CartograFIOS - Leitura
CartograFIOS - Leitura
CartograFIOS - Leitura
Cartogra fios
a n a r r a t r i z
d e u m
Natal/RN
2020
Natal/RN
2020
BANCA EXAMINADORA
[Orientadora]
Profa. Dra. Karyne Dias Coutinho
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[Membro interno]
Profa. Dra. Naira Ciotti
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Natal/RN
2020
a n c i s c a ,
bisavo Fr
v o X i .
minha
Cantando, celebrai, oh Anciãos,
A história de nossa raça.
Que me seja dado ver em minha alma
O amor em todos os rostos.
E todos os espíritos que vieram antes,
O poder mágico que eles adquiriram.
A Tradição Sagrada que me transmitiram
Para que a memória não desapareça.
Oh Contador de histórias, sede minha ponte
Para aqueles outros tempos.
Para que eu possa Caminhar em Beleza
Com o ritmo antigo e a antiga rima.
Carta Contador de Histórias - As cartas do caminho sagrado
(SAMS, 1993, p. 248)
Agradecimentos
ENSAIO 1
NARR ATRIZ DIZ: - AGOR A EU ER A 49
- VAMOS PERFORMAR, ESCOLA ? VAMOS PERFORMAR
COM ESCOLA! 62
ENSAIO 2
CARTOGR AFIA DE UM CORPOPALAVR A 81
ENSAIO 3
UMA NARR ATRIZ COSTUR ANDO O TEMPO 101
OS TRÊS FIOS DA NARR ATRIZ 111
ENSAIO 4
NÓS DE NÓS: CORPOPALAVR A EM PERFORMAÇÃO 123
CORPOPALAVR A , CORPO NARR ATIVO 143
PERFORMANCE NARR ATIVA PODE SER POLÍTICA? 164
FIM 179
REFERÊNCIAS 185
Corpopalavra
Corpopalavra é uma justaposição para dizer da existência da palavra num
corpo, afirmar que a criação da palavra é corporal, encarnada (LARROSA, 2014)
até chegar num corpopalavra híbrido, colorido de si, enfeitado do tempo de
quem narra histórias.
Espaçotempo
Irmanar espaço e tempo em um único espaço de escrita e num fôlego
que brinque com o tempo de dizer esta palavra. Faço a união destes dois
substantivos para f lutuar com a ideia de presente, passado e futuro. Assim,
juntos, espaçotempo possibilita outras imagens, como quando iniciamos a
narração de um conto e situamos quem escuta sobre onde estamos e em que
época.
Instabelecer
Ação de manter-se em energia de transformação, de forma a ativar sua
metaestabilidade, o que faz reconhecer que os contextos podem estar sempre
em mudança contínua. Diferentemente de estabelecer, que tem dentre suas
definições “criar, tornar-se, formar-se”, instabelecer busca um performar-se,
criar-se em rede, tornar-se em coletividade.
Descotidiano
Tornar o cotidiano suspenso nele mesmo, negar o tempo dos afazeres
cotidianos e se deixar levar para um espaçotempo descotidiano.
1 - Será mantida a utilização do termo cartografia ao longo do texto, para que o trabalho também possa
contribuir com as pesquisas cartográficas em Artes Cênicas. Compreendo Cartografios como imagem
poética do que vivi no conjunto deste todo a partir dos caminhos metodológicos cartográficos.
3 - Escola no texto é performer, que move ações e que mobiliza afetos. Não se quer trazer uma
generalização ou personificação no sentido de um discurso desconectado das implicações sociais,
econômicas, culturais. Pelo contrário, ao ressaltar o afeto da minha relação com o espaço escolar,
determinante na minha trajetória artística e educacional, posso traçar diálogos com ela e dar a
ela sensações e percepções dentro de um contexto ficcional, que me abre outras possibilidades de
organizar discursos com Escola. Por isso, quando no texto estiver grafada iniciando com a primeira
letra maiúscula e em itálico, trata-se desse contexto ficcional afetivo. Quando me referir ao espaço
escolar a partir de um contexto mais geral, será grafado em letras minúsculas.
Objetivo geral
• Cartografar performances que emergiram em experiências de criação
artística envolvendo a contação de histórias, o teatro e a educação, para além da
sala de aula, e que estiveram envolvidas na composição de quem é uma narratriz 4 .
Objetivos específicos
• Instaurar performances art e performances narrativas em diferentes
espaços educacionais, de modo a perceber quais processos de criação podem
acontecer na atividade de uma artista/educadora para além da sala de aula;
• Compor a ideia de narratriz na experiência da contação de histórias, em
conexão com os conceitos de performance art, performance narrativa e corpo
narrativo.
• Habitar uma escrita performática, discutindo elementos que envolvem a
contação de histórias e a cartografia.
Considerando que precisava retomar o contato com o CAp UFPE agora
vinculada a esta pesquisa, resolvi imergir enquanto pesquisadora no espaçotempo
4 - Com estes objetivos, evidencio para mim mesma que a separação e a dicotomia de que já fui palco
com meu corpopalavra entre contação de histórias e teatro não faz mais sentido. Escolher compor a
palavra narratriz desde o objetivo geral é perceber que a minha prática estava constituída num lugar
entre, num lugar performático, instável, suspenso desde quando iniciei e durante esta pesquisa. Com
isso, também enfatizo a legitimidade de quem se reconhece de outras formas. É nesta rede complexa
que ampliaremos o campo das pesquisas sobre a arte da narração oral.
Seguindo o voo do brocado percebo que por vezes ele é um voo natural e
f luido, em outros momentos compulsório, como na colonização e no extermínio
de povos e ideias. Desta forma, mudanças vão acontecendo no modo de ver
o mundo, assim como na forma e no motivo que levam a narrar. E, se trago o
conto tibetano para costurar estas ideias, também é para me encontrar com o
5 - A referida busca foi realizada no catálogo de teses e dissertações da CAPES com as seguintes
expressões e suas possíveis combinações: contação de histórias, teatro e educação; narração de histórias,
teatro e educação; narradora de histórias, atriz, educação; contadora de histórias, atriz e educação;
performance, contação/narração de histórias e educação; performance narrativa, contação de histórias
e educação; performance narrativa, narração de histórias e educação. A busca ainda foi feita com alguns
desdobramentos como: narração artística, corpo narrativo; e também outras expressões que pudessem
nos apontar estudos que têm o corpo como movedor da discussão com/na contação de histórias.
Universidade/ Programa/Área/
Pesquisador(a) Título
Ano de obtenção Linha
Programa de Pós-
graduação em
O
Educação/Doutorado
educadornarrador: Universidade
Aline Cântia Corrêa em Educação
uma trajetória Federal Fluminense
Miguel
pela palavra e pela (UFF)/2017
Linha de pesquisa:
escuta
Estudos do Cotidiano
da Educação Popular
Programa de Pós-
graduação do Instituto
de Artes
Área de concentração:
O Narrador Universidade Arte e Educação
Giuliano Tierno de Considerações sobre Estadual Paulista
Siqueira a arte de contar Júlio de Mesquita Linha de Pesquisa:
histórias na cidade Neto (Unesp)/2016 Processos artísticos,
experiências
educacionais e
mediação cultural
Os contadores
Área de Concentração:
de histórias na
Arte Contemporânea
Ângela Barcellos contemporaneidade:
Universidade de
Coelho Café da prática à
Brasília/2015 Linha de Pesquisa:
teoria em busca
Cultura Saberes em
de princípios e
Artes Cênicas
fundamentos
Universidade/ Programa/Área/
Pesquisador(a) Título
Ano de obtenção Linha
Universidade de São
Lígia de Moura Tecendo o Sopro do Paulo (USP) Escola Área de Concentração:
Borges Narrador de Comunicação e Pedagogia do Teatro
Artes (ECA)/2017
Programa
Interdisciplinar de
A Terceira Margem Pós-graduação
da Performance: Mestrado em
Wellington um estudo do Performances
UFG/2017 Culturais
Rodrigues Barros ato-narrativo em
três contos de Linha de Pesquisa:
Guimarães Rosa Teorias e Práticas da
Performance
Área de Concentração:
Artes Cênicas
Jogos para despertar Universidade
Alexandre Geisler Linha de Pesquisa:
o contador que cada Federal da
de Brito Lira Processos
um traz dentro de si Bahia/2017
Educacionais em Artes
Cênicas
Performance
narrativa e Instituto de Artes
Mestrado em Artes
Juliana Ferreira transmissão da da Universidade
Cênicas.
Machado (Juliana experiência em dois Estadual Paulista
Linha de pesquisa:
Mado) narradores natos: “Júlio de Mesquita
Estéticas e poéticas
Sebastião Biano e Filho”/2015
cênicas.
Marilene Paschoal.
9 - Pude conhecer o trabalho de Wellington Barros também na mesa em que estivemos juntos na Mostra
Transborda do Sesc Pernambuco em 2017, que teve como tema O ator contador de histórias, um dos
recortes curatoriais da mostra naquele ano.
Essa história segue conectada com o era uma vez, na ação de escrever e
olhar. Meu olhar no teu que me lê, que permite um contato com meu corpopalavra,
com a corporeidade dissertativa que se apresenta. Estas linhas que seguem são
bordadas em conjunto com você, sua leitura, seu corpo, então o que quero dizer,
neste instante, é do prazer de estar nesta troca! Esta história se instabelece aqui,
no tempo presente, em que nós nos encontramos. Um tempo presente fora do
tempo comum, um presente suspenso, que se encontra no potente momento em
que nossos corpos se irmanam no sentir, na respiração, na energia, no vínculo,
no tempo do “agora eu era”. Nas palavras de Machado (2015a):
Pois bem... uma vez além do tempo, agora eu era Escola! Há muitas histórias
para serem contadas sobre a escola, na escola, com a escola. Nesta história, Escola
é performer, com corpo, sentimentos, ações, contradições, inferências e dúvidas,
por vezes até personagem. E, como nos mostra Machado (2004b, p. 11), “antes de
mais nada, parti de um ensinamento valioso, que sempre está presente para mim:
aprendi que nos contos tradicionais os personagens não são pessoas, mas expressam
qualidades e possibilidades humanas de desenvolvimento”. É extrapolando esse
11 - Outras experiências que aconteceram ao longo da pesquisa e foram incorporadas por serem
desdobramentos ou consequências dela, foram me mostrando que o território das ações performáticas
estava sempre atrelado a educação e especificamente a formação de professoras/es. Isto será melhor
evidenciado e discutido no Ensaio 4.
Neste ponto, preciso fazer uma pausa. Pedir licença e fechar os olhos.
Respirar fundo. Abraçar dentro, sorrir para mim mesma diante de uma caneca de
café ou do pôr do sol no Atacama. Lembrar um mergulho na praia de Tamandaré,
onde passei muitos janeiros da minha existência corporal e afetiva, como se fosse
possível separar essas duas coisas. Te convido a fazer o mesmo. Lembrar o que
te move, o que te narra no mundo, o que você conta para você mesma/o sobre a
existência.
É isso: contar histórias me trouxe para um lugar da narrativa enquanto
existência in/finita, numa felicidade de ser simples, de habitar o nada da cena
comigo mesma e estar porosamente aberta e vulnerável, em performance. Eu
13 - Além disso, no ano de 2012 me inscrevi nas oficinas do Encontro Internacional de Contadores
de Histórias- Boca do Céu e pude participar das seguintes oficinas de formação: “A arte de narrar:
Fundamentos, interpretação e repertório” com a canadense Oro Anahory; e “O céu, a terra e a vírgula”
com Chico dos Bonecos (SP). Outra formação que destaco, ainda no ano de 2012, foram as palestras do
Festival Conte Outra Vez daquele ano, em Recife-PE: “Textos e Têxteis” com Os Tapetes Contadores de
Histórias (RJ); “Novelo de Histórias” com Grupo Zumbaiar (PE); “A arte de contar história no século
XXI” com Cléo Busatto (PA).
14 - Outras pessoas com quem tive contato em oficinas foram Regina Machado (SP), Rosana
Mont’Alvernne (MG), Irene Tanabe (SP), Inno Sorsy (UK), Gislayne Avelar Matos (MG), Yohanna
Ciotti (SP), além de ouvir contadoras/es e grupos pernambucanos como Adélia Oliveira, aqui já citada,
Luciano Pontes; Roma Julia; Gustavo Bezerra; Mariane Bigio; Érica Verçosa; Vinícius Viramundos;
Lenice Gomes, Clenira Melo, Carminha Morais, Mitafá e muitas outras da Cia Palavras Andarilhas,
O tapete voador (PE), Cia Pé de Vento (Arcoverde-PE), Stephany Metódio e Alexandre Revorêdo
(Garanhuns-PE), Odília Nunes (Afogados-PE), e também pessoas e grupos de outros lugares do Brasil
e do mundo: Tapetes Contadores de Histórias (RJ), Cia Prosa dos Ventos (SP), a Cia Mafagafos (SC),
Simone Grande (SP), Kelly Orasi (SP), Muriel Bloch (FR), Inno Sorsy (UK), François Moïse Bamba
(Burkina Faso).
Performances entre contação de histórias, teatro e educação 71
performação como contadora de histórias, me deixou atenta aos atravessamentos,
ao que reverberava em mim quando eu contava, e principalmente ao OUVIR/
VER essas pessoas todas contando e perceber que são todas muito distintas, com
caminhos muito singulares.
Em meio a tudo isso, foi que criei a Cia. Agora Eu Era. Pernambucana,
feita por mim e por Cacau Nóbrega, que foi músico, pesquisador e produtor da
Cia. até o fim de 2018. Com a criação dessa “companhia de dois”, onde um fazia
companhia para a outra, pude dar sequência às minhas investigações, agora com
uma interlocução sonora, musical e bastante afetiva, visto que éramos casados
à época. O nome da Cia. foi escolhido entre as páginas do livro Acordais –
Fundamentos teórico-poéticos da arte de contar histórias (MACHADO, 2009) e
não é por acaso que dá nome também a uma parte deste ensaio.
A imagem que segue é da primeiríssima apresentação da Cia. Agora Eu Era,
que aconteceu no Terceiro Festival Conte Outra Vez, organizado pelo grupo O
Tapete Voador (PE), do qual faziam parte à época as contadoras Camila Puntel e
Roma Julia. Eu fui convidada para compor a programação no início do ano de 2014,
porém o evento acabou sendo adiado e a nova data foi marcada justo quando Cacau
chegou em casa com uma harpa artesanal. Diante do meu deslumbramento pelo
instrumento e da não possibilidade de executá-lo, o que seria uma participação
especial a princípio acabou se transformando em uma parceria que durou até o
final de 2018.
15 - O verbo está grafado propositalmente desta forma, como visto no glossário que abre este trabalho.
16 - A partir dos estudos dos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari e da brasileira Suely Rolnik, a
pesquisa da cartografia enquanto metodologia se deu por diferentes grupos de pesquisa brasileiros. Um
grupo especificamente se deu a tarefa de materializar essas pistas: pesquisadoras/es em Psicologia da
Universidade Federal Fluminense (UFF) e Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), inicialmente
enquanto grupo de estudos, que geraram textos e materiais para produção do primeiro livro, Pistas para
o método cartográfico, organizado por Eduardo Passos, Virginia Kastrup e Liliana da Escóssia, sendo
um marco para disseminação da discussão, que tem se ampliado para diferentes estados e programas
de pós-graduação.
Fonte: A Autora.
Ora, medir uma duração é a mesma coisa que medir o tempo? Sim e
não. Sim, pois o tempo é aquilo que permite que haja durações, produzindo
continuidade no conjunto de instantes. Não, pois a medição de uma duração
não exibe de forma alguma o tempo que a fabricou, tampouco revela o
mecanismo misterioso pelo qual, tão logo aparece, todo instante presente
desaparece para dar lugar a outro instante presente, que por sua vez se
retirará para dar lugar ao instante seguinte. Ora, o tempo é precisamente
esse “mecanismo”, essa máquina de produzir novos instantes o tempo todo:
esse motor íntimo, esse sopro escondido no centro do mundo pelo qual o
futuro se torna primeiro presente, depois passado. (KLEIN, 2019, p. 19)
COSTURANDO O TEMPO 17
10 de outubro de 2018
Escritas em 10 de outubro, até as 21h49
Escrevo no computador, em minha casa
Uma mulher costura o tempo. Em tempo, não faz nada. Ouve e só. Você tem
alguma história pra me contar? ( frase dita quando alguém se punha em relação
comigo, fosse verbal ou não)
A frase ecoa na minha cabeça na mesma medida em que o sol quente deixou
uma sensação de mormaço aqui dentro. Um sono de praia, uma luz quente no
peito. Estacionei o carro longe, num lugar que nunca tinha deixado. Descalça,
peguei os dois tecidos e a cesta com linhas e agulhas, fui. Caminhei lentamente,
sentindo pedra quente e grama, areia morna. Sol no céu bem azul. Homens no alto
trabalhando. Perto, vejo Escola. Entro em cena um pouco depois quando sou vista.
17 - Os registros escritos das performances realizadas aparecerão no texto destacado em itálico. Faço
essa escolha para demarcar visualmente uma mudança na espaçotemporalidade de uma voz que é
também dissertativa e poética, mas, sobretudo, narrativa e quase dramatúrgica.
Saltam-me tantas metáforas lendo este pequeno trecho desta obra e nem
vou entrar em questões como a construção do feminino nos contos de fada, por
Com a boca bem aberta para tecer essas costuras, ainda vivendo a “trama
temporal” (KLEIN, 2019, p. 11) daquela performance, adensando um lugar interno
que guarda as minhas vivências enquanto artista, com o peito sentindo aquele
dia e o sol quente que ele tinha e outros instantes já passados, memórias, que
18 - Uma discussão mais detalhada sobre a performance art e a performance narrativa está feita no
Ensaio 4.
Nós de nós
23 de maio de 2019
Escritas em 25 de maio, até as 11h55
Escrevo no computador, em minha casa
Tecido vivo, interno e externo, costura de cores, formas, fios, que são
narradas na junção ao dizer com a plateia, com as estudantes, com a escola e com
quem mais estiver em performance, buscando elementos que contribuam para
inquietar, reverberar e nutrir as liminaridades, os possíveis entres, os corredores,
as entradas, os estacionamentos, os auditórios e o que mais de transitório e de
passagem pudermos nomear.
Na performance Nós de nós, quais palavras e imagens a plateia moveu em
mim? No meu corpo narrativo? Em movimento, perguntas, não olhares, intenções,
conexões? Quando conto, sou uma espectadora de mim, tentando me desdobrar
naquela pessoa que me escuta e no mesmo instante me narra. Sou também os
elementos que estudo e tantas outras narradoras/es, com as/os quais ritualizo,
na palavra e no espaço, em vozes de quem resolve escrever e inscrever sobre esta
19 - No livro Tremores (2014), o educador Jorge Larrosa constrói diálogos com diferentes vozes,
dentre elas as do filósofo e ensaísta Walter Benjamin, do escritor húngaro Imre Kertész e do filósofo
contemporâneo Giorgio Agamben, especificamente no capítulo 1.
Instabeleço essa narratriz que brinca, que pergunta, que ativa um estado
brincante, que busca um corpo em estado de brincadeira, numa corporeidade
que se possa acessar, investigar, nutrir. Um corpo narrativo perguntando de si e
do que o compõe na própria performance, na ação de materializar uma teia em
cor, de tornar tátil o que tece uma comunidade narrativa e brincar entre a palavra
e imagem criadas. O que meu corpo emaranhado em performance pergunta?
Como deixá-lo aberto, presente, como um ser envolvido em brincar?
Certas vezes, adulta em profissão educar, observei e brinquei com muitas
crianças em aulas de teatro, seus jeitos tantos de narrar cada parte, de ser no
mundo ao contar cada movimento. Também no parque, nos corredores, nos
gritos, nas vontades imediatas, nas verdades inquietas de fuga, na maneira de
contar como escorregaram, subiram até o escorrego, vocalizaram para chamar
alguém que queriam perto, choraram ao acontecer o oposto do imaginado. Cada
modo de narrar impregnando e tornando viva uma escola narrada por muitos
corpos. Para isso é preciso sempre olhar de novo, sentir de novo, como ouvir de
novo uma história.
E muitas vezes precisei, como professora, sentir de novo. Agradecer a
quietude das palavras, a palavra pele narrando o toque, a palavra molho
narrando o desejo, a palavra amarela em meus pés que vão. Sujos vãos. A
encontrar. As vezes, não é cena, não é performance, não é arte, não é nada. E ser
nada neste lugar chamado escola é encontrar-se um pouco, é um café que cheira,
é o vento que vem e é só vento mesmo.
E essa sujeita, que fala e escuta, é um corpo que fala e escuta, é uma
corporeidade que se ocupa de lembrar que somos carne. Em conversação e estado
de pergunta, digo: quando o corpo é escrita e quando a escrita é corpo? Uma
corporeidade que se pauta no que se é, delicadezas de quando se ouve algo de
alguém querido, papéis anotados às pressas que pensávamos perdidos. Sinto que
uma corporeidade me é, diz de mim, me narra. Corporeidades da feira de sábado
com meu pai, ao comprar jambo-branco na redinha amarela, f lor carinho de mãe
para presenteá-la, barulheira e caminhada.
O gênero performance art, que tem sua história vivida pelas/os artistas
inicialmente das artes visuais e que depois se aproxima da dança e do teatro,
E cada palavra que não foi dita, ou ação que não foi feita, também
compõem sentidos no que se diz ou que se pensa com o corpo: o discurso que
alguém me faz sobre o mundo (qualquer que seja o aspecto do mundo de que
ele me fala) constitui para mim um corpo a corpo com o mundo (ZUMTHOR,
2014, p. 75).
O saber de uma narratriz é esse? É desejo que seja: “uma forma humana
singular de estar no mundo” (LARROSA, 2014, p. 32) contando para si mesma e para
as outras pessoas o que vê, o que sente, o que a deixa dormir, o que a amedronta,
mas também costurando espaçostempos para que as outras pessoas contem. As
histórias, a pesquisa das histórias ativa um regaste de humanidade na gente,
para que da boca saia palavra viva, já que a história primeiro fala comigo, brinca
comigo, oferta-se a mim, pela boca de outras ou pelas letras de um livro, pelo
chão batido, pelo muro que cai, pela sala sem bancas, com as crianças correndo,
com os lugares que visitamos em carne e osso ou em cuidado e afeto, imaginados
e sonhados para partilhar. Mas tudo isso só consegue existir no encontro com as
pessoas, pautando esse encontro com liberdade.
Eu sou um corpo, existo num mundo inventado por mim e para mim. Um
suspiro de quem percebe a cor do céu e deixa vir a nuvem em pele. A amplitude
de elementos, do que o corpo instaura, manifesta, sente, provoca, dilui, escama,
festeja, vibra, entorna. Um corpo como medida e desmedida, como espaço de
existência e de cuidados, de sentir a si mesmo, espaçotempo materializado,
percepção e poesia, inscrição e provocação, labirinto do encontro com outros
corpos, com corpos de ouvintes, corpos em escuta. Em tempos e espaços distintos
esta palavra corpo vem sendo descrita, vista, observada e sendo movimento,
estrutura, osso, espasmos. Com que noção de corpo, então, estamos nos movendo
quando sugerimos um corpo narrativo? Por que adjetivá-lo? Não é todo corpo
uma narrativa?
Enquanto narratriz, me chegam conceitos de diferentes espaços e tempos
sobre como somos artistas da palavra, como produzimos através da voz e me parece
que, por vezes, esquecemos que esta voz é corpo, faz parte de nossa corporeidade.
E quando falamos de corpo também nos vêm concepções de diferentes lugares.
Do oriente, ao buscar integração e totalidade, ainda que nós seres ocidentais
e urbanos acessemos a partir de contextos muito distintos, já que imersos nas
nossas espacialidades e temporalidades ocidentais e urbanas.
Pelo menos, qualquer que seja a maneira pela qual somos levados a
remanejar (ou a espremer para extrair a substância) a noção de performance,
encontraremos sempre um elemento irredutível, a ideia da presença de um
corpo. Recorrer à noção de performance implica então a necessidade de
reintroduzir a consideração do corpo no estudo da obra. Ora, o corpo (que
existe enquanto relação, a cada momento recriado, do eu ao seu ser físico) é
da ordem do indizivelmente pessoal. (ZUMTHOR, 2014, p. 41)
Amarro este nó bem firme. É preciso ref letir sobre o fato de que as histórias
que narramos escolhem um mundo que se deseja criar ou contar sobre um mundo
que já passou. Neste sentido, reafirmo a importância de contar as histórias da
nossa tradição oral, as histórias que são transmitidas corp/oralmente, em tantos
corpopalavras que ficam esquecidos e se perguntar sobre o que cada história
conta. Conta sobre um mundo de opressão que eu não quero mais? Que palavras
devo dizer junto dessa história? Por que essa história me toca? Em que parte do
meu corpo ela me narra?
Assim, é político o ato de ref letir e saber que se está escolhendo um discurso
ao narrar. Faço essa provocação para que se possa estar tramando junto com o
encantamento a intencionalidade. É legítimo então dizer que olhando para esta
afirmação que faço continuarei contando histórias de bichos, de esperteza, de
morte, de rir, mas também me perguntarei pelo modo como se contam as histórias
dos grupos minoritários, o modo como as pessoas negras, as mulheres, o grupo
LGBTQI+ é representado. Rir, sentir e se emocionar são atos políticos, dizem da
inteireza do ser humano. E é também político se perguntar como provoco o riso,
a emoção, os sentimentos das outras pessoas.
Afirmo, assim, um lugar de questionamento, de encontro com a minha
verdade para escolher o meu repertório de histórias. E penso que não pensar
sobre isso ou ainda silenciar estas questões também são atos políticos.
Qual história suporta o fim? Todas. Toda história suporta seu próprio fim,
milhares e milhares de vezes. E, mesmo tendo escolhido uma não-linearidade,
confesso que chegar neste fim me deixa feliz. Vivi uma história, contei para vocês,
inventei um tanto de coisas e fim. E me lembro do sentimento de aconchego
vivido com a última ação da performance Nós de nós até a finalização desta
escrita. Fui convidada pelo Grupo Zumbaiar a ministrar uma oficina para dois
grupos que estavam na Formação de contadoras/es de histórias no ano de 2019.
No convite, ouvi: - Traz aquele trabalho com as linhas, achei tão bonito! Convite
aceito e desafio também, pois seria numa sala fechada e não num espaço aberto,
em trânsito.
As histórias existem para isso. Nos impor também a finitude das coisas,
dos acontecimentos. E há muito encanto nisso. Em nos mostrar o poder de
transformação que há nelas, quando nos contam sobre mundos e culturas
diferentes das nossas, quando nos dizem as ações que repetimos há tempos,
quando nos trazem em segredos arquetípicos os nossos desejos cotidianos.
Encontrei naquele grupo muitas mulheres e um homem, que é um dos
coordenadores. Todas as mulheres me acolheram de maneira visceral. Choramos
e partilhamos histórias profundas. Foi muito feliz. O último nó desta cartografia,
com fios que contam ao chão e a mim sobre parte do que foi vivido.
É momento de celebrar esta doação e a escuta gerada por ela. Os dois anos
de imersão em minha poética mais profunda: ser eu mesma, contar a minha
história e validar isso como conhecimento. (Será possível? Diria minha
avó. Será o impossível?) Sim, será! É. Está. Estão postas as palavras em
seus devidos lugares, as correções em suas gramáticas, as alegrias nos abraços
e as pessoas dentro de mim.
Viver este processo levou muito de mim e das minhas verdades. Me deu
muitas dúvidas e também confiança para seguir. Sigo! Tecendo enredos com
escola, habitando as performações que virão com novas/os educadoras/es,
incentivando que sejam autoras/es de suas próprias performações e sendo mais
generosa ao ler as frases alheias. Sei o tanto de tempo e lágrima e vontade que
GARCIA, Leila. O corpo narrativo só pode ser vivido. In: LACOMBE, Ana
Luísa. (Org.) Teias de experiências: ref lexões sobre a formação de contadores
de histórias. São Paulo: CSMB, 2013.
KLEIN, Étienne. O tempo que passa (?) trad. Cecília Ciscato - São Paulo:
Editora 34, 2019.
LORDE, Audre. Use of the Erotic: The Erotic as Power. In: Sister outsider:
essays andspeeches. New York: The Crossing Press Feminist Series, 1989 p.
53-59. Trad. Tatiana Nascimento dos Santos, 2009, retirada do Zine “Textos
escolhidos de Audre Lorde”. Disponível em: https://apoiamutua.milharal.org/
files/2014/01/AUDRE-LORDE-leitura.pdf. Acesso em: 25/06/18.
Vídeos
SEMINÁRIO Novos Povoamentos (Parte II) – Tarde. Publicado pelo canal TVPUC.