CartograFIOS - Leitura

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Fernanda Mélo

Cartogra fios
a n a r r a t r i z
d e u m

performances entre contação de histórias, teatro e educação


CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS, HUMANAS, LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
PPGArC - CURSO DE MESTRADO

FERNANDA DA SILVA ARAÚJO MÉLO


CARTOGRAfios DE UMA NARRATRIZ:
performances entre contação de histórias, teatro e
educação

Natal/RN
2020

Performances entre contação de histórias, teatro e educação


CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ
FERNANDA DA SILVA ARAÚJO MÉLO

CARTOGRAfios DE UMA NARRATRIZ:


performances entre contação de histórias, teatro e
educação

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes


Cênicas, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito parcial para a obtenção do título de mestra em Artes
Cênicas.

Linha de Pesquisa: Práticas investigativas da cena - poéticas,


estéticas e pedagogias

Orientadora: Profa. Dra. Karyne Dias Coutinho

Natal/RN
2020

Performances entre contação de histórias, teatro e educação


CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Norte como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes Cênicas

Por Fernanda da Silva Araújo Mélo

BANCA EXAMINADORA
[Orientadora]
Profa. Dra. Karyne Dias Coutinho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

[Membro interno]
Profa. Dra. Naira Ciotti
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

[Membro externo à instituição]


Profa. Dra. Luciana Hartmann
Universidade de Brasília

[Membro externo à instituição]


Profa. Dra. Ana Paula Abrahamian de Souza
Universidade Federal Rural de Pernambuco

Natal/RN
2020

Performances entre contação de histórias, teatro e educação


i s s e r t a ç a o a
i c o e s s a d
ded

a n c i s c a ,
bisavo Fr

v o X i .
minha
Cantando, celebrai, oh Anciãos,
A história de nossa raça.
Que me seja dado ver em minha alma
O amor em todos os rostos.
E todos os espíritos que vieram antes,
O poder mágico que eles adquiriram.
A Tradição Sagrada que me transmitiram
Para que a memória não desapareça.
Oh Contador de histórias, sede minha ponte
Para aqueles outros tempos.
Para que eu possa Caminhar em Beleza
Com o ritmo antigo e a antiga rima.
Carta Contador de Histórias - As cartas do caminho sagrado
(SAMS, 1993, p. 248)
Agradecimentos

Agradecer é verbo. Ação. Que não dormindo juntes, pelos silêncios


consigo desvincular da palavra abraço. cúmplices, pelas gritarias e alegrias,
Imersa em um íntimo abraço, desses pelas tantas diferenças. Tenho certeza
que tem contato corporal intenso, que sou quem sou por que vocês existem.
com os olhos que se encontram no A toda minha ancestralidade, a
meio do trajeto, quero intencionar, toda minha família, agradeço evocando
primeiramente, que todas as pessoas do Vó Janete e vó Nenzinha, vô Eugênio e vô
mundo possam ouvir e contar histórias. Tota. Pelos colos, pelos ensinamentos,
Sigo, então, com palavras de ser abraço, pelos avisos de não subir no muro e
a quem esteve comigo nesta jornada. me deixar subir no muro, pelos doces e
Esta dissertação é uma grande bolos, pelas pamonhas, pelos forrós e
parceria com Karyne Dias Coutinho, principalmente pelas fogueiras em noite
minha orientadora, a quem agradeço de São João.
a autonomia dada, as conversas A todas as minhas amigas e a todos
descontraídas, o largo sorriso, a poesia os meus amigos por ouvirem as minhas
latente. A imensa generosidade e escuta tantas histórias sempre que eu preciso
neste processo e por me dar elementos e desejo contar: Clarissa Dutra, Helô
concretos para ser pesquisadora, com Carvalho, Jonara Medeiros, Rafa Filipe,
palavras certeiras e afeto em cada desejo Maria Juliana Sá, Rita Marize, Rita
partilhado. Cavassana, Natali Assunção, Rafa Silas
A minha mãe Janeide e a meu (e as maravilhosas da casinha amarela
pai Fernando, por todo amor na criação Regina Medeiros e Julia Fontes, que me
da própria história, por cultivarem deram chão no momento mais difícil
diariamente cantorias, linhas a costurar, dessa escrita), Gustavo Soares, Darllan
alimento que se partilha, rede, festa e da Rocha, Illian Narayama,Vinícius
principalmente esse gosto por aprender Mousinho, Adélia Oliveira, Roma Julia,
o que quer que seja. Guga Bezerra, Jeff Figueirêdo, Luciano
A minha irmã Lara e meu irmão Pontes, Warley Goulart e tantas/os
Xande, pelas noites de risadagem que preenchem meu coração e que

CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


participaram de momentos dessa escrita. Abrahamian pelas contribuições tecidas
A minha bem Claudinha Dalla de forma generosa.
Nora, por partilhar histórias e sorrisos e A Maysa, com toda sua paciência e
amor e cervejitas nas horas certas. cuidado na revisão.
As lentilhas Fabi Vidal e Marquinhos A Natã Ferreira pelas delicadezas
Rodrigues por insistirem no afeto na formatação e design do trabalho.
acadêmico, por serem leitora e leitor A UFPE por acreditar na formação
destas palavras, em momentos preciosos das/os professoras/es e investir em
e por incentivarem as minhas poesias minha formação durante estes dois anos.
e juntamente com a outra lentilha Dan A todas as pessoas que fazem o
Carvalho serem abraço forte em meu Colégio de Aplicação da UFPE.
cotidiano. A todas as/os estudantes com
A todas as contadoras e contadores quem já brinquei e a todes cologues e
de histórias que fazem dessa arte a escolas em que pude atuar.
imensidão que ela é. A todas as pessoas que já me
A Cacau Nóbrega, pelos anos de ouviram narrar.
criação conjunta na vida e na Cia. Agora A todas as mulheres que resistem
Eu Era. todos os dias.
A turma da Afetação (PPGArC / A todas as histórias que ainda vou
UFRN 2018), com cada pessoa e suas contar.
histórias singulares, que fizeram das
disciplinas do mestrado um espaço de
poetizar e resistir: Naara, Natali, Franco, com afeto,
Pablo, Natã, Lia, Yasmin, Alex, Junior,
Sarrasac, Márcio, José, Edceu, Elze, nanda
Daliana, Josy, Leila, René e a todes mais
com quem pude trocar neste tempo.
As professoras Naira Ciotti,
Luciana Hartmann e Ana Paula

Performances entre contação de histórias, teatro e educação


Resumo

Esta Dissertação cartografou com/do híbrido narratriz, em


performances como experiências de diálogo com discussões sobre corpo
criação de uma narratriz, envolvendo e performance, em teóricas/os como
na composição desta a discussão de Eleonora Fabião (2008), Luciana
corpo narrativo, performance art e Hartmann (2015), Paul Zumthor
performance narrativa (contação de (2014) e Suely Rolnik (2016), bem
histórias). Escolhendo diferentes como com o conceito de experiência
espaços educacionais como lócus em Jorge Larrosa (2014; 2018) e
performático, atravessando os das relações entre performance e
conceitos de artista/docente de educação trazidas pelas vozes de
Isabel Marques (2011; 2014) e Gilberto Icle (2017) e Mônica Bonatto
professor-performer de Naira Ciotti (2017).
(2014), compreendi o híbrido
narratriz dando corpopalavra a uma
artista/educadora que mobiliza
corporalmente questões onde
quiser instaurá-las. A investigação
aconteceu através da vivência de três
performances art provocadas pelas
questões que o universo da narração
oral trouxe a minha existência,
costuradas às memórias de meu
percurso pessoal como contadora de
histórias e a pesquisas de contadoras/
es de histórias brasileiras/os
sobre a narração oral no mundo
contemporâneo. Foi através dessas Palavras-chave: narração oral,
tecituras que destaquei três dos pedagogia do teatro, contação de
muitos fios presentes na composição histórias, performance, educação

CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Abstract

This dissertation mapped in dialogue with the discussions on


performances as experiences of body and performance: the theorists
creation by a narractress, gathering as Eleonora Fabião (2008), Luciana
for its composition the discussion Hartmann (2015), Paul Zumthor
of narrative body, performance (2014), and Suely Rolnik (2016), as the
art, and narrative performance concept of performance developed
(storytelling). By choosing different by Jorge Larrosa (2014; 2018), and the
educational spots as performance relationship between performance
locus, going through the concepts of and education brought by the voices
artist/teacher formulated by Isabel of Gilberto Icle (2017) and Mônica
Marques (2011; 2014) and professor- Bonatto (2017).
performer by Naira Ciotti (2014), I
understood the hybrid narractress
as providing body-word to an
artist/teacher who mobilizes issues
bodily anyplace she wants to. The
investigation happened through the
experience of three art performances
provoked by the questions that the
universe of oral narration brought
to my existence, sewed to the
memories of my personal path as a
storyteller, and to the researches
made by Brazilian storytellers on oral
narration in the contemporary world.
It was through those weavings that
I highlighted three of many sewing Key-words: education, oral
threads present in the composition narration, performance, storytelling,
with/from the hybrid narractress, theater pedagogy.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação


CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ
Lista de Figuras

Figura 1 – Espetáculo Lili inventa o cotidiano - P.136


mundo (1998) | Grupo de Teatro do Figura 15 – Tecido cotidiano,
Colégio Sagrado Coração - Caruaru-PE - Performance Nós de Nós | CAp UFPE
P.55 - P.144
Figura 2 – Intervenção poética Entre Figura 16 – Performance Nós de Nós |
f lores e palavras | Sesc Santa Rita-PE - CAp UFPE - P.149
P.65 Figura 17 – Nós de mim | IFPE Campus
Figura 3 – Entre f lores e palavras | Olinda - P.165
Confaeb Porto de Galinhas (PE) - P.66 Figura 18 – Os fios que carrego | IFPE
Figura 4 – Contando a história O leão e o Campus Olinda - P.167
ratinho | Livraria Vila 7 (PE) - P.68 Figura 19 – Performance Aos pés de
Figura 5 – Espetáculo Histórias Paulo Freire, o deserto virou desejo -
cantadeiras | 2014 - P.74 P.172
Figura 6 – Espetáculo O mar tá pra peixe! Figura 20 − Escuta-se. Escute a si. -
Cia Agora Eu Era (PE) - P.75 P.174
Figura 7 – Labirinto cartográfico - P.82 Figura 21 − Escutando Escola - P.178
Figura 8 – Cartografia de um corpopalavra Figura 22 – Nós de nós | Formação do
- P.85 Grupo Zumbaiar - P.180
Figura 9 – Cartografia de um corpopalavra Figura 23 – Cartografia, cartograFIO.
- P.90 - P.182
Figura 10 – Cartografia de um
corpopalavra - P.94 Capa, Ilustrações e Diagramação por
Figura 11 – Labirinto de um corpopalavra, Natã Ferreira
cartografia de si - P.123
Figura 12 – Costura-se. Costure a si -
P.129
Figura 13 –Nós de nós, rede de afetos -
P.132
Figura 14 – Mapa narrativo, labirinto

Performances entre contação de histórias, teatro e educação


CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ
SUMÁRIO

ARIADNE ENTR A NO LABIRINTO 20

ESTA DISSERTAÇÃO CONTA HISTÓRIAS 23

UM BROCADO DAS PESQUISAS SOBRE A ARTE DE CONTAR


HISTÓRIAS 33

ENSAIO 1
NARR ATRIZ DIZ: - AGOR A EU ER A 49
- VAMOS PERFORMAR, ESCOLA ? VAMOS PERFORMAR
COM ESCOLA! 62

ENSAIO 2
CARTOGR AFIA DE UM CORPOPALAVR A 81

ENSAIO 3
UMA NARR ATRIZ COSTUR ANDO O TEMPO 101
OS TRÊS FIOS DA NARR ATRIZ 111

ENSAIO 4
NÓS DE NÓS: CORPOPALAVR A EM PERFORMAÇÃO 123
CORPOPALAVR A , CORPO NARR ATIVO 143
PERFORMANCE NARR ATIVA PODE SER POLÍTICA? 164

FIM 179
REFERÊNCIAS 185

Performances entre contação de histórias, teatro e educação


ARIADNE ENTR A NO LABIRINTO

Naquele dia, a jovem Ariadne escolheu a melhor espada que havia no


palácio. Escondida, moveu-se por entre grandes portas, estreitos corredores,
despistou aquelas pessoas que queriam ajudá-la a vestir-se ou dizer como
comportar-se. Sabendo quem a esperava no labirinto, dormiu profundamente na
noite anterior, com a espada embaixo de seu travesseiro, parte de todo um plano
maior. Também levaria consigo linhas para marcar o caminho até encontrar o
Minotauro. Quando conseguisse o que queria, voltaria pelo caminho costurado.
E mostraria a cabeça de touro arrancada com sua espada e o próprio corpo
envolto em linhas. Se você está se perguntando sobre Teseu, devo-lhe dar certeza
de que essa aqui é outra história.
E bem na entrada do labirinto, Ariadne deixou alguns escritos pelos muros,
perto de onde amarrou forte o primeiro nó (guarde essa informação!) .
Transcrevo abaixo as palavras escritas no muro como um glossário. Algumas
foram inventadas e todas são necessárias para quem deseje habitar este labirinto.
Ah! Dizem que Ariadne também deixou por lá alguns dizeres, vozes do que
viveu. (Os dizeres estarão nos parênteses em negrito, são desejos
de ir além do escrito, tentando encontrar uma sonoridade que
se faça entre nós, quase uma oralidade, que indicam ações e
pensamentos) .
(suspiro fundo de alegria!)
Narratriz
Híbrido de narradora e atriz, que se costura em um labirinto de
possibilidades, desde as experiências na/com educação que se imbricam em seu
corpo ao fato de criar Escola como performer neste trabalho. É uma inventora
de si, uma artista e educadora e performer e ... que carrega em seu corpopalavra

20 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


o desejo de habitar espaçostempos mais generosos em encontros, histórias,
escuta, afeto, memória. Menos pelo híbrido e mais pelo prazer em reconhecer
suas singularidades ao contar sua história, é esta mulher que entra nos tantos
labirintos dos escritos que seguem. Vamos com ela? Vamos comigo? Seja bem-
vinda/o!

Corpopalavra
Corpopalavra é uma justaposição para dizer da existência da palavra num
corpo, afirmar que a criação da palavra é corporal, encarnada (LARROSA, 2014)
até chegar num corpopalavra híbrido, colorido de si, enfeitado do tempo de
quem narra histórias.

Espaçotempo
Irmanar espaço e tempo em um único espaço de escrita e num fôlego
que brinque com o tempo de dizer esta palavra. Faço a união destes dois
substantivos para f lutuar com a ideia de presente, passado e futuro. Assim,
juntos, espaçotempo possibilita outras imagens, como quando iniciamos a
narração de um conto e situamos quem escuta sobre onde estamos e em que
época.

Instabelecer
Ação de manter-se em energia de transformação, de forma a ativar sua
metaestabilidade, o que faz reconhecer que os contextos podem estar sempre
em mudança contínua. Diferentemente de estabelecer, que tem dentre suas
definições “criar, tornar-se, formar-se”, instabelecer busca um performar-se,
criar-se em rede, tornar-se em coletividade.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 21


Performação
Trata-se da per/formação docente, numa perspectiva que evidencia a
autoria de cada uma/um neste processo. Ter consciência da performance que
desempenha como artista/educadora e das escolhas que faz neste percurso,
sendo responsável por sua própria história, por desenvolver-se em sua pesquisa.
Uma pessoa em performação artístico/educacional é convidada a implicar-
se em seu processo de criar relações a partir de uma linguagem artística, de
tornar o espaçotempo um convite a viver um vínculo com as outras pessoas ao
aprenderem todas juntas com algo.

Descotidiano
Tornar o cotidiano suspenso nele mesmo, negar o tempo dos afazeres
cotidianos e se deixar levar para um espaçotempo descotidiano.

22 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


ESTA DISSERTAÇÃO CONTA HISTÓRIAS

Mulher. Latinoamericana. Branca. Brasileira. Nordestina. Do agreste de


Pernambuco. Caruaruense. Da terra de Marliete, fazedora de barro, de dona
Regina, benzedeira que nos rezava, de Francisca e Antonia (Xi e Toinha, minhas
bisavós por parte de mãe). Professora. Classe média. Trabalhadora. Feminista.
Bissexual. Divorciada. Talvez eu devesse eliminar todos esses marcadores, essas
categorias, tão patriarcais e unificadoras. Vou mantê-los. Vou manter porque as
palavras têm força e dizer estas palavras soltas não define exatamente quem eu
sou, mas manifesta elementos do que posso ser. Das frases que posso criar com
elas. Das histórias que aqui habitam.

Assim, não é errado dizer que feminismo de cada uma entra em


jogo com os feminismos possíveis das outras mulheres, os feminismos
preexistentes e que se recriam, se replicam, redefinem tempos e espaços e, ao
mesmo tempo, relacionam-se ao “feminismo” em um sentido genérico. Este
termo, quando usado no singular, não deve nos remeter a uma unidade, ela
mesma uma categoria patriarcal, mas, antes, nos levar a pensar em termos
de construção do “comum” e da presença da singularidade. Feminismo
é um significante que preenchemos com nosso desejo, nossos saberes e
ignorâncias, fundando uma trama, um tecido, uma rede- para usar uma
expressão bem contemporânea-, que ajuda a visualizar didaticamente
o contexto de nossas relações hoje. (TIBURI, 2019, p.42-43, grifos meus)

Contadoooooraaa de histórias! (Ahhhhhh! Inspiro profundamente


e suspiro! Deixando as palavras derreteram quando digo) . Ser
contadora de histórias me apresentou desaFios e privilégios de minha existência
até agora. Tornei-me mais atenta e forte (é preciso!) . Recomendo. Artista.
(Também recomendo!) Essa pesquisa foi/é vivida na corporeidade de uma
Performances entre contação de histórias, teatro e educação 23
artista e educadora, singularizada como narratriz, um híbrido de narradora e
atriz que ao se contaminar e ver o mundo deste lugar, resolveu inventar e dizer e
fazer algumas coisas para tentar organizar melhor o nó que é misturar isso tudo.
Não consegui! Estou falando na terceira pessoa, mas trata-se da minha pessoa
mesmo que vai falar.
Sempre senti que é impossível se envolver direito com um lugar ou
uma pessoa sem se envolver com todas as histórias daquele lugar ou daquela
pessoa. A consequência da história única é esta: ela rouba a dignidade das
pessoas. Torna difícil o reconhecimento da nossa humanidade comum.
Enfatiza como somos diferentes, e não como somos parecidos. (ADICHIE,
2019, p. 27-28)

Sou filha de dona Janeide, professora que se tornou advogada e funcionária


pública pra criar ‘a gente’ (meus irmãos e eu) melhor, com seu Fernando, advogado
e poeta que se tornou comerciante pra criar a gente melhor. Painho é contador
e escrevedor de histórias. Mainha é leitora voraz, escutadora de Caetano e
crocheteira. Talvez este fosse o primeiro nó dessa história, mas percebi que não
há um começo, meio e fim, nem uma linearidade no que se apresenta a seguir. Por
exemplo, antes de painho e mainha vem avós e avôs, Janete e Eugênio, Nenzinha
e Tota. Mas isso já é outra parte da história, que aqui também se conta.

(ESTA DISSERTAÇÃO CONTA HISTÓRIAS!!! Repito, tranquila.)


Uma história singular e recortada. Uma história para se somar a outras
histórias de pessoas que narram oralmente, num desejo de ampliar a narrativa
sobre quem conta histórias por esse Brasil e os modos como isso se dá, tentando
me distanciar de uma história única, porém reconhecendo as limitações

24 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


de escolher a mim mesma como cartografia 1 e por fim (re)conhecer o verbo
cartografiar e enxergar os cartografios que aqui foram tecidos. E, se me escolho
como sujeita, preciso apontar a motivação de querer compreender mais de minha
performação ao criar contando histórias, que por consequência, será/é/foi uma
parte, um fragmento, uma versão, um reconto de uma história maior, que envolve
e reconhece a existência de outras tantas vozes e com elas tenta conversar nesta
pesquisa.
Ser mulher e fazer pesquisa. Ser mulher e artista. Ser mulher e contar
histórias. Ser mulher e educadora. Ser mulher e... a palavra Narratriz está no
feminino por isso. Sublinho na escolha da palavra a compreensão de quem sou
e o fato de que, mesmo esta pesquisa não sendo sobre gênero, nem feminismo
diretamente, esta é uma das linhas mais firmes, o nó mais forte que costura tudo
que está se dizendo aqui. É uma mulher que escreve, discute, nomeia, inventa,
peleja, chora e ri com estas letras, palavras e frases. Uma mulher habitando o
múltiplo desejo imaginário, poético, físico, visível, intransponível de sê-la, ao
criar contando histórias. Por exemplo, perguntar-me o tempo todo como construir
um referencial que desse/dê conta das vozes das mulheres nesta pesquisa, foi/é
um grande aprendizado e que também ressoa na escolha das histórias que aqui
conto e como escolho conta-las.

1 - Será mantida a utilização do termo cartografia ao longo do texto, para que o trabalho também possa
contribuir com as pesquisas cartográficas em Artes Cênicas. Compreendo Cartografios como imagem
poética do que vivi no conjunto deste todo a partir dos caminhos metodológicos cartográficos.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 25


Os contos de fadas, os mitos e as histórias proporcionam uma
compreensão que aguça nosso olhar para que possamos escolher o caminho
deixado pela natureza selvagem. As instruções encontradas nas histórias,
nos confirmam que o caminho não terminou, mas que ele ainda conduz
as mulheres mais longe, e ainda mais longe, na direção de seu próprio
conhecimento. As trilhas que todas estamos seguindo são aquelas do
arquétipo da Mulher Selvagem, o Self instintivo inato. [...] O arquétipo
da Mulher Selvagem envolve o ser alfa matrilinear. Há ocasiões em que
vivenciamos sua presença, mesmo que transitoriamente, e ficamos loucas
de vontade de continuar. Para algumas mulheres, essa revitalizante “prova
da natureza” ocorre durante a gravidez, durante a amamentação, durante o
milagre das mudanças que surgem à medida que se educa um filho, durante
os cuidados que dispensamos a um relacionamento amoroso, o mesmo que
dispensaríamos a um jardim muito querido. (ESTÉS, 2018, p. 18-19)

Contar histórias é a arte que me cria no mundo, é um dos meus jardins


muito queridos, com a qual me permito viver diferentes imagens, como o labirinto
desta pesquisa. Ao me colocar nele, precisei de palavras distintas de uma grafia/
sentido usual, que ressoassem com a cartografia performática que foi vivida
também nestas páginas. Uma forma de contar sobre esta pesquisa que é de uma
contadora de histórias mapeando seus percursos, as personas que o envolvem
e os dizeres poéticos, conceituais, performáticos, corporais, afetivos e práticos
que aconTECEM para elaborá-la. Uma jornada de heroína, com fios espalhados
por muitas Ariadnes, negações e abraços de vários Minotauros, inclusive o que
me habita. Insisto no termo jornada, retirando-o da previsibilidade que o possa
constituir, para dizer que a jornada de uma HEROÍNA jamais poderá ser linear. Por
que quando criamos nossos rituais para existir enquanto mulheres, seguimos em
nossas jornadas plurais e diversas, mas ainda jornadas, com os corres cotidianos

26 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


e o fato de estar viva como fato heróico. Grifo a palavra ritual, por que poderia
dizer jogo, mas “O feminismo não é, nesse sentido, um jogo. Ele é muito mais um
ritual sem mística realizado contra um ritual místico diário de culto patriarcal
ao macho. (TIBURI, 2019, p. 42)”. Da mesma forma, afirmo a importância que
tem para mim instaurar e reconhecer rituais para contar histórias e do feminismo
como parte desse ritual, já que é um “significante que preenchemos com nosso
desejo”. (TIBURI, 2019, p.43)
A essa altura, suspeito que uma pesquisa de mestrado é uma grande revisão
da vida mesma. Essa que a gente (leia rapidamente como quem quer
perder o fôlego) dorme, acorda, chora, come, apaixona, goza, respira, move,
dança, grita, enfeita, contesta, abala, subverte e... (respira fundo e segue)
Por isso, anuncio que sempre estive num labirinto e aqui escolho contar sobre
estar nele. Perdida. Perdidas. Assim como fiquei em diversos momentos. Desde
o fato de entrar no curso do mestrado com um projeto que anunciava pesquisar
avaliação no ensino do teatro na educação básica, passando pelo desejo de olhar
para o meu saber-fazer como contadora de histórias e em meio a isso tudo me
envolver em estudos sobre currículo. Nas leituras do grupo de pesquisa Poéticas
do aprender: conexões entre arte e educação 2 pude partilhar esse trajeto, ser
provocada e habitar as minhas contradições, escavar um pouco de mim, ouvir
as outras pesquisadoras e encontrar minhas perguntas, escolhendo uma que
provocou o mover desta pesquisa que apresento.
Assim, ao habitar um corpo que pesquisa, escolhi que seria de pés descalços
e carregando nas mãos linhas, tecidos e agulhas que demarcaria o espaçotempo de

2 - Vinculado à Linha de Pesquisa Práticas Investigativas da Cena: Poéticas, Estéticas e Pedagogias


da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), coordenado pela professora Karyne Dias
Coutinho.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 27


(re)encontrar com Escola 3 . Esse fato que agora parece desconectado é importante
para toda esta narrativa. Minha relação afetiva, artística e profissional com
Escola perpassa minha trajetória discente e docente da educação básica até este
mestrado. Por isso, no plano físico e afetivo, o primeiro espaço escolhido para
realizar algumas ações da pesquisa foi o do Colégio de Aplicação da Universidade
Federal de Pernambuco (CAp UFPE), onde sou docente do componente curricular
Teatro desde 2016. Escolhi o CAp UFPE para habitar e ser habitada por ser meu
atual espaçotempo de criação como artista/educadora do Teatro. Quis partilhar
nesta escola as investigações da pergunta central que me move/moveu até aqui:

O que cria uma narratriz com educação para além da sala


de aula?
Nesta pesquisa, de cunho qualitativo e com inspiração metodológica
na cartografia, compus mapas narrativos dos rastros que me performaram
e performam narratriz, costurados sempre com perguntas para investigar a
pergunta central. Intuo que cada pergunta traz um nó e que nem todo nó é o fim
de um bordado, pode ser um erro, pode ser uma pausa, pode se transformar num
plural e desvelar um espaçotempo de ser “nós”, de existir coletivamente, movendo
meu corpopalavra e encontrando fios e desafios pelo caminho que se percorre

3 - Escola no texto é performer, que move ações e que mobiliza afetos. Não se quer trazer uma
generalização ou personificação no sentido de um discurso desconectado das implicações sociais,
econômicas, culturais. Pelo contrário, ao ressaltar o afeto da minha relação com o espaço escolar,
determinante na minha trajetória artística e educacional, posso traçar diálogos com ela e dar a
ela sensações e percepções dentro de um contexto ficcional, que me abre outras possibilidades de
organizar discursos com Escola. Por isso, quando no texto estiver grafada iniciando com a primeira
letra maiúscula e em itálico, trata-se desse contexto ficcional afetivo. Quando me referir ao espaço
escolar a partir de um contexto mais geral, será grafado em letras minúsculas.

28 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


numa pesquisa de mestrado. E, entre perguntas, ressonâncias, desafios e muitas
histórias, emergiram o objetivo geral e os objetivos específicos deste trabalho,
assim bordados:

Objetivo geral
• Cartografar performances que emergiram em experiências de criação
artística envolvendo a contação de histórias, o teatro e a educação, para além da
sala de aula, e que estiveram envolvidas na composição de quem é uma narratriz 4 .

Objetivos específicos
• Instaurar performances art e performances narrativas em diferentes
espaços educacionais, de modo a perceber quais processos de criação podem
acontecer na atividade de uma artista/educadora para além da sala de aula;
• Compor a ideia de narratriz na experiência da contação de histórias, em
conexão com os conceitos de performance art, performance narrativa e corpo
narrativo.
• Habitar uma escrita performática, discutindo elementos que envolvem a
contação de histórias e a cartografia.
Considerando que precisava retomar o contato com o CAp UFPE agora
vinculada a esta pesquisa, resolvi imergir enquanto pesquisadora no espaçotempo

4 - Com estes objetivos, evidencio para mim mesma que a separação e a dicotomia de que já fui palco
com meu corpopalavra entre contação de histórias e teatro não faz mais sentido. Escolher compor a
palavra narratriz desde o objetivo geral é perceber que a minha prática estava constituída num lugar
entre, num lugar performático, instável, suspenso desde quando iniciei e durante esta pesquisa. Com
isso, também enfatizo a legitimidade de quem se reconhece de outras formas. É nesta rede complexa
que ampliaremos o campo das pesquisas sobre a arte da narração oral.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 29


escolar de uma forma que pudesse me colocar em abertura e escuta cartográfica para
as palavras serem inventadas, sabendo que a cartografia se afasta de considerar o/a
pesquisador/a como um/a observador/a distanciado/a. Por isso, escolhi retornar
à Escola com a ação de Costurar o tempo, num convite a desacelerar as sensações,
vivendo um espaçotempo distinto do tempo comum que há na escola. Meu desejo
maior estava na busca por acessar histórias que pudessem emergir da relação de
me pôr em escuta naquele lugar. Uma outra escolha feita desde o começo foi a de
investigar a pergunta central sem demarcar como lugar da pesquisa as aulas de
Teatro, mas assumindo o espaço escolar como lócus performático.
Assim, após dois anos dentro de um imenso labirinto, tendo em alguns
momentos bordado calmamente e em outros movido meu corpo até a exaustão,
apresento como resultado quatro ensaios, com palavras reunidas em tom de
narrativa oral, costuradas por memórias, discussões teóricas e contos. Somam-se
a eles, o prólogo Ariadne entra no labirinto, anterior a essa introdução, além de
um texto sobre o estado do conhecimento da pesquisa e a conclusão. (ufa!)
A escolha pelo gênero ensaio se fez pelas suas características híbridas,
distanciado do hermetismo das escritas acadêmicas que se vinculam as
burocracias especializadas e vinculadas a provar uma verdade absoluta. Exercitei
e experimentei neste trabalho uma escrita performática, portanto ensaística,
contaminada de vida, de afeto, de emoção, que encontra sintonia com o ensaio,
pois, como apresenta Jorge Larrosa:

30 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


O ensaísta problematiza a escrita cada vez que escreve, e problematiza
a leitura cada vez que lê, ou melhor, é alguém para quem a leitura e a escrita
são, entre outras coisas, lugares de experiência, ou melhor ainda, é alguém
que está aprendendo a escrever cada vez que escreve, e aprendendo a ler
cada vez que lê: alguém que ensaia a própria escrita cada vez que escreve e
que ensaia as próprias modalidades de leitura cada vez que lê. (LARROSA,
2003, p.108)

Assim, UM BROCADO DAS PESQUISAS SOBRE A ARTE DE CONTAR


HISTÓRIAS, traz um levantamento de pesquisas acadêmicas recentes sobre o
tema no Brasil, assim como trabalhos de pesquisadoras/es que vem tecendo o
campo de pesquisa sobre a arte da narração oral aqui em nosso país e na América
Latina.
O primeiro ensaio se divide em duas partes: NARRATRIZ DIZ: - AGORA EU
ERA... quando transito entre memórias que me constituíram professora de teatro
e contadora de histórias, questionando-me sobre como se dá a autoria desta
performação. É a voz manifesta da narratriz em diferentes momentos que vai
conduzindo a você e a mim pelo texto, que chega a pergunta e a interjeição que
dão título a segunda parte: VAMOS PERFORMAR, ESCOLA? VAMOS PERFORMAR
COM ESCOLA!
O segundo ensaio é a CARTOGRAFIA DE UM CORPOPALAVRA, que
apresenta uma fotoperformance de mesmo nome, em que conto sobre o método
da cartografia que sustenta a pesquisa, as etapas em que ela se deu, assim como
um quadro com referências de tempo e espaço sobre as performances realizadas.
No terceiro ensaio UMA NARRATRIZ COSTURANDO O TEMPO narro
uma das performances realizadas e apresento os TRÊS FIOS DA NARRATRIZ
encontrados pela artista/educadora/pesquisadora em meio ao labirinto.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 31


Já o quarto ensaio está divido em três partes NÓS DE NÓS: CORPOPALAVRA
EM PERFORMAÇÃO, apresenta a performance Nós de nós, descrevendo-a e
trazendo ref lexões de uma narratriz habitando o espaço escolar com performance
para além da sala de aula. Em CORPOPALAVRA, CORPO NARRATIVO discuto os
conceitos de corpo narrativo, performance art e performance narrativa, que tem
continuidade em PERFORMANCE NARRATIVA PODE SER POLÍTICA?, no qual
firmo e arranco alguns nós que compõem o ofício da narratriz.
Por FIM, são ditas as últimas palavras, ainda que por enquanto.

32 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


UM BROCADO DAS PESQUISAS SOBRE A
ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS

A mãe passou um longo tempo tecendo. De noite, acendia uma


tocha, cuja fumaça provocava lágrimas em seus olhos. Uma a uma, as gotas
cristalinas caíam sobre o pano que estava tecendo e ela as ia incorporando
ao quadro. Foi assim que teceu o lago e o riacho, com suas lágrimas.

No segundo ano, os pobres olhos da mãe estavam tão irritados, que
até sangravam. E eram lágrimas vermelhas que caíam sobre o brocado que
ela tecia. A mãe as ia incorporando ao quadro, tecendo f lores vermelhas e o
sol que iluminava o céu. (BONAVENTURE, 1992, p. 28)

No conto tradicional tibetano O quadro de pano, registrado por Jette


Bonaventure (1992), uma mãe que tece para dar o sustento a si e aos seus três
filhos, ao se deparar com um quadro que lhe encanta, resolve tecer as imagens
do quadro por prazer. Como não pode abrir mão de costurar pela sobrevivência,
a mulher faz seu brocado especial à noite, sob a luz de uma tocha que fere seus
olhos, como descrito no trecho acima. O brocado fica tão bonito que é levado
pelo vento para a montanha das fadas, onde estas pretendem aprender aquele
tipo de bordado nunca antes visto (BONAVENTURE, 1992).
Um brocado é um tipo de bordado onde se tece com fios de ouro e prata
e que possui especial beleza. Porém, as lágrimas de sangue da mãe imprimiram
uma outra beleza ao trabalho, cores que ainda não tinham sido vistas, formas
de bordar que até as fadas precisavam aprender. Evoco essa história para pensar
sobre a contação de histórias no mundo contemporâneo, por pensar na contação
como esse brocado levado ao vento, uma arte, expressão, ofício e conhecimento
humano que, tendo sido ameaçada de findar, resiste e foi/é resgatada mesmo após
duas grandes guerras mundiais e tantos acontecimentos violentos e agressivos
que pautam nosso cotidiano, como nos mostra Regina Machado (2015):

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 33


Até o advento da sociedade ocidental moderna, o contador de
histórias sempre teve um lugar e uma importância reconhecidos pela sua
comunidade. Por meio da presença de sua memória, de sua voz e técnicas
expressivas, os conteúdos simbólicos — encadeados na sequência narrativa
dos contos, mitos, lendas e epopeias — eram vividos pelos ouvintes como
uma experiência de aprendizagem de si mesmos, de suas relações com os
outros, com os mundos internos e externos que organizam e conferem
sentido à existência.

Walter Benjamin tem um ensaio primoroso sobre a figura do


narrador. Para Benjamin, o novo tipo de comunicação fruto do modo
industrial de produção, que fez surgir a imprensa e o romance, desencadeou
outros tipos de relações sociais, nas quais o narrador tradicional perderia
suas feições. No entanto, contrariando a hipótese sociológica de Benjamin,
durante a década de 70 do século XX, em vários países ocidentais, iniciou-se
simultaneamente, sem que as pessoas tivessem conhecimento das pesquisas
umas das outras, um ressurgimento da arte de contar histórias abrangendo
tanto a revalorização do contador tradicional como o surgimento de novas
formas urbanas de narração oral. (MACHADO, 2015, p. 32)

O brocado foi resgatado, a imagem continua afetando as pessoas que a veem,


os fios de ouro e prata convocam sentires e moveres, as lágrimas e sangue vêm
configurando novas experiências em diversas partes do mundo. Com elementos,
funções, técnicas diferentes, a arte de contar histórias permanece voando e sendo
resgatada, como numa performance entre a mãe e as fadas, que se vinculam ao
brocado por desejos distintos, por formas de constituir o mundo a partir da
beleza e do encanto, mas também do trabalho e do cansaço. Os distintos desejos,
elementos, funções, técnicas vêm movendo pesquisadoras/es na investigação da

34 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


arte da narrativa oral, da performance narrativa, da narração artística, da relação
entre a narração e a educação e também da narração como linguagem das artes
cênicas. Sobre isso, num resgate histórico sobre esse ressurgimento da narração
no mundo, assim como faz Regina Machado, a cuentista e educadora argentina
Ana Padovani expõe:

Podríamos pensar que las distintas formas que fue adquiriendo


el movimiento de narración en los diversos países son producto de su
idiosincrasia, de sus características sociales, culturales y económicas.
Por ejemplo, en Italia, parecería que la narración de cuentos no logro
una inclusión importante dentro de los programas destinados a la difusión
de la educación y la cultura, tal como sucede en Inglaterra, Francia y España
(aun con los avatares de las oscilaciones políticas y económicas). Tampoco
se desarrolló demasiado entre docentes, lectores o público en general, como
ocurre en otros países. Tal vez podría suponerse que el natural histrionismo
de los actores italianos hizo que estos se convirtieran casi en sus únicos
representantes. Además, otra importante inf luencia fue la de Peter Brook,
quien, en sus excelentes puestas teatrales, retomó antiguas tradiciones
orientales que exaltaban los valores religiosos y humanísticos, como El
Mahabarata.
Otra inf luencia notable fue a la de Darío Fo, que también retomó
la antigua tradición juglaresca con un dominio superlativo de los recursos
actorales, con lo que marcó un estilo y una impronta para los actores que
siguieron sus pasos. (PADOVANI, 2014, p. 43-44)

Padovani (2014), no capítulo Panorama de la narración oral, de sua obra


Escenarios de la narración oral: transmisión y prácticas, especificamente quando

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 35


apresenta um Desarrollo Histórico, nos traz elementos da cultura oriental e
africana, depois aponta especificidades de países da Europa como os citados
acima e em seguida mostra La experiencia latinoamericana, na qual a autora
dá um recorte para os países de língua espanhola, relatando experiências de:
Guatemala e Honduras, Colômbia, Venezuela, Chile, Peru, Uruguai e Argentina.
Sobre eles, nos diz:
No cabe duda de la antigüedad y relevancia que en esta parte del
mundo tuvieron los relatos desde que se tiene noticia. Las primitivas
historias de las culturas indígenas aparecieron en los códices aztecas en
lengua náhuatl, mezclándose luego con los mitos y leyendas traídos por
los conquistadores españoles y dando a un corpus de relatos con identidad
propia. (PADOVANI, 2014, p. 46)

Com relação à experiência brasileira, Machado (2014) conta:


No Brasil agrário havia contadores de histórias itinerantes, que
viajavam com seus causos e contos populares, tendo muitas vezes figurado
como personagens encantadores em obras de alguns de nossos romancistas.
O Alexandre de Graciliano Ramos, a velha Totonha de José Lins do Rego, a
Joana Xaviel e o velho Camilo de Guimarães Rosa são exemplos marcantes
da presença de contadores de histórias tradicionais na literatura brasileira.
(MACHADO, 2014, p. 32)

Seguindo o voo do brocado percebo que por vezes ele é um voo natural e
f luido, em outros momentos compulsório, como na colonização e no extermínio
de povos e ideias. Desta forma, mudanças vão acontecendo no modo de ver
o mundo, assim como na forma e no motivo que levam a narrar. E, se trago o
conto tibetano para costurar estas ideias, também é para me encontrar com o

36 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


corpopalavra narrativo que motiva este trabalho.
Ao escolher narrar e costurar estas memórias, estes instantes e personas
da trajetória como narratriz, proponho instaurar a narração como anuncia o
filósofo alemão Walter Benjamin (1892-1940) quando discorre sobre as pessoas
que narram:
Comum a todos os grandes narradores é a facilidade com que se
movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, como numa
escada. Uma escada que chega até o centro da terra e que se perde nas
nuvens — é a imagem de uma experiência coletiva, para a qual mesmo o
mais profundo choque de experiência individual, a morte, não representa
nem um escândalo nem um impedimento. (BENJAMIN, 1994, p. 215)

Intimamente pela brincadeira de acreditar nesta escada citada pelo autor,


me debruço sobre esse texto tão caro às pesquisas acadêmicas sobre o ofício
do narrador de histórias em diferentes contextos, principalmente por trazer
elementos sobre o narrador tradicional. Nesse ensaio, o autor vai desvelando sobre
a obra do escritor russo Nikolai Leskov (1831-1895), a quem atribui a habilidade
de produzir seus escritos com o “espírito dos contos de fadas” (BENJAMIN,
1994, p. 216), e nos conduz na escrita a partir de ref lexões sobre o narrar no
mundo e a perda de espaço pela qual estaria passando a narrativa naqueles idos
de 1936, quando o ensaio foi escrito. Interessa-nos bastante a sobrevivência
da narrativa oral, apesar do romance, do livro impresso, que para ele seriam
causas do desaparecimento dos narradores orais, assim como outros elementos
da modernidade, sobretudo a guerra, que emudeceu as narrativas e as trocas
de experiências. A beleza do que conta Walter Benjamin sobre quem narra, as
imagens que nos permitem sentir, a refinada percepção, me fazem vê-lo como o
grande narrador que ele próprio descreve, partícipe desse saber-fazer:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 37


A narrativa, que durante tanto tempo f loresceu num meio de artesão
— no campo, no mar e na cidade —, é ela própria, num certo sentido, uma
forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em transmitir o
"puro em si" da coisa narrada como uma informação ou um relatório. Ela
mergulha a coisa na vida do narrador para em seguida retirá-la dele. Assim
se imprime na narrativa a marca do narrador, como a mão do oleiro
na argila do vaso. Os narradores gostam de começar sua história com uma
descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão
contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a uma experiência
autobiográfica. (BENJAMIN, 1994, p. 205, grifo meu)

Como narratriz, me movo em busca de um brocado encantado de imagens


que é a arte de contar histórias e não estou só. O campo de pesquisa acadêmico da
contação de histórias é recente e vem crescendo e se ampliando, com diferentes
olhares para os saberes e fazeres dessa arte. Aqui, escolhi a interface da contação
de histórias com a educação e as artes cênicas (performance, teatro, dança).
Assim, aproximando as questões de que trata esta pesquisa, realizei uma busca
de teses e dissertações desenvolvidas em torno do tema nos últimos 5 anos (2014–
2018), e encontrei como resultado o que consta nos Quadros 1 e 2, que seguem 5 :

5 - A referida busca foi realizada no catálogo de teses e dissertações da CAPES com as seguintes
expressões e suas possíveis combinações: contação de histórias, teatro e educação; narração de histórias,
teatro e educação; narradora de histórias, atriz, educação; contadora de histórias, atriz e educação;
performance, contação/narração de histórias e educação; performance narrativa, contação de histórias
e educação; performance narrativa, narração de histórias e educação. A busca ainda foi feita com alguns
desdobramentos como: narração artística, corpo narrativo; e também outras expressões que pudessem
nos apontar estudos que têm o corpo como movedor da discussão com/na contação de histórias.

38 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Quadro 1 – Teses de Doutorado:

Universidade/ Programa/Área/
Pesquisador(a) Título
Ano de obtenção Linha

Programa de Pós-
graduação em
O
Educação/Doutorado
educadornarrador: Universidade
Aline Cântia Corrêa em Educação
uma trajetória Federal Fluminense
Miguel
pela palavra e pela (UFF)/2017
Linha de pesquisa:
escuta
Estudos do Cotidiano
da Educação Popular

Programa de Pós-
graduação do Instituto
de Artes
Área de concentração:
O Narrador Universidade Arte e Educação
Giuliano Tierno de Considerações sobre Estadual Paulista
Siqueira a arte de contar Júlio de Mesquita Linha de Pesquisa:
histórias na cidade Neto (Unesp)/2016 Processos artísticos,
experiências
educacionais e
mediação cultural

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 39


Área de Concentração:
Narrativas na rua: Artes Cênicas
Universidade
Toni Edson Costa da inspiração djeli
Federal da
Santos às rodas de histórias Linha de Pesquisa:
Bahia/2016
em Maceió Matrizes Estéticas na
Cena Contemporânea

Os contadores
Área de Concentração:
de histórias na
Arte Contemporânea
Ângela Barcellos contemporaneidade:
Universidade de
Coelho Café da prática à
Brasília/2015 Linha de Pesquisa:
teoria em busca
Cultura Saberes em
de princípios e
Artes Cênicas
fundamentos

Fonte: Catálogo de teses e dissertações da CAPES.

40 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Quadro 2 – Dissertações de Mestrado.

Universidade/ Programa/Área/
Pesquisador(a) Título
Ano de obtenção Linha
Universidade de São
Lígia de Moura Tecendo o Sopro do Paulo (USP) Escola Área de Concentração:
Borges Narrador de Comunicação e Pedagogia do Teatro
Artes (ECA)/2017

Programa
Interdisciplinar de
A Terceira Margem Pós-graduação
da Performance: Mestrado em
Wellington um estudo do Performances
UFG/2017 Culturais
Rodrigues Barros ato-narrativo em
três contos de Linha de Pesquisa:
Guimarães Rosa Teorias e Práticas da
Performance

Área de Concentração:
Artes Cênicas
Jogos para despertar Universidade
Alexandre Geisler Linha de Pesquisa:
o contador que cada Federal da
de Brito Lira Processos
um traz dentro de si Bahia/2017
Educacionais em Artes
Cênicas

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 41


Programa de Pós-
A formação do graduação em Artes da
contador de Cena do Instituto de
Kalinde Braga histórias hoje: a Artes da Universidade
Unicamp/2015
Augusto Vicente parceria teatral e Estadual de Campinas
outros caminhos Área de Concentração
AA: Teatro, Dança e
Performance.

Performance
narrativa e Instituto de Artes
Mestrado em Artes
Juliana Ferreira transmissão da da Universidade
Cênicas.
Machado (Juliana experiência em dois Estadual Paulista
Linha de pesquisa:
Mado) narradores natos: “Júlio de Mesquita
Estéticas e poéticas
Sebastião Biano e Filho”/2015
cênicas.
Marilene Paschoal.

Fonte: Catálogo de teses e dissertações da CAPES.

Foram encontradas quatro teses e cinco dissertações com o entrelaçado


que destacamos anteriormente. Trarei a seguir considerações sobre elas,
especificamente apontando de forma geral do objeto que tratam, mas também das
poéticas com as quais são desenhadas. Inicio com a tese da educadoranarradora
mineira Aline Cântia Miguel (2017) que estudou O educadornarrador: uma
trajetória pela palavra e pela escuta, na qual investiga em narradores tradicionais

42 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


e narradores contemporâneos e no seu próprio percurso como contadora de
histórias e educadora modos deste educadornarrador se constituir, aprender a
narrar, a partir de conceitos e teorias referentes ao contexto da cultura popular,
da educação popular, da experiência e do cotidiano. Vinculada ao Programa de
Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense, na linha de
pesquisa de Estudos do Cotidiano da Educação Popular, a pesquisadora tece de
forma poética a discussão e apresenta com embalo e rigor a rede conceitual que
sustenta seu trabalho. Mesmo não apresentando relação com as artes cênicas, o
trabalho de Miguel (2017) interessa-me aqui pela forma de escrita e por ser um
estudo que traz importantes considerações da interface do narrador com/ na
educação.
No caminho de investigar a existência do contador de histórias nas cidades,
o contador de histórias e curador da Casa Tombada (SP), Giuliano Tierno de
Siqueira (2016), construiu a tese O Narrador: Considerações sobre a arte de
contar histórias na cidade, na qual pesquisa as especificidades dos narradores de
histórias urbanos, seres que não tem em sua trajetória a apreensão deste ofício
de forma tradicional, como nas sociedades africanas, por exemplo. O interesse
do pesquisador/contador de histórias é compreender como se dá o ressurgimento
dos contadores de histórias, da existência de uma palavra pública em meio à
Sociedade do Espetáculo, conceito de Guy Debord (1931-1994) e à Sociedade
Excitada, tese de Christoph Turcke (1948 -), criando uma narrativa fictícia com
estes e outros interlocutores para construir suas ref lexões.
Já a tese de Ângela Barcellos Café (2015), intitulada Os contadores de
histórias na contemporaneidade: da prática à teoria em busca de princípios e
fundamentos é elaborada a partir das experiências vividas pela pesquisadora como
contadora de histórias e formadora de contadoras/es de histórias ao longo de 20
anos. Com metodologia criada a partir do método dialógico, Café (2015) apresenta

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 43


seu percurso como narradora e formadora, elaborando conceitualmente quem
é o sujeito contador, como se dá a presença deste e que ela diferencia do que
conhecemos como presença no Teatro. Discute também como o autoconhecimento
de cada sujeito é caminho para constituir a linguagem corporal a partir dos
distintos textos e das distintas experiências, visto que ela também traz narrativas
de outras/os sujeitas/os contadoras/es.
Nas três teses que apresentamos 6 , fica evidente o quanto a imersão no saber-
fazer da contação de histórias está impregnado nos cotidianos de Aline Cantia,
Giuliano Tierno e Ângela Café, dos quais pude também ouvir as narrativas sobre
seus trabalhos em espaços como o Boca do Céu 7 e o recentemente acontecido
Oralidades – Simpósio Nacional de Contadores de Histórias (Santos-SP), em que
Giuliano Tierno esteve na curadoria e Aline Cântia, na produção. Como somos
pesquisadoras/es da palavra, poder escutar estes conceitos sendo debatidos,
questionados e ampliados com outras vozes, também me interessa e nutre. Ângela
Café pude conhecer e ouvir questões de sua pesquisa em momentos distintos,
ambas as vezes no Boca do Céu.
Dando sequência à busca de pesquisas que estejam ancoradas no entrelaçar
da contação de histórias, das artes cênicas e da educação, foi encontrado um
número maior de dissertações do que de teses, totalizado em cinco 8 . Das quatro
6 - Não consegui acesso à tese de Toni Edson Costa Santos, que consta em nosso quadro por compor o
catálogo de teses da CAPES, porém não foi possível o acesso ao trabalho nem no referido site, nem no
repositório da UFBA, consultado posteriormente.
7 - Encontro internacional de narradores de histórias idealizado e coordenado por Regina Machado,
que acontece bienalmente na cidade São Paulo- SP.
8 - Não consegui acesso ao texto da pesquisa de Alexandre Geisler de Brito Lira : Jogos para despertar
o contador que cada um traz dentro de si, que consta no catálogo de teses e dissertações da Capes, mas
não está disponível no repositório da UFBA.

44 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


a que tive acesso, a dissertação de Lígia de Moura Borges (2017), Tecendo o Sopro
do Narrador, apresenta uma discussão sobre a vocalidade poética de quem narra,
a partir das/os narradoras/es tradicionais e da artesania de uma Palavra Viva
que estes possuem. Já a dissertação de Wellington Rodrigues Barros (2017) A
Terceira Margem da Performance: um estudo do ato-narrativo em três contos de
Guimarães Rosa, discute a interface contador de histórias e ator na produção do
ato narrativo 9 .
Num recorte para pensar as contribuições do Teatro para o contador de
histórias, a dissertação de mestrado de Kalinde Braga Augusto Vicente (2015) ,
sob o título A formação do contador de histórias hoje: a parceria teatral e outros
caminhos, apresenta-nos ideias, conceitos e aberturas para o diálogo entre Teatro
e contação de histórias, colocando em conversa os estudos de Regina Machado e
Gislayne Avelar Matos e as pesquisas de formação do ator de Matteo Bonfitto e
Cassiano Quilici. Já a pesquisadora Juliana Ferreira Machado (2015) na dissertação
Performance narrativa e transmissão da experiência em dois narradores natos:
Sebastião Biano e Marilene Paschoal, contribui com a caracterização dos conceitos
de performance narrativa, numa perspectiva da possibilidade da experiência no
mundo contemporâneo com estes narradores orais natos, nos quais ela observa
uma atitude narrativa.
Como forma de ampliar o nosso escopo da pesquisa, principalmente no
que tange à questão corporal como elemento específico da discussão da formação
e criação da/o contador/a de histórias e das contribuições da performance, é
importante evidenciar a pesquisa da professora, pesquisadora e contadora de

9 - Pude conhecer o trabalho de Wellington Barros também na mesa em que estivemos juntos na Mostra
Transborda do Sesc Pernambuco em 2017, que teve como tema O ator contador de histórias, um dos
recortes curatoriais da mostra naquele ano.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 45


histórias Luciana Hartmann da Universidade de Brasília, que em sua tese de
doutorado no ano de 2004 tratou sobre “Aqui nessa fronteira onde tu vê beira de
linha tu vai ver cuento...” Tradições orais na fronteira entre Argentina, Brasil e
Uruguai. Em seu artigo Crianças contadoras de histórias: narrativa e performance
em aulas de Teatro, Hartmann (2015), faz um Breve panorama dos estudos das
narrativas em performance, no qual apresenta o conceito de performance em
Richard Bauman, com destaque para o que considera umas das importantes
contribuições do autor: “evento narrado (o conteúdo das histórias) e evento
narrativo (a situação discursiva da sua narração)” (p. 233).
Com relação ao corpo em performance, a autora, que tem pesquisado tanto
o trabalho com crianças contadoras de histórias quanto contadores de “causos”
da fronteira do Brasil com o Uruguai e Argentina, nos diz:
É no corpo, portanto, que reagimos aos estímulos multissensoriais
produzidos pela performance. E é ele que nos permite a atribuição de sentido.
Por este motivo que acredito que o trabalho com as narrativas orais seja tão
produtivo em aulas de teatro, sobretudo com crianças. (HARTMANN, 2015,
p. 234)

São também importantes para essa minha pesquisa os textos de Simone


Grande, Hemilin Faustino (Emilie Andrade) e Letícia Liesenfeld Erdtmann no
livro Narra-te cidade: pensamentos sobre a arte de contar histórias hoje (2017).
Para mim, são pistas de uma cartografia que se forma ao propor pensar a contação
de histórias a partir do corpo que vibra a palavra. As contadoras e pesquisadoras,
que também são atrizes, com formação no Teatro e na Dança, discutem a
corporeidade de quem narra a partir de autores e autoras como Christine Greiner,
José Gil, Ciane Fernandes e Klaus Vianna, como também de suas experiências
pessoais.

46 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


E n s a i o 0 1
NARR ATRIZ DIZ: - AGOR A EU ER A...

Essa história segue conectada com o era uma vez, na ação de escrever e
olhar. Meu olhar no teu que me lê, que permite um contato com meu corpopalavra,
com a corporeidade dissertativa que se apresenta. Estas linhas que seguem são
bordadas em conjunto com você, sua leitura, seu corpo, então o que quero dizer,
neste instante, é do prazer de estar nesta troca! Esta história se instabelece aqui,
no tempo presente, em que nós nos encontramos. Um tempo presente fora do
tempo comum, um presente suspenso, que se encontra no potente momento em
que nossos corpos se irmanam no sentir, na respiração, na energia, no vínculo,
no tempo do “agora eu era”. Nas palavras de Machado (2015a):

Um tempo que não cabe na história temporal, datada cronologicamente,


como o do ontem ou do amanhã. No tempo e espaço cotidianos eu fui, sou,
serei. Antigamente eu era menor, era tímida e magrinha, mas isso é muito
diferente de poder dizer: “Agora eu era”, seja lá o que for. Essa possibilidade
não faz sentido nem na gramática nem na conversa diária. Mas faz sentido
em outro lugar e em outro tempo: no domínio do imaginário, presente na
versão inglesa do “Era uma vez”: once upon a time, que se poderia traduzir
como “uma vez acima ou além do tempo”. (MACHADO, 2015a, p. 41, grifos da
autora)

Pois bem... uma vez além do tempo, agora eu era Escola! Há muitas histórias
para serem contadas sobre a escola, na escola, com a escola. Nesta história, Escola
é performer, com corpo, sentimentos, ações, contradições, inferências e dúvidas,
por vezes até personagem. E, como nos mostra Machado (2004b, p. 11), “antes de
mais nada, parti de um ensinamento valioso, que sempre está presente para mim:
aprendi que nos contos tradicionais os personagens não são pessoas, mas expressam
qualidades e possibilidades humanas de desenvolvimento”. É extrapolando esse

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 49


sentido, que atribuo à Escola percursos, desejos e vontades, incertezas como
em todas/os nós, com angústias, alegrias, inquietudes e atravessamentos. Como
cada ser que já passou por uma, como eu, narratriz costurando minha relação
com ela e com a educação.
Não há como ser linear nestas memórias, porque é no movimento e euforia
de um pega-pega que encontro a sensação para reuni-las, uma memória “pegando”
a outra, que grita, se esconde, esbarra em outra, cai no chão, espia de recanto
de olho. Pois, quando a contação de histórias entrou na minha vida começou a
compor outras narrativas para quem eu era como pessoa, como artista/educadora
até ali, ao entrecruzar o âmbito da criação artística fora da escola com a criação
artística na escola. Naquele momento, lembro que houve um manejar diferente
nas expectativas das/os estudantes que as pesquisas e brincadeiras com a contação
de histórias possibilitaram experimentar, que a voz da narratriz levava para ir
transformando artisticamente as vivências na sala de aula de teatro.
É neste sentido que me coloco como Escola, como Ariadne, como performer,
artista, educadora, todas elas vividas e percebidas ao ser narratriz, ao olhar para
o meu percurso como professora e contadora de histórias nesta pesquisa, ao
revirar-me para encontrar o que me narra nesta composição. Narratriz 10 é uma
palavra que se caracterizou nesta pesquisa e que emergiu como singularização

10 - No início da pesquisa eu costumava utilizar o termo narratriz/docente, mas minha aproximação ao


conceito professor-performer (CIOTTI,2014) na feitura desta cartografia, bem como o entendimento
de que não se tratava unicamente da docência, me permitiram não aglutinar ao termo nem a palavra
docente nem a palavra professora. Me sinto conectada ao termo educadora, por considerar que daria
conta dos demais, porém sinto a força que a palavra Narratriz tem por si mesma, constituída e vivida
completamente imersa na educação. Por isso, em outras partes do texto, quando se trata de uma
discussão mais geral de aspectos artístico/educacionais, utilizo o termo artista/educadora.

50 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


da percepção de entrelaçar um ser artista/docente e professora-performer,
primeiramente com a escolha por trazer o termo artista/docente e arrematá-
lo com a escola, na educação básica. Depois, pela percepção ampliada trazida
pela cartografia, metodologia que será melhor discutida no próximo ensaio,
em considerar outros acontecimentos como parte do processo e incorporá-los
aos mapas deste labirinto, percebi que meus processos se relacionavam com a
educação ou uma discussão sobre a educação de forma mais dilatada, não só
vinculada a escola, mas sempre a ela conectada 11 .
O termo artista/docente foi proposto por Isabel Marques (2011; 2014) em sua
pesquisa de doutorado e vem sendo pesquisado e elaborado na prática cotidiana
dela como artista/docente no Instituto Caleidos (SP), onde são produzidos
espetáculos na linguagem da dança. Nestes espetáculos, Marques trabalha com a
proposta de encontrar a plateia com proposições interativas, sabendo que a obra
sempre estará aberta e ao ser jogada com as pessoas, tem um impacto grande
dos elementos educacionais, do pensamento freiriano, por exemplo (MARQUES,
2014). Nas palavras da pesquisadora:
Propomos, portanto, que o grande desafio do artista/docente em
cena é compreender que: ao dançar, não mostra, propõe; não apresenta,
convida; não dança ‘para’ o público, mas ‘com’ ele; não ensina, educa. Todos
esses são princípios caros à educação, que se tornam vitais em uma proposta
artística que se propõe também política e social. Arte e educação tornam-se
indissociáveis. (MARQUES, 2014, p. 238)

11 - Outras experiências que aconteceram ao longo da pesquisa e foram incorporadas por serem
desdobramentos ou consequências dela, foram me mostrando que o território das ações performáticas
estava sempre atrelado a educação e especificamente a formação de professoras/es. Isto será melhor
evidenciado e discutido no Ensaio 4.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 51


É por acreditar na indissociabilidade, na circularidade e na urgência de
habitar o espaço escolar nesta intenção que me senti atravessada pelo conceito
de artista/docente, assim como pelo desejo de tecer artisticamente com Escola.
Durante a pesquisa, fui percebendo que o lócus primeiro disso tudo sempre seria
o corpo e onde eu estivesse poderia instaurar elementos performáticos, sabendo
das movências que a atividade artística profissional proporcionou ao meu ser
educadora e vice-versa e o quanto ritualizar e costurar o tempo com Escola e
com educação me põe em atitude atenta e criadora, transformando-a em mim e
pretendendo transbordar para outras pessoas de uma comunidade, já que

[...] o artista-docente é aquele que, não abandonando suas


possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem também como função e
busca explícita a educação em seu sentido mais amplo. Ou seja, abre-se
a possibilidade de que processos de criação artística possam ser revistos
e repensados como processos também explicitamente educacionais.
(MARQUES, 2011, p. 121, grifo da autora)

O grifo que a pesquisadora faz na palavra explícita, demonstra o quão


imbricados estão os fazeres educacionais e artísticos, sendo tarefa nossa nos
constituir enquanto artistas/docentes dessa forma. Ao revisitar sua Tese de
Doutorado, Isabel Marques (2014) se pergunta qual a contribuição que a educação
pode dar a arte e diz

52 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Tendo uma carreira híbrida, percebo que, mesmo embrionariamente,
as contribuições do sistema da arte para a educação formal já têm um
caminho percorrido e já aponta para outros a percorrer. O contrário, no
entanto, ainda permanece nebuloso: em que medida a arte encontra valores
e referências na educação? Em que medida ser professor afeta, transforma e
contribui com a carreira e o trabalho do artista? Tratando de problematizar
uma série de preconceitos em relação ao trabalho pedagógico no meio
artístico busco aqui afirmar e discutir como atuar no campo da educação
e do ensino faz com que a arte que se produz seja diferente e, até mesmo,
diferenciada. (MARQUES, 2014, p. 231)

Em conf luência com este conceito de artista/docente 12 , também me move


o conceito de professor-performer da professora e pesquisadora da UFRN, Naira
Ciotti, fruto de sua pesquisa de mestrado e que vem sendo ampliado em outras
pesquisas. A pesquisadora discute a formação deste híbrido e traz as práticas
de artistas que tiveram a atividade docente inerente ao fazer artístico como
referências: a brasileira Lygia Clark (1920-1988) e o alemão Joseph Beuys (1921-
1986). Assim, articula:

O professor-performer movimenta os conhecimentos que possui


sobre a arte em direção ao seu aluno. Ele pode movimentar corpos de
conhecimentos, além da representação e da técnica. Seus alunos estão, na
verdade, em muitos lugares, não necessariamente no ateliê. [...] Sua matéria
é um pensamento de arte, um pensamento em movimento, um pensamento
em performance. [...] Não se trata de um método rígido, mas sim de uma
atitude de pesquisa. (CIOTTI, 2014, p. 61-63)

12 - Utilizo o termo artista/docente com a barra a partir de Valéria G. Araújo (2016).

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 53


Nestas trajetórias, percebo a priorização das experiências da/o sujeita/o e
de como estão imbricadas as atitudes artísticas, educacionais, performáticas e
acadêmicas em suas práticas. O professor-performer se compõe na observação
de complexidades, numa pista que nos aponta para a coexistência com outras/os
sujeitas/os, na observação de suas trajetórias, na produção de suas metodologias
com elementos que são próprios da arte contemporânea, sobretudo numa “atitude
de pesquisa” (CIOTTI, 2014, p. 63).
Em narrativa brincante, numa costura do tempo presente desta pesquisa e
das memórias do que considero parte do meu corpo narrativo, do meu labirinto, as
palavras vão se juntando para dizer histórias de diferentes aspectos e perspectivas
da trajetória de uma professora de teatro e contadora de histórias que, na busca
por costurar a si nas ações de ser artista/docente, de ser professora-performer,
vem se re/conhecendo como narratriz, em diferentes movimentos e fatos, não
necessariamente lineares e consequentes, mas numa perspectiva da experiência,
que “seria o modo de habitar o mundo de um ser que existe, de um ser que não tem
outro ser, outra essência, além da própria existência corporal, finita, encarnada
no tempo e no espaço, com outros.” (LARROSA, 2014, p. 43).
Em diferentes espaçostempos, a minha existência corporal foi se
constituindo, também nas relações com Escola, com a educação. Na cidade de
Caruaru, localizada no Agreste, estado de Pernambuco, nordeste brasileiro,
se inicia minha trajetória com arte, enquanto estudante das aulas de teatro no
grupo do Colégio Sagrado Coração (CSC), participando de peças e apresentações
artísticas na escola e em festivais estudantis de teatro da cidade. Antes disso,
sou filha de professora de Língua Portuguesa e as atividades cotidianas da
profissão da minha mãe, à época, me chamavam a atenção, principalmente o
planejamento de aulas que envolviam a literatura, mais especificamente a poesia,
o que me constitui e reverbera nas práticas artístico/educacionais, objetiva ou
subjetivamente, até hoje.

54 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 1 – Espetáculo Lili inventa o mundo (1998) | Grupo de Teatro do Colégio Sagrado
Coração - Caruaru-PE
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Márcio Maracajá.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 55


Na escola, estudei com um professor apaixonado pelo fazer teatral,
Márcio Maracajá, que nos proporcionava exercícios na função de estudantes/
atrizes, que abrangiam a interpretação, o contato com textos dramáticos de
diferentes dramaturgas/os brasileiras/os e também com os elementos sensíveis
(visuais, sonoros, táteis) do espetáculo. Nesse processo, que podemos inserir
no campo da pedagogia teatral, “um campo no qual não há uma atitude única,
que não se caracteriza como um bloco uno e uniforme, mas com disparidades,
confrontações, descontinuidades” (ICLE, 2007, p. 1), sendo importante situar
a pedagogia do teatro como um campo de multiplicidades, de acolhimento das
diferenças em relação às metodologias e as/os sujeitas/os que nele se inserem. Foi
na minha primeira experiência com a pedagogia teatral, portanto, que pude viver
a formação mais impactante da minha vida, quando fui marcada profundamente
por essas experiências, a ponto de escolher viver uma trajetória profissional que
a contemplasse.
Nessa trajetória, percebo que (re) encontrar Escola sempre me foi
inquietante. Por vezes, imperativa, noutras acolhedora, havia sempre o que
descobrir com ela. Um olhar cativante, um abraço apertado. Escola parecia me
sussurrar que ficaríamos juntas para sempre, como princesas apaixonadas, como
crianças correndo juntas, como quem mergulha em imagens suas para compor
imagens coletivas.
Lili inventa o mundo (1998), A bruxinha que era boa (1999), A menina e o
vento (2000), O boi e o burro a caminho de Belém (2000) e O livro de Enquivuck
(2001) foram alguns dos espetáculos brincados em mim enquanto fazia parte
do grupo de Teatro do CSC, dos 11 aos 16 anos. Especialmente as personagens
Lili, Ritinha, Bruxa Fredegunda, A menina, Urgl, Rainha Maga, com seus ditos e
não ditos corporais, sonoros, memoriais, inscreveram em minha pele sensações,
percepções, sabedorias e fazeres da arte teatral que acompanham até hoje as

56 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


narrativas de ser artista/educadora, compondo corporeidades que permanecem
em ressonância nas ações artístico/educacionais que se criam e recriam
constantemente, no trânsito entre narrar histórias e ensinar teatro.
Em minha experiência como “nova contadora” (MATOS, 2014, p. 91), percebo
que há uma forte marca do teatro, tanto no acesso à arte da narração de histórias
quanto na imersão que venho fazendo para pesquisá-la. Assim, vivi e conheci
o fazer artístico da narração de histórias e do teatro em diferentes momentos
e depois de forma imbricada nas minhas práticas e investigações corporais,
não sendo possível separá-las, pois as compreensões que trazem em meu corpo
são percebidas no que este corpo é e está e também as vejo arrematadas com a
educação.
Observo meu percurso de conhecimento corporal iniciado e continuado em
processos teatrais até a chegada da narração de histórias, que também considero
um conhecimento sensório, corporal, visto que a palavra narrada vibra, vive, é
corpo. No meu percurso, um corpo que conhecia o teatro e por ele estava habitado
foi convidado a reconhecer este corpo teatral, por assim dizer, e ir performando
um corpo narrativo, criando um corpopalavra na relação com a história sendo
narrada e ainda com a ação educativa em performance.
Na minha formação acadêmica inicial, a Licenciatura em Educação Artística
com habilitação em Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
(2008-2013), Escola permanecia ali, dentro de mim, e a universidade começava
a se mostrar um espaço para construir um percurso profissional que envolvesse
Teatro e Educação. Ainda que as narrativas sociais contribuíssem para acreditar
que essa relação por mim tão desejada não era possível, como em algumas falas
que compõem minhas memórias: “Você não vai dar aulas de teatro na escola,
não há espaço para isso! Você se forma em artes cênicas, mas dá aula de artes
(visuais)!” Escutei esta sentença muitas vezes durante a licenciatura, dita por

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 57


diferentes personagens, e ela até hoje me vem quando componho narrativas
sobre aprender/ensinar teatro na escola. Contrariamente, meu percurso como
artista/educadora na educação básica se iniciou ainda como discente do curso de
licenciatura, pois comecei a atuação profissional como docente do componente
curricular obrigatório — Teatro — em uma escola da rede privada de ensino.
Esse tão esperado reencontro com Escola aconteceu ao ser aprovada
num processo seletivo para uma escola da rede privada que estava iniciando as
atividades naquele ano e que se localizava na região metropolitana do Recife-
PE. O componente curricular Teatro seria parte obrigatória das atividades de
todas as crianças, porém não havia sido solicitada sua inclusão na proposta
curricular construída por uma equipe pedagógica contratada, diferentemente
das linguagens das artes visuais e da música. Assim, tive que desenvolver uma
proposta curricular para a atuação do componente naquele espaço, e esse desafio
foi essencial para perceber Escola como um organismo vivo e pensar o Teatro
como parte desse organismo.
Nesse lugar de narrativa que proponho, observo que a necessidade que se
apresentou desde o início da minha atuação profissional foi a de pensar, constituir
e elaborar uma formação singularizada, autoral, o que me fez relacionar com
Escola, com educação, de forma íntima, a ponto de impregnar o meu corpopalavra
artístico. Nesta perspectiva e dentro da questão central desta pesquisa, uma
ref lexão que me acompanhava/acompanha ao entrelaçar o contar histórias com
a pedagogia do teatro em minha vida é: que narrativas podem ser criadas sobre
aprender/ensinar teatro a partir da experiência? Buscando pistas para criação
e recriação dessa atuação e das narrativas como artista/educadora, observo as
palavras do pesquisador Gilberto Icle:

58 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


[...] quando se diz sobre a transformação, a tomada de consciência
ou a necessária conversão a si de que o processo teatral é protagonista, fala-
se do ponto de vista do praticante, do jogador, do atuador, daquele que
personifica, brinca, joga, interpreta, atua, representa a outro que não a si,
encontra-se num estado de presença, de espetacularidade, de performance.
(ICLE, 2007, p. 11-12)

Diante das experiências apresentadas, percebo que foram espaços diferentes,


com pessoas distintas, que trouxeram narrativas diversas e me proporcionaram
estar em performação para atuar na educação (básica), com elementos para pensar
a prática de aprender/ensinar teatro, assim como fazer isso a partir da paixão,
afeita à singularidade. E a paixão pela arte de contar histórias e pela arte teatral,
entrelaçadas à educação ressoa nestas palavras: “A experiência é sempre singular,
não do individual ou do particular, mas do singular. E o singular é precisamente
aquilo do que não pode haver ciência, mas sim paixão. ” (LARROSA, 2014, p. 68).
Nesse contexto e conhecendo a imagem estática que muitas vezes se forma
ao discutir a presença do teatro na escola — construída, em alguns momentos
na própria universidade, de forma que se reduz a importância de palavras como
repetição, direção, marcação de cena (quando existem) — e ainda tendo vivido
uma experiência inicial com a linguagem teatral que continha essas palavras e
ações, penso que evidenciar outras palavras como corpo, cena, espaçostempos,
encenação, performance, pode possibilitar desdobramentos inclusive para dar
outros significados às palavras anteriores, abrindo lugar para questioná-las e
vivenciá-las de maneira mais performática, entendendo que elas têm seu espaço
na compreensão de saberes teatrais. Isso requer uma movência constante diante
da educação e das práticas que se escolhem para com ela se relacionar, de modo
que se possa estar aberta às potencialidades dos acontecimentos, dos devires, do

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 59


que pode vir a ser e estar disposta a manter-se atenta e pronta a agir e mobilizar em
si afetos e atravessamentos que proporcionem f luidez e recriação em performar-
se artista/educadora a cada dia, pois

Nesse sentido, ganha destaque outro importante ponto de contato


da performance com a educação: a possibilidade do reposicionamento dos
envolvidos em processos de ensino‑criação a partir da constituição do que
aqui chamamos de atitude performativa, pautada pela ação, pela intervenção
no cotidiano, pela busca por espaços de transformação da realidade que
encontramos nas escolas. Tal movimento está estreitamente vinculado
à compreensão da importância da centralidade do corpo nos processos
de ensino‑aprendizagem, elemento fundamental para a constituição de
propostas de ensino‑criação. (ICLE; BONATTO, 2017, p. 10)

Nos meus trajetos, um dia encontrei Escola chorando, me pediu um abraço


e eu dei. Silenciosa, com pouco orgulho de si e massacrada, não fazia nada mais
que rastejar. Na verdade, quem estava chorando era eu e entregar o choro a Escola
enquanto criação metafórica, a meu ver, tem força para coletivizar e provocar
um pensamento: quantas/os de nós professoras e professores já choramos no
ambiente escolar ou em outros espaços educacionais? Em que momentos tivemos
as práticas que acreditávamos sendo massacradas por um cotidiano que não nos
representava ou que nos permitia somente rastejar?
E, como “para deter aquele que rasteja, é preciso colocá-lo num buraco,
plantá-lo num vaso, nos quais, não podendo mais agitar seus membros, agitará,
entretanto, algumas lembranças” (DELEUZE, 1992, p. 233), reconhecendo as
lembranças, memórias plantadas e colhidas, da sorte de poder ir embora, fui.
Abandonei Escola morta, sem nenhum aconchego ou funeral. Continuei a

60 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


caminhada. Também deixei um tanto de mim para trás com ela. Aquela “microeu”
precisava ser abandonada, já estava esgotada de si. Queria estar em outros
territórios, com outras pessoas e conexões.
E, olhando para esses momentos da minha trajetória, quando a frustração
com o espaço escolar sobressaiu a ponto de precisar ir embora, pergunto: como
manter o vínculo com esse espaço tão desejado? Inquieta com essa sensação,
também pergunto: O que transborda nossa trajetória a ponto de dar novos
sentidos, contar novas histórias? E, então, Vamos performar, Escola?

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 61


- VAMOS PERFORMAR, ESCOLA ? VAMOS
PERFORMAR COM ESCOLA!
Ouviu? (As vozes todas das pessoas em estado brincante
gritando: Vamos performar com Escolaaaaa!!!!!!!) Escola, assim,
sou eu quando enxergo as outras pessoas que a compõem. É um estado de ser,
um personagem que cada pessoa pode se identificar diferente. São muitas as
histórias sobre a escola, como já foi dito. E se eu perguntar o que é escola para
qualquer pessoa, emergirão muitas narrativas. Viver, pensar e criar Escola como
performer é uma tentativa de dar a ela o lugar de ação que podemos ter conosco
para construir outras narrativas, potencialmente performáticas, convidando a
brincar, a encontrar, a ritualizar.
É em função disso que propomos aqui a escola como entrelugar, ou
seja, como espaço liminal, pois, de um lado, trata‑se de uma zona rica em
indefinições, potencialmente bastante incômoda e até mesmo angustiante
no cotidiano, levando os indivíduos a buscarem a solução ou desfecho rápido
de tal situação; de outro lado, na arte e, possivelmente, na educação, esse
pode ser um espaço/tempo desejável e potente. (ICLE; BONATTO, 2017, p.
21)

Neste ponto, preciso fazer uma pausa. Pedir licença e fechar os olhos.
Respirar fundo. Abraçar dentro, sorrir para mim mesma diante de uma caneca de
café ou do pôr do sol no Atacama. Lembrar um mergulho na praia de Tamandaré,
onde passei muitos janeiros da minha existência corporal e afetiva, como se fosse
possível separar essas duas coisas. Te convido a fazer o mesmo. Lembrar o que
te move, o que te narra no mundo, o que você conta para você mesma/o sobre a
existência.
É isso: contar histórias me trouxe para um lugar da narrativa enquanto
existência in/finita, numa felicidade de ser simples, de habitar o nada da cena
comigo mesma e estar porosamente aberta e vulnerável, em performance. Eu

62 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


passaria muito tempo relatando o que é a contação de histórias para mim e o
impacto que teve em minha vida materializada, humanamente, pelo corpo
artístico, sentida a cada minuto que narro o espaçotempo em mim, com o que e
quem está ao redor, o que inclui a educação.
E, neste ano de 2020, olho para a trajetória que me traz até aqui, até esta
pesquisa, e ao que envolve o meu universo profissional e afetivo: contação de
histórias, teatro e educação. Essa é a rede que me sustenta. E, para tecê-la, foram
muitas mãos, muitos novelos, muitos fios, muitas pessoas, muitos nós, muitas
ideias que me atravessaram. Na minha maleta de memórias, encontro as palavras
que seguem e são de uma contadora recém-apaixonada, num “prazer de casa” do
grupo Zumbaiar. O Grupo Zumbaiar, coordenado atualmente por Ana Carolina
Lemos e Antonio Almeida, realiza cursos livres na área da literatura e também
uma Formação de Contadores de Histórias com duração de 12 a 14 meses na
cidade do Recife, em Pernambuco. Após conhecer o ofício de narrar histórias e
me apaixonar imediatamente no ano de 2011, fiz esta formação no ano de 2012,
quando escrevi uma carta “Aos que bebem histórias”, datada de 15 de outubro
daquele ano, encontrada nas memórias virtuais do meu email, em que finalizo
assim:
Agora, quero me descobrir muito, muito mais. Entre contos e
recontos, quero entender a palavra andante que fala em Pernambuco, Pará e
Pólo Norte. A palavra livre que se vai pelas sacolas, nos olhos, nas estradas.
A palavra-cor, que se deixa ecoar por ladeiras, mares, matas fechadas, casas
de leões, búfalos e pinguins. Tenho encontrado bichos que se melam de mel
pra virar fôia, princesa valente, povo sem medo. E, dessa viagem, prometo
voltar, respirar as palavras e contar, contar e contar. (Arquivo pessoal)

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 63


Ah! Mas preciso contar também do olhar e som que me fizeram conhecer ou
(re)conhecer a contação de histórias. No ano de 2011, num projeto da Licenciatura
em Educação Artística/Artes Cênicas/UFPE, realizado pelas/os estudantes (com
a participação de egressos), chamado Semana de Cênicas, uma mulher e sua
alfaia fizeram ecoar dentro de mim, numa oficina de Contação de Histórias, vozes
artísticas que eu imaginava que habitavam apenas minhas memórias. Seu nome é
Adélia Oliveira, contadora de histórias, pernambucana/ amazonense, que deixa
as palavras criarem raízes aéreas e conversarem com ventos e nuvens.
A felicidade com que Adélia apresentou a tradição oral, valorizando o
estar juntas/os para ouvir uma história, impactou meu percurso como docente
e reconfigurou os modos de ser artista que eu percebia como possíveis. Desde
aquele momento, desatei a estudar, pesquisar, querer saber mais e foi ela quem
me falou do curso do Zumbaiar, no qual me inscrevi e cursei no ano de 2012.
Com Adélia, a conexão foi tanta que seguimos trabalhando juntas, e em 2013
realizamos, no Sesc Santa Rita, compondo a programação do Laboratório de
Autoria Literária Ascenso Ferreira, a oficina: Entre f lores e palavras: cheiros e
cores do contador de histórias, que naquele momento reunia minhas experiências
corporais e teatrais e a busca por reuni-las com a contação de histórias, assim
como a experiência de Adélia com o contar histórias que tinha um caminho mais
longo. O espetáculo Entre f lores e palavras, nascido do desejo de narrar juntas,
fez parte da programação do Sesc, além da já referida Semana de Cênicas e do
Confaeb (Congresso da Federação de Arte-Educadores do Brasil), todas no mesmo
ano (2013).

64 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 2 – Intervenção poética Entre flores e palavras | Sesc Santa Rita-PE
Fonte: Arquivo pessoal.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 65


Figura 3 – Entre flores e palavras | Confaeb Porto de Galinhas (PE)
Fonte: Arquivo pessoal.

66 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Nesse f luxo, ao conhecer a contação de histórias e me re/criar artista
narrando histórias, pude iniciar as ações de conceber, produzir, dialogar,
encenar, contar, diferente da relação que eu tinha até então com essas ações.
Principalmente na vivência com as/os espectadoras/es, de modo que comecei
a transformar o espaço da sala de aula a partir do que vivia em cena contando
histórias. Vinham junto comigo as vozes, os tecidos, personagens e o convite para
habitar espaçostempos com uma energia diferente da que existia até então na sala
de aula.
Assim, a prática artística na sala de aula, também continha minhas
dissonâncias e conf litos da prática artística em outros espaços, que acionava
outras perguntas e que mobilizava uma concepção constante de sala de aula
enquanto criação artística. O que as interligava era a presença do meu corpo e as
memórias que este corpopalavra ia produzindo e carregando. Naquele momento,
consegui criar outras possibilidades de tornar as/os estudantes criadoras/es do
processo teatral e vejo, nas entrelinhas da contação de histórias, uma parte dessa
aprendizagem, pois
O sentimento de unidade que o contador é capaz de propiciar,
por meio de sua palavra, talvez esteja funcionando como uma das saídas
possíveis de individualismo, de isolamento, de indiferença pelo outro e de
intolerância com a alteridade próprios da contemporaneidade, que parece
minar o reconhecimento do que há de humano numa “comunidade” de
humanos: já não nos reconhecemos e entretanto somos tão semelhantes.
(MATOS, 2014, p, XXXII)

As histórias trazidas para o processo teatral, a narração inserida nas aulas de


Teatro, acionaram o “sentimento de unidade” de que fala Matos (2014, p XXXII) e
que é tão necessário ao encontro com a arte teatral e com as pessoas num processo

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 67


Figura 4 – Contando a história O leão e o ratinho | Livraria Vila 7 (PE)
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Janela Estúdio.

68 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


de criação e aprendizagem com ela. Em meu percurso, a circulação entre a energia
de estar em cena contando histórias reverberava nas aulas de teatro, de modo que
o corpo presente no encontro com a plateia, as vozes experimentadas naquela
ação iam se desdobrando e ganhando ecos nas brincadeiras com as crianças na
sala de aula de Teatro. Neste sentido, ressoamos a pesquisa da professora Luciana
Hartmann (2015) que trata justamente disso:

No âmbito da Pedagogia do Teatro, se olharmos sob a perspectiva da


relação que pode ser estabelecida entre as narrativas orais e as metodologias
de ensino-aprendizagem na área, é possível identificar diversas abordagens
que se tangenciam. A importância da experiência de ser ouvinte – e contadora
- de narrativas orais durante a infância é apontada, por exemplo, por Flávio
Desgranges (2006), um dos principais pesquisadores brasileiros da área.
Ao operar com o método de ensino-aprendizagem de Teatro chamado de
Drama (cuja relação com o Drama Social de Turner não seria totalmente
remota), Biange Cabral (2006) também aponta para a relevância da inserção
de memórias (e suas narrativas) em processos e produtos teatrais, tanto
na dimensão pessoal, identificada no aumento da autoestima dos sujeitos
e na construção de suas identidades, quanto na dimensão social, como o
desenvolvimento de responsabilidade e respeito com o espaço urbano,
engajamento em questões de preservação, entre outros. Já Maria Lúcia Pupo,
em sua obra Entre o Mediterrâneo e o Atlântico (2005), traz uma contribuição
importante para a compreensão do lugar que o jogo, o teatro e a narratividade
podem ocupar na efetivação do diálogo multicultural. Alessandra Faria, por
sua vez, em Contar Histórias com o Jogo Teatral (2011), explora as novas
metodologias de ensino-aprendizagem que emergem de uma experiência
que entrelaça narrativas orais e jogos teatrais. (HARTMANN, 2015, p. 242-
243)

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 69


Costuro aqui essa ref lexão para pensar a prática criada na sala de aula àquela
época, pois percebo como há um corpo que habita as duas práticas, no caso desta
pesquisa, para além da sala de aula, sustentando práticas de um corpopalavra e
movendo-as aonde este corpo for. Portanto, considero que as práticas para além
da sala de aula com a performance art e com a performance narrativa (a contação
de histórias) também fazem parte de uma Pedagogia do teatro contemporânea
que vem cada vez mais se produzindo a partir das experiências de cada grupo que
se constitui, fazendo com que educadoras/es olhem para suas singularidades e
se recriem a partir das relações. E quando falo em recriar me refiro a cada pessoa
olhar para si e se apropriar de sua história, de suas vivências com a arte (teatral)
e ir transformando-as em metodologias na própria experiência.
Em minha experiência de narrar histórias nas aulas de Teatro, percebi
que havia uma corporeidade que se instaurava em cena e que era possível
acessar na sala de aula contando histórias, me proporcionando um entre lugar
a ser produzido, criado e recriado. Não há aqui a intenção de estabelecer uma
hierarquia, mas de dar voz a uma ressonância que parece essencial: que a sala de
aula seja uma prática artística e que a cena se invente educacionalmente e que
nesse ínterim (para além da sala de aula) se criem as mais diversas formas e forças
coletivas de atuação artístico/educacional. Assim, outras perguntas passaram a
me acompanhar: Que tecituras entre o artístico e o educacional posso produzir
na educação básica? Quais as cores, linhas, nós que essas tecituras apresentam?
Que elementos escolho para bordá-las?
E foi assim, na permanência da paixão e na busca por aprofundar os meus
estudos na arte da narração oral, que segui participando de formações específicas
na área, o que envolveu buscar lugares para ouvir histórias, como o projeto
Noite de Histórias da Cia Palavras Andarilhas (PE), em Recife-PE, que tem como
mentoras e curadoras a escritora e contadora de histórias Lenice Gomes e a atriz
e contadora de histórias Clenira Melo, ambas professoras. O projeto acontece

70 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


uma vez por mês no Centro Cultural Benfica, que pertence a UFPE e é um projeto
de extensão da universidade. Neste lugar, se encontram novas/os contadores,
narradoras/es orais natos, pesquisadores da arte da palavra para contar e ouvir
histórias. É/foi um espaço onde posso/pude contar, mas principalmente ouvir
bastante 13 .
Seguindo a busca por criar essa nova contadora de histórias, continuei as
formações, como o Ateliê de Histórias com Cadu Cinelli e Warley Goulart do Grupo
Os Tapetes Contadores de Histórias (RJ), sendo parte das ações da exposição que
esteve na Caixa Cultural Recife no ano de 2013, da qual pude participar também
como produtora local e fazer outras trocas com o grupo, acompanhando, por
exemplo, as sessões de histórias para diferentes grupos de educação formal e
não-formal e para público espontâneo nos finais de semana 14 . Manter-me em

13 - Além disso, no ano de 2012 me inscrevi nas oficinas do Encontro Internacional de Contadores
de Histórias- Boca do Céu e pude participar das seguintes oficinas de formação: “A arte de narrar:
Fundamentos, interpretação e repertório” com a canadense Oro Anahory; e “O céu, a terra e a vírgula”
com Chico dos Bonecos (SP). Outra formação que destaco, ainda no ano de 2012, foram as palestras do
Festival Conte Outra Vez daquele ano, em Recife-PE: “Textos e Têxteis” com Os Tapetes Contadores de
Histórias (RJ); “Novelo de Histórias” com Grupo Zumbaiar (PE); “A arte de contar história no século
XXI” com Cléo Busatto (PA).
14 - Outras pessoas com quem tive contato em oficinas foram Regina Machado (SP), Rosana
Mont’Alvernne (MG), Irene Tanabe (SP), Inno Sorsy (UK), Gislayne Avelar Matos (MG), Yohanna
Ciotti (SP), além de ouvir contadoras/es e grupos pernambucanos como Adélia Oliveira, aqui já citada,
Luciano Pontes; Roma Julia; Gustavo Bezerra; Mariane Bigio; Érica Verçosa; Vinícius Viramundos;
Lenice Gomes, Clenira Melo, Carminha Morais, Mitafá e muitas outras da Cia Palavras Andarilhas,
O tapete voador (PE), Cia Pé de Vento (Arcoverde-PE), Stephany Metódio e Alexandre Revorêdo
(Garanhuns-PE), Odília Nunes (Afogados-PE), e também pessoas e grupos de outros lugares do Brasil
e do mundo: Tapetes Contadores de Histórias (RJ), Cia Prosa dos Ventos (SP), a Cia Mafagafos (SC),
Simone Grande (SP), Kelly Orasi (SP), Muriel Bloch (FR), Inno Sorsy (UK), François Moïse Bamba
(Burkina Faso).
Performances entre contação de histórias, teatro e educação 71
performação como contadora de histórias, me deixou atenta aos atravessamentos,
ao que reverberava em mim quando eu contava, e principalmente ao OUVIR/
VER essas pessoas todas contando e perceber que são todas muito distintas, com
caminhos muito singulares.
Em meio a tudo isso, foi que criei a Cia. Agora Eu Era. Pernambucana,
feita por mim e por Cacau Nóbrega, que foi músico, pesquisador e produtor da
Cia. até o fim de 2018. Com a criação dessa “companhia de dois”, onde um fazia
companhia para a outra, pude dar sequência às minhas investigações, agora com
uma interlocução sonora, musical e bastante afetiva, visto que éramos casados
à época. O nome da Cia. foi escolhido entre as páginas do livro Acordais –
Fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias (MACHADO, 2009) e
não é por acaso que dá nome também a uma parte deste ensaio.
A imagem que segue é da primeiríssima apresentação da Cia. Agora Eu Era,
que aconteceu no Terceiro Festival Conte Outra Vez, organizado pelo grupo O
Tapete Voador (PE), do qual faziam parte à época as contadoras Camila Puntel e
Roma Julia. Eu fui convidada para compor a programação no início do ano de 2014,
porém o evento acabou sendo adiado e a nova data foi marcada justo quando Cacau
chegou em casa com uma harpa artesanal. Diante do meu deslumbramento pelo
instrumento e da não possibilidade de executá-lo, o que seria uma participação
especial a princípio acabou se transformando em uma parceria que durou até o
final de 2018.

Na figura a seguir, estou manipulando o Cabra Cabrês, criatura de um


conto popular brasileiro, recontado por Ana Maria Machado na obra Histórias à
brasileira, livro essencial para a feitura desse primeiro espetáculo. Depois dele,
estreou, em 2015, O mar tá pra peixe!, espetáculo com o qual conseguimos maior
circulação.

72 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 5 – Espetáculo Histórias cantadeiras | 2014
Fonte: Arquivo pessoal.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 73


Figura 6 – Espetáculo O mar tá pra peixe! Cia Agora Eu Era (PE)
Fonte: Arquivo pessoal.

74 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Nestes percursos, existem aprendizagens específicas que me foram trazidas
pela atuação artística profissional contando histórias: encontrar as potencialidades
de cada espectador/a, de cada grupo em escuta reunido para ouvir uma história,
me colocar aprendiz da arte de narrar, cabendo transpor o respirar de tudo isso
para a sala de aula e para além dela, na escola, com Escola, em performance.
Que escuta cada grupo que se compõe para aprender teatro possui? E para ouvir
histórias? A atitude de dilatar a escuta, de ouvir as diferentes comunidades, de
construir com as pessoas presentes na performance (narrativa), de desacelerar
para que os encontros aconteçam. Há algo que a pesquisadora e narradora de
histórias Aline Cântia Miguel aponta em sua tese sobre o educadornarrador que
me interessa relacionar aqui:

É importante, nesse contexto, compreender a possibilidade de se


ensinar e aprender a arte de narrar histórias como conhecimento humano, e
não apenas como expressão humana. [...] Assim, somente a partir do momento
em que se compreende a arte de contar histórias como conhecimento é que
se torna possível entender a possibilidade do seu ensino e aprendizado.
(MIGUEL, 2017, p. 152)

Desse modo, ao me colocar como aprendiz da arte de narrar histórias,


compreendendo-a como linguagem artística e como conhecimento humano, para
mim sensivelmente corporal, iniciei uma investigação a partir desse viés, visto
que, como disse anteriormente, a palavra a ser narrada se produz num corpo.
Portanto, ao brincar com o híbrido narratriz, me alimento das artes narrativa
e teatral, numa conversa demorada, sentada de pés em contato com a calçada,
numa travessia entre acionar um corpo brincante e persistir em ação a ser
performada com as/os estudantes do componente Teatro na educação básica. Há

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 75


uma circularidade nesses ofícios, que vão se interpenetrando e proporcionando
outras formas de existir e resistir com Escola, com educação. Nesta tarefa de ver
ressoar o artístico no educacional e o educacional próprio do artístico, conf luo
com os dizeres da pesquisadora Valéria G. Araújo:

[...] compreendo que, ao longo dos anos, ao perceber a inf luência


nítida e recíproca entre as duas, tornou-se um exercício consciente no
qual eu, de propósito, empenhava-me para articular essas duas funções de
modo a ampliar minhas possibilidades nos dois âmbitos — o artístico e o
educacional. (ARAÚJO, 2016, p. 35)

Assim, instabeleço 15 memórias, personas, sensações, aprendizagens


mapeadas em diferentes momentos performativos desta narratriz: na infância
brincando de teatro na escola (dos 11 aos 16 anos), em um grupo de teatro
como atividade extracurricular, no qual vivi experiências na relação com
diferentes aspectos da arte teatral (textos, cenas, personagens, corporeidades,
espaçostempos, recepção, apresentação em festivais); na adolescência como
componente e depois como coordenadora do grupo de teatro numa igreja católica
da minha cidade; na Licenciatura em Educação Artística/Habilitação em Artes
Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco, com experiências essenciais
na articulação de todas as questões que aqui se colocam; em estágios formais e
não formais realizados na licenciatura, dos quais destaco o Colégio de Aplicação
da UFPE e o Setor de Cultura do Sesc Santa Rita, ambos no Recife-PE, nos quais
tive a possibilidade de elaboração de narrativas profissionais supervisionadas,

15 - O verbo está grafado propositalmente desta forma, como visto no glossário que abre este trabalho.

76 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


com suporte de trabalhadoras/es com posturas éticas, estéticas e políticas
que marcaram minha trajetória; em atividades de extensão universitária
(especialmente a Semana de Cênicas – UFPE, realizada pelas/os estudantes da
Licenciatura em Artes Cênicas, da qual fui participante e coordenadora) , em
que tive o primeiro contato com a linguagem artística da contação de histórias,
início do meu (re)conhecer enquanto artista da cena e da palavra, vivenciando
sensações da infância teatral e podendo, finalmente, criar a minha própria
narrativa artística/educacional.
E é acreditando nisso que afirmo que é preciso performar a si, manter-
se em formação constante, encontrando para além de metodologias, formas de
habitar o mundo, a arte e a educação que façam sentido para cada uma/um, para
que assim possamos juntas continuar gritando: Vamos performar com Escola!
Com Arte! Com Educação! Com a gente mesma! (ouço gritos vindos de
diferentes pessoas, cada uma com sua voz criando uma multidão
de vozes!)

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 77


E n s a i o 0 2
CARTOGR AFIA DE UM CORPOPALAVR A

Cartografar. Mapear. Inventariar. Registrar sistematicamente alguma coisa.


A cartografia é uma atividade originalmente da Geografia, uma área distinta da
mapeada aqui. Distinta em matéria real, irmã em matéria ficcional. O saber-
fazer-saber de uma narratriz é geográfico. (Escute em tom ficcional esta
afirmação.) Não trarei citações de geógrafos ou a história da cartografia
anterior a este trabalho. Mas afirmo que o trabalho que se deu é cartográfico e
o labirinto abaixo parece um tanto arrumado para o emaranhado que um corpo
cartografando pode manifestar.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 79


Figura 7 – Labirinto cartográfico
Foto: Arquivo pessoal. | Fonte: A Autora.

80 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Cartografia de um corpo no labirinto. Cartografia de um corpopalavra
adentrando o brocado das pesquisas com a arte de contar histórias. A cartografia
foi a forma que escolhi para lidar com as linhas, nós, investigações, suspensões,
desistências, acontecimentos, poeira, sujeira, vida desta pesquisa. Sendo bem
objetiva: é a inspiração metodológica que me deu corpo. A seguir, descrevo, ref lito,
apresento definições do que é a cartografia enquanto metodologia entrelaçando-a
com campo das Artes Cênicas, visto que o pensamento cartográfico já vinha sendo
performado em outras áreas antes desta.
No dia em que a imagem da Figura 7 foi feita eu ainda resistia, em algum
lugar do meu corpo, que este trabalho era sobre contação de histórias. Resolvi,
então, fazer uma roda bibliográfica, uma ciranda dos livros que estavam
compondo o trabalho. O espaço que escolhi não era suficiente para ter uma roda
onde os livros ficassem lado a lado e um labirinto foi acontecendo. Os livros se
sobrepondo e a materialidade da quantidade superior de livros de contação de
histórias que faziam parte da pesquisa se apresentando. A chegada de outros
elementos. Ao centro, dois vestidos. Vestes em parte, roupas dobradas que me
remetem a sensações de narrar. São figurinos. Tem dizeres próprios, vestem
minha pele que narra.
Resolvi, então, mover o corpo entre estes objetos. Perguntar a eles o que
queriam dizer. Escolhi também algumas fotografias. Imagens das memórias que
me performam contadora de histórias e educadora. De espaçostempos diferentes.
Movi. Movo. Co-movo. Comovi. E relato que todo o tempo, nos momentos em que
me senti desconectada ou perdida com a pesquisa, as ações corporais, o encontro
com as pessoas foi o que me fez retomar uma corporeidade necessária a estar
cartógrafa. Ou seja, assim realizei uma escrita corporal, performática, um mapa
que se escreve na pele da palavra da folha e também numa escuta intuitiva do
que fazer. Lembro que neste dia eu precisava ver o que estava pesquisando de

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 81


forma mais concreta, para além de um documento sendo escrito no computador.
E agora isso te narra e me narra e segue a nos narrar pois
A aparente mistura entre contador e ouvinte se desfaz na análise de
cada ação: o contador conta, o ouvinte ouve e, os dois, ao mesmo tempo,
significam juntos as palavras do conto, ainda que de forma diversa. Assim,
busco a presença do contador nessa interação entre narrador oral e ouvinte,
procurando os elementos que envolvem a escuta. Um lugar que pertence aos
dois, contador e ouvinte, o lugar da escuta. (CAFÉ, 2015, p.111)

Então, durante a pesquisa fui buscando elementos para acionar a minha


escrita, assim como manter viva uma escuta comigo mesma, o que considero
parte do que pode fazer emergir questões e discussões sobre as performances
vividas ou com as leituras realizadas, tornando-as escrita e aqui compreende-se a
escrita como instante da oralidade. Falo mais especificamente do sentido trazido
por Larrosa (2014, p. 72) quando diz: “[...] a oralidade a que me refiro não se opõe
à escrita, mas, ao contrário, atravessa toda a linguagem, como se a escrita tivesse
sua própria oralidade”.
Neste sentido, escrever à mão ou no computador após as performances foi
uma das estratégias utilizadas, quase como extensão da própria performance,
tentando manter na escrita as sensações do corpo do que foi vivido com as pessoas
na ação. E quando estava longe espaçotemporalmente dessas ações e precisava
retomar a escrita ou mesmo acionar em mim o vínculo com a pesquisa, recorri
a rituais que me trouxessem o pertencimento que há entre: entre narratriz e
ouvintes/performers, entre a performer e o cotidiano, entre a narradora e o
conto. Mover meu corpo entre livros, cadernos, fotografias, cópias, vestidos foi
um desses momentos que me fez sentir a vivacidade do corpopalavra, ainda que
sozinha.

82 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 8 – Cartografia de um corpopalavra
Foto: Arquivo pessoal. | Fonte: A Autora.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 83


Estou descrevendo minhas estratégias enquanto cartógrafa de um
corpopalavra em performação. Mas que Cartografia é esta a que me refiro? No
método da cartografia, compreende-se que “toda pesquisa intervém sobre a
realidade” (p.20) e, por isso, toda pesquisa é pesquisa-intervenção. O sentido
da cartografia é o “acompanhamento de percursos, implicação em processos de
produção, conexão de redes ou rizomas” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015,
p.10), apresentando-se a realidade cartografada como um mapa móvel, aqui
percebido dentro de um labirinto e sendo ele mesmo o mapa. Com isso, quem
pesquisa busca pistas e a construção de pistas se dá com o pensamento de reversão
do sentido tradicional de metodologia:

A metodologia, quando se impõe como palavra de ordem, define-


se por regras previamente estabelecidas. Daí o sentido tradicional de
metodologia que está impresso na própria etimologia da palavra: metá-
hódos. Com essa direção, a pesquisa é definida como um caminho (hodós)
predeterminado pelas metas dadas de partida. Por sua vez, a cartografia
propõe uma reversão metodológica: transformar o metá-hódos em
hódos-metá. Essa reversão consiste numa aposta na experimentação
do pensamento- um método não para ser aplicado, mas para ser
experimentando e assumido como atitude. (PASSOS; KASTRUP;
ESCÓSSIA, 2015, p.10-11, grifos meus)

Assim, não é possível “ter predeterminada de antemão a totalidade dos


procedimentos metodológicos” (PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 13) a serem
pesquisados. O caminho da pesquisa se faz nela própria e a atitude cartográfica
nos permite ir tomando as decisões seguintes e movendo corporalmente os

84 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


elementos que a constituem. 16 Entre minhas escolhas, está a compreensão de que
minhas pistas são os FIOS e NÓS encontrados ao percorrer o labirinto, em que a
narratriz pode ser Ariadne ou Escola, pode ser a palavra que narra ou as marcas
que conduzem à saída após matar o Minotauro.
Ressalta-se o convite que se dá com a cartografia para conectar-se em
experiência e que me ajudou a construir esta pesquisa em artes cênicas, entendendo
essa conexão como o ritualizar com o tempo e com as palavras, observando-o como
parceiro de invenção e criação, estando imersa e ganhando presença nas ações da
pesquisa, mapeando os instantes corporais, visuais, escriturais, sensoriais que
foram emergindo no processo.

O ponto de apoio é a experiência entendida como um saber-fazer,


isto é, um saber que vem, que emerge do fazer. Tal primado da experiência
direciona o trabalho da pesquisa do saber-fazer para o fazer-saber, do saber
na experiência à experiência do saber. Eis aí o “caminho” metodológico.
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 18)

As imagens que os filósofos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995)


constroem para falar de um livro rizoma, do que seria uma atitude rizomática, são

16 - A partir dos estudos dos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari e da brasileira Suely Rolnik, a
pesquisa da cartografia enquanto metodologia se deu por diferentes grupos de pesquisa brasileiros. Um
grupo especificamente se deu a tarefa de materializar essas pistas: pesquisadoras/es em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), inicialmente
enquanto grupo de estudos, que geraram textos e materiais para produção do primeiro livro, Pistas para
o método cartográfico, organizado por Eduardo Passos, Virginia Kastrup e Liliana da Escóssia, sendo
um marco para disseminação da discussão, que tem se ampliado para diferentes estados e programas
de pós-graduação.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 85


um instante que podemos narrar com vistas a situar historicamente a Cartografia,
estando este conceito no mesmo livro e sendo o elo entre as/os autoras/es que se
uniram em busca das pistas, aqui fios e nós. Sobre isso, na escrita de Mil Platôs,
Deleuze e Guatarri nos dizem:

Se o mapa se opõe ao decalque é por estar inteiramente voltado para


uma experimentação ancorada no real. O mapa não reproduz um inconsciente
fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos
campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura
máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é
aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado,
revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por
um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa
parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou
como uma meditação. Uma das características mais importantes do rizoma
talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; a toca, neste sentido, é um
rizoma animal, e comporta às vezes uma nítida distinção entre linha
de fuga como corredor de deslocamento e os estratos de reserva ou de
habitação (cf., por exemplo, a lontra). (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 21,
grifo meu).

Percebendo o labirinto como o mapa desta pesquisa, que manteve um


constante estado de pergunta, visto que uma pessoa imersa num labirinto
terá que se perguntar a todo tempo “Para onde vou agora?”. Investindo numa
produção singular que reconhecesse os modos de saber-fazer e de fazer-saber
aqui pesquisado, estabeleço conexão com a ideia dos filósofos da seguinte forma:
a contação de histórias como linha de fuga do meu processo performativo, a
escola (e mais amplamente a educação) como meu lugar de habitação e o teatro

86 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


como meu estrato de reserva, de armazenamento, todas estas presentes em meu
labirinto.
Como visualizo tais labirintos? Eles são construídos com
repartimentos polimorfos, de disposição esteticamente enredada, tortuosa,
intrincada, que nunca repetem sua própria forma, sendo que tais feitios são
justamente aqueles que os tornam um lugar complicado e, muitas vezes,
inextricável e admiravelmente emaranhado. Seus corredores estão dispostos
em uma ordem tumultuosa, que depois de neles entrar é quase impossível
encontrar a saída, mesmo que desejemos. O traçado de seu desenho é formado
por linhas sinuosas e imprevisíveis, das quais, quando se está dentro, não
se tem a mínima ideia de onde nos levarão, nem onde estão seus pontos
de fuga, ou mesmo aqueles de aprisionamento. Lugar onde muitas vezes
é preciso voltar sobre nossos próprios passos, para encontrar outras
possibilidades de continuar em movimento; ou então gritar bem alto,
para que o som da própria voz seja a única a nos fazer companhia, e não
se morra de solidão. (CORAZZA, 2007, p.106, grifos meus)
É nesse lugar de escritura corporal e verbal que a pesquisa foi se produzindo,
ao encontrar outras estratégias para manter-me no labirinto, tão bem descrito
pela professora e pesquisadora Sandra Mara Corazza, cuja forma de fazer pesquisa
me mobiliza e movimenta. Ouço os gritos dela aqui em meu labirinto, o que
me torna menos só. Neste sentido, considerar as comunicações das etapas da
pesquisa em eventos (congressos, encontros, conversas, debates) como espaço de
criação, realizando-os como um instante de narrativa oral, narrando a pesquisa
para as pessoas, onde fui transformando o que era pesquisado em palavra a ser
compartilhada, e ao dizê-las, a pesquisa se (re)criava e modificava, num f luxo
de retroalimentação, de linha que sai e volta para um bastidor de bordado e vai
se tornando imagem, mas não deixa de ser ponto nem de ser linha. Assim, fui
exercendo instantes de singularizar-me enquanto narratriz na invenção deste
meu saber/fazer/saber em performance com a educação.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 87


Figura 9 – Cartografia de um corpopalavra
Foto: Arquivo pessoal. | Fonte: A Autora.

88 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Assim, as palavras que seguem me fazem entrar em contato com a criação
desta singularidade:

Entendemos o desejo de alguns pesquisadores em operar conceitos


para experimentá-los na realidade, mas percebemos também que a relação
com a realidade é mediada pela linguagem que pode estar atravessada pela
ficção. Os conceitos são inventados, ainda que não sejam arbitrários.
Eles nascem da relação direta com a prática da pesquisa artística. (BRAGA;
FERRACINI; TROTTA, 2013, p. 197, grifo meu)

Nesta singularidade, enquanto narratriz me invento para “encarnar a


palavra” (LARROSA, 2014), estar conectada, presente, numa ação relacional com
a plateia, ativada para dar protagonismo ao que será dito, narrado em corpo e
com o corpo, este corpo que é carne, vivo.

O corpo permanece estranho a minha consciência de viver. É o


ambiente em que me desenvolvo. Os fatos corporais não são jamais dados
plenamente nem como sentimento, nem como uma lembrança; no entanto,
não temos senão o nosso corpo para nos manifestar. Série de paradoxos que
servem para definir, por aproximação hesitante, errática, o lugar em que se
articula a poeticidade. A poeticidade, assim ligada a sensorialidade, a isto
que alguns chamam o sensível, e que Merleau-Ponty denominava com uma
palavra magnífica, emprestada à tradição do cristianismo primitivo, a carne.
(ZUMTHOR, 2014, p. 78)

Compreendendo que neste saber/fazer/saber a pessoa que narra se inventa


na sua totalidade, existem reverberações e escolhas que se pautam em ações

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 89


educacionais, no meu caso, de forma que me sinto num espaço entre, num
deslocamento com relação ao mover o corpo ao narrar, constituindo um corpo
narrativo. Um corpo que é tecido da educação e do teatro, materialidade da
palavra e com a palavra e que, ao adentrar o espaço escolar, é também por ele
narrado. E, ao adentrá-lo como cartógrafa, sei que

Em realidade, entra-se em campo sem conhecer o alvo a ser perseguido;


ele surgirá de modo mais ou menos imprevisível, sem que saibamos bem de
onde. Para o cartógrafo, o importante é a localização de pistas, de signos de
processualidade. Rastrear é também acompanhar mudanças de posição, de
velocidade, de aceleração, de ritmo. O rastreio não se identifica a uma busca
de informação. A atenção do cartógrafo é, em princípio, aberta e sem foco, e
a concentração se explica por uma sintonia fina com o problema. (PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 40)

A partir do exposto, é possível afirmar que, tanto no ofício como contadora


de histórias quanto no trabalho de educadora com o Teatro, as cores da narratriz
foram se costurando em diferentes ações, ao elaborar sentidos com as diversas
singularidades e paixões que encontrei, inventando coletivamente, suspendendo
o tempo do eu e encontrando um tempo do nós, mas não um “nós” esvaziado
e sem vida. Um “nós” feito de nós, como numa costura, ao escolher e mover
linhas, agulhas, tecidos, tesouras, recorte, na ação potente de encontrar, de estar
presente, aberta às histórias que coloriam algumas respostas para uma pedagogia
do teatro onde eu me reconhecesse e também que me possibilitasse perguntas.
Agora, neste momento em que estou a me escrever/inscrever nesta trajetória,
percebo como ela ressoa com tantas outras, impregnada de modos de agir, de atuar
politicamente, em que reverbero também o que os pesquisadores canadenses

90 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Sylvie Fortin e Pierre Gosselin dizem: “a escrita é um lugar de incorporação de
conhecimento sensível, bem como conhecimento teórico, além de um lugar de
integração tanto de emoção, quanto de cognição” (FORTIN; GOSSELIN, 2014, p.
13).

A pergunta central que me moveu e deslocou (O que cria uma


narratriz com educação para além da sala de aula?) , e foi tantas
vezes (re) criada na prática da pesquisa, na prática artístico/educacional que me
propus a rastrear, inventando meu corpo narrativo com Escola, com educação.
E, retomando o espaço do Colégio de Aplicação da UFPE nas ações da pesquisa,
percebi o quanto posso instaurar neste e em outros espaçostempos educacionais,
ações performativas com meu corpo, sabendo que no percurso, no labirinto a ser
vivido, criado, movido, bordado, respirado também há espaço para os erros, que
agora ao escrever encaro como impulsos para o movimento, para o pensamento,
para novas questões. Os pesquisadores Matteo Bonfitto e Moacir Romanini Junior
apresentam possibilidades para uma “escrita dos erros” ao ator-pesquisador:

Cabe então a ele uma escolha, um posicionamento de coragem e


um questionamento diário sobre suas próprias verdades. Mas ao contrário
da ciência, não nos referimos à comprovação da verdade, mas, sim, da
instauração de uma verdade, que nasce da especificidade de parâmetros
metodológicos em constante construção, e que embora realizada sobre
padrões científicos, terá sempre uma arquitetura particular, distante das
uniformidades. (BONFITTO, JUNIOR, 2015, p. 117)

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 91


Figura 10 – Cartografia de um corpopalavra
Foto: Arquivo pessoal. | Fonte: A Autora.

92 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Com isso, buscando constituir-me entre artista e educadora, no lugar em
que uma palavra se torna outra, reconheço que narratriz é uma performer, que se
criou/cria em liminaridade com espaçostempos educacionais, como nos aponta
Icle e Bonatto (2017) quando falam:

Assim, a potência da noção de performance no campo da educação,


em especial na análise da escola, circunscreve‑se não apenas no diagnóstico
(pensar a escola como performance), mas também na proposição (pedagogias
performativas), pois a qualidade da performance (o performativo) é a
capacidade que ela tem de nos mostrar a transformação como fator essencial
da ação humana: na performance fazemos alguma coisa que nos permite
refazer‑nos a nós mesmos. (ICLE; BONATTO, 2017, p. 9)

Outra frase ecoa: “um mapa é uma questão de performance” (DELEUZE;


GUATTARI, 1995, p. 20). Cartografar como ação performativa, com um corpo
sendo performado, mesmo que alguns elementos sejam constantes, como a
educação e a arte, ao criar um constante estado de pergunta, narramos um estar
num ritual a ser vivido em conjunto, a ser dilatado e contaminado, a ser afetado
por quem dele participa. Descrevo, nesta perspectiva, algumas estratégias como
narratriz no labirinto:
- A forma de considerar os momentos de compartilhar a pesquisa como
prática de narração oral, tornando-a narrativa e este momento como etapa de
produção/criação da pesquisa;
- Invenção de elementos de concretude e materialização física da pesquisa
para corporificar a escrita. Por exemplo, movendo e narrando meu corpopalavra
num labirinto de objetos, entre livros que faziam parte da bibliografia, fotografias
onde eu estava em cena, cadernos com anotações e esquemas pessoais, figurinos
de espetáculos, fazendo imagens destas vivências;
Performances entre contação de histórias, teatro e educação 93
- Tornar a escrita parte da performance, ainda que não fosse no local onde
aconteceu, mas retomando fatos vividos e buscando uma conexão corporal para
que ela acontecesse;
Para finalizar, segue abaixo um quadro com as performances realizadas,
assim como outros momentos de compartilhar da pesquisa que acabaram se
tornando extensão, tornando-se ela mesma.

Quadro 3 – Labirinto de ações da pesquisa.

Tempo Ação Espaço

Ação Prévia do evento Reperformar


22 de abril de
Performance Narrar conjugado o Afeto do LabPerformance da
2018
UFRN na cidade de Bom Jesus -RN
10 de outubro Colégio de Aplicação da UFPE -
Performance Costurando o Tempo
de 2018 Recife-PE
Comunicação oral – Narrativas de GT Cartografias de pesquisa
15 de outubro
experiências inventadas: palavras em andamento X Congresso
de 2018
de uma narratriz em cartografia. da Abrace - Natal - RN
Comunicação performativa- Per/
23 de novembro formação de uma narratriz/docente: IX Jornada de Pesquisa em Artes
de 2018 ritualidades entre teatro, currículo Cênicas – UFPB- João Pessoa -PB
e educação básica
O potencial da Aula Estranha-
9 de fevereiro
Performance narrativa Encontro artístico-pedagógico na
de 2019
Escola da Penha -PB

94 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


23 de maio de Performance Nós de nós Colégio de Aplicação da UFPE-
2019 Recife-PE
03 de junho de Performance Aos pés de Paulo
Colégio de Aplicação da UFPE
2019 Freire, o deserto virou desejo
Comunicação oral com
demonstração técnica - Narratriz/
06 de setembro docente: experiências de formação SPA – Seminário de Pesquisas em
de 2019 artístico-pedagógica de uma Andamento –ECA USP
contadora de histórias em fricção
com Escola

Arte, educação e resistência na Faculdades de Belo Jardim -


03 de outubro
Performance/ conversa Nós ação da Mostra SESC Lagoa
de 2019
de nós do Capim - Belo Jardim -PE
14 de outubro Performance Nós de nós e conversa
IFPE – Campus Olinda-PE
de 2019 sobre o processo de criação
Performance Nós de nós no VI
21 de novembro Simposeduc - Mesa-redonda - Devir
UERN - Mossoró – RN
de 2019 criança, processos pedagógicos e a
multirreferencialidade

Performance Nós de nós e exercícios Formação de contadoras/es de


14 de dezembro histórias do Grupo Zumbaiar-
corporais para contadoras/es de
de 2019 Recife -PE
histórias

Fonte: A Autora.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 95


E n s a i o 0 3

96 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Uma Narratriz Costurando O Tempo

E, como quem pega na agulha, em algum momento se fura e sangra ou


ainda como a velha mãe que teve seus olhos em sangue ao bordar, resolvi incluir
o tempo na discussão que ora apresento. (Você vai entender porque.) As
palavras que seguem foram costuradas após a primeira performance realizada no
Colégio de Aplicação da UFPE. Costurando o tempo foi uma performance com
desejo de escuta, que acionou uma partilha narrativa em uma das comunidades
a que pertenço como artista/educadora, como professora-performer, como
narratriz. A partir do ato real de costurar um tecido com as palavras que me
atravessassem naquele momento, constituí um tecido, pequeno e interno, para
pensar as costuras de um tempo performativo, de quem narra e quem escuta com
Escola, com educação.

Ora, medir uma duração é a mesma coisa que medir o tempo? Sim e
não. Sim, pois o tempo é aquilo que permite que haja durações, produzindo
continuidade no conjunto de instantes. Não, pois a medição de uma duração
não exibe de forma alguma o tempo que a fabricou, tampouco revela o
mecanismo misterioso pelo qual, tão logo aparece, todo instante presente
desaparece para dar lugar a outro instante presente, que por sua vez se
retirará para dar lugar ao instante seguinte. Ora, o tempo é precisamente
esse “mecanismo”, essa máquina de produzir novos instantes o tempo todo:
esse motor íntimo, esse sopro escondido no centro do mundo pelo qual o
futuro se torna primeiro presente, depois passado. (KLEIN, 2019, p. 19)

E como as histórias são porta-vozes desse “sopro escondido no centro


do mundo” (KLEIN, 2019, p. 19), com segredos que despedaçam ou ampliam os
instantes, a performance narrativa é uma ação para relacionar-se com esse tal desse
tempo. A performance narrativa, então, compreendida como o acontecimento de
quem instaura um espaçotempo para a narrativa oral foi a inspiração para voltar

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 97


como pesquisadora ao meu lócus artístico/educacional, costurando um tempo
que é tão evidenciado como ausente no espaço escolar. Meus fios de lágrima e
sangue, os elementos que me costuram o corpo entre narradora, atriz e educadora,
que singularizam as imagens de meu brocado, seguem para trocas com você,
performer/leitor/a.

COSTURANDO O TEMPO 17

10 de outubro de 2018
Escritas em 10 de outubro, até as 21h49
Escrevo no computador, em minha casa

Uma mulher costura o tempo. Em tempo, não faz nada. Ouve e só. Você tem
alguma história pra me contar? ( frase dita quando alguém se punha em relação
comigo, fosse verbal ou não)
A frase ecoa na minha cabeça na mesma medida em que o sol quente deixou
uma sensação de mormaço aqui dentro. Um sono de praia, uma luz quente no
peito. Estacionei o carro longe, num lugar que nunca tinha deixado. Descalça,
peguei os dois tecidos e a cesta com linhas e agulhas, fui. Caminhei lentamente,
sentindo pedra quente e grama, areia morna. Sol no céu bem azul. Homens no alto
trabalhando. Perto, vejo Escola. Entro em cena um pouco depois quando sou vista.

17 - Os registros escritos das performances realizadas aparecerão no texto destacado em itálico. Faço
essa escolha para demarcar visualmente uma mudança na espaçotemporalidade de uma voz que é
também dissertativa e poética, mas, sobretudo, narrativa e quase dramatúrgica.

98 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


As pessoas me percebem e cumprimentam. Inquietas com minha lentidão:
— É procissão, a gente tem que te seguir?
— Se quiser... venha... (eu respondo)
— Oxe, ela hoje tá pior, DOIDA! (Assim, grande e seco, me diz a secretária
que está fumando um cigarro em frente ao prédio)
Pela porta da frente, entra o Teatro, carregando sua loucura de sempre, vai.
Penso que os apelos serão muitos. Me pergunto o que estou, mas já estou e sigo...
Área lateral verde aberta, vou indo, sigo para uma parede com pequenos quadrados
e olho através. Olhar através, sentir através, perceber através. Ninguém me vê,
não sou notada pelas/os estudantes. Apenas estou. Seguro os tecidos, um verde
e um preto. Visto roupa preta (calça legging, blusa de alça). Em outros tempos
jamais usaria uma blusa dessas na escola. O que se lança através do meu corpo
que veste? Quantos preconceitos vestem meu corpo ao entrar na escola? O que
ignoro e escondo de mim propositalmente? Quem entra? A docente, a artista?
A pessoa com RG? Na frase digo uma mulher... talvez seja um início de mim no
mundo, ser mulher, não um definidor, talvez um disparador... Alguém vai passar
pela porta que liga o CAp ao Centro de Educação e me vê. Alguns alunos estão
tendo aulas lá porque a escola está em reforma. Digo o texto e eles me cercam.
Na maioria, alunos do 8º ano, que estiveram comigo durante 2016 e 2017 no 6º e 7º
anos, foram meus alunos de Teatro. Algumas indagações:
— Voltou?
— Tá fazendo o que aqui?
— É uma performance?
Um menino mais novo pergunta o que é isso, e Maria Cecilia (a quem muitos
chamam Ceci), do 8º ano, afirma:
— Espera você chegar no “oitavo” que você vai saber ou, se não, fica sabendo
agora mesmo!

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 99


Agora mesmo!
Antes, Ceci diz: professora, solta eles e só me abraça!
Após as indagações, respondo:
— Vim costurar o tempo...
Elas/es dizem:
— Ué, mas como assim?
— Por quê?
— Pena que não tenho tempo, queria ver...
E eu:
— Mas por que você não tem?
— É que o tempo passa rápido!
— Pra onde?
— Ué , vai ficando maior... crescendo...
— Mas, se tá crescendo, como você não tem? Como tá faltando?
Rimos... Andrea, professora de português, se aproxima, fotografa, ri.
Estendo o tecido no chão e sento. Eles me arrodeiam e ficam. Depois sabem que
foram liberados, podem ficar ali, “tem tempo”, diz Ceci. E ficam! Ficam! Durante
quase 40 minutos eles ficam me vendo costurar, eu me emociono, sigo alinhavando
a palavra artista e me pergunto: como? Alguns opinam que a palavra é Arte, outra
Artesanato, mostro: Artista. Eu não esperava tecer esta palavra no meu corpo.
Eu não esperava fazer de meu corpo sua morada, bordá-la em minhas vestes com
cores calmas. Conversas:
Ceci: — Bem, já que estamos aqui... eu comecei a namorar, professora! Com
Antonio, lembra dele?
Vitória: — Ela não lembra, já não tava aqui...
Eu: — Lembro!
Ceci: — Tá vendo!

100 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Eu: — E aí, como foi?
Ceci: — Ah, ele gostava de mim, e eu percebi que tava deixando ele passar...
tive uns ciúmes e comecei a gostar também...
(silêncio e costura)
Ceci: — Uma amiga está com pânico, não está bem por causa de uma
situação (ela faz o gesto de aspas com as mãos), o que a senhora diria? (conta-me
uma história de amor) e eu digo:
— Tempo!
— E isso dá certo? Já deu com você?
— Sim, respondo.
Andrea ri. As adultas da história, sentadas... uma costura de tempos em
mim, fico pensando em cenas de quando fui estudante, da professora que agora
sou. Chamada pelo nome professora. Com um ar de imperativo e saudade. Eu
estava com muita saudade. Das vozes, das inquietações, dos suspiros, da risada,
do aconchego que só elas e eles (as/os estudantes) têm. Aqui dentro, agora, após
o medo. Vejo que entrei artista, queria entrar artista hoje. Queria uma outra pele
para atravessar a porta e a trouxe, com direito a costurá-la e tecê-la, bordá-la. Em
pouco tempo sou lembrada pelas paredes de quem eu sou ali. Na verdade, acessaram
com tanta leveza aquela provocação que ela parecia óbvia de acontecer. Eu, com
13 anos, não imaginaria qualquer professor meu chegando descalço, entrando na
escola carregando não sei quê e me dizendo que ia costurar o tempo. (Dá vontade
de rir, me transportando para prédio de antes, da escola em que estudei.)
Ah, o prédio! Fico sabendo que a reforma tem deixado todo mundo longe,
distante...
— Tá tudo estranho, professora! Todo mundo separado, e a escola tá parecendo
um hospital de tão branca!... A gente devia fazer uma “grafite” organizado... em
cada sala... ia ficar mais bonita...

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 101


A palavra organizado fica sublinhada em minha mente. Como assim um
grafite organizado?
Uns estudantes vêm, outras estudantes vão, vários acenam e mandam beijos.
A maioria é de uma turma que me deu muito trabalho. Muito! Não imaginava
que um dia eles me nutririam com risadas e ficariam sentados no sol quente me
vendo costurar... o tempo! Tempo na escola é coisa muito séria. E cada uma/um
sabe disso. Finalizei a palavra artista. Não ficou bonita nem bem acabada. Ficou
legível, possível de ser. Possível de ser vista. Ali, me misturo, me integro, sou em
mim o que preciso ser. Sem nenhuma obrigação com o tempo, pude olhar, rir,
ouvir, trocar, estar junto. E por que não sempre? Vou caminhando para a quadra,
após abraços e agradecimentos. De Ceci, principalmente.
Chego no recreio coberto. Sento ao longe, vem umas alunas do sexto ano.
Digo a frase, olho no olho, mas não há conexão. Elas vêm porque têm que vir,
porque querem saber da minha tatuagem, de quando volto a dar aulas e começam
a falar sem parar. Começam a me contar histórias, a dizer como estão as coisas,
mas não consigo me conectar, ouvi-las. Algumas pessoas falam ao microfone
e não consigo ouvi-las também...me sinto fora, sem fazer nada, não estou ali.
Penso: “não é meu lugar, tô atrapalhando, eu devia terminar agora, fim...” Fico,
vou ficando, escuto algumas palavras, a menina negra de cabelo crespo, com um
enfeite bem bonito, me conta que aprendeu a costurar com a avó, uma outra segue
e diz que aprendeu com o pai, a outra com a mãe a fazer fuxicos! Elas sabem
costurar! (me espanto) Mas ainda estou longe, desconectada. A apresentação de
português precisava de atenção, e eu estava me sentindo invadindo o espaço. A
começar pelo fato de a proposta não estar na programação, pois “achamos que
não cabia em canto nenhum”. Só porque não tinha horário! (Explico: esta ação
integrou/integraria a Semana da Leitura e Literatura, porém, como eu informei
que não tinha um lugar e horário específicos, não foi incluída em parte alguma

102 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


da programação). — É que dava informações subjetivas no release. (disse-me a
pessoa que estava coordenando o evento). E não é isso que a arte faz? Não significa
que não queremos ocupar espaçostempos, mas desejamos criá-los de outro modo,
inventá-los, invertê-los... A professora que estava coordenando o evento vem até
mim, como por obrigação, interage rapidamente e sai. Mostra ao professor de
Teatro onde estou, ele se aproxima e sinto uma felicidade imensa. Falo a frase,
continuo a costura, mas ele me fala num tempo racional, 2+2 e sai dizendo que vai
cuidar do tempo!
Vou...
Alguns sentimentos, fora da ordem do tempo:
Me sinto feliz, voltei, estou fazendo parte. (como estou afastada para os
estudos do mestrado, durante o ano de 2018 minha rotina foi alterada e eu não
estou frequentando a escola dentro de uma rotina regular)
Estudantes que nunca imaginei me deram acalanto e força, verbo pra
costurar poesia, motivos para voltar, para querer, para tanta, tanto! Sim, outros
profissionais, professoras/es, passaram, riram, acharam bonito, elogiaram?,
outros não me reconheceram, seguiram em frente, fofocaram.
Conexão veio das/os estudantes, com presença. Como se me conhecessem
mais, como se soubessem a substância de que é feita uma artista/docente e deram
a medida certa para crescer minha saudade. Que alegria! Vejo repetirem por aí...
Não me senti numa performance (aspas!) me senti em aula, não “dando
uma aula”, talvez por não ter uma avaliação a ser feita, por não ter obrigações.
(aspas!) Por não estar cumprindo conteúdos ou planejamento. (aspas!) Penso que
estava em trânsito. Eu sabia o programa da performance, estou agora registrando,
eu sabia o contexto, sabia que para alguém faria sentido, principalmente para as/
os estudantes mais velhos de teatro. Por quê? O que quero dizer com dar aula?
Sigo as costuras, sigo meu rastro, e não me sai da cabeça a frase dita por um

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 103


professor após indagar incessantemente sobre o que era aquilo, dentre outras
coisas insistindo para que eu lhe contasse sobre o mestrado. Repito para ele: —
Estou costurando o tempo! Isto aqui é o mestrado! Ele, então, se afastando, me
diz:
CUIDADO PARA NÃO FURAR OS DEDOS!

A advertência de meu colega me leva diretamente ao conto de A Bela


Adormecida, partícipe do nosso imaginário coletivo, especificamente na cena em
que a princesa, por estar curiosa com um objeto que nunca viu, põe o dedo no
fuso, fato profetizado por uma feiticeira no momento de seu batizado. Peço que
se relacione com o trecho da história que segue, versão do livro Contos de fadas
da editora Zahar (2010), que tem apresentação de Ana Maria Machado. No conto
A Bela Adormecida:

Depois de subir uma estreita escada em caracol dentro da torre, viu-


se diante de uma portinha com uma chave velha e enferrujada na fechadura.
Quando rodou a chave, a porta girou e revelou um quartinho minúsculo.
Nele estava uma velha com seu fuso, muito ocupada em fiar linho.
“Boa tarde, vovó”, disse a princesa. “Que está fazendo aqui?”
“Estou fiando linho”, respondeu a velha, cumprimentando a menina
com a cabeça.
“O que é isso bamboleando assim tão esquisito?”, a menina perguntou.
E pôs a mão no fuso, pois também queria fiar. O feitiço começou a fazer
efeito imediatamente, pois espetara o dedo no fuso. (p. 123)

Saltam-me tantas metáforas lendo este pequeno trecho desta obra e nem
vou entrar em questões como a construção do feminino nos contos de fada, por

104 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


exemplo, que muito me interessa, porém não é o foco deste trabalho. Olho para
essas figuras femininas da história, sim, uma velha e outra moça, a sabedoria de
quem fia e está num quarto minúsculo, geralmente o lugar que ocupa a sabedoria
ancestral ou o Teatro na escola. Também vejo o Teatro com a juventude e ousadia
da princesa e espeta não só o dedo, mas o corpo todo para inserir-se na educação
com a potência da curiosidade que lhe é própria. É como artista/educadora da
linguagem teatral nesta escola que me propus nesta pesquisa a sentir, alinhavar,
recortar, mover o que meu corpopalavra é neste espaçotempo — uma narratriz—
e perguntando constantemente: o que ela cria?
A seguir, alguns fios desta cartografia, enredadas com o relato da
performance Costurando o tempo, não sem antes me relacionar com os seguintes
dizeres:

[...] o tempo é antes de tudo uma palavra de nossa língua, uma


palavrinha de apenas duas sílabas, como tantas outras do nosso idioma.
É preciso dizer que é uma palavra muito útil, talvez indispensável, visto
que constantemente precisamos usá-la. Como seria possível falar de um
acontecimento, contar uma história ou exprimir uma emoção sem
inseri-los numa trama temporal? Sei que esta palavra não existe em
todas as línguas, mas aqui nestas nossas paragens, se retirarmos a
palavra “tempo” do vocabulário, seria como se nossa boca tivesse sido
costurada. (KLEIN, 2019, p. 11, grifos meus)

Com a boca bem aberta para tecer essas costuras, ainda vivendo a “trama
temporal” (KLEIN, 2019, p. 11) daquela performance, adensando um lugar interno
que guarda as minhas vivências enquanto artista, com o peito sentindo aquele
dia e o sol quente que ele tinha e outros instantes já passados, memórias, que

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 105


se ativam na construção deste pensamento, ponho no bordado as palavras de
Ângela Café em sua tese de doutorado:

Entendendo como reminiscência aquilo que é conservado na memória,


os contadores de histórias tradicionais são o próprio elo entre passado,
presente e futuro, que compõe as narrativas e fundam a reminiscência.
[...] Quando contamos ou ouvimos histórias estamos envolvidos com a
reminiscência, buscando lembranças de vivências, esquadrinhando os
significados envolvidos em seu enredo, associando-os com nossa experiência
pessoal, em um movimento de aproximação e distanciamento. (CAFÉ, 2015,
p. 125-126)

106 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Os Três Fios Da Narratriz

Assim, conectada aos contadores da tradição e aos contos da tradição oral,


em que o número 3 é bastante comum (3 filhas/os, 3 acontecimentos desastrosos,
3 pedidos ao gênio, para exemplificar de forma geral), seguem 3 fios importantes
para a costura que faço na composição da narratriz, evidenciando algumas
respostas para o que ela cria.

fio 1- Cria espaçostempos descotidianos com uma


comunidade narrativa.
Um tempo “fora do tempo” como quando acionamos o tempo do era uma vez
e iniciamos a narrativa de um conto. O estranhamento percebido pelo caminhar
lento, aparece na fala de quem me recepciona em frente à escola:
— É procissão, a gente tem que te seguir?
— Se quiser... venha... (eu respondo)
— Oxe, ela hoje tá pior, DOIDA! (Assim, grande e seco, me diz a
secretária que está fumando um cigarro em frente ao prédio)
O lugar da loucura é ofertado a mim pela narrativa de quem me vê,
de quem entra em relação com uma mulher, professora de Teatro, que chega
descalça carregando em suas mãos tecidos e no corpo todo a narrativa de que
outra temporalidade está a acontecer, trazida pela imagem da “procissão” dita
pela secretária ao me receber. É neste sentido que sublinho as perguntas que
aparecem em minha narrativa.
O que se lança através do meu corpo que veste? Quantos preconceitos
vestem meu corpo ao entrar na escola? O que ignoro e escondo de mim
propositalmente? Quem entra? A educadora, a artista? A pessoa com RG?
A narratriz habita um corpo narrativo, um corpo que performa na contação
de histórias, que se veste das suas experiências de seu autoconhecimento, como
nos conta Café:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 107


Deste modo, entendo que as técnicas do contador de histórias se
desenvolvem na perspectiva das possibilidades de conhecimento e ampliação
de sua própria capacidade de lidar com a linguagem de seu corpo e de seus
recursos de linguagem. Para isso, se faz imprescindível o autoconhecimento,
por meio de experiências de descobertas das potencialidades pessoais de
cada contador, ainda que vivenciadas coletivamente. (CAFÉ, 2015, p. 206)

O corpo narrativo provoca leituras ao entrar em contato com a comunidade


narrativa a que se dirige, nas escolhas que faz do que traz consigo, do que carrega
na pele, sejam desenhos, tatuagens, pinturas, maquiagens, ou ainda posturas,
gestos, movimentos, desenhos no espaço. Chegar carregando uma cesta, tecidos,
descalça e caminhando lentamente no espaço escolar provocou um interpelar
de quem me viu, uma provocação sobre o que estava acontecendo, assim como
me atravessa e compõe o corpo em camadas narrativas: corpo-contadora, corpo-
professora, corpo-narratriz, com as narrativas sociais que cada ofício deste compõe
e também com as narrativas pessoais que acionei para cria-los, percebendo-os
dentro deste tempo descotidiano, que moveu meu corpo narrativo com Escola,
com educação.
Faço a ampliação para a palavra educação aqui, pela compreensão de que
é o corpo que instaura isso tudo e com isso, posso mover essas questões para
qualquer lugar, instituído como educacional a priori ou modificado na ação,
performando-se educacional, o que implica na presença e na troca com outros
corpos. Este tempo descotidiano acionado pela narratriz, esta performer, se dá
para além da sala de aula, porque não requer paredes para que aconteça, é um
fora-dentro-fora que está na relação, entre as pessoas que criam, no instante
que se cria. Havendo, com isso, uma atenção cartográfica, que não se atenta a
informação a ser veiculada para alguém, mas na criação de um conhecimento

108 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


conjuntamente, em comunidade. Está no modo como se cria, na relação que se
instabelece e na consciência de que a instabilidade é uma constante na educação
e na arte.
A narratriz hibridiza o espaçotempo que se propõe a habitar, na intenção de
se conectar com as pessoas de modo performativo, trazendo em seu corpopalavra
o que ela é, a história que quer contar e o que em silêncio apresenta por estar, por
escolher um lugar e ir até ele, por uma caminhada interna lenta que contribui para ir
conectando experiências e movendo as perguntas que trarão a história. E entendo
história aqui como o conhecimento teatral que posso colocar em questão, como
o conto a ser narrado, como a educação que desejo fazer integral, discutindo-a
a partir da experiência vivida. E, como tal, carregada de significados de quem
cria com a performance que propõe e quem cria com a performance proposta. É
na ação, portanto, que as coisas acontecem de fato: o teatro, a performance, a
educação, a contação de histórias, a escola e os corpos que interligam todas elas
e as corporificam, tornam imagem no pensamento ou no espaço.
Portanto, a utilização do prefixo des- é um convite a suspender o cotidiano,
mas sem sair dele, uma imersão em um tempo diferente da ação cotidiana, mas
imerso nela, habitando o mesmo espaço, o mesmo instante, sabendo-se nele
criador/a de algo além dele mesmo, além de si mesma, um espaçotempo coletivo,
comunitário, percebido distintamente pelas diferentes singularidades e habitado
no aqui e agora, no presente.
Na narrativa em questão, a partir do encontro com as/ estudantes, saem as
perguntas, que me fazem chegar em outra criação da narratriz, que se relaciona
com a anterior:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 109


fio 2- o corpo da narratriz se constitui entre a ação de ser
narrada e de narrar. Disseram os/estudantes:
— Voltou?
— Tá fazendo o que aqui?
— É uma performance?
Um menino mais novo pergunta o que é isso, e Maria Cecilia
(a quem muitos chamam Ceci), do 8º ano, afirma:
— Espera você chegar no “oitavo” que você vai saber ou, se
não, fica sabendo agora mesmo!
A ação que está acontecendo, o espaçotempo que está posto é lido e
narrado pelas/os estudantes que tiveram contato com a performance em nossas
aulas de teatro. Neste sentido, percebo o meu corpo de quem narra histórias e de
quem educa com teatro e que se emaranhou entre estes dois ofícios, como lócus
performático dos dois. Nesta percepção, intenciono que o afeto esteja presente
nas pautas dessas narrativas:
Antes, Ceci diz: professora, solta eles e só me abraça!
Após as indagações, respondo:
— Vim costurar o tempo...
Elas/es dizem:
— Ué, mas como assim?
— Por quê?
— Pena que não tenho tempo, queria ver...
E eu:
— Mas por que você não tem?
— É que o tempo passa rápido!
— Pra onde?
— Ué , vai ficando maior... crescendo...

110 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


— Mas, se tá crescendo, como você não tem? Como tá
faltando?

A discussão sobre tempo se coloca entre nós, o que é narrado a mim, traz
uma narrativa comum no espaço escolar: a falta de tempo. Mas a falta de tempo
para que? Para sentar, conversar e ouvir uma história? Para apreciar arte? Para
se permitir estar em criação? Em que momentos me permito viver este tempo de
criar para além da sala de aula quando estou no meu cotidiano? Que pistas de
descotidianizar a escola esta pesquisa me aponta? Contar e ouvir histórias, com
certeza, é uma delas! Estar em estado de partilha, de compartilhamento da arte,
de compartilhamento da arte com Escola, do testemunho de tornar-me artista/
educadora, dentro de minha singularidade, com as pessoas, com os afetos, com
os devires. Assim:

Rimos... Andrea, professora de português, se aproxima,


fotografa, ri. Estendo o tecido no chão e sento. Eles me arrodeiam
e ficam. Depois sabem que foram liberados, podem ficar ali, “tem
tempo”, diz Ceci. E ficam! Ficam! Durante quase 40 minutos eles
ficam me vendo costurar, eu me emociono, sigo alinhavando
a palavra artista e me pergunto: como? Alguns opinam que
a palavra é Arte, outra Artesanato, mostro: Artista. Eu não
esperava tecer esta palavra no meu corpo. Eu não esperava fazer
de meu corpo sua morada, bordá-la em minhas vestes com cores
calmas. Conversas:
Ceci: — Bem, já que estamos aqui... eu comecei a namorar,
professora! Com Antonio, lembra dele?
Vitória: — Ela não lembra, já não tava aqui...

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 111


Eu: — Lembro!
Ceci: — Tá vendo!
Eu: — E aí, como foi?
Ceci: — Ah, ele gostava de mim, e eu percebi que tava
deixando ele passar... tive uns ciúmes e comecei a gostar
também...
(silêncio e costura)
Ceci: — Uma amiga está com pânico, não está bem por causa
de uma situação (ela faz o gesto de aspas com as mãos), o que a
senhora diria? (conta-me uma história de amor) e eu digo:
— Tempo!
— E isso dá certo? Já deu com você?
— Sim, respondo.
Tempo e experiências, eu diria agora. O tempo e narrativa das experiências
da educação em meu corpo, da energia de encontro que é contar uma história,
que faz celebrar o sol quente e permanecer em comunhão, que faz rir. Encontrar-
se para ouvir, para narrar, para tornar-se comunidade. Escolher ficar ali. Não
era um horário de aula, não valia uma nota, não estávamos cumprindo créditos
curriculares, estávamos costurando os tempos juntas e juntos, celebrando o
encontro. Me nutro desta narrativa que acabo de fazer para dizer das brechas
que podemos fissurar em meio as narrativas congeladas com Escola, para pensar
outras formas inclusive de compor um currículo de ações teatrais, um currículo
em tecitura com o descotidiano, uma pauta de educação com teatro, com as
histórias, com Escola, em performance, que impregne de afeto, de humanidade,
de substância e vigor artístico o fazer/saber do Teatro no espaço escolar, por
exemplo. Que impregne de riso e de costuras outras, como neste lugar:

112 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Andrea ri. As adultas da história, sentadas... uma costura
de tempos em mim, fico pensando em cenas de quando fui
estudante, da professora que agora sou. Chamada pelo “nome”:
professora!!! É assim que me chamam, que se referem a mim.
Com um ar de imperativo e saudade. Eu estava com muita
saudade, percebo. Das vozes, das inquietações, dos suspiros, da
risada, do aconchego que só elas e eles (as/os estudantes) têm.
Aqui dentro, agora, após o medo. Vejo que entrei artista, queria
entrar artista hoje. Queria uma outra pele para atravessar a
porta e a trouxe, com direito a costurá-la e tecê-la, bordá-la.
Em pouco tempo sou lembrada pelas paredes de quem eu sou ali.
Na verdade, acessaram com tanta leveza aquela provocação que
ela parecia óbvia de acontecer. Eu, com 13 anos, não imaginaria
qualquer professor meu chegando descalço, entrando na escola
carregando não sei quê e me dizendo que ia costurar o tempo.
(Dá vontade de rir, me transportando para prédio de antes, da
escola em que estudei.)
Ah, o prédio! Fico sabendo que a reforma tem deixado todo
mundo longe, distante...
Nas cidades, as escolas, como lugares onde a educação “deve” acontecer
estão em prédios. E os formatos dos prédios moldam os nossos comportamentos,
a forma como somos convidados a não-conviver, o modo como nossos corpos
devem agir ou como se espera que fiquem no espaço. Neste caso, uma reforma na
escola está intensificando mais ainda esta separação:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 113


— Tá tudo estranho, professora! Todo mundo separado, e a
escola tá parecendo um hospital de tão branca!... A gente devia
fazer uma “grafite” organizado... em cada sala... ia ficar mais
bonita...
A palavra organizado fica sublinhada em minha mente.
Como assim um grafite organizado?
Uns estudantes vêm, outras estudantes vão, vários acenam
e mandam beijos. A maioria é de uma turma que me deu muito
trabalho. Muito! Não imaginava que um dia eles me nutririam com
risadas e ficariam sentados no sol quente me vendo costurar...
o tempo! Tempo na escola é coisa muito séria. E cada uma/um
sabe disso. Finalizei a palavra artista. Não ficou bonita nem
bem acabada. Ficou legível, possível de ser. Possível de ser vista.
Ali, me misturo, me integro, sou em mim o que preciso ser. Sem
nenhuma obrigação com o tempo, pude olhar, rir, ouvir, trocar,
estar junto. E por que não sempre? Vou caminhando para a quadra,
após abraços e agradecimentos. De Ceci, principalmente.
A palavra organização fica evidente novamente. A escola como espaço
organizacional, como lugar de produtividade, de bom desempenho, de
quantificação, de competição, como lugar onde uma arte tem que ser organizada.
São narrativas de uma educação que entende a pessoa, e, portanto, o corpo, como
alguém que tem que aprender algo que lhe sirva para o futuro.
O espaçotempo de quem narra uma história, de quem conta um conto, da
narratriz que narra a educação e sente a arte, que sente a arte e narra a educação,
tudo ao mesmo tempo, sem essa separação que só é possível na junção das
palavras nestas frases, frases e palavras escolhidas, recolhidas, por quem deseja

114 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


percorrer outros caminhos diferentes dos que são apontados pela organização.
É o instante partilhado que se almeja, é o encontro olho no olho, corpos em
porosa relação. E o que aprendi como narradora, nas formações que vivenciei
e também nas performances em que narrei, impregnaram meu corpo de como
se dá esse encontro, de como o instante de dizer junto proporciona um dizer
sobre mim e sobre a/o outra/o. Foi isso que aconteceu neste dia, na Performance
Costurando o tempo, no CAp UFPE. Uma performance art criada a partir das
minhas vivências como contadora de histórias para acionar a escuta e experiência
de um tempo diferente do que geralmente se tem no cotidiano desta escola. Eu
arrisco dizer que o que vivi nesta pesquisa está no espaço entre a performance art
e a performance narrativa, nome criado para estudar o acontecimento que se dá
ao contar uma história para uma plateia 18 .
Me senti no tempo descotidiano, com meu corpo vivendo encontros
verdadeiros e com outros corpos presentes na troca, mas não só, também houve
o momento de não me sentir parte, de sentir o desconforto de não haver tempo
para este acontecimento, sendo levada ao estreito lugar em que a velha anciã
fia sua roca, como nas histórias, como na vida. Senti o dedo furar quando não
fui vista e o sangue escorrer seguido do corpo em estado de sono, um momento
de imersão e perguntas, de conexão comigo mesma para tomar as decisões e
finalizar ou seguir em performance. Será que é possível tomar essa decisão? Ou
só trocamos a performance em que estamos inseridas? Senti o dedo furar quando
fui vista com pressa, quando houve conversa, mas não houve escuta, quando eu
não consegui ouvir, me entregar para a proposta que eu mesma estava fazendo.
Assim, me lembro quando sou eu que vejo rapidamente, sinto com pressa e sou

18 - Uma discussão mais detalhada sobre a performance art e a performance narrativa está feita no
Ensaio 4.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 115


quem não tem tempo. Quem chega correndo na escola e sai carregada de papéis,
cadernetas, horários de reuniões, horário reduzido de almoço, pensamento cheio
e acelerado, corpo que é narrado por um tempo externo, imposto pela rotina, que
não se escuta e não consegue escutar. Costuro, então, neste momento um terceiro
fio para a narratriz criar consigo, com Escola, com educação:

fio 3- manter-se conectada com o que quer narrar, mas sem


deixar de sentir e ser com quem a atravessa.
Vou...
Não me senti numa performance (aspas!) me senti em aula, não
“dando uma aula”, talvez por não ter uma avaliação a ser feita, por não ter
obrigações. (aspas!) Por não estar cumprindo conteúdos ou planejamento.
(aspas!) Penso que estava em trânsito. Eu sabia o programa da performance,
estou agora registrando, eu sabia o contexto, sabia que para alguém faria
sentido, principalmente para as/os estudantes mais velhos de teatro. Por
quê? O que quero dizer com dar aula? Sigo as costuras, sigo meu rastro, e não
me sai da cabeça a frase dita por um professor após indagar incessantemente
sobre o que era aquilo, dentre outras coisas insistindo para que eu lhe
contasse sobre o mestrado. Repito para ele: — Estou costurando o tempo!
Isto aqui é o mestrado! Ele, então, se afastando, me diz:
CUIDADO PARA NÃO FURAR OS DEDOS!

- NÓS MULHERES FURAMOS O DEDO E O CORPO TODO, O TEMPO TODO!



São muitas as rocas espalhadas, pelas escadarias, pelos labirintos, nas
salas de reuniões, nas secretarias, nas impressoras e nas impressões. Manter-se

116 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


conectada é uma grande conquista, manter-se conectada com a história que quero
narrar é maior ainda. Quero narrar uma história feminista, da luta das mulheres
para construir um mundo mais justo. Quero narrar histórias que deem conta da
diversidade do mundo, inclusive com fatos considerados machistas, num viés
feminista, assumindo um modo de narrar que não deixe as mulheres paradas
em situações e fatos como esse, mas que sejam impulso para seguir, movimento
coletivo de como ser e estar no mundo resistindo, contando sua própria história,
sem deixar de sentir e ser com quem a atravessa. (Sem deixar de sentir!)
Onde está o tempo do sentir na escola? Em que paredes ele se esconde?
Em que abraços se cria? A narratriz sente com o corpo todo, narra com o corpo
todo, é o corpo todo, sente a palavra nascer de seus pelos e pele, de sua boca e
voz, de seus órgãos internos, de braços abertos olhando cada pessoa no olho
ou caminhando até alguém e dando as mãos caso a pessoa não enxergue. Ela/
eu sou composta dos meus sentidos e desejos mais intensos, da abertura livre
para me conectar com quem quer criar uma outra forma de existir, que escolha o
afeto como guia e devolver o que não é meu na mesma proporção. Ou gritar alto
dentro do meu labirinto para que eu mesma escute, trazendo a imagem de Sandra
Corazza (2007,p. 106).
Uma narratriz faz um pacto consigo de criar espaçostempos para a narrativa
com o corpo, em performances (art/ou narrativas) que tem como desejo maior
realizar encontros verdadeiros, com os fios trazidos pelas outras pessoas que
estão no espaço com ela, recriando o pacto no momento em que é instaurada a
comunidade narrativa, em que o ritual acontece.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 117


E n s a i o 0 4

118 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


NÓS DE NÓS: CORPOPALAVR A EM
PERFORMAÇÃO

Figura 11 – Labirinto de um corpopalavra, cartografia de si


Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 119


Olhando a imagem que abre este ensaio, pergunto: quantos fios são
necessários para contar, conter e narrar o tempo? Quantos fios e quantos nós para
tecer-me narratriz? No ano de 2011/2012, iniciei minha trajetória como contadora
de histórias, compreendendo esse lugar como instância da arte, como profissão
e filosofia. Agora, movo um corpo narrativo que costura a si mesmo com Escola,
com educação, para inventar subjetividades e devaneios ao dizer palavras de ser
narratriz, pois

O destino da palavra é se desintegrar quando chega a tocar o que


é mais sólido do que ela: a carne. Ao se desintegrar como se desintegra
qualquer signo apenas cumpre sua incumbência, isto é, ao mostrar aquilo a
que se dirige. Porém, de novo, a palavra, felizmente, é mais do que um signo:
é uma força viva que se desfaz quando alcança a matéria que há de lhe dar
nova forma. A palavra se encarna, seu destino é encarnar-se. (LARROSA,
2014, p. 113)

Estas palavras de Jorge Larrosa integram o registro de duas performances


de que trata este ensaio e pode ser acessado no link: <<https://m.youtube.com/
watch?v=zAuktz-8ziU&feature=youtu.be>>. Convido você a assistir. Trata-se de
um registro em audiovisual de uma experiência com a criação das performances:
Nós de nós e Aos pés de Paulo Freire, o deserto virou desejo, no Colégio de Aplicação
da UFPE.
Estas performances tem o mote de sua criação pautado na experiência de
encontrar pessoas para narrar histórias, acrescido da proposta de realiza-la no
espaço escolar, fora de uma sala de aula formal e considerando o espaço escolar
como potencialmente performativo, perfazendo um labirinto com costurar-me
artista/educadora, professora-performer, gente que atua com a linguagem teatral

120 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


na educação básica. É preciso ser gente nas ações que se cria, ao escolher as
cores e texturas dos fios a mover. Uma ação criada por uma narratriz ao inventar
suas formas de ação com escola, a partir do narrar e do escutar, implicando
o reconhecimento do corpo que encarna a palavra. É importante ressaltar
que durante o ensaio será feita uma discussão sobre performance art e sobre
performance narrativa a partir destas experiências, vivenciadas num corpo
narrativo, o corpopalavra de uma narratriz.
O programa da performance Nós de nós consistiu em: chegar ao espaço
escolar carregando uma cesta grande com carretéis de barbantes coloridos de
tamanho médio, com a intenção de costurar o espaço com escola, materializar a
trama que se dá quando se compõe um espaçotempo narrativo, uma comunidade
narrativa, seja uma escola, seja uma plateia para narrar histórias. Uma pergunta
estava prevista: Em que momento a sua vida deu um nó com Escola? Quais
histórias seriam contadas e como se configuraria o nó com Escola, só a ação
poderia dizer.
Na performance Aos pés de Paulo Freire, o deserto virou desejo, que recebeu
esse nome após a ação acontecer, o programa consistia em levar uma maleta, a
mesma que uso em cena para contar histórias, com bastidor e tecido, agulhas e
linhas e ouvir histórias enquanto bordo, considerando o bastidor como um micro
espaço performativo. Este programa se constituiu como devir da performance
anterior, assim como na própria ação. Aqui, intenciono costurar os conceitos
de performance narrativa e corpo narrativo tornado corpopalavra a partir
destas experiências e das minhas memórias narrando a pesquisa em diferentes
momentos. Assim como narrar memórias afetivas que emergiram quando escrevo
sobre performar-me uma contadora de histórias, uma professora-performer, uma
artista/docente, uma artista/educadora, singularizada narratriz.
Por se tratar de uma cartografia o que aqui se narra, outras vezes pude

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 121


viver a performance Nós de nós, acolhendo convites de instituições e vivendo
experiências que perpassam desde um labirinto de fios tencionados aos rastros dos
fios adormecidos no chão, quase abandonados e tão vivos em cor. Desde a primeira
vez que esta performance aconteceu, em 23 de maio de 2019, venho juntando os
fios que teceram cada lugar, um emaranhado de cores e nós que arranquei e outra
pergunta surgiu: Como carrego os nós que arranco? Como carrego os fios que me
teceram e ainda tecem? E a pergunta inicial desta performance se recriou, sendo
agora: Em que momento a sua vida deu um nó?
Respondendo eu mesma a ela, dou um nó e volto a minha terra, ao lugar
onde nasci. Meu corpopalavra em carne é feito de barro e sangue, um pulo de
quem se assusta com bacamarte, um ritmo marcado no triângulo, uma zabumba
na carreira de ser gente, uma alegria de noite iluminada com tanta cor e balão
que parece coisa de história. História! Minha lembrança de pessoas contando
histórias se dá como se a história fosse se fazendo na minha frente: nas noites
no concurso de fogueteiros e baloeiros na cidade de Caruaru-Pernambuco, onde
nasci e onde amarro este primeiro nó (primeiro?) , do cheiro dos fogos e da
fogueira e minha mãe chegando em casa carregada deles... esputinique, chuvinha,
peido de veia, vulcão, traque de massa foram os que lembrei, em consulta, meu
pai disse mais alguns: traque-bebé, bomba, estrelinha, mosquito, espada.
(Simmm!!! Em tom de quem lembra algo importante.)
Amarrei muita pamonha e vi vó Xi (a bisa que conheci) ralar o milho em tardes
que sempre pareciam sábados. Casa da minha vó Janete cheia, gente correndo,
preço da fogueira aumentando, vovô quieto, vovó se arrumando. Além dos “casos
memoráveis de membros da família” (MATOS, 2014), que se fazem e refazem a
cada encontro, nas palavras dos mais velhos, que vai sendo atualizada e sempre
repetida, com destaque para tia Mana (irmã do meu pai), que é ansiosamente
esperada nos enterros da família para dizer as peripécias e resgatar os causos mais

122 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


importantes de quem está se despedindo e para meu pai, que está quase sempre
contando alguma história, com vozes inventadas e personagens fantásticos, que
ganham gestos, expressões e movimentos. Assim, parece que foi me dado um
terreno no peito, fértil, enfeitado e enfeitiçado para morar. Um lugar para correr,
fugir, me esconder e para acordar o tempo. Esse tempo que agora eu chamo
narração. Uma narração que chamo de arte. Uma arte que permite conhecer a
mim e a tantas pessoas, que acolhe quem a recebe, que multiplica os instantes.
É com a voz da Fernanda menina, que leio as palavras que seguem, o registro
escrito da primeira vez que realizei a performance Nós de nós:

Nós de nós
23 de maio de 2019
Escritas em 25 de maio, até as 11h55
Escrevo no computador, em minha casa

Quero falar das estudantes, que rapidamente fizeram a teia acontecer.


Quanto tempo eu passaria fazendo sem elas e eles? Eles se organizaram em
maestria, com comandos de sobe, desce, prende aqui, ajeita lá! Vivas! Umas
aranhinhas sorridentes e felizes deixando um emaranhado bem na porta da escola,
na entrada. Meu corpo entregue, brincante, sorridente, leve. Uma das primeiras
frases que escuto: — ´Tas´ tão calma!!!!!!!!!!!!!!!!! E esse cabelo novo? Que linda!
Gosto muito assim... como você tá bonita!!!
E a teia tecida entre mesas, balcão de recepção, grades, porta de vidro, traz
um portal em que as pessoas vão se agachando, descobrindo formas de passar,
movendo pernas, braços, encontrando olhares, conectando pele, vivendo uma
organicidade do que já é a partir de um fato descotidiano. Ouço: quem deu esse nó-
cego aqui hein? Devolvo: — Isso é mesmo um nó-cego! Escola é um nó-cego? Vejo

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 123


linhas esticadas, cores, formas diversas, apesar das triangulações, um mosaico vai
possibilitando ver o espaço de diferentes formas, com outras potências.. pessoas
desistem de passar... digo de dentro: eu também já desisti muitas vezes... de mim,
de turmas, de determinada criatura... Vejo olhinhos me abraçarem tão forte. E me
sinto incrivelmente adulta e sabiamente criança. Estou inteira, deixo que me
vejam, permito ser delicadeza ao ocupar o espaço externo e descobrir que
tem mais espaço ainda na minha carne, nas similitudes de querer correr e
me jogar naquela teia... de ouvir histórias... as expressões de desespero das/
os estagiárias/os, quase sempre em dupla ao olhar os nós e responderem : agora!
Agora mesmo! Quando ouvem: Em que momento sua vida deu um nó com
Escola? Um deles me relata: Agorinha! tô indo dar a minha primeira aula agora
e não sei o que fazer... diz o menino de dreads, que largou a bolsa na cadeira e
passou se arrastando e me disse que passar pelo emaranhado conversando é mais
rápido, mais fácil... pergunto: é? Me pergunto: é? E me vem Paulo Freire, claro!
Sem diálogo, como existir, reconhecer, dançar, brincar, ser gente no emaranhado
que Escola cria em você?! É preciso existir em conjunto, foi preciso muita gente
pra criar o emaranhado, pra dar nós, pra sair conectando tudo, coloridamente,
principalmente em mim.

124 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 12 – Costura-se. Costure a si.
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 125


Com pausas na passagem das pessoas e uma existência absoluta minha
naquele lugar, um espaço criado em rede, um espaço redificado, entrelaçado,
redemoinhado, consumado em afeto, explodindo minha movência, permitindo
entrega, conexão, criação. Onde geralmente só passava, hoje me instalo. A Arte
não só passa na Escola, ela se instala de uma forma trânsita, vai conectando
mundos, pessoas, lugares, objetos, referências. A Educação não só passa
na Escola, ela se instala de uma forma trânsita, vai conectando mundos,
pessoas, lugares, objetos, referências. A teia que é convite para brincar para
alguns é inoperância para outres, que dizem: Onde está o meu direito de ir e vir?
Onde está o direito da Arte de existir no cotidiano com Escola, incomodando-a,
fazendo-a instável, tocando suas paredes, encontrando suas brechas? Tanto lugar
para prender, amarrar, fixar os pontos, mas também uma rede que criou apenas
no contato, em passar uma linha pelas outras, com os dedos, tecendo a rigidez,
insistindo nos espaços não criados, querendo ver mais , ver menos, permitindo
ser e estar no presente. Atravessar um espaço emaranhado de linhas com o corpo
carregando mochilas, pressa, foco, quase não dá... vi pessoas diluídas, tão à vontade
naquela configuração que parecia que uma reverberação estava acontecendo... um
mar de gente em ritmo próprio e semelhante movendo, movendo e indo, aceitando
a reconfiguração proposta, vivendo-a, e quando digo aceitando não quer dizer de
forma passiva, mas assumindo jogar o jogo! Alguns professores passaram mais de
uma vez, com o riso escancarado e repetindo: só podia ser Fernanda! Que bom que
você voltou! Só você pra dar um nó aqui nessa escola! Eu pensei um pouco antes
de escrever isso, mas preciso tornar palavra a poesia da troca, um ser bem-vinda
na minha condição de balbúrdia inerente, festejar a minha presença é desfazer
uns tantos nós que o desejo de ser professora de teatro na educação básica deu
em mim. Sou viva! Recebo vivas! Recebo olhares inquietos também, protestos
silenciosos e verbos envenenados: -Como a pessoa chega pra dar aula assim?

126 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Quando se chega numa aula de Teatro? Como se chega num corpo narrativo?
O meu corpo artístico/docente dança, vê a si machucado e impossível de desatar,
com a garganta laçada, com a materialização da criação artística ali, com Escola.
O que cria uma narratriz com Escola? Cria espaços para ser Arte, transporta
as brechas da Arte para o cerne da escola, interfere no cotidiano de forma
poética e infante. Joga! Joga o jogo de escancarar a si, de ser apenas uma
ideia, “achei conceito”, diz uma estudante... rindo! Constrói com o espaço
uma narrativa de pertencimento, de f luidez na interrupção da passagem,
de descoberta de gestos, em meio a linhas estreitas, estreita o lugar externo
para alargar o espaço interno e tornar o corpo escuta. Escuto: Ah! Foram
muitos nós já nesta vida, muitos! Bons e ruins... Me conta, eu digo! E escuto:
bem... em Sergipe, chego no primeiro dia de aula e só tem uma banca vazia, sento,
quando olho para o lado está uma pessoa que existe na minha vida até hoje! Onde
vou no mundo, tenho que mandar um cartão-postal para ela! Ouço a história
do meu colega, de quem já cultivei desafetos e consigo ouvir as palavras
em outro lugar, um tom de nostalgia, lembrança, aconchego. Desato um
nó e dou outro. Escolho uma nova narrativa para aquela pessoa. E penso
na cura que há em ouvir as pessoas narrarem a si mesmas, às outras, aos
outros, ao lugar que compõem e atravessam todo dia.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 127


Figura 13 –Nós de nós, rede de afetos
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

128 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


É recreio quando a performance se inicia. São 9h, na verdade 8h53, eu
acho que olhei o relógio pela última vez, avisando ao meu corpo que podia entrar
naquele estado de entrega, ainda que primeiro buscando uma conexão com as
pessoas, fazendo essa escuta a partir da pergunta (Em que momento a sua
vida deu um nó com Escola?) e depois sentindo o espaçotempo ser ritualizado
e transportar-me para o espaçotempo do Teatro, da performance, esse tempo
que descotidianiza, que arrasta para outro lugar, que incomoda como quem faz
cócegas, o tempo das histórias! A narrativa sendo gerada, os nós sendo atados,
Nós de nós. Quando percebemos que o espaço com Escola é coletivo? Que alterar
esse espaço traz interferências no todo, ainda que uns gostem? A arte deve ser
arbitrária? Ou o convite surpresa legitima esta ação? A maioria que vem como um
cardume ou como um grupo de seres da f loresta e se embrenha organicamente no
novo espaço autoriza minha existência performática? Escola ri, ri das pessoas
que se esbarram de quem cai, de quem se arrasta, de quem se esconde, de
quem nem sabe onde estava! Quanto poder em transformar com Escola!
Objetos simples, ação programada, corpo disponível, leituras em processo,
substância artística inundando a educação, abraçando-a forte. Ao planejar a ação,
a elaboração da artista/docente entregue, a visualização do que seria, do que já
era na mente, do que se desejou. Narrar uma Escola viva, com pessoas conectadas
pela ação artística, investigando os materiais, os suportes, sem nenhum comando
direto, no começo! Tem muita história ainda para contar!!!
Houve um momento de desconexão minha comigo na performance. A
professora Fernanda, acionada pelo medo, não pelo cuidado... começa a ouvir...
ai meu dedo, ai meu pescoço, e resolve vigiar, sublinhar o que pode e não pode,
cortando o fio que a liga à ação artística. Me desevoco nesta fala, pois me sinto
uma observadora externa, uma cumpridora de aulas, alguém que se liga ao ato de
educar completamente apartada da ação criadora, já que esta traz em si confiança

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 129


e entrega, permitindo abertura e conexão com outras soluções. E é justo nessa
hora que alguém grita: e se a gente fizesse um pega-pega aqui??? E aí o medo se
afasta porque a brincadeira empodera e promove a ação de forma coletiva, num
pacto que é de todos e com impacto de permanência, experiência e suspensão do
tempo e das regras usuais. As regras se transformam em ritualização e num
ritual há que se ver a pertinência que se dá por cada grupo ao encontrar-se.
Ref letir, contar uma história, dizer palavras soltas, sorrir, mover o corpo, tomar
consciência do corpo em qualquer ação. Trazendo a energia da performance
podemos ampliar as direções, desorientar o foco, deselaborar as regras
e inventá-las conjuntamente, assim como a narração faz ao encontrar
pessoas. A ação da narratriz, então, promove ações com quem se conecta. A
ação que gera ação, e não respostas, e a educação e a arte ganham contornos
outros na partilha de ações com Escola, na escolha de revelar as ações de
outras como potência da sua. Corpos que se movem para pensar a educação
e a educação que se move para performar corpos. Performar e desformatar,
desenformar, não reformar, PER/formar a si no cotidiano com escola, pois a
ação de performar nos proporciona relação, ainda que sozinha. Relacionar-
se é pauta do ritual da performance art e na performance narrativa, num
corpo que narra uma história, que a inventa e desorienta e não analisa
e reproduz. Cordas, cordões umbilicais, tracejados ligando um ponto a outro,
linhas e meu corpo trança, meu corpo agulha, meu corpo ventre, meu corpo
docente nascendo com Escola. Fios de Ariadne movendo os corpos. As referências
me chegam de muitos lugares, amigos contadores que viram as imagens, Ariadne
evocada por Rafa, ex-estagiário da escola que me envia uma mensagem carinhosa
e evoca a história depois de ver um trecho da performance nos meus stories do
instagram. Não havia feito esta conexão. E a rede de interpretações e afetos vai
se formando por quem viu e me atravessou no momento da ação, quem viu os

130 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


registros e escreve sobre eles costurando narrativas.

Estar em performance, olhar dentro de mim a plateia, buscar relações


inquietas com quem escuta uma história, uma narrativa, uma particularidade
a ser destacada da ação contada, detalhes a serem ditos e percebidos em
ressonância. Uma contadora de histórias seria quem escreve com a voz? Que
palavreia os sentidos no vento? Sentidos de quem anda pelo mundo, de quem diz
coisas a partir do que escuta, de quem inventa ao passo que conta? De quem dá
nó com Escola? Explico: é que para mim, contar histórias é um ato de escutá-las
dentro de si, dentro da ação do outro no próprio momento em que narro e das
histórias criadas quando pesquiso esse fazer-saber. E o que estou chamando de
performance narrativa é um espaço compartilhado entre quem narra e quem ouve
e que pode ser instaurado onde desejar-se. Sua existência se dá na disposição
de elementos no espaçotempo entre, em convite de estar juntos para ouvir. Há
quem vá para a praça, quem fique na feira, quem arrume as poltronas do teatro,
há quem preencha com fios (reais ou imaginários) o espaço criando uma teia que
convide a brincar. Mas a substância entre quem narra a si e é narrado com as/os
espectadoras/es em ação é de matéria viva e quente. Olhos em festa, sussurros,
arrepios, um emaranhado de fios, ora firmes e que ocupam todo o espaço, ora
abandonados ao chão, despedindo-se de quem ali esteve.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 131


Figura 14 – Mapa narrativo, labirinto cotidiano
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

132 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Ao inventar uma narratriz, atento ao que se costura corporalmente,
em movimentos, ações, gestos, sensações, percepções em espaços de mim
e multiplicados na performance, potencialidades de um “corpo- em-arte”
(FERRACINI, 2004, p. 77) ao assumir a narrativa, o corpopalavra em ação diante
de outras. Visto-me narratriz nos passeios inicialmente com a linguagem artística
da contação de histórias e do teatro, que nutriram meu corpo para criar com
a performance art, entrelaçando todas elas, afirmando e empoderando minha
narrativa de ser artista. Sobre a contação de histórias, especificamente:

Ao tratar a contação de histórias como linguagem artística, falamos


necessariamente de forma, já que arte é forma. A forma é a expressão
manifesta do artista que atua sobre o homem em sua totalidade. Na arte de
contar histórias, podemos dizer que, por meio do conto, criado na cena da
performance, o contador dá forma a sua expressão. (MATOS, 2015, p. 205)

Tecido vivo, interno e externo, costura de cores, formas, fios, que são
narradas na junção ao dizer com a plateia, com as estudantes, com a escola e com
quem mais estiver em performance, buscando elementos que contribuam para
inquietar, reverberar e nutrir as liminaridades, os possíveis entres, os corredores,
as entradas, os estacionamentos, os auditórios e o que mais de transitório e de
passagem pudermos nomear.
Na performance Nós de nós, quais palavras e imagens a plateia moveu em
mim? No meu corpo narrativo? Em movimento, perguntas, não olhares, intenções,
conexões? Quando conto, sou uma espectadora de mim, tentando me desdobrar
naquela pessoa que me escuta e no mesmo instante me narra. Sou também os
elementos que estudo e tantas outras narradoras/es, com as/os quais ritualizo,
na palavra e no espaço, em vozes de quem resolve escrever e inscrever sobre esta

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 133


arte. Esta performance que nasceu no desejo de escutar as histórias das pessoas
que são Escola e ao mesmo tempo dar nós em fios coloridos, compondo uma
trama no espaço, modificando o tempo de atravessar um lugar, reconfigurando
modos de escutar e de narrar. Reafirmo o lugar de liminaridade da performance
Nós de nós, entre a performance narrativa, habitada pelo corpo de uma contadora
de histórias, arriscando-se numa performance art, cuja temática vem das suas
experiências com a contação de histórias, principalmente no tempo outro que
sente ao estar narrando. É no corpo o encontro de tudo isso e a repetição destas
percepções talvez se dê pelo meu espanto em estar tornando palavra oral e escrita
o que me cria no mundo.
Ao me perguntar tantas vezes durante uma performance narrativa, quando
estou contando uma história, ou mesmo na performance Nós de nós, enquanto as
palavras das pessoas se encarnavam: Estou ouvindo o que? O que estou contando?
O que contam a si mesmas as palavras que eu digo? Quando a linguagem da
palavra se esvai, que diz o corpo aos delírios?
Em diferentes momentos, em nossa rotina urbana, há lugares condensados
de informações através da palavra, num desespero coletivo que não deixa ouvir
nada. Quando se instaura um conto, podemos nos relacionar de forma a querer
ouvir a palavra sendo dita, sentir a própria história sendo contada, para, em um
minuto que seja, encontrar algo que faça sentir/sentido.

[...] é no tempo presente (espaço da performance) que o conto vem


à luz e é conhecido e reconhecido simultaneamente pelo contador-poeta e
por seus ouvintes. Mas foi no tempo espalhado pelo passado afora, com seus
inúmeros momentos, que o conto foi gestado paciente e parcimoniosamente
com as experiências do contador-poeta. [...] Ele está tão longe e tão perto.
Eu nem me apercebera, mas esse conto já me habitava [...] (MATOS, 2015, p.
209)

134 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Ser narradora oral talvez seja um lugar de busca incessante pelas experiências
do mundo ou a busca por alguma voz que possa dizer algo de/para/em mim,
costurar alguma ruptura, nadar em algum mar desconhecido. Que ofício ! Que
ao reconhecer sua existência, dei por perceber sua impossibilidade. Diz Larrosa
sobre NÓS, humanos, em diálogo com Benjamin, Kertész e Agamben , que “As
palavras que possuíam, as que podiam elaborar e transmitir em forma de relato
algumas experiências ainda próprias ou apropriáveis, já não servem. E as palavras
que podiam servir ainda não existem” (LARROSA, 2014, p. 51-52). São estas que
digo, conto, as que não existem? E, se passam a existir, já não são?
A experiência da performance narrativa na minha trajetória se insere
num lugar de passagem e de brincadeira, como uma adivinha que as crianças
respondem em uníssono ou um ditado que se repete por sabedoria. Narrar se dá
no próprio ato de fazê-lo, quando a palavra vai se constituindo junto com a plateia
que está/é no presente, com as lembranças (da história, de mim) que ficaram
fortes para que as escolhesse, com elementos para contar e conversar, sobretudo
comigo mesma. Ao ver uma parte da escola emaranhada de fios, ao perceber os
movimentos e os desvios feitos para atravessar aquele espaço, me conectei com
a essência que ativo ao narrar um conto: o ritual coletivo das pessoas, ao imergir
e se entregarem à ação de costurar a escola, de dispor seu corpo em escuta, de
responder a pergunta “Em que momento sua vida deu um nó com Escola?” na ação
corporal de partilhar, de construir um ritual na comunidade.
O que crio eu, então, mulher artista neste século XXI ao me dizer narradora
de histórias senão uma fazedora de nadas? Uma buscadora das inexistências,
plantadora de devires, sussurradora de nuvens, costureira de um espaçotempo?

19 - No livro Tremores (2014), o educador Jorge Larrosa constrói diálogos com diferentes vozes,
dentre elas as do filósofo e ensaísta Walter Benjamin, do escritor húngaro Imre Kertész e do filósofo
contemporâneo Giorgio Agamben, especificamente no capítulo 1.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 135


“[...] em uma paisagem em que nada havia restado sem mudanças, exceto as
nuvens.”, diz Walter Benjamin sobre a guerra, que digo eu ao narrar uma história?
Retomo o tempo que não vivi, escolho as palavras que nunca direi, percebo
conexão com as pessoas e vou. Talvez narre mais para mim que para qualquer
plateia. Só as respirações, as pausas, as cores de cada imagem criada, os abraços,
as conexões, as crianças (de diferentes tempos corporais) que inventam comigo,
talvez nisso esteja o sentido de narrar. A cada vez que narro quero me lançar mais
na outra pessoa, na voz da outra, na escuta da outra, nos silêncios em partilha,
nos nós que me permitem dar e arrancar. Cada vez que escolho uma história, é
como se encontrasse um pedacinho de mim para dizer, parte de um incompleto
ser que só aumenta de tamanho a cada encontro, mas nunca estará ao todo. Mas
as partes, ao se encontrarem, conversam mais, dizem um pouco de si, se buscam
e se narram.

O contador de histórias não pode perder a dimensão real de estar


diante dos ouvintes para expor e não impor uma narrativa. Partindo da
atitude de exposição ele tenderá a ter como pressuposto a incorporação
das outras narrativas trazidas pelos ouvintes, agregadas ao tecido vivo da
história narrada. (TIERNO, 2010, p. 20, grifo meu)

Então, na contação de histórias, na performance narrativa, você move a


si e convida os outros a moverem em si tempos, espaços, ações de outros seres,
personagens que conversam em particular com cada um/a, que cochicham
palavras secretas em línguas várias. Esta é uma inspiração à Performance Nós
de nós. Pois, ao conduzir-me contando uma história, o tempo não é mais meu,
é coletivo. Para dar nós num espaçotempo compartilhado também. Não digo do
jeito que vejo ou que penso, mas tento narrar de um jeito que alguém possa

136 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


ver/sentir/afetar coletivamente. Possa compor imagens de/para si através das
palavras ditas, do corpo em voz e gestos, em silêncios, em pausas. Possa se sentir
partícipe, pegar o novelo e criar seus próprios nós, pausando o tempo cotidiano
e entrando num outro tempo, em conjunto, num ritual coletivo. (Escute com
voz de segredo a continuação deste pensamento: Como Ariadne
no labirinto, em busca do Minotauro, costurando o espaço com
suas linhas, dando nós firmes que a levem de volta para a saída).
Sobre as pausas. Como mover com as pausas, as que te pausam e as que
você pausa? Como tornar brincadeira? Quando a pausa é interrupção da f luidez
e quando é momento de respirar? Quando ela é silêncio, estado de limite,
continuação do que está dentro? É a prévia... do ponto... final? A pausa para a
condução da história pode ser voz e limite. Palavra e limite. Frase e só. Em que
momentos você acha que o mundo pausa? Quando o combustível interno esgota,
o que fazer? Parar e sentir a natureza em dedos? Tocar a cor amarela da folha
vermelha? Encontrar e chamar o animal que passa e vai. Ele não pausa. Ele ouve
a tua voz e vai. Ele não faz inquisição do tempo. Não diz nada. Espero que não te
esqueças de ti, nessa vibração de narrar histórias. Que brinque mais vezes e que
entre na teia em cores, que deixe teu corpo imerso entre as linhas, que se permita
brincar de pega-pega em meio a muitos fios.
Vamos? Esconde-esconde? Pega-pega? Quando criança, eu sabia que uma
festa estava boa quando nem me dava conta de que tinha tirado os sapatos. É que
é preciso olhar com as pessoas em imensidão, em estados de possíveis, de habitar
um espaçotempo que se faz na conf luência de muita gente, nas singularidades
e movimentos constantes. Como tornar tátil uma história para mim e para as
pessoas? Que mundos narrar, dizer? Tem muito de desejo nesta tarefa. E nisso
lembro da escritora e ativista caribenha-americana Audre Lorde quando fala do
poder do erótico:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 137


Quando liberado de seu invólucro intenso e constritor, ele f lui através
de minha vida, colorindo-a com o tipo de energia que amplia e sensibiliza e
fortalece toda minha experiência. Fomos criadas pra temer o sim dentro de
nós, nossos mais profundos desejos. (LORDE,1989)

Vou então construindo o sim dentro de mim e tentando espalhá-lo para


outras/os e as histórias que escolho fazem parte disso. Ao perceber-me finita
narradora encontrando estas partes de ser, atriz brincante de uma infância teatral,
observo hoje um ser a quem chamo narratriz e vou perguntando apaixonadamente
sobre as singularidades e subjetividades que se inventam em mim ao narrar uma
história, ao narrar minha própria história, ao narrar personagens e instantes e
ao olhar os percursos por que passo para performar-me assumindo as costuras
de mim mesma. São diferentes linguagens, diferentes modos de ser e tocar a/o
outra/o a ser acessada/o, inquietando-me para instabelecer linguagens:

Uma linguagem que trate de enunciar a experiência da realidade,


a sua e a minha, a de cada um, a de qualquer um, essa experiência que é
sempre singular e, portanto, confusa, paradoxal, não identificável. E
o mesmo poderíamos dizer da experiência da ação, a de cada um, a de
qualquer um, a que não pode ser feita senão apaixonadamente e em meio de
perplexidade. E da experiência do saber, a de cada um, a de qualquer um, a
que não quer ter outra autoridade que a da experimentação e a incerteza, a
que sempre conserva as perguntas que não pressupõem as respostas, a que
está apaixonada pelas perguntas. (LARROSA, 2014, p. 67)

Penso que as histórias, as narrativas de tradição oral, gentilmente, são


essas perguntas apaixonadas ou ainda o apaixonar-se por perguntar o mundo. As
histórias são um apaixonar-se por perguntar a si e ao mundo.

138 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


CORPOPALAVR A, CORPO NARR ATIVO

Instabeleço essa narratriz que brinca, que pergunta, que ativa um estado
brincante, que busca um corpo em estado de brincadeira, numa corporeidade
que se possa acessar, investigar, nutrir. Um corpo narrativo perguntando de si e
do que o compõe na própria performance, na ação de materializar uma teia em
cor, de tornar tátil o que tece uma comunidade narrativa e brincar entre a palavra
e imagem criadas. O que meu corpo emaranhado em performance pergunta?
Como deixá-lo aberto, presente, como um ser envolvido em brincar?
Certas vezes, adulta em profissão educar, observei e brinquei com muitas
crianças em aulas de teatro, seus jeitos tantos de narrar cada parte, de ser no
mundo ao contar cada movimento. Também no parque, nos corredores, nos
gritos, nas vontades imediatas, nas verdades inquietas de fuga, na maneira de
contar como escorregaram, subiram até o escorrego, vocalizaram para chamar
alguém que queriam perto, choraram ao acontecer o oposto do imaginado. Cada
modo de narrar impregnando e tornando viva uma escola narrada por muitos
corpos. Para isso é preciso sempre olhar de novo, sentir de novo, como ouvir de
novo uma história.
E muitas vezes precisei, como professora, sentir de novo. Agradecer a
quietude das palavras, a palavra pele narrando o toque, a palavra molho
narrando o desejo, a palavra amarela em meus pés que vão. Sujos vãos. A
encontrar. As vezes, não é cena, não é performance, não é arte, não é nada. E ser
nada neste lugar chamado escola é encontrar-se um pouco, é um café que cheira,
é o vento que vem e é só vento mesmo.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 139


Figura 15 – Tecido cotidiano, Performance Nós de Nós | CAp UFPE
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

140 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Contar histórias me trouxe uma inquietação das memórias que me criam
e me gostam no mundo, que imprimem as vontades de sequência de minha
existência. Memoriar, ser em conjunto o que se é. Ver minha história de vida em
outras vozes, com outros nomes, pulsando e brincando no espaço, num lugar que
jamais pisou e que tanto me constitui como num conto, como na escola, quando
sou costurada por tantas narrativas. Sinto: as histórias que não contamos, para
onde vão? Vãos se abrem para elas, tanto quanto nos narram. Elas são nossos
silêncios e nossos maiores gritos.

[...] quando se trata de considerar a língua a partir de sua relação


com o corpo e com a subjetividade, frequentemente se apela a noções que
têm a ver com a oralidade, com a boca e com a língua, com o ouvido e com
a orelha, com a voz. [...] A voz é a marca da subjetividade na experiência da
linguagem, também na experiência da leitura e da escrita. Na voz o que está
em jogo é o sujeito que fala e que escuta [...] (LARROSA, 2014, p. 72)

E essa sujeita, que fala e escuta, é um corpo que fala e escuta, é uma
corporeidade que se ocupa de lembrar que somos carne. Em conversação e estado
de pergunta, digo: quando o corpo é escrita e quando a escrita é corpo? Uma
corporeidade que se pauta no que se é, delicadezas de quando se ouve algo de
alguém querido, papéis anotados às pressas que pensávamos perdidos. Sinto que
uma corporeidade me é, diz de mim, me narra. Corporeidades da feira de sábado
com meu pai, ao comprar jambo-branco na redinha amarela, f lor carinho de mãe
para presenteá-la, barulheira e caminhada.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 141


Face à linguagem do corpo, evoca-se o problema da legitimidade de
uma análise com o objetivo de investigar o tema do corpo na arte. Se, segundo
F. Rastier, chamamos comportamento ao conjunto de todos os gestos e
atitudes observados ou representados a partir do corpo humano, ambos os
aspectos implicam, no terreno da performance, uma metalinguagem que os
toma a sua observação e os re-significa, isto é, agrega novos significados a
eles. (GLUSBERG, 2005, p. 57, grifo do autor)

Na performance narrativa, que tem como foco narrar uma história


ou colocar-se em narrativa com outras/os como nas performances que aqui
propomos. Ou seja: tem-se na narrativa da palavra e do corpo, do corpopalavra e
na produção destes, uma ação que se dá em conjunto. Não é possível produzir a
palavra apartada do corpo ao se contar uma história, e ainda que o corpo esteja
estático, esta escolha gestual, a atitude também será parte da composição da
leitura a ser realizada em sua recepção. Dessa forma, quais gestos e atitudes
estão presentes nas performances narrativas? São gestos naturais e espontâneos?
É possível acreditar numa naturalidade? Ou assumir que há sempre significação
cultural em qualquer gesto pode contribuir para as escolhas que fazemos?

A essência, e acreditamos que isso seja fundamental, é que a


performance e a body art não trabalham com o corpo e sim com o discurso
do corpo. Porém, a codificação a que está submetido esse discurso é oposta
às convenções tradicionais; embora parta das linguagens tradicionais ela
acaba por entrar em conf lito com elas. (GLUSBERG, 2005, p. 56-57, grifo do
autor)

O gênero performance art, que tem sua história vivida pelas/os artistas
inicialmente das artes visuais e que depois se aproxima da dança e do teatro,

142 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


mesmo que, na elaboração de seu pensamento no capítulo O discurso do corpo
no livro A arte da performance, o argentino Jorge Glusberg (1932–2012) mais
de uma vez situe as palavras teatro e dança de um modo que desconsidera os
elementos contemporâneos dessas artes e também a inf luência da performance
nessas linguagens. Ao considerar a contação de histórias como linguagem artística
contemporânea, ao nomeá-la performance e especificá-la como narrativa,
compreendo que há ampliação da discussão ao trazer a literatura da performance
art para o diálogo ou o atrito, numa conversa que pode ampliar os estudos na área
da contação de histórias.
No caso específico dessa pesquisa, a performance Nós de nós me situou
num espaço entre a performance art e a performance narrativa, tendo como
consequência essa discussão que se dá a partir dessa experiência. A experiência
desta performance me trouxe elementos que me fazem pensar, escrever e discutir
tanto sobre contação de histórias, quanto sobre performance art, atritando
estas duas artes, atritadas em meu corpo, também habitado por educação. Um
corpopalavra multifacetado, que carrega em si a potência de instaurar diferentes
modos a partir da experiência e de ir acessando as diferentes histórias que possui,
até no fato de tecer contos que as reinventem.
Assim, vibro, habito, costuro, estudo, pesquiso um corpo narrativo. Durante
a performance Nós de nós, en-carnei muitas palavras em minha pele. Espiei a
mim mesma em ação, meu corpo imerso em provocar narrativas. Em tudo? Tudo
não cabe mais. Tudo é uma palavra sem tempo. As conversas são tantas e em
narrativas outras que são de cada criatura que ouve e conta, reverbero em mim
algumas palavras da pesquisadora brasileira Kátia Canton, quando propõe o
conceito “narrativas enviesadas”, pensando nas transformações e nas implicações
que a arte, independentemente da linguagem, vivencia em meados e final do
século XX e começo do XXI, e diz

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 143


[...] o uso do conceito de “narrativas enviesadas” para comentar uma
forma particular e contemporânea de produzir arte, contar histórias. Nesse
exercício de criação conceitual, busco o pensamento de Barthes, procurando
aproximar-me dos sentidos instáveis, dos textos não ditos (ao menos, não
inteiramente), construções f luidas. Parece-me que está justamente nas
junções escorregadias e instáveis o que chamo de narrativas enviesadas, em
que os artistas escapam dessa tendência fascista do texto e da obra. Sabotam,
subvertem, quebram as possibilidades de um sentido narrativo único.
Desestabilizam nossas compreensões da vida e injetam sutilezas, incertezas,
sons que se recombinam e formam camadas, ainda que se estranhem
mutuamente. Os sentidos, na obra dos artistas contemporâneos, não estão
prontos, mas se configuram no acontecimento, isto é, na construção das
múltiplas relações que acontecem entre a obra e o observador. (CANTON,
2014, p. 90)

As camadas que brincam o corpo da narratriz, que da contação


de histórias, do teatro, da performance e da educação se vê híbrida,
contemporânea, em seus rituais, em suas potenciais sutilezas e incertezas,
vai se enviesando, instabelecendo, costurando, buscando em f luidez de cores,
dando nós em nós. São vozes, brincadeiras, corporeidades, suspeitas, algumas
narrativas de si para narrar o mundo, afetar e ser afetada. Há uma escrita poética
habitada em um corpo narrativo neste corpopalavra aqui bordado. Uma narratriz
perseguindo palavras que possam dizer e não dizer este ofício. Sigo narrando
histórias ativadas pela memória afetiva, por exercícios de troca artística, pelo
mover-se para contar-se e vou engendrando conceitos e ideias para pensar sobre
performance narrativa, o que implica percepções éticas, estéticas e filosóficas,
especificamente a partir da existência corporal, encarnada.

144 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 16 – Performance Nós de Nós | CAp UFPE
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 145


Olhar. Em cada ser presente, se olhar. Na foto, aparece Marquinhos (Marcus
Rodrigues), professor efetivo de Teatro do CAp UFPE há quase 10 anos. Com ele,
posso dar nós em conjunto, me dilatar na narrativa de constituir um espaçotempo
teatral com Escola. Com ele, jogo, tramo, contesto, subverto, experiencio, codifico
e abraço. Danço. Sou espelho. Espelhar. Espolhar Expolhar Expor Expur Expurgar
(Rápido, em fuga: essa palavra demente que demora f lamejando e sai em
grito em dose rasgada e profunda.) Essa palavra bebida em prosa e poesia, em
mito, em substância. A sorte de estar e ser testemunha deste mundo, com esta
pele, neste corpo, com outros corpos, em relação. Perdida no meio, trânsita.
Com acento. O texto a ser produzido no atrito de língua, boca, saliva, sal, cuspe,
mucosa. A íntima organicidade da lágrima que chega até a boca. Da frase formada
no instante julgado:

Podemos ir mais longe e perguntar se a relação entre o narrador e


sua matéria — a vida humana — não seria ela própria uma relação artesanal.
Não seria sua tarefa trabalhar a matéria-prima da experiência — a sua e a
dos outros — transformando-a num produto sólido, útil e único? Talvez se
tenha uma noção mais clara desse processo através do provérbio, concebido
como uma espécie de ideograma de uma narrativa. Podemos dizer que os
provérbios são ruínas de antigas narrativas, nas quais a moral da história
abraça um acontecimento como a hera abraça um muro. (BENJAMIN, 1994,
p. 221)

O corpopalavra sendo parido em mim. No ventre da boca. Partida.


Partejada. A contadora de histórias é uma parteira, uma doula da palavra.
Abro o corpo, escamo a pele, ouço as palavras para narrar. Sou eu que escuto o
que é narrado. Sou eu que narro o que é escutado. Quais palavras são ditas
na ação de quem se põe em conjunto na performance? Ao contar uma história

146 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


escolhemos encontrar outras histórias e pessoas, que histórias delas nós estamos
sendo? Que escuta podemos ativar? A cada palavra dita, comedida, afetada,
sussurrada, tempestuosa, marejada, provocada, risível, comestível, lambuzada,
vívida. Com que voz acessamos os seres que nos ouvem? Desejo que seja uma voz
coletiva, habitada por verdades. Que verdades?

É verdadeiro o que não mente, o que está presente no que se diz,


o que sustenta o que diz com sua voz, com seu corpo, com essa particular
aventura intelectual que o levou a ler o que lê, a escrever o que escreve, a
dizer o que diz, a pensar o que pensa. (LARROSA, 2014, p. 172)

A contar o que conta. Uma contadora de histórias conta o que conta a


partir de suas experiências de vida, entrelaçadas as experiências das pessoas que
compõem com ela o acontecimento narrativo. Que verbos soltos no espaçotempo
são colhidos no ato de narrar? E como são pronunciados? Na performance Nós de
nós, as linhas, a cesta, a costura que se deu no espaço, a pergunta realizada foi
elaborando na própria ação uma narrativa que comunicava a quem chegava ali o
que estava acontecendo, permitindo múltiplas e diferentes leituras das pessoas e
a escolha por implicar-se ali ou não.

E cada palavra que não foi dita, ou ação que não foi feita, também
compõem sentidos no que se diz ou que se pensa com o corpo: o discurso que
alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que
ele me fala) constitui para mim um corpo a corpo com o mundo (ZUMTHOR,
2014, p. 75).

Lembro de uma performance realizada no evento prévio do Reperformar o

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 147


afeto 20 , organizado pela professora Naira Ciotti. Fui contar histórias para um grupo
de professores, numa formação que também contaria com uma fala da professora
Naira e da professora Karyne Coutinho, respectivamente sobre performance e
sobre educação. Narro de maneira simples, mas que se evidencie a complexidade
posta nestas duas palavras. Eu faria a narração ao final das duas falas. Mas senti
que deveria fazer logo após a fala da professora Naira. Desse momento, ficou um
nó em mim de uma mulher, que quando me ouviu falar da relação com escola,
de como foi a minha relação no espaço escolar quando era pequena e o que me
levava até ali agora como artista/educadora, como professora-performer.
A mulher perguntou se podia contar sua história. Trocamos de lugar quando
ela levantou. Sentei na cadeira dela e ela se deslocou pelo espaço, narrando como
se constituiu professora. (Escuto as risadas das outras pessoas. Aquela risada
prazerosa de quando há identificação). Ela contou que quando era adolescente
vivia muito com a irmã que era professora e ajudava a irmã em diversos afazeres
referentes a ensinar. Vou arriscar, apesar da distância, trazer a voz da mulher:
E foi aí que minha irmã naquele dia teve uma urgência fora da escola. Ela não
tinha com quem deixar a turma e mandou me chamar em casa. Eu já tinha visto
tanto ela fazer aquilo que fui. Fiquei lá com as crianças sendo professora. E foi
assim que comecei a ensinar. Depois eu fiz curso e estou aqui, mas foi por causa
do desespero da minha irmã que não tinha com quem deixar as crianças, que me
tornei professora. (É claro que eu inventei acessando as minhas memórias o
que ela disse. Mas a essência é esta.)
Assim, ao mover em mim essa memória, penso sobre os personagens, as

20 - O evento Reperformar o afeto é realizado pelo LabPerformance (Deart/UFRN) e coordenado


pela professora Naira Ciotti. O fato narrado aconteceu nas ações prévias do Reperformar o afeto –
Professores performers, no ano de 2018, na cidade de Bom Jesus-RN.

148 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


situações, os acontecimentos, os dizeres, os sentimentos, os ensinamentos,
as sabedorias, entrelaçados com o que me veste socialmente, filosoficamente,
moralmente, afetivamente ao contar uma história, ao instaurar um ritual para
conta-la. O que eu sou se transforma em palavra. Há uma ética e uma estética
imersas em cada som produzido pela voz, evocando-as e reconhecendo-as a partir
da experiência, como uma vivente do que o contar e o ouvir histórias me causa,
passionando-me ao mundo e com o mundo, já que

O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do


indivíduo concreto com quem encarna. Não está, como o conhecimento
científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura
uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma
forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética
(modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). (LARROSA, 2014, p. 32)

O saber de uma narratriz é esse? É desejo que seja: “uma forma humana
singular de estar no mundo” (LARROSA, 2014, p. 32) contando para si mesma e para
as outras pessoas o que vê, o que sente, o que a deixa dormir, o que a amedronta,
mas também costurando espaçostempos para que as outras pessoas contem. As
histórias, a pesquisa das histórias ativa um regaste de humanidade na gente,
para que da boca saia palavra viva, já que a história primeiro fala comigo, brinca
comigo, oferta-se a mim, pela boca de outras ou pelas letras de um livro, pelo
chão batido, pelo muro que cai, pela sala sem bancas, com as crianças correndo,
com os lugares que visitamos em carne e osso ou em cuidado e afeto, imaginados
e sonhados para partilhar. Mas tudo isso só consegue existir no encontro com as
pessoas, pautando esse encontro com liberdade.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 149


Por isso, para atualizar a igualdade e a liberdade, é preciso interrogar
permanentemente nossa relação com a linguagem: não só o que se diz ou
como se diz, mas também a situação de palavra em si mesma, o modo como
se conta ou se tem em conta o que cada um diz. (LARROSA, 2014, p. 166-167,
grifo meu)

Eu digo: um corpo, meu corpo produz histórias, é história, polissemiza


a voz que gera palavras. Uns corpos, nossos corpos produzem histórias, são
histórias, polissemizam a voz coletiva que gera palavras. Explico: as vozes
que podem existir e pautar a história, as subjetividades que constituem as/os
personagens, nos constituem, são as nossas ideias, conceitos e pré-conceitos
que sustentam as próprias palavras a serem ditas, são todas colheitas corporais,
festejos corporais, “discursos corporais”, como nos disse Glusberg (2005). Seja na
escolha ou percepção de uma gestualidade ou na observação da musculatura que
é ativada quando a voz é produzida, por exemplo, mas também no fato de que a
substância narrativa é uma corporeidade, é um corpo, não está num corpo, mas é
ele mesmo.
Ao fazer uma colheita cotidiana de instantes a serem tornados palavras,
seja na observação de ações que pauto em sociedade e que está ali em meu corpo
narrativo, fervo, tempero, escolho os elementos para cozinhar as histórias. E, ao
servi-la, comê-la em mesa farta com as/os ouvintes, sirvo uma substância única
tanto para mim quanto para quem ouve, num processo de compreensão mútua e
singular:

150 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Falando de “compreensão”, Gadamer a entende como uma interioridade:
compreender-se naquilo que se compreende. Ora, compreender-se não será
surpreender-se, na ação das próprias vísceras, dos ritmos sanguíneos, com
o que em nós o contato poético coloca em balanço? Todo texto poético é,
nesse sentido, performativo, na medida em que aí ouvimos, e não de maneira
metafórica, aquilo que ele nos diz. Percebemos a materialidade, o peso das
palavras, sua estrutura acústica e as reações que elas provocam em nossos
centros nervosos. Essa percepção, ela está lá. Não se acrescenta, ela está.
(ZUMTHOR, 2014, p. 53)

Eu sou um corpo, existo num mundo inventado por mim e para mim. Um
suspiro de quem percebe a cor do céu e deixa vir a nuvem em pele. A amplitude
de elementos, do que o corpo instaura, manifesta, sente, provoca, dilui, escama,
festeja, vibra, entorna. Um corpo como medida e desmedida, como espaço de
existência e de cuidados, de sentir a si mesmo, espaçotempo materializado,
percepção e poesia, inscrição e provocação, labirinto do encontro com outros
corpos, com corpos de ouvintes, corpos em escuta. Em tempos e espaços distintos
esta palavra corpo vem sendo descrita, vista, observada e sendo movimento,
estrutura, osso, espasmos. Com que noção de corpo, então, estamos nos movendo
quando sugerimos um corpo narrativo? Por que adjetivá-lo? Não é todo corpo
uma narrativa?
Enquanto narratriz, me chegam conceitos de diferentes espaços e tempos
sobre como somos artistas da palavra, como produzimos através da voz e me parece
que, por vezes, esquecemos que esta voz é corpo, faz parte de nossa corporeidade.
E quando falamos de corpo também nos vêm concepções de diferentes lugares.
Do oriente, ao buscar integração e totalidade, ainda que nós seres ocidentais
e urbanos acessemos a partir de contextos muito distintos, já que imersos nas
nossas espacialidades e temporalidades ocidentais e urbanas.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 151


Assim, o estudo da corporeidade, do corpo que narra e de um corpo
narrativo, pode contribuir para que uma consciência de si no ato de narrar, de
abertura para o que vem quando me proponho a habitar um corpo narrativo,
considerando “ao menos dizer isto: de todo modo, aquilo que se perde com os
media, e assim necessariamente permanecerá, é a corporeidade, o peso, o calor, o
volume real do corpo, do qual a voz é apenas expansão” (ZUMTHOR, 2014, p. 19).
Na composição da narratriz, escrevo a expressão, corpopalavra, corpo narrativo
vivendo um corpo que percebe, presentifica, investiga e sabe que manifesta uma
corporeidade todo tempo e elabora-a em performance através de uma colheita
pessoal, intransponível, mas partilhável, como na performance Nós de nós, como
na ação de tornar meu corpo escuta de outro corpo.
Com isso, tento me afastar de uma noção de corpo mecanicista, automatizado,
infrutífero, rígido, que não se deixa reconhecer ou ativar/passivar, costurar-se,
sendo ele mesmo linha, cor, suporte, tema e resultado, hibridez de encontros de
cores, rasgos dos tecidos orgânicos e metafóricos, esgarçamento e movência das
questões humanas que se transformam em palavras.

152 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


[...] é ele que eu sinto reagir, ao contato saboroso dos textos que amo;
ele que vibra em mim, uma presença que chega à opressão. O corpo é o peso
sentido na experiência que faço dos textos. Meu corpo é a materialização
daquilo que me é próprio, realidade vivida e que determina minha relação
com o mundo. Dotado de uma significação incomparável, ele existe à imagem
de meu ser: é ele que eu vivo, possuo, sou, para o melhor e para o pior. Eu
me esforço, menos para apreendê-lo do que para escutá-lo, no nível do texto,
da percepção cotidiana, ao som dos seus apetites, de suas penas e alegrias:
contração e descontração dos músculos; tensões e relaxamentos internos,
sensações de vazios, de pleno, de turgescência, mas também um ardor ou
sua queda, o sentimento de uma ameaça ou, ao contrário, de segurança
íntima, abertura ou dobra afetiva, opacidade ou transparência, alegria ou
pena provindas de uma difusa representação de si próprio. (ZUMTHOR,
2014, p. 27-28)

E por que trazer a voz de Paul Zumthor (1915–1995), europeu, branco,


medievalista, para compor estas linhas? A escolha se dá por identificação, por
me “dobrar afetivamente” e convidar a ref letir sobre este corpo, com palavras que
o autor compõe/decompõe em seu livro Performance, recepção e leitura (2014) ao
se perguntar “o que se entende por corpo?” e ressalto que não é, como ele mesmo
ressalta, um corpo “puro e abstrato, ideal” (ZUMTHOR, 2014, p. 27). É um corpo
contaminado, povoado, ressoante, pedra e água, f luxo, fortaleza ou fragilidade,
linha, cor, nó e nós, transitório, invadido, que intenciona se perceber ao tornar-
se narrativa.
Zumthor é voz presente nos estudos sobre narração oral, a partir do conceito
que elabora de performance, como, por exemplo, nos estudos de Gislayne Avelar
Matos, cujas palavras também vem costurando este ensaio. Sobre performance,
Zumthor (2014), compreende:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 153


A performance é outra coisa. Termo antropológico e não histórico,
relativo, por um lado, às condições de expressão, e da percepção, por outro,
performance designa um ato de comunicação como tal; refere-se a um
momento tomado como presente. A palavra significa a presença concreta de
participantes implicados nesse ato de maneira imediata. (p. 51)

Perceber o ato comunicativo da contação de histórias como performance


narrativa, a partir das concepções e da provocação do autor, nos interpela a trazer
para a discussão a própria recepção, quem ouve, no caso da contação, quem lê, no
caso da literatura, ambos estados de poesia. “A recepção, eu o repito, se produz
em circunstância psíquica, privilegiada: performance ou leitura. É então e tão
somente que o sujeito, ouvinte ou leitor, encontra a obra; e a encontra de maneira
indizivelmente pessoal” (ZUMTHOR, 2014, p. 53).
A palavra que diz a história vai acionando o corpo e por ele sendo acionado.
Não há um momento distinto de perceber isto, apenas nesta escrita que olha para
os nós da teia que vai se formando, que quer saber da escolha das cores a serem
bordadas no tecido, na escolha da textura do tecido para o bordado, da linha a ser
colocada na agulha e do corpo que costura com o espaço uma narrativa. Porém,
não é a primeira vez que se tramam palavras costuradas para dizer o ofício de
narrar histórias.

154 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Quando eu era pequena ficava ao lado de minha avó, que com suas
mãos ágeis trançava a lã com a agulha, e dizia “aqui tem um casaquinho”.
Eu olhava aquilo e não entendia como! Não enxergava. Como ela conseguia?
Como ela enxergava antes...E era nessa conversa, nesse falar e fazer que algo
surgia: um “casaquinho”, talvez mais que isso; uma história compartilhada,
entre avó e neta. Agora sou eu que faço como ela, tranço as palavras para
que elas contem uma história, uma história que estava adormecida, que de
alguma maneira foi imaginada em seus detalhes, foi in-cor-po-ra-da, no
sentido de se tornar corpo em palavras [...] (GRANDE, 2017, p. 193-194)

Na minha formação, realizada em cursos, oficinas, palestras e, claro, na


escuta de contadoras e contadores pelo Brasil, pude estar corporalmente imersa
nessa aprendizagem, sensorialmente ativada e sempre me perguntando como
ativar corporeidades ou como realizar formações que tivessem o corpo como
“pauta” para investigar a narração? Assim, entre ser convidada a formar e estar
em formação, fui despertando caminhos para realizar uma performação deste
corpo para criar na performance narrativa, na narração oral. Fiz disso a minha
pesquisa pessoal e a minha recorrência que hoje me leva a pensar sobre um corpo
narrativo.
Ampliar, então, as conversas entre pensadoras/es do corpo e da contação de
histórias interessa como possibilidade de trazer outras práticas, vozes e afetações
para a produção acadêmica que versa sobre a contadora de histórias. Quando me
vejo no híbrido da palavra narratriz, começo a fuçar no/com meu corpo os fios
e nós dessa palavra para performar-me contadora de histórias. No afetar-se, na
escuta das “aberturas ou dobras afetivas” (ZUMTHOR, 2014, p. 28) que são o
corpo e estão no corpo de quem narra histórias, de quem tem como trabalho a
criação de imagens através de suas corpopalavras, que são produzidas no tempo

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 155


presente, na presença de outros corpos com suas aberturas e dobras singulares.
Questiono, a partir disso, o que a autora Leila Garcia nos diz em seu texto sobre
corpo narrativo, única referência a este termo que encontrei nesta pesquisa:

O corpo narrativo é aquele que só por si narra. À sua maneira. É


um corpo que suscita, só pela sua presença, iluminada e inteira, mil
possibilidades, duas mil paisagens, infinitos enredos. O narrador não
precisa dançar, nem ser malabarista, mágico ou atleta, mas seu corpo deve
ser um território de descobertas para si e para a plateia. (GARCIA, 2013, p.
65)

Entendo que enquanto “território de descobertas” (GARCIA, 2013, p. 65), o


corpo pode fazer sua investigação no circo, nas artes marciais, na movimentação
física, na dança, nas práticas integrativas, afastando a ideia de que “só por si
narra”, como se estas não fossem possibilidades de caminhos para a descoberta
que ela própria propõe. A presença de um corpo vivo requer investigação, ainda
que ela seja do/no próprio ato de narrar, já que

Pelo menos, qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a
remanejar (ou a espremer para extrair a substância) a noção de performance,
encontraremos sempre um elemento irredutível, a ideia da presença de um
corpo. Recorrer à noção de performance implica então a necessidade de
reintroduzir a consideração do corpo no estudo da obra. Ora, o corpo (que
existe enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao seu ser físico) é
da ordem do indizivelmente pessoal. (ZUMTHOR, 2014, p. 41)

E como o próprio autor diz, no início do capítulo Em torno da ideia


de Performance, da obra supracitada, “Introduzir nos estudos literários a

156 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


consideração das percepções sensoriais, portanto, de um corpo vivo, coloca
tanto um problema de método como de elocução crítica” (ZUMTHOR, 2014, p.
31, grifo meu). E, assim, impregna-me de outros fios e nós do/sobre o corpo,
corpos, já que essa palavra sempre gera perguntas sobre si mesma a quem com ela
trabalha.
A performer e pesquisadora brasileira Eleonora Fabião, em seu artigo
Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea, faz da seguinte
forma: “Se ‘corpo’ é tema e é meio, faz-se necessário perguntar: o que é corpo?”
(FABIÃO, 2009, p. 238). E a partir das palavras do filósofo Baruch Espinosa,
apresentadas pelas ref lexões do também filósofo Gilles Deleuze, ela nos diz:

Um corpo tem o poder de afetar e ser afetado — esta capacidade


determinante também define as particularidades do corpo: o quê ele afeta
e como afeta, e pelo quê ele é afetado e como é afetado. Então, Espinosa
não define corpo por sua forma ou função, como dito anteriormente, nem
como substância ou sujeito. Corpos são vias, meios. Essas vias e meios são as
maneiras como o corpo é capaz de afetar e de ser afetado. O corpo é definido
pelos afetos que é capaz de gerar, gerir, receber e trocar. Espinosa propõe
que um corpo não é separável de suas relações com o mundo posto que é
exatamente uma entidade relacional. O corpo espinosiano não está, e nunca
estará, completamente formado, pois que é permanentemente informado
pelo mundo, ou parte de mundo que é. (FABIÃO, 2008, p. 238-239)

Um corpo narrativo, portanto, é performado na relação com mundos,


o mundo narrado da contadora de histórias por si mesma e as afetações que
acontecem nela. É um corpo relacional, se propõe a narrar e ser narrado pelo
mundo, a ampliar as percepções, a investigá-las, a respirá-las, a suá-las, e são

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 157


diversos os caminhos de investigação para tal. Concordo com as palavras de
Erdtmann sobre isso:

Seguindo a mesma ideia de trânsito livre entre corpo e história,


podemos afastar aqui a ideia bastante difundida de que à narrativa são
acrescentados gestos e movimentos, como um recurso complementar. A
forma com que o corpo é integrado neste meu processo é como parte da
própria substância deste contar. Da mesma forma que, podendo ser mais ou
menos “visíveis”, as dinâmicas corporais sempre participam do ato narrativo.
(2017, p. 181)

Então, o corpo narrativo é um corpo relacional, um corpo em performance,


posto em si mesmo para observar-se no cotidiano e produzido ao estar em
performance, seja ela na narração ou na performance art. Mas ainda não
esgotamos as ideias de corpo que queremos apresentar aqui, mesmo sabendo que
esta será uma tarefa findável e recortada, uma escolha mesmo para esta escrita
e subscrição: pensar sobre o corpo que narra, que se coloca em performance ao
narrar, que se afeta ao narrar em performance.
Na palestra Surto do saber-do-corpo – presença dos afetos, no Seminário
Novos Povoamentos, a pesquisadora brasileira Suely Rolnik (2016) fala da
presença viva das forças do mundo no nosso corpo e alerta que “subjetividade”
não é sinônimo de sujeito, e sim um conjunto para acessar o mundo, sendo o
sujeito somado ao que está fora dele. O saber-do-corpo, então, é o conhecimento
que se produz a partir do que “me afeta” na experiência com o mundo, pois a
partir unicamente da experiência se produziria um saber cognitivo, diferente de
quando se é afetada. A pesquisadora também destaca o afetar como desestabilizar,
não como algo que esteja ligado ao “carinhoso”.

158 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Na entrevista A hora da micropolítica, para o Instituto Goethe,
Rolnik (2016) aborda que “a experiência que a subjetividade faz do mundo é
potencialmente muito mais ampla, múltipla e complexa”, sendo uma produção
de efeitos no corpo enquanto vivente. Os afectos e perceptos, na obra de Deleuze
e Guatarri sobre esquizoanálise, nas palavras dela nesta entrevista, contribuem
para trazer outras afetações e percepções para o corpo desta escrita: “Estes
[afectos e perceptos] formam uma espécie de germe de mundo que passa a nos
habitar e que nos causa estranhamento por ser, por princípio, intraduzível na
cartografia cultural vigente, já que é exatamente o que lhe escapa e a coloca em
risco de dissolução”.
Essa cartografia cultural vigente de que a autora fala é também parte do
corpo narrativo urbano, contemporâneo de quem se propõe a narrar oralmente
histórias. Mesmo que seja um ponto de onde tentamos nos afastar, imergindo, ao
narrar numa outra espaçotemporalidade, é um grande desafio que nos interpela
e provoca. Criar uma contografia, uma cartografia de corpos que narram e
escolhem as histórias que desejam narrar ou como contar as histórias que já
existem, pode ser um guia dos afetos na criação de quem está na performance
narrativa ou na performance art. E é com o nó da palavra escolha, que fazemos
a pergunta que pretende finalizar este ensaio:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 159


PERFORMANCE NARR ATIVA PODE SER
POLÍTICA?
Ariadne chega. Ao fim. Todo processo se finaliza, ainda que se saiba que
existiriam outras palavras entre as linhas. É proposital a tentativa de finalizar
com uma pergunta. É vital, eu diria. Como se nada do que foi dito aqui, até aqui
fosse suficiente. E me perturba uma voz repetindo que “ainda falta”. Eu esperava
que a cartografia me permitisse não sentir o que sinto agora. Esse desejo de
não parir, essa vontade de agarrar e guardar só para mim. Ou de desistir, de ir
embora. É angustiante. Então penso outra pergunta para mover a que já está:
seria interessante a performance art como exercício da performance narrativa ou
o que elas podem juntas nas ações de quem se propõe a performar e de quem se
propõe a narrar?
Escrevo com lágrimas, pois é o que tenho agora e este agora da tua leitura
não é o mesmo que o meu. É outro. Sou outra. E o tempo todo foi sobre isso
que falei. Escutar honestamente o que me habita e partilhar. Contar histórias é
isso. E seguir perguntando o que é e contando o que é. E contando o que se é. (E
Ariadne lembrou de uma voz em meio ao labirinto que dizia que
este trabalho era filosófico.) E entre o medo de não sustentar o sim que
eu poderia ter dito e as tantas perguntas que fiz até aqui, tenho mais algumas
escritas.

160 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 17 – Nós de mim | IFPE Campus Olinda
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Leandro Neanderthal/IFPE

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 161


Saio do labirinto com sangue e linhas e a minha própria cabeça suspensa
em uma das minhas mãos. Bordo pouco. Grito muito. Sou metade mulher, metade
toura, Minotaura. Tive que matar fantasias, desistir de belezas, sustentar o medo
gigante e a pele para não cair assim que cruzei a entrada. E agora, que preciso
finalizar a história, não estou sabendo dizer as últimas palavras. Sinto que demoro
e sinto que não quero ir. Sinto que quero acabar agora e sentir que dei sentido a
esta escritura. Lembro da experiência vivida com a performance Nós de nós no
IFPE, da solidão que senti, de ninguém dar nenhum nó a não ser eu mesma e de
precisar pausar muitas vezes e fechar os olhos para entender aquela energia.
Sinto meu corpopalavra em estado de escuta e performação com o cotidiano.
O impacto dele em mim, a energia dele em meu corpo a cada vez que eu repetia a
pergunta: Em que momento a sua vida deu um nó? E narrativa vinha apressada e
desconfiada. (Issooo!!!! Desconfiar. O fio esgarçado e sem tornar-
se tecido!) E que trouxe ao meu corpo uma outra vivência, que registro nesta
cartografia. Como me senti muito só, quase todo tempo analisada e em pouca
troca, a relação que se pretendia performativa foi quase dramatúrgica. Fui
assistida pelas pessoas. Que visualizam meu corpo dizer e agir. Um outro modo
de criação deste corpopalavra. Mas confesso o meu desejo pelo encontro poético
e vivo, no momento quando sinto que conquistei o outro. E a minha insistência.

162 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Figura 18 – Os fios que carrego | IFPE Campus Olinda
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Leandro Neanderthal/IFPE

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 163


Nesta pesquisa, emergiu o que me incomoda, o que me move, o que me
amplia, o que me desfaz, o que me descotidianiza e inventa, o que me paralisa e
infecta, aquilo de que des/confio. Ao buscar criar performances narrativas, me
vi ampliando meu saber-fazer-saber arte e me inventando na performance art.
As performances criadas num aqui já passado, são performances art e integram
o corpo de uma artista/educadora, professora-performer, contadora de histórias,
são cria da narratriz.
Compor a narratriz me permitiu ser uma performer que ora se coloca a
performar com suas inquietações sobre ser educadora, ser artista, ser gente neste
mundo, ora narra histórias e costura em seu corpo a poética de uma ancestralidade
libertadora, que transforma a realidade dos meios digitais e escritos, numa
realidade da vida do corpo e da oralidade, dando vida a um corpopalavra
entretecido.
E, se desde o início o anúncio foi da ausência de linearidade, neste momento
afirmo mais ainda a complexidade que é se performar um corpo artista no mundo.
Neste mundo, este que é só meu, só teu, além nosso. Com isso, já que preciso
começar a arrancar os últimos nós e amarrar tantos outros, permito-me dizer que
não esqueci a performance Aos pés de Paulo Freire, o deserto virou desejo e as
palavras dela tecida. E que os nós que seguem, são nós de desejos, bem atados e
firmes, mas também podem ser arrancados e os fios carregados por aí, na mesma
intensidade. (Ah! Não esqueci a pergunta que começou este fim,
você vai ver!)

164 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Primeiro nó: Qualquer performance narrativa é política, do ponto de
vista de quais histórias escolhemos narrar e como escolhemos narrar. As
histórias que escolhemos narrar são o nosso ato político.

Amarro este nó bem firme. É preciso ref letir sobre o fato de que as histórias
que narramos escolhem um mundo que se deseja criar ou contar sobre um mundo
que já passou. Neste sentido, reafirmo a importância de contar as histórias da
nossa tradição oral, as histórias que são transmitidas corp/oralmente, em tantos
corpopalavras que ficam esquecidos e se perguntar sobre o que cada história
conta. Conta sobre um mundo de opressão que eu não quero mais? Que palavras
devo dizer junto dessa história? Por que essa história me toca? Em que parte do
meu corpo ela me narra?
Assim, é político o ato de ref letir e saber que se está escolhendo um discurso
ao narrar. Faço essa provocação para que se possa estar tramando junto com o
encantamento a intencionalidade. É legítimo então dizer que olhando para esta
afirmação que faço continuarei contando histórias de bichos, de esperteza, de
morte, de rir, mas também me perguntarei pelo modo como se contam as histórias
dos grupos minoritários, o modo como as pessoas negras, as mulheres, o grupo
LGBTQI+ é representado. Rir, sentir e se emocionar são atos políticos, dizem da
inteireza do ser humano. E é também político se perguntar como provoco o riso,
a emoção, os sentimentos das outras pessoas.
Afirmo, assim, um lugar de questionamento, de encontro com a minha
verdade para escolher o meu repertório de histórias. E penso que não pensar
sobre isso ou ainda silenciar estas questões também são atos políticos.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 165


Segundo Nó: Que as histórias de vida de cada pessoa possam estar presentes
no modo como propomos a educação, sendo escutadas e valorizadas,
numa performação nutrida e instaurada entre quem habita os espaços
educacionais.

As narrativas orais podem criar espaçotemporalidades do afeto e do cuidado


na educação (básica). Neste lugar é que foi se perfazendo o encontro entre a atriz
e a narradora, anoiTECEndo-me narratriz como o brincar entre a tarde e o que
vem. Como o mar, mergulhado no escuro, lembrando do céu vermelho e laranja.
Narratriz como nó, vivendo nós com as questões educacionais e artísticas postas
num mesmo lócus performativo, convidando “afectos e perceptos” a habitarem
uma comunidade, ouvindo e reconhecimento as histórias de vida das pessoas
que criam e constituem Escola ou ainda uma faculdade, ou outros espaços
performativos.

Del mismo modo podríamos ver la historia de la narración como la


construcción de un sujeto que se piensa a sí mismo a partir de un relato.
De la narración individual se pasó a la colectiva, que tornaría significativos
los modos de vida que se irían desarrollando. [...] En esta relación entre la
palabra y el mundo, los primeros cuentos fueron los que les dieron también
forma y sustento a estos nuevos modos de organización, los que entrelazaron
una red a partir de la cual se construye la percepción del mundo y de cada
individuo en el sistema comunitario. (PADOVANI, 2014, p. 24-25)

Numa performance narrativa, então, a narradora traz em suas palavras o


resgate desses sentidos primeiros e a invenção de novos, de modo que sejam
partilhados com a plateia, com as/os ouvintes performers, numa experiência

166 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


coletiva que apresenta sentimentos e relações de estar em comunidade. Uma
comunidade narrativa vai sendo inventada ao longo da performance, num ritual
de partilha do corpopalavra, do sentido de pertencer ao mundo e se reconhecer
nele.
E o corpo relaciona e permite que esse acesso ao ritual aconteça: risos,
suspiros, expressões de susto, dor, apreensão, que aos poucos vão se coletivizando
até que a atmosfera do lugar vai se modificando, a energia vai se conectando e o
ritual acontece. A professora, artista e pesquisadora Luciana Lyra, escreve sobre
isso: “A partir dessa ideia entende-se o corpo como lócus performático do jogo
ritual, sendo a performance o espaço de materialização da expressão que vai além
da mera comunicação de significados [...]” (LYRA, 2014, p. 177).
Um ritual que instaura um tempo descotidiano, que permite estar ali, só ali,
rindo, chorando, curtindo, ouvindo, querendo saber o próximo acontecimento,
movendo os acontecimentos de si diante das outras pessoas, inventando a
tradição naquele instante que é você e a história e suas singularidades. Como na
performance Aos pés de Paulo Freire, o deserto virou desejo, da qual narro:

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 167


Figura 19 – Performance Aos pés de Paulo Freire, o deserto virou desejo
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

168 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Desfiz a linha
Do tempo, fiquei com a sorte
Eu que vi o deserto
Desatei o nó da poesia
E reescrevi a palavra
Sabendo que habitada de desejo sou deserta
Habitado de deserto se é desejo
Assim, ao encontrar um mestre, não das palavras, mas do afeto
Ousei tracejar outro plano
Outra professora
Outra artista
Outra vida, ali em uma letra
E o risco, com nó, agulha, bastidor
— Sim! Eu sei que ele é mestre também das palavras, Paulo Freire é como
um bastidor,
Coisa de provocação de quem borda
Ali, firme, encontra um mundo e emoldura o desejo de inventar palavras, de
ver a si, de ser com todas
É um elo entre a mão que arrisca ser linha e dizer
E a que sustenta e observa
Ambas, alinhadas, se desejam
E descobrem que o deserto precisa ser visitado
Aqui dentro
Pra você, a escola é deserto ou desejo?

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 169


Figura 20 − Escuta-se. Escute a si.
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

170 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


Talvez tenha sido neste dia em que carreguei minha maleta, meus bordados,
meu banco e sentei pela escola ouvindo histórias e bordando em meio a uma
reforma, que eu tenha me dado conta de que a performance art estava sendo
criada a partir das inquietações que vivia na performance narrativa, nos fios e
nós que esta trazia para o meu ser artista no mundo.
E então, ao narrar meu corpo costurando um espaçotempo de um conto
da tradição oral, ou de uma performance zumthoriana ou uma encarnação
larrosiana, fui percebendo o que me provocava enquanto performar-me artista/
educadora, professora-performer, narratriz com educação. É preciso habitar o
corpo poético adormecido de Escola, fazê-la gritar viva, incomodá-la e convida-
la a dançar, pulsar suas paredes em festa. Mover mover mover! Contar contar
contar!

A escola é para o professor o que a padaria é para o padeiro, a


cozinha é para o cozinheiro ou o sapato é para o sapateiro: sua oficina, seu
laboratório (se entendemos por laboratório o lugar do seu labor), seu ateliê
(se entendemos por ateliê o lugar onde ele atua), o lugar onde ele exerce seu
ofício, onde mostra suas habilidades e onde estão tanto suas matérias-primas
quanto suas ferramentas ou seus artefatos. [...] Além disso, um vocabulário
material da escola deveria fazer a escola falar, deveria ser capaz de fazer com
que a escola diga alguma coisa sobre o que ela é. (LARROSA, 2018, p. 27)

Ouvi a voz de Escola: risadas firmes, cochichos, lampejos, gracinhas,


sussurros. Dei as mãos às minhas e aos meus pares. Recebi sorrisos largos,
gargalhadas dos meus colegas. Enfrentei as caras feias e os não-entendimentos.
Escola é viva e uma grande parceira, potente, aberta ao ritual, foi isso que fiz:
instaurei o ritual com meu corpo e as performances se deram, de diferentes
formas.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 171


A decisão para cada uma delas foi cartográfica, f luida e misteriosa. Uma
esperou pela outra, num tempo contemplativo de quem respira e revigora.
Apesar do desespero, des-esperei, parei de esperar e só senti. Fui com calma
ouvindo como se dava a relação entre ser artista e ser educadora na escola, com
Escola, até perceber que posso ir além do além da sala de aula, ser performer,
ser narratriz em qualquer lugar.
A pergunta central então foi se costurando, tomando forma e cor, sendo
presentificada. O que cria uma narratriz com Escola para além da sala de
aula? se transformou em O que cria uma narratriz com educação para além da
sala de aula? O espaço educacional saltou como campo poético, como terreiro
de linguagem teatral fértil, como escuta corporal de narrativas individuais e
coletivas, como andança farta de gente, como um organismo do qual pude ver
as partes conectadas, imbricadas na pesquisa.
Uma Escola move em si gente, como qualquer pessoa, percebendo um
“... vocabulário material da escola” (IBIDEM, 2018, p. 27), fazendo-a não só
falar, mas convidando-a a mover, pulsar, relacionar, fruir, encenar, performar,
assumir o espaço que é, dar as mãos, olhar nos olhos, contar e ouvir histórias.
“A força da narração corresponde à escolha pelo simples, à revalorização da
relação olho no olho, à importância atribuída ao interlocutor (já que não há
narrativa sem ouvinte) e à construção coletiva das imagens” (MATIAS, 2010, p.
81).
Esta simplicidade de troca entre performer e ouvintes performers, entre a
contadora de histórias e a plateia, entre a narratriz e as pessoas presentes com
Escola, com educação. Num espaçotempo presente, onde se esteja contando,
onde se escolha contar, na imersão corporal de se fazer presente diante das/os
outras/os e de permitir a presença de cada um/a em você, através de uma escuta
poética, que lê as expressões faciais e dá resposta a elas com sua expressão ou

172 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


que ouve uma narrativa e a traz para morar dentro da ação... e.... que vê um
corpo se movendo para mostrar como aquele personagem anda, ri, cuida, come
e dá espaçotempo na performance para que aconteça... e... na escuta interna
de si mesma durante a narrativa para lembrar-se da tal simplicidade, olhar
ao redor, observar os corpos que estão ali e qual história se inquieta dentro
de quem vai narrar, de quem vai com seu corpo narrativo instaurar um corpo
narrativo coletivo, compartilhado, uma comunidade narrativa, uma escola.

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 173


Figura 21 − Escutando Escola
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Rita Cavassana.

174 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


FIM

Qual história suporta o fim? Todas. Toda história suporta seu próprio fim,
milhares e milhares de vezes. E, mesmo tendo escolhido uma não-linearidade,
confesso que chegar neste fim me deixa feliz. Vivi uma história, contei para vocês,
inventei um tanto de coisas e fim. E me lembro do sentimento de aconchego
vivido com a última ação da performance Nós de nós até a finalização desta
escrita. Fui convidada pelo Grupo Zumbaiar a ministrar uma oficina para dois
grupos que estavam na Formação de contadoras/es de histórias no ano de 2019.
No convite, ouvi: - Traz aquele trabalho com as linhas, achei tão bonito! Convite
aceito e desafio também, pois seria numa sala fechada e não num espaço aberto,
em trânsito.

As histórias existem para isso. Nos impor também a finitude das coisas,
dos acontecimentos. E há muito encanto nisso. Em nos mostrar o poder de
transformação que há nelas, quando nos contam sobre mundos e culturas
diferentes das nossas, quando nos dizem as ações que repetimos há tempos,
quando nos trazem em segredos arquetípicos os nossos desejos cotidianos.
Encontrei naquele grupo muitas mulheres e um homem, que é um dos
coordenadores. Todas as mulheres me acolheram de maneira visceral. Choramos
e partilhamos histórias profundas. Foi muito feliz. O último nó desta cartografia,
com fios que contam ao chão e a mim sobre parte do que foi vivido.

E bem agora eu percebo que estive o tempo todo a cartograFIAR. Eu


cartograFIO, nós cartograFIAMOS. (Abri um largo sorriso, confesso!)
Finalmente chegou esta parte da história. É quase fechado um ciclo. Viva! Cada
personagem vai dormir seu sono até que uma outra narradora venha acorda-lo
com sussurros ou gritos, até que uma professora faça uma nova roda no jardim,
até que alguém o leia em trechos de letrinhas pequenas, até que uma narratriz

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 175


Figura 22 – Nós de nós | Formação do Grupo Zumbaiar
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: Lucicleide Pereira.

176 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


o sinta em seu estômago, até que uma performer vista e esgarce até virar linha
entre os dedos e imagem para além do papel, na vida mesma.

Para algumas histórias, considerações sobre a hora certa, o local


certo, a pessoa certa, a preparação certa e o objetivo certo indicam quando
e se a história deveria ser contada ou não. Mas, para as histórias de família,
histórias da nossa cultura e histórias da nossa vida pessoal, qualquer hora
pode ser exatamente a hora certa para se fazer a doação da história. (ESTÉS,
1998, p. 37)

É momento de celebrar esta doação e a escuta gerada por ela. Os dois anos
de imersão em minha poética mais profunda: ser eu mesma, contar a minha
história e validar isso como conhecimento. (Será possível? Diria minha
avó. Será o impossível?) Sim, será! É. Está. Estão postas as palavras em
seus devidos lugares, as correções em suas gramáticas, as alegrias nos abraços
e as pessoas dentro de mim.
Viver este processo levou muito de mim e das minhas verdades. Me deu
muitas dúvidas e também confiança para seguir. Sigo! Tecendo enredos com
escola, habitando as performações que virão com novas/os educadoras/es,
incentivando que sejam autoras/es de suas próprias performações e sendo mais
generosa ao ler as frases alheias. Sei o tanto de tempo e lágrima e vontade que

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 177


Figura 23 – Cartografia, cartograFIO.
Fonte: Arquivo pessoal. | Foto: A autora.

178 CARTOGRAFIOS DE UMA NARRATRIZ


se gasta para escrever linhas como estas. E não sei tanta coisa que posso dar um
sorriso e pensar no que vem, no que posso co/criar e desejar.
E por falar em desejo, é disso que se faz a arte e a educação. A arte que
questiona, pergunta, responde, abraça, inventa, cria. A educação que questiona,
pergunta, responde, abraça, inventa, cria. Em performance. Em poesia. Em
teatro. Em contação. Em narração. Em qualquer outra coisa que a gente ainda
não sabe o nome. E a potência de enredar-se em labirintos com essas duas (arte
e educação) é uma festa. Por que eu posso ser a Ariadne e sair com a cabeça
do Minotauro em mãos. Por que você pode ser a espada, as pedras que formam
o labirinto ou a palavra que manifesta tudo isso. O corpopalavra que encarna
essas vontades.
Parace que não quero me despedir, já escuto a próxima linha me dizendo
como quer ser escrita. Mas é isto. Brindemos o FIM. Por que as vezes ele vem
inesperado, quando a narradora esquece uma parte da história ou vem demorado,
quando a gente se engraça de quem ouve. E repete a história. E pede mais com
as palmas, o olhar, a careta, as lágrimas, com o corpo todo (imagino que
você tenha pensado outras possibilidades.) Que bom! Significa que
mesmo após alguns fins, continuamos fiando o tempo, um espaçotempo outro
em que vamos embora juntas de toda e qualquer história.
Que assim seja! E seja para sempre! (já diria o homenzinho da
história O Grifo, mas essa realmente é ooooooouuutra história)

Performances entre contação de histórias, teatro e educação 179


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