Coleção História Do Tempo Presente: Volume Iii
Coleção História Do Tempo Presente: Volume Iii
Coleção História Do Tempo Presente: Volume Iii
Roraima
2020
UNIVERSIDADE FEDERAL DE RORAIMA
Projeto Gráfico
George Brendom Pereira dos Santos
Capa
Matheus de Oliveira Vieira
314 p. : il.
ISBN: 978-65-86062-31-1
CDU - 981
7 APRESENTAÇÃO
314 REVISORES
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APRESENTAÇÃO
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Estado é, ele próprio, uma relação social”. Sua análise abordará, então, como as
correntes liberal e marxista pensam o Estado. O Estado liberal como uma enti-
dade que paira acima e fora da sociedade, seria o detentor de uma racionalidade
que o conferiria essa transcendência e o monopólio da violência, ambas as carac-
terísticas visavam em última instância, assegurar a vida e a propriedade privada,
tal garantia seria firmada através de um contrato entre governantes e governados.
Nessa direção, Mendonça apresenta como essa perspectiva de análise se desdobra
em diferentes outras, desde os estudos que objetivam comprovar cientificamente
determinada teoria, como ocorre nas Ciências Exatas, buscando repetição de
comportamentos independentemente do tempo e do espaço, engendrando um
caráter a-histórico; até aquelas que ratificam sua posição inatingível, como a
Teoria das Elites, que apregoa a existência de um grupo seleto capaz de guiar os
rumos de uma nação. A corrente marxista, a qual a historiadora se alinha, perce-
be o Estado na sua complexidade e totalidade que tem como aspecto marcante a
luta de classes no seu sentido mais amplo, ou seja, não apenas a oposição de clas-
ses fundamentais, mas, também, as disputas e conflitos que ocorrem no interior
de cada uma delas. Distintamente do liberalismo, a corrente marxista concebe o
Estado não como transcendente e fruto de um acordo contratual, mas arraigado
em inúmeras formas de dominação, sendo uma relação social. Nessa perspectiva,
Mendonça, dedica seu capítulo à análise acerca da concepção de Estado elabo-
rada pelo marxista italiano Antonio Gramsci, nos anos de 1930, considerando
como um dos principais contributos deste intelectual o conceito, como pontua a
historiadora, de “Estado ampliado”, “elaborado a partir de uma análise de cunho
centralmente histórico, quer no tocante à construção das formas de intervenção
social de classes e frações de classe, quer no sentido de imbricar a expansão so-
cioeconômica capitalista à política e, particularmente, ao Estado”. A partir de tal
arcabouço teórico-metodológico, a autora debruça-se sobre um novo viés meto-
dológico, que alia a História das Elites e o pensamento marxista, demonstrando
o quão problemática é esta nova proposta, que tenta convergir conceitos e teorias
diametralmente opostas. Finalmente, a pesquisadora põe em tela, a título de
exemplificação, sua tese de doutorado para demonstrar como a “metodologia
marxista de pesquisa” é “efetivamente operacionalizável”, especialmente a partir
da contribuição gramsciana assinalando a sua importância e a viabilidade dos
estudos marxistas, em particular, do pensamento de Antonio Gramsci para a
compreensão do Estado capitalista.
No capítulo História econômico-social e história do tempo presente, Pedro
Henrique Pedreira Campos evidencia os estudos relativos à História Econômica.
Este campo da História vem nas últimas três décadas dividindo cada vez mais
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ESTADO E PODER:
ELITES, CLASSES E HEGEMONIA
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dos como capazes de consolidar o que imaginavam ser uma história plenamente
“científica”. Daí o privilégio concedido a grandes líderes e estadistas – tidos
como encarnações do próprio Estado - cujas manifestações concretizavam-se
em batalhas, relações internacionais, decisões ou hesitações dos ocupantes dos
postos políticos e governantes, conduzindo a uma leitura “coisificada” ou “per-
sonalista” do que fosse o Estado.
Leituras como essas, derivadas do paradigma liberal, varrem “para baixo
do tapete”, conceitos caros à concepção marxista do Estado, como os de classes
sociais, sujeitos coletivos, disputas de hegemonia, lutas de classe, etc. Antecipo,
pois, que o eixo norteador do capítulo é a premissa de que o Estado é, ele pró-
prio, uma relação social. Todavia, para chegarmos a esta afirmativa, trataremos
das duas grandes matrizes teóricas que foram – e ainda são - concorrentes entre
si, produzindo sentidos antagônicos e presentes, até hoje, nos debates sobre o
Estado: a liberal e a marxista, chamando atenção para alguns de seus desdobra-
mentos contemporâneos, reapropriadas por vários autores.
A matriz filosófica liberal sobrepôs-se por largo tempo às demais, influen-
ciando boa parte das reflexões sobre as bases do Estado e do Poder. Lastreada
numa jovem Economia Política, na Escola Histórica Escocesa, além de contri-
buições de teorias utilitaristas (Fontes; Mendonça, 2012), o paradigma liberal
gestou uma percepção de sociedade como um todo formado por indivíduos “em
estado de natureza”, em pleno exercício de seus interesses egoístas e belicosos,
capazes de inviabilizar, no limite, a reprodução da espécie. Para evitar tal pos-
sibilidade, pensadores liberais definiram o Estado como fruto de um contrato,
firmado entre cada indivíduo e seu governante, capaz de assegurar os chamados
direitos “naturais” fundamentais: a vida e a propriedade, numa reciprocidade
assaz imperfeita, imposta de cima para baixo.
Ainda que um dos méritos dessa matriz tenha sido combater a Igreja e sua
visão do poder emanado do direito divino, o Estado era apresentado como um
pacto bifronte: de um lado, a detenção do monopólio legítimo da violência física
e, de outro, o fato de portar uma racionalidade a ele imanente, fazendo-o pai-
rar acima e fora da sociedade. Daí resultou uma brutal padronização das visões
sobre o Estado, transformado, dessa forma, numa espécie de “ser reificado” ou
numa complexa “engrenagem de aparelhos” situada acima da sociedade e capaz
de “criá-la” e “recriá-la”.
O Estado liberal era apresentado, assim, como um “Sujeito de Razão” deri-
vado do Direito Natural e inerente à tradição iniciada pelos “três grandes pen-
sadores”: Hobbes, Locke e Rousseau, a despeito das várias diferenças entre eles
existentes. Tais divergências seriam superadas em nome de uma questão comum:
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o método por eles gestado, tido como apto a transformar as Ciências Humanas
em algo tão rigoroso e passível de demonstração quanto as Ciências Exatas, mor-
mente a Matemática. Nesse sentido, trataram de criar leis universais da conduta
humana, comprovadas a cada repetição de seu comportamento, verificável em
todo e qualquer tempo/espaço, de forma completamente desistoricizada (Men-
donça, 2014), posto buscarem as regularidades do comportamento moral/polí-
tico dos homens (Bobbio, 1987). Encontramo-nos diante do “Estado Sujeito”
de que nos fala Poulantzas (Poulantzas, 2000), imune e infenso a conflitos e
interferências de movimentos sociais variados. E aqui, por mais paradoxal que
possa parecer, assistimos à transmutação da “negatividade” em “positividade”
contida no Estado, já que diante da fragilidade” da Sociedade, ele se erige em
centro dinâmico da “vida social”.
Por seu cunho a-histórico, a noção de Estado divulgada pelos liberais de-
sembocou numa interpretação da “sociedade civil” como o somatório de indi-
víduos sem atributos intervinculantes, fazendo crer – até os dias atuais - que a
sociabilidade humana somente ocorre no âmbito do político, o que não é fato.
A consolidação do Estado “Sujeito”, a pairar sobre os indivíduos e a sociedade,
dotado de iniciativa própria e imune às pressões sociais dos “de baixo”, é res-
ponsável pela difusão de expressões ainda hoje presentes em discursos cotidia-
nos, tais como “o Estado fez”, “o Estado decidiu” ou mesmo “o Estado visava”,
denegando os conflitos sociais inerentes a cada contexto histórico, já que deste
prescindiam tais pensadores (Mendonça, 1998).
Dessa matriz derivaram várias “linhagens”, resultantes das mudanças po-
líticas relacionadas às lutas populares do século XIX, quando a emergência da
sociedade de massas impôs a necessidade de reconfigurar a teoria. Uma dessas
vertentes foi, justamente, a Teoria das Elites, elaborada por Gaetano Mosca e
Vilfredo Pareto, cuja pré-condição residia no fato de toda sociedade conter, “na-
turalmente”, uma minoria integrada por indivíduos seletos ou iluminados que,
dotados de atributos especiais – como riqueza, conhecimento, dons, etc. – de-
teriam, também “naturalmente”, o poder de dirigir a maioria, consolidando um
conjunto de teses antidemocráticas e anti-igualitárias (Grynszpan, 1999, p. 12).
Princípios como esses são responsáveis, no plano cultural e ideológico, por
transmutar Capitalismo em Neoliberalismo, numa operação destinada a ocultar
e abolir categorias fundantes do primeiro, tais como a superexploração da clas-
se trabalhadora, a superextração de sobretrabalho, a preponderância de grupos
dominantes derivados do Capital Financeiro ou mesmo a existência da luta de
classes (intra e entre elas), dentre outras escamoteações político-ideologicamente
nocivas e desmobilizadoras dos movimentos sociais organizados ou em vias de
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como uma espécie de objeto manipulado por uma classe dominante suposta-
mente homogênea. Apropriações deste tipo devem ser vistas como a 'vulgata'
do marxismo, que originou uma tradição pouco dialética e histórica, de grande
disseminação no meio universitário. Outras linhagens do marxismo, todavia,
ativeram-se às bases originais e fizeram avançar as questões teóricas sobre a com-
posição e transformações do Estado capitalista. Como se percebe, o maniqueís-
mo inerente à matriz liberal de conceber o Estado, não se restringiu apenas a ela,
insinuando-se, até mesmo, junto à vertente marxista citada, de cunho ortodoxo
e igualmente reducionista. Por certo há distinções entre a “vulgata” e a matriz
liberal, sobretudo pelo fato de a primeira admitir que a sociabilidade humana é
coletiva, classista e histórica. Entretanto, supor o monopólio do Estado por uma
única classe ou fração tem resultados igualmente empobrecedores e restritivos.
De uma forma ou de outra, essas leituras do Estado – seja como Sujeito, seja
como Objeto – obscurecem sua visibilidade como a condensação de relações so-
ciais, fruto de conflitos entre sujeitos coletivos organizados junto à da Sociedade
Civil e que, para consolidarem sua hegemonia (capacidade dirigente), visam se
inscrever na materialidade da Sociedade Política ou Estado restrito. Isto posto,
será enfatizada, doravante, uma certa “linhagem” marxista de conceber o Esta-
do, derivada das reflexões formuladas pelo filosofo e militante italiano Antonio
Gramsci.
Retomando as grandes transformações sócio-políticas de inícios do século XX
vale ressaltar que emergiram, no próprio âmbito do marxismo, outras concepções
sobre o Estado, merecendo relevo aquela elaborada por Antonio Gramsci, ainda
nos anos 1930. A grande questão norteadora de suas reflexões é, justamente, a ne-
cessidade de refinar a definição do Estado “ocidental” contemporâneo, priorizan-
do a complexidade de suas determinações e criticando leituras “economicistas” ou
“mecanicistas”. Sua principal contribuição, claramente no âmbito do marxismo,
é o conceito de Estado Ampliado, elaborado a partir de uma análise de cunho
centralmente histórico, quer no tocante à construção das formas de intervenção
social de classes e frações de classe, quer no sentido de imbricar a expansão socio-
econômica capitalista à política e, particularmente, ao Estado.
O conceito de Estado Ampliado propicia analisar a íntima correlação exis-
tente entre as formas de organização das vontades (singulares e coletivas), a ação
e a própria consciência (desenvolvidas no âmbito da sociedade civil) - sempre
enraizadas na vida socioeconômica - e as instâncias específicas do Estado em seu
sentido restrito (sociedade política). Com isso Gramsci supera a dualidade das
análises que contrapunham base e superestrutura, integrando sociedade civil e
sociedade política numa só Totalidade, em permanente inter-relação. O Estado,
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em Gramsci, não seria sujeito nem objeto, porém a condensação das próprias
relações sociais vigentes numa dada sociedade (Poulantzas, 2000), sendo por elas
atravessado e absorvendo, nele mesmo, os conflitos a elas inerentes. Ele resgata
conceitos clássicos do marxismo - como os de sociedade civil e sociedade política
- porém as recria, recriando, simultaneamente, o conceito de Estado - Integral
ou Ampliado - que incorpora, dialeticamente, ambas as instâncias.
Segundo o pensador sardo, não seria mais possível, na análise do Estado
Capitalista contemporâneo, operar com uma lógica dual, tornando-se imperioso
assentá-la numa perspectiva triádica que englobaria, numa só totalidade, a infra-
estrutura (espaço das relações de produção e de trabalho); a sociedade civil (for-
mada pelo conjunto dos sujeitos sociais organizados junto aos chamados apare-
lhos privados de hegemonia, espaços organizadores das vontades coletivas e da
ação política consciente, capitaneados pelos intelectuais orgânicos de uma dada
classe ou fração dela, em contínua disputa pela afirmação hegemônica de seus
respectivos projetos) e a sociedade política – ou Estado restrito, identificado aos
aparelhos e agências do poder público (Mendonça, 2013). Segundo Gramsci, a
peculiaridade do Estado Capitalista Ocidental de seu tempo, consistia no fato
dele jamais pode ser concebido tão somente no registro da coerção pois, se assim
o fosse – levando em conta o contexto italiano de afirmação do fascismo, pano
de fundo de suas reflexões – seria inexplicável que os mais oprimidos e despos-
suídos da Itália (camponeses) venerassem um ditador. O Estado, em Gramsci,
guarda também um espaço de consenso entre os grupos que nele se faziam pre-
sentes, consenso este construído a partir dos sujeitos coletivos organizados junto
aos aparelhos de hegemonia – ou seja, na própria Sociedade Civil - bem como
através da ação do Estado restrito que, igualmente, promoveria e generalizaria a
visão de mundo da fração de classe hegemônica.
Logo, o Estado, em Gramsci, conta com outra dimensão além da força e
do poder político-econômico da burguesia: a cultura. Mas não aquela de sábios
e eruditos (portadores de “dons” especiais), porém aquela emanada do conjunto
dos projetos e visões de mundo (valores, crenças e autopercepções, de indivíduos
e grupos, acerca de seu lugar social) desenvolvidos por cada classe ou fração dela,
em permanente disputa/tensão. Afinal para ele, todos os homens são intelectuais
posto que até os trabalhos físicos mais mecânicos exigem um mínimo de ativida-
de intelectual criadora (Gramsci, 2001, v.2, p. 18). Com isso, Gramsci desvenda
um universo privilegiado para a capacidade organizativa das vontades coletivas
por parte de intelectuais oriundos das próprias classes subalternas. Logo, a Cul-
tura, em Gramsci, remete a reflexão para a questão da Hegemonia, uma vez que,
para ele, esta seria inseparável da Política/Cultura
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“ficar a meio caminho” deste processo é aquele que se poderia chamar de “neo-
elitismo”, que trata de “compatibilizar” conceitos, a meu juízo, incompatíveis
como os de “elites” e “classes”.
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recordar que a teoria das elites, em sua origem, visava combater frontalmente o
Marxismo refutando, sobretudo, a tese segundo a qual o poder político das clas-
ses dominantes derivaria – algo mecanicamente - de seus recursos econômicos.
Na apresentação do dossiê intitulado “Por um retorno à Sociologia das Elites”,
publicado na Revista de Sociologia e Política em 2008, os dois autores acima cita-
dos, a despeito de admitirem certo exagero nas críticas ao Marxismo formuladas
pelos precursores da Teoria das Elites (especialmente Mosca) destacam que um
de seus méritos o fato de terem determinado que
As chamadas ´minorias politicamente ativas´ deveriam ser, para os cientistas políticos,
o objeto de análise mais importante. Dado o caráter oligárquico de todos os gover-
nos, um estudo científico da política teria de estar atento não ao número de go-
vernantes (conforme a classificação aristotélica tradicional: um, poucos, muitos),
mas aos mecanismos sociais e políticos responsáveis pela formação, pelo recruta-
mento, pela socialização e pela conduta dessas minorias” (Perissinotto; Codato,
2008, p. 7, grifos meus).
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como os desprovidos desses bens ou como aqueles que os possuem em menor quan-
tidade (Perissinotto; Codato, 2008, p. 12, grifos no original).
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Vale destacar que o assim chamado “gênero de análise” por eles citado -
tornando o Marxismo comparável a qualquer procedimento metodológico ou
“estilo” analítico -, somente adquire consistência caso referida a uma das linha-
gens marxistas, o Marxismo estruturalista (que não é aqui compartilhado), es-
pecialmente aquele atribuído ao teórico grego Nicos Poulantzas, em torno ao
qual constroem seu artigo, tecendo-lhe incontáveis críticas teóricas. Creio ser
necessária tal ressalva pois um leitor incauto ao deparar-se, inadvertidamente,
com assertivas como essas, arrisca-se a tomá-la como característica de todo o
Marxismo, induzindo a conclusões distorcidas.
Prosseguindo com os argumentos apresentados pelos defensores do que aqui
denomino de “marxismo elitista”, cabe destacar que os dois autores menciona-
dos justificam o porquê de considerarem o conceito de elite um instrumento de
operacionalização empírica para uma análise classista da política, afirmando que
a escolha entre as expressões classe dominante e elite política não consiste em mera
questão terminológica, pois o Marxismo necessita enfrentar alguns problemas a
ele inerentes. Um deles refere-se, justamente, à relação entre poder político e po-
der econômico, diante das múltiplas e complexas conexões existentes entre eles,
relação esta tida, pelos autores, como “irresolvida” no plano operacional. Some-se
a isso a problemática de que, no Marxismo, a questão da classe dominante se
subdivide em dois grandes “enigmas” (Codato; Perissinotto, 2009, p. 145): o
primeiro é se existe, efetivamente, uma classe politicamente dominante ou se a
vida política se resume ao embate entre múltiplos grupos de pressão dotados de
quantum de poder equivalente; já o segundo implica, a meu juízo, em desdobra-
mentos mais sérios: se a classe politicamente dominante é a mesma que domina
economicamente - o que é veementemente questionado por ambos (Codato;
Perissinotto, 2009, p. 145) – eles deixam entrever, nas entrelinhas da assertiva,
a imperiosa necessidade de elementos de mediação entre classe dominante e Estado,
ou seja, as próprias elites (mormente as burocráticas).
Semelhante raciocínio aponta para a questão da "representação" política:
as elites políticas, burocráticas, científicas representam a si mesmas ou aos inte-
resses de classe? Percorrendo todo o artigo datado de 2009, os autores parecem
sugerir que as elites contam com dose considerável de autonomia de atuação,
imaginando, ao que tudo indica, que isso poria em xeque o pertencimento de
classe da burocracia de Estado, o que, de uma perspectiva gramsciana, como a
aqui adotada, soa incabível. Afinal, remontando às reflexões de Gramsci sobre
os intelectuais, vale lembrar que o Caderno12 se inicia com o seguinte questio-
namento: “Os intelectuais são um grupo autônomo e independente, ou cada
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sujeitos analisados, sendo fundamental que estes sejam tomados como expressão
das relações e condições em que se encontram reciprocamente situados; 4) que
somente a partir da ação coletiva é possível falar de atores coletivos. Justamente
por isso, inicio a pesquisa documental a partir das publicações periódicas produ-
zidas pelas agremiações selecionadas, de modo a mapear seus quadros dirigentes,
suas bases sociais, o cotidiano de seu funcionamento institucional, além dos
projetos e demandas endogenamente homogêneos/conflitivos.
Partindo dessa necessária qualificação dos agentes da vontade coletiva ma-
terializada nas entidades da sociedade civil analisadas, o trabalho encaminha-se
para o estudo de um organismo específico do Estado restrito, o Ministério da
Agricultura, visando identificar três processos: a) que quadros dos aparelhos de
hegemonia presentes na sociedade civil achavam-se diretamente inscritos nes-
sa agencia da sociedade civil; b) qual a correlação de forças vigente dentro do
próprio órgão e 3) que políticas agrícolas efetivamente foram, a partir dele, pos-
tas em prática, de modo a atender a que demandas oriundas de qual aparelho
privado de hegemonia junto a ele presente. Para tanto, elaboro vários quadros
detalhados, mapeando tanto os ocupantes dos quadros dirigentes da SNA e suas
propriedades – incluindo suas Diretorias e Conselhos Superiores (em sua quase
totalidade proprietários de terra), quanto os “funcionários” do alto escalão mi-
nisterial (em sua quase integralidade dirigentes da SNA), verificando seu perten-
cimento às agremiações/frações da classe dominante pesquisadas.
De igual forma construo tabelas, a partir da revista A Lavoura publicada
pela SNA, demonstrando as temáticas preponderantes no projeto da entidade,
fundamentando tanto sua ação político-ideológica, quanto, no âmbito da so-
ciedade política, os principais segmentos privilegiados pelas políticas agrícolas
do Ministério, verificando o atendimento – ou não – das demandas formuladas
pela SNA. Como conclusão, destaco o predomínio quase absoluto de dirigentes
da SNA – todos grandes proprietários/agroindustriais - junto ao primeiro esca-
lão ministerial, enfatizando os inúmeros ministros oriundos deste aparelho de
hegemonia e demonstrando, ademais, o quanto as políticas públicas agrícolas
de então contemplaram o projeto da SNA e das frações da classe dominante
agroindustrial nacional por ela organizados, destacando-se a ausência de atores
sociais oriundos da grande burguesia cafeeira paulista tanto junto à SNA, quanto
junto ao Ministério.
Em síntese, a aplicação dos procedimentos metodológicos sugeridos pelo
conceito gramsciano de Estado Ampliado tem sido testados, em diversas outras
pesquisas (Chuva, 2009; Lamosa, 2016; Campos, 2018, dentre vários outros),
de forma positiva e enriquecedora, não apenas no estudo das políticas agrícolas
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Referências
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com a definição realizada por Jean Bouvier, lembrada por Almir Pita como “o
estudo dos fatos da produção e das trocas e de como estas evoluem através dos
tempos e dos espaços” (Freitas Filho, 1989, p. 170). Confluindo com essa leitu-
ra, Hilário Franco Júnior destaca que a História econômica, em certa medida,
pode ser compreendida como a história do domínio do homem sobre a natureza
e de sua capacidade de utilizá-la em proveito próprio (Franco; Chacon, 1989).
Ao longo do século XX, os economistas se interessaram crescentemente pela
História. Nícia Vilela Luz e Carlos Pelaéz (1972) sinalizam a importância das
teorias do desenvolvimento para essa aproximação. Algumas correntes passaram
a legar uma relevância fundamental à História para as reflexões e análises dos
economistas, conforme indica Celso Furtado: “Não basta construir um modelo
abstrato e elaborar uma explicação de seu funcionamento. Igualmente impor-
tante é a verificação da eficácia explicativa desse modelo em confronto com a
realidade histórica” (Furtado, 1966, p. 19). Se esse interesse prosperou por parte
dos economistas em boa parte do século XX, havendo a disciplina “História
econômica” e “Formação econômica do Brasil” na maior parte dos currículos
universitários da formação em Ciências Econômicas no país, na formação dos
historiadores as disciplinas com esse perfil foram perdendo espaço e raramente
hoje são encontradas mesmo na condição de disciplinas eletivas ou optativas.
Tamás Szmreczányi se baseou em Carlo Cipolla para apontar a história
econômica como “campo de conhecimento específico e autônomo” ou uma
“disciplina relativamente autônoma quanto a seus objetivos e instrumentos de
trabalho” (1999, p. 1). No entanto, essa não é uma leitura consensual, não ha-
vendo unanimidade mesmo em torno do termo. A nomenclatura de história
econômica não é a única para se referir a esse campo do conhecimento. Temos,
por exemplo, o termo que dá título a esse capítulo, ou melhor, a categoria de
história econômico-social ou história econômica e social. Essa nominação de-
riva da escola francesa da História econômica. Como Lucien Febvre indicou,
toda história é, “por definição, absolutamente social” (1989 [1952], p. 40). O
movimento dos Annales, que será tratado brevemente no próximo tópico do ca-
pítulo, propôs desde 1929 uma história econômica e social, em uma perspectiva
interdisciplinar e sob a inspiração, dentre outros, da obra e da linha de trabalho
de Henri Pirenne. Dessa forma, a conceituação de história econômico-social
acabou marcando uma perspectiva de história econômica produzida prioritaria-
mente por historiadores e com uma preocupação mais totalizante e mais atenta
à historicidade que outras tendências visíveis no campo.
Vejamos a seguir como essa e outras noções de história econômica foram
formadas e se desenvolveram ao longo do século XX.
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crises geraram na primeira metade do século XX. Assim, algumas obras parecem
ser fundamentais para o estabelecimento do campo da História econômica no
Brasil, como os livros de Roberto Simonsen, de 1937, e o de Caio Prado Jr., de
1945, ambas intituladas História econômica do Brasil. A posterior obra de Celso
Furtado, Formação Econômica do Brasil, de 1959, também constitui um marco
fundamental nos estudos na área no Brasil. O ensino da disciplina no país re-
mete à formação das primeiras faculdades de Economia, datadas das décadas de
1930 e 1940, nas quais havia as cadeiras de história econômica.
O desenvolvimento da História econômica no Brasil seguiu em certa medi-
da a partir da influência das principais correntes teóricas e analíticas produzidas
no exterior. Sendo assim, houve grande influência, por exemplo, do movimento
dos Annales pela história econômica produzida no país, especialmente pelos his-
toriadores e, como de praxe, com atraso em relação ao movimento na Europa.
Sendo assim, nesse caso, quando a história econômico-social era já descendente
no movimento dos Annales e na historiografia francesa, na década de 1970, ele
estava se consolidando no Brasil, com estudos e pesquisas realizados por autores
que fizeram parte da sua formação no exterior. Foram especialmente relevantes
e impactantes sobre a historiografia econômica brasileira as teses produzidas no
âmbito da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), com as reflexões
heterodóxicas e desenvolvimentistas formuladas por autores como Raúl Prebis-
ch, Celso Furtado, Maria da Conceição Tavares, Carlos Lessa, Antonio Barros de
Castro, dentre outros (Mantega, 1984).
Assim como nos países centrais, alguns debates foram fundamentais na con-
solidação do campo da História econômica no Brasil, porém nesse caso não
produzido de forma endógena, mas principalmente a partir da influência estran-
geira, com as discussões travadas nos principais meios universitários do mun-
do. Nesse sentido, um dos debates mais relevantes travados pela historiografia
econômica brasileira diz respeito ao dos “modos de produção”. Trata-se de uma
querela antiga no país que se deu no seio dos pensadores marxistas. A interpre-
tação oficial do Partido Comunista Brasileiro (PCB), vocalizada nas obras de au-
tores como Alberto Passos Guimarães (1963) e Nelson Werneck Sodré (1962),
indicava a existência de um feudalismo na história brasileira, em particular nas
origens coloniais do país, mas chegando até o início do século XX. Caio Prado
Júnior contestou essa tese em seu texto clássico de 1966 indicando que o Brasil
sempre foi capitalista. Solidificou-se com isso a tese do chamado “capitalismo
comercial”, que ganhou os posteriores aportes de Fernando Novais (1979) e José
Jobson Arruda (1980). Ciro Flamarion Cardoso defendeu na década de 1970
uma tese de doutorado na França em que – sob a direta influência do debate
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Business History Review, em 1954. Esse tipo de pesquisa geralmente utiliza do-
cumentos produzidos pelas próprias empresas. Trata-se de um campo de estudos
bastante consolidado no exterior e com um conjunto de estudos já bastante
significativo no Brasil. Eulália Lobo (1997) destaca também a importância do
estudo das organizações empresariais, que muitas vezes assumem um poder e
protagonismo político significativo. Muitas pesquisas têm sido produzidas sobre
essas associações e sindicatos com base teórica nas reflexões de Antonio Gramsci
e suas concepções de sociedade civil, aparelho privado de hegemonia e partido.
Outro campo de estudos derivado do contato entre História e Economia diz
respeito à história do pensamento econômico. Esse ramo trata das doutrinas eco-
nômicas e matrizes de pensamento sobre a economia. Novamente, essa vertente
diz respeito a uma disciplina específica das Ciências Econômicas e que compõe
uma cadeira da formação do economista. No entanto, há uma necessidade signi-
ficativa de aporte dos conhecimentos e reflexões específicas do historiador nesse
campo de trabalho, tendo em vista toda a preocupação com a historicidade e a
totalidade que é necessária quando abordamos o processo de elaboração inte-
lectual. O campo é bastante consolidado no exterior e já dispomos de diversos
estudos no Brasil nessa área, apesar da necessidade de pesquisas sobre alguns
pensadores e correntes relevantes na reflexão econômica no país.
A história econômica abrange ou se aproxima de outras áreas de estudo que
merecem ser apontadas. Assim, outro campo específico da história econômica
diz respeito à história das técnicas e da tecnologia, que se aproxima de outro
campo historiográfico, a saber, o da história da ciência e também da Administra-
ção. Nesse caso, trata-se de um terreno menos explorado e que guarda a marca
do estudo clássico de David Landes (1994 [1969]) sobre as técnicas industriais
desde o período da Revolução Industrial. Além dela, cabe mencionar o terreno
da Antropologia econômica, que opera justamente a partir de um contato en-
tre a Antropologia e a Ciência Econômica, recorrendo muitas vezes à história.
Assim, o estudo clássico nesse campo é o de Karl Polanyi (2000 [1944]), com
suas discussões sobre mercados e outras organizações econômicas distintas pro-
duzidas por outros povos e sociedades. Outros autores que foram nessa direção
foram Marshall Sahlins e Bronislaw Malinowski. Trata-se de um terreno que tem
verificado avanços no Brasil, com organização de eventos e obras sendo produzi-
das, à luz dos estudos clássicos realizados no exterior.
As fontes utilizadas pela História econômica dependem do objeto de estudo
definido pelo pesquisador. Nesse sentido, variam as fontes utilizadas se o traba-
lho versa sobre história de empresa, desenvolvimento, pensamento econômico
ou outro recorte. Nos estudos globais realizados sobre história econômica nacio-
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Introdução
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dade repressiva, sempre houve quem procurou informações, apesar destas serem
sistematicamente negadas, escamoteadas. Apesar de tudo, perguntas incômodas
e inconvenientes foram feitas às autoridades pertinentes, mas, quase sempre,
obtiveram como resposta oficial mentiras e ameaças. Essa tendência teve con-
tinuidade durante a transição, apoiada na premissa do apagamento do passado
e no foco centrado em um hipotético futuro de nação, espelhado em fórmulas
importadas como o Pacto de la Moncloa1, impondo um pacto anestésico, condi-
ção necessária para consagrar a impunidade e garantir imunidade aos agentes da
repressão – os operários da violência, assim nomeados no estudo de Huggins, Ha-
ritos-Fatouros e Zimbardo (2006) - e aos mandantes da mesma. A operação de
esquecimento foi muito bem sucedida e perdurou por décadas. Entretanto, não
se pode menoscabar o papel daquelas pessoas que sempre reivindicaram seu pas-
sado, exigindo a entrega dos cadáveres insepultos, o esclarecimento dos crimes
cometidos e a responsabilização do Estado, das autoridades e dos funcionários
envolvidos. Ou seja, sempre houve quem, frente à negativa das autoridades e das
Forças Armadas em responder suas questões, persistiu, à espera de tempos me-
lhores, apostando na legalidade democrática e aguardando que a justiça tomasse
parte do processo de cicatrização das feridas que permaneciam abertas.
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balanço global acerca dela obriga a reconhecer que promoveu maior desigualda-
de social, concentração de renda e arrocho salarial. Desencadeou, também, um
crescimento vertiginoso da dívida externa e privilegiou interesses multinacionais
em detrimento de certos setores nacionais. Mesmo seu maior trunfo, o decan-
tado milagre econômico, merece reparos: durou menos tempo do que veiculou o
governo e beneficiou menos gente do que foi divulgado, mas não se pode obli-
terar que, de fato, ocorreu e a propaganda oficial, em tempos de feroz censura,
se encarregou de extrapolar exponencialmente seus relativos benefícios; seu im-
pacto discursivo perdura até os tempos atuais, o que alimenta parte dos setores
saudosistas. Também é fato que na pretensão de criar as bases para um Brasil
potência, foram preservados nichos considerados estratégicos sob controle esta-
tal - casos da Petrobrás, Eletrobrás, Embraer, indústria bélica, etc. - e investiu em
obras de infraestrutura (como a hidroelétrica de Itaipu), nas universidades e na
burocracia continuando o processo de modernização conservadora subordinada.
Contudo, o maior legado foi a impunidade dos agentes estatais, rescaldo do
combate a quem ousou enfrentá-los. O uso da tortura, as massivas detenções, as
execuções sumárias e o desaparecimento de opositores, combinado com outros
potentes mecanismos coercitivos (censura, controle, monitoramento, espiona-
gem) e psicossociais semearam temor, incerteza e desespero. O AI-5 foi o ponto
alto de uma lógica repressiva sempre presente. Não é algo menor, por extensão,
lembrar do papel que o Brasil desempenhou na espiral autoritária do Cone Sul,
apoiando projetos inconstitucionais – de teor semelhante ao seu –, contribuindo
na desestabilização de governos considerados hostis (a Bolívia de Torres, o Chile
de Allende), e ameaçando ocupar o Uruguai (Operação 30 Horas) para impor
e garantir estabilidade sobre a fronteira do extremo sul do seu território. Além
disso, participou da Operação Condor e de outras formas de conexão repressiva
regional2.
Diante das acusações de promover uma violência estatal inaceitável desde
a perspectiva do direito internacional, o Estado brasileiro agiu de forma seme-
lhante a suas congêneres da região. Nesse sentido, desde os seus primórdios até
o início da transição, não hesitou em realizar operações diversionistas diante de
pedidos de esclarecimento e acusações de responsabilidades, estratégia empre-
gada para esvaziar pressões. Dessa forma, as autoridades afirmaram não saber
nada, omitiram informação, ignoraram denúncias e negaram responsabilidades.
Assim, uma história oficial do período começou a se constituir tendo como base
2 O Brasil, na região, não ficou restrito à participação nas redes de conexão repressiva, mas chegou a
se imiscuir em questões internas dos vizinhos, afetando sua soberania, agindo como potência regional
policial.
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imunidade eterna aos agentes do Estado. A Lei de Anistia proposta pelo go-
verno, independentemente dos avanços conjunturais que possa ter acarretado
(o esvaziamento das prisões e a volta dos exilados), ocorreu dentro dos limites
restritos que a ditadura impôs e foi a chave que garantiu a imputabilidade dos
responsáveis pelo terrorismo de Estado. Destarte, se consagrou a ideia de que
a Lei de Anistia tratou os dois lados combatentes por igual e, com o passar do
tempo, se reforçou o entendimento de que foi algo justo e negociado entre as
partes5; assim, se diluiu a compreensão das limitações de um contexto duríssimo,
de ausência de múltiplas liberdades e de uma relação de forças muito desiguais6.
A ditadura brasileira e os governos posteriores estruturaram um esquecimen-
to organizado. Quer dizer, o olvido institucional da extremada coerção, o que se
expressou na forma da anistia; a impunidade, a corrupção, a banalização da vio-
lência e o imobilismo foram efeitos da tentativa de imposição de uma “amnésia
coletiva” sobre a sociedade civil projetando-se como parte dos desdobramentos
não-resolvidos que conectam o passado imediato com a conjuntura atual (ou
seja, com o presente vigente, emoldurado pela administração Bolsonaro e pelo
radicalismo de direita).
Concluída formalmente a ditadura, no embalo da Nova República e dos
governos posteriores, o jogo político decorrente - com suas alianças partidárias
e políticas de governabilidade -, garantiu a inércia e a surdez diante das vozes
que persistiam no clamor por verdade e justiça. Em círculos restritos, a garantia
de imunidade solidificou a visão negacionista, distorcendo a realidade anterior,
como surge da análise do material de contrainformação divulgado no site Ternu-
ma e nos livros do chefe do DOI-Codi (entre 1970 e 1974), Carlos Alberto Bri-
lhante Ustra (1987; 2006). De modo geral, os arautos da ditadura persistiram na
justificativa ou na relativização dos crimes cometidos pelo Estado, com a convic-
ção de que se tratava de uma guerra e ambos os bandos haviam produzido baixas
no inimigo. Por mais que se argumentasse que a desproporção no confronto que
a tese de que a esquerda revolucionária existia antes de 1964. A polêmica persiste: não é a mesma coisa
propor a construção do socialismo do que pegar em armas (embora, no espírito daquele contexto mun-
dial, isso não era uma aberração). Aqui se coloca outra discussão, a do direito à insurreição contra uma
ditadura, ver Vladimir Safatle (2010).
5 Uma das justificativas para manter vigente a lei foi a emitida pelo ministro Eros Graus ao alegar que
a Lei de Anistia resultou de negociações políticas; assim, somente o Poder Legislativo poderia se pro-
nunciar ao respeito. Tal afirmação representa uma forma de omissão do judiciário, com a falácia de que,
em um estado de exceção, seja possível um debate franco, transparente e onde a oposição seja levada
em conta. Ver: Eros Grau vota contra revisão da Lei da Anistia. O Globo, 28/04/2010. Disponível em:
https://oglobo.globo.com/politica/eros-grau-vota-contra-revisao-da-lei-da-anistia-3017002. Acesso em
20 de junho de 2019.
6 Sobre os embates ao redor da Lei de Anistia ver: Lemos (2018).
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rial, como, entre outros: a falta de informação sobre a localização dos cadáveres
dos desaparecidos; o desconhecimento da identidade dos agentes envolvidos
na tortura, nas execuções e nos desaparecimentos - bem como dos locais onde
esses crimes foram perpetrados; a presença de repressores em cargos públicos
em tempos democráticos; etc. Todavia, deve-se salientar que essas iniciativas
geravam embates no interior do governo e dos partidos constitutivos. Mesmo
assim, campanhas institucionais ocuparam os meios de comunicação procu-
rando conscientizar a sociedade civil, preparando o terreno para projetos que
estavam sendo amadurecidos.
A campanha solicitando colaboração, através da entrega de informações e
documentação pessoal relacionada com aquele passado9, tendo o Arquivo Na-
cional e a Casa Civil como centros irradiadores expressou a intencionalidade
do Projeto Memórias Reveladas10, o qual se transformou, na prática, na pedra
angular das políticas de memória implementadas a nível estatal, pelo seu alcance
e pela sua magnitude. Outra diligência de proporções marcantes foram as deno-
minadas Caravanas da Anistia11, mecanismo que aliou elementos de reparação,
com objetivos pedagógicos (no sentido de esclarecimento social) em escala na-
cional. Inegavelmente, essas duas ações, entre outras, foram da maior relevância
para a consolidação do campo da Justiça de Transição12.
O descortinamento do passado ditatorial contou, também, com o rol per-
manente, qualitativo e obcecado dos sobreviventes e dos familiares das vítimas,
9 O Projeto Memórias Reveladas divulgou várias campanhas através de vídeos institucionais como
Memórias Reveladas, com depoimentos de familiares de desaparecidos. Disponível em: (https://www.
youtube.com/watch?v=qpqaREB8gNg). Acesso em 13 de julho de 2019. Também Desaparecidos Polí-
ticos no Brasil 1964 1985. Disponível em: (https://www.youtube.com/watch?v=uRSRYKz8e5c&t=5s).
Acesso em 13 de julho de 2019.
10 O Projeto Memórias Reveladas é o nome do Centro de Referência das Lutas Políticas, 1964-1985,
criado em maio de 2009 pela Casa Civil da Presidência da República, vinculado ao Arquivo Nacional
do Ministério da Justiça. Em 2005, o governo determinou transferir documentos públicos que estavam
na Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), para o Arquivo Nacional. O objetivo foi disponibilizar seu
acesso público; através de uma grande rede de integração arquivística, os documentos estatais relativos
à ditadura se encontram sob a sua guarda. A consolidação da democracia, o resgate da memória e da
história daquele período, foram objetivos do projeto.
11 As Caravanas da Anistia foram uma estratégia da Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça,
para realizar o julgamento de processos de solicitação de anistia, em diversos lugares do país, procurando
disseminar uma cultura de respeito dos direitos humanos e trazendo a tona inúmeras histórias de per-
seguidos políticos durante a ditadura. Era nessa instância que, em nome do Estado, a comissão pedia
perdão às vítimas da repressão.
12 A Justiça de Transição é um conjunto de medidas políticas e judiciais utilizadas como reparação das
violações de direitos humanos e uma estratégia de ação em sociedades atingidas por passados traumáti-
cos. Seu objetivo primordial visa fortalecer as instituições democráticas. Os direitos à memória, verdade,
justiça e reparação são percebidos como condição essencial para superar a fratura provocada por um
regime repressivo.
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pela indiferença, acumulado durante tantos anos, abriu espaços para a trans-
missão de suas experiências de vida - intermediada pela ação da memória e da
subjetividade -, possibilitando o reconhecimento de certas identidades comuns
e estabelecendo pontes com as gerações mais novas, seus ouvintes. Quer dizer,
para muitos foi a possibilidade de transmitir o acúmulo de camadas de experi-
ências de luta, resistência e sobrevivência, desconhecidas, até então, às gerações
mais novas, rompendo, finalmente, os muros levantados pelas políticas institu-
cionais de esquecimento.
Um registro à parte merece a explosão da pesquisa acadêmica relacionada
à temática e que, nos últimos anos, se mostrou, abrangente, multidisciplinar
e contínua, instalando-se de vez, na grande maioria das universidades. Tama-
nho fato está associado à reconhecida expansão dos programas de pós-graduação
nas últimas décadas. Os estudos sobre a ditadura se beneficiaram desse impac-
to, encontrando infraestrutura favorável, linhas de financiamento, bibliotecas,
arquivos, laboratórios de pesquisa e uma nova geração de estudantes e jovens
pesquisadores ávidos por inserir-se nessa temática. Diga-se de passagem, que,
simultaneamente a essa atitude acadêmica, muitos destes novos estudantes apre-
sentaram, também, um perfil militante quanto às questões dos direitos humanos
referentes ao passado recente, especialmente motivados pela ação dos coletivos
de familiares de mortos e desaparecidos e ex-presos políticos. O compromisso,
de forma geral, não diminuiu a qualidade da sua produção, nem o respeito aos
cânones norteadores da ciência histórica. A explicação dessa articulação entre
ativismo e estudo também se explica pelos efeitos positivos gerados pelas políti-
cas de inclusão - que as universidades públicas vêm implementando no decorrer
deste século -, quanto ao reconhecimento da alteridade, o desenvolvimento de
sensibilidade diante das dificuldades do outro, a convivência fraterna etc. Porém,
isto não exclui a constatação de que, parte dessa mesma geração, se deixa sedu-
zir pelo individualismo fomentado em enormes doses pelo discurso neoliberal,
através das redes sociais e das mídias.
Em termos estritamente historiográficos a massiva produção realizada nos
últimos anos demonstra a vigência e revitalização dos estudos sobre a ditadura.
As apreciações que podem ser feitas a esse respeito são diversas. Destacamos, no
entanto, alguns aspectos que consideramos imprescindíveis no elo intrínseco que
a HTP impõe no trinômio conhecimento-consciência-comportamento cidadão.
Um primeiro aspecto a ressaltar, partindo de uma visão panorâmica, é sobre
a produção que vem sendo realizado em relação ao resgate das experiências regio-
nais, reafirmando uma tendência que ocorre desde o marco das rememorações
dos quarenta anos do golpe de Estado, em 2004. Estimuladas pelas políticas de
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13 Citamos algumas contribuições para o resgate da realidade regional durante a ditadura: Grimaldo,
2009; Brancher; Lohn, 2014; Souza, 2013; Pereira; Marvilla, 2005; Padrós Et Al, 2011; Oliveira; Aires;
Silva, 2016. São obras dispares que refletem o estado da questão em cada realidade específica. A produ-
ção é variedade assumindo a forma de textos introdutórios, panorâmicos ou de divulgação, em meio de
depoimentos, entrevistas e de textos mais analíticos.
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existência e das atividades ali efetuadas. Não menos importante foi revelar, ao
público em geral, algo que o sistema político e o mundo empresarial sempre
procuraram encobrir, o nebuloso tema da colaboração e participação de civis
nos espaços de poder financiando-o, oferecendo suporte filosófico e doutrinário
e apoio através dos meios de comunicação, atuando nos circuitos diplomáticos,
etc. O envolvimento ativo dos setores empresariais e de suas entidades de classe,
na conspiração que derrubou o governo Goulart, era conhecido em detalhes,
desde a publicação da portentosa obra de René Dreifuss, 1964: a conquista do
Estado - Ação política, poder e golpe de classe (1981), de circulação restrita quase
que exclusivamente ao mundo acadêmico.
No conjunto, as informações e os esclarecimentos em relação à violência
explícita, quanto ao tamanho, intensidade e autoria estatal, representaram, para
milhares de perseguidos políticos, a confirmação e o reconhecimento da legiti-
midade das denúncias apresentadas imediatamente após os acontecimentos, ou
durante as longas décadas de imobilismo institucional e apatia social. Além da
reparação implícita diante da confirmação da veracidade daquelas falas – des-
qualificadas e negadas durante a ditadura e ignoradas em tempos democráticos
-, as conclusões da CNV reforçaram a importância do testemunho no resgate da
memória e da história do passado traumático. No fundo, foi o reconhecimento
social ao direito de interpelação desses depoentes - e que constitui em si, uma
característica central na delimitação da história do tempo presente.
Por fim, pode-se afirmar que os esforços do Projeto Memórias Reveladas
(inclusive com a fundamental digitalização do seu vastíssimo acervo, para dis-
ponibilização virtual) e da CNV resultaram na disponibilização de um volu-
me de dados, documentos e textos que alimentarão muitos anos de pesquisa.
Independente das polêmicas e das críticas pertinentes é inquestionável que o
conjunto de ações produzidas sob o guarda-chuva da CNV, dos seus Grupos
de Trabalho26, das comissões da verdade estaduais, municipais e setoriais bem
como de outras entidades, permitiu a conformação e organização de um gi-
gantesco material depositado em repositórios físicos e virtuais, o que implica
na preocupação com a preservação e proteção dos mesmos – a segurança desta
documentação é fundamental, sobretudo pelo uso de que pode ser objeto em
caso de maior retrocesso democrático. Cabe lembrar que a preservação dos
documentos produzidos por regimes repressivos é uma tarefa essencial para
a democracia, como anunciado no clássico relatório elaborado por Antônio
González Quintana (1997), a pedido da UNESCO e que foi base da argumen-
26 Os Grupos de Trabalho organizados dentro da CNV foram quatorze. A coordenação de cada um
deles foi feita por um dos sete comissionados.
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O Brasil acabou sendo o país mais fora da curva na região quanto a con-
frontar o pacto do silêncio das Forças Armadas e, em decorrência, o silêncio so-
cial. Também demorou em assumir as consignas de memória, verdade e justiça.
Todavia, como já foi dito, desde o início da última década este quadro parecia
estar sendo revertido, mesmo que lentamente. Iniciativas de cunho governamen-
tal, acadêmico e das organizações de direitos humanos, eram indicativas dessa
tendência. O impeachment da presidenta Dilma Rousseff, revestido de fortes
suspeitas de tramas abjetas em um processo que intelectuais reconhecidos deno-
minaram golpe institucional jurídico-mediático (Gentile, 2016), rapidamente,
mudou o curso das expectativas.
A velocidade do avanço da extrema direita, justificando os crimes da dita-
dura e defendendo a violência estatal e seus agentes (recuperados como heróis)
surpreendeu. A potência do discurso de incitação do ódio e a proliferação de
ameaças contra aqueles identificados como novos inimigos internos, acompa-
nhado de ações virulentas sintonizadas com aquele discurso, indicam que os
debates sobre a presença de resquícios da ditadura em tempos democráticos se
mostraram imprecisos.
O contexto da administração Temer, da ascensão da extrema direita e da
cada vez mais evidente direitização do pensamento dominante nos poderes Exe-
cutivo e Legislativo, foi caracterizado pelo antipetismo macartista, ou seja, com
um teor importado dos momentos mais acirrados da Guerra Fria. No meio de
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Santa Cruz, através de um comentário sobre a morte do seu pai, o desaparecido Fernando Santa Cruz,
contrariando as informações apuradas e registradas no Relatório Final da CNV. Ver: “Presidente da
OAB diz que vai ao STF para Bolsonaro esclarecer o que sabe sobre a morte de seu pai”. Disponível em:
<https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/07/29/presidente-da-oab-diz-que-vai-ao-stf-para-
-que-bolsonaro-esclareca-o-que-sabe-sobre-a-morte-de-seu-pai.ghtml>. Acesso em 29 de julho de 2019.
Também: “Miguel Reale Jr. critica Bolsonaro: "Caso de interdição". Disponível em: <https://www.terra.
com.br/noticias/brasil/politica/miguel-reale-jr-critica-bolsonaro-apos-polemica-caso-de-interdicao,ea-
18f936e1aa4a45846b26771398ddd2d0fqm12z.html>. Acesso em 29 de julho de 2019.
30 O neologismo inxílio significa exílio interno, o isolamento do indivíduo que não se reconhece mais
onde está, nem naquilo que faz, nem nas relações com os demais; sofre o tempo indefinido e congelado
do exilado, mas o sofrimento não está no distanciamento geográfico e cultural, e sim no não-reconhe-
cimento do seu meio social mais imediato. É o exílio experimentado sem abandonar o próprio país
(Padrós, 2005, p. 102). A palavra desexílio foi criada pelo escritor uruguaio Mario Benedetti e se refere ao
processo que inicia no momento em que o exilado imagina a sua volta, e que continua quando se depara
com um lugar que não é o mesmo lembrado e desejado, onde os afetos reencontrados estão marcados
pelo tempo de distanciamento e pela dura conjuntura. O desexílio é o estranhamento de quem volta para
casa e se descobre portador de uma hibridez que não imaginava.
31 É a forma como os simpatizantes de Bolsonaro o chamam.
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tema dos novos vocábulos. Sendo assim, como encaixar no processo histórico
em aberto uma afirmação como a da antropóloga Débora Diniz, quando se
pergunta: “Não sou desterrada. Não sou refugiada. Qual é a minha condição ao
não poder existir sem escolta policial?”32. Professora da Universidade de Brasília,
Diniz foi ameaçada de morte por sua posição em defesa dos direitos reproduti-
vos das mulheres. As ameaças se disseminaram ao redor do seu entorno afetivo e
profissional, sendo orientada a abandonar o partir para o exterior pelo Programa
de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos do próprio governo. O limbo
jurídico e kafkiano no qual se encontra interpela a toda a sociedade. O que ela
é? Uma pessoa desterrada? Refugiada? Censurada? Perseguida? Inimiga interna?
Subversiva? Seja como for, no Brasil da extrema direita ocupando o aparelho do
Estado, há pessoas que tiveram que exilar-se, porém, muitas mais se percebem
sofrendo a condição de inxiliadas, ou seja, exiladas na sua própria terra, na sua
própria casa. O Brasil de Bolsonaro produz exilados e inxiliados, como ocorria
na sua idolatrada ditadura.
Considerações finais
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espaços urbanos e rurais em que precisam agir. Trata-se de uma lógica de atuação
que é condizente com as sequelas de um terrorismo de Estado que, longe de ter
sido revertido ou confrontado minimamente, continua pairando como fator de
criminalização da população pobre e dos setores organizados e questionadores.
A invenção de novos inimigos internos, atualizada e adequada de acordo às
tensões do século XXI, é um dos traços da ditadura que perdura em um presente
onde os setores dominantes continuam apostando em políticas de criminaliza-
ção visando maior coesão social em torno de um projeto antidemocrático, que
confunde e distorce a percepção das verdadeiras razões que levam o Estado a
agir com essa velha estratégia reconfigurada e emoldurada por um neoliberalis-
mo exacerbado, cada vez mais excludente, e pela retomada de um pensamento
único muito raso que, em tempos pós-ciclo progressista, se mostra reacionário,
regressivo, devoto da intolerância e do ódio contra o outro. Aliás, este pensa-
mento único tem um objetivo central, que não é mais o da cooptação ideoló-
gica (a conquista dos corações e mentes), pois em tempos de fake news (mesmo
tendo poderosas usinas formadoras de opinião pública na mídia, nas agências
de publicidade, entre os intelectuais, pastores e altas patentes militares), basta
com alimentar as massas de seguidores, verdadeiros autômatos, dos quais a única
coisa que se espera é que repitam e multipliquem as mensagens emanadas desses
centros de mentiras e distorções sobre a realidade concreta. Crer, obedecer e lutar
era consigna do nazifascismo clássico, mas está vigente no atual cenário nacional
e no comportamento histérico da extrema direita, tanto no mundo real quanto,
sobretudo, no mundo virtual das redes sociais.
A realidade do governo Bolsonaro extrapola o esforço negacionista alusivo
ao passado ditatorial. Essa fase parece superada; a colocação da temática da pós-
-verdade na agenda de debates parece ser o reconhecimento disso. Não se trata
mais de negar ou impor o esquecimento como forma de esconder os crimes
cometidos em nome da segurança nacional. A falta de iniciativas de esclareci-
mento, associado ao questionamento, esvaziamento e à desqualificação das polí-
ticas de memória precedentes, conjugado com o menosprezo do passado que não
termina de passar, é instrumento para uma nova situação, muito mais perigosa.
Se antes havia o temor de que a amnésia induzida fosse caldo de cultura para o
reflorescimento de novos projetos calcados na violência estatal, agora, cabe reco-
nhecer que um deles chegou ao poder.
No primeiro semestre de governo pode-se avaliar que a fase ainda é mais de
ameaças e deboches verbais do que ações concretas contra a oposição política
formal. Mas isto não significa inexistência de violência estatal; basta ser negro,
indígena, morador de periferia ou LGBT para se ter uma opinião diametralmen-
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Referências
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OS EMPRESÁRIOS E A AMAZÔNIA:
PLANEJAMENTO REGIONAL E PROTAGONISMO EMPRESARIAL NO
INÍCIO DA DITADURA MILITAR (1964-1966)
Sidney Lobato
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4 Reunido com parlamentares em meados de 1964, Castelo foi interpelado pelo deputado Gabriel
Hermes (UDN-PA), que chamou a atenção dos presentes para a paralização das atividades da SPVEA e
da Rodobrás, bem como informou que, em 1963, apenas 15% dos 12 bilhões de cruzeiros previstos para
esses órgãos foram de fato repassados. O presidente reconheceu que a situação destes órgãos era grave,
“mas lembrou a desorganização e a corrupção que existia nos mesmos” (Sugerido, 1964, p. 7).
5 Para fins de sua política desenvolvimentista o governo ditatorial adotou o conceito de Amazônia
Legal (Art. 3º da Lei n. 5.173, de 27 de outubro de 1966), área que abrangia: os estados do Acre, Pará
e Amazonas, os territórios federais do Amapá, Roraima e Rondônia e ainda partes do Mato Grosso (a
norte do paralelo 16º), de Goiás (a norte do paralelo 13º) e do Maranhão (a oeste do meridiano 44º).
Ver figura n. 1.
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racha silvestre, esse banco deveria doravante prioritariamente financiar “os em-
preendimentos agrícolas, pecuários, industriais ou serviços básicos” (§ 1º do Art.
73 do Decreto 60.079, de 16 de janeiro de 1967). Para tanto, o Basa contava
com o Fundo de Investimentos Privados no Desenvolvimento da Amazônia (Fi-
dam), criado pela Lei 5.173, de 27 de outubro de 1966, e cujos recursos seriam
oriundos sobretudo dos depósitos deduzidos do Imposto de Renda (IR) não
aplicados em projetos específicos. Tais recursos eram destinados ao financiamen-
to de empreendimentos da iniciativa privada previamente declarados prioritários
pelas agências estatais de desenvolvimento regional. Dessa feita, a mudança em
curso não consistia numa mera troca de nomes, mas sim no redirecionamento
de recursos públicos (renúncia de impostos) a fim de favorecer a substituição, na
base econômica regional, do extrativismo pela agroindústria.
O processo de “desestatização” do setor gomífero iniciava-se num momento
crítico. Em agosto de 1966, Castelo Branco encaminhou ao Congresso o projeto
de lei (PL) que propunha: o estabelecimento de preços básicos para a compra das
borrachas vegetal e sintética; a formação de estoque para equilibrar o mercado
de elastômeros; a taxa de controle de até 5% do valor da borracha para custear as
atividades das agências governamentais de desenvolvimento regional; e o finan-
ciamento pelo Basa ou por outros bancos da compra da borracha. Na exposição
de motivos que acompanhara o PL, Roberto Campos assinalou que, estando a
indústria de artefatos de borracha já bem desenvolvida no Brasil, era oportuno
“exonerar o erário dos encargos financeiros crescentes que lhe advinham do sis-
tema de comércio até agora vigente”. Cumpria, segundo ele, aumentar a impor-
tância da heveicultura, mas também não levar ao colapso Acre e Rondônia, ainda
muito dependentes da coleta florestal. Campos igualmente afirmou que a nova
política deveria “propiciar condições para que a importância relativa da borracha
extrativa na Amazônia decline gradativamente, pela substituição paulatina dessa
atividade e criação de novas, inclusa a heveicultura” (Governo, 1966, p. 17).
A alusão ao “vazio demográfico” era frequente nos discursos do presidente,
bem como nos de seus ministros e assessores. Um dos articulistas d’O Estado de
São Paulo, no texto intitulado “Amazônia pode ser redimida”, lembrava do “pro-
blema da mão-de-obra”, que na Amazônia supostamente decorria da rarefação
populacional, e destacava: “o Governo prevê, em seu programa, a formação de
grupos populacionais estáveis com a adoção de uma política imigratória para a
região, aproveitando contingentes internos e contingentes selecionados exter-
nos, além da fixação de populações regionais” (Amazônia, 1966, p. 14). Em
consonância com estas palavras, o Regulamento Geral do Plano de Valorização
Econômica da Amazônia (aprovado pelo Decreto n. 60.079, de 16 de janeiro de
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vertiginosamente de Cr$ 29,8 milhões em 1968 para Cr$ 75,7 milhões em 1969,
e Cr$ 170,1 milhões em 1970, permanecendo neste patamar durante os quatro
anos seguintes”. Este aumento ocorreu em detrimento da prioridade inicialmente
dada aos empreendimentos industriais. Ademais, 90% dos investimentos em pe-
cuária concentraram-se nos estados do Mato Grosso e do Pará.
Palavras finais
Nos anos aqui analisados ocorreu uma série de debates e de ações a fim de
favorecer o máximo afluxo de capitais para atividades industriais e agropecuárias
existentes ou a serem implantadas no espaço amazônico. O volume de investi-
mentos na região cresceu vertiginosamente. Em 1964, primeiro ano de vigência
da lei 4.216/63, mesmo sem uma ampla divulgação desta, foram recolhidos en-
tre os empresários de São Paulo Cr$ 2.043.633.459 de parcelas de IR destinadas
à Amazônia. Em 1965 esse valor subiu para Cr$ 5.602.784.136. Em 2 anos fo-
ram aprovados pela SPVEA 22 projetos (no valor de 53 bilhões de cruzeiros) das
seguintes indústrias: madeireira (6), de alimentos (6), oleaginosas (5), de fibras
(3), de mineração e siderurgia (2). Mas, no tocante à balança comercial (relação
com o resto do Brasil), os índices econômicos eram desfavoráveis à região, pois
se em 1960 a soma das importações totalizava Cr$ 16.243,13 e a das exportações
atingia o montante de Cr$ 20.198,20, no ano de 1970 esses valores chegavam
respectivamente a Cr$ 502.950,00 e Cr$ 956.745,00. A Amazônia viu-se, por-
tanto, diante de um vultoso crescimento de seu déficit comercial, o que denota o
tamanho da sucção da renda regional (Cardoso & Müller, 1977, p. 203).
A Operação Amazônia também gerou grande perda de impostos para os
cofres públicos. Dados da Comissão de Avaliação de Incentivos Fiscais apontam
que, entre 1966 e 1985, 70% dos projetos registrados nos organismos federais
da região ou eram fictícios, ou estavam falidos, ou funcionavam precariamente;
e que 10% haviam sido cancelados (reembolsando o incentivo sem correção
monetária). Ou seja, apenas 20% deles tinham sido efetivamente implantados
(Becker, 1994, p. 27). A Amazônia tornou-se a Pasárgada dos especuladores. Nas
palavras de Casaldáliga (1971, p. 9), “as terras todas compradas – ou requeri-
das – ao Governo do Mato Grosso por pessoas interessadas, não os moradores,
a preço irrisório, foram depois vendidas a grandes comerciantes de terras, que
posteriormente a vendem a outros”. As terras entravam, assim, num circuito
de compra e venda muito rentável. Acelerava-se, na Amazônia, a realização do
projeto de “totalidade global intensiva” do capitalismo (Linden, 2013, p. 399),
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ou seja, o empenho para que o valor de troca passasse a mediar todas as relações
existentes neste espaço.
Na realização de tal projeto, o protagonismo foi dado ao empresariado. A
gestão autoritária do Estado foi posta a serviço dos interesses do grande capital.
Conforme demonstramos acima, o governo central instituído pelo Golpe de
1964 esmerou-se para criar condições ótimas a fim de que investidores nacionais
e estrangeiros abrissem com quase nenhum risco novas frentes de exploração de
recursos naturais na região amazônica. O exemplo mais enfático disto foi a oferta
de diversos incentivos fiscais à iniciativa privada. As frações da classe dominante
formadoras do bloco no poder travaram acalorados debates em torno de como
tais vantagens deveriam ser dispensadas, visando garantir que as diversas Ama-
zônias pudessem usufruir dos investimentos almejados. Militares e empresários
formavam o núcleo hegemônico deste bloco e buscavam orquestrar meios e es-
tratégias para azeitar as engrenagens de reprodução ampliada do capital.
As novas frentes agropecuárias concentraram-se sobretudo no sul do Pará e
no noroeste mato-grossense. O desmatamento ocorria num ritmo acelerado em
face, inclusive, dos prazos dados pela Sudam para a instalação de novos projetos.
Em março de 1966, a articulista d’O Estado minimizava os impactos ambientais
trazidos por essas frentes, afirmando: “a bacia amazônica é gigante e poderosa.
Há espaços suficientes para fazendas e florestas” (Geld, 1966, p. 41). Outro im-
pacto pouco debatido na grande imprensa foi aquele sofrido por povos indíge-
nas, como os Xavante, que tiveram parte de suas terras tomada por latifundiários
munidos de títulos adquiridos num crescente comércio de terras. Somente a par-
tir do final da década de 1960 é que a questão indígena passou a ganhar maior
visibilidade nas páginas dos periódicos nacionais e estrangeiros.
Muitos posseiros também perderam suas terras, pois comumente estas eram
compradas como se a Amazônia fosse de fato um grande vazio demográfico.
Expropriados de suas fontes de subsistência (áreas de roça, caça, pesca e coleta),
esses trabalhadores muitas vezes migravam para as cidades em busca de empregos
ou outros meios de sustentar a vida. Os empreiteiros contratados pelas empre-
sas agropecuárias recrutavam, sobretudo em Goiás e no Nordeste, os peões que
fariam a abertura dos planteis. Conforme apontamos, as precárias condições de
vida e a péssima remuneração faziam desse trabalho algo deveras degradante.
Cardoso e Müller (1977, p. 181) destacam que “as denúncias quanto à semi-
-escravidão eram anteriores à Transamazônica e persistiram”. Doenças, dívidas
e violências praticadas pelas milícias armadas dos fazendeiros faziam parte do
cotidiano destes migrantes, que logo se viam desempregados. Acabada a fase de
desmatamento, quase todos eles eram dispensados.
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Toda esta perseguição contribui para que boa parte do quadro de dirigentes
e atores políticos envolvidos com a história de Manguinhos fossem retirados
de cena por grupos conservadores ligados ao regime ditatorial civil-militar. O
desmonte institucional imposto pela ditadura contribuiu para esvaziar a institui-
ção no seu aspecto político representativo e, sobretudo no desenvolvimento da
pesquisa científica com a transferência, expulsão e pela própria saída de pesquisa-
dores ameaçados pelo regime ditatorial e descontentes com a situação em vigor.
Por conseguinte, a direção da Fiocruz e o regime ditatorial civil-militar fo-
ram incapazes de construir um projeto institucional unificador que promovesse
10 Referimo-nos a Fiocruz como um todo, pessoas e estrutura física, que é conhecida como comunida-
de de Manguinhos ou simplesmente, Manguinhos.
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11 REIS, Tiago Siqueira. Sentido público, direções privadas: o processo de formação político-institu-
cional da Fiocruz (1970-1979). Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 10, n. 24, p. 410 - 451, abr./
jun. 2018.
12 O Ipea era um instituto ligado à Secretária de Planejamento (Seplan).
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nem um médico. Eu acho que tem que ser uma pessoa alheia ao meio, e até alheia ao
assunto”. Então percebi a intenção dele: um homem ligado ao governo, um homem
de formação econômica. Era o meu perfil. Eu estaria indicado, segundo ele, porque
estava dentro do espírito do Ministério da Saúde. Fiz a recuperação de Manguinhos
como qualquer um do staff do Reis Veloso poderia fazer, porque tínhamos mentali-
dade de planejamento. O planejador tem uma ideia política, de conjunto, integrada
a um projeto econômico-social.
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Possibilidades teórico-metodológicas
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e agencias do poder público. O peculiar nessa visão de Estado ampliado é que ele,
sendo uma relação social, engloba tanto a sociedade civil quanto a sociedade políti-
ca, em permanente interação e interconexão.
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terior da relação Fiocruz e mesmo com as agências de poder estatal. Assim sendo,
Gramsci permite olhar as relações intra e extraclasses e o Estado, bem como as
agências da sociedade civil. Portanto, a infraestrutura e a superestrutura estão
organicamente relacionadas.
Concluímos nosso texto evidenciando a importância dos estudos das ins-
tituições e empresas públicas e privadas no tempo presente. Acreditamos que a
compreensão da dinâmica interna, seus agentes e suas múltiplas relações com o
Estado, sociedade civil e a infra-estrutura, considerando os contextos históricos,
bem como as inter-relações micro e macrossociais, podem enriquecer o debate
historiográfico e o mundo em que vivemos, desvelando a essência e aparência das
nossas instituições e dos sujeitos sociais vinculantes. Dessa maneira, podemos
perceber que a Fiocruz não é uma entidade deslocada da sua realidade política
e social. Pensar a política de saúde pública brasileira passa necessariamente pela
análise e compreensão das agências, agentes e instituições desse universo, a qual
a Fiocruz pertence. Por fim, o estudo de sua organização e política, abre cami-
nho para discutirmos os processos de privatização, flexibilização e expropriação
do bem público, dos direitos trabalhistas e acesso a saúde universal e gratuita
a partir da análise da dinâmica interna, observando que tais políticas estão em
permanente tensão, organicamente ligadas pelas relação dialética entre o micro
e o macrossocial.
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Petrônio Domingues
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COLEÇÃO HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: VOLUME III
No dia seguinte ao ato público, o jornal Folha de São Paulo reportou aos
seus leitores: “O braço direito esticado e a mão fechada, gesto característico do
movimento americano Black Power, foi usado ontem, nas escadarias do Teatro
Municipal, como o princípio de uma luta negra contra o racismo no Brasil”2.
Bem-sucedido, o protesto do MUCDR – de ocupação do espaço público em de-
fesa dos direitos da população negra e contestação do regime autoritário vigente
– repercutiu nacional e internacionalmente, contribuindo para a emergência da
mobilização racial e o desenvolvimento de diferentes ações de outros movimen-
tos sociais que esgrimiam contra a ditadura.
Em 23 de julho, foi realizada a primeira assembleia de estruturação do MU-
CDR, quando decidiu-se adicionar o vocábulo “negro” ao nome da entidade,
dali em diante chamada de Movimento Negro Unificado Contra a Discrimina-
ção Racial (MNUCDR). Com a adoção do vocábulo “negro”, em vez da cons-
trução de uma frente ampla aglutinando todos os “discriminados”, optou-se por
1 A Carta Aberta à população lançada pelo MUCDR foi publicada em Lélia Gonzalez e Carlos Ha-
sembalg (1982, p. 50).
2 “Negros protestam em praça pública”. Folha de São Paulo. São Paulo, 8 de julho de 1978, p. 9.
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uma organização que reunisse somente grupos negros que emergiam pelo Brasil
afora naquele instante. Na segunda assembleia do MNUCDR, realizada no Rio
de Janeiro nos dias 9 e 10 de setembro, foram aprovados o Estatuto, a Carta de
Princípios e o Programa de Ação (Movimento Negro Unificado, 1988, p. 78).
Já na terceira assembleia, sediada na Bahia em 4 de novembro, acolheu-se
o 20 de Novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra. A proposta foi
originalmente apresentada pelos ativistas do Rio Grande do Sul, os quais viam
a abolição da escravidão como uma farsa – uma “falsa liberdade” –, por isso
passaram a rechaçar as comemorações do dia 13 de Maio. Em seu lugar, eles
elegeram o 20 de novembro – data presumível da morte de Zumbi, o legendá-
rio líder do Quilombo de Palmares, que foi apropriado como símbolo-mor da
resistência à opressão.
O 1º. Congresso do MNUCDR ocorreu no Rio de Janeiro, nos dias 14,
15 e 16 de dezembro de 1979, reunindo delegados de São Paulo, Bahia, Mi-
nas Gerais, Rio Grande do Sul e Espírito Santo. Entre outras deliberações,
aprovou-se abreviar o nome da organização para Movimento Negro Unificado
(MNU). Com o intuito de realizar um trabalho de base e ter penetração no
meio popular, o MNU formou os Centros de Luta em algumas cidades. Em
curto intervalo de tempo, a organização se ramificou por vários lugares do país,
com sucursais sendo abertas no Rio de Janeiro, em Vitória, Belo Horizonte,
Salvador e Porto Alegre.
O MNU procurava conscientizar as pessoas negras e os brasileiros em ge-
ral para o problema do racismo, assim como buscava organizar seus membros
para se insurgirem contra esse problema (Covin, 2006). Do ponto de vista dos
referenciais, o MNU foi influenciado, externamente, pelos movimentos de di-
reitos civis e do poder negro nos Estados Unidos, bem como pelos movimentos
de libertação nacional na África, especialmente das colônias portuguesas; já em
âmbito interno, a organização foi influenciada pela perspectiva no campo da es-
querda, de oposição à ditadura. Politizando a questão do negro, o MNU abraçou
uma nova concepção de luta antirracista, que articulava os temas raça e classe. As
bandeiras especificas do negro deviam ser desfraldadas em combinação com as
bandeiras gerais que clamavam por emprego, educação, moradia, saúde, segu-
rança etc (Hanchard, 2001, p. 146-148).
A mensagem do MNU conquistou corações e mentes de uma parcela da
população afro-brasileira. Eis a razão pela qual, na sua esteira, surgiram o Centro
de Cultura Negra (CCN) do Maranhão, a Associação Cultural Zumbi (ACZ),
em Maceió; o Grupo Negro da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São
Paulo, o Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (Cedenpa), em Belém; o
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Considerações finais
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Introdução
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cação, pensaremos à luz da História do Tempo Presente este assunto como uma
demanda social latente da contemporaneidade.
Assim, propomos pensar e discutir os impactos da retirada da disciplina
História do Novo Ensino Médio para a população brasileira, em particular os
afrodescendentes, mostrando que esta retirada pode apagar rostos e nomes, obje-
tivando silenciar a maioria da população do país em favor de um discurso único
e hierarquizante.
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deve guardar: (1) fazer emergir a história dos excluídos, dos derrotados; (2) a
história oral tem como um dos seus maiores contributos desafiar às ideologias
dominantes, que invariavelmente colocam-se como neutras e portadoras da
mediação e da verdade; (3) fixar novas pautas à política, economia e cultura
dominantes. Apesar deste presente trabalho não lançar mão da história oral,
mas considerando sua intensa relação com a história do tempo presente, toma-
remos de empréstimo aquelas fidelidades para empreender nosso estudo, como
imprescindíveis ao tempo presente e de confronto às investidas de silenciamen-
to e esquecimento.
Seguindo a linha do compromisso do historiador com a ética e a objetivida-
de, a partir do equilíbrio entre a subjetividade e a objetividade, François Béda-
rida discute tal premissa do fazer historiográfico no texto “As Responsabilidades
do Historiador Expert” (1998), convocando os pesquisadores a fazerem frente
aos negacionismos, redesignados de revisionismos pelos próprios negacionistas,
como forma de encontrar um termo mais aceitável. Bédarida convida ao histo-
riador a uma atitude proativa face aos negacionismos que tentam “falsificar” a
história ao negar fatos objetivos, como podemos observar no Brasil com relação
à ditadura civil-militar, cujo golpe de Estado que a iniciou, é repetidamente
mencionado como revolução, e, sobretudo, a resistência, particularmente aque-
las armadas, são consideradas violentas na mesma proporção que o regime di-
tatorial, e em casos extremos mais forte, violenta e poderosa, com a intenção
exaltar o regime discricionário instaurado entre 1964 e 1985.
Semelhantemente à esta postura, relembramos os negacionismos relativos à
escravidão brasileira, a negação de que a escravidão seria um mal em si. Para ilus-
trar podemos citar o caso do jornalista Sérgio Nascimento de Camargo nomeado
como novo presidente da Fundação Palmares6 pelo presidente de extrema direita
6 Apresentação da Fundação Palmares: “No dia 22 de agosto de 1988, o Governo Federal fundou a
primeira instituição pública voltada para promoção e preservação dos valores culturais, históricos, sociais
e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira: a Fundação Cultural
Palmares (FCP), entidade vinculada ao Ministério da Cidadania. Ao longo dos anos, a FCP tem traba-
lhado para promover uma política cultural igualitária e inclusiva, que contribua para a valorização da
história e das manifestações culturais e artísticas negras brasileiras como patrimônios nacionais.
O § 4º do art. 3º do Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, reserva à Fundação Cultural Pal-
mares a competência pela emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em cadastro
geral. Desde então, foram emitidas 3.271 certificações para comunidades quilombolas; este documento
reconhece os direitos das comunidades e dá acesso aos programas sociais do Governo Federal.
Ademais, a FCP é referência na promoção, fomento e preservação das manifestações culturais negras e no
apoio e difusão da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino da História da África e Afro-Brasileira
nas escolas. A Fundação Palmares já distribuiu publicações que promovem, discutem e incentivam a pre-
servação da cultura afro-brasileira e auxiliam professores e escolas na aplicação da Lei”. Página eletrônica
da Fundação Cultural Palmares. Disponível http://www.palmares.gov.br/?page_id=95 acesso 13/04/2020.
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misoginia, desprezo aos direitos humanos etc. Tais processos obedecem à uma
pauta neoliberal unificadora das experiências humanas e que lhes retira a pro-
fundidade em detrimento da manutenção de posturas superficiais desprovidas
de senso crítico e problematizações.
O tempo presente, também como um espaço de disputa de narrativas
e memórias, configurar-se-ia enquanto uma lacuna, isto é, o presente não
seria o elo entre passado e futuro, um continuum, mas uma lacuna na qual
duas forças interagem em sentidos opostos, o passado empurra o presente em
direção ao futuro, e o futuro constitui-se enquanto uma barreira que represa
o presente, ou seja, “interrompe-se no ponto onde o ser humano se encontra
e onde ele/ela tem que se posicionar contra o passado e o futuro juntos” (Pas-
serini, 2006, p. 214).
A memória nesse ínterim e, simultaneamente, como o cerne da disputa
em um campo de forças no qual atuam inúmeras demandas sociais, coloca-se,
portanto, como um processo em constante transformação. O estudo da histó-
ria enquanto disciplina escolar reflete muito claramente as forças em jogo, no
nosso caso específico, da instituição as leis 10.639/2003 e 11.645/2008 que
demonstram nitidamente as demandas em torno da memória e as tentativas
de silenciamento.
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11 A Associação Brasileira de História das Religiões (ABHR) tem empreendidos discussões acerca do
Ensino Religioso parte de seus associados e nos seus eventos regionais e nacionais. Cf. Página eletrônica
da ABHR https://abhr.com.br/ acesso 21/04/2020.
12 Cf. Base Nacional Curricular Comum (BNCC) //http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/
historico/BNCC_EnsinoMedio_embaixa_site_110518.pdf acesso 30/03/2020.
13 Novo Ensino Médio - perguntas e respostas, Ministério da Educação. Disponível http://portal.mec.
gov.br/component/content/article?id=40361#nem_09 acesso 30/03/2020.
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tema econômico, no que ele tem de mais perverso e alienador. Além disso, quanto
mais adaptações às finalidades das minorias dominadoras, mais as grandes maiorias
ficam carentes de finalidades próprias (Viamonte, 2011, p. 35) grifo nosso.
19 Cf. CERRI, Luis Fernando. História e Consciência Histórica. Rio de Janeiro: FGV, 2011.
20 Cf. Manifesto. Fórum de Ensino de História da Associação Nacional de História, 06/12/2019.
Disponível https://anpuh.org.br/index.php/2015-01-20-00-01-55/noticias2/noticias-destaque/item/
5641-manifesto-forum-de-ensino-de-historia acesso 30/03/2020.
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Kabengele Munanga mostra que o continente africano foi por largo período
concebido a partir do paradigma ocidental hegeliano que inicialmente compar-
timentou a África em três áreas distintas: “(a) a África Setentrional aberta ao
Mediterrâneo e ligada à Europa – (b) o Egito, que tira sua existência do Nilo e
destinado a se tornar um centro de grande civilização autônoma – (c) a África
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21 Resumidamente, perspectiva semelhante foi observada com relação aos povos ameríndios da Améri-
ca espanhola, nos quais o não desenvolvimento da escrita alfabética foi para intelectuais do século XVIII
um indício da não antiguidade de algumas civilizações, que tinham como sistemas de registro os logogra-
mas ou a transmissão oral, a constatação desses sistemas de conservação da história e memória indicaria
que alguns povos estariam em uma escala evolutiva, no início, algo que poderia caracterizar uma infância
civilizatória que precisaria de tempo para alcançar os avanços logrados pelo ocidente europeu. Esta pers-
pectiva dizia respeito inclusive às religiões praticadas, que não passavam de supersticiosas, visto que os
dogmas não estavam inscritos em um livro, como no caso a Bíblia, ou seja, não dominavam o tipo de
escrita mais avançado, a alfabética. Isto os relegaria a um espaço fora da história. Cf. CAÑIZARES-ES-
GUERRA, Jorge. Como escrever a História do Novo Mundo. Histórias, Epistemologias e Identidades
no Mundo Atlântico do século XVIII. São Paulo: Editora Universidade de São Paulo (Edusp), 2011.
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história não é reservado à única humanidade europeia. Esta obra desenterrou algo
incontestável no passado negro-africano que foi escondido: a África como berço da
humanidade, recolocando-a na origem da própria história da humanidade (Mu-
nanga, 2015, p. 27).
Continua o autor:
O passado está na pré-história da África que foi desenterrada, no Egito que foi in-
tegrado, nos grandes reinos africanos que foram reconhecidos, contrariando o pen-
samento hegeliano. Reconhecer que a África tem história é o ponto de partida para
discutir a história da diáspora negra que na historiografia dos países beneficiados
pelo tráfico negreiro foi também ora negada, ora distorcida, ora falsificada. Como é
que os negros da diáspora poderiam ter uma história e uma identidade se o conti-
nente de onde foram oriundos não as tinham? (Munanga, 2015, p. 27-8).
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Em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º des-
ta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e
indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção
ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indí-
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O tráfico de escravos e a escravidão existem no mundo há milênios. Mas ela não era
sempre igual em todos os períodos e locais. A escravidão é uma categoria histórica
– não sociológica. O tráfico transatlântico de escravos foi singularmente devastador.
Ele certamente foi o exemplo mais cruel e duradouro de brutalidade e exploração
humana na história. Foi uma atividade marítima móvel e instrutiva realizada por
potências distantes protegidas contra qualquer retaliação do mesmo tipo. Por mais
de 400 anos, ele envolveu a hegemonia das faixas etárias mais produtivas e poten-
cialmente produtivas das populações nas regiões africanas afetadas profundamente
por ele (HALL, 2017, p. 38).
25 “O comércio dos negros destinados às Américas organizou-se como um autêntico sistema, orques-
trado pelos Estados Europeus. Se os efeitos do tráfico dos negros sobre as economias europeias são ainda
controversos e se as consequências sobre as sociedades africanas continuam a alimentar os debates mais
apaixonados, não há a menor dúvida de que, antes de se tornar no século XIX “o comércio vergonhoso”
quase unanimemente condenado, foi durante três séculos um gigantesco e frutuoso negócio que mobili-
zou a Europa inteira e não poupou nenhuma região de África. Se os europeus foram os instigadores desta
empresa, foi essencialmente para o Novo Mundo que o comércio dos Negros transportou os Africanos
arrancados à sua terra, sendo as exportações para a Europa inteiramente marginais durante todo o perí-
odo do tráfico quer legal quer clandestino”. M’BOKOLO, Elikia. África Negra. História e Civilizações
até o XVIII. Tomo I. 2ª ed. Lisboa: Edições Colibri, 2012, p. 261.
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fazer, porque o território constitui parte desse fazer e viver, pois a identidade e a
sua reprodução cultural estão relacionadas ao território35.
Pretendemos mostrar rapidamente que se não estudamos a história de uma
enorme parcela da população, o que acontece pode nos passar despercebido e
sem análise crítica. Em um país que defende a terra e a propriedade privada inad-
vertidamente, o tipo de ataque perpetrado pelo governo federal à estas famílias
pode ser amplamente aceito sem maiores discussões que envolvam a sociedade,
e, principalmente, legitimado por esta mesma sociedade, que, certamente, des-
conhece que gerações dessas famílias habitam o espaço por mais de um século.
Em outros termos, se deixarmos de ensinar e aprender em nível acadêmico e par-
ticularmente escolar a história da África e afrodescendentes no Brasil, as pessoas
voltam a ser números estatísticos. Vale relembrar aqui a nomeação de Sérgio Ca-
margo, que se autointitula “negro de direita” para presidente da Fundação Cul-
tural Palmares, fundação esta responsável pela certificação das comunidades36 e
preservação da terra das comunidades bem como sua cultura e costumes, para
pensarmos na importância da disciplina escolar História para a historicização das
relações humanas e do racismo e discriminação.
Para “reconhecer que a pobreza é tanto causa quanto consequência da discri-
minação”37, é fundamental o estudo da história em todos os níveis da Educação
Básica. A história é a principal disciplina a conferir historicidade às relações hu-
manas e habilitar o pensamento histórico, aqui não estamos de maneira nenhu-
35 A percepção da territorialidade é fundamental para a compreensão da importância da manutenção
de um determinado espaço, entendendo como se relacionam comunidade e natureza, e principalmente
o conhecimento da natureza e seu manejo por essas comunidades que nela habitam há séculos sem
exauri-la. A observância do manejo do extrativismo e da caça que obedece à alternabilidade das espécies,
conjugada com a roça e a criação de animais desenvolvido por essas comunidades é imprescindível para a
compreensão da importância da conservação do espaço e das comunidades, constantemente ameaçadas
pela lógica capitalista de maximização dos lucros em detrimento do tempo de reprodução das espécies,
resultando em extermínio de espécies da flora e da fauna. Cf. ACEVEDO, Rosa; CASTRO, Edna. Os
Negros no Trombetas: guardiães de matas de rios. Belém: Cejup/ UFPA – NAEA, 1998.
36 “de acordo com o Decreto 4887/2003, cabe ao INCRA, na esfera federal, a realização do processo
administrativo de titulação dos territórios reivindicados pelas comunidades remanescentes de quilombo.
A abertura do processo pelas Superintendências do INCRA nos estados constitui a fase inicial do proces-
so para reconhecimento dos territórios quilombolas e pode ser principiada de ofício pelo Instituto ou a
requerimento de qualquer interessado, associações ou entidades representativas das comunidades. Desde
outubro de 2008, com a publicação da IN nº 49/2008, esta etapa passou a depender da emissão da Cer-
tidão de Registro no Cadastro Geral de Remanescentes de Comunidades de Quilombos da Fundação
Cultural Palmares (FCP), cuja base legal é a Portaria nº 98 da FCP. Sem a certidão, o INCRA não inicia
o processo de titulação” (QUINTANS; GAY, 2014).
37 Década Internacional de Afrodescendentes. Desenvolvimento. Disponível http://decada-afro-onu.
org/development.shtml acesso 02/04/2020.
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Considerações Finais
38 Cf. OLIVEIRA, Monalisa Pavonne. O mês da Consciência Negra e o direito à História. In:
Contemporartes: Revista Semanal de Difusão Cultural, v. IX, p. 1-9, 2018. Disponível em http://
revistacontemporartes.com.br/2018/12/04/o-mes-da-consciencia-negra-e-o-direito-a-historia/ acesso
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Legislação Consultada
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Conceitos
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ele compra um sanduíche e encontra sua esposa Yuppie (talvez ela seja corretora
de valores ou professora) para o jantar, uma refeição em um restaurante enquan-
to um empregado doméstico limpa seu apartamento alugado”15.
• A mobilidade dos trabalhadores pode ser restringida de várias formas, por
exemplo, pelas dívidas contraídas por empréstimos de seus empregadores, o que
leva a uma forma de escravidão por dívidas, ou por morar em alojamentos in-
dustriais, por visto de trabalho, por dívidas com sociedades de ajuda mútua ou
laços simples com uma família estendida.
• Os trabalhadores são frequentemente empregados não como indivíduos,
mas como um grupo, como na subcontratação16.
• Os trabalhadores podem ter mais de um empregador. Agora isto é bastan-
te comum em regiões periféricas da economia mundial ou na Federação Russa,
mas ocupações múltiplas também não foram desconhecidas na Europa ou na
América do Norte no passado17. Além disso, alguns trabalhadores têm renda que
não resulta do trabalho assalariado. André Gunder Frank legitimamente chamou
nossa atenção para a “fluidez nas relações proprietário-trabalhador”. Ele mencio-
na o exemplo de “um único trabalhador que é simultaneamente (i) proprietário
de sua terra e casa, (ii) meeiro em outra terra (às vezes pela metade, às vezes
por um terço), (iii) inquilino em terras de terceiros, (iv) trabalhador assalariado
durante a colheita em uma dessas terras e (v) comerciante independente de suas
próprias mercadorias produzidas em casa”18.
• Além de tais desvios “formais” do status “puro” do trabalho assalariado,
encontramos uma série de casos implícitos de exclusão de pertencer à classe
trabalhadora - policiais, prostitutas ou empregados domésticos, por exemplo.
Outra premissa questionável era a de que havia uma divisão nítida entre “tra-
balhadores” e outras categorias sociais (trabalhadores não-livres, lumpemprole-
tariados), enquanto, na realidade, as fronteiras eram frequentemente flexíveis:
trabalhadores em Nápoles que trabalhavam à noite como ladrões, supostamente
auto empregados que tinham apenas um cliente importante, ou os brasileiros
ganhadores que, como escravos, faziam trabalho assalariado para seus donos.
A realidade complexa, então, deveria nos encorajar a repens19ar os conceitos
15 Evers, 1987, p. 360.
16 Alguns exemplos são: John Buttrick (1952, p. 205-221); Tim Wright (1981, p. 656-678); Craig R.
Littler (1982); Timothy Mixter (1991, p. 294-340).
17 Por exemplo: Eduard V. Klopov (1998, p. 64-87); Stephen Hussey (1997, p. 217-235).
18 André Gunder Frank (1969, p. 271-272).
19 Thomas Belmonte (1979, p. 112-117). O sociólogo suíço Christian Giordano relata o caso ainda
mais extremo de “o técnico que trabalhou para a câmara municipal de Nápoles e ao mesmo tempo era
um assassino agindo em nome de maridos ciumentos e vingativos durante seu horário de trabalho rela-
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Multidisciplinaridade
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Fontes
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râneos foram logo complementados por estudos históricos sobre a gênese de tais
“problemas”33. Os relatórios de especialistas em trabalho e advogados foram im-
portantes nessa conexão que, após o estabelecimento da Escritório Internacional
do Trabalho em 1919, examinaram as consequências dos acordos interestaduais
para as condições de trabalho nas colônias34.
2. Para a “globalização” da história do trabalhador, as fontes orais são mais
importantes centralmente do que é geralmente o caso. Por exemplo, se alguém
quiser escrever a história do trabalho informal em um distrito de favela, geral-
mente descobrirá que há muito pouco material ou fotografias escritas. Entre-
vistar os envolvidos é, portanto, a fonte mais importante de informação, uma
fonte, é claro, que precisa checar com os outros. Nos últimos anos, a história oral
começou a se espalhar pelo mundo.
3. Fontes digitais. Os bancos de dados à nossa disposição para estudos quan-
titativos geralmente pertencem a uma determinada região. Em lugares onde uma
burocracia bem desenvolvida existia em um estágio relativamente inicial, nós
naturalmente encontramos mais dados do que em regiões onde isso não ocorria.
Isso significa, na prática, que há uma escassez generalizada de dados para os paí-
ses do Sul Global e que essa informação deve ser encontrada em outro lugar. Es-
tamos lidando aqui principalmente com três tipos de bases de dados: referenciais
(listas de documentos ou bases de dados), texto completo (onde os documentos
são reproduzidos na sua totalidade) e factuais (dados estatísticos on-line)35. Os
bancos de dados de texto completo são fontes escritas úteis, enquanto que o
material factual permite que o pesquisador conduza estudos sérios baseados em
estatísticas, por exemplo, material demográfico ou listas com salários e preços36.
Além de reunir tais fontes, é necessário recorrer a uma segunda atividade técni-
ca, ou seja, compatibilizar os bancos de dados das diversas regiões geográficas
característica. Outros estudos foram, por exemplo: Godfrey Wilson (1941-1942); James C. Mitchell
(1959); Max Gluckmann, (1961, p. 67-82). Veja também: Michael Burawoy (1979) e Vicky Smith
(2001). Outra perspectiva interessante é oferecida por Hussein Abdilahi Bulhan (1980, p. 20-42).
33 Morris D. Morris (1965) é um exemplo importante disso.
34 Ver o relatório da conferência Recrutamento do Trabalho nas Colônias e em Outros Territórios com
Condições de Trabalho Análogas (Genebra: ILO, 1935). Ver também Edward A. Ross, Relatório sobre
o Emprego do Trabalho Indígena na África Portuguesa (1925), um relatório apresentado à Comissão
Temporária para a Escravidão da Liga das Nações.
35 O acesso a bases de dados históricas é, por exemplo, oferecida por www.internets.com/shistory.
htm, www.abc-clio.com, www.rhd.uit.no/nhde/micro.htm, http://chnm.gmu.edu/history/research/
dbase.html.
36 . O chamado site Clio-Infra (apresentado pelo Instituto Internacional de História Social em Ams-
terdã) contém dados mundiais sobre indicadores sociais, econômicos e institucionais dos últimos cinco
séculos, com atenção especial para os últimos 200 anos. Veja https://clio-infra.eu/.
195
COLEÇÃO HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: VOLUME III
Problemas da pesquisa
196
COLEÇÃO HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: VOLUME III
42 Marcel van der Linden e Jürgen Rojahn (1990); Marcel van der Linden e Wayne Thorpe (1990);
Marcel van der Linden (1996); Marcel van der Linden e Richard Price (2000).
43 Silver et al., “Labor Unrest in the World-Economy, 1870-1990”. Também: Grupo de Trabalho de
Pesquisa sobre o Trabalho Mundial, “Global Patterns of Labor Movements in Historical Perspective”
(1986). O principal resultado do projeto foi Forças do trabalho: movimentos de trabalhadores e globalização
desde 1870 de Silver (2005).
44 Beverly J. Silver (2005).
45 Ver, por exemplo, Matthias van Rossum e Jeannette Kamp (2016); Steven Hirsch e Lucien van der
Walt (2010); Holger Weiss (2013); Mary Hilson, Silke Neunsinger e Greg Patmore (2017)
46 Jörg Novak (2019).
197
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rat. New Delhi [etc.]: Oxford University Press, 1993.
55 Exceções que confirmam a regra são Y. Eyüp Özveren (2000); Sheila Pelizzon, (2000). Ambos os
ensaios não prestam muita atenção aos trabalhadores.
56 Uma visão geral foi dada por Philip Raikes et al (2000). O importante é Ben Selwyn, (2012).
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O PENSAMENTO PERIFÉRICO1
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povos do Sul, nem algo como um mínimo comum deles, mas uma proposta
para conversas mais proveitosas entre pessoas de diversas procedências culturais.
Neste sentido, é mais pertinente a noção e “ecologia de saberes” (Santos, 2011)
do que “epistemologias do Sul” para definir a proposta em questão.
Tem sido menos associada ao pensamento periférico a noção de “conheci-
mentos subalternos”. Inspirada em uma ampla trajetória eidética, foi mais re-
centemente posta em circulação por Walter Mignolo (2003), que lhe outorgou
projeções notoriamente maiores do que ele desfrutou anteriormente. Contudo,
esse tipo de conhecimento alude a diversas formas de subalternidade como etnia,
gênero e classe, sem enfatizar as formulações das intelectualidades que reagiram
à expansão europeia-ocidental e trazer aqui, especificamente, o dilema de “ser
como o centro” versus “sermos nós mesmos”.
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4 Uma das boas razões para isto é o enorme campo que foi aberto com o aumento dos estados. Deve-
mos levar em conta que, em 1945, participaram da ONU um total de 51 estados, em 1975 eram 144 e
em 2001 já eram 189, e desde esse momento a quantidade continuou crescendo, ainda com menor rapi-
dez. A abrupta diminuição do colonialismo político, o desenvolvimento da fórmula do “Estado-nação”
contemporâneo, uma invenção exitosa, tem mudado entre outros fatores o mapa político do mundo. As
intelectualidades de cada um destes têm desejado recuperar-construir uma trajetória, com antecedentes
que os permitam remontar a antigos impérios, povos, culturas e ancestrais e, por certo, reconhecer a
variedade de expressões regionais, étnicas, de gênero, entre outras, durante o tempo presente.
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turais. As ciências formais, por sua parte, praticamente não enfrentam esse
problema, pois trabalham quase unicamente com linguagens (não com idio-
mas) artificiais. Representa um desafio maior as limitações de trabalhar em
uma língua sobre um pensamento emergido no seio de outra língua, de outra
família linguística e, em algumas ocasiões, com outras formas de escrita, com
duas ou três traduções realizadas muitas vezes por pessoas com pouca forma-
ção em estudos eidéticos.
Outro problema que deve ser considerado neste campo tão vasto de estu-
do, é a determinação de um cânone de autores. Para estabelecer um cânone
razoável, são oferecidos os seguintes critérios: reconhecimento por quem tem
realizado estudos eidéticos especializados sobre cada região; referências recípro-
cas entre as figuras intelectuais, ou seja, a quem é citado e com quem se discute;
reconhecimento em rankings internacionais que relevam figuras intelectuais de
reconhecida influência; presença na internet, critérios de correção ou de discri-
minação positiva, com o objetivo de considerar diversas pessoas, por disciplina,
geo-cultura, gênero e temática.
Uma questão teórica de maior relevância é a circulação das ideias que nos
abrem para o grande problema geral da circulação e, consequentemente, de uma
teoria da circulação. Formulações antigas e outras mais recentes encontram-se
nas questões sobre a circulação eidética sul-sul, sobre a constituição de redes
intelectuais do Sul, principalmente a partir do desenvolvimento das ciências so-
cioeconômicas, depois da teologia e, posteriormente, dos estudos culturais de
outras expressões. A circulação das ideias sul-sul é um dos aspectos mais inova-
dores e necessários de tratar em uma agenda de estudos eidéticos e, particular-
mente, sobre o pensamento das regiões sul-sul. A circulação de ideias abre um
conjunto de problemas teóricos e de possibilidades de ação e, portanto, deve
ser tratada com uma atenção que, neste trabalho, não é possível. A circulação
das ideias como chave para uma teoria da circulação, por outro lado, nos coloca
frente à pergunta sobre as agendas para estimular as circulações sul-sul, que serão
discutidas brevemente mais adiante.
Para terminar esta sessão, deve-se assinalar a existência de inúmeros dicio-
nários que têm apontado uma maneira de dar conta dos conceitos que com-
põem o pensamento do Sul em suas diversas formulações. Obras como Pen-
samiento Crítico Latinoamericano, coordenado por Ricardo Salas (2005) ou o
Dictionary Of Alternative Thought, coordenado por Hugo Biagini e Arturo Roig
(2008), têm recolhido numerosos conceitos emergidos no seio dos ecossistemas
intelectuais da periferia.
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que por aquelas, dominantes desde já, assentadas sobre as histórias e as experi-
ências da modernidade (Mignolo, 2003, p. 20). Este “outro paradigma”, como
ele afirmava, “é diverso, não tem um autor de referência, um gene comum”. Pelo
contrário, sua originalidade consiste em que possui um “conector”, comparti-
lhado por quem tem vivido ou aprendido o trauma de como se sente no corpo a
negação que os valores do progresso, do bem-estar, do bem-ser, foram impostos
à maioria dos habitantes do planeta que, neste momento, precisam “reaprender
a ser”. Dito de outra maneira, trata-se de um outro paradigma que, “em última
instância, é um nome que conecta formas críticas de pensamentos ‘emergentes’
(como na economia) e cuja emergência foi gerada pelo elemento comum de
toda esta diversidade: a expansão imperial/colonial desde o século XVI até hoje”
(Mignolo, 2003, p. 20). Em suma, um outro paradigma em sua diversidade pla-
netária está conectado por uma experiência histórica comum: o colonialismo; e
por um princípio epistêmico que tem marcado todas suas histórias: o horizonte
colonial da modernidade. Isto é, a lógica histórica imposta pela colonialidade do
poder (Mignolo, 2003, p. 239).
Uma das propostas mais inovadoras procedentes da periferia é a proposta
liderada por Vandana Shiva para uma democracia da terra. Referindo-se ao seu
livro Earth Democracy: Justice, Sustainability and Peace (2005), tem dito que tra-
ta da vida para além da globalização corporativa: é sobre outro modelo, outras
maneiras de atuar, e não só no futuro, se não sobre o mundo, que está se cons-
tituindo aqui e agora. Uma democracia viva é aquela em que as pessoas podem
tomar decisões sobre suas vidas e influir sobre as condições em que vivem. Ou
seja, como cultivar seus alimentos, em que condições pode-se produzir suas rou-
pas, exercer a liberdade de escolher como se educam seus filhos e a liberdade de
estabelecer as condições de acesso a saúde. Isso é uma democracia viva. Vandana
Shiva formulou a oposição entre uma democracia morta e uma democracia viva,
que é aquela que afeta a todos os aspetos da vida, não só da vida humana, pois
nos encontramos em um momento da evolução em que qualquer liberdade da
espécie humana deve incluir também as outras espécies, caso contrário, nun-
ca teremos a liberdade humana. Afirmando que a democracia que temos está
realmente morta, enquanto a mesma já não responde aos desejos das pessoas:
trata-se de governos que vão à guerra contra a vontade dos povos, como trata-se
de governos que impõem alimentos geneticamente modificados. A morte da de-
mocracia se produz quando as pessoas não têm liberdade. Também afirmo que é
uma democracia morta, pois, vive das “liberdades” das corporações para aniqui-
lar as pessoas. Para mim, o exemplo mais dramático disso é o fato de que 40.000
camponeses se suicidaram em uma década, como consequência das normas da
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Desafios e agenda
Pensar sobre o presente nos conecta com uma agenda de trabalho e o tra-
tamento do tema não estaria completo se não fosse levada em conta a necessi-
dade de avançar nessas investigações que, em vários sentidos, articulam-se com
o desabrochar das intelectualidades do Sul, em seus dilemas, em seus desafios,
em suas conquistas de autonomias, na colaboração e concordância com outros
seres e com a pluralidade de ideias recebidas, assumidas e reelaboradas. Pensar
as macrorregiões, e o desenvolvimento das ideias nas mesmas, é uma maneira de
avançar em direção à compreensão do Sul global. Conceber a região amazônica
como conjunto, a América do Sul, Oriente Médio, Ásia Central, a bacia do Pa-
cífico e as relações entre todas as partes do sul global, são maneiras de avançar na
formulação de uma agenda.
Trata-se, então, de apresentar algumas indicações de pesquisa sobre o pen-
samento periférico e as regiões periféricas: relacionar o pensamento da América
do Sul com o da Ásia e da África, procurando semelhanças, paralelos e conexões,
sem esquecer os contrastes e as diferenças; fortalecer os estudos sobre estes as-
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A PANDEMIA DE COVID-19:
INTERSEÇÕES E DESAFIOS PARA A HISTÓRIA DA SAÚDE E
DO TEMPO PRESENTE
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Breve retrospectiva
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3 A Nau dos Loucos, ou miseráveis, ou leprosos é uma alegoria de exclusão, recorrente na cultura
ocidental, retratada por Hieronymos Bosch, provavelmente entre 1503-1506, entre outros. Michel Fou-
cault, séculos mais tarde retomou a alegoria ao publicar a História da Loucura (Diaz, 2012).
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tico, por isso mesmo, meio profético do desenrolar dos acontecimentos. Vas-
culhando a memória, não é preciso ir muito longe para recuperar impressões,
impactos e temores despertados pela experiência das epidemias de Zika, Ébola,
Gripe H1N1, da Gripe aviária H5N1, SARS ou MERS (Bertolli Filho, 2015).
Voltando mais um pouco no tempo, defrontamo-nos com a epidemia da AIDS
nas duas décadas finais do século XX. A geração que hoje figura como o grupo
de risco da COVID-19, ainda traz lembranças das pandemias gripais de 1957
(Gripe Asiática) e 1968 (Gripe de Hong Kong).
Já fora do alcance da memória está a grande pandemia de gripe de 1918, as-
sombrosa pelos impactos que causou em um mundo já devastado pela primeira
Grande Guerra Mundial (Silveira, 2007, Abreu, 2018). A “espanhola” ou “pneu-
mônica” é acusada de deixar como legado, no reinado de pouco mais de 4 meses
um número de mortos francamente superior que aquele produzido em 4 anos de
conflito5. Avançando esse mergulho no passado, divisamos as epidemias de febre
amarela e as 3 ondas epidêmicas do cólera no século XIX. As vagas da varíola,
tão comuns nos últimos séculos, são acusadas de dizimar populações indígenas
americanas após os primeiros contatos com os colonizadores (Fernandes, 2010,
Silveira, Marques, 2011). As epidemias de peste que flagelaram a Europa, foram
imortalizadas em relatos como o de Defoe sobre o surto em Londres, em 1665
(Defoe, 2002); e de Bocaccio, sobre a peste de 1348 em Florença (Boccaccio,
1979). E perdendo-se em tempo longínquo, os episódios epidêmicos do Mundo
Antigo, como a peste dos Antoninos e a peste de Atenas, narradas por Amiano
Marcelino (2002) e Tucídides (2011).
Da memória epidêmica narrada como depoimento, como história ou como
literatura, confirmou-se o que alguns autores reconhecem como verdadeira es-
trutura que molda e coage, até hoje, a forma como contamos a história destes
episódios. Charles Rosenberg, historiador norte americano da saúde, identifica a
experiência epidêmica como um evento dramatúrgico, cuja vivência pode ser nar-
rada em atos. Estes partem da negação da existência do mal, substituída adiante
por seu reconhecimento e aceitação. Na sequência, vem a busca pelos culpados,
com a elaboração de esquemas explicativos mobilizando elementos morais, ra-
cionais e sobrenaturais. Mais à frente, tem-se o momento da negociação coletiva
para fazer frente aos impactos provocados pela crise epidêmica. E, quando o
drama começa a ser superado, chega-se ao momento de reflexão sobre o que um
evento dessa natureza pode nos ensinar (Rosenberg, 1995).
5 Estimativas apontam que a Guerra tenha vitimado cerca de 10 milhões de soldados e entre 10 a 13
milhões de civis, enquanto para a pandemia de gripe os estudos sugerem a morte de 20 a 50 milhões,
chegando mesmo a 100 milhões de pessoas (Silveira, 2007).
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6 Termo associado aos cientistas Eugene F Stoermer e Paul Cruzem para referir-se a um novo período
geológico caracterizado como uma era em que as ações humanas começaram a provocar alterações biofí-
sicas em escala planetária (Issberner, Léna, 2018).
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Figura 2: Capa do número especial da revista Teoria e Cultura que faz para-
lelo entre as máscaras utilizadas na idade média para prevenção de Peste Bubô-
nica e as atuais máscaras e material de proteção utilizados pelos profissionais de
saúde contra a COVID-19.
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7 Os gráficos e as representações imagéticas espalhadas na internet, nos blogs, nos jornais e na televisão,
bem como outros meios de comunicação, tem sido uma interessante forma de enquadramento sobre os
dados e números epidemiológicos de distribuição da doença nos espaços geográficos pelo mundo. No
entanto, também criam narrativas sobre a progressão da doença, ora incitando ao pânico, ora menos-
prezando os reais impactos da COVID-19. Criam também uma representação visual da epidemia que
alguns antropólogos têm se dedicado a analisar (Lozano, 2020).
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COLEÇÃO HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: VOLUME III
8 Andrew Lakoff (2017) em seu livro Unprepared: global health in a time of emergency faz uma revisão
detalhada e crítica sobre o surgimento da noção de emergência sanitária nos contextos internacionais e
seus impactos políticos e sociais ao redor do mundo.
9 O discurso sanitário possui importantes vínculos coloniais que transparecem na governança contem-
porânea da saúde global. A atuação da OMS na condução da resposta a uma emergência sanitária, por
meio da aplicação do Regulamento Sanitário Internacional (RSI), evidência reminiscências históricas e
incoerências das medidas tomadas em relação às demandas terceiro-mundistas (Barros, 2017).
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COLEÇÃO HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE: VOLUME III
Michael Löwy2
1 Texto publicado originalmente com o título Les luttes écosociales des indigènes. In.: Écologie &
Politique, n. 46, 2013. O presente artigo é uma versão modificada da publicação intitulada Lutas ecos-
sociais dos indígenas na América Latina. Crítica Marxista, n. 38, p. 61-69, 2014.
*Tradução dessa versão: Maria Helena Oyama (Universidade Federal de Roraima).
2 Agradeço a Denis Chartier por sua ajuda na correção e revisão deste artigo.
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luta contra a poluição provocada pela Southern Peru Copper Corporation, não são
defensores do ambiente? (...) E a população da Amazônia, não é totalmente ecologis-
ta, disposta a dar a vida para defender suas florestas contra a depredação? Do mesmo
modo, a população pobre de Lima, quando protesta contra a poluição das águas3.
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nos do escritor libertário B. Traven, Rosa blanca, publicado em 1929, que narra
como uma grande empresa petroleira norte-americana roubou terras de uma co-
munidade indígena depois de assassinar seu dirigente. Entretanto, este conflito
se intensificou muito mais nas últimas décadas, em consequência da frequente
e extensa exploração do ambiente pelo capital, mas também da emergência dos
movimentos indígenas do continente e do movimento altermundista, que incor-
porou esta luta.
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se solidarizam com esta luta e se esforçam para que seja reconhecida no âmbito
internacional. A partir de 2012, face aos protestos dos indígenas, apoiados pela
sociedade civil, o governo de Ollanta Humala utilizou a força: morte de vários
manifestantes, prisão do prefeito de Cajamarca, culpado de apoiar as comunida-
des, ou ainda mais recentemente, quando policiais armados espancaram Marcos
Arana publicamente. Os protestos, em toda a América Latina, mas também na
Europa, foram ouvidos. A OCMAL denunciou o assassinato de manifestantes e
a prisão de dois advogados dos Direitos Humanos. O caso ilustra a lógica “neo-
extrativista” (e repressiva) dos governos peruanos de diferentes cores políticas, e
a resistência persistente das populações indígenas14.
Uma das mais importantes ações dos movimentos indígenas e dos ecologis-
tas na América Latina é o projeto do parque nacional Yasuní, lançado em 2007
pelo presidente (de esquerda) do Equador, Raphael Corrêa. Trata-se de uma vas-
ta região de 9 820 Km2 de florestas virgens, de uma extraordinária riqueza em
termos de biodiversidade (botanistas calcularam que apenas um hectare contém
mais espécies de árvores do que o todo o território dos Estados Unidos), habitada
sobretudo por comunidades indígenas e delimitada por três pequenas cidades:
Ishpingo, Tambococha e Tiputini (a “ITT” para designar este conjunto). Du-
rante as perfurações na região, diferentes empresas petroleiras, entre elas a Maxus
Energy Corporation, com sede no Texas, encontraram três grandes reservas de
petróleo com uma capacidade estimada em 850 milhões de barris. Nos anos
1980 e 1990, os governos equatorianos anteriores haviam acordado concessões
à companhia texana, mas a resistência dos indígenas havia limitado os danos, o
que impediu a maioria das perfurações.
Como resposta, Raphael Corrêa propôs deixar o petróleo onde ele nasceu
(evitando assim 400 milhões de toneladas de emissões de CO2) em troca de
uma indenização pela comunidade internacional; concretamente, os países ricos
deveriam se encarregar do equivalente à metade das receitas esperadas: em torno
de 3 bilhões e meio de dólares em treze anos. O dinheiro deveria ser transferido
a um fundo gerado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
e seria destinado exclusivamente a preservar a biodiversidade e a desenvolver
as energias renováveis. Este projeto, primeiramente defendido por movimentos
indígenas e ecológicos, só foi posto em prática após a eleição de Raphael Corrêa.
14 A informações desta parte são extraídas do boletim peruano Lucha Indigena.
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Mas os países do Norte não criaram medidas para restringir as emissões de gás
de efeito de estufa e não se interessaram muito pela proporção heterodoxa do
Equador. Alguns países europeus (Espanha, Itália, Alemanha) destinaram um
total de 3 milhões de dólares, o que é irrisório! No entanto, certos países, notada-
mente a Itália e a Noruega, aceitaram diminuir a dívida externa de 100 milhões
de dólares, do Equador. Diante destes resultados insuficientes, Raphael Corrêa
queria renunciar ao projeto e consequentemente abriria o parque às empresas
petroleiras, mas sua decisão não foi adiante por causa de grandes mobilizações
indígenas, camponesas, ecologistas, apoiadas pela esquerda e obtendo a simpatia
da grande maioria da população15.
Certos movimentos indígenas, notadamente a Confederação das Na-
ções Indígenas do Equador (CONAIE), e certos intelectuais de esquerda, como
Alberto Acosta, ex-ministro das Minas e Energia em 2007, e um dos autores
do projeto Yasuní (antes de ser exonerado), criticaram severamente a política
econômica de Corrêa, fundada sob o modelo “extrativista”; é verdade que a
extração do petróleo (fora de Yasuní) se torna muito importante no Equador, já
que garantiu (em 2008) a metade do orçamento geral do país e permitiu finan-
ciar os programas sociais do governo. Esta contradição está presente em outros
governos antioligárquicos na América Latina, mas o projeto Yasuní é exemplar
e sem real precedente: é não apenas uma importante vitória das comunidades
indígenas contra as potências multinacionais petroleiras, mas também uma
das únicas iniciativas no âmbito internacional, que responde efetivamente à
urgência do combate à mudança climática, por uma medida no mínimo eficaz:
deixar o petróleo embaixo da terra... no entanto, esta medida é mais eficiente
do que o “mercado dos direitos de emissões” e outros “mecanismos de desen-
volvimento próprio” do protocolo de Kyoto, que se revelaram perfeitamente
incapazes de reduzir significativamente as emissões de gás de efeito de estufa16.
No caso do parque Yasuní (como em muitas lutas indígenas, notadamente na
região amazônica), o combate das comunidades locais pela defesa de seu am-
biente face à voracidade destruidora da oligarquia fóssil coincidiu plenamente
com a grande causa biológica do século XXI: a prevenção do aquecimento
global, uma das maiores ameaças que nunca havia pesado sobre a vida humana.
Yasuní representa uma vitória que resulta da conjunção entre um governo de
esquerda e uma mobilização socioecológica local autônoma; ela é frágil, a ten-
tação de um retrocesso se faz presente no seio do governo equatoriano. Lamen-
tavelmente, as grandes ONG ecológicas ou os partidos verdes não compraram
15 Le Quang (2012).
16 Por uma crítica ao Protocolo de Kyoto, ver: Brunnengräber (2007) e Löwy (2011, p. 243-262).
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esta causa e não empreenderam uma campanha para obrigar os governos dos
países do Norte a assumir o financiamento do projeto.
A importância de Yasuní é que ele constitui o símbolo perfeito de um
outro sistema econômico, que prefere a natureza ao mercado, a vida aos lucros, e
que anuncia a sociedade pós-petroleira de amanhã. Se os países ricos manifesta-
ram tão pouco interesse pelo projeto, foi não somente porque ele não tem nada
a ver com os “mecanismos de mercado” que tem sua preferência, mas sobretudo
porque eles temem os impactos desta iniciativa. Aceitar financiar Yasuní, seria
abrir a porta a centenas de projetos da mesma natureza, que estão em perfeita
contradição com as políticas escolhidas pelos países capitalistas avançados. Isto
está muito bem ilustrado pelas (não-) escolhas que são feitas no âmbito das ne-
gociações sobre o clima, onde se constata uma incapacidade dos países do Norte
em promover mudanças. Aliás, esta incapacidade provocou uma reação notável
dos povos sul-americanos, que se materializou pela organização da conferência
dos povos em Cochabamba.
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ponde sempre à prática concreta do governo boliviano, que mantém uma estra-
tégia de desenvolvimento que ocupa lugar importante na produção de gás e nas
mineradoras. Recentemente, o projeto de construção de uma autoestrada que
atravessaria uma vasta região de florestas virgens suscitou protestos fervorosos da
parte das comunidades indígenas locais, resultando na suspensão – provisória –
desta iniciativa19.
Certamente, não se pode exigir de Evo Morales nem de Hugo Chávez
que renunciem de uma vez as energias fósseis, que são a principal fonte financei-
ra destes países. Mas o exemplo do parque Yasuní mostra, simbolicamente, que
é possível uma via mais adequada às demandas das comunidades indígenas ou
camponesas e aos discursos ecológicos destes governos.
Conclusão
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de desenvolvimento – e seu estabelecimento como o projeto de país no Bra-
sil nas últimas sete décadas – articulam-se ao processo de expansão do Sistema
Mundo Moderno Colonial na Amazônia do tempo presente. Esse paradigma
orienta-se centralmente pelas epistemologias do norte (Santos, 2018), as formas
de conhecer e pelas definições que lhes dão suporte, as quais são organizadas a
partir de lógicas externas às comunidades amazônidas, desconsiderando os sujei-
tos amazônidas como produtores de conhecimento e como sujeitos capazes de
descolonizar o saber e o poder.
As universidades amazônicas mantêm-se, assim, de diversos modos, pressas
a essa monotopia do saber. Enquanto pesquisadores continuam a discutir os
impactos, movimentos sociais como o MAB2 denunciam há anos a articulação
das barragens e a mercantilização dos recursos de uso comum, como a água e
as correntezas dos rios. A crítica a esse paradigma não quer dizer que devamos
duvidar dos impactos, já que eles existem, são multifacetados e devemos co-
nhecê-los. A questão central é que o paradigma do impacto se articula como
colonialidade do saber, pois um de seus objetivos é a produção de aprendiza-
gem para a minoração de efeitos em casos da construção de futuros projetos de
desenvolvimento. Além disso, o foco nos impactos socioambientais acaba por
naturalizar a existência dos projetos – seria possível ir diminuindo os impactos a
níveis “aceitáveis”, como afirma uma das maiores autoridades no tema (Fearni-
side, 2015). Comentando a construção de Tucurui e Balbina, Fearniside (2015,
p. 48) afirma que “a avaliação de propostas de desenvolvimento [no] futuro
pode ser melhorada se as lições forem aprendidas a partir das experiências pas-
sadas”. No caso das UHE, ainda segundo o teórico, “os impactos sociais tiveram
um papel mínimo na tomada de decisão inicial de construir a barragem”, já que
a “decisão foi principalmente baseada em seus benefícios financeiros para atores
distantes, sobretudo no Japão e na França, e para os beneficiários brasileiros
dos contratos de construção” (Fearniside, 2015, p. 48). Esses apontamentos,
publicados no contexto das discussões sobre Belo Monte, exemplificam bem
a crença de que estudar os impactos e mostrar os danos causados deveria levar
a um nível melhor de tomada de decisão. O que passa despercebido ao autor
é que os interesses de Japão, França e dos agentes nacionais são estruturais na
exploração dos recursos naturais amazônicos a partir da década de 1970. Mate-
rializam, assim, a transformação da região em fronteira de expansão do Sistema
Mundo Moderno Colonial.
2 O exemplo mais visível está na consigna “água e energia não são mercadoria” do MAB. Ver https://
www.mabnacional.org.br/
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David Harvey (2010) afirma que o capitalismo nunca resolve suas crises,
mas as desloca geograficamente. Devemos acrescentar que a lógica desse desloca-
mento é a colonialidade do poder. A exemplo disso, observa-se a crise energética
e ambiental da década de 1970 deslocada para o Sul Global. Em termos históri-
cos estritos, essa mudança começou em 1973. O aumento do preço do petróleo
elevou às nuvens o preço da energia e da produção industrial nos países do Nor-
te. A solução foi a construção de uma nova geopolítica da indústria de base e a
produção de energia. A parte do processamento mineral que demanda maiores
quantidades de eletricidade é a produção metalúrgica, que foi deslocada para o
Sul Global: América Latina, África e China. Esse deslocamento foi propagandea-
do por Estados nacionais e agentes do Sistema Mundo Moderno Colonial como
desenvolvimento dos países do Sul.
Na Amazônia, foi assim. Em 1978, a indústria de base chegou à Amazônia,
um território tradicional de mineração, o que levou à necessidade de construção
de estrutura para produtores de energia. A Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no rio
Tocantins, foi construída nesse contexto, para atender essa indústria que se ins-
talava na região. Vale notar que o processamento industrial de alumínio precisa
de grandes quantidades de energia. Bermann (2001)3 calcula que “cada tonelada
de alumínio produzida no país equivale ao consumo de energia de cem famílias
brasileiras em um mês”. Hoje, o Brasil é o terceiro maior produtor de alumínio
do mundo e a província do Pará produz 40% do total. Das quinze maiores minas
de bauxita do mundo, três estão na Amazônia Oriental, mais especificamente,
3 Cálculo disponível in: Melo, Liana. Alumínio, um sorvedouro de energia elétrica. Disponível em ht-
tps://www.ecodebate.com.br/2009/09/21/aluminio-um-sorvedouro-de-energia-eletrica/. Acessado em
23 de novembro de 2016.
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tão GDF SUEZ S.A, que tem participação em várias barragens da Amazônia. A
ANGIE S.A é uma das empresas líderes no setor de hidrobusiness global. Segun-
do seu site (www.engie.com), a empresa hoje é o maior produtor independente
de energia do mundo. Segundo a história da antiga SUEZ S.A, foi fundada em
1858, sendo a responsável pela construção do Canal de Suez no Egito. O passo
seguinte à concessão da exploração privada de recursos naturais públicos, nos
últimos anos, foi a articulação do financiamento para a construção, no caso
do Brasil, pelos bancos públicos, como Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social (BNDES S. A). Anteriormente, até a década de 1990, o
financiador mais importante era o Banco Mundial, mas, com o crescimento da
economia brasileira nos últimos vinte anos, o banco público financiou obras no
Brasil, América Latina e Caribe.
Dois outros grupos de empresas conectados à cadeia devem ser adicionados:
os que fornecem suplementos, como a francesa Alston S.A e a alemã Siemens
S.A; as grandes empresas brasileiras de engenharia pesada, como ODEBRECHT
S.A, Camargo Correira S.A, Queiroz Galvão S.A, do aço, como GERDAU S.A,
e cimento, como Votorantim S.A. Tratam-se das maiores empresas do Brasil.
Além disso, existem empresas menores que realizam estudos de impacto ambien-
tal e social (EIA/RIMA), com realização obrigatória pelos construtores, segundo
a Legislação. Por fim, existem centenas de pequenas empresas de construção que
são subcontratadas para partes da obra, além de milhares de trabalhadores que
compõem o que no Brasil é chamado de “indústria barrageira”.
As conexões entre essa “indústria” e o Estado nacional estão documentadas
(Campos, 2014) pela relação dos governos militares no Brasil (1964-1985) com
as empresas que haviam surgido e se tornaram grandes atores econômicos e po-
líticos a partir do governo de Juscelino Kubitscheck (1956-1961). Nos últimos
anos, a estratégia central é impor seus ex-executivos em cargos públicos da pri-
meira e segunda etapas dos governos latino-americanos. Possivelmente, surgiram
daí as dezenas de empresários que ocupam cargos públicos no Brasil hoje, como
o ex-prefeito da cidade de São Paulo e hoje Governador do Estado com o mesmo
nome, João Doria, o governador do estado de Minas Gerais, Romeu Zema, entre
outros. Na América Latina, Macri na Argentina e Piñera no Chile mostram que
essa articulação não é algo localizado Brasil. A chegada desses empresários a car-
gos executivos foi precedida, no Brasil, por vários ministros e subsecretários de
Lula e Dilma que vieram do campo do mercado, sendo atualmente, no vigente
governo, aprofundada. Sob o discurso da gestão eficiente, eles levam ao esvazia-
mento do político. Por outro lado, como mostram Lima e Marques (2018) no
estudo sobre as Usinas Hidrelétricas angulares de Lajeado e Peixe, no Tocantins,
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o sujeito que está perto da barragem é conduzido a ter a consciência de que esse
espaço natural foi controlado, reordenado de acordo com uma vontade e poder
da sociedade nacional.
Porém, na fotografia acima, existe um outro elemento a destacar: o trabalhador
está “montado” na montanha, o que remente à cena dos cowboys domando touros
no oeste dos EUA. O imaginário ao qual a fotografia nos remete é do domínio da
natureza, o rio e a montanha, pelo homem moderno. Por outro lado, também repre-
senta a reintegração do domínio, seja porque nunca está completo, seja porque deve
ser reintegrado constantemente. Conforme pode ser observado em vários filmes,
essa barragem se rompe e destrói cidades, matando milhares de pessoas.
A imagem 03 é parte de um anúncio publicitário da Usina Hidrelétrica de
Estreito. Ela é a versão brasileira dessa simbologia.
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têm custo maior e devem ser acompanhados e assistidos por um prazo de trinta
anos. Mesmo quando decidem fazer reassentamentos, em geral, compram terras
baratas que em geral possuem solo de baixa qualidade ou, como aconteceu no
caso do Reassentamento Baixão, sem água potável.
Dois estudos recentes mostram as estratégias de gestão do convencimento
e do conflito durante a construção da Usina de Estreito. Nas regiões rurais da
Amazônia, o meio de comunicação com maior penetração é o rádio. Por esse
motivo, a partir de 2003 foi empreendida uma intensa campanha publicitária
nos meios de comunicação local e regional, existente até hoje (Silva Júnior;
Petit, 2014). A preocupação era convencer os afetados e a sociedade local e
regional de que a construção traria desenvolvimento e emprego para milhares
de pessoas da região. Considerando que durante a construção da Usina havia
cerca de 35 mil postos de empregos disponíveis, isso era usado como prova
da veracidade da narrativa-ideologia do desenvolvimento. Uma região rural,
“atrasada” e “distante” dos grandes centros urbanos do país, estaria sendo
desenvolvida pelo empreendimento. Para os habitantes das cidades próximas,
como Araguaína-TO e Imperatriz-MA, distantes da zona de impactos diretos
e indiretos e que não possuíam relação direta com aquele espaço-território,
essa lógica foi naturalizada. Contudo, para as mais de 7.500 famílias afetadas
diretamente e que tiveram que abandonar o seu espaço-território ancestral em
julho de 2010, aquele evento aparecia de forma mais complexa. As reuniões
coordenadas pela companhia de negociação Diálogo, bem como as audiências
públicas, foram classificas por lideranças populares que entrevistamos como
farsas. Por esse motivo, lançaram mão de diversas estratégias de cooptação
de lideranças membros da comunidade, negociando, por exemplo, indivi-
dualmente o valor das indenizações, e de elites políticas locais a quem foi
designado, de maneira não oficial, o convencimento da população ribeirinha
a aceitar a indenização e o reassentamento. Segundo diversos entrevistados,
o então prefeito de um dos municípios afetados dizia que contra uma obra
do Governo Federal não era possível reagir, sendo necessário aceitar o que a
empresa indicasse.
Adila Lima e Elineide Marques (2018), que estudaram as estratégias de ges-
tão do conflito por parte do CESTE S.A, detalharam como o consórcio contra-
tou pessoas que haviam tido experiências em empreendimentos anteriores para
negociar com comunidades afetadas. Outra decisão importante foi negociar de
forma individual, bem como não reconhecer os posseiros tradicionais, signifi-
cando que cerca de 1.150 famílias6 ficaram sem nenhum tipo de indenização.
6 Números fornecidos pelo MAB. Disponible en http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/35537-usina-
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9 Maria da Ilha em entrevista oral, ano de 2014, usar a palavra “paraíso” várias vezes para se referir à Ilha
de São José. Pelo que percebemos, inclusive na fala de Valderice, a Ilha era uma comunidade referência
para toda a região afetada pelo lago da UHE de Estreito.
10 Valderice Pereira da Silva, Entrevista Oral, 2015.
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Considerações finais
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Referências
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expostas, eram bastante alto. A grande maioria das famílias pobres que habitava
nos centros urbanos enviava parte de seus filhos e filhas para serem criados por
outras famílias, geralmente com status social superior. Os genitores “pagavam”
por esse acolhimento através do labor dos seus filhos e filhas. Com a difusão e
apropriação sociocultural da norma familiar burguesa, essa “migração” tornou se
seletiva, reservada somente a adolescentes pobres do sexo feminino, que passa-
ram a ingressar nas casas das famílias mais abastadas na condição de empregadas
domésticas e/ou babás (Venâncio, 2010).
A outra parcela da população pobre, composta de bebês, de “crianças peque-
nas” e de meninos, permanecia com seus pais, mães ou parentes, vizinhos etc.,
ou então era enviada aos orfanatos. Esses espaços, idealizados para abrigar órfãos
e órfãs pobres, geridos, em sua maioria, por ordens religiosas ou associações
filantrópicas, buscavam garantir a subsistência das pessoas pobres, bem como o
aprendizado de algum ofício e o ensino escolar das “primeiras letras”. Por mais
de 150 anos, essas instituições de acolhimento, em seus diferentes formatos –
patronatos agrícolas, asilos para meninas e meninos órfãos, escolas de correção
etc. – formaram o “carro chefe” da assistência social, levada a cabo entre crianças
e adolescentes pobres nos países da Europa e da América.
Na década de 1920, em função dos conflitos bélicos ocorridos no conti-
nente europeu, com destaque para a Primeira Guerra Mundial, foi observado
um aumento significativo no número de órfãos e órfãs. Esse cenário superlativo
referente à orfandade, conjugado com o já existente das famílias urbanas pobres,
exigia que ações no campo da assistência social (construção de novos asilos; au-
mento de vagas nos orfanatos já existentes; adoção dos órfãos e órfãs) fossem
tomadas para minimizar as privações por que passavam, na época, crianças, ado-
lescentes e jovens considerados sem família.
Além das temáticas já mencionadas, outras duas questões moviam ativistas
sociais e burocratas dos diferentes países da Europa e da América em relação às
infâncias nas primeiras décadas do século XX. A primeira delas dizia respeito
à introdução da educação escolar para o maior número possível de crianças,
adolescentes e jovens. As mudanças, ocorridas sobretudo na produção indus-
trial nas primeiras décadas do século XX, demandavam trabalhadores e traba-
lhadoras que fossem letrados. Eram muitos os “obstáculos” a serem vencidos
no sentido de implementar a educação escolar em massa. Deste conjunto de
“obstáculos”, destacamos os seguintes: os altos investimentos demandados a
particulares ou aos Estados nacionais para a construção de escolas e contratação
de docentes; a edificação de currículos escolares que tivessem em seu horizonte
a formação de cidadãos e trabalhadores disciplinados e, enfim, a resistência das
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Nações Unidas para a Infância (Unicef ) e a Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que passaram a desempenhar papéis
de destaque em relação às políticas sociais efetuadas em favor de crianças, ado-
lescentes e jovens, implementadas em países dos vários continentes em relação,
respectivamente, à saúde e à educação (Kolb, 2005).
A Declaração Universal dos Direitos da Criança, como veremos a seguir,
foi construída da mesma forma que a Declaração de Genebra, a partir da pers-
pectiva sociojurídica da proteção e da provisão. A cláusula pétrea da normativa
internacional é o princípio 1˚, que afirmava que toda a criança, independente de
“raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição, quer sua ou
de sua família,” teria garantidos os direitos enunciados no tratado. Através desse
enunciado inaugurava-se um novo cenário no campo jurídico voltado para as
crianças, pois estas, bem como adolescentes e jovens, passavam a ser portadores
de direitos. Por outro lado, tal princípio também remetia e expressava o caráter
utópico do ideário dos Direitos Humanos. Ou seja, como implementar esses
direitos para populações infantojuvenis que viviam (e vivem) sob condições tão
diferenciadas do ponto de vista econômico e/ou sociocultural (Moyn, 2010)
Para o sociólogo Manfred Liebel (2010), a Declaração Universal dos Direi-
tos da Criança foi edificada tendo por base o paradigma epistemológico relativo
às teorias psicológicas do desenvolvimento infantil então em voga na Europa e
na América. O princípio 2˚ preconizava que a legislação deveria garantir o pleno
desenvolvimento da população infantojuvenil e que seus interesses deveriam se
sobrepor aos dos demais dispostos nessas leis. Já o princípio 3˚, tributário das
experiências vivenciadas pelos refugiados e apátridas no pós-guerra, afirmava que
toda criança teria direito a um nome e a uma nacionalidade. A garantia de que
as crianças tivessem acesso a um sistema de saúde era o mote do princípio 4º.
O enunciado dos direitos das crianças portadoras de deficiências estava descrito
no quinto princípio. O princípio de número 6 (talvez o que mais estava pauta-
do nas teorias psicológicas do desenvolvimento infantil) preconizava que pais e
governos deveriam responsabilizar-se pelos que não possuíam família ou meios
de subsistência. O princípio 7˚ buscava garantir que as crianças tivessem acesso
à educação escolar, que deveria ser gratuita e obrigatória nas séries elementares,
como também “transformava” o lazer num direito de meninos e meninas. A
afirmação de que as crianças deveriam ser socorridas em primeiro lugar em caso
de catástrofes estava prescrita no princípio oitavo. O princípio 9˚ tinha como
tema as relações de trabalho infantojuvenil, abordadas do ponto de vista da re-
gulamentação do labor. Por fim, o princípio 10˚, também redigido sob uma
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11 Tradução da autora.
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Considerações Finais
Referências
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_____. Rompendo o silêncio: violências sexuais, infâncias e direitos (1989-2000). Outros
Tempos, vol. 17, n. 29, p. 205 - 220. 2020.
BERQUÓ, Elza. Arranjos familiares no Brasil: uma visão demográfica. In: SCHWARCZ,
Lilia M. (Org.) História da Vida Privada no Brasil. Contrastes da Intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998, p. 412-437.
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AUTORAS E AUTORES
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Eduardo Devés-Valdés
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entre outras. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Con-
temporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: História do Tempo
Presente, Ditaduras de Segurança Nacional do Cone Sul, Conexão Repressiva,
Terrorismo de Estado e Ensino de História.
Harley Silva
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Michael Löwy
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ORGANIZADORES E ORGANIZADORAS
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Organizadores:
Tiago Siqueira Reis
Carla Monteiro de Souza
Monalisa Pavonne Oliveira
Américo Alves de Lyra Júnior
Roraima
2020