Dalton Trevisan Contos PDF
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Na volta da lua-de-mel, Maria em lágrimas confessou ŕ măe que ainda era virgem.
Lembrava dona Sinhara como o noivo se apresentou pálido na igreja, por demais nervoso? Justificou que, f
amoroso, muito se afligia com a măe doente. No ônibus, a măo suada, e esquecido da noiva, olhava a paisa
Primeira noite o varăo fracassou vergonhosamente. Foi alegada inexperięncia. A estranha palidez na igreja
violenta crise nervosa — a măe tinha saúde perfeita. Maria iludiu-se que era desastre passageiro. Ai dela, a
năo foi: noite após noite Joăo repetiu o fiasco. Arrenegava-se de trapo humano, năo tomava banho nem faz
barba. A pobre moça buscou recuperá-lo para os deveres de estado. Uma noite, envergando a capa pijama,
de óculo escuro, a noite inteira entregue ŕs práticas do baixo espiritismo.
— O que me conta, minha filha! Me nego a acreditar. Joăo, um rapaz tăo simples, tăo dado... Dona Sinhara
evocava o noivo delicado e de fina educaçăo.
Dia seguinte ao casamento um tipo esquisito, que vivia aflito. Uma feita e outra feita, submeteu a moça a p
de intimidade, as quais năo foram além do ensaio.
Mais que se enfeitasse para agradá-lo, indiferente aos encantos de Maria. De vez em longe, sem resultado,
perseguia o impossível ato. Depois a acusava de única culpada. Suspeitando-a de traiçăo com o primeiro no
agredida a bofetăo e pontapé:
Proibida de pintar a olho, tingir o cabelo, usar saia curta e calça comprida, sem que ele chegasse a conhecer
noivinha.
Pretendia arrastá-la ao suicídio a fim de esconder o seu desastre. Em provocaçăo soprava-lhe no rosto a fum
do cigarro.
Com a brasa queria marcar-lhe a bochecha para que deixasse de ser vaidosa.
E, quarenta dias de casada, vinte em viagem e vinte em casa, ali estava Maria, a mais inteira das donzelas.
— Ter uma conversa com esse sujeitinho — bradou furiosa dona Sinhara.
Năo era tudo: comprou coleçăo de fotos pornográficas, obrigada a admirá-las uma por uma. Nem assim pre
se aos caprichos do noivo — eram quadros imundos e pecaminosos. Suspendendo pelo cabelo ou afogando
garganta, ele a constrangia ŕs suas loucas fantasias. Saciado, era jogada ao chăo, dali erguida aos bofetőes.
Na volta da lua-de-mel, Joăo em lágrimas confessou ŕ măe que a noiva năo era pura. Desde a primeira noite
mais carinhoso que fosse, acusava-o de trair o seu ideal. Sá havia casado para se livrar dos pais e merecer o
título de esposa.
Ao exigir satisfaçőes, ouviu dela que tinha caspa na sobrancelha. Censurava-o por deixá-la fria e manifesta
repulsa física. Se insistia em tomá-la nos braços, atacada dos nervos, atirava-se ao chăo em convulsőes. Par
reanimá-la, sacudia-a gentilmente, batia de leve no rosto.
Năo era a ele que amava e sim ao primeiro noivo, de quem se separou por exigęncia dos pais. Tręs dias ant
casamento, estivera com a măe na casa de Joaquim, propusera com ele fugir, mas o outro respondeu que er
tarde. Além do mais, segunda dona Sinhara, todos os convites já distribuídos.
Năo queria confessar, abrigada revelava toda a verdade — somente nojo sentia por ele, os seus dentes eram
amarelos:
Năo saía do espelho, olho pintado, de saía curta ou calça comprida, o cabelo retinto de loiro:
Reclamando de sua presença no leito conjugal, implicava com o assobio do nariz torto de Joăo:
Por ter comido salada de cebola — lembrava-se a măezinha de como gosta de bife sangrento? — forçado a
dormir no sofá.
— O que me conta, meu filho! Me nego a acreditar. Maria, moça tăo querida, tăo dada... Educada no colégi
freiras, toda cuidados com a futura sogra: um beijinho aqui, um abracinho ali.
— É para ver, măe! Usa roupa de baixo que a senhora năo imagina...
Se năo a deixasse em paz, Maria acabava seus dias: engolindo vidro moído, escrevia com batom no espelho
era o culpado. Tal intriga fizera para os sogros que, ao visitá-la, conversavam apenas com a filha, nem
cumprimentavam o pobre rapaz, como se ausente estivesse. Uma tarde surgiu-lhe o sogro porta adentro,
bradando que recolhera a moça descabelada. Queria saber o que lhe fizera para que ficasse tăo chorosa. Se
verdade que lhe marcava a coxa, com brasa de cigarro, se lhe surrupiava o dinheiro da bolsa, se ao sair de c
apagava todas as luzes. Sem esperar a resposta, berrou que tinha mais duas filhas para casar e bateu a porta
— Ter uma conversa com essa sujeitinha — acudiu furiosa dona Mirazinha, com a măo no peito, sofria de
palpitaçăo.
O incrível resultado de um ato falho do noivo, segundo Maria, tanto bastou para a concepçăo.
— Para a senhora ver, măe, quem ela é. Após a confissăo do filho, Maria foi visitada pela sogra:
Após a confissăo da filha, Joăo recebeu a visita de dona Sinhara, que se instalou na companhia dos noivos.
moça năo deu a menor atençăo a Joăo assim năo fosse o rei da família. Ele passava o dia no trabalho e, de v
queria certa liberdade: lá estava a maldita sogra. Negando-se a moça a ir para o quarto, ficavam bocejando
sala diante da televisăo, até que dona Sinhara os mandava dormir. Ele năo exercia poder sobre a noiva: nem
sangrento nem cebola na mesa.
Bem desconfiou que ela era amante da própria tia Zezé. Revoltou-se contra a atitude da noiva que, instigad
măe, se negava a cumprir o dever conjugal, arrependida de ter casado tăo novinha quando podia aproveitar
vida.
Sempre na casa do pai, Maria confidenciava que Joăo dormia a manhă inteira. Ŕ tarde, em vez de ir para o
emprego, escondido na esquina, espiava se a pobre moça năo recolhia o ex-noivo Joaquim. Mostrava uma f
em branco, exigia lhe revelasse o que estava escrito, eram palavras em tinta invisível — bom pretexto para
tentar esganá-la a toda custo.
Existe um motivo para o noivo sentir ciúme, pensou dona Sinhara, é năo ser o rei da casa. Bradou para Deu
mundo que Joăo năo era homem bastante para sua filha.
O moço confidenciou para a măe que, na tarde anterior, entrara a noiva batendo a porta (ó família que tanto
a porta) e gritando bem alto:
O pobre rapaz discutiu com o sogro que era detalhe para ser esclarecido.
— Com essa idade, Joăo, năo sente vergonha de uma esposa virgem?
O velho indignado exigiu a filha de volta. Respondeu Joăo que Maria estava muito bem com ele. O sogro b
que se retirasse imediatamente, e a partir daquele dia, proibido de pisar nos seus domínios.
Dona Mirazinha perguntou a uma amiga:
Cada um se queixa do outro para a respectiva família. Ora, a família de Maria está ao lado dela. E a família
Joăo ao lado dele. Casados de tręs para quatro meses e Maria, segundo ela, sempre virgem. Como pode ser,
contesta Joăo, se está grávida?
Texto extraído do livro "A Guerra Conjugal", Editora Record – Rio de Janeiro, 1979, pág. 13.
— Durma, paizinho.
— O paizinho morreu.
Último aviso
João era casado com Maria e moravam em barraco de duas peças no Juvevê; a rua de
lama, ele não queria que a dona molhasse os pezinhos. O defeito de João ser bom demais –
dava tudo o que ela pedia.
Garçom do Buraco do Tatu, trabalhava até horas mortas; uma noite voltou mais cedo,
as duas filhas sozinhas, a menor com febre. João trouxe água com açúcar e, assim que ela
dormiu, foi espreitar na esquina. Maria chegava abraçada a outro homem, despedia-se com
beijo na boca. Investiu furioso, correu o amante. De joelhos a mulher anunciou o fruto do
ventre.
João era bom, era manso e Maria era única, para ele não havia outra: mudaram-se do
Juvevê para o Boqueirão, onde nasceu a terceira filha. Chamavam-se novas Marias: da Luz,
das Dores, da Graça. Com tantas Marias confiava João que a dona se emendasse. Não foi que
a encontrou de quimono atirando beijos para um sargento da polícia?
Triste a volta para casa, surpreendendo o sargento sem túnica pulando a janela. Na
ilusão de que Maria se arrependesse, com as economias e as gorjetas de mil noites em pé! (ai!
Pobres pernas azuis de varizes) construiu bangalô no Prado Velho.
Maria, pecadora e alma, corpo e vida, não se redimia dos erros. João virava as costas,
ela deixava as filhas com a vizinha e saía pintada de ouro. Amante do motorista do ônibus
Prado Velho – Praça Tiradentes, subia gloriosamente pela porta da frente, sem pagar
passagem.
Uma noite a casa foi apedrejada – a mulher do motorista se desforrava nas vidraças.
Maria bateu nas filhas para que gritassem. Diante do escândalo, João vendeu com prejuízo o
bangalô, mudou-se do Prado Velho para Capanema.
Maria caiu de amores por um malandro de bigode fino e sapato marrom de biqueira
branca. Não se incomodava de sair, recebia o fulano mesmo em casa. Era o célebre Candinho,
das rodas alegres da noite, já deslumbrava as crianças com bala de mel e mágica de baralho.
João achou cueca de seda estendida no varal – o precioso monograma um C bem
grande. Rasgou-a em tiras e chamou a cunhada para que acudisse a irmã. Ai dele, outra
perdida. Candinho surgiu com parceiro, que namorava a cunhada feiosa. Maria preparava
salgadinhos com batida gelada de maracujá. Fechadas no quarto, as meninas escutavam o riso
debochado da mãe.
João não tinha sorte: voltou mais cedo, o amásio lá estava. Açulado pela dona,
Candinho não fugiu, os dois a discutir. O marido agarrou a faca dentada de pão. Maria de
braços abertos cobriu o amante. João reparou no volume de barriga, deixou cair a faca. Com
dor no coração, dormiu na sala até o nascimento da quarta filha – outra Maria para desviar a
mãe do mau caminho. Ela saiu da maternidade, abalaram-se do Capanema para o alto das
Mercês.
Mulher não tem juízo, Maria de novo com o tal Candinho. Domingo, João em casa, ela
inventava de comprar xarope para uma das filhas. O pobre exigia que levasse a mais velha. Lá
se iam os três – a dona, o amante e a filha – comer franguinhos no espeto. A menina, culpada
diante do pai, só dormia de luz acesa, a escuridão cheia de diabinhos.
João suportou as maiores vergonhas em público e na presença das filhas. Quem disse
que a fulana se corrigia? Magro que era,ficou esquelético, no duodeno uma chaga viva.
Recolheu a sogra, mudou-se das Mercês para a Água-Verde.Outra vez desfraldadas no
arame uma camisa e uma cueca de inicial com florinha. Em desespero João expulsou a sogra.
Exibiu a roupa à filha mais velha que se abraçou no pai: ela e as irmãs sozinhas até duas da
manhã, enquanto a mãe passeava na rua. Apresentava-se com um senhor perfumado, que
oferecia bala de mel.
Antes que João se mudasse da Água-Verde para o Bigorrilho, Maria fugiu com o
amante e deixou um recado preso em goma no espelho da penteadeira:
Sendo o senhor meu marido um manso sem-vergonha, logo venho buscar as meninas que são
do meu sangue, você bem sabe que do teu não é, não passa de um estranho para elas e caso
não fique bonzinho eu revelarei o seu verdadeiro pai, não só a elas como a todos do Buraco
do Tatu, digo isso para deixar de ser nojento correndo atrás da minha saia, só desprezo o
que eu sinto,para imo senhor não é nada.
Dias mais tarde, Maria telefonou que fosse buscá-la, doente e com fome, abandona
pelo Candinho na pensão de mulheres. João era manso e Maria era única:não havia outra para
ele. Foi encontrá-la na pensão, feridas feias em todo o corpo.Graças aos cuidados de João
sarou depressa. Anuncio de que estava boa – no varal tremulou cueca de monograma
diferente.
Sem conta são os bairros de Curitiba :João mudou-se para o Bacacheri. De lá para o
Batel(nasceu mais uma filha, Maria Aparecida). Agora feliz numa casinha de madeira no
Cristo-Rei.