Jefferson Cavalcanti

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O AFRO BRASILIANISMO É UMA CARREIRA?

DO NEGRO TEMA1 AOS NOVOS


MODOS DE REPRESENTAÇÃO

Jefferson Cavalcanti Lima


bk.jeffersoncavalcanti@gmail.com

RESUMO

Durante parte substancial da história do Brasil republicano, membros da intelligentsia nacional


observaram e teorizaram sobre a presença do negro na sociedade brasileira. Dos evolucionistas do
século XIX, perpassando pelos nacionalistas da geração de 1930 e cientistas sociais, recém
amparados por institutos de pesquisa social dos anos de 1950-1960, aos legisladores da
Constituição de 1988, o negro fora visto enquanto agente incapaz de garantir a sua representação e,
para além, a sua integração na sociedade brasileira. Assim, coube ao afro-brasilianista a tarefa de
explicar estes possíveis atavismos sob o mote da mistificação. Deste contexto, emergiu a relação
do afro-brasilista, produtor de discursos, e do negro, ser objetificado pela ciência. No contrassenso
ao contexto apresentado, partimos da hipótese investigativa de que o afro-brasilianismo atualmente
encontra-se em um contexto de crise, seja pela presença de contingentes negros nas universidades,
como também pelas novas discussões em torno da etnicidade, pós-nacionalismo e identidade. O
texto está organizado em três seções. Na primeira, “A longa trajetória do negro tema”,
estipularemos uma breve genealogia dos estudos afro-brasilianistas, apresentando um olhar sobre
este campo de estudos, identificando as bases gnosiológicas e os desdobramentos supra
acadêmicos. Num segundo momento, em “Os limites do afro-brasilianismo”, apresentaremos as
fissuras recentes no campo dos estudos afro-brasilianistas, incitando um diálogo entre as novas
discussões, tanto no âmbito doméstico da política brasileira, quanto nas ciências sociais em sentido
lato. Por fim, na terceira seção, “O paradigma emergente da autorrepresentação”, elucidaremos
algumas novas tendências e perspectivas que se avolumam enquanto crítica dos estudos afro-
brasileiros.

Palavras-chave: Estudos afro-brasileiros. Pensamento Social Brasileiro. Representação.

1 “Negro tema” é um conceito do sociólogo Alberto Guerreiro Ramos. Faz parte do ensaio
Patologia social do branco brasileiro, de 1955.
I A longa trajetória do negro tema
O tema da raça sempre foi ponto nevrálgico no pensamento social brasileiro. Desde
discussões inspiradas pelo positivismo e evolucionismo, onde a antropologia brasileira – nascida
do diálogo com a medicina legal e com a criminologia lombrosiana – e nomes como Raymundo
Nina Rodrigues, Renato Kehl e Roquette Pinto aclimatavam discussões sobre eugenia, atavismos e
degenerescência nos recentes institutos de pesquisa nacionais, a situação do negro no Brasil sempre
fora vista sob o estigma da falta, do primitivismo endêmico e do peso das disposições naturais
sobre a declarada incompletude destes sujeitos2. Mesmo com a geração de 1930 e a narrativa da
morenidade e da democracia racial, onde a comunidade imaginada seria permeada pela interação
multiétnica avessa às formas de segregação recorrentes em sociedades pós-escravistas, o
afrodescendente, sob o aspecto do “problema do negro no Brasil”, sempre ocupou a posição de
objeto temático nas ciências brasileiras3. Das ciências, pois em sentido mais amplo da medicina em
seu trânsito à psicologia e das ciências sociais e humanas, o negro fora visto enquanto tipo racial
com potencial criminógeno, propositor de cultos mediúnicos e inapto ao trabalho, não percebendo
assim grandes rupturas mesmo após o englobamento proporcionado pelo mito da nação. Se nos
pensadores clássicos de 1930, como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, a mestiçagem
fora reinventada e balizada sob uma polaridade positiva, no seu oposto a grande narrativa da
democracia racial encobriu as disputas que emergiam para além das grandes narrativas da
intelligentsia nacional. Neste ponto, a literatura do campo científico brasileiro construiu o seu
tema, o negro: distorcido e produto de mistificação, por consequência incapaz de garantir a sua
representação – ao menos na ciência –, dependendo do outro, o africanista, ou o afro-brasilianista.
Enquanto objeto temático, o negro brasileiro ocupou o espaço do não ser, como preconizado pelo
martinicano Frantz Fanon4.
Nestes dois momentos brevemente expostos e divididos aqui com a finalidade didática mais
do que analítica, enquanto evolucionistas da passagem do século XIX ao XX e nacionalistas de
1930, o espaço de elucubração do negro teve de ser outro que não o científico. Pois a ciência

2 Há na literatura especializada no Brasil uma série de discussões sobre estes autores e as respectivas linhas de
pensamento mencionadas acima. Diante disso, não julgamos adequado o aprofundamento. Como leitura introdutória
sugerimos: SCHWARCZ, L. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil, 1870-1930.
São Paulo, Cia. das Letras, 1993. Interessante neste livro é a organização cronológica, atendo-se até a década de 1930,
período de uma guinada nos estudos afro-brasileiros.
3 Novamente, neste momento temos consciência do legado da geração de 1930 e a sua reverberação pelo pensamento
acadêmico em escala mundial. Ver FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2006 e HOLANDA, S.
Raízes do Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
4 Empresto essa discussão de Frantz Fanon, em específico as suas discussões sobre ontologia do sujeito negro em Pele
negra, máscaras brancas. Neste aspecto, compartilhamos da gnosiologia fanoniana fruto dos diálogos entre o
existencialismo sartreano, a dialética materialista e a psicanálise.
construíra seu objeto de estudos – o negro – e no paradigma dominante – cronologicamente até os
anos de 1950 – a representação deveria ser feita pelo cânone do campo e a exegese do negro
tematizado só seria validada quando da interpretação ou da tradução do seu mediador, o autor, o
intelectual.
Diante do exposto, coube aos afrodescendentes no Brasil permearem as suas formas de
agenciamento por outras matizes, que não a da ciência institucionalizada. Como evidenciado por
Guridy e Hooker, os espaços de enunciação da comunidade negra foram pouco usuais, quase
sempre permeados pela marginalidade no que tange à representação, estipulando um grau de
dificuldade sui generis para a caracterização de determinados sujeitos ou grupos como
representantes da população negra no Brasil5. Dado o nosso enfoque temático, despender uma
análise pormenorizada dos espaços marginais nos afastaria do nosso objetivo principal. Neste
ponto, retomamos as discussões a partir de um terceiro momento.
A partir dos anos de 1950 e a organização do projeto UNESCO no Brasil, as temáticas
étnico-raciais acabaram por receber uma terceira interpretação elaborada a partir do campo 6.
Repare que, novamente, as transformações ocorridas neste período dizem respeito principalmente
ao campo científico. De forma breviária, continuaria o negro enquanto tema a balizar as suposições
em torno do ethos nacional, e o autor a ser o cânone, neste momento formado pela
institucionalização das ciências sociais no Brasil, principalmente em São Paulo. Essa percepção
também é esboçada por Andrews e Fuente:
No Brasil, alguns críticos da democracia racial eram brancos, particularmente em São
Paulo, onde o sociólogo francês Roger Bastide havia encorajado seus estudantes Florestan
Fernandes, Oracy Nogueira, e outros, a estudar as relações raciais brasileiras, e Fernandes
havia treinado seus próprios alunos, Fernando Henrique Cardoso e Octávio Ianni, para
fazer o mesmo. Esses intelectuais brancos gozavam de uma legitimidade muito maior e
receberam muito mais atenção pública e acadêmica do que seus colegas negros. Os negros
que criticavam a democracia racial eram mais propensos a ocupar posições marginais na
vida acadêmica e intelectual, tanto por seu status racial quanto por questionarem um dos
pilares da identidade nacional. Estes foram também mais facilmente descartados como
descontentes e desajustados ruminando questões pessoais. Os críticos brancos, pelo
contrário, atuavam por motivos aparentemente desinteressados; os brasileiros brancos,
anteriormente mencionados, longe de serem social ou profissionalmente marginais,
estavam afiliados à mais prestigiosa instituição de ensino superior do país, a Universidade
de São Paulo.7

Se por um lado, o projeto UNESCO e a institucionalização das ciências sociais no Brasil


garantiu uma crítica endógena ao campo dos estudos afro-brasileiros, no tocante das discussões

5 GURIDY, F.; HOOKER, J. Tendências do pensamento político e social afro-latino-americano. In: ANDREWS, G.;
FUENTE, A. (Org.). Estudos afro-latino-americanos: uma introdução. Buenos Aires: CLACSO, 2018.
6 Sobre o projeto UNESCO e as suas relações com a institucionalização das ciências sociais no Brasil, recomendamos
a leitura de MAIO, M. O projeto UNESCO e o credo racial brasileiro. Revista USP, São Paulo, n. 46, p. 115-128, jun./
ago. 2000.
7 ANDREWS, G.; FUENTE, A. A criação de um campo: estudos afro-latino-americanos. In:______. Estudos afro-
latino-americanos: uma introdução. Buenos Aires: CLACSO, 2018. p. 25.
dentro dos setores da política institucionalizada e nas expressões artísticas em âmbito nacional, a
representação do negro continuou a ser tomada sob o prisma da nação, por consequência, na
retórica da democracia racial. Neste sentido, interpretamos que o tempo da teoria social é diferente
do tempo da nação ou, nos termos de Benedict Anderson, a comunidade imaginada constrói a sua
própria relação imagética através de linguagens polissêmicas como a imprensa, os ícones nacionais
e narrativas oficiais8. No que tange à crítica da democracia racial, em âmbito acadêmico, talvez
possamos vislumbrar uma passagem do culturalismo freyreano, fruto de uma leitura da
antropologia estadunidense aos estudos da modernização, que é muitas vezes inspirado na
sociologia alemã. Das interpretações de Florestan Fernandes num continuum aos seus orientandos,
o tema da democracia racial seria substituído pela oposição, por vezes insistente, da antinomia
modernidade e tradição e a compreensão de que o Brasil e, por consequência, os brasileiros
presenciavam a existência de um modelo contraditório, autocrático e impelido a marginalizar os
inaptos – racializados – durante os processos de acumulação por despossessão9.
Dos anos de 1960 até a segunda metade da década de 1980, o Brasil passou pela
experiência de uma república militar autocrática, onde leituras sobre a situação do negro na
América Latina e até mesmo nos EUA viam-se impelidas de adentrar no campo das discussões
acadêmicas, dificultando a inserção de determinadas discussões no movimento negro no Brasil 10.
Como evidenciado por Guimarães11, diferentemente dos EUA onde a luta pelos direitos civis
garantiu o acesso da população negra ao nível superior, no Brasil, o acesso à universidade fora
demasiadamente tardio e neste sentido, durante o período militar, as possibilidades de ruptura com
a retórica da democracia racial, por consequência do nacionalismo multiétnico, foram incipientes e
marginalizadas. Diante do ufanismo provocado pelo “milagre brasileiro” 12, discussões sobre
etnicidade eram vistas como subversivas e antinacionalistas. Exceções sejam feitas ao
antiacademicismo de Abdias Nascimento, que neste momento exilou-se, Lélia Gonzales e da
militância no movimento negro e ao sistemático pensamento de Alberto Guerreiro Ramos.

8 ANDERSON, B. Comunidades Imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.


9 Fora do eixo paulista, salientamos a relevante participação de Luiz Aguiar da Costa Pinto. As suas contribuições
também giram em torno da antinomia modernidade e tradição, mas tentam estipular uma interpretação mais autoral dos
fatos. Sugerimos para uma introdução do afro-brasilianismo de Costa Pinto as obras: O negro no Rio de Janeiro:
relações de raça numa sociedade em mudança. São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1953. Recôncavo: laboratório de
uma experiência humana. Rio de Janeiro, Centro Latino-Americano de Pesquisas em Ciências Sociais, 1958.
10 Partilhamos da suposição de Lélia Gonzales sobre a impossibilidade de tomarmos o termo “movimento negro”
como um bloco monolítico. Contudo, assim como nos sugere a autora, apesar das idiossincrasias dentro das redes
construídas por afrodescendentes, o termo mostra-se útil para a composição de um conceito, um tipo ideal capaz de
cumprir mais uma categoria sociológica do que propriamente uma caracterização fiel.
11 GUIMARAES, A. S. A. A recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra. Novos estudos, São Paulo, n. 81, p.
99-114, jul. 2008 .
12 “Milagre brasileiro” é um termo comumente utilizado para descrever o crescimento econômico ocorrido no Brasil
entre os anos de 1969-1973. Apesar do ufanismo do momento, este período se caracterizou pela intensificação da
autocracia no país. Em paralelo ao suposto milagre, o país apresentou um rápido processo de concentração de renda.
Ainda neste contexto, fosse pela manutenção do público branco nas universidades, nos
postos políticos institucionalizados ou no protagonismo das formas expressivas, a situação do
negro brasileiro continuaria durante estas décadas a cabo de intérpretes brancos, oriundos dos
estratos médios e de regiões urbanizadas, como São Paulo. Neste contexto, distante dos grandes
temas, como afirma Gonzales e Hasenbalg, a situação do negro viu-se agravada diante do quadro
de modernização induzida13. À frente da entrada do capital internacional, no que os autores citados
denominam como parte da tríplice aliança entre capital internacional, setores militares e burguesia
interna, o negro brasileiro fora afetado tanto no espaço rural com a chegada da revolução verde e
do advento dos aglomerados agroindustriais e a obsolescência da pequena propriedade, como nos
novos espaços urbanos, em específico na região sudeste, onde o fluxo migratório dos contingentes
negros acabaram por produzir uma grande concentração de trabalhadores da massa marginal –
trabalhadores não instruídos para o setor fabril especializado – e por consequência alocados em
áreas como a construção civil e setores de serviços como limpeza e transporte. Da baixa
qualificação técnica num país que se modernizava, o espaço habitado pelos contingentes negros
durante os anos da ditadura civil-militar tornava-se demarcado pelas áreas periféricas das grandes
cidades ou em ambientes rurais, pequenas propriedades, com baixa produtividade e sem a
possibilidade de qualquer acesso aos benefícios do que se convencionou chamar de modernização.
Em síntese, como apresentado nos últimos parágrafos o período da ditadura civil-militar
consolidou para ao negro brasileiro a situação de exclusão no cenário universitário, político-
institucional e das discussões relativas à sua situação macroeconômica e política, reafirmando a
realocação dos espaços de articulação do movimento negro para espaços não convencionais do agir
acadêmico e político, como: bailes, grupos religiosos e associativismo no trabalho não
especializado. É possível encontrarmos nos estudos afro-brasileiros uma extensa literatura sobre as
formas de agenciamento da população negra durante este período, contudo, de modo unívoco, as
análises caminham para a percepção de que o ethos da população negra no Brasil construíra-se de
modo antagônico. Espacialmente segregados, desvalidos dos meios técnicos do capitalismo em sua
forma nacional e impossibilitados de acesso aos processos formadores para o mundo do trabalho e
da intelectualidade universitária ou partidária, a situação do negro era a de reprodução do seu
silenciamento perante aos temas do acesso ao trabalho qualificado, da política institucionalizada e
da academia, deste modo, continuava-se o quadro perverso do negro tematizado na academia,
trabalhador da massa marginal e silenciado pelo contexto de autocracia.
Com a redemocratização e, por consequência, através do texto constitucional de 1988,
abriu-se possibilidades para novas discussões étnico-raciais. A participação do movimento negro

13 GONZALEZ, L.; HASENBALG, C. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982.
nos bastidores da Constituinte, o retorno de ícones do progressismo brasileiro após o exílio e a
instauração de leis antirracistas trouxeram a esperança da formulação de uma nova república,
menos centrada na figura do estrato branco, masculino e de classe média. Sobre o contexto da
Constituinte, setores do movimento negro unificado, em diálogo com movimentos como as
Comunidades Eclesiais de Base e setores mais progressistas da política institucional traçaram em
nível municipal, num primeiro momento, seguido de discussões estaduais e regionais a real
integração do negro na sociedade brasileira 14. Contudo, diferentemente do que sustentam
determinados afro-brasilianistas, as pautas levantadas por tais setores em nenhuma hipótese
enfatizavam o sectarismo negro ou qualquer forma de guetização. Ainda do ponto de vista de
Clóvis Moura, o contexto prévio à Constituinte acenava para o fato de que “a sociedade brasileira
enquanto composta de várias etnias e raças, que devem viver harmonicamente e sem
discriminações”15. Neste sentido, assim como em outros momentos do campo político brasileiro, as
discussões étnico-raciais sempre implicavam num retorno ao escopo da nação e da comunidade
imaginada16. No que tange ao documento constitucional, é interessante pontuarmos que das
suposições presentes no artigo “O negro e a Constituinte” 17 alguns pontos foram absorvidos, como
a garantia à memória através da obrigatoriedade do ensino de história de todos os grupos étnicos
que compuseram o Brasil, além de garantias legais acerca do tema do racismo, tornando-o
inafiançável e imprescritível. A partir da Nova República, termo convencionalmente aplicado para
o período republicano no Brasil, após a promulgação da Constituição Federal de 1988 é possível
vislumbrarmos uma sequência de acontecimentos que levariam a algumas modificações no campo
dos estudos afro-brasileiros.

II Os limites do afro-brasilianismo
Em seu artigo “Afro-Latin America: Five Questions”, George Andrews nos propõe cinco
reflexões acerca do campo de estudos afro-latinos. Destas, gostaríamos de tomar emprestada a
primeira, que neste momento nos parece vital para a proposta deste trabalho: “Que tipo de
estudiosos pesquisam sobre estudos afro-latinos, e por que eles fazem isso? Quais são as suas
motivações intelectuais e pessoais?”18. Apesar da amplitude da questão levantada pelo autor, bem

14 MOURA, C. Negro, Sociedade e Constituinte. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 2, n.2, p. 64-68, 1988.
15 MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
16 As discussões étnico-raciais neste momento giravam em torno do binômio segregação ou assimilação. No campo
das ciências sociais no Brasil, durante muitas décadas tal distinção fora levada a cabo. Um texto introdutório é de
Roberto Damatta, Digressão: A fábula das três raças, ou o problema do racismo à brasileira. In:______.
Relativizando: Uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
17 FURTADO, M. O negro e a Constituinte. Correio Braziliense, Brasília, nº 8610, 2 nov. 1986. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/115587>. Acesso em: 29 fev. 2020.
18 ANDREWS, G. Afro-Latin America: Five Questions. Latin American and Caribbean Ethnic Studies, v. 4, n. 2,
2009. p. 193-194.
como do olhar macro, buscando nas grandes produções literárias e científicas uma genealogia dos
estudos afro-latinos, percebemos na hipótese destacada, retomando-a numa escala doméstica,
potencialidades para a discussão do que consideramos ser um novo liminar nos estudos afro-
brasilianistas. Se na seção anterior, apresentamos uma genealogia do “tema do negro brasileiro”,
onde a representação sempre fora mediada por terceiros, com vistas à consagração acadêmica 19,
numa acepção de Pierre Bourdieu20. Neste momento, traçamos como propósito a discussão acerca
dos limites do negro como tema e por consequência elencamos algumas projeções. Se a questão de
Andrews foi remetida ao olhar retrospectivo, senão historicista, na primeira seção, neste momento
acreditamos que tanto a forma da representação – ciência – quanto o agente produtor de
conhecimento passaram por um processo de transformação, confundindo-se no tocante da
desconstrução da antinomia moderna de cientista e objeto.
Acreditamos que este processo tem como marco a fundação da Nova República, onde,
ainda no texto constitucional, como mencionamos, já existiam expectativas para determinadas
reparações. Há uma anedota interessante extraída de uma matéria do Correio Braziliense, jornal
com grande circulação nacional: em sua edição de 2 de novembro de 1986, a manchete anunciava:
“O negro e a constituinte: A maioria à espera da democracia racial” 21. No corpo da matéria, uma
exposição cronológica sintetizava as dificuldades de acesso ao direito por parte dos afro-
brasileiros, mas também realizava ponderações sobre as propostas do movimento negro e o conflito
com o conservadorismo apresentado pelos notáveis, autores do texto constitucional. Desses
embates, poderíamos destacar as tentativas por parte do movimento negro em institucionalizar a
luta e o acesso à reparação racial, de outro lado, nas estruturas do Estado, a tentativa de
manutenção do que Fischer, Grinberg e Mattos22, denominam como silenciamento racial. Isto é
aqui compreendido como o distanciamento dos contingentes negros em relação ao construto da
burocratização do Estado brasileiro, tal como da ausência de códigos jurídicos racializados, o que
em certa medida acabava por potencializar a falsa compreensão de que o direito positivado estaria
exclusivamente vinculado à norma jurídica e desta forma seria avesso ao racismo institucional ou

19 Clovis Moura em consonância com nossas suposições alerta para o fato de que o tema do negro no Brasil tornou-se
parte de um roteiro acadêmico capaz de fornecer aos agentes do campo benesses de crédito científico, enquanto para a
população afrodescendente o silenciamento aprofundou-se dado a ausência do engajamento de pesquisadores, como
em décadas anteriores. Essa curiosidade transformou-se em grande parte em interesse acadêmico, especialmente no
plano de teses para a obtenção de títulos de professores ou a conquista de cátedras. Deixou de ser visto por muitos
como problema social e passou a ser encarado como tema universitário. Ficou, assim, desvinculado daquelas razões
iniciais que imprimiram aos primeiros trabalhos sobre o negro um ethos interessado, operacional e participante.
20 BOURDIEU, P. Le champ scientifique. Actes de Ia Recherche en Sciences Sociales, n. 2/3, jun. 1976.
21 FURTADO, M. O negro e a Constituinte. Correio Braziliense, Brasília, nº 8610, 2 nov. 1986. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/115587>. Acesso em: 29 fev. 2020.
22 FISCHER, B.; GRINBERG, K.; MATTOS, H. Direito, silêncio e racialização das desigualdades na história afro-
brasileira. In: ANDREWS, G.; FUENTE, A. (Org.). Estudos afro-latino-americanos: uma introdução. Buenos Aires:
CLACSO, 2018.
aos radicalismos identitaristas. Diferentemente do uso do common law, o Brasil utiliza o Direito
Civil, positivado e por consequência tomado sob o prisma do neopositivismo, inspirado na teoria
pura do Direito de Hans Kelsen23. Para o contexto da Constituinte, coube aos responsáveis pelo
texto limitar o protagonismo do movimento negro, com a finalidade de estipular a perpetuação da
retórica da nação, do igualitarismo liberal e do direito enquanto instância apolítica.
Ainda trafegando pela ciência jurídica, seria de vital importância a percepção de que
diferentemente do olhar positivista, marco do Estado brasileiro, crente na regulação da ordem
social, a Constituição Federal de 1988, mesmo limitada em diversos aspectos, trouxe
possibilidades aos juristas envolvidos com a teoria crítica do Direito, fosse por um viés culturalista
ou materialista. A abordagem tridimensional do Direito, tema do jurista Miguel Reale 24, utilizada
com frequência nos textos nacionais, nos apresenta a perspectiva de que por mais que a norma – a
constituição, por exemplo – seja o referencial, não se trata de um construto hermético, mas sim
vulnerável às disposições culturais, ou o que o autor denomina como valor, e também pelo
contexto social. Sob um prisma sociológico, Reale afirma que a forma do direito é mutável, pois
faz parte de um construto societário e que não atua de forma autônoma. Diferentemente da
compreensão neokantiana do direito e a sua crença quase teleológica da ordem, a teoria
tridimensional subverte a interpretação para uma leitura materialista, capaz de compreender o
dinamismo e os anseios de novos atores. Dessa perspectiva materialista, ciente das transformações
advindas para além do direito, poderíamos pontuar historicamente alguns eventos importantes,
como a Marcha Zumbi Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em 1995, organizada pelo
Movimento Negro em lembrança aos 300 anos do assassinato de Zumbi e em busca do acesso da
população negra aos serviços básicos. Esse acontecimento pode ser considerado como um marco
na Nova República por se tratar de uma manifestação por demandas étnicas. Em termos da
antropologia da performance, devemos considerar esse evento não apenas enquanto uma
manifestação, mas sim enquanto construção discursiva provida de eficácia simbólica. Em outros
termos, diferentemente do acúmulo de capital simbólico para alguns ícones, ao se tratar de uma
manifestação coletiva, constituída de anônimos, a sua intencionalidade sociológica pôde afetar a
tríade proposta por Marcel Mauss: ato, ator e sociedade.
Em uma perspectiva supranacional, a III Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada em Durban, África do
Sul, no ano de 2001, potencializou não somente a crítica a situação do negro brasileiro, mas
também aproximou determinados movimentos sociais, envoltos em minorias em relação à política

23 KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991.


24 REALE, M. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994.
institucional25. Diferentemente das discussões domésticas, a entrada das discussões étnico-raciais
brasileiras em espaços transnacionais garantia, ao menos institucionalmente, a discussão e a
perspectiva reparatória sob o mote da luta pelos direitos humanos. Por mais que o próprio texto
constitucional corroborasse com sugestões contidas em documentos internacionais, Durban pode
ser entendida como um importante momento, não apenas de crítica ao passado racista do Estado
brasileiro, mas de igual modo ao modelo de austeridade econômica implantando no Brasil naquele
momento, desproporcionalmente danoso aos grupos minoritários.
Neste contexto de desterritorialização do Estado nacional, coube também aos espaços de
discussão transnacional a reordenação das discussões brasileiras. Em diálogo com o que supõe
Stuart Hall26 sobre a questão da identidade, o Brasil testemunhava um duplo movimento: a
desintegração da narrativa da cultura nacional em detrimento da penetração da cultura liberal
globalizada, na mesma esteira que a subalternização de determinados contingentes provocavam um
retorno ao identitarismo étnico e difuso. Neste sentido, aqui é possível identificarmos o primeiro
passo para o contexto da nova forma de representação do negro brasileiro: pós-nacionalista, no
sentido de que não tendeu a reforçar o pertencimento à comunidade imaginada; liberal ao passo
que a retórica da superação da subalternidade viria sob o estigma do empoderamento individual,
diferentemente de demandas de outrora, arraigadas primeiramente sob uma orientação coletiva ou
classista. Aqui se faz importante reconsiderar que esta mudança levaria ao segundo plano temas
caros ao pensamento social brasileiro, como: a cultura nacional e a luta de classes. Por mais que
esta nova tendência se torne acentuada neste momento, não se trata de uma ruptura com a estrutura
do Estado nacional ou da despolitização do movimento negro. O que queremos afirmar é que a
reflexão elaborada a partir deste momento, apesar de secundarizar as pautas evidenciadas –
nacionalismo e luta de classes –, acabou por realocá-las sobre outros termos. Quanto ao
nacionalismo, em muito nos recobra o que Partha Chatterjee evidenciou no capítulo “Comunidades
imaginadas por quem?”27, em que o escritor indiano evidencia após o colapso soviético os novos
dinamismos nacionais em países, onde o reordenamento nas dimensões nacionais e globais ainda
estaria em trânsito e relido por setores anteriormente secundarizados na trama do construto
imagético da nação. Neste sentido, o diálogo do afro-brasileiro com o Estado seria mais
propositivo do que em outros momentos. Na mesma esteira, se a desindustrialização do Brasil entre
os anos de 1990 e 2000 promoveu o achatamento dos estratos médios urbanos e majoritariamente
25 Durban proporcionou, em certa medida um olhar interseccional sobre a luta antirracista. Recobramos aqui que o
corpo diretivo do evento fora constituído por mulheres, inclusive tendo uma mulher brasileira como relatora, Edna
Roland, naquela altura militante da ONG Fala Preta, posteriormente seguiu carreira acadêmica e assumiu postos
diretivos na Organização das Nações Unidas para a execução das pautas discutidas em Durban.
26 HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2005.
27 CHATTERJEE, P. Comunidade imaginada por quem? In: BALAKRISHNAN, G.; ANDERSON, B. (Org.). Um
mapa da questão nacional. Rio de Janeiro: Contraponto, 2000.
brancos, a releitura da luta de classes a partir deste momento colocará em nível aproximado o
trabalhador branco recém precarizado aos mesmos desafios do trabalhador negro, desde a abolição
inserido em relações de trabalho aquém de qualquer aspiração social democrata. Apesar dessas
transformações, concordamos com o que fora suposto por Sérgio Costa em Dois atlânticos: teoria
social, antirracismo, cosmopolitismo quando é afirmado que neste momento seria incoerente
buscar um devir político aos indivíduos negros, pois dado o caráter difuso destes agentes e a busca
por novas formas de elaboração diante de um contexto onde corpo, cultura e política se
rearticulam, não necessariamente de forma sincrônica, imaginar um protagonismo negro
homogêneo seria construir um novo retrato mistificado 28. Neste ponto, reiteramos o que Florestan
Fernandes argumentou em O significado do Protesto Negro29 acerca das dificuldades do
pensamento social brasileiro em compreender e tolerar a iniciativa dos contingentes negros fora de
uma lógica coletivista e racializada. Noutros termos, o que Florestan Fernandes evidencia é a
dificuldade de lidar com o indivíduo negro para além do estigma da raça, como se numa
construção distorcida de classe. De forma inaudita, aqui reside a relevante crítica aos estudos afro-
brasileiros, pois passa a reconhecer o sujeito negro para além das amarras do pertencimento ao
coletivo pré-nacional, por consequência abrindo espaços para a compreensão do sujeito
individualizado, mesmo que tardiamente e em processo de reconhecimento perante o outro. Se as
transformações apontadas por Hall30 acerca do descentramento do sujeito (branco) ocorreram ainda
no período Moderno, o descentramento do negro brasileiro apresentou-se demasiadamente tardio.
Deste modo, na dialética do senhor e do escravo erigida pelo pensamento social brasileiro, ao que
parece, as fissuras da representação apontam para processos de individuação.

III O paradigma emergente da autorrepresentação


Se neste momento evidencia-se no Brasil um novo paradigma acerca dos estudos étnico-
raciais ou até mesmo na sua negação enquanto nova proposta epistemológica, se faz relevante
imaginarmos que tais rupturas não advieram de forma imaterial, mas sim enquanto processo
intelectivo prático e em diálogo com outras transformações materiais pelas quais o contexto
histórico também experienciava. Desta forma, consideramos como muito significativa as eleições
presidenciais de 2002 e a escolha de Luiz Inácio Lula da Silva pelo Partido dos Trabalhadores
(PT). No que se refere ao PT, tratava-se de um partido que desde a sua fundação já estipulara
diálogos com as necessidades reais dos afro-brasileiros, fosse pelas setoriais – espaços dentro do
partido para a atuação em determinados segmentos – ou pela Secretaria Nacional de Movimentos

28 COSTA, S. Dois atlânticos: teoria social, antirracismo, cosmopolitismo. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
29 FERNANDES, F. O significado do protesto negro. São Paulo: Cortez, 1989.
30 HALL, S. Identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de janeiro: DP&A, 2005. p. 23-47.
Populares. Este elo emerge ainda em 1980, período onde o protagonismo negro na política
partidária via-se interditado31. Como apontam Alicianne Oliveira e Alexandre Barbalho em “O
Movimento Negro no poder? O PT, o Governo Lula e a SEPPIR”32, apesar do diálogo do PT com o
movimento negro, as relações entre as setoriais e o núcleo duro do partido sempre se viram
mediadas de críticas e de acusações de que o tema racial teria sido tratado de forma secundária,
senão instrumental dentro da luta política. Essas discussões oitentistas se intensificariam durante os
anos finais de 1990, principalmente durante o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso
(1998-2001) e o aprofundamento das políticas de austeridade neoliberais mais marcantes para
trabalhadores da massa marginal, estes majoritariamente negros. Neste período, surge a Secretaria
Nacional de Combate ao Racismo, setor intrapartidário, iniciando assim uma série de medidas a
fim de aproximar os quadros do movimento negro filiados ao partido para a formulação de
candidaturas. Noutra esfera, o partido decidiu enviar representantes para a já mencionada
Conferência de Durban33.
Deste contexto, apresentado aqui de forma breve, é plausível imaginarmos que após a
vitória do Partido dos Trabalhadores no pleito de 2002, esta política de superação ao racismo seria
institucionalizada em nível federal, o que de fato aconteceu. A temática de superação do racismo
transcendeu do grau de discussão intrapartidária ao patamar de política pública federal, tendo como
primeiro grande marco a construção da SEPPIR (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial), cujo mote seria: “formular, coordenar e articular políticas e programas para a promoção da
igualdade e a proteção dos direitos dos grupos raciais e étnicos, com ênfase na população negra”.
Ainda na política institucional formulada pelo PT, teríamos mais alguns marcos, como: em 2009 a
divulgação do decreto 6.872, denominado de Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Posteriormente aprofundado em 2010 com o Sistema Nacional de Igualdade Racial, responsável
pela formulação de uma rede de apoio federal para propostas nos âmbitos municipal, estadual
contando com a formulação de conselhos e comitês, estes providos de autonomia para a elaboração
e execução de políticas de superação da pobreza e inclusão de grupos historicamente
marginalizados. Ainda, como acréscimo, surgem talvez as mais significativas medidas para o nosso

31 Nesse contexto dos anos de 1980, ainda período da República Militar Autocrática, ocorriam restrições legais ao
PCB (Partido Comunista Brasileiro) e ao PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), posteriormente refundado como PDT
(Partido Democrático Trabalhista), contando inclusive com a participação de Abdias Nascimento.
32 BARBALHO, A. A; OLIVEIRA, A. O Movimento Negro no poder? O PT, o Governo Lula e a SEPPIR. O
público e o privado, n. 23, jan./jun. 2014.
33 III Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Intolerâncias Correlatas.
objeto de estudo – o campo dos estudos afro-brasileiros –, nos referimos especificamente a Lei n°
10.639/200334. Num segundo momento também a Lei nº 12.711/201235.
As duas leis em questão proporcionaram uma transformação demasiadamente relevante
para o campo dos estudos afro-brasileiros. No que diz respeito à Lei 10.639/2003, após a sua
efetivação ocorreu de forma quase que imediata uma extensa movimentação em torno de concursos
para cargos nas universidades públicas a fim de suprir demandas relativas aos pesquisadores
especializados em estudos africanos e afro-brasileiros, levando inclusive, num segundo momento, a
um crescimento acelerado nos programas de pós-graduação. Na mesma esteira, editais para
publicações e cursos de formação de docentes da educação básica foram articulados. Em sentido
metafórico, o governo brasileiro naquele momento tinha descoberto a África, mas não apenas, os
descendentes africanos no Brasil36. Aqui reside uma ressalva: a expansão institucionalizada dos
estudos afro-brasileiros trouxe ao campo, novamente, agentes em busca da consagração acadêmica.
Afinal, por se tratar de um espaço em construção, as formas de gratificação e acúmulo de capital
científico aparentavam ser mais encurtadas se comparadas aos outros círculos de consagração. No
tocante dessas discussões em muito nos recorda o que fora suposto por Edward Said, em específico
na obra Orientalismo37, em que adverte que o “orientalismo é uma carreira” capaz de construir a
figura do cânone consagrado, de igual modo, a institucionalização dos estudos afro-brasileiros
enquanto política de Estado acabou por proporcionar o mesmo embate: a tentativa de consagração
do intelectual no trato aos sentidos do africanismo ou afro-brasilianismo.
No entanto, venturosamente graças ao legado da outra lei mencionada – 12.711/2012 – os
caminhos para a consagração dos afro-brasilianistas viram-se questionados por uma circunstância
nova baseada na presença de negros e pardos nas salas de aula da universidade. Esta modificação
poderia ser elucidada, tomando como margem o seguinte exemplo: seria como se o antropólogo ao
retornar da pesquisa de campo precisasse conferenciar acerca da sua pesquisa aos seus

34 A lei 10.639 de 2003 alterou significativamente o que já havia sido previsto na LDB de 1996, estipulando a
obrigatoriedade de que os temas afro-brasileiros e africanos se tornassem conteúdo formativo nos variados níveis de
educação. Para maiores detalhes: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm>.
35 Sancionada em agosto de 2012, garante a reserva de 50% das matrículas por curso e turno nas 59 universidades
federais e 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos oriundos integralmente do ensino médio
público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos. Os demais 50% das vagas permanecem para ampla
concorrência. Em seu artigo 3º, alterado após a saída do governo petista, traz o seguinte acréscimo: “Art. 3º Em cada
instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por
autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao
total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na
população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”. Para maiores detalhes: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12711.htm>.
36 Há uma perspectiva crítica acerca dessas aproximações, inclusive acerca da nova diplomacia brasileira construída
durante este período. É relevante a contribuição de MACAGNO, L. Três raças e uma nação? A propósito de África no
Brasil e Brasil na África. Realis, Recife, v. 1, n. 2, p. 94-112, jul./dez. 2011 .
37 SAID, E. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
interlocutores nativos. Desse modo, se noutro momento, a fala do especialista, afro-brasilianista,
ressoava para uma plateia de estratos médios brancos, ou para os seus pares, cientistas, após a
adoção de ações afirmativas, o quórum para o qual o afro-brasilianista se exprime, o leva ao
embate, pois a representação do objeto – o negro brasileiro – se vê numa posição diferente: outrora
objetificado pelo especialista, no presente acadêmico e produtor de conhecimento sobre si e sobre
os seus semelhantes. Trata-se de um paradigma emergente, na acepção de Boaventura de Sousa
Santos, capaz de provocar um cisma nos modelos econômicos de reprodução do campo científico,
tornando-o muito mais fluido e perpassado por demandas éticas e também políticas
proporcionando um sentido extra-acadêmico, neste ponto, aproximado ao conceito de arenas trans
epistêmicas de Karin Knorr-Cetina38. Dado esse processo de diluição do campo dos estudos afro-
brasileiros, abre-se o ineditismo de que a representação seja fomentada por outros agentes, mesmo
que envoltos em outros campos, algo aparentemente nocivo aos especialistas que negociam formas
de perpetuação ou de uma subversão positiva do campo, por outro lado, sui generis é a
oportunidade que eclode para os próprios contingentes negros ao rememorarem as próprias formas
de representação, como se tomados pelo o que Ashis Nandy denominou como tradicionalismo
crítico, aqui de forma breve entendido como um olhar retrospectivo acerca das construções sociais
providas de intencionalidade sociológica e uma interculturalidade crítica, seja através da subversão
do espaço acadêmico ou na aproximação com outras formas expressivas, durante décadas tomadas
enquanto secundárias. No que tange ao primeiro exemplo, o da subversão do campo, neste
momento assistimos à reivindicações pelo local de fala, mas também pela retomada de intelectuais
negros do passado silenciados pela figura do cânone, noutro campo, o das formas expressivas,
testemunhamos ao reconhecimento de modos tradicionais de viver, cuidar, criar e racionalizar
sobre a ontologia do negro brasileiro. De fato, trata-se de novas possibilidades num caminho
inconcluso.
Partindo do exposto, se de fato neste momento as conjunturas que levaram a transmutação
do campo dos estudos afro-brasileiros encontram-se abertas, é relevante acenarmos para a
impossibilidade de que tenhamos algum desfecho intricado, contudo ao mensurarmos este cenário
em trânsito, esperamos contribuir para pesquisas vindouras acerca do tema da representação dos
afro-brasileiros.

38 KNORR-CETINA, K. D. Scientific communities or transepistemic arenas of research? A critique of quase-


economic models of science. Social Studies of Science, n. 12, p. 101-130, 1982.
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