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Outros Tempos, vol. 17, n. 29, 2020, p. 355 - 372. ISSN: 1808-8031
DOI: http://dx.doi.org/10.18817/ot.v17i29.767
THE BODY IN TRANCE: decentered genders in Jomard Muniz de Britto’s film Esperando
João (João Pessoa, 1981)
Resumo: O texto aborda, a pretexto da experiência fílmica do ativista cultural pernambucano Jomard
Muniz de Britto, o descentramento de gênero presente na produção de filmes em formato super-8 em
João Pessoa, Paraíba. O objeto central do estudo de caso será a película em curta-metragem Esperando
João, cujo mote se localiza em torno da história de Anayde Beiriz, poetisa paraibana que, amada do
jornalista João Dantas, é considerada, no início do século XX, a propulsora da Revolução de 1930. Em
torno da figura de Anayde Beiriz, Jomard estabelece, no filme, uma nova proposta sobre as dimensões
do corpo e das sexualidades.
Abstract: Under the pretext of the film experience of Pernambuco cultural activist Jomard Muniz de
Britto, the text addresses the decentralization of gender, present in the production of super-8 films in
João Pessoa, Paraíba. The central object of the case study will be the short film Esperando João,
whose script focus on the story of Anayde Beiriz, a Paraiba poet who, darling of journalist João
Dantas, is considered, at the beginning of the Twentieth century, the propellant of the Revolution of
1930. Around the figure of Anayde Beiriz, Jomard establishes, in the film, a new proposal on the
dimensions of the body and on sexualities.
Resumen: El texto aborda, bajo el pretexto de la experiencia cinematográfica del activista cultural de
Pernambuco Jomard Muniz de Britto, la descentralización del género presente en la producción de
películas de super-8 en João Pessoa, Paraíba. El objeto central del estudio de caso será el cortometraje
Esperando João, cuyo lema gira en torno a la historia de Anayde Beiriz, una poeta de Paraíba que,
amada por el periodista João Dantas, es considerada, a principios del siglo XX, la propelente de la
1
Estudo de caso submetido à avaliação em junho de 2019 e aprovado para publicação em dezembro de 2019.
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Revolución de 1930. En torno a la figura de Anayde Beiriz, Jomard establece, en la película, una
nueva propuesta sobre las dimensiones del cuerpo y las sexualidades.
Introdução
2
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da
Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005. p. 94.
3
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque Júnior. 1968: o levante das palavras. In:
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar (org.). História, cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI,
2009. p. 88-89.
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Em 1972, o poeta e letrista piauiense Torquato Pereira de Araújo Neto, destacado em sua vivência cultural no
Rio de Janeiro, mas à época em temporada na cidade natal, Teresina, envia ao amigo e artista plástico Hélio
Oiticica uma emblemática carta, na qual informa a publicação da primeira edição de um jornal experimental ali
produzido por ele e por um grupo de “sete a oito meninos aqui de dentro”, cujo título, Gramma, remetia à grama
da Igreja de São Benedito, localizada no centro da capital piauiense. Na carta, destaca-se a referência de
Torquato à cidade, cuja vivência, em larga medida, espalhava-se para diversos outros espaços do Brasil e do
Ocidente: “(ah, se você conhecesse o que é o Piauí...), e numa terra onde não acontece nada, onde nunca passou
um filme de Godard e onde cabeludo não entra na escola nem nas casas de família, pode crer, essa Gramma é o
que eu disse antes: uma espécie de milagre”. Ver: ARAÚJO NETO, Torquato Pereira de. Carta a Hélio Oiticica.
Teresina, 7 jun. 1972. In: MORICONI, Ítalo (org.). Torquato Neto: essencial. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
5
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: invenção do “falo”, uma história do gênero
masculino (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2013.
6
Cf. CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da
Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005. p. 49.
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“como mulheres e homens se moviam, o que viam e ouviam, os odores que penetravam em
suas narinas, onde comiam, seus hábitos de vestir, de banhar e de que forma faziam amor”.7
Trata-se, principalmente, de um estudo que entende a necessidade metodológica
de uma historiografia onde o corpo passe a habitar também, denotando sua dimensão material,
que cheire a carne, na tentativa de “colocação do corpo, do corpo sensível, dos afetos, das
emoções, das comoções, das sensibilidades como elementos partícipes dos eventos históricos”
e, consequentemente, “de trazer para o interior do texto historiográfico aquilo mesmo que, por
muito tempo, foi o não dito, o inconsciente, o interdito, o negado, o recalcado, o invisível e o
indizível”8. Em um primeiro momento, o estudo voltar-se-á para uma análise do personagem
central que o mobiliza, o próprio Jomard Muniz de Britto, em suas peripécias culturais
trafegadas por diferentes espaços urbanos do Nordeste para, no momento seguinte,
adentrarmos no filme em si e na apresentação conformada por este às discussões pertinentes
ao texto.
7
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso,
2016. p. 13.
8
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O passado, como falo? o corpo sensível como um ausente na
escrita da história. In: SPÍNDOLA, Pablo; SANTOS, Wagner Geminiano dos (org.). Teoria da história e
história da historiografia dos séculos XIX e XX: ensaios. Jundiaí: Paco, 2018. p. 23.
9
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A gente é cria de frases: sobre história e biografia. Maracanan,
Rio de Janeiro, p. 13-27, jan./dez. 2012.
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palavras rachadas, que se desdobram não apenas sobre os outros, mas sobre si mesmo, um
conjunto incidente de discursos, de verdades autobiográficas, desejosas de serem lançadas
ante aqueles que sobre ele se propõem a falar.
A imagem aparentemente passiva de Jomard Muniz de Britto pode, ainda que por
poucos segundos, embaçar os múltiplos discursos com os quais o mesmo desejou conviver.
Palhaço degolado ou mau velhinho, apenas para citar os mais conhecidos. Sua fuga pela
esquerda dos discursos normatizadores conferiu-lhe um outro discurso, forjado a partir dele
sobre si mesmo. Um discurso potente de autobiografia, que faz dele uma cria de suas próprias
frases, imerso naquilo que ele configurou como um formato cristalizado de falar de sua
potência criativa em dissolver os modelos tradicionais, de tratar questões tais como a cultura
brasileira, o corpo e as sexualidades, os usos da educação e da pedagogia, as relações para
com a cidade do Recife e seus veículos de comunicação. O corpo de Jomard, desejoso de ser
rizomático, um sistema aberto de conceitos10, parece, ao contrário, demarcar-se como uma
raiz, cujo outro desejo, em contradição ao anterior, é fincar-se a partir de uma análise sua.
Havemos de compreender que os sujeitos são descontínuos. Não é possível
observá-lo como um idêntico a si mesmo, como alguém que existe para fora de suas
contradições. Para compreendê-los, “é preciso conhecer os anseios primordiais que este deseja
satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida em que elas
conseguem realizar tais aspirações. Mas os anseios não estão definidos antes de todas as
experiências.”11 Nascido no bairro recifense do São José, filho de um paraibano com uma
pernambucana, considera-se, tal como afirma textualmente na pequena biografia que abre a
segunda edição de Do Modernismo à Bossa Nova, um “híbrido de nascença”12.
Desenvolveria, futuramente, suas atividades docentes, uma vez que se tornaria professor das
Universidades Federais da Paraíba e de Pernambuco. Acusado de subversivo, é afastado da
vivência acadêmica após o golpe civil-militar de 1964. Participa, junto com o educador Paulo
Freire, do Movimento de Educação de Base (MEB), instrumento importante para
compreender as discussões levantadas em seu primeiro livro, Contradições do homem
brasileiro, publicado em 1964. Anteriormente, aluno de Estética de Ariano Suassuna,
integrara as frentes do Teatro Popular do Nordeste, nos quais ganhara mais vigor sua veia
performática. Sua ruptura posterior com Ariano instauraria um ressentimento que se torna
presente em sua obra, na qual a figura do dramaturgo paraibano apareceria sempre como alvo
10
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.
v. 1.
11
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. p. 13.
12
BRITTO, Jomard Muniz de. Do Modernismo à Bossa Nova. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 15.
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13
Para uma discussão mais ampla sobre a emergência da Pernambucália no Recife, ver: BRITO, Fábio Leonardo
Castelo Branco. A fabricação da Pernambucália em Recife (1967-1973): configurações históricas do
“movimento tropicalista” em Pernambuco. História, São Paulo, v. 37, p. 1-20, 2018.
14
Uma discussão mais ampla sobre a produção de filmes em formato super-8 em Recife, notadamente as tensões
entre tropicalistas e armorialistas, pode ser encontrada na historiografia recente. Ver: SANTOS FILHO,
Francisco Aristides Oliveira dos. Jomard Muniz de Britto e O Palhaço Degolado. Teresina: EDUFPI, 2016;
BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários de um Brasil profundo: invenções da cultura brasileira em
Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos. Teresina: EDUFPI, 2018.
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Foi em 1982, um dos anos mais difíceis da minha vida. [...] Para variar estava
completamente sem grana. Jomard e Antônio Cadengue generosamente me
arranjaram um emprego, incluindo-me num projeto deles. Assim, fomos os três a
uma cidadezinha no interior dar um curso de treinamento para rapazes de uma
faculdade de Agronomia, por vários dias de trabalho nem sempre agradável. No
encerramento do curso, nós nos dispusemos a fazer uma sessão tira-dúvidas. Tudo
corria bem até que um gaiato levantou-se e, dirigindo-se a nós três
indiscriminadamente, fez uma pergunta que tinha o som de uma acusação: “Vocês
são homossexuais?” Olhei para a cara de Cadengue, que olhou para a cara de
Jomard, ambos sem saber responder à evidente provocação. O máximo de jogo de
cintura a que eu poderia chegar remeteria à pergunta retrucada por Truman Capote,
numa situação semelhante: “Isto é uma cantada?” Mas não ousei, já que conhecia
mal aquele terreno de rapazes machões acostumados a meter a mão em xoxota de
vaca. De modo que olhávamos ambos aflitos para Jomard que se manteve por alguns
segundos com aquele seu enigmático sorriso no rosto. Instantes depois, presenciei
uma das cenas pedagogicamente mais provocadoras de toda minha vida. Jomard
Muniz de Britto levantou-se, dirigiu-se para o público e pôs-se a percorrer todo o
auditório, devolvendo a pergunta. Corria para um lado, parava diante de um
estudante, indiscriminadamente e perguntava com o dedo apontado para seu rosto:
“Você é homossexual?” A seguir, corria até outro, repetia o gesto e a pergunta:
“Você é homossexual?” Ele simplesmente colocou um espelho diante do rosto de
cada estudante. [...] No final, não foi preciso debate algum. O que vi, com olhos
estatelados de prazer, foi o público começar lentamente a rir de si mesmo, até
explodir em palmas, com o sorriso de quem diz: “E quem não é?” [...] 17
15
BRITTO, Jomard Muniz de; LEMOS, Sérgio. Inventários de um feudalismo cultural. Jaboatão dos
Guararapes: Gráfica Nordeste, 1979.
16
MORAES, Fabiana; OLIVEIRA, Aristides. Jomard Muniz de Britto: professor em transe. Recife: Cepe, 2017.
p. 165.
17
TREVISAN, João Silvério. Jomard Barreto, filho de Tobias Muniz de Britto. São Paulo: Impresso, 1997.
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18
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Fugir do próprio rosto. In: RAGO, Margareth (org.). Figuras de Foucault.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 87.
19
Para uma discussão mais ampla a respeito do jornal Lampião da Esquina, ver: RODRIGUES, Jorge Caê. Um
lampião iluminando esquinas escuras da ditadura. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.). Ditadura e
homossexualidades: repressão, resistência e a busca pela verdade. São Carlos: EdUFSCar, 2015. p. 83-123.
20
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015. p. 248.
21
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da sociedade
patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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22
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino... op. cit., p. 229.
23
MORAES; OLIVEIRA, op. cit., p. 138-139.
24
Ibid., p. 139.
25
Ibid., p. 139-140.
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26
BRITTO, Jomard Muniz de. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2013. p. 180.
27
JOFFILY, José. Anayde Beiriz: paixão e morte na Revolução de 30. Rio de Janeiro: GBAG, 1980.
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28
Para uma discussão mais ampla, ver: PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto,
2007.
29
SLVA, Laércio Teodoro da. Parahyba masculina feminina neutra: cinema (in)direto, super-8, gênero e
sexualidade (Paraíba, 1979-1986). 2012. 225 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, p. 45.
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30
MONTEIRO, Jaislan Honório. Arte como experiência: cinema, intertextualidade e produção de sentido.
Teresina: EDUFPI, 2017. p. 115.
31
Trata-se de uma referência à personagem-título do romance do escritor russo-americano Vladimir Nabokov,
publicado em 1955, onde o narrador-personagem descreve sua relação ambígua de desejo com Dolores Haze, ou
“Lolita”, garota de doze anos, de quem o referido se torna padrasto.
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s
32
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino... op. cit., p. 95.
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s
É, portanto, a deixa para que se inicie a sequência de uma cidade que se pauta, a
partir dos acontecimentos de 1930, em torno de uma representação de masculinidade. Após o
assassinato do líder político paraibano e a consequente Revolução de 1930, que elevaria
Getúlio Vargas à condição de Presidente da República, a capital da Paraíba seria rebatizada de
João Pessoa e a imagem do ex-Presidente do Estado tornar-se-ia um lugar de memória34,
33
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e
documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico. ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 26, p.
14, jan./jun. 2013.
34
Para uma reflexão mais ampla a respeito do conceito de lugar de memória, ver: NORA, Pierre. Entre a
memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, nov. 1993.
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Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s
Na disputa pela memória, João Pessoa sairia vitorioso com relação a João Dantas,
tornando-se, portanto, ele o herói monumentalizado da Paraíba, em detrimento do jornalista
35
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. A cultura física, os afetos patrióticos e a construção de novos padrões
de masculinidade: Teresina – 1900-1930. In: MATOS, Maria Izilda Santos de; CASTELO BRANCO, Pedro
Vilarinho (org.). Cultura, corpo e educação: diálogos de gênero. São Paulo: Intermeios; Teresina: EDUFPI,
2015. p. 21.
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que dele seria algoz. Tal dimensão aparece com maior clareza na Figura 04, onde, abaixo da
estátua de corpo inteiro do ex-Presidente do Estado, seguia-se a placa com o letreiro “A João
Pessoa, à Paraíba”. Era, em tempo de necessidade de heróis, uma forma de dotar seu
personagem de um caráter de universalidade, de patrimônio de uma República ainda jovem36.
Em contraponto ao herói nacional, João Dantas aparecia como o intelectual das letras, parte
de um momento em que emergiam os filhos das elites locais, só que, agora, atrelados ao título
e à vivência de bacharéis em Direito, cujo espólio não esperado pelos grandes proprietários de
terra era o seu antipatriarcalismo, parte de “um processo de desidentificação com as gerações
anteriores, com os modelos de sujeito que os antepassados representavam37.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s
36
José Murilo de Carvalho reafirma a necessidade de símbolos para a República nascente ao retomar a figura de
Tiradentes, tido pela narrativa imperial como um insurreto, e tornado herói nacional com a emergência do novo
regime. Ver: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
37
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino... op. cit., p. 53.
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mulheres de carne branca e de modos refinados”, cujos hábitos haveriam contribuído para
refinar os homens, “fazendo deles quase umas moças”38. Ainda que não se enquadrasse como
uma “cocote estrangeira”, a poetisa Anayde Beiriz encaixava-se perfeitamente na construção
da “mulher de carne branca e de modos refinados”, que acentuava a distinção ao defender
ideais progressistas no contexto paraibano do período.
Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s
38
Ibid., p. 56.
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estranho, que transcende a substância do sexo, apontando, portanto, não haver em si uma
identidade de gênero que não seja construída na performatividade39.
Considerações finais
39
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015. p. 56.
40
Para uma discussão mais ampla desse conceito, ver: BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários de
um Brasil profundo: invenções da cultura brasileira em Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos.
Teresina: EDUFPI, 2018.