa fosse apenas o sentido da sentença, fosse apenas o pensamento,
então seria desnecessário preocupar-se com a referência de uma parte da
sentença; pois para o sentido da sentença somente importa o sentido desta
parte, e não a referência desta parte [da sentença].79
78
FREGE, G. Sobre o Sentido e a Referência, pg. 137.
79
Idem, pg. 138.
61
Isto significa que ele não pensava ser possível para nós nos colocarmos
fora dos limites da linguagem para então considerar a relação entre
linguagem e mundo, porque, na sua visão, toda fala já pressupõe esta
relação semântica.81
Uma vez expresso dessa forma, devemos considerar que toda sentença
será uma sentença cujo conteúdo semântico será um conteúdo acerca do universo,
desde que tais sentenças possuam uma referência. Uma sentença que não possua
uma referência não pode sequer ser considerada verdadeira ou falsa. Ela não possui
valor de verdade, pois não possui nenhuma referência. O porquê de toda sentença
referir-se a uma certa referência, e o motivo de, em todo juízo, ocorrer
necessariamente a passagem do sentido para a referência em uma estrutura
assertiva são pontos relacionados à concepção fregiana de existência, como
veremos a seguir.
81
Idem, pg. 322
82
Ibidem, pg. 325.
83
HADDOCK, G.E.R; A Critical Introduction To The Philosophy of Gottlob Frege.
63
Entender, portanto, o que vem a ser um objeto nos leva a compreender o que
significa ser uma referência para uma sentença.
Ainda que, de acordo com Haddock (2006) não seja claro o que vem a ser
um objeto, sabemos, desde a Conceitografia, que ele é denotado por um nome
próprio. O objeto, portanto, aparece para nós por meio de um nome próprio (na
acepção em que Frege toma os nomes próprios). Haddock ainda afirma que os
nomes próprios não são a única coisa que compõe uma asserção:
84
Idem, pg. 69.
85
FREGE, G. Digressões sobre Sentido e Referência, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 159.
64
86
FREGE, G. Op. Cit. Pg. 159.
87
HADDOCK, G. E. Op. Cit., pg. 70.
65
referências como partes constituintes, ligados por uma conexão ontológica entre
nomes próprios/palavras conceituais a sentidos, e estes às referências.
Essa conexão ontológica, no entanto, não deixa de ser uma conexão lógica,
segundo uma sugestão de Frege em carta a Russell, como vemos abaixo:
“À decomposição da asserção corresponde uma decomposição do
pensamento, e a essa também algo na região dos referentes, e eu quero chamar
isso um fato lógico original”.88
Mais uma vez, temos uma conexão entre a linguagem, o pensamento e a
região das referências como intrinsecamente correlacionados. De certa maneira,
temos uma interdependência, na qual a decomposição de uma asserção se segue
de uma decomposição do pensamento, mas também uma decomposição da
referência, e tais cadeias de decomposições parecem ser simultâneas, pois são
correspondentes e constituem, segundo Frege, um fato lógico original.
Isso nos sugere que o pensamento, a asserção e a referência encontram-se
ontologicamente conectados, e os fios de sua conexão não seriam outra coisa que
uma conexão lógica imanente.
Não devemos considerar, no entanto, que essa conexão se dê como uma
espécie de síntese kantiana que une ideias no ato de julgar. De acordo com
Greimann (2007)89, essa visão dos contemporâneos de Frege não era partilhada
pelo autor que, assumindo caminho inverso, assume o caminho da relação e não da
síntese:
Ele assume que a unidade de um pensamento não é constituída pelo ato de
síntese, mas por um mecanismo que ele chama “saturação”. Essa metáfora
encapsula a ideia que a parte componente predicativa de um juízo – o
conceito – une a si mesma com a parte componente não-predicativa – o
objeto – para formar um conteúdo judicável, sem que haja qualquer ato
psicológico constituindo a unidade.90
88
Apud Haddock, G.E. pg. 70.
89
GREIMANN, D. Did Frege Really Consider Truth As An Object?, in: Essays on Frege´s Conception of Truth,
2007, pg. 125.
90
Idem, pg. 127.
66
Importa mostrar que o argumento não é parte da função, mas que compõe
juntamente com a função um todo completo. A função, por si só, é dita
incompleta, necessitada de complementação ou insaturada. É aqui que as
funções diferem essencialmente dos números.92
91
SLUGA, Hans; pg. 141.
92
FREGE, G. Função e Conceito, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 86.
93
Idem.
67
Por essas passagens, vemos que, a partir da função e dos argumentos que
caíram sob a função, é possível identificarmos uma grande similaridade entre a
formulação matemática e a formulação lógica, o que, por sua vez, nos remete ao
conceito, como Frege afirma:
A parte saturada implica o objeto desta, que será expresso por um nome
próprio, designador de um objeto, que tem as mesmas propriedades do argumento
matemático. Frege, na realidade, coloca o termo objeto como o termo geral que
representa tudo o que não é função, ou seja, tudo o que não é incompleto:
96
Idem.
97
Op. Cit., pgs. 95 – 96.
98
Idem, pg. 96.
99
FREGE, Gottlob, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pág. 117, nota 19.
69
Dado esse fato, um conceito nunca pode possuir um nome próprio, assim
como um objeto nunca pode ser predicativo, nem tampouco possuir um termo
conceitual. Esse é o problema que Frege traz à tona na questão com Benno Kerry.
100
Idem, pg. 121.
101
DUMMETT, Michael. 1973, Pg. 401.
70
A distinção feita por Frege afirma que, nesse caso, o uso de “o conceito
‘cavalo’” jamais se constituiu em um conceito, mas sim, desde seu início, em um
nome próprio. O caráter distintivo entre conceito e objeto, quando apresentado nas
proposições, é indicado através do uso dos artigos. Quando o artigo é definido
singular (o, a), aponta para um objeto, uma referência, e quando indefinido (um,
uma), incide sobre um conceito. Ademais, de acordo Sluga (1980), a distinção entre
função e objeto reside nas características completo e incompleto, sem os quais não
poderíamos formar expressões complexas.102
tomada como uma definição propriamente dita. Não se pode exigir que tudo
seja definido, da mesma maneira que não se pode exigir do químico que
decomponha todas as substâncias. O que é simples não pode ser
decomposto, e o que é logicamente simples não pode ter uma definição
propriamente dita.104
Ao se descobrir algo que é simples, ou que, pelo menos por enquanto, deva
ser tomado como simples, deve-se forjar-lhe uma denominação, já que a
linguagem não contém originalmente uma expressão que lhe corresponda
exatamente. Mas não é possível recorrer a uma definição para introduzir o
nome do que é logicamente simples. Para isto, só resta levar o leitor ou o
ouvinte, por meio de sugestões, a entender o que se quer dizer com essa
palavra.105
104
FREGE, G. Sobre Conceito e Objeto, Op. Cit. Pg. 112.
105
Idem.
72
106
FREGE, G.; Digressões sobre Sentido e referência, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 162.
73
Pelo que observamos até aqui, a trajetória de Frege nos levou de uma
dúvida originária de seu logicismo, a de saber o que vem a ser a verdade, se ela não
é a verdade da correspondência entre linguagem e mundo, para uma revisão lógica
da estrutura do pensamento na concepção fregiana.
pode também ser chamada de silogismo categorial. Esse tipo de raciocínio abre um
horizonte de permutas e possibilidades que encantou os lógicos até Kant, mas que
ocultou muitas coisas importantes, como uma cortina de fumaça dentro da própria
linguagem, mascarando a realidade das relações lógicas que a fundamenta. A
principal relação ocultada é a da primazia da generalidade sobre a particularidade.
108
RICKETTS, T. Concepts, Objects and the Context Principle, pg. 153.
109
HADDOCK, G. E. R. A Critical Introduction to the Philosophy of Gottlob Frege, pg. 75.
78
110
RICKETTS, T. op. cit., pg. 156.
111
FREGE, G. Conceitografia, §9.
79
112
FREGE, G. Fundamentos da Aritmética, pg. 249, §60.
80
113
RICKETTS, T. op. cit., pg. 157.
114
HINTIKKA, Jaakko, Existence and Predication from Aristotle to Frege, pg. 360.
81
O que Frege ressalta é que todas as expressões utilizadas por Pünjer para
representar o termo “é”, ou seja, “a ideia que surge como afecção de algo”, “a ideia
que não é uma ilusão”, “o conceito ao qual corresponde algo de experienciável”,
além de “existente” e “ente”, na realidade, correspondem à mesma coisa, ao mesmo
problema. Todos esses termos, na prática, não possuem sentido ou, como Frege
afirma, nenhum conteúdo é atribuído. Em outras palavras, considerando que, para
Frege, sentido é a forma como um objeto se apresenta, e sempre possui um valor
cognitivo, dizer que todas as expressões acima não acarretam sentido à sentença,
só pode significar, como Frege o explicitará, que todos os termos implicam a
afirmação da própria identidade consigo mesmos. Para Frege, dizer “Esta mesa
existe” ou “Mesas existem” é o mesmo que dizer “Mesas são iguais a si mesmas”. 115
115
FREGE, G. Diálogo com Pünjer sobre a Existência, in Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 183.
82
116
HAAPARANTA, L. Sobre a Existência em Frege, in Antologia, pg. 329.
83
referência aplicados a eles. Objetos caem sob conceitos, que engendram valores de
verdade. Se dois conceitos possuírem o mesmo conjunto de objetos caindo sob
eles, o valor de verdade da sentença em que o conceito aparecer permanecerá o
mesmo, ou seja, sua referência não se altera, embora seja alterado o sentido da
sentença. Em uma definição intensional, essa alteração teria consequências, mas,
para Frege, no âmbito da lógica, o sentido só importa quando relacionado com a
referência, pois é à referência que se aplicam as leis lógicas.
Todavia, é importante termos em conta que as extensões dos conceitos não
constituem sua referência. É esse equívoco que pode fazer pensar que sentido é
atribuído ao conceito, e referência ao objeto. Na realidade, embora a extensão
conceitual seja composta por objetos, a referência de um termo conceitual é um
conceito, e não um objeto. Apesar disso, essa concepção não contradiz o
extensionalismo da lógica fregiana, mas desperta a questão, da qual se ocupará
Frege, de saber precisamente em que sentido pode um conceito ser uma referência.
E esse procedimento será importante para nós, pois dele será decorrente a
concepção lógica de existência em Frege.
Essa dificuldade é ainda agravada quando não fica claro que, em uma
sentença, a chamada “relação sujeito-predicado” oculta dois tipos de relações, a de
um objeto e um conceito, e a de um conceito com outro conceito. Como vimos, um
conceito possui naturalmente um caráter predicativo. Como um tipo de função, ele
sempre solicita algo sobre o qual predicar, que o complete. Todavia, tanto um objeto
pode vir a cair como argumento do conceito, como também um conceito pode
ocupar o lugar do argumento. Essa sutileza, quase sempre passada despercebida
85
na linguagem, possui, para a lógica, uma grande relevância, como veremos no que
se segue.
120
Idem, 163.
86
121
Idem, Pg. 165.
87
Em contrapartida, Frege alega que existe outro tipo de conceito, que não é
um conceito de primeiro nível, mas um conceito de segundo nível, e que ocorre em
expressões do tipo “Há pelo menos uma raiz quadrada de 4”. Em casos como esse,
o que se predica não é nada acerca dos números +2 ou -2, opções de objetos que
caem sob o conceito ser raiz quadrada de 4, mas sim sobre o próprio conceito
apresentado.
Também aqui algo é predicado; mas não um conceito de primeiro nível, mas
um conceito de segundo nível. De modo similar a que Jena se relaciona à
cidade universitária, também se relaciona raiz quadrada de 4 à existência-
há (Esgiebtexistenz).122
122
FREGE, G. Carta a H. Liebmann, in: Lógica e Filosofia da Linguagem, pg. 191.
88
Para tornar mais clara a distinção entre uma relação de primeiro nível e uma
relação de segundo nível, vale analisar, na notação fregiana, como as duas relações
se expressam.
Em uma relação de primeiro nível, temos, por exemplo, P(x), indicando que
o conceito de primeiro nível P solicita uma complementação que é representada por
(x), variável que indica que objetos caem sob o conceito P, mas tais objetos não
foram inventariados em um percurso de valor. Em um segundo caso, temos uma
sentença como Existe um x, tal que P(x). Na notação fregiana, essa sentença
assume a forma ~x ~ P(x). Um enunciado de segundo nível, como o de existência,
não pressupõe o conceito de primeiro nível P, criando uma dupla valência: ~x ~( )
(x). No primeiro exemplo, o argumento é o objeto (x). Em contrapartida, o conceito P,
no segundo exemplo, é que ocupa o espaço de um argumento.
A existência, portanto, não pode predicar sobre objetos, mas apenas aos
conceitos que nela caem. Um enunciado como “Aristóteles existe” não poderia,
nesse caso, nem ser verdadeiro nem falso. Ele simplesmente não possui sentido,
pois Aristóteles é um objeto, não lhe cabendo a predicação de existência, bem como
nenhuma predicação de conceitos de segundo nível. Mas dissemos acima que
existência, quando usada como conceito de primeiro nível, aplica-se a objetos.
Novamente retomamos que, no caso de ser um conceito de primeiro nível, a
predicação é auto-evidente, desnecessária porque não contém nenhum conteúdo. A
existência como conceito de segundo nível, tal como Frege a aborda aqui, não pode
ser atribuída a nenhum objeto, pois ela implica um conteúdo, ela informa algo acerca
dos conceitos que caem nela.
125
FREGE, G. Digressões sobre Sentido e Referência, op. Cit., pg. 166.
91
CONCLUSÃO
Primeiramente, partimos da concepção de sentido e vimos como Sinn se
identifica com o pensamento. Sendo o sentido algo objetivo e independente do
pensar subjetivo, o pensamento é algo a ser apreendido, algo que, na medida em
que é apreendido pelo pensar, o é como uma unidade, uma totalidade estruturada. A
ocasião na qual o pensamento torna-se estruturado em partes na linguagem é no
ato do juízo, cujo propósito é o reconhecimento do verdadeiro em um pensamento.
Nessa situação, passamos do pensamento para o núcleo da proposição, entramos
no reino da linguagem e, como tal, decompomos o pensamento e buscamos passar
do sentido para a referência.
BIBLIOGRAFIA