Hans Ulrich Gumbrecht - Corpo e forma-EdUERJ (1998) PDF
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Corpo e Forma
ENSAIOS PARA UMA CRÍTICA NÃO -HERM ENÊUTICA
Organizador
João Cezar de Castro Rocha
Rio de Janeiro
1998
Copyright © 1998 by EdUERJ
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Estado do Rio de Janeiro. É proibida a duplicação ou reprodução
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C ATALOGAÇÃ O NA FO N TE
___________________________UERJ/SISBI/SERPRO T___________________________
G974 G um brecht, Hans Ulrich
Corpo e forma : ensaios para uma crítica não-hermenêutica / Hans
Ulrich Gum brecht; Organizador João Cezar de Castro Rocha. - Rio
de Janeiro : EdUERJ, 1998.
180 p.
ISBN 85-85881-49-6
1. L iteratura - Estética. 2. L iteratura - H istória e crítica. 3.
Leitores - Reação crítica. I. Rocha, João Cezar de Castro. II. Título.
CDU82.01
Sumário
Introdução
A Materialidade da Teoria
Capítulo 1
As Consequências da Estética da Recepção:
Um Início Postergado
Capítulo 2
Persuadir a Quem Pensa como Você
As Funções do Discurso Epidictico sobre a Morte de Marat
Capítulo 3
Patologias no Sistema da Literatura
Capítulo 4
“É Apenas um Jogo”: História da Mídia, Esporte e Público
Capítulo 5
O Campo Não-Hermenêutico ou a Materialidade da Comunicação
Capítulo 6
O Futuro dos Estudos de Literatura?
Referências Bibliográficas
Introdução
A Materialidade da Teoria1
4 Ver Luiz Cosia Lima. A literatura e o leitor. Textos de estética da recepção, São Paulo, Paz
e T erra, 1979. O leitor deve consultar a Introdução, “O leito r d em an d a (d )a literatu ra”,
pp. 9-39. V er ainda a Seção dedicada às estéticas da recepção e do efeito in Teoria da
literatura em suas fontes, Rio de Jan eiro , Francisco Alves, 1983, pp. 305-441, vol. II.
5 Ver Regina Zilberman. Estética da recepção e história da literatura, São Paulo, Ática, 1989. Para
um a avaliação mais recente, ver Luiza Lobo, “Leitor”, pp. 231-251, especialm ente pp. 232-
242; in José Luís Jobim (org.). Palavras da critica, Rio de Janeiro, Imago, 1992.
6 Nesse contexto, vale reco rd ar que o livro de H ayden W hile, Metahistory. The Historical
Imagination in Nineteenth-Century Europe, publicado em 1973, foi m uito im portante para o
pensam ento de H ans U lrich G um brecht.
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A M a t er ia l id a d e da T eo r ia
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I n t r o d u çã o
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A M a t er ia l id a d e da T e o r ia
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I n t r o d u çã o
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A M a t e r ia l id a d e da T e o r ia
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In t r o d u ç ã o
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A M a t e r ia l id a d e da T e o r ia
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I n t r o d u çã o
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I n t r o d u çã o
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A M a t e r ia l id a d e da T eo r ia
19
Introdução
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A M a t e r ia l id a d e da T e o r ia
21
I n t r o d u çã o
44 Refiro-me, claro, ao sapere aude que, em “Resposta à pergunta: ‘Q ue é Ilum inism o?'”
(1784), é identificado p or Kant com o o lem a do hom em ilustrado.
45 Hans Ulrich G um brecht. “O Futuro dos Estudos de L iteratura.” Ver, neste volum e, p. 175.
46 Esta Introdução, assim com o a tradução dos capítulos 3 e 5, foram preparadas sob os
auspícios de um a bolsa de “fixação de pesquisador”, concedida pela FAPERJ à Pós-Graduação
em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A FAPERJ, pois, m eus agrade
cim entos.
22
Capítulo 1
24
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E s té tic a d a R ecepção: U m In íc io P o s te rg a d o
4 V er Iser, Der implitzite Leser: Kommunikationsformen des Romans von Bunyan bis Beckett,
M ünchen, 1972, p. 9.
25
A s C o n s e q ü ê n c ia s da E st é t ic a da R e c e p ç ã o : U m I n íc io P o s t e r g a d o
5 Para um a crítica da distinção de G adam er entre cognição “falsa” e “verdadeira”, que se baseia
na crença no clássico, ver Rainer W arning, “Rezeptionsásthetik ais literaturwissenschaftliche
Pragmatik”, in Rezeptionsásthetik: Theorie und Praxis, M ünchen, 1975, pp. 9-41; especialm en
te a partir da página 21.
6 Stierle, “Was heisst Rezeption bei fiktionalen T exten?”, in Poética, 7, 1975, pp. 345-387,
especialm ente às páginas 361ss, onde o desenvolvim ento de um m odelo norm ativo para
a recepção de textos ficcionais é postulado, isto é, o desenvolvim ento de form as de
recepções adequadas ao “estatuto específico da ficção”; assim com o às páginas 371ss, para
a crítica do conceito de “leitor im plícito”.
7 Em sua conferência “Form en des Lesens” (proferida no Congresso da Associação Alemã de
Filologia Românica, M anheim , 1975, p. 6), Karl M aurer assinalou que a reconstrução do
“leitor im plícito” em seu estágio atual de desenvolvimento “principalm ente tem as mesmas
dificuldades m ostradas pelo estilo mais antigo de interpretação - m esm o que Iser tente
estabelecer um a diferenciação essencial entre a interpretação subjetivam ente realizável e
a prova objetiva das possibilidades de significado construído na ‘estrutura da o bra’”.
26
A s C o n s e q ü ê n c ia s da E s t é t ic a da R e c e p ç ã o : U m I n íc io P o s t e r g a d o
27
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E sté tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
8 Ver Thom as Luckm ann, “Aspekte einer T heorie der Sozialkom m unikation”, in Lexikon der
germanistischen Linguistik, ed. H.P. Althaus, H. H enne e H.E. W iegand, T übingen, 1973,
pp. 1-13; aqui, p. 4. A sociologia da com unicação (fundam entada num a teoria da ação), um a
subdisciplina da qual a crítica literária será considerada daqui em diante, deve ser claram en
te distinta de todo m odelo de com unicação inform acional-teórico, cujas term inologias
fisicalistas não levam em consideração o fenôm eno das ações comunicativas hum anas. Cf.
a crítica m inuciosa e abrangente de Franz Koppe em sua resenha de “E inführung in die
Sem iotik” de U m berto Eco, 1972, in Poetica, 6, 1974, pp. 110-117.
28
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E sté tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
Conceitos Básicos
9 Niklas Luhm ann in Historisches Wòrterbuch der Philosophie, ed. J. R itter, Basel, 1972, col.
1142, e “F unküon IV”; especialm ente col. 1142, vol. 2.
10 Para o conceito de significado que é adotado aqui, ver Luckm ann, “Aspekte einer Theorie
der Sozialkom m unikation”: “O significado é inicialm ente constituído quando o ego mais
tarde se volta para suas experiências e as coloca num contexto que transcende a m era
realidade da experiência original”, p. 6.
29
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E sté tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
11 Alfred Schütz, Der sinnhafte Aufbau der sozialen Welt: Eine Einleitung in die verstehende
Soziologie, V ienna, 1960, p. 59.
12 Idem, p. 58.
13 Max W eber, Wirtschaft und Gesellschaft, Tübingen, 1956, p. 1, citado de Historisches Wörterbuch
der Philosophie, ed. J. Ritter, Basel, 1974, col. 994-996; aqui col. 994, vol. 3.
14 “O sentido de ação social inclui não som ente o am biente social diretam ente experim entado
mas tam bém o meio social, o m undo histórico, e o m undo futuro, que são acessíveis apenas
através de construções ideais”, idem.
30
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E sté tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
18 V er Schütz, Der sinnhafte Aufbau: “Se eu perg u ntar sobre o ‘m otivo-porque’, terei então
apresentado o contexto do significado subjetivo do ‘m otivo-para’ com o um ser objetivo já
constituído, e a partir disto pergunto sobre a constituição das camadas mais baixas sobre
as quais este contexto do significado se baseia”, p. 147. Para um a determ inação mais restrita
do term o “Um-zu-motiv”, ver Schütz, idem, p. 146.
19 Ver Hans Robert Jauss, “Literaturgeschichte als Provokation d er Literaturwissenschaft”, in
Literaturgeschichte als Provokation, Frankfurt, 1970, pp. 144-207; especialm ente pp. 162 e
199ss. Sobre m étodos para investigar a “função social da literatu ra”, ver H ans U lrich
G u m b re c h t, “S o zio lo g ie u n d R ez ep tio n sä sth e tik : D er G e g e n sta n d u n d C h a n cen
interdisziplinärer Zusam m enarbeit”, in Neue Ansichten einer künftigen Germanistik, ed. Jürgen
K olbe, M ü nchen, 1973, pp. 48-74. P retende-se aqui q ue esta co n tin u ação te n h a um
desenvolvim ento posterior e um a correção parcial desse ensaio.
32
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E s té tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
20 Jauss, “D er Leser als Instanz einer neuen G eschichte d er L iteratur”, pp. 334ss.
21 D. Richter, “Geschichte u nd Dialektik in der materialistischen L iteraturtheorie”, in Alternative,
82, jan . 1972, pp. 2-14; especialm ente p. 3.
22 R obert W eim ann, “Gegenwart und V ergangenheit in der m aterialistischen L iteraturtheorie”,
in Methoden der deutschen Literaturwissenschaft, ed. Victor Zmegäc, Frankfurt, 1974, pp. 291-
323; especialm ente p. 322.
33
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E sté tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
23 Por exem plo, Jan Mukarovsky, “Ä sthetische Funktion, N orm , u nd ästhetischer W ert als
soziale Fakten”, in Kapitel aus der Ästhetik, Frankfurt, 1970, pp. 7-112; H ans R obert Jauss,
Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung, Konstanz, 1972; Franz Koppe, “T hesen zu einer
Literaturw issenschaft in handlungsorientierender A bsicht”, in Zum normativen Fundament
der Wissenschaft, ed. Friedrich Kam bartel e Jürg en M ittelstrass, Frankfurt, 1973, pp. 318-
330; W olfgang Iser, “Vorwort”, in Der implizite Leser, pp. 7-12.
24 Schütz, Der sinnhafte Aufbau, p. 193; para este problem a, ver em particular o im portante
capitulo “Das V erstehen der Vorwelt und das Problem der G eschichte”, pp. 236-246.
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A s C o n s e q ü ê n c ia s da E s t é t ic a da R e c e p ç ã o : U m I n íc io P o st e r g a d o
Campos de Pesquisa
ação. O que é interessante neste tipo de reconstrução textual é que ela abre
a possibilidade de rever e aguçar a precisão da hipótese inicial sobre o
significado subjetivo do texto (o propósito da ação do autor), que poderia
parecer incompleto ou pouco plausível contra o fundo de uma análise mais
exata.
Se a questão sobre a “motivação-para” da produção textual dirigiu
nossa atenção a atos comunicativos subordinados à ação social, então a
investigação de sua “motivação-porque” leva-nos ao nível de estruturas so
ciais históricas. De forma a saber por que, por exemplo, Ronsard poderia
ter desejado escrever sonetos, já não basta buscar uma resposta satisfatória
dentro do arcabouço reconstruído de sua intenção subjetiva. E antes neces
sário desenvolver hipóteses sobre a função da produção literária em geral
(a qual o autor em geral nem mesmo conhece), e sobre o soneto dentro
da sociedade francesa do século XVI, em particular. Neste nível de uma
sociologia da comunicação, uma nova teoria marxista da produção literária
reconheceu seu campo genuíno, destacando-o rigorosamente dos interesses
do debate sobre a mimesis ( Widerspiegelung)25.
Uma das primeiras tarefas importantes da crítica literária seria a
reconstrução dos propósitos aos quais os leitores históricos têm aplicado
suas ações de com preender os significados textuais objetivos e subjetivos -
em outras palavras, o estudo da história de seu interesse literário. Tal
investigação da “motivação-para” deve mais uma vez ser estendida à questão
da “motivação-porque”, que pode ser respondida apenas através do recurso
à história social, ou seja, estendendo-as às funções sociais da recepção
literária. Uma fenomenología da leitura teria também que explicar em
detalhes a conexão entre o nível da compreensão enquanto ação social e
os atos comunicativos (perceptuais) que o constituem2 . Em contraste com
os esforços críticos visando a correlacionar atos comunicativos expressivos
25 Ver Pierre Macherey, Pour une théorie de la production littéraire, 1966, Paris, 1970, especial
m ente às páginas 159-180, “L ’analyse littéraire, tom beau des structures”; por exemplo: “Esta
condição sem a qual a o bra não p o d eria existir, e que é e n tretan to im possível nela
encontrar, tanto a precede radicalm ente”, p. 174.
26 Considero o ensaio de Stierle como um exem plo de um a teoria a qual, a fim de descrever
“a possibilidade de estruturas de recepção relativam ente estáveis estabelecendo a própria
obra (...) é ligada ã id en tidade da obra no processo de sua recepção ”, p. 346; aqui,
especialm ente, “atos de recepção” serão analisados relativam ente ao interesse superposto
de orientar a ação pelo parceiro comunicativo (em textos pragm áticos) ou às oportunidades
epistem ológicas específicas abertas p or textos ficcionais.
36
As C o n s e q u ê n c ia s d a E s t é t i c a d a R e c e p ç ã o : U m I n íc io P o s t e r g a d o
27 Paul Valéry, “Eupalinos ou L’A rchiieci”, in Oeuvres, Paris, Bibliothèque de la Pléiade, 1960,
p. 118, vol. 2.
37
As C o n s e q ü ê n c ia s d a E s té tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
28 Para isto, ver m inha resenha de B ernhard Badura e Klaus Gloy (orgs.), “Soziologie der
K om m unikation”, Stuttgart, 1974, in Poética, 6, 1974, pp. 103-110; especialm ente pp. 106ss.
29 Um dos “tipos de recepção literária que não está afinada à obra” que Jauss tem atízou - in
Poética, 7, 1975, pp. 340ss. - tam bém desponta naqueles casos em que os leitores estabe
lecem hipóteses sobre o projeto do autor desenvolvidas durante a leitura de um texto como
um pré-requisito para a recepção de outros textos do mesmo autor. N aturalm ente, este tipo
de inform ação sobre o autor, com o os casos de Bõll e Grass o m ostram , pode tam bém
influenciar a recepção que é disponível ao público fora dos textos literários. M inha hipótese
sobre o caráter da recepção prim ariam ente relativo ao autor não deveria ser mal entendida
com o um a variante do conceito de recepção necessariam ente orientada pelo texto, que
Jauss criticou.
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As C o n s e q ü ê n c ia s d a E s té tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
30 Para exem plo dessa variante m edieval da estética da recepção, ver C hristoph Corrneau,
Wigalois und Diu Crône, 7.wei Kapitel zur Gattungsgeschichte des nachklassischen Aventiure-
romans, M ünchen, 1976; e o m eu “Literary Translation and Its Social C onditioning in the
M iddle Ages: F our Spanish R om ance Texts o f the T h irteen th C entury”, in Yale French
Studies, 51, 1974, pp. 205-222.
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história 32 . Este projeto merece atenção especial, porque seu sucesso forne
ceria fortes argumentos e apologia para todos os tipos de interpretação e,
portanto, para a crítica literária em geral.
O que significa exatamente a afirmação de que a literatura exerce
uma influência sobre a história? Aparentemente que a recepção literária
seria um fator na estabilização, no questionamento e na evolução - em
todo caso, na mudança qualitativa - de estruturas sociais existentes. Tais
mudanças só podem ser realizadas indiretamente, o que sugere que os
significados efetivados por leituras de textos literários modificam o campo
do conhecimento social do público que é a base de sua ação cotidiana.
Schütz chamou a este conjunto de experiências “aquele sistema de fatores
relevantes para a motivação” (das System der Motivationsrelevanzen)33. Assim,
a literatura tem um impacto na história quando quer que sua recepção
modifique o conhecimento relevante para a motivação, o que por sua vez
altera a ação social de um número suficiente de leitores de forma que esta
mudança torna-se um incentivo para uma mudança nas estruturas sociais.
O que soa bastante plausível dentro do arcabouço de um modelo
geral não pode entretanto ser reconstruído em detalhes históricos, até
mesmo quândo temos acesso às ações de compreensão dos leitores. Isto
sucede principalmente em virtude do fato, freqüentem ente mencionado
mas raramente analisado com precisão (a “autonomia” da arte), de que
tais ações de compreensão de textos literários raramente são realizadas
com o propósito de fornecer uma orientação para a ação prática34. Se,
após a leitura de um manual básico de fotografia, eu deixar de escolher
exclusivamente temas como “Tia Lucille diante do Túmulo do General
Grant” (no melhor dos casos, sem realce) e de repente usar um tripé,
captando teias de aranha orvalhadas ao sol da manhã em filme granulado,
de alta sensibilidade, nesse caso não preciso de um crítico literário versado
em sociologia da comunicação para estabelecer uma relação plausível entre
minha recepção textual e a mudança no meu comportamento de lazer. Pois
precisamente tal mudança foi, em primeiro lugar, o projeto de m inha
leitura. Muito mais problemático seria o desenvolvimento de uma correla
32 Jauss, “L iteraturgeschichie ais Provokation d er L iieralurw issenschaft”, p. 119.
33 Schütz, Das Problem der Relevanz, Frankfurt, 1971, p. 100.
34 Para um a diferença entre as formas de recepção relativas a textos pragm áticos e ficcionais,
ver Stierle, in Poética, 7, 1975, especialm ente às seções 2 e 3. U m a crítica da teoria marxista
da autonom ia da arte está em m inha resenha de Theorie der Avantgarde, de P eter Bürger,
1975, in Poética, 7, 1975, pp. 223-233, especialm ente às páginas 227-230.
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está para ser assinalado que esta aporia também não está cancelada naque
les casos em que podemos interrogar os leitores a respeito de suas impres
sões subjetivas sobre a significancia da recepção literária para suas ações:
em primeiro lugar, porque calcular o peso relativo de diferentes experiên
cias anteriores para a constituição de uma ação é naturalm ente impossível
para o indivíduo que age; em segundo, porque, na prática, a ação conscien
te parcialmente informada de seus motivos surge sempre misturada a com
portam ento inconsciente, puram ente reativo, de forma que tal auto-inter-
pretação provavelmente superestimaria o peso relativo da motivação cons
ciente (por exemplo, tal experiência derivada da recepção literária).
Se não podemos chegar à conexão entre as experiências que indi
víduos ou grupos adquirem pela recepção de textos literários, por um lado,
e as mudanças em seus atos, por outro, falta-nos então um estágio inicial in
dispensável para a reconstrução positiva da “influência da literatura sobre a
história”. Além disso, aquelas mudanças nas estruturas sociais históricas que
podem ser, de fato, determinadas retrospectivamente nos são apresentadas
como uma interação complexa de tantos fatores diversos que as oportunida
des de avaliar um fator, “a recepção literária”, como significativo o bastante
para legitimizar a literatura e a crítica literária pareceriam escassas - mesmo
se tivéssemos acesso a um método mais preciso para investigar o efeito sobre
a ação do leitor . Em confronto com esta série de aporias que surgem a
m edida que tentamos descrever aquelas fases da análise concreta que te
riam que ser realizadas como um pré-requisito para um estudo bem suce
dido do impacto de textos literários, temos a tendência de considerar decla
rações sobre o papel emancipatório ou estabilizador das obras de autores
individuais simplesmente como expressões de “simpatia” ou “antipatia” por
aqueles autores, vestidas do pathos do jargão crítico .
37 Nesie senlido, Friedrich Engels assinalou num a c a ra a Joseph Blóch (21-22 de setem bro
de 1890) que a teoria da prioridade da base sobre a sup erestru tu ra pode tam bém ser
estabelecida como um a necessidade heurística. Ele reconhece um papel ativo da superes
trutura no processo histórico o qual, entretanto, considera “tão impossível de dem onstrar
que podem os negligenciá-lo com o não-existente”. Marx-Engels Werke, p. 463, vol. 37.
38 M inha advertência contra o otim ism o exagerado a respeito da pesquisa da história da
recepção é naturalm ente válida apenas quando a “função histórico-form ativa da literatura”
é entendida com o um a modificação ou estabilização de estruturas sociais através da recepção
literária p or entre as camadas comunicativas de m udanças individuais e coletivas na m oti
vação e na ação. Em outro sentido bastante concreto (certam ente não sugerido por Jauss),
a literatura tem um efeito “historicam ente form ulativo" naqueles casos em que m odelos
ficcionais interativos servem como um m eio de organização, de interpretação (principal-
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A s C o n s e q ü ê n c ia s da E s t é t ic a da R e c e p ç ã o : U m I n íc io P o s t e r g a d o
m ente polêm ica), e de citações geralm ente com preensíveis de fenôm enos recorrentes na
realidade (política). H elm ut Kessler, Terreur: Ideologie und Nomenklatur der revolutionären
Gewaltanwendung, in Frankreich von 1770 bis 1794, M ünchen, 1973, pp. 85ss, m ostrou , por
exem plo, que na representação de Robespierre do people como vertu persécutée (que foi
congelada em um lexem a pela retórica jacobina) houve um a “transferência de um m odelo
literário” dem onstrável (isto é, Clarissa Harlowe de Richardson) “para o cam po da política”.
Um a analogia aproxim ada poderia ser vista na relação entre o m odelo literário e a derrota
que M oham m ed Ali infligiu a seu oponente Joe Frazier, visto com o um Uncle Tom.
U ncle Tom : em blem a negro da subserviência, referen te ao p ro tag o nista do rom ance
abolicionista norte-am ericano Uncle Tom ’s Cabin, or, Life among the Lowly, de H arrie t
B eecher Stowe, de 1852. (Nota da T radutora)
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As C o n s e q ü ê n c ia s d a E sté tic a d a R ecepção: U m I n íc io P o s te rg a d o
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Capítulo 2
“censura”, mas tam bém os relativos aos dois outros gêneros, deliberativo e
judiciário, podem aparentem ente ser realizados na situação de com unica
ção da representação teatral; seja, por um lado, desaconselhar e aconse
lhar, ou, por outro, acusar e defender. Substituindo-se a distinção de
Quintiliano entre negotia e ostentatio pela oposição sistemática entre situações
de comunicação pragmáticas (não-ficcionais) e situações de comunicação ficcionais,
vai ser preciso sobrepor à definição aristotélica dos três gêneros de discur
sos a divisão mais fundam ental entre “não-ficção” e “ficção”. Por conseguin
te, os textos de cada um dos três gêneros podem ser levados a sério ou
não4; em sua realização e quanto ao cum prim ento da função que lhes
com pete, podem ser garantidos por expectativas de expectativa e ameaças
de sanção ou, ao contrário, estar postos livremente à disposição dos orado
res e do público, no espaço vazio da com unicação ficcional, que depende
de um a instituição prim ária0. No interesse que orienta o encam inham ento
deste ensaio, serão evocados e analisados exemplos de discurso epidíctico a
título de m aterial para um gênero pragmático.
Se, em Aristóteles, esta associação entre as situações da “festa” e da
“representação teatral” explica-se como reflexo das condições particulares
em que o teatro clássico era encenado, resta contudo saber p or que esta
definição do gênero epidíctico se transmitiu, inalterada, até os dias de hoje,
apesar da insistência de Q uintiliano quanto à definição categorial entre
negotia e ostentatio ’. A resposta a esta questão nos leva ao problem a central
da análise dos textos pragmáticos-epidícticos. Aristóteles designa a contempla
ção com o a atitude de recepção adequada ao discurso de festa ou espetá
culo. O que significa efetivamente contem plar só vai-se esclarecer se opuser
mos esta palavra à que designa a atitude de recepção apropriada aos dis-
4 Esta distinção é tirad a de J.R. Searle. “T he Logical States o f Fictional D iscourse”, in New
Literary History, 6, 1975-1976, pp. 319-332.
5 Para a noção de ficção que nos serve aqui de fundam ento, Cf. K. Stierle. “Réception et fiction”,
p. 299; e, do mesmo autor, “Fiktion und Nichtfiktion”, in H. Brackert e E. Lám m erl (orgs.).
Funk-Kolleg Literatur, Frankfurt, 1977, pp. 188-209, vol. I.
6 A prova de que a d iferença en tre discurso pragm ático-epidíctico e discurso p u ram en te
ostentatório não é geralm ente reconhecida, mesm o hoje em dia, está nos verbetes relativos a
esta questão nos dicionários de literatura usuais. Cf., por exem plo, G. von W ilpert. Sachworterbuch
der Literatur, 4.g ed., Stuttgart, 1964, verbete “K p id e ik tik “o discurso de aparato, que osten
ta (...) que não tem objetivos práticos (...) é altam ente desenvolvido pelos discursos de cir
cunstância ou de festa”; ou J.T. Shipley. Dictionary of World Literature, 2.a ed., Totowa, New
Jersey, 1966, v erb ete “r h e to r ic “os discursos de o sten tação , a elo q ü ên cia p an eg írica e
declam atória”. Para a história da recepção das categorias aristotélicas dos gêneros oratórios, Cf.
L. Spengel. “Die D efinition und Einteilung d er Rhetorik bei den A lten”, in Rheinisches Museum,
18 (1863), pp. 481-526.
48
P er su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
7 O term o (alemão: motivationsrelevant) está sendo em pregado segundo A. Schütz. Das Problem
der Relevam, Frankfurt, 1971, pp. 78ss. Q uanto ao conceito de “saber”, Cf. P.L. B erger e T.
Luckmann. Die soziale Konstruktion der Wirklichkeit, 2.â ed., 1971. Tradução brasileira, A Cons
trução social da realidade, Petrópolis, Vozes, 1973.
8 Para a definição do term o “função” aplicado a textos, e para o m étodo funcional-estrutural de
análise de textos, ver o m eu ensaio, “De pragm atik van de tekst”, in C. Grivel (org.) Methoden
in de literatuurwetenschap, Am sterdam , 1977.
9 Cf. W. Iser. Der Akt des Lesens: Theorie ästhetischer Wirkung. M ünchen, 1976, pp. 262ss, que
define a “contingência dos projetos de com portam ento” com o o motivo que leva à com unica
ção no caso dos textos pragm áticos, e a “assim etria fundam ental entre o texto e o leitor”, como
esse motivo no caso dos textos de ficção. O discurso epidíctico não está relacionado a nenhum
desses dois tipos de motivação.
49
P er su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
vez, pode ter a certeza de que o seu próprio saber e o de seu público são
em boa m edida correspondentes - ao menos no que se refere a setores de
saber por ele evocados nesse m om ento. Os discursos pragmáticos-epidícticos
mostram-se “destituídos de função” em. virtude da identidade de saber existente entre
os oradores e os ouvintes. Já quanto aos textos ficcionais, se não conseguim os
relacioná-los a um a função im posta - em bora seus autores e seu público
não disponham , norm alm ente, de um saber idêntico - é porque, do ponto
de vista institucional, sua situação de comunicação não está ligada a atos prece
dentes ou por vir. Os discursos pragm áticos-epidícticos10 partilham , então,
com os textos ficcionais, dessa independência com relação a qualquer fun
ção socialm ente im posta e, com os textos pragm áticos, da inserção num a
situação. A marca distintiva da situação de comunicação que lhes é própria
é a identidade das partes de saber evocadas, no m om ento do discurso,
entre o orador e o ouvinte, identidade esta que se constitui ao longo de sua
história prévia, e que deve subsistir em sua história posterior. Em razão de
sua posição de exceção no m undo do discurso, o discurso epidíctico não
m ereceu um a concepção particular do term o “retórico”. E a célebre idéia,
cuja profundidade histórica acaba de ser dem onstrada por Starobinski,
segundo a qual a eloqüência só é possível nas cidades livres11. “Liberdade”
quer dizer, aqui, “pluralidade de opiniões”, e é nesta acepção que se baseia
a afirmação de que a eloqüência só existe quando é um m eio para atingir
um consenso entre pontos de vista diferentes, quando tem, portanto, um
papel a desem penhar na modificação de um saber. Todorov m ostrou que
a esta noção republicana de eloqüência corresponde um a retórica que só
indaga sobre as funções do discurso, e não sobre sua estrutura12; que o
sentido da eloqüência, objeto da retórica, transforma-se no m om ento da
passagem à m onarquia ou, mais geralm ente, a qualquer form a de estado
que sufoque a pluralidade dos pontos de vista: “Agora, a m elhor fala é a
que é julgada bela... a retórica diz respeito à form a”.13 U m a vez mais, o
discurso epidíctico foi relacionado à “ausência de função” e, por intermédio
do belo, ao caráter de ficção.
10 U lilizam os m uitas vezes, na seqüência deste artigo, o term o “ep id íctico ” no sen tid o de
“pragm ático-epidíctico” explicitado mais acima.
11 J. Starobinski. “Eloquence et liberté”, in Revue suisse d ’histoire, 26, 1976, pp. 549-566.
12 T. Todorov. “U ne Fête m anquée: la rhétorique - Essai d ’histoire-fiction”, in Cahiers roumains
d ’études littéraires, 3, 1975, pp. 82-96; réf. p. 82.
13 Idem, pp. 85-87.
50
P e r s u a d ir a Q u em P ensa com o V ocê.
51
P e r su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
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P er su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
53
P e r su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
levados a sério por seu auditorio, cujos aplausos têm im portância para eles,
mesmo no caso de já lhes serem garantidos de antem ão. Pois, num a festa
em honra de M arat assassinado, aquele que manifestasse sua aflição, na
qualidade de orador ou de participante, estava expressando oficialmente a
sua fidelidade aos princípios da Revolução, tais como vigoravam durante o
verão de 1793, de um a form a que definia seu com portam ento político
posterior, abolindo assim a sua contingência.
Qual era o panoram a político da França revolucionária no verão
de 1793, m om ento do assassinato de Marat? Se esta pergunta for feita
relativamente à situação de comunicação dos discursos fúnebres, da qual se
deve deduzir um a hipótese funcional, e se for a relação entre o saber do
orador e do auditório o elem ento a ser considerado com o sendo essa
situação de com unicação - saber que engloba o saber do outro a respeito
do m eu -, podem os então propor um a resposta do ponto de vista da
situação tal como é oficialmente institucionalizada, e outra, do ponto de vista
dos bastidores políticos reais dessa situação. “Oficialm ente”, sobre o pano de
fundo da tão propalada igualdade e do consenso postulado para todos os
cidadãos, o saber de todos os grupos era idêntico; o com portam ento dos
grupos era previsível e não havia contingência nos com portam entos: a per
suasão, visando a produzir um saber que atuasse sobre as motivações,
poderia não ter razão de ser.
Neste nível oficial, não se pode pois form ular um a hipótese quan
to às funções de um discurso político. No entanto, um consenso assim
ostentado encobre geralmente um a divergência existente entre interesses de
grupo. Desta form a, tem os a possibilidade de inserir, num contexto de
situações de com unicação constituídas justam ente por um a diferença entre
os saberes respectivos do orador e do auditório, discursos que, no nível
oficial, são epidícticos. Pode-se, assim, num a prim eira abordagem , resolver
com relativa facilidade o problem a teórico e m etodológico do discurso
epidíctico, “desmascarando” textos oficialmente epidícticos que, “na realida
de”, são textos persuasivos - textos que obedecem a leis particulares (que
ainda precisamos descrever), em virtude da condição situacional prelim inar
de um consenso institucionalizado.
Além disto, pode-se facilmente relacionar tal solução à historiografia
da Revolução que vê, no aparente consenso de 1793, um m eio de se pre
servar a coalizão entre dois grupos de interesses divergentes: por um lado,
os sans-culottes de Paris (pequeños-burgueses) e, por outro, a m aioria (grã-
burguesa) dos Convencionais, a “Planície”, oposição em que os jacobinos
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21 Cf. L. B ergeron, F. Furet, R. Koselleck. Das Zeitalter der europäischen Revolution 1780-1848,
Frankfurt, 1969, p. 64: “O governo revolucionário não se m ostra mais, hoje em dia, com o a
‘ponta mais avançada’ da Revolução, mas antes com o árbitro de um a aliança, aquela que os
parlam entares da Planície (...) estabelecem com a plebe das cidades”.
22 Cf. especialm ente Les Sans-Culottes parisiens en Van II, Paris, 1958.
23 F .F uret e D .R ichet. La Révolution française, Paris, 1973, pp. 215 & 230. A. G oodw in. Die
französische Revolution 1789-1795, Frankfurt, 1964, p. 132.
24 Cf. Furet e Richet, La, Révolution française, especialm ente à página 211. Em Soziale Ursprünge
von Diktatur und Demokratie, Frankfurt, 1974, pp. 129-139, B. M oore tentou explicar o T error
baseando-se nas necessidades econôm icas dos sans-culott.es. No entanto, teses com o esta, do
T error com o “crítica ao funcionam ento do m ercado”, não são m uito mais convincentes do que
as interpretações tradicionais.
55
P e r su a d ir a Q u em P en sa com o V ocê.
25 F uret e Richet, p. 233. Cf. tam bém E. Schm itt. Einführung in die Geschichte der französischen
Revolution, M ünchen, 1976, p. 95: “A pesquisa tem ainda um trabalho considerável a realizar
para encontrar a chave das causas e dos elem entos que desencadearam essa dinâm ica revolu
cionária, e parece que terá m uita dificuldade em obter resultados satisfatórios sem lançar mão
das categorias e dos m odelos explicativos da psicologia social. Até hoje, em todo caso, a história
tem-se m antido em explicações de prim eiro plano a este respeito”.
56
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P e r s u a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
tam ente m encionada nesse momento; ela devia estar presente na m ente de
todos os parlam entares a partir de 2 de ju n h o , quando os G irondinos
foram excluídos da Convenção e, pouco depois, acusados e condenados à
morte. Ademais, tal menção explícita teria destruído a tão desejada aparên
cia de um consenso político. Entretanto, no pronunciam ento da Sociedade
popular de M ontauban, do dia 24 de julho, a am eaça vai ser ainda mais
clara, em idêntico contexto:
Nós vos pedim os justiça, rápida e severa; de outro modo, ficareis
entregues à nossa emoção; pesai bem as conseqüências.
27 Ele se dirige, não ao Parlam ento como um todo, mas explicitam ente aos partidários da M onta
nha: “Os maus agitavam-se, denegriam a M ontanha, diziam alto e bom som que ela só tinha
poucos dias de existência”. No entanto, o seu efeito pode estender-se a todos os m em bros da
Convenção, já que a Planície tam bém tinha sido exortada a provar sua determ inação revoluci
onária tom ando m edidas contra os conspiradores, e a m ostrar, com isto, sua fidelidade à
“virtude perseguida” encarnada pela M ontanha.
59
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61
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desconfiança que, por sua vez, reforçam o sentim ento de contingência que
os causou. É preciso com preender, sócio-historicamente, a elaboração de
um código binário de comunicação por meio do qual o vivido (das Erleben)
de um m undo circundante hipercomplexo —e, por isto mesmo, inquietante
—pôde ser transposto em experiência (Erfahrung) de acordo com as expec
tativas que em anam da ideologia vigente, bem como do compromisso pouco
a pouco assumido de interiorizar esse código e suas regras de aplicação,
isto é, a instituição da identidade de cam po entre os saberes individuais,
como processos destinados a com pensar o sentim ento vivido da contingén-
cia29 . Explica-se, assim, o fato de M. Ozouf ter podido reduzir a função das
festas revolucionárias à simples •
fórm
30
ula de um “triunfo [...] do sentido
desejado sobre o sentido vivido”.
O código de com unicação binário, com o “sentido desejado” —e
não com o um sentido que os governantes houvessem im posto arbitraria
m ente -, e cujas elaboração e aplicação se assentam m uito mais sobre um a
necessidade coletiva, vê-se então constantem ente questionado por um “sen
tido vivido”; no caso, pelos acontecim entos imprevistos e imprevisíveis da
Revolução. O discurso epidíctico adquire, assim, um a nova função: a de
negar dúvidas que o “sentido vivido” suscita no “sentido desejado” ou, em
outras palavras, a de dem onstrar que o “sentido vivido” pode, por meio do
código binário de comunicação, reduzir-se ao “sentido desejado”. O discur
so epidíctico é, portanto, um meio de im pedir as divergências que am ea
çam produzir-se entre o sentido vivido e o desejado, as discordâncias entre
o saber do orador e o de seus ouvintes. Por esta perspectiva, pode-se, com
F. Koppe, pensar o discurso epidíctico como um mito\ “No mito, trata-se de
ultrapassar os acasos existenciais graças à satisfação de um a necessidade de
sentido, nos casos em que de fato não haja lugar para um a ação doadora
de sentido”.31
29 Para a utilização dos term os “vivido” (Erlebnis) e “experiência” (Erfahrung), Cf. T. Luckm ann.
“Aspekte einer T heorie d er Sozialcom m unikation”, in H.P. Althaus-H. H enne-H .E. W iegang.
Lexikon der germanistischen Linguistik, T üb in gen , 1973, pp. 1-13; e H .U . G um b rech t. “De
pragm atiek van de Tekst”, Op. cit.
30 M. Ozouf. “La Fête - sous la Révolution française”, in J. Le Goff-P. N ora (org.), Faire de
l’histoire, III, Paris, 1974, pp. 256-277; p. 266.
31 F. Koppe. Sprache und Bedürfnis - 7,ur sprachphilosophischen Grundlage der Geisteswissenschaften,
Stuttgart, 1977, p. 149. Veja-se tam bém a definição sem elhante - que, exatam ente com o a
prim eira form ulação, lem bra a definição de mito de A. Jolies - à página 155: “O discurso mítico
está relacionado com situações de necessidade de um gênero particular, com o a situação de
quem se vê às voltas com contingências irrevogáveis, estando o sentido aí ausente, bem como
a capacidade de triunfar desta situação”.
62
P e r su a d ir a Q u e m P e n sa com o V ocê.
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P e r su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
64
P er su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
resposta. Mas vamos dar um passo adiante: um orador que pode se perm i
tir fazer perguntas dem onstra “mais com petência”34 com relação a seu
auditório, de m odo que a pergunta que inicia a quarta seção do discurso
deve ser posta, funcionalm ente, no mesmo nível que a fórm ula de introdu
ção da quinta seção, que enfatiza o caráter afirmativo do discurso epidíctico
como mito:
Sim, cidadãos representantes, nós o sabíamos, estava sendo tramado um
grande complô contra a liberdade, circunstâncias diversas, relaciona
das entre si, persuadiram-nos de que ele estava para eclodir.
65
P e r su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
35 Com relação ã função de confirm ação do silêncio m antido, Cf. H. Geissner. “Ist Schweigen
Gold?”, in Reden und reden lassen, Stuttgart, 1975, pp. 183-198; e R.D. Laing. The Seif and the
others, 1961. A tese defendida aqui tam bém está de acordo com o que diz H. Blum em berg
ac erca da fu n ção esta b iliz ad o ra d a ap re se n laç ão re tó ric a d a id e n tid a d e : “A pp ro ccio
antropologico aH’attualità delia retórica”, in II Verti (1973), pp. 49-72; p. 60.
36 Cf. o lítulo de capítulo in A. Goodwin, Die französische Revolution, p. 135.
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45 Idem, p. 64.
46 E. Goffm an. “Ü ber E hrerb ietu ng u nd B enehm en”, in Interaktionsrituale - Uber Verhalten in
direkte)· Kommunikation, Frankfurt, 1971, pp. 54-105; p. 61. Ao lado do aspecto aqui evocado das
festas em m em ória de M arat com o cerimonial (hom enagem prestada em com um a um objeto ou
a terceiros), poder-se-ia tam bém descrever, segundo Goffm an, a troca que se opera sem pre
en tre os oradores e seu público com o um ritual (confirm ação recíproca de um a relação),
igualm ente eficaz no plano das relações sociais. Cf. “D er bestätigende A ustausch”, in Das
Individuum im öffentlichen Austausch, Frankfurt, 1974, pp. 97-137.
69
P e r su a d ir a Q u e m P en sa com o V ocê.
47 Cf. a descrição dessa festa nos Archives parlementaires, pp. 589ss, vol. 69.
48 Cf. o relatório detalhado que David fez para o P arlam ento(!) sobre os problem as técnicos
criados pela exposição pública do cadáver de Marat, em função de sua decom posição (vol. 69,
p. 49), e a ordem que lhe foi dada, de form a patética, para que pintasse um quadro represen
tando o amigo do povo assassinado (p. 710, vol. 69): “Pega teu pincel, ainda tens que fazer um
quadro...”.
70
P er su a d ir a Q u em P e n sa com o Você.
49 R.D. Laing. “Nós e eles”, in A Política da experiência, 1967. T radução brasileira, Petrópolis,
Vozes, 1974, pp. 59-75.
50 Idem, pp. 66ss.
51 Idem, p. 67. N aturalm ente, o T error revolucionário representa apenas um a das inúm eras for
mas de terror consideradas p or Laing.
71
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52 Idem, p. 71.
53 Idem, p. 67.
72
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com as inscrições de hom enagem mas tam bém de am eaça da pirâm ide
fúnebre54.
O que evocamos até aqui como dialética do terror interno e do
terror externo poderia também ser descrito, em outra terminologia, como
urna única am eaça de terror, dirigida a tudo o que cerca o grupo (ou o
sistema) quando as fronteiras do sistema ainda não estão estabelecidas.
Neste caso, ela não se dirige a m em bros pouco confiáveis do grupo (inte
rior) e a inimigos do grupo (exterior), mas de m aneira absolutam ente
geral a “tudo o que potencialm ente cerca o sistema”; a ausência de delimi
tação do sistema deveria aparecer, então, precisamente como o que perm i
te que este discurso produza efeito. Cada ouvinte deve sentir-se ameaçado
pela possibilidade de um a delimitação estrita do sistema, e sentir-se assim
motivado para submeter-se sem restrições ao grupo. Neste texto, a indeter-
minação dos limites do sistema se manifesta pela inconstância dos referentes
dos pronom es “nós” e “vós”.
54 Encontram -se tam bém na descrição, baseada em docum entos históricos, da festa da “Inaugu
ração da Constituição da República” (10 de agosto de 1793), exemplos da associação entre o
cerim onial extra-verbal e o discurso epidíctico, entre a festa da nova igualdade e a am eaça
generalizada do Terror. In: G. Pillemenl. Paris en fête, Paris, 1972, pp. 221-228. Vejam-se, por
exem plo, estas palavras de um participante no m om ento de levantar um cálice contendo a
“água da igualdade”: “Que estas águas puras sejam para mim veneno m ortal se tudo o que me
resta de vida não for dedicado a exLerminar os inim igos da Igualdade, da N atureza e da
R epública”; a pirâm ide, sim bolizando o Antigo Regime, incendiada pelo presidente da Con
venção; e a enorm e escultura que representava o povo francês esm agando o federalism o.
73
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É precisam ente por esta razão que nossa prim eira interpretação
do texto com o expressão de urna exigencia não é com patível com as duas
outras interpretações posteriores. No entanto, ela não deixa de ter legitimi
dade, no contexto do encam inham ento a que corresponde. Insere-se num a
historiografia que considera certas “necessidades” ou “desejos” como dados
—fundam entando-os, por exem plo, num a m entalidade de grupo —, e que
descreve as interações políticas a partir desta base não questionada. Uma
análise de texto que se atenha a este plano perde, contudo, a possibilidade
de passar do “com o” ao “por que”, da descrição da instituição do T error
à com preensão desta últim a a partir de necessidades sociais; renuncia a
trazer à luz as condições não-explícitas e, sem dúvida, não tornadas cons
cientes, das ações passadas56.
Assim, a resposta à pergunta feita sobre o lugar sistemático de
nossa interpretação, no que diz respeito à prim eira proposição, é apriori
negativa. E precisam ente quando se parte de um a concepção fundam ental
da historiografia da Revolução, que exclui a situação de com unicação do
discurso epidíctico - isto é, a identidade entre o grupo dos ouvintes e a do
orador quanto aos setores de saber evocados que o texto se apresenta
com o a expressão de um a exigência. Partindo de tal premissa, a interpre
tação pode im putar a qualquer texto inserido em sem elhante situação de
comunicação um a intenção calada por parte dos oradores, e a diversidade
dos atos de fala destinados a ser “desm ascarados” não mais se reduz ao da
“exigência”. Neste caso, as razões do pretenso consenso - que deve sem pre
ser com preendido como um a falsa aparência - só podem ser encontradas
fora da situação de comunicação.
Se, ao contrário, propom os a refutação de dúvidas relativas ao
saber interiorizado pelo orador e pelo auditório como sendo um a função
meta-histórica do discurso epidíctico, esse tipo de situação de comunicação,
da qual ele próprio diz depender, deve ser levada a sério. Pois, po r esta
perspectiva, não é sequer necessário que esteja presente um risco de diver
gência entre os saberes, como na situação histórica particular por nós ana-
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lisada, para que o discurso epidíctico adquira uma função. A simples recusa
- própria a todo discurso epidíctico - da possibilidade, presente em qual
quer execução pública de atos de fala, de problem atizar um certo saber, de
am pliar a com plexidade do sentido, passa a ser um a contribuição para a
institucionalização do saber. M etaforicam ente falando: o discurso epidíctico
cerra as aberturas dos sistemas de sentido, aberturas estas que lhe permitiriam
evoluir. A im pressão que ele nos dá - qual seja, a de que seu lugar siste
mático se encontra entre os textos pragmáticos, orientados para um a trans
form ação do saber, e os textos funcionais, que não dependem de um a
função institucional -, advém do fato de que esse discurso epidíctico deve
im pedir a transformação do saber. E justam ente por esta função que lhe é
atribuido o seu lugar sistemático dentro do universo do discurso.
Resta saber se o discurso epidíctico deve sem pre estar vinculado à
dem onstração de um perigo externo e à ameaça de um a violência interna.
Em term os que lem bram a epígrafe deste artigo: se as festas só são belas
por evocarem o terror. Seguindo a perspectiva de Laing, só podemos postular
um a relação sistem ática entre discurso epidíctico e terror no caso de o
saber que deve ser estabilizado apresentar com o sendo iguais todos os
sujeitos que, justam ente pela interiorização deste saber, pertencem a um
grupo. Em contrapartida, no caso de as relações sociais constitutivas dos
grupos serem concebidas como assimétricas, o saber poderia ser estabiliza
do através de cerimônias meramente extra-verbais ou de discursos epidícticos,
mas sem evocar necessariam ente imagens de inimigos ou sugerir tem ores
de conspiração.
Tradução de Maria H elena Rouanet
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Apêndice
1 Archives nationales, Pasta F, n.B 708: Procès-verbaux de la Convention (Atas da Convenção), p. 118,
Tom o 17.
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79
Capítulo 3
1 Muitas das idéias expostas neste ensaio foram desenvolvidas no Program a de Pós-Graduação
da U niversidade de Siegen, d uran te o sem estre de verão de 1986, sobre a história do
código e dos program as no sistema literário. Por textos, idéias e generosidade intelectual,
quero agradecer a Andreas Bahr, Paco Caudet, M onika Elsner, Anja Gõrzel, Claudia Krülls-
H ep erm an n, T hom as M üller, Juan-José Sánchez, Peter-M ichael S pangenberg e D agm ar
Tillm ann-Bartylla.
2 Em particular, estarei trabalhando com o ensaio, “Ist Kunst codierbar?”, publicado in
Soziologische Aufklärung, vol. 3, O padlen, 1981, pp. 245-266. Interessante será acom panhar
a reação dos críticos literários ao ensaio, “Das Kunstwerk und die Selbstreproduktion der
Kunst”, in Stil: Geschichten und Funktionen eines kulturwissenschaftlichen Diskurselements, Frank
furt, 1986, Hans Ulrich G um brecht & Karl Ludwig Pfeifer (orgs.), pp. 620-672; e ao ensaio,
“Das M edium der Kunst”, in Delfin, 4, 1986, pp. 6-15.
3 Niklas Luhm ann. “Das Kunstwerk u nd die Selbstreproduktion d er Kunst”, p. 624.
P a t o l o g ia s no S iste m a da L it er a t u r a
4 Wolfgang Iser. Das Literaturverständnis zwischen Geschichte und Zukunft, Sankt Galen, 1981,
p. 20.
5 Niklas Luhm ann. “Isl Kunst codierbar?”, p. 249.
6 Neste sentido, são sintom áticos títulos com o o de Hans R obert Jauss, Kleine Apologie der
ästhetischen Erfahrung. M it kunstgeschichtlichen Bemerkungen von Max Imdahl, Konstanz, 1972.
7 Niklas L uhm ann. “Das Kunstwerk u nd die Selbstreproduktion der Kunst”, p. 661.
82
'
P a t o l o g ia s no S iste m a da L it er a t u r a
g
tema da arte . Desenvolverei minha abordagem a partir dessas observações,
condensadas na provocação contida no próprio título do ensaio: “Patologias
do sistema da literatura”. Não ignoro que se trata de uma metáfora pro
blemática; reconheço inclusive que não é fácil identificar o elemento pato
lógico no sistema da literatura. No entanto, prefiro m anter a provocação
contida na metáfora, em lugar de substituí-la pela pureza filosófica e a
inocência pragmática de conceitos mais usuais.
Tenho dois objetivos ao adotar uma abordagem luhmaniana. O
primeiro se relaciona à questão da sobrevivência dos estudos literários.
Cada vez é mais difícil definir seu objeto, pois o conceito tradicional que
fundam entou a institucionalização da disciplina “literatura” perdeu sua
validade. Hoje em dia, praticamente qualquer texto pode encontrar um
leitor que o lerá “simplesmente” por prazer, e neste caso tanto o texto
quanto o leitor se situam no limite do sistema da literatura. O espetacular
êxito de O nome da rosa o confirma. Tal mudança não significa que os
estudos literários abandonarão Cervantes, Shakespeare, Balzac e Dostoievski,
mas deveríamos aproveitá-la para estimular a discussão sobre o futuro dos
estudos literários.
Meu segundo objetivo se relaciona a um método que permita
apreender possíveis mudanças no campo dos estudos literários. A exemplo
do que fez Luhmann no ensaio, “A obra de arte e a auto-reprodução da
arte”, apresentarei um esboço esquemático do processo de diferenciação
no “sistema da arte" (sistema da literatura). No entanto, ao contrário de
Luhmann, destacarei as relações entre função sistêmica e o desenvolvimento
da codificação sistêmica/programação sistêmica. Acredito que os problemas
relativos ao sistema da arte se originam na diferenciação entre código e
programas e são conseqüências indiretas desta função especial. Demonstrar
a existência de uma relação “patológica” entre código e programas consti
tuiria contribuição (modesta) à teoria dos sistemas sociais. Ora, uma vez
que o prórpio Luhmann, por motivos óbvios, tem-se concentrado no estu-
& do do relacionamento da diferenciação sistêmica com a emergência do
código, sobretudo através de instâncias bem-sucedidas, a história paralela
de um desenvolvimento que, na melhor das hipóteses, talvez termine numa
aporia ajudará a identificar as condições favoráveis para uma diferenciação
exitosa de sistemas. Numa formulação negativa, esta história esclarece os
Iter
f c . — ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------ -----------------------------------------------------
8 Ver “Ist Kunst codierbar?” e “Das Iíunstwerk und die Selbstreproduktion der Kunst”.
83
P a t o l o g ia s no S istem a da L it er a t u r a
riscos que tal diferenciação corre. Em resumo, irei focalizar tanto as dificul
dades de coordenação entre função e codificação sistêmica quanto os pro
blemas decorrentes de uma diferenciação “infeliz” entre código e progra
mas. Estou empregando o termo “infeliz” na acepção consagrada por Austin.
Ñas próximas páginas, contudo, intuições sociologicamente rele
vantes serão utilizadas como produtos secundários no quadro de referên
cias de um panorama histórico da “Idade Média até os dias de hoje”. E
desde já reconheço que este panorama poderá ser considerado superficial
pelos especialistas de períodos históricos determinados. Na primeira seção,
pretendo concentrar-me na passagem do século XI ao século XII, época em
que a poesía provençal dos trovadores estimula a emergência da função que
caracterizaria o sistema da literatura até o século XX. Trata-se contudo de
uma função ainda sem código específico. Na seção seguinte, darei destaque
à passagem medial do manuscrito à palavra impressa. Acredito que nessa
mudança encontraremos não somente a origem do fenômeno de “comuni
cação compacta”, segundo Luhmann o elemento básico do sistema literá
rio9, mas também evidências para a estreita relação entre a função do
sistema literário e o novo meio. Portanto, durante os séculos XVI e XVII
(tema da terceira seção), e, em virtude de sua função específica, uma vez
mais a literatura se encontrou exposta ao domínio do subjetivismo e da
temporalização. Desse modo, o caminho para a diferenciação de sistemas
ficou bloqueado. Em conseqüência, ocorreu uma superposição de progra
mas e uma obstrução particular na normalização dos sistemas de operação
- conforme demonstrarei na quarta parte. Essa superposição engendrou
uma autêntica mania, que é a de definir a unidade da “literatura” através
de formulações paradoxais. Na última parte deste ensaio, proporei que tais
formulações - aliás, semelhantes aos aforismos de Wittgenstein, segundo os
quais a filosofia deve sua existência ao contágio das ambigüidades da lin
guagem - foram preservadas com fervor crescente na medida em que a
função sistêmica da literatura se revelou cada vez mais precária no presente século.
E a hipótese com que principio minha argumentação é derivada desta
conjectura: o código e os programas do sistema literário chamam a atenção
do crítico literário e mesmo do simples diletante para fenômenos que na
verdade se encontram num momento de dissolução.
9 Niklas L uhm ann. “Das Kunstwerk u nd die Selbstreproduktion d er Kunst”, pp. 626ss.
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P a t o l o g ia s no S iste m a da L it er a t u r a
10 Para um a síntese bem refletida sobre as pesquisas relativas a G uilherm e IX, recom endo o
ensaio de Michel Zink, “T roubadours et trouvères”, in Précis de littérature française du moyen
âge, Daniel Poirion (org.), Paris, 1983, especialm ente pp. 129ss.
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P a t o l o g ia s no S istem a da L it er a t u r a
11 Para este tópico, ver m eu ensaio, “Beginn von ‘L iteratur’/A bschied vom Körper?”, em Der
Ursprung von Literatur, Gisela Smolka-Koerdt, Peter-M ichael Spangenberg e D agm ar Tillm ann-
Bartylla, M ünchen, 1988, pp. 15-50.
12 Em benefício da simplicidade, tratarei o nom e G uilherm e IX como se estivesse lidando com
o nom e de um autor m oderno, em bora reconheça o caráter problem ático desta escolha,
já que a relação entre gestos aulo-referenciais no texto e a identidade do criador do texto
perm anece m uito m enos clara do que na época m oderna.
13 Citado da edição de Alfred Jeanroy. Les chansons de Guillaume IX, Duc d'Aquitaine - 1071-
1127, Paris, 1964, pp. 13ss. T radução brasileira de A ugusto de Cam pos. Verso, reverso,
controverso, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 21.
86
P a t o l o g ia s no S istem a da L it er a t u r a
14 Já sugeri a associação do conceito de “jo g o ”, tal como desenvolvido por Huizinga, ou seja,
com o um a form a de interação, com o conceito de “carnaval”, tal com o proposto p or
Bakthin. Além disso, sugeri associar esses dois conceitos à reconstrução da cultura cortesã
em “L ite ra ris c h e G eg en w elten , K arn e v a lsk u ltu r u n d d ie E p o ch en sch w e lle vom
Spätm ittelalter zur Renaissance”, in Literatur in der Gesellschaft des Spätmittelalters, H ans
U lrich G um brecht (org.). M ünchen, 1980, pp. 95-145.
15 Tradução brasileira de Augusto de Campos. Verso, reverso, controverso, São Paulo, Perspectiva,
1978, p. 21.
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P a t o l o g ia s no S iste m a da L it er a t u r a
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P a t o l o g ia s no S istem a da L it er a t u r a
são elementos de um mesmo jogo. O jogo se realiza fora das regras explí
citas da moralidade, e tal transgressão tem de ser intencional. Segundo as
famosas regras do amor cortês, estabelecidas por Andreas Capellanus no
século XII tardio, a marginalidade moral do amor cortês já se encontrava,
talvez com alguma ironia, tão firmemente codificada, que “matrim ônio” e
“amor cortês” representavam conceitos contraditórios: non decet amare, quarum
pudor est nuptias affectare 8 (Não convém amar aquelas cujo pudor ê aspirar às
núpcias). Esse fator sem dúvida “indicava tanto a contingência da concepção
normal da realidade quanto a existência de outras possibilidades”.19 Entre
tanto, ao menos em aparência, a função do jogo do amor cortês não se
limitava à moral sexual. A canção mais conhecida de Guilherme IX se
resume a uma sucessão de negações:
Fiz um poema sobre nada:
Não é de amor nem é de amada,
Não tem saída nem entrada,
Ao encontrá-lo
Ia dormindo pela estrada
No meu cavalo20.
Naturalmente, estes versos desempenharam importante papel nas
projeções românticas e pós-românticas da imagem do poeta Guilherme de
Poitiers. Foi precipitadamente considerado “niilista”, porque lhe atribuí
ram uma vontade de criar ex nihilo. Contudo, é fundamental observar que,
na seqüência da estrofe, as negações não convergem. A estrutura semântica
básica dos versos e das estrofes reitera um padrão extremamente simples,
ainda que bastante raro em textos: “não a’’ e “também não b”. Ou seja,
“não amor cortês” e “também não a moralidade convencional”. Na maior
parte das estrofes, os versos finais se distanciam do mundo cotidiano, sempre
que é necessário escolher uma alternativa: “Fiz um poema (...) /Ao encontrá-
lo/Ia dorm indo pela estrada/N o meu cavalo”. Nas estrofes seguintes, o
sentimento se intensifica:
18 E. Trojel (org.). Andreae Capellani Regii Francorum De Amore Libri Tres, M ünchen, 1964, p.
310.
19 Niklas L uhm ann. “Das Kunstwerk u nd die Selbstreproduktion d er Kunst”, p. 624.
20 Tradução brasileira de Augusto de Campos. Verso, reverso, controverso, São Paulo, Perspectiva,
1978, p. 27.
89
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21 Idem, ibidem.
90
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23 Idem, p. 108.
92
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24 Citado da edição de Alfred Jeanroy. Les chansons de Guillaume IX, Duc d’Aquitaine — 1071-
1127, Paris, 1964, p. 18.
25 Idem, p. 28.
93
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26 Sobre a estrutura e a prática das canções manuscritas (cancioneros) ibéricas, ver o excelente
estudo de G isela Sm olka-K oerdt. Die iberischen Liedersammlungen von 1450-1600, Siegen,
1987.
27 Niklas L uhm ann. “Das Kunstwerk u nd die Selbstreproduktion d er K unst”, p. 628. Nesse
contexto, a Vita Nuova de D ante é um a obra paradigm ática.
94
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28 Nesta passagem, estou resum indo um trabalho mais minucioso, Eine Geschichte der spanischen
Literatur, Frankfurt, 1990, especialm ente o capítulo “1474-1556”.
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29 Ver Fernando Rojas. La Celestina, Julio C ejador y Frauca (ed.), vol. I, M adrid, 1968, pp. 24ss.
SO Um a prova do que digo é o livro Der Ursprung von Literatur, Gisela Smolka-Koerdt, Peter-
M ichael Spangenberg e D agm ar Tillm ann-Bartylla (orgs.). M ünchen, 1988.
31 Esta relevante hipótese, no contexto da história literária, pertence a D agm ar Tillm ann-
Bartylla.
32 O btive im p o rtantes inform ações sobre os rom ances sentim entais com C laudia Krülls-
H eperm ann.
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33 Luiz Costa Lim a tem estudado as conseqüências desta associação da m oralidade para o
desenvolvim ento da ficcionalidade na literatura. V er O controle do imaginário. Razão e
imaginação no Ocidente, São Paulo, 1984; ver tam bém Sociedade e discurso ficcional, Rio de
Jan eiro, 1986.
34 V er Niklas L uhm ann. Soziale Systeme. Grundriss einer allgemeinen Theorie, Frankfurt, 1984, pp.
70ss.
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39 Idem, p. 19.
40 Sobre a Querela dos antigos e dos modernos, a Introdução Hans R obert Jauss à reedição do
Parallèle des anciens et des modernes en ce qui regarda les arts et les sciences, de Charles Perrault,
é indispensável, “Ä sthetische N orm en und geschichtliche R eflexion in d er 'Querelle des
anciens et des modernes'", M ünchen, pp. 8-81.
41 Parallèle, I, 11. (Tradução de Blum a W addingion Vilar)
102
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P a t o l o g ía s no S iste m a da L it er a t u r a
44 M inha orientação acom panha o esquem a que Luhm ann, com um êxito m uito m aior, aplicou
à análise do processo de reestruturação sim ilar ocorrido no sistema legal. Ver Okologische
Kommunikation, O pladen, 1986, p. 95.
45 Na verdade, o tem a central da prim eira parte de Aj palavras e as coisas, Paris, 1965, p. 309.
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subjacente a sua argumentação, ele viu-se diversas vezes às voltas com o belo
real. No entanto, no contexto do meu argumento, prefiro explorar outro
aspecto, ou seja, a estratégia de Diderot para lidar com o “excesso de
poetologia”. Assim, ele procurou conciliar definições diversas de arte e
literatura, realocando-as no sincronismo do processo comunicativo; muito
embora essas definições fossem originadas em diferentes situações históri
cas e distintas a ponto de serem mutuamente excludentes. Em outras pala
vras, o clássico belo absoluto, disfarçado como belo real, foi atribuído à obra
de arte; o belo relativo, disfarçado como belo percebido, foi atribuído ao con
sumidor.
Essas observações sugerem que a tentativa de unificar princípios
mutuamente excludentes é sempre paradoxal. E, conforme Diderot atesta,
sobretudo em seu texto póstumo, Paradoxo do ator. Embora neste caso não
se trate da oposição do conceito meta-histórico ao conceito historicizado de
beleza, mas da oposição entre o conceito racionalista e o conceito sensualista
de teatro. Em seu Paradoxo, Diderot renovou sua estratégia de conciliar
princípios mutuamente excludentes, distribuindo-os entre a obra de arte e
o público consumidor. Segundo o Paradoxo, a qualidade do ator depende
da habilidade em empregar seu corpo de modo a fazer com que o espec
tador acompanhe a ação com uma empatia que elimina todo o distancia
mento: o espectador deve assistir à ação teatral como se ela dissesse respei
to à sua realidade. No entanto, ressalte-se que tal habilidade nasce da
observação sistemática e do distanciamento quanto à cena representada no
palco. Nas palavras de Diderot: “Não é o homem violento, incapaz de
controlar-se, que nos domina; mas, pelo contrário, este é um privilégio
reservado ao homem que sabe dominar-se”.46 Diderot desejava tal parado
xo e até se divertia com ele. Em 14 de novembro de 1769, enviou uma
reveladora carta ao Barão de Grimm: “Trata-se de um belo paradoxo. A
meu ver, é a sensibilidade que torna os atores medíocres; a extrema sen-
sibilidade, os torna obtusos; o sangue frio. e a razão, sublimes”.47
O “belo paradoxo” deve ser compreendido como parte do pano
rama histórico que estou apresentando, ou seja, enquanto solução proble-
matizadora no panoram a das “patologias no sistema da literatura”. No
entanto, os contemporâneos de Diderot obviamente interpretaram o para
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48 Para um análise mais detalhada do conceito de estilo de Buffon, ver H ans Ulrich G um brecht,
“Schwindende Stabilität der Wirklichkeit: Eine Geschichte des Stilbegriffs”, in Stil, pp. 728-
788, especialm ente 754ss.
49 Idem, pp. 757ss.
50 Sobre a origem do conceito de classicismo, ver Hans Ulrich G um brecht, ‘“ Klassik ist Klassik
- eine bew undernsw erte S icherh eit des N ichts’? oder: F un k tio n en d e r französischen
L iteratu r des siebzehnten Jah rh u n d e rts nach S ieb zeh n h u n d ert”, in Französische Klassik:
Theorie, Literatur, Malerei, Fritz Nies e Karlheinz Stierle (orgs.), M ünchen, 1985, pp. 441-
94; e “Phönix aus d er Asche, oder: Vom Kanon zur Klassik”, in Kanon und Zensur. Archäologie
der literarischen Kommunikation, A. Assman e J. Assman (orgs.), M ünchen, 1987, pp. 284-
299, vol. 2.
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51 A tenacidade com a qual o século XIX se ateve a categorias meta-históricas, e a crença fem
“formas originárias”, foi um a intuição a que tive acesso pela prim eira vez através de um a
sugestão de Siegfried J. Schmidt, num sem inário sobre a história do conceito de gênero
que ensinam os ju n to s na U niversidade de Siegen.
52 Sainte-Beuve. “Portraits littéraires”, in Oeuvres, M. Leroy (org.), Paris, 1966, p. 416, vol. 1.
53 V íctor H ugo. “Prefácio do CromwelF. T radução e notas de Celia B erretini, São Paulo,
Perspectiva, 1988, pp. 24-25.
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54 Idem, p. 25.
110
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III
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59 O verdadeiro léxico de sintagmatas deste tipo poderia ser com pilado a partir do índice de
livros com o o de D ietm ar K am per e C hristoph W ulff (orgs.).D ie Wiederkehr des Körpers,
Frankfurt, 1982; e, ainda dos m esm os autores, Der andere Körper, Berlin, 1984.
60 Niklas Luhm ann assim form ulou esta questão: “Como resultado, a intensificação dos reque
rim entos p ara inclusão term in a resultando na exclusão”, in “Das K unstw erk u n d die
Selbstreproduktion d er Kunst”, p. 650.
113
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114
Capítulo 4
“É Apenas um Jogo”:
História da Mídia, Esporte e Público
Um Avanço Tardio
1 Várias passagens deste ensaio rem ontam a discussões no p rojeto sobre “P ré-história e
H istória Inicial da Televisão” dentro do “Projeto Especial de Pesquisa da Universidade de
Siegen: Estética, Pragm ática e H istória da Televisão”, que em p reen d i ju n ta m e n te com
M onika Elsner, T hom as M üller e Peter-M ichael Spangenberg.
“É A pe n a s ijm J o g o ” : H is t ó r ia da M íd ia , E s p o r t e f. P ú b l ic o
116
“É A pe n a s um J o g o ”: H is t ó r ia d a M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
117
“É A p e n a s um J o g o ”: H is t ó r ia d a M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
3 Ver Niklas Luhm ann. Soziale Systeme: Grundriss einer allgemeinen Theorie, Frankfurt, 1984> pp.
331ss, especialm ente à p. 337: “Em lugar disso, o corpo parece perfeitam ente adeqüado
a ser um foco de falta de sentido, quando ele não persiste em pura realidade mas serve,
da perspectiva do esporte, como o ponto de partida para sua própria esfera de significado.
O esporte não precisa nem tolera qualquer ideologia - o que de form a algum a eXclui SeU
m au uso político. Ele apresenta o corpo que em nenhum outro lugar é tão interisatneftte
reivindicado e o esporte legitim a a atitude em relação ao próprio corpo, em relação ao que
o corpo significa em si mesmo - não desprovido de ascetismo, sem dúvida, mas basicam ente
como seu exato oposto, isto é, não negativo, porém positivo. E o faz sem estar preso aos
dom ínios do significado de outros an tecedentes. C ertam ente, o esporte é considerado
saudável; mas tam bém esse contexto de sentido term ina reto rn an do ao próprio corpo”.
118
“É A pen a s um J o g o ”: H is t ó r ia da M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
Estruturas Emergentes
4 Para o conceito de jogo, ver Hans Ulrich Gumbrecht. ‘“Mens sana’ und ‘Körperloses Spiel’/
Sinnloses Treten’und ‘In corpore sano’”, in Sprache im technischen Zeitalter, 92, 1984, pp.
262-278.
119
“É A pen a s um J o g o ” : H is t ó r ia da M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
A sem ana que começava com o Whitsunday, originalm ente White Sunday, assim cham ado pela
tradição de vestir os recém-balizados de branco, ou Pentecostes, sobretudo os três prim eiros
dias dessa sem ana. (Nota da T radutora)
120
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5 Cf. Niklas Luhm ann. Soziale Systeme, pp. 323ss. Hans Ulrich G um brecht. “T he Body vs. the
Printing Press: M edia in the Early M odern Period, M entalities in the Reign o f Castile, and
A nother History of Literary Form s”, in Poetics, 14, 1985, pp. 209-227.
121
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poder que não supõe a presença do corpo. Nesse sentido, aquilo que
Gutenberg possibilitou, tornou-se obrigatório pelas reformas e revoluções
dos séculos XVIII e XIX.
Certamente, a existência cotidiana, determinada pelos novos sis
temas políticos, não correspondia em todos os seus aspectos aos sonhos do
Iluminismo ou à auto-imagem coletiva oficial. Nesse sentido, Niklas Luhmann
chamou a nossa atenção para o fato de que a ampliação do ideal da
comunicação criadora de consenso, estendendo-a dos círculos conhecidos
dos philosophes a todo o espaço social, esteve desde o início fadada ao
fracasso. Michel Foucault reconstituiu a forma como o “autocontrole” do
cidadão cresceu a partir do exercício físico do poder estatal na sociedade
feudal: o domínio e a contenção de (numerosas) necessidades corporais
através da manutenção rigorosa da “moralidade civil”. Sob essas condições,
todas as formas específicas de jogos que destacavam o corpo e o espírito,
que haviam anteriormente funcionado (pelo menos desde o início do período
moderno) enquanto respectivas disposições de socializações específicas de
classe, agora se uniam numa nova esfera, a do tempo de “lazer”.6 Sua
unidade interna, extremamente complicada, torna-se visível no momento
em que se reconhece que, ao menos hoje, formas de comportamento e de
ação infinitamente diferenciadas na esfera do lazer são sempre enfocadas
a fim de realizar justamente uma coisa: compensar o hiato entre a expe
riência da existência cotidiana e a auto-representação formulada pelas so
ciedades modernas. E, uma vez que tal compensação só se torna viável
onde não é reconhecida como compensação, desde o início do século XIX,
a explicitação dos interesses do esporte e da literatura tem sido vista como
uma atitude “vulgar”. Assim, eles parecem estar mantendo uma segura
distância em relação ao mundo cotidiano dos objetivos.
Nessas circunstâncias, existem na sociedade burguesa dois modos
básicos de comportamento de lazer. O comportamento considerado “exi
gente”, “sério”, e outro, “trivial”. Essa dicotomia é acompanhada por nova
diferenciação que, desde o início do período moderno, pode ser observada
entre os jogos que enfatizam o corpo e os jogos que enfatizam o espírito,
entre esporte e literatura. No nível “sério”, a literatura e o esporte são
experimentados como formas de experiência subjetiva “autêntica”; no nível
6 Ver Hans Ulrich Gumbrecht. “Chants révolutionnaires, maîtrise de l’avenir et les niveaux
de sens collectif’, Revue (¡’Histoire Moderne et Contemporaine 30, 1983, pp. 235-256.
122
“É A p e n a s um J o g o ”: H is t ó r ia da M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
123
“É A pen a s um J o g o ”: H is t ó r ia d a M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
XIX e XX, tem-se mostrado mais resistente à mudança histórica. Por outro
lado, não podemos sequer imaginar algo como um “espetáculo trivial clás
sico”, exceto onde estes tenham sido estilizados como “cultura elevada” ou
como “figuras simbólicas nacionais” e, assim, retirados do m undo de espe
táculos triviais. Foi isto que aconteceu com os heróis do cinema mudo e
com alguns heróis esportivos, e parece prosseguir hoje com as corridas de
automóvel do início do século XX e com os romances de Karl May. Mas,
normalmente, uma incessante renovação na mídia e em seu conteúdo ocorre
na esfera de divertimentos “triviais”. Uma quantidade de desenvolvimentos
individuais dentro desta dinâmica sugere que, vista em conjunto, esta tem
se caracterizado por um crescente distanciamento do conjunto tradicional
de formas literárias e por uma intensificação de uma presença (ilusória) do
corjDO. Colette, talvez a romancista mais bem sucedida da França no século
XX , fez sua estréia na virada do século com uma série de romances que
fizeram época em torno de Claudine, uma heroína mais ou menos auto
biográfica. De início, seus livros apareceram sob o pseudônimo “Willy”, o
pseudônimo literário do primeiro marido de Colette, um cordial empre
sário da indústria do entretenimento. Entretanto, segundo parece, quando
Colette percebeu a atração erótica que a série Claudine exercia nos pú-
blicos-alvo heterossexuais e homossexuais, não só começou a publicar novas
edições de seus romances sob seu próprio nome (artístico) - naquela oca
sião, ela esteve a maior parte do tempo separada de Willy -, mas também
raramente perdia qualquer oportunidade de exibir publicamente sua bio
grafia não-ficcional, e sobretudo seu corpo, como a “realidade verdadeira”
subjacente aos romances de Claudine. Com um repertório de pantomimas
as mais banais, ela viajou pelas cidades do interior da França e fez história
em 1906, ao desnudar os seios, noite após noite, em tal espetáculo. No
entanto, apenas em 1907 a calculada autopromoção atingiu seu apogeu:
num certo Rêve d ’Egypte, no Moulin Rouge investiu pesadamente, Colette
representava uma múmia que era beijada, e assim trazida de volta à vida,
por um arqueólogo. O papel do arqueólogo foi desempenhado - sob um
nome estranhamente inventivo, ‘Yssim” - pelo novo amante da escritora, o
Marquês de Belbeuf, mais conhecido por suas namoradas como “Missy”.
7 A respeito de Colette, ver a biografia - e sobretudo, as ilustrações que são tão im portantes
para a argum entação aqui levantada - de autoria de Geneviève D orm ann. Amoureuse Colette,
Paris, 1984.
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“É A pe n a s um J o g o ”: H is t ó r ia da M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
8 Bertold Brechl. Schriften zur Politik und zur Gesellschaft, in Gesammelte Werke, Frankfurt, 1967,
p p. 90ss.
9 Idem, p. 28.
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“É A pen a s um J og o”: H is t ó r ia d a M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
10 Die Olympischen Spiele 1936 in Berlin und Garmisch-Partenkirchen, A llona-B ahrenfeld, 1936,
p. 18, vol.2.
11 Die Olympischen Spiele, p. 101, vol.2.
128
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“É A p e n a s u m J o g o ”: H is t ó r ia da M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
14 Kurt W agenführ. Anmerkungen zum Fernsehen 1938 bis 1980, M ainz/S tuttgart, 1983, p. 23.
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“É A pe n a s um J o g o ”: H is t ó r ia d a M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
16 Para um a visão mais diferenciada desta instituição, ver o excelente estudo Le Collège de
Sociologie: 1937-1939, D enis H ollier (org.), Paris, 1979.
17 Le Collège de Sociologie, p. 18. (T radução de Blum a W addington Vilar)
r
“É A pe n a s um J o g o ”: H is t ó r ia da M íd ia , E s p o r t e e P ú b l ic o
que não haviam ainda, como diria Bataille, consumado o pecado da civi
lização. Mais tarde Bataille prosseguiu estilizando o sonho de um erotismo
cuja intensidade física levaria necessariamente à morte. Ele descobriu um
sorriso nos rostos de vítimas executadas ou torturadas que considerava
como a expressão de uma realização física negada pela civilização.
E, finalmente, foi também na Paris dos anos 30 que a chansonnière
Edith Piaf começou sua espinhosa carreira, cujo final foi compartilhado
por toda a nação francesa. Ela não é um exemplo notável só porque a
indústria de entretenim ento fez um esforço, semelhante ao que vimos com
relação a Colette, para apresentar suas canções como expressões condensadas
de sua vida e, sobretudo, de seu sofrimento. A maior parte de seus textos
tem o efeito de parecerem versões pop da filosofia pan-erótica de Bataille
- “heureux/se à s’en mourrif. Mesmo podendo excluir qualquer influência
direta, existe algo viável na hipótese de que as canções de Piaf fossem uma
produção ajustada à mídia de um novo sentimento de vida para os inte
lectuais - isto é, a reação destes à experiência da dicotomia corpo/espírito.
Portanto, não foi nenhum a surpresa que a imprensa francesa e a norte-
americana se extasiassem diante do caso amoroso de Piaf com Mareei
Cerdan, que se tornara o campeão mundial de peso médio, em Nova
Iorque, a 21 de setembro de 1948. Em 16 de junho de 1949, ele perdeu
o título e, na manhã de 28 de outubro de 1949, m orreu no acidente aéreo
de um Super Constellation sobre os Açores 18 . Em seu desespero, a imprensa
sentimentalista reportava, Piaf acusava-se de ter matado Cerdan com seu
amor, pois seu amante estava a caminho de encontrá-la em Nova Iorque.
Aqui, um pouco antes dos anos cinqüenta, os mitos e as fascina
ções centrais de uma das grandes épocas de entretenimentos estão reunidos
num a única história - o pugilista Cerdan, cuja vida fora dom inada pela
violência física a tal ponto que parecia haver pouco espaço para uma
simpática disposição infantil; um novo erotismo, cantado por Piaf em con
certos e em discos, cuja intensidade foi acrescida por um pathos específico,
através do risco im plícito da destruição do corpo; o avião, em que
tecnologicamente materializavam-se o intelecto humano e a physis - todos
esses elementos estavam uma vez mais reunidos num a unidade simbólica
mas sempre perigosa. O que permanece presente hoje, fisicamente presen
18 Isto, segundo um livro, form atado no estilo de um society tabloid, de D om inique G rim ault
e Patrick M ahé. Eine Hymne an die Liebe: Edith P iaf und Marcel Cerdan, H am burg, 1984.
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te, é a voz de Piaf, pois o efeito físico das gravações de sua voz, como uma
objetivação de seu corpo sobre os ouvintes, é mais material, mais “real” do
que a imagem de um corpo jamais poderia ser19.
E uma das convenções dos críticos cinematográficos desvalorizar
os filmes musicais dos anos 30 como um declínio em relação à arte do filme
mudo nos anos 20; aqueles são depreciados como “simples jogos” com
novas possibilidades técnicas. Mas talvez o sucesso explosivo das gravações
em discos e o entusiasmo por filmes musicais tenham ocorrido precisamen
te por causa da presença corpórea das vozes que eles tornavam mais “pal
páveis”, por assim dizer. Os musicais, portanto, representariam mais do
que apenas uma perda de qualidade estética. Em outras palavras, os mu
sicais permitiam uma reação menos frustrante à experiência de perda
corporal. Em todo caso, os filmes musicais floresceriam novamente por
volta dos anos 80, juntam ente com o corpo, que, nas academias de ginástica
e nos seminários pós-graduados de filosofia, mais uma vez moveu-se para
o centro de interesse.
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Capítulo 5
0 Campo Não-Hermenêutico
ou a Materialidade da Comunicação*
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didade da alma. Deste modo, não apenas o corpo é um instrum ento secun
dario de articulação, também a expressão se revela insuficiente. Em virtude
desta premissa, no interior do paradigma hermenêutico se impõe a necessi
dade da interpretação. Interpretação: ou seja: processo que, principiando
pela insuficiência de uma superfície qualquer, dirige-se à profundidade do
que vai na alma de quem se expressa. Como resultado, estabelece-se uma
identidade entre o que o sujeito desejava expressar e o entendim ento do
intérprete. O paradigma hermenêutico demanda, pois, o par expressão/
interpretação. Interpretação cuja necessidade nascia da insuficiência intrín
seca à toda expressão. Estas premissas básicas eram compartilhadas por
todos e não apenas pelos especialistas. Desejo agora mencionar duas siste
matizações acadêmicas do campo hermenêutico.
A primeira foi a de Wilhelm Dilthey. A ele se atribui a honra de
ser o fundador da hermenêutica acadêmica, para mim uma pequena hon
ra. A segunda foi a de Martin Heidegger. Com Heidegger se alcança a
apoteose da hermenêutica - não tratarei de Hans-Georg Gadamer, porque
na história da hermenêutica sua importância não se iguala à de Dilthey e
Heidegger. A importância de Dilthey deriva da criação de uma disciplina
acadêmica, a partir das premissas indicadas. Foi ele o primeiro sistematizador
do que hoje denomina-se The Humanities, no m undo anglo-saxão; Les Sciences
Humaines, no m undo francófono, e, na Alemanha, o que é ainda mais
interessante, Geisteswissenschaften, literalmente, as “Ciências do Espírito”.
Dilthey tornou explícito o impulso aglutinador de tais disciplinas. No caso,
o fato de estarem todas fundadas no ato de interpretação. Interpretação em
seu sentido hermenêutico, como compensação de uma expressão insuficien
te. Dilthey afirmava de modo claro que o conceito de interpretação, embo
ra principie num a superfície material, objetiva alcançar uma dimensão que
perm ita o resgate da plenitude da interioridade espiritual. E, acrescentava,
a materialidade de superfície com a qual se iniciara - materialidade que
se poderia designar materialidade dos significantes - perde importância.
Ele o diz com todas as palavras: nas Ciências do Homem - ou Ciências do
Espírito - toda e qualquer condição material é apenas um elemento secun
dário, tanto no ato de expressão quanto no de interpretação. Deste modo,
se a herm enêutica se fundam enta no ato interpretativo, apresenta como
segundo pressuposto básico a exclusão de toda materialidade.
Considero Heidegger importante neste contexto porque para ele
a interpretação não é apenas o centro das Ciências do Espírito, senão o
centro mesmo da existência humana. Sua perspectiva se revela muito mais
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O leitor pode consultar a tradução brasileira do livro de W olfgang Iser, Das Fiktive und das
Imaginäre. Perspektiven literarischer Anthropologie (1991). T radução de Joh an nes K retschm er.
0 Fictício e o imaginário. Perspectivas de uma antropologia literária, Rio de Jan eiro, EdU Eiy,
1996. (N ota do T radutor)
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IV
Nos parágrafos anteriores, caracterizei o campo não-hermenêuti-
co. Gostaria agora de apresentar alguns conceitos próprios a esse campo;
portanto, independentes do tradicional campo hermenêutico. Desse modo,
principio uma resposta à pergunta que fiz sobre a reestruturação do traba
lho teórico sob as condições pós-modernas. No entanto, apenas vou propor
uma resposta incompleta: trata-se de um work in progress que deverá ser
sistematizado em trabalhos futuros.
A primeira pergunta teórica radicalmente nova coloca a seguinte
indagação filosófica: o que é uma “forma”? Afinal, se, de fato, a distensão
entre os campos está em curso e, se, em verdade, as novas perguntas
investigam as condições da possibilidade de sentido, então precisamos
enfrentar um duplo problema: o da passagem da substância do conteúdo
à forma do conteúdo e o da passagem da substância da expressão à forma
da expressão. Como é possível que algo não estruturado adquira forma?
Portanto, acredito que a tarefa inicial é a definição do conceito de forma.
Uma hipótese imediata “profetizaria” a importância crescente que o pro
blema filosófico da forma assumirá nos próximos anos. A partir da perspec
tiva aberta pela teoria sistêmica, proponho a seguinte definição: forma é a
unidade da diferença entre referência externa e interna. Com essa definição,
assinalo que todo objeto a que se atribui como qualidade uma forma, deve
ter, simultaneamente, tanto uma referência interna quanto uma externa;
pois, sem esta, aquela seria impossível. Afinal, sempre que considero a um
“Eu” enquanto sistema, necessito considerar outros que não o sejam. Por
tanto, o que em termos tradicionais esboçaríamos como uma linha que
circunscreve um objeto (ou um sistema), tal linha seria precisamente a
forma. A parte circunscrita pela linha constitui a referência interna; a parte
restante, a referência externa. A linha que circunscreve o sistema é o único
ponto geométrico que representa a unidade entre as duas referências, pois
não há como distinguir em seu contorno a parte pertencente à referência
interna da parte que lhe é exterior. Essa definição possui ainda o mérito
de recolocar o problema da forma a partir de um ponto de vista filosófico.
O segundo conceito que se destaca neste contexto é o de acoplagem,
oriundo da teoria biológica dos sistemas; conceito desenvolvido por
Hum berto M aturana e Francisco Varela. A valorização do conceito de
acoplagem relaciona-se com a pergunta sobre as condições de passagem da
substância do conteúdo à forma do conteúdo. Esse conceito também ajuda
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Capítulo 6
0 Futuro dos Estudos de Literatura?1
1 Com a denom inação “estudos de literatu ra”, refiro-m e ao conjunto (heterog ên eo ) das
atividades acadêmicas praticadas por D epartam entos de Literatura e presentes nos currículos
da área, nos últimos dois séculos. Sem subestim ar a considerável diferença entre as tradições
anglo-am ericana e continental nesse cam po, uso a expressão com o um equivalente para a
noção germ ânica de Literaturwissenschaft. M inha reflexão acerca do futuro dos estudos de
literatura tirou largo proveito de longas conversas com Joh n B ender e de três cursos de
graduação que m inistrei com Jeffrey Schnapp, D aniel Selden e David Palum bo-Liu, no
D epartam ento de Literatura Com parada de Stanford, entre 1991 e 1993. A eles, aos nossos
alunos e aos colegas que ouviram versões anteriores deste ensaio, na form a de conferências
em Berlim e Berkeley, quero agradecer as várias críticas e sugestões.
2 Lyotard, Jean-François. The Inhuman. Reflections on Time, Stanford, 1991, p. 8.
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Se relatei esse episodio local, foi porque, a meu ver, ele resume
uma estrutura algo paradoxal no nosso meio acadêmico, estrutura essa que
tem de ser levada em conta, se se pretende discutir - e tal é o propósito
deste Germanistisches Kolloquium - a relação entre a Literatura Comparada
e qualquer das “filologías nacionais” existentes (entre elas, a germánica).
Uma discussão desse tipo fica destituída de valor prático, a não ser que
inclua a questão (em si talvez impossível) do futuro dos estudos de literatura
como um todo, questão essa que só pode ser focalizada dentro do contexto
mais ampio do grupo de disciplinas chamado “Ciências Humanas”. Assim,
Literatura Comparada e Germanística aparecem a princípio, num a relação
de simetria, como duas disciplinas pertencentes ao campo dos estudos de
literatura, isto é, a um subcampo das Ciências Humanas. Por outro lado,
essa relação pode ser vista como assimétrica, na medida em que a Litera
tura Comparada se quer um espaço institucional que tematiza tanto o seu
próprio futuro quanto o de disciplinas fronteiriças. Mas, se a Literatura
Comparada de fato oferecer um espaço para discutir o futuro das Ciências
Humanas e das disciplinas individuais integrantes desse grupo, daí derivará
a paradoxal conseqüência de que ela tenderá a desaparecer do mapa de
questões, assim que enfocar a sua própria relação com uma dessas discipli
nas. O simples fato de tais discussões estarem ocorrendo no interior da
Literatura Comparada já constitui uma resposta - ao menos parcial - à
pergunta sobre sua função específica. Pode-se ainda defender a hipótese de
que até essa função seria meramente transitória, já que a Literatura Compa
rada tem por alvo uma situação “além de si mesma”. Assim sendo, parece-
me inevitável reformular a pergunta acerca das relações sincrónicas entre
G erm anística e L iteratura Com parada, de m odo que os seus pólos
constitutivos excluam a Literatura Comparada: a pergunta seria então acer
ca das relações diacrônicas entre as disciplinas literárias no seu atual estado
e o futuro das Ciências Humanas como um todo.
Nas páginas que seguem, proponho uma fragmentação do campo
aberto por essa pergunta em quatro seções. Principio a argumentação por
um resumo genealógico das condições sociais e epistemológicas sob as quais
os “estudos de literatura” foram institucionalizados como disciplinas acadê
micas em diferentes nações ocidentais7 durante o século XIX e sob as quais,
7 Por m era falta de com petência específica, não tem atizarei o papel político e cultural das
literaturas nacionais (e das disciplinas acadêm icas correspondentes) em sociedades não
ocidentais. Na Universidade de G enebra, W lad Godzich está conduzindo um projeto de
pesquisa sobre o status das “literaturas nacionais em ergentes” no contexto contem porâneo.
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8 Este esboço de história dos estudos de literatura baseia-se num conjunto de ensaios a ser
editado (em parte, reeditado) em m eu próximo livro: Fragments of a Vanished, Totality. Chapters
from the History of the European Medievalism, a ser publicado pela Johns H opkins University
Press. Os trabalhos de R. H ow ard Bloch e R ainer R osenberg forneceram as principais
diretrizes para a m inha análise.
Ver a tradução brasileira do ensaio, “História da literatura: Fragm ento de um a totalidade
desaparecida?”, in H eidrun K. O linto (org.). História da literatura. As novas teorias alemãs, São
Paulo, Ática, 1996, pp. 223-239. (Nota da tradutora)
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15 Dessa perspectiva, o Formalismo Russo pode ser considerado a prim eira form a da “Teoria da
L iteratu ra”. Veja-se m eu ensaio “Rekurs/Distanznahme Revision. Klio bei den Philologen, in
H.U.G. e Bernard Cerquiglini. Der Diskurs der Literatur - und Sprachhistorie. Wissenschaftsgeschichte
ais Innovationsvorgabe, Frankfurt, 1983, pp. 235-256.
16 Sigo a brilhante palestra inaugural do m eu colega David Palumbo-Liu, “Terms of (In)difference:
Cosmopolitanism, Diversity, and Cultural Politics”, Stanford, February 1991. Para um a docu
m entação histórica sobre as origens da “Literatura Com parada” como disciplina acadêmica, ver
de U lrich W eisstein, Comparative Literature and Literary Theory. Survey and Introduction,
Bloom ington, 1973, pp. 171 e ss.
17 0 livro mais típico desse contexto talvez seja o de I.A. Richards. Science and Poetry, New York,
1926.
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18 Deixo de lado a história do ensino de literatura na Alemanha, entre 1933 e 1945, já que,
de um ponto de vista estrutural, ela pode ser vista como um retorno ao m odelo oitocentista
da historiografia da literatura nacional.
19 Essa tendência está representada em alguns dos textos de Hans Robert Jauss publicados no
início dos anos 70. Ver, em particular, Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung, Konstanz,
1972.
20 C oncordo com a crítica de Siegfried J. Schmidt acerca da ausência de diferenciação socio
lógica, assim como segundo o gênero, ausência muitas vezes estimulada por um a referência
ao “leitor”, no singular. Ver Siegfried J. Schmidt, “Literaturwissenschaft als interdiszplinãres
Vorhaben”, in Johannes Janota (org.), Vorträge des Augsburger Gennanistentags 1991, Tübingen,
1993, pp. 3-19, especialm ente à página 11, vol. 2.
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Sistemas de Referência
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23V er Niklas Luhm ann. Beobachtungen der Moderne, O pladen, H)22, pp. 129-148.
2 4V er nosso ensaio, “Ende des Theorie-Jenseits?”, in Rudoph Maresch (org.), Zukunft oder Ende,
M ünchen, 1993.
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Mapeamento
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29 Claro está que, como prática filosófica e como prática discursiva, a desconstrução não pode
aceitar os conceitos de “representatividade” e de “posição” ou qualquer outro do gênero,
quando se trata de descrevê-la. Refiro-me aqui à reação institucional que a desconstrução
provocou na universidade, reação que, obviamente, não lhe era dado controlar.
30 Estou em penhado em m apear a genealogia desse m ovim ento num livro que deverá ser
publicado em breve sob o título provisório de The Non-Hermeneutic.
31 Não pretendi dar um a intepretação “correta” de Hjelmslev. Ao menos, são convergentes essa
m inha leitura e a de Gilles Deleuze e Félix Guattari in Anti-Oedipus. Capitalism and Schizofrenia.
M inneapolis, 1983, p. 242.
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34 Isso é verdadeiro ao menos para a maioria dos alunos de graduação interessados em temas
literários e culturais. Esse, portanto, parece ser o futuro dos pós-graduados.
35 A expressão é aqui em pregada no sentido proposto por Gilles Deleuze e Félix Guattari in
Toward a Theory of Minor Literature, M inneapolis, 1991.
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Projeto
36 Um novo form ato-padrão para as conferências sobre estudos literários consiste na leitura
tem ática de um rom ance (quase sem pre um rom ance contem porâneo), com um a avaliação
ética cabal da conduta dos protagonistas.
37 Ver nossa crítica no artigo “W hat we N eed to (but do not) Know about ‘Streams of Cultural
C apital’”, in Stanford Literary Review, 1993/94.
38 Resistência essa cuja ênfase com plem entar na leitura tem ática não poderia afastá-la mais do
conceito de “resistência à teoria” definido por Paul de Man.
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41 Ver, por exemplo, de Henry Louis Gates Jr., The Signifying Monkey. A Theory of African-American
Literary Criticism, New Y ork/O xford, 1988. Ver, tam bem , H om i B habha (org.). Nation and
Narration, New York, 1993.
42 Ver, especialm ente, Jam es Clifford, The Predicament of Culture. Twentieth-Century Ethnography,
Literature, and Art, C am bridge/M assachussetts, 1988.
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Referências Bibliográficas