06 A Deivison FANON PDF
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06 A Deivison FANON PDF
FRANTZ FANON
UM REVOILUCIONÁRIO,
PARTICULARMENTE NEGRO
1• edição
@
a,~c..,;,,,
EIJITORIAL
São Paulo
2018
Há mais de cinco décadas de seu .
falecimento, Frantz Fanon, publica-
do em diversos países e analisado
: por destacados estudiosos do
_ pensamento crítico contemporâ-
neo, é, sem dúvidas, um dos
intelectuais negros mais importan-
tes do século XX, que atuou como
psiquiatra, filósofo, cientista social
e militante anti-colonial.
Sua obra influenciou movimentos
políticos e teóricos em todo o
_ mundo e suas reflexões seguem
reverberando em nossos dias como
referência obrigatória em alguns
campos de estudo. Por isso, em
Frantz Fanon - Um revolucionário,
particularmente negro, Deivison
Mendes Faustino apresenta a traje-
. tória política e teórica de Fanon
desde a sua infância na Martinica
até a sua participação nos movi-
mentos de libertação na África.
· Trata-se de uma rigorosa investiga-
ção, em que a obra do intelectual
martinicano é revisitada com vistas
à sua biografia, de forma a oferecer
ao leitor brasileiro um panorama
mais amplo a respeito do contexto
e dos dilemas enfrentados por
Fanon no momento de cada escrito
seu.
O presente ensaio aqui apresenta-
do é, nesse sentido, corolário de
uma séria atividade intelectual e se
constitui como uma fundamental
. contribuição para o debate sobre a
presença do pensamento negro e
, sua resistência política e intelectual
na sociedade contemporânea. Que
'seja este, portanto, um livro para ler
.'e refletir.
Bibliografia: p. 131-141.
ISBN: 978-85-68660-35-5 (broch.).
CDD301.0924
·-~-- ----
peu para afirmar um novo humanismo, voltado à desracialização da
de Leconte e Damey, digamos que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio- diagnós-
tico" (FANON, 2008: 28). Embora o termo não seja mais mencionado, sugere-se aqui a sua
presença nos escritos posteriores enquanto perspectiva teórica.
16 I FRANTZFANONuM
REvowc10NAR10. l'ARTJcuw,RMF.NTl::.NEGRO
Para reconstruir a trajetória pessoal e política de Fanon, bem
como para oferecer maiores subsídios para o entendimento dos con-
textos sobre os quais escreveu, foram utilizadas aqui as biografias
e notas biográficas oferecidas por Pardo (1971), Geismar (1972),
Gendizer (1974), Macey (2000), Faustino (2013, 2015), Ortiz
(2014) e Gordon (2015). E, ao longo das reflexões, o leitor familia-
rizado com a literatura contemporânea a respeito de Fanon notará
a influência de autores como Sekyi-Otu (1996), Gibson (1999),
Henry (2000), Gordon (1995; 2015) e Silvério (1999; 2013) no
enquadramento aqui oferecido.
Esse sucinto ensaio que ora apresento têm o objetivo de esti-
mular a curiosidade e pesquisa a respeito da vida e obra de Frantz
Fanon e fortalecer para o debate sobre a contribuição do pensa-
mento de autore(a)s negro(a)s para o entendimento da sociedade
contemporânea.
Nas Antilhas, o jovem negro que, na escola, não para de repetir "nos-
sos pais, os gauleses", identifica-se com o explorador, com o civiliza-
dor, com o branco que traz a verdade aos selvagens, uma verdade roda
branca. Há identificação, isto é, o jovem negro adota subjetivamente
uma atitude de branco. Ele recarrega o herói, que é branco, com toda
a sua agressividade - a qual, nessa idade, assemelha-se estreitamente a
uma dádiva: uma dádiva carregada de sadismo. Uma criança de oito
anos que oferece alguma coisa, mesmo a um adulto, não saberia tolerar
uma recusa. Pouco a pouco se forma e se cristaliza no jovem antilhano
-
Não é por acaso que o primeiro capítulo d,;.__Pel~
negra, más-
caras brancas tratará justamente dos temas referentes à linguagem.
No texto, Fanon argumenta que "o negro antilhano se;i~~~'c~mals
branco, isto é, se aproximará mais do homem verdadeiro, na medi-
da em que adotar a língua francesà' (FANON, 2008: 34).
O assunto linguístico foi útil a Fanon para revelar que nas colô-
nias criou-se uma escala ideológica de valores, classificando as pes-
6. Em seus escritos, Fanon utiliza tanto a expressãocrioulo (créole)quanto patois. Entretanto,
é válido informar que a primeira - composta por uma junção e (re)significaçãode diversas
línguas africanas e europeias, especialmente o francês - refere-se, particularmente, à língua
falada pelos afrodescendentes caribenhos. Já o patuá é um termo mais genérico utilizado em
toda a França para designar qualquer corruptela da norma culta francesa.
Sobre essa diferença, consultar Sahai http://www.potomitan.info/atelier/creole.php.
Deivison MendesFaustinoJ 21
soas em relação à sua proximidade ou distância com aquilo que se
considera branco/ europeu/ ocidental.
Como observou um dos principais biógrafos de Fanon:
7. O conceito de racialização é pensado aqui com base na definição de Silvério (2013: 25)
quando afirma que: "Em referência às condições objetivas que fazem possível a emergência
destes significantes, a definição de classificações raciais - cuja dinâmica pode ser pensada
como um processo de racialização - traduz, no plano ideológico, algumas das tensões econô-
micas, políticas e culturais de dada sociedade. Neste sentido, podemos perceber uma dupla
dinâmica, onde as condições objetivas dão lugar a manifestações ideológicas que, mediante a
afirmação dos princípios objetivos no plano simbólico, reproduzem, modelam e cristalizam
as oposições estruturais no plano discursivo".
10. Aimé Césaire foi professor, escritor e político reconhecido desde a juventude. Nasceu
em Basse-Pointe, em 1913, na Ilha de Martinica. Foi a Paris em 1931 onde, com Senghor
e Damas, fundou a revista L'Étudiant Noir (1935), em que pela primeira vez, num artigo,
usou a palavra négritude, mais tarde utilizada para definir os rumos do movimento. Retor-
nou à Martinica com sua esposa Suzanne Césaire, também escritora, e filho em 1939 para
fundarem, juntamente com o escritor marxista e surrealista René Ménil a revista Tropiques.
Enquanto produziam a revista, os três escritores aturam também como docentes no Lycée
Victor Scha,lcher, uma espécie de ensino médio, onde estudaram nomes como Frantz Fanon
e Edouard Glissant e próprio Césaire, anteriormente. Fanon foi aluno dos três durante esse
período de intensa produção literária.
Oc:ivisonMendes Fauscino1 25
A RUPTURA NARCÍSICA
E UM FILHO BASTARDO
Eu era professor. Dei aulas de literatura para uma classe primária ... e
tive alguns discípulos. Isso era demasiadamente importante. Eu treinei
muitos jovens - eles são adultos hoje - e alguns se tornaram amigos,
outros inimigos, não que isso tenha importância. Todos eles receberam
meus ensinamentos e, com certeza, a minha influência marcou toda
uma geração. (Macey, 2000)
11. Estabelecimentos de ensino destinados aos três úlcimos anos do ensino secundário na
França, que pode ser comparado ao Ensino Médio brasileiro.
12. A respeito das influências dos pais na personalidade de Fanon, Irene Gendzier (1973)
destaca a sua origem étnico-racial. A autora informa que Felix C~s_j_mir Fanon tinha origem
i~na~ :i[ro-mar_ti~ig_u,e::~se
enquanto Eléanore ~édélice_FanC>~_erafilha_de um _n,lacjona-
entre o seu pai branco, de origem ãfsãciãriã
me_n_c_c,_ilegítimo (região francesa que faz fronteira
cóm a Alemanha) e uma rnulliernig#ifl0.ini!l'!ense. Gendzier levanta a hipótese de que
o empenho quase obsessivo de Eléanore pela ascensão social dos filhos gerou uma pressão
problemática sobre a personalidade de Fanon. No mesmo caminho, Albert Memmi (1974),
Stuart Hall ( 1996) e Henry Gates Jr ( 1991) buscarão explicar as posições teóricas de Fanon
sobre a miscigenação, ou mesmo sobre uma pretensa passionalidade de seus escritos, como
resquícios não elaborados de uma ansiedade edípica originada no ambiente familiar do autor.
Lewis Gordon refuta essas posições, considerando-as reducionistas ao não conseguir "lidar
com a complexidade de falhas e triunfos humanos, bem como os contextos políticos e histó-
ricos da vida do sujeito" (2015: 8).
DeivisonMendesFaustino1 29
ção, não se esforçaram em encontrar a reprodução desses complexos
nos povos por eles estudados, seria fácil demonstrar que, nas Antilhas
Francesas, 97% das famílias são incapazes de produzir uma neurose
edipiana. Incapacidade da qual nos felicitamos enormemente 13 (FA-
NON, 2008: 134-5 - Grifos nossos).
13. A intrigante felicidade de Fanon será recebida com entusiasmo pelos futuros formulado-
res da esquizoanálise, ver a seção 11.5.6. Família e campo social de O Anti-Édipo: Capitalismo
e esquizofrenia 1 (DELEUZE E GATARRI, 2010)
14. Ver a esse respeito as críticas de Mercer (1996), Yong (1996), Bhabha (1996) e as répli-
cas de Sharpley-Whiting (1997), Bird-Pollan (2015) e Gordon (2015).
15. O emprego da palavra "negrurà' aqui tem o objetivo de explicitar a conotação pejorativa
e estigmatizada atribuída aos negros, e mesmo à palavra "négritude" antes do movimento
político francófono que lhe atribuiu sentido positivo, no século XX. Ao contrário do que
se convencionou afirmar, Aimé Césaire não foi o primeiro a utilizar o termo Négritude,mas
sim o psiquiatra e abolicionista estadunidense Dr. Benjamim Rush (1746-1813), no início
do século XIX. Para ele, que também é considerado o pai da psiquiatria estadunidense, a
negritude seria uma doença curável que provoca desordens psíquicas diversas, uma doença da
mente (Diseasesof the MintÍ'). Dado esse caráter patológico da cor negra, que para ele poderia
ser comparada à lepra, os relacionamentos interraciais estariam condenados a produzir proles
infectadas, sendo, portanto, frontalmente desaconselhados. Após analisar o caso de um escra-
vo com vitiligo, deduz e conclui que a doença (a negritude) teria cura: o embranquecimento
(RUSH, 1812).
32 I FRANTZFANONUM REVOLUCIONÁRIO.PART[CUU.RMENTENEGRO
se apropriaram dos melhores departamentos. No verão de 1940, qual-
quer marinheiro tinha no bolso uma centena de vezes mais dinheiro
do que um habitante da Martinica e os soldados davam ordens aos
civis. Os recrutas eram rudes em seu comportamento; os habitantes da
Martinica, no entanto, estavam acostumados a levar uma vida pacífi-
ca. O que o dinheiro não poderia alcançar era conseguido pela força
bruta. Os cafés foram imediatamente segregados: de um lado, as mu-
lheres (martiniquenses) e os clientes brancos; do outro lado, os nativos
negros. Os marinheiros esperavam que as lojas os atendessem antes dos
nativos (GEISMAR, 1972: 33).
--
lavra dos marinheiros sempre superava a dos nativos. Foi um racismo
totalitário. (Op. cit.).
DeiviscmMendesFaustino1 33
res", os pedidos de reconciliação à identificação negra proposta por
Césaire foram finalmente compreendidos e aceitos 17:
17. Em artigo publicado em 1955, na Revista Esprit, Fanon explica que nas Antilhas, até
1939, "não irrompia qualquer reivindicação espontânea de negritude, ou seja, nenhum anti-
lhano se reivindicava ou se declarava negro uma vez que se consideravam um grupo privilegia-
do dentro da hierarquia racial francesá'. Esse sentimento era tamanho que o retorno de Aimé
Césaire à ilha - um homem culto e internacionalmente respeitado - causou grandes espantos,
como relata Fanon: "Pela primeira vez se via um professor do Liceu, logo, aparentemente
digno, dizer simplesmente à sociedade antilhana 'que é belo e bom ser negro'. Era certamente
um escândalo[ ...]. O que poderia ser mais grotesco que um homem instruído e diplomado
que não deixou, pois, de perceber [...] que 'era uma infelicidade ser negro', gritando que a
sua pele é bela e que 'o grande buraco trou) ne ro' é a fonte da verdade? Nem os mulatos,
nem os negros compreen eram esse delírio. Os mu atos, porque tinham escapado à noite,
os negros porque aspiravam sair dela. Dois séculos de verdade branca tiravam a razão desse
homem. Só poderia se tratar de um louco, que não poderia ter razão" (FANON, 1964:31).
Mas a presença dos soldados franceses na ilha parece ter "devolvido" a razão a Césaire.
34 1 FRANTZFANONUM REVOLUCIONARIO.l'ARTICUI.J\RME.NTENEGRO
havia uma opção, considerada politicamente correta, pelo primeiro
termo (noir), quando se objetivava designar a cor das pessoas "ne-
gras", em detrimento do segundo (négre),que poderia soar ofensivo.
Entretanto, esses significados passaram a ser alvo de disputa com
o advento do movimento de Negritude - ou N(gritude, na grafia
original francesa-, que começou a louvar este "estigmà', atribuindo
à condição de mais sagrada das "marcas" que alguém poderia portar.
O ponto destacado por Fanon é que, antes da "invasão" dos ma-
rinheiros "franceses" na ilha, não se observava alguma adesão a esse
louvor. Apesar da predominância da cor noir entre os habitantes,
havia um repúdio comum a tudo aquilo que se identificava como
negre. Mas este cenário mudara radicalmente e agora o martinicano
se via obrigado a "descobrir" não apenas a sua cor (noir) - o que por
si só já seria suficiente para cindir a imagem que alimentava sobre
si - mas, sobretudo, descobrir a sua diferença como amaldiçoada
(negre) e, ao mesmo tempo, como possibilidade de fazer frente à
maldição (nlgritude). Daí a sua afirmação em outro lugar de que "é
o branco (blanc) que cria o negro (negre),mas é o negro (nt>gre)
que
cria a negritude (nfgritude)" (FANON, 1968: 29).
Nas tropas que acampavam em Guercif ele observou que existiam no-
tórias barreiras entre os franceses da metrópole e os colonos do norte
da África. No entanto, ambos os grupos desprezavam os muçulmanos
que escavam no exército e que, por sua vez, náo valorizavam os negros.
Os soldados da campanha antilhana, onde Fanon estava, mantinham-
-se à distância das tropas africanas, particularmente senegalesas. Era
possível pensar que as linhas de cor eram o fator mais decisivo da se-
paraçáo, mas a siruaçáo náo era ráo simples. O africano recebia rações
A Universidade
-
tos Econômicose Filosóficos,de K. Marx, como expressão de uma filosofia do amor.
Essa foi uma época bastante intensa para Fanon, mas também
um período em que o envolvimento com a política chegou a atra-
palhar os seus estudos formais. Repetidas vezes o jovem estudante
deixava as aulas ou as tarefas acadêmicas em segundo plano para
participar de debates teóricos intermináveis com amigos nos cafés
ao redor da Universidade, ou, em outros momentos, para visitar as
fábricas ocupadas pelos trabalhadores de esquerda em Lyon.
Além disso, o jovem estudante participava de uma organização
da União dos Estudantes dos Territórios Ultramarinos da França
e fundou com outros colegas o periódico Tam-Tam. Seu primeiro
ensaio publicado (em 195 l) portava um título que poderia ser tra-
duzido como_'~_ cp:1_ei~anegra:a experiência vivida do negro" (La
plainte du Noir: L'expériencevécuedu Noir). Nele já se observa o tom
científico-poético que seria futuramente utilizado em Pele negra,
máscarasbrancas, mas, sobretudo, a preocupação em cruzar saberes
psicológicos, psiquiátricos, psicanalíticos, filosóficos e sociológicos.
É nessa época que Fanon, muito impressionado com as novelas
de Jean-Paul Sartre, começa a se interessar pelo teatro. O autor che-
gou a escrever algumas peças sobre a situação do negro na França,
20. Os textos citados foram publicados recentemente no livro: Frantz Fanon, Écrits sur
l'aliénation et la liberté. Textes réunis, incroduits et présencés par Jean Khalfa et Robert Young.
La Découverre, 2015.
52 1 FRANTZFANONUM REVOLUCIONÁRIO.PARTICULARMENTENEGRO
possessão (Altérations mentales, modi.fications caractérielles, troubles
psychiques et déficit intellectuel dans l'hérédo-dégénération spino-céré-
belleuse: à propos d'un cas de maladie de Friedreich avec délire de
possession) e a defende com sucesso diante de uma banca composta
por cinco professores.
Durante a sabatina, Fanon se recusou a aceitar as críticas dos
comentadores e as refutou com notável erudição e farta informação
estatística sobre a síndrome nervosa que constituía o seu objeto de
estudo. Ainda que o trabalho objetivasse responder aos anseios po-
sitivistas da Academia, Fanon não deixou de se aproximar de outros
estudiosos que apontavam para a necessidade de observar os pacien-
tes em seus contextos socioculturais, como argumenta Patrick Ehlen
ao comentar esse texto:
24. Publicado no Brasil pela Editora Fator (1983) e recentemente, com nova tradução, pela
EDUFBA, sob o título: Pele negra,máscarasbrancas(2008).
25. Na abertura da conclusão do livro, lê-se a seguinte citação: "A revolução social não pode ob-
ter sua poesia do passado, mas apenas do futuro. Não pode começar consigo própria sem antes
se despojar de todas as superstições relativas ao passado. As revoluções precedentes apelavam
para a memória da história mundial, a fim de se drogar com o próprio conteúdo. Para realizar o
próprio conteúdo, as revoluções do século XIX devem deixar os mortos enterrarem os mortos.
Naquelas, a expressão ultrapassa o conteúdo, hoje, o conteúdo ultrapassa a expressão" (K. Marx,
Ledix-huitbrummaire, apudFANON, 2008: 185).
27. O exemplo oferecido por Mannoni neste caso é o desejo afetivo-sexual dos colonizados
em relação aos colonizadores, representados, segundo ele, pela figura da personagem Caliban,
de Shakespeare, em A Tempestade.
i ( ... ) ainda uma vez a ordem natural das coisas, uma vez que, pelo con-
trário, são as condições econômicas e sociais das lutas de classes que
explicam e determinam as condições reais nas quais se exprime a sexu-
alidade individual, e que o conteúdo dos sonhos de um ser humano
depende também, no fim das contas, das condições gerais da civiliza-
ção na qual ele vive (NAVILLE, Op. cit.).
O touro negro furioso não é o phallus. Os dois homens negros não são
os dois pais - um representando o pai real, outro o ancestral. Eis aqui
a que uma análise aprofundada poderia levar, com base nas próprias
conclusões de Mannoni no parágrafo intitulado "O culto dos mortos
e a família": o fuzil do soldado senegalês não é um pênis, na verdade é
um fuzil Lebel 1916. O touro negro e o bandido não são lolos, "almas
substanciais", mas uma irrupção, durante o sono, de imaginações reais
(Op. cit., p. 100).
Deivi:iOnMendes Faustinol 65
Após rejeitar um convite para voltar à Martinica, aceitou o pos-
to temporário como chef de service de um hospital psiquiátrico em
Pontorson, posto que ocuparia até o momento da mudança para
Biida, na Argélia (GEISMAR, 1972). Tendo esse período em mente,
Geismar se pergunta por que Fanon abandonaria o seu confortável
posto para ir trabalhar em Biida. Dito de outra forma, "Exatamente
quando Fanon se converteu em um revolucionário?" (idem, p. 66).
Teriam sido políticas ou profissionais as motivações que o fizeram
trocar este local pela Argélia? A resposta do biógrafo é sugestiva:
O argelino não tem córtex, ou, para ser mais preciso, a dominação,
como entre os vertebrados inferiores, é diencefálica. As funções cor-
ticais existem, são muito frágeis, praticamente não-integradas na di-
nâmica da existência. Não há, pois, nem mistério nem paradoxo. A
reticência do colonizador em confiar uma responsabilidade ao indíge-
na não é racismo ou paternalismo, mas simplesmente uma apreciação
científica das possibilidades biologicamente limitadas do colonizado
[...] É a transcrição, na ordem do comportamento, de um certo arranjo
do sistema nervoso. É uma reação neurologicamente compreensível,
DeivisonMendesFaustinof 69
Certo dia, Monsieur Kriff percebe a ausência de um número con-
siderável de pacientes na unidade de Fanon. Sem titubear, telefona
para o prefeito da cidade denunciando a fuga de pacientes e a suposta
negligência de Fanon que, àquela altura, também não se encontra-
va no hospital. Algumas horas depois, Fanon aparece com todos os
pacientes outrora ausentes vibrando de alegria, porque o Doutor os
havia levado para uma partida de futebol e eles ganharam o jogo
(GEISMAR, Op. cit., p. 74).
Vários enfermeiros que trabalharam com Fanon nessa época de-
finem sua personalidade como beligerante, mas outros enfatizam a
sua autoconfiança e seu espírito científico. O jovem médico também
estabeleceu importantes parcerias no hospital, como é o caso daquela
com o doutor Lacaton e mesmo com alguns internos europeus que
viam com bons olhos as reformas que ele trazia. Suas observações no
hospital serão tomadas como referências para muitos de seus estudos
psiquiátricos, que incluem investigações sobre a disfunção sexual, os
sonhos e a relação entre cultura, subjetividade e sofrimento psíquico
(MACEY, 2000).
Entretanto, foi o fracasso de Fanon em integrar pacientes argeli-
nos e europeus que o levou às conclusões mais exitosas:
Fanon, junco com Azoulay e Lacaron [... ], realizou uma reunião para
analisar o fracasso - não um fracasso roca!, porque, em geral, os euro-
peus tinham respondido satisfatoriamente. Fanon entendeu claramente
que sua atitude igualitária em relação aos pacientes não foi correta. O
que ele havia feiro, na verdade, fora impor soluções europeias para os
problemas muçulmanos. Ele tinha tratado os argelinos como se fossem
franceses, implementando a política colonial francesa de "assimilação".
"Mas a assimilação - escreveu Fanon em seu caso - não implica qualquer
reciprocidade. Há sempre uma culcura que tende a desaparecer em favor
de outra". Fanon e seus colegas tinham feito as suas reformas com o
pressuposto de que não havia necessidade de entender o argelino dentro
de seu próprio contexto cultural. Cuidar dele foi possível no contexto da
A Argélia
31. A Conferência de Bandung foi uma reunião de 23 países asiáticos e seis africanos em
Bandung entre 18 e 24 de Abril de 1955. O Terceiro Mundo, o colonialismo, o imperialismo
e as independências nacionais foram os temas que se destacaram durante a conferência, in-
fluenciando importantes pensadores do pós-guerra, entre os quais Frantz Fanon.
32. Aquele que conheceu no futebol e acompanhou durante a resistência francesa contra o
nazismo.
Deivison Mendes Faustino 1 79
negócios. Ele, que havia se tornado advogado, fora contratado para
defender alguns militantes acusados de terrorismo. Àquela altura,
Manville era um dos poucos advogados franceses dispostos a desem-
penhar esse tipo de atividade.
A luta de libertação se colocou, na Argélia, como um fato social
incontornável a qualquer habitante. A partir de 1955, com o curso
da luta, tornava-se impossível não tomar partido no conflito. Fa-
non, que já havia sido soldado pelas forças francesas, mas também
militante de esquerda na Martinica 33 e intelectual e crítico compro-
metido com a transformação social, não hesitou em se posicionar a
favor dos rebeldes argelinos.
O primeiro contato com os ativistas nacionalistas, em especial
da Frente de Libertação Nacional da Argélia (FLN), veio em 1955,
a partir de suas relações com os integrantes de uma Associação de
solidariedade aos argelinos chamadaAmitiés algériennes. Inicialmen-
te, os membros da Associação o procuraram solicitando apoio ma-
terial às famílias dos militantes que estavam presos. Num segundo
momento, foi solicitado que tratasse dos combatentes que estavam
sofrendo distúrbios psíquicos em decorrência das torturas impos-
tas pelo Estado francês, pedido prontamente atendido (CHERKI,
2010).
Com o tempo, Fanon passou a tratar clandestinamente - física
e psicologicamente - os militantes nacionalistas no interior do hos-
pital que gerenciava. Para tal, contava com vista grossa e até mesmo
colaboração de alguns de seus colegas de trabalho. Para além disso,
passou a oferecer treinos de primeiros socorros aos guerrilheiros e
a contrabandear medicamentos como morfina, penicilina e outros
materiais que poderiam ser úteis no front.
33. Lembremos que o autor foi cabo eleitoral na campanha de Aimé Césaire pelo Partido
Comunista.
80 j FRANTZFANQNUM REVOLUCIONÁRIO,l'ARTICUL,\RMENTENEGRO
A princípio sua relação com a FLN não foi publicamente ex-
plicitada, mas foi ficando evidente à medida que suas críticas ao
colonialismo se tornavam conhecidas. Desde 20 de agosto de 1956,
quando foi realizada a Conferência de Soummam - em que a FLN
foi reorganizada sob a influência de Abane Ramdane -, a organiza-
ção passou a contar secretamente com o apoio de algumas pessoas
públicas que passariam a utilizar o próprio nome para propagandear
as posições defendidas pela organização. Entre essas pessoas estava
Fanon (MACEY, Op. cit., p. 276). Ele só assumiria publicamente
sua relação com a FLN após deixar a Argélia 34 •
34. É pertinente mencionar que, mesmo nos anos seguintes à expulsão, Fanon seguiu escre-
vendo artigos para a FLN, mas nunca os assinava. Seu posicionamento abertamente favorável
à lura de libertação virá em 1959 com Sociologie dúne révolution: I:An V de la révolution
algérienne.
I O I CONGRESSO DE
ES RITORES E ARTISTAS NEGROS
Deivison MendesFaustino1 83
um misto desses dois fatores. O que se sabe é que ele já mantinha
contatos com Diop desde 1953 (MACEY, Op. cit. 276).
No Congresso, que contou com um público de mais ou menos
600 pessoas, Fanon pôde encontrar renomados intelectuais da Áfri-
ca e da Diáspora africana de língua francesa e inglesa, tais como Le-
opold S. Senghor, J. A. Davis, Richard Wright, Alioune Diop, Jean
Price-Mars, Aimé Cesaire, Édouard Glissant, Louis T. Achille, entre
outros. A situação do autor martinicano no Congresso não era mui-
to confortável, pois a essa altura ele já era publicamente reconhecido
como um crítico do culturalismo e da Negritude. Além disso, ele
participou do Congresso na qualidade de delegado da Martinica,
ao lado de Césaire, Glissant e Achille, embora fosse sabido que há
tempos não retornava à sua terra natal.
O Congresso foi declarado oficialmente aberto a partir de uma
breve fala do Dr. Jean Price-Mars, reitor da Universidade do Haiti.
O pensador haitiano enfatizou que não existe povo sem cultura,
nem cultura sem ancestralidade e, ainda, que não existe libertação
cultural sem uma política de libertação. Em seguida, afirmou que
o objetivo da conferência era "indicar, por meio de demonstrações
solenes, as vontades e responsabilidades do mundo negro, aceitar
totalmente o seu papel para ocupar o seu lugar no grande curso da
Histórià' (PrésenceAfricaine, 1956 apud MACEY, Op. cit., p. 278).
Após a fala do intelectual haitiano, foi lida uma série de men-
sagens de solidariedade e, entre elas, o seguinte telegrama, enviado
pelo intelectual estadunidense W.E.B. Du Bois:
37. Este novo período compreendia, em sua base material, algumas mudanças sociológicas
que chamaram a atenção de Fanon. O imperialismo, outrora observado por Lenin (LENIN,
2003), reorganizava-se substancialmente a fim de atender às novas necessidades de acumula-
ção capitalista convertendo-se agora naquilo que IÇ"'ame_Nkrumah denollli~u~colo-
_fli_alisn10
(NKRUMAH, 1967). Neste momento, dado o presente estágio de desenvolvimento
das forças produtivas e, sobretudo, a consolidação de elices locais vassalas, a superexploração
de mão de obra barata e o acesso irrestrito a matérias-primas não necessita mais, exclusiva-
mente, da ocupação militar direta desses territórios pelas potências coloniais. Bastava que o
conjunto de representações e signos preexistentes entre o povo colonizado (sua cultura) se
adequasse ou fosse substituído - não por convicção, mas por imposição de canhões e sabres -
por outro mais favorável às necessidades de acumulação capitalista nas colônias.
DcivisonMendesFaustino1 89
"eles são assim", traduzem esta objetivação levada ao máximo. Assim,
conheço os gestos, os pensamentos, que definem estes homens (FA-
NON, 1980: 38-9).
38. A Cabília é uma região montanhosa do norte da Argélia. O seu nome provém do árabe
al-rpbã'il. Faz parte da cordilheira do Adas e é banhada pelo mar Mediterrâneo.
Aqui, mais uma vez, Geismar se pergunta porque Fanon não foi
preso depois de uma carta tão ousada. A essa altura suas posições
anticoloniais já se faziam públicas. Aliás, quase todos os artigos que
ele publicou até aquele momento eram críticas às consequência psí-
quicas da colonização. Além disso, o isolamento de Fanon diante da
comunidade francesa e as constantes suspeitas em torno do hospital
que ele presidia seriam motivos suficientes para que ele tivesse o
mesmo destino de seu amigo branco, o doutor Lacaton.
Mas Fanon, argumenta o biógrafo, além de ser martiniquenho,
havia se tornado um pesquisador internacionalmente conhecido e
isso poderia causar algum constrangimento à administração colo-
nial francesa na Argélia. Nesse caso, portanto, argumenta o biógra-
fo, seria mais conveniente expulsar o psiquiatra rebelde e deixar para
a França a tarefa de cuidar do problema (GEISMAR, 1972: 102).
Ao receber a carta de expulsão, Fanon e Josie empacotaram ra-
pidamente alguns livros e roupas, ajeitaram o pequeno Oliver, filho
do casal, e rumaram para a casa da família de Josie, em Lyon, onde
se encontraram com distintos intelectuais como Francis Jaenson 39 ,
Claude Lanzmann, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Seu ir-
mão Joby e o amigo Marcel Manville queriam que ele ficasse por lá,
mas a sua resposta foi: "A França tem Sartre [... ] Camus e Merleau-
-Ponty. Eles não precisam de mim aqui. Quem precisa de mim é
39. Intelectual e ativista francês de esquerda, responsável pela publicação de Pele negra,más-
carasbrancas.
41. Uma tradução possível do árabe argelino para o português seria "guerreiro santo" ou
"guerre!!.º de fé". O rom religioso do nome escolhido para o jornal busciva dialogar com
o imaginário islâmico da maioria da população argelina, mas a facção política da GPRA à
qual Fanon estava relacionado tinha como objetivo, nessa época, uma revolução social de
cunho secular, ao contrário do que ocorrerá na Argélia após a independência. Os artigos
escritos por Fanon para o jornal foram, posteriormente, reunidos a outros escritos por
Josie Fanon, sua esposa, e publicados no livro Pour la révolution afticaine - écrits poli-
riques, pela François Ma5pero, em 1964. Há uma versão traduzida para o português de
Portugal por Isabel Pascoal: Em defesada RevoluçãoAfricana, da Livraria Sá da Costa, de
l969.
DeivisonMendesFaustino1 97
Lewis Gordon conta que esse diálogo não foi fácil, uma vez que
os conflitos raciais históricos envolvendo a antiga colonização árabe
na região se colocaram como grande desafio:
Ainda assim, pode-se afirmar que Fanon foi bastante hábil para
lidar com esses dilemas e sua atuação contribuiu ativamente para
a construção de novos laços. Paralelamente a essa atividade, conti-
nuou seus trabalhos em um hospital psiquiátrico na Tunísia.
Em 1958, por uma questão de segurança, obtém junto à embai-
xada da Tunísia o passaporte de número 01878, sob o pseudônimo
de Omar Ibrahim Fanon. Com ele, pôde transitar em suas tarefas
internacionais. Uma delas foi a participação no All-African People's
Conference,em Acra, no mesmo ano - atividade que permitiu a
Fanon visitar pela primeira vez um país da África Subsaariana -, em
que ele foi parte da construção de uma articulação transnacional
contra o colonialismo, a Legião Africana. Ainda nesse ano, reencon-
trou secretamente, em Lisboa, alguns membros do MPLA de Ango-
la e depois encontrou, em Roma, militantes da GPRA que estavam
fazendo articulações com o Partido Comunista Italiano.
º - ----
nacional - é a luta de libertação nacional.
restante do ano foi bastante agitado e os acontecimentos da
Argélia revolucionária, além da continuidade sistemática de suas
observações junto ao centro psiquiátrico que dirigia em Túnis, ren-
deram preciosas informações. Fanon chegou a planejar, junto ao
governo tunisiano, a criação de um novo centro de saúde mental
43. A coletânea disponibiliza o texto de resolução dos Congressos Pan-africanisras e algumas
das conferências que permearam as suas reflexões. O excerto referido pode ser encontrado nas
páginas 177-186 da edição brasileira de 1979 (Ed. Civilização Brasileira) e nas páginas 246-
259 da edição de 2010 (Ed. UFJF).
44. Como, aliás, já argumentava Hegel (! 999) na famosa Alegoriado Senhor e do Escravo,o
escravo é aquele que abriu mão da liberdade para preservar a vida e, por isso, torna-se objeto
subjugado aos desejos de outro,
I
Deivison Mendes Faustino I 09
e representante do GPRA no país. Pouco antes de encontrar Fa-
non no Aeroporto, o carro que seria utilizado para o seu transporte
explode misteriosamente matando uma criança italiana e ferindo
alguns transeuntes. A criança em questão, chamada Rolando Royal,
estava jogando bola próximo ao local em que o carro estava estacio-
nado e ao chutar acidentalmente a bola para baixo do carro tentou
retirá-la acionando acidentalmente um poderoso explosivo plástico,
possivelmente destinado à Fanon (MACEY, 2000:390).
Na confusão, Bulharúf teve que explicar à polícia o seu itine-
rário e intenções de levar um tal de lbrahim Omar Fanon - nome
que constava em seu passaporte falso com bandeira da Líbia - ao
hospital. No dia seguinte, o fato fora publicado nos jornais de gran-
de circulação, especulando as ligações do caso com a tentativa de
lideranças da PLN e informando, inclusive, o andar do hospital que
Fanon havia sido internado.
Ao ler o jornal pela manhã, Fanon solicitou preventivamente ao
diretor do hospital que o transferisse de quarto. No mesmo dia, dois
homens armados invadiram o antigo quarto de Fanon à sua procu-
ra, mas não o encontraram, como revelou à Simone de Beauvoir em
seu retorno à Roma, em 1961:
Fanon disse que, enquanto ele falava, havia começado a pensar nos
assassinatos, torturas e sofrimentos da guerra em que participou. Ele
tinha começado a se sentir incapaz de transmitir para aqueles que o
rodeavam a extensão dos sacrifícios do povo argelino. Nem acreditava
ser necessário: a causa da GPRA deveria despertar automaticamente
o apoio de todas as pessoas que conheciam o domínio colonial e, na
verdade, de todos os seres racionais. Ele não conseguiu continuar fa-
lando por causa.do dilacerante sentimento que tinha experimentado.
E, finalmente, ele tinha comunicado esses sentimentos para o público,
mais por irrupção emocional do que pelo conteúdo de seu discurso.
(GEISMAR, 1974: 148).
45. Conhecida no Brasil como "A internacional comunista" a referida composição fora criada
por Pottier- anarquista- na ocasião da Comuna de París, em 1971. Em sua primeira estrofe
se pode ler: Debout! les damnés de la terre!(Levantem-se! Miseráveis da terra!)...
ser encontrados entre aqueles que realmente não tinham nada a per-
der, "a não ser os seus grilhões". Por isso, aposta no lumpemprole-
tariado e nos camponeses como força política capaz de se levantar
contra o jugo colonial.
O livro trata, entre outros assuntos, dos conflitos implícitos do
colonialismo e da luta anticolonial. Alerta que a violência é parte
fundante da sociedade colonial, estando presente em todas as suas
expressões materiais e simbólicas. Constata ainda que, em decor-
Essa burguesia que se afasta cada vez mais do povo em geral nem con-
segue arrancar do Ocidente concessões espetaculares: investimentos
interessantes para a economia do país, instalações de certas indústrias.
Em contrapartida, as fábricas de montagem se multiplicam, consa-
grando assim o tipo neocolonialista no qual se debate a economia
nacional. Assim, não se deve dizer que a burguesia nacional retarda
a evolução do país, que lhe faz perder tempo ou que pode conduzir
a nação para caminhos sem saída. Efetivamente, a fase burguesa na
história dos países subdesenvolvidos é uma fase inútil. Quando essa
casta for suprimida, devorada por suas próprias contradições, nós per-
ceberemos que nada aconteceu depois da independência, que é preciso
retomar tudo, partir outra vez do zero. A reconversão não será operada
no nível das estruturas instaladas pela burguesia durante o seu reino,
pois essa casta não fez outra coisa senão tomar, sem mudança, a heran-
ça da economia, de pensamento e das instituições coloniais (FANON,
2010: 204).
DeivisonMendesFaustinoI I 19
haviam se recusado a prefaciar um livro seu (Sociologie dúne révolu-
tion: L:AnV de la révolution algérienne) e que Senghor nem mesmo
respondera sua carta quando se ofereceu para trabalhar no Senegal
(Op. cit., 2015).
Mas a sua passagem por importantes espaços internacionais do
movimento da Negritude poderiam lhe oferecer outras opções "me-
nos europeias". Ainda assim, ele escolhe Sartre. Seria para ter a le-
gitimidade de um branco famoso? Seria pura afinidade teórica? Ou
seria a posição fanoniana de crença numa sociedade multirracial?
Lewis Gordon lembra que Sartre foi duramente criticado no
quinto capítulo de Pele negra, máscaras brancas, quando Fanon
apontou os limites da dialética proposta em "Orfeu Negro" 46 , onde
o existencialista francês afirma que a Negritude é apenas um mo-
mento da dialética marxista. Para Gordon, a crítica de Fanon aler-
tou Sartre acerca dos perigos do "raciocínio dialético fechado", que
impedia que a sua formulação teórica fosse efetivamente dialética
diante da realidade concreta posta pelo colonialismo. Sensível à crí-
tica, Sartre teria mudado a sua posição em Crítica da razão dialética
e, com isso, conquistado o respeito de Fanon (GORDON, Op. cit.,
p. 106-7).
Mas esse fato, segundo Gordon, ainda não teria sido suficiente
para justificar a escolha. Para ele, Sartre teria sido convidado, prin-
cipalmente, pela crença de Fanon de que a emancipação humana
implicaria inclusive a superação das fronteiras raciais e, nessa dire-
ção, a parceria com europeus/brancos/franceses que se colocassem
nitidamente contra o colonialismo se configurava como uma tarefa
importante ( Op. cit.).
O fato é que tanto Fanon quanto Sartre e Beauvoir estavam em-
polgados com o encontro. O relato de Claude Lanzmann, militante
46. OrphéeNoir (Orfeu Negro) é o título de um texto escrito por Sartre em 1948 como in-
trodução ao livro Anthologie de la nouvellepoésie negreet malgache,de Léopold Sedar Sengor,
um dos principais mentores do movimento da Negritude. O texto está disponível em Sartre
(1968).
47. A relação dos EUA com os movimentos de libertação nacional na África e na Ásia sempre
foi bastante complexa. De sua parte, havia um conjunto de interesses geoestratégicos que
passavam tanto pelo apoio a algumas luras independentistas, permitindo assim a liberação
dos mercados locais ao capital internacional e, especialmente, ao seu Investimento Externo
Direto (as famosas multinacionais) quanto a sabotagem - passando por assassinato de lide-
ranças, patrocínio de golpes de estado etc - a esses mesmos processos, uma vez que eles se
aproximassem demasiadamente do comunismo.
O que eu queria dizer a você, Roger, é que a morte está sempre co-
nosco e que o importante não é saber como evitá-la, mas sim a certeza
de que fazemos o nosso melhor pelas ideias em que acreditamos. A
única coisa que me choca, deitado aqui nessa cama e sentindo a força
que deixa o meu corpo, não é estar morrendo, mas estar morrendo de
leucemia aguda em Washington, D.C., quando eu poderia ter morrido
há três meses enfrentando o inimigo no campo de baralha, momento
em que eu sabia que eu tinha essa doença. Nós não somos nada nessa
terra se não o fizermos para servir, em primeiro lugar e acima de tudo,
a uma causa, a causa do povo, a causa da liberdade e da justiça. Eu que-
ro que você saiba que, mesmo quando os médicos já tinham perdido
roda a esperança, eu ainda estava pensando, em uma névoa concedida,
mas pensando, no entanto, no povo argelino, nas pessoas do Terceiro
Mundo e, se eu consegui segurar, foi por causa deles. (GORDON,
2015: 114).
-
ele nomeia como Fanon Studies.
É nesse mesmo sentido que Nigel Gibson (2011) e Wallerstain
(2009) chamam a atenção, em primeiro lugar, para a continuidade
da violência colonial em nossos dias, potencializada pelas transfor-
mações do processo produtivo - incluindo a desestabilização e a
criação de novas fronteiras úteis às atuais necessidades de acumula-
ção capitalista e à exportação das contradições sociais para a perife-
ria do capitalismo - e, sobretudo, pelas particularidades geográficas
da luta de classes, representada pela articulação entre racismo, di-
visão internacional do trabalho e problemas climáticos e urbanos.
Ainda neste bloco de autores, é válido mencionar o trabalho
de Sekyi-Otu e de Ja':~- Gordon, formuladora da pergunta acima
mencionada. Para ambos, a atualidade espaço-temporal de Fanon
estaria justamente em sua capacidade de articular filosoficamente as
categorias "particular" e "universal" das identidades humanas, per-
mitindo-nos equacionar alguns problemas para o qual ele já alertava
em sua época, mas que seguem em nossos dias ainda mais distante
de respostas.
Para Sekyi-Otu (1996, 2003), o "novo humanismo" de Fanon
apontaria para um oxímoro "particularidade universal" da agência
48. Termo utilizado pelo autor para designar o conjunto de eventos políticos ocorridos na
África e no Oriente Médio em 2010. O adjetivo pátrio "African" para aquilo que aqui no
Brasil ficou conhecido como "Primavera Árabe" não é gratuito, uma vez que a maioria dos
protestos, iniciados na Tunísia e depois Egito, explodiu nos países situados na região norte do
continente africano.
49. Ver nesse sentido o clássico Orientalismo(1979), de Edward Said, em que as reflexões de
Fanon foram fundamentais para pensar a relação entre "ocidente" e "oriente".
50. A opção aqui pelo uso do termo original "Daesh" ao invés de "Estado Islâmico", como é
frequentemente utilizado pela imprensa ocidental, busca localizar politicamente a organiza-
ção em questão, desvinculando, até onde é possível, a religião mulçumana da arregimentação
política-ideológica que lhe é própria. Tanto a Arábia Saudita quanto o Irá e o Paquistão são
estados islâmicos - ou seja, regido por leis religiosas ligadas ao alcorão -, mas os interesses
geopolíticos, bem como a posição quanto ao Daesh são bastante distintas.
51. O neoliberalismo progressista se desenvolveu nos EUA durante as últimas três décadas
e foi ratificado pelo triunfo de Bill Clinton, em 1992. Clinton foi o cabeça dos "Novos
Democratas", o equivalente americano do "Novo Trabalhismo" de Tony Blair. Em vez da
coalizáo do New Deal entre trabalhadores industriais sindicalizados, afro-americanos e
classes médias urbanas, Clinton forjou uma nova aliança de empreendedores, suburbanos,
novos movimentos sociais e jovens: orgulhosamente proclamando sua moderna e progres-
sista boa parte, amante da diversidade, multiculturalismo e direitos das mulheres. Mesmo
quando o governo Clinton abraçou essas ideias progressistas, cortejou Wall Street. Passan-
do o comando da economia para o Goldman Sachs, desregulamentou o sistema bancário e
negociou acordos de livre comércio que aceleraram a desindustrialização.
BHABHA, H. "Day by Day ... wich Franrz Fanon". ln: Alan Read
(ed.). TheJact of blackness: Franrz Fanon and visual represenracion.
Seaccle: Bay Press, 1996, pp. 186-205.
132 1 FRA.NTZ
FANONUM REVOLUCIONÁRIO. PARTICULARMENTE NEGRO
___ . Escuch,1,blanco!.Barcelona, Nova Terra, 1970.
___ . 7he wretched of the earth. New York: Ed. Grov Press,
1968.
Em francês (original)
Em português (BR) .