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Outros Tempos, vol. 17, n. 29, 2020, p. 355 - 372. ISSN: 1808-8031

DOI: http://dx.doi.org/10.18817/ot.v17i29.767

O CORPO EM TRANSE: descentramentos de gênero no filme Esperando João, de Jomard


Muniz de Britto (João Pessoa, 1981)1

THE BODY IN TRANCE: decentered genders in Jomard Muniz de Britto’s film Esperando
João (João Pessoa, 1981)

EL CUERPO EN TRANCE: descentramentos de género en la película Esperando João de


Jomard Muniz de Britto (João Pessoa, 1981)

FÁBIO LEONARDO CASTELO BRANCO BRITO


Doutor em História Social
Departamento de História/Programa de Pós-Graduação em História do Brasil
Universidade Federal do Piauí
GT História, Cultura e Subjetividade (DGP/CNPq)
GT Nacional de História Cultural (ANPUH)
fabioleobrito@hotmail.com

Resumo: O texto aborda, a pretexto da experiência fílmica do ativista cultural pernambucano Jomard
Muniz de Britto, o descentramento de gênero presente na produção de filmes em formato super-8 em
João Pessoa, Paraíba. O objeto central do estudo de caso será a película em curta-metragem Esperando
João, cujo mote se localiza em torno da história de Anayde Beiriz, poetisa paraibana que, amada do
jornalista João Dantas, é considerada, no início do século XX, a propulsora da Revolução de 1930. Em
torno da figura de Anayde Beiriz, Jomard estabelece, no filme, uma nova proposta sobre as dimensões
do corpo e das sexualidades.

Palavras-chave: História. Corpo. Gênero. Sexualidades. Super-8.

Abstract: Under the pretext of the film experience of Pernambuco cultural activist Jomard Muniz de
Britto, the text addresses the decentralization of gender, present in the production of super-8 films in
João Pessoa, Paraíba. The central object of the case study will be the short film Esperando João,
whose script focus on the story of Anayde Beiriz, a Paraiba poet who, darling of journalist João
Dantas, is considered, at the beginning of the Twentieth century, the propellant of the Revolution of
1930. Around the figure of Anayde Beiriz, Jomard establishes, in the film, a new proposal on the
dimensions of the body and on sexualities.

Keywords: History. Body. Gender. Sexualities. Super 8.

Resumen: El texto aborda, bajo el pretexto de la experiencia cinematográfica del activista cultural de
Pernambuco Jomard Muniz de Britto, la descentralización del género presente en la producción de
películas de super-8 en João Pessoa, Paraíba. El objeto central del estudio de caso será el cortometraje
Esperando João, cuyo lema gira en torno a la historia de Anayde Beiriz, una poeta de Paraíba que,
amada por el periodista João Dantas, es considerada, a principios del siglo XX, la propelente de la

1
Estudo de caso submetido à avaliação em junho de 2019 e aprovado para publicação em dezembro de 2019.
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Revolución de 1930. En torno a la figura de Anayde Beiriz, Jomard establece, en la película, una
nueva propuesta sobre las dimensiones del cuerpo y las sexualidades.

Palabras clave: Historia. Cuerpo. Género. Sexualidades. Super 8.

Introdução

O período que medeia o final da década de 1960 e meados da década de 1980


corresponde, historicamente, ao marco inaugural de um conjunto de experiências
atravessadas, dentre outros elementos, pelo descentramento de práticas sociais vigentes em
momentos históricos anteriores. Na mesma medida em que se observa uma potencialização da
linguagem como instrumento mobilizador da vivência humana, cuja materialidade passa a
habitar, após acontecimentos tais como a ocorrência das viagens para fora da órbita terrestre,
a ambiência supralunar, também se percebe uma nova configuração do mundo sublunar, no
qual noções tais como as de corpo, gênero, sexualidade e desejo passam a ser colocadas no
plural, o que podem ser creditados a outros acontecimentos, tais como a emergência da pílula
anticoncepcional, da minissaia e dos longos cabelos masculinos2.
Tratam-se de ressonâncias de uma nova ordem das coisas, cujo indícios mais
proeminentes podem ser conformado, no campo do pensamento, na publicação, em 1968, de
Eros e civilização, do filósofo francês Herbert Marcuse – obra que flagrou o desassossego
contracultural que se processava no Ocidente de seu tempo –, e, no campo das práticas, com
as manifestações parisienses de maio de 1968, cujo principal espólio encontra-se na
constatação de que determinados padrões pareciam na eminência de rediscussão. Nesse
sentido, tal como afirma Durval Muniz de Albuquerque Júnior, “a busca pela liberdade, o
desejo de transformação da cultura, da sociedade, das artes, das relações pessoais, [...], das
relações com o corpo, com o sexo, da economia, o desejo de revolução se expressaram numa
profusão de frases, palavras de ordem, slogans, discursos, ideias”3, cuja mistura possibilitou
um manancial de relações outras consigo e com o mundo.
Categoria imersa no interior das mudanças sociais em pauta no Ocidente, a
masculinidade aparece como um dos principais motores de uma sociedade em franca
transformação, aqui apontada em sua eminente fragilidade. Se, mesmo a nível da sociedade

2
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da
Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005. p. 94.
3
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque Júnior. 1968: o levante das palavras. In:
CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar (org.). História, cinema e outras imagens juvenis. Teresina: EDUFPI,
2009. p. 88-89.
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do espetáculo, os longos cabelos masculinos produziam espanto em órgãos públicos,


avenidas, escolas e casas de família4, é possível perceber que tais experiências históricas
ganhavam estatuto ainda mais marcado no espaço do Nordeste do Brasil, onde a identidade
masculina, conforme também afirmou Durval Muniz de Albuquerque Júnior, configurou-se
através de um conjunto de estratégias discursivas como um imperativo vinculado ao vigor, à
rudeza, à fortaleza e à dominação, em oposição ao feminino, marcado pela singeleza, pela
doçura e submissão5.
Esse trabalho opera, portanto, em uma temporalidade em que as ditas “maravilhas
tecnológicas”6 constituíram novos lugares de acontecimento para a história, dentre os quais a
emergência de uma extensa produção de filmes, realizados com tecnologia empregada nas
câmeras de super-8 mm, em sua maioria produzidas pela marca Kodak, cuja utilização,
notadamente pelos setores juvenis da sociedade, contribuiu para o alargamento dos conceitos
de arte, filme e imagem em movimento. Opera também no interior de um tempo de
subjetividades em transformação, no qual a virilidade passa a ser uma pauta dos conflitos
entre permanências e rupturas. Suas modificações passam a ser objeto de tal tecnologia,
justamente em um espaço na qual é ela uma das marcas mais firmes de sua tradição.
Estudaremos, portanto, um caso localizado no espaço social da Paraíba, mais precisamente de
sua capital, João Pessoa, ao mesmo tempo palco de diversas mobilizações políticas e sociais, a
exemplo dos acontecimentos propulsores da revolução de 1930 e da conformação da
tradicional imagem da “Paraíba masculina”, cuja latência viril definiria até mesmo suas
mulheres como “mulheres-machos”, condição de aparente bravura e relevância com relação
às demais. O pretexto central escolhido para o estudo é o filme em super-8 Esperando João,
rodado e divulgado em João Pessoa em 1981, e dirigido pelo professor de filosofia Jomard
Muniz de Britto, cuja própria história e experiência de agitação cultural entre os espaços
pernambucanos e paraibanos tornam a própria cidade um personagem capaz de nos informar

4
Em 1972, o poeta e letrista piauiense Torquato Pereira de Araújo Neto, destacado em sua vivência cultural no
Rio de Janeiro, mas à época em temporada na cidade natal, Teresina, envia ao amigo e artista plástico Hélio
Oiticica uma emblemática carta, na qual informa a publicação da primeira edição de um jornal experimental ali
produzido por ele e por um grupo de “sete a oito meninos aqui de dentro”, cujo título, Gramma, remetia à grama
da Igreja de São Benedito, localizada no centro da capital piauiense. Na carta, destaca-se a referência de
Torquato à cidade, cuja vivência, em larga medida, espalhava-se para diversos outros espaços do Brasil e do
Ocidente: “(ah, se você conhecesse o que é o Piauí...), e numa terra onde não acontece nada, onde nunca passou
um filme de Godard e onde cabeludo não entra na escola nem nas casas de família, pode crer, essa Gramma é o
que eu disse antes: uma espécie de milagre”. Ver: ARAÚJO NETO, Torquato Pereira de. Carta a Hélio Oiticica.
Teresina, 7 jun. 1972. In: MORICONI, Ítalo (org.). Torquato Neto: essencial. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
5
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Nordestino: invenção do “falo”, uma história do gênero
masculino (1920-1940). São Paulo: Intermeios, 2013.
6
Cf. CASTELO BRANCO, Edwar de Alencar. Todos os dias de Paupéria: Torquato Neto e a invenção da
Tropicália. São Paulo: Annablume, 2005. p. 49.
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“como mulheres e homens se moviam, o que viam e ouviam, os odores que penetravam em
suas narinas, onde comiam, seus hábitos de vestir, de banhar e de que forma faziam amor”.7
Trata-se, principalmente, de um estudo que entende a necessidade metodológica
de uma historiografia onde o corpo passe a habitar também, denotando sua dimensão material,
que cheire a carne, na tentativa de “colocação do corpo, do corpo sensível, dos afetos, das
emoções, das comoções, das sensibilidades como elementos partícipes dos eventos históricos”
e, consequentemente, “de trazer para o interior do texto historiográfico aquilo mesmo que, por
muito tempo, foi o não dito, o inconsciente, o interdito, o negado, o recalcado, o invisível e o
indizível”8. Em um primeiro momento, o estudo voltar-se-á para uma análise do personagem
central que o mobiliza, o próprio Jomard Muniz de Britto, em suas peripécias culturais
trafegadas por diferentes espaços urbanos do Nordeste para, no momento seguinte,
adentrarmos no filme em si e na apresentação conformada por este às discussões pertinentes
ao texto.

As máscaras do “mau velhinho”: o corpo transitivo de Jomard Muniz de Britto e as


necessidades de fugir do próprio rosto

Caminha entre as ruas de Recife e de João Pessoa uma figura aparentemente


inofensiva. Um sujeito alto, de cabelos brancos, óculos, um olhar dócil e levemente
contemplativo. Olhando-o de longe, aparenta um senhor que sai de casa todos os dias para
andar pelas praças, cujo corpo profundamente disciplinado faz com que pareça um “bom
velhinho”, que habita a subjetividade de crianças desejante de alguém que lhes represente a
segurança e a estabilidade oferecida por setenta e alguns anos que a fisionomia, ainda que de
maneira vacilante, lhe confere. É fato que sua aparência indica que ali residem muitas
histórias, afinal, como todos nós, ele é cria de frases, usa as frases para falar das gentes, das
coisas e de si mesmo9, embora pareça contemplar um conjunto de frases que o encharca ainda
mais do que aos outros, deixando-o submerso. É essa aparência que nele se enxerga à primeira
vista, de alguém que ali já se encontra entregue aos desígnios e à providência divina, que nos
coloca diante de um dos muitos enigmas que ele nos propõe: há ali um conjunto inusitado de

7
SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Rio de Janeiro: BestBolso,
2016. p. 13.
8
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O passado, como falo? o corpo sensível como um ausente na
escrita da história. In: SPÍNDOLA, Pablo; SANTOS, Wagner Geminiano dos (org.). Teoria da história e
história da historiografia dos séculos XIX e XX: ensaios. Jundiaí: Paco, 2018. p. 23.
9
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A gente é cria de frases: sobre história e biografia. Maracanan,
Rio de Janeiro, p. 13-27, jan./dez. 2012.
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palavras rachadas, que se desdobram não apenas sobre os outros, mas sobre si mesmo, um
conjunto incidente de discursos, de verdades autobiográficas, desejosas de serem lançadas
ante aqueles que sobre ele se propõem a falar.
A imagem aparentemente passiva de Jomard Muniz de Britto pode, ainda que por
poucos segundos, embaçar os múltiplos discursos com os quais o mesmo desejou conviver.
Palhaço degolado ou mau velhinho, apenas para citar os mais conhecidos. Sua fuga pela
esquerda dos discursos normatizadores conferiu-lhe um outro discurso, forjado a partir dele
sobre si mesmo. Um discurso potente de autobiografia, que faz dele uma cria de suas próprias
frases, imerso naquilo que ele configurou como um formato cristalizado de falar de sua
potência criativa em dissolver os modelos tradicionais, de tratar questões tais como a cultura
brasileira, o corpo e as sexualidades, os usos da educação e da pedagogia, as relações para
com a cidade do Recife e seus veículos de comunicação. O corpo de Jomard, desejoso de ser
rizomático, um sistema aberto de conceitos10, parece, ao contrário, demarcar-se como uma
raiz, cujo outro desejo, em contradição ao anterior, é fincar-se a partir de uma análise sua.
Havemos de compreender que os sujeitos são descontínuos. Não é possível
observá-lo como um idêntico a si mesmo, como alguém que existe para fora de suas
contradições. Para compreendê-los, “é preciso conhecer os anseios primordiais que este deseja
satisfazer. A vida faz sentido ou não para as pessoas, dependendo da medida em que elas
conseguem realizar tais aspirações. Mas os anseios não estão definidos antes de todas as
experiências.”11 Nascido no bairro recifense do São José, filho de um paraibano com uma
pernambucana, considera-se, tal como afirma textualmente na pequena biografia que abre a
segunda edição de Do Modernismo à Bossa Nova, um “híbrido de nascença”12.
Desenvolveria, futuramente, suas atividades docentes, uma vez que se tornaria professor das
Universidades Federais da Paraíba e de Pernambuco. Acusado de subversivo, é afastado da
vivência acadêmica após o golpe civil-militar de 1964. Participa, junto com o educador Paulo
Freire, do Movimento de Educação de Base (MEB), instrumento importante para
compreender as discussões levantadas em seu primeiro livro, Contradições do homem
brasileiro, publicado em 1964. Anteriormente, aluno de Estética de Ariano Suassuna,
integrara as frentes do Teatro Popular do Nordeste, nos quais ganhara mais vigor sua veia
performática. Sua ruptura posterior com Ariano instauraria um ressentimento que se torna
presente em sua obra, na qual a figura do dramaturgo paraibano apareceria sempre como alvo

10
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 1995.
v. 1.
11
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar, 1995. p. 13.
12
BRITTO, Jomard Muniz de. Do Modernismo à Bossa Nova. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. p. 15.
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de algumas de suas principais esgrimas. Em 1966, na tentativa de pensar uma filosofia da


cultura brasileira, enuncia a obra Do Modernismo à Bossa Nova, onde pretendia limitar um
local para a contemporaneidade dessa cultura. Pouco tempo depois, em 1968, especialmente
após a emblemática visita de Gilberto Gil ao Recife, explode, juntamente com outras figuras
da cena cultural recifense do período – a exemplo de Aristides Guimarães e Celso Marconi –
em manifestos tropicalistas, que seriam apropriados pelas letras de Caetano Veloso sob a
alcunha de Pernambucália, como uma espécie de desdobramento pernambucano do
tropicalismo baiano13.
Na década de 1970, após sua ruptura com o regionalismo que demarcava a
experiência do Teatro Popular do Nordeste, bem como com o que começava a chamar de
“esquerda festiva”, Jomard passa a investir na produção de audiovisuais, em formato super-8,
onde se volta, principalmente, para satirizar algumas das alegorias mais proeminentes da
cultura brasileira e nordestina. É a partir dessa iniciativa que emergem filmes experimentais
tais como Recifernália, de 1975, O Palhaço Degolado, de 1977, e Inventários de um
Feudalismo Cultural Nordestino, de 1978, todos desdobramentos dos manifestos tropicalistas
lançados na década anterior, a despeito das movimentações que se processavam na cidade
outrora. Era, portanto, tempo de enfrentamentos de debates culturais, que se intensificava com
a emergência do chamado Movimento Armorial, encabeçado por Ariano Suassuna, e que teria
também como um de seus lastros, no campo da produção fílmica, o diretor Fernando Spencer,
que, igualmente através da tecnologia do super-8, passa a afrontar a investida tropicalista na
capital pernambucana.14 O último filme dessa sequência indicaria uma parceria promissora
entre Jomard e o diretor Sérgio Lemos, da qual, em 1979, nasceria também o livro Inventários
de um feudalismo cultural, cujo conteúdo, para além de uma discussão dos signos da cidade
do Recife e de suas fraturas culturais, também se volta para percebê-la como um espaço
erótico, carregados de desejos que demarcam corpos transitivos, ao mesmo tempo nostálgicos
e pulsantes de possíveis, conforme pode ser visto no fragmento poético abaixo:

Entre o desejo e o prazer, como a libido satisfazer?


Devorar as frutas como se devora a fome de vi ver com os lábios livres.
Uma boca é uma fome de amor na espiral dos desejos.

13
Para uma discussão mais ampla sobre a emergência da Pernambucália no Recife, ver: BRITO, Fábio Leonardo
Castelo Branco. A fabricação da Pernambucália em Recife (1967-1973): configurações históricas do
“movimento tropicalista” em Pernambuco. História, São Paulo, v. 37, p. 1-20, 2018.
14
Uma discussão mais ampla sobre a produção de filmes em formato super-8 em Recife, notadamente as tensões
entre tropicalistas e armorialistas, pode ser encontrada na historiografia recente. Ver: SANTOS FILHO,
Francisco Aristides Oliveira dos. Jomard Muniz de Britto e O Palhaço Degolado. Teresina: EDUFPI, 2016;
BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários de um Brasil profundo: invenções da cultura brasileira em
Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos. Teresina: EDUFPI, 2018.
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Desfrutes. Deserto das diversões. Danações. Dubiedades dos delírios. Desfechos.


Desesperos.
Uma boca é uma fonte de amor na espiral dos viventes 15.

Em 1980, ano seguinte à publicação do livro, Jomard é convidado a reassumir seu


posto acadêmico na Universidade Federal da Paraíba e na Universidade Federal de
Pernambuco, na segunda, atuando no recém-criado Departamento de Arte e Cultura (DAC).
Nessa década, em que o mundo perderia Glauber Rocha e novas forças políticas passam a
conformar a luta pela redemocratização brasileira, o novamente professor passa a viver
intensa rotina universitária, na qual “na segunda-feira, [...] pegava um ônibus para lecionar na
UFPB, hospedando-se num hotel por conta própria e ficava na cidade até quarta. À noite,
voltava para Recife e trabalhava na quinta e sexta, com algumas aulas excepcionais aos
sábados.”16 Visto como um professor que fugia dos padrões acadêmicos mais canônicos,
Jomard aparece, naquele momento, lidando com temas ligados às vivências homossexuais, tal
como aparece na fala de João Silvério Trevisan, à época um dos editores do jornal
homossexual Lampião da Esquina, que passou a conviver com o professor em experiências
tais como a que descreve:

Foi em 1982, um dos anos mais difíceis da minha vida. [...] Para variar estava
completamente sem grana. Jomard e Antônio Cadengue generosamente me
arranjaram um emprego, incluindo-me num projeto deles. Assim, fomos os três a
uma cidadezinha no interior dar um curso de treinamento para rapazes de uma
faculdade de Agronomia, por vários dias de trabalho nem sempre agradável. No
encerramento do curso, nós nos dispusemos a fazer uma sessão tira-dúvidas. Tudo
corria bem até que um gaiato levantou-se e, dirigindo-se a nós três
indiscriminadamente, fez uma pergunta que tinha o som de uma acusação: “Vocês
são homossexuais?” Olhei para a cara de Cadengue, que olhou para a cara de
Jomard, ambos sem saber responder à evidente provocação. O máximo de jogo de
cintura a que eu poderia chegar remeteria à pergunta retrucada por Truman Capote,
numa situação semelhante: “Isto é uma cantada?” Mas não ousei, já que conhecia
mal aquele terreno de rapazes machões acostumados a meter a mão em xoxota de
vaca. De modo que olhávamos ambos aflitos para Jomard que se manteve por alguns
segundos com aquele seu enigmático sorriso no rosto. Instantes depois, presenciei
uma das cenas pedagogicamente mais provocadoras de toda minha vida. Jomard
Muniz de Britto levantou-se, dirigiu-se para o público e pôs-se a percorrer todo o
auditório, devolvendo a pergunta. Corria para um lado, parava diante de um
estudante, indiscriminadamente e perguntava com o dedo apontado para seu rosto:
“Você é homossexual?” A seguir, corria até outro, repetia o gesto e a pergunta:
“Você é homossexual?” Ele simplesmente colocou um espelho diante do rosto de
cada estudante. [...] No final, não foi preciso debate algum. O que vi, com olhos
estatelados de prazer, foi o público começar lentamente a rir de si mesmo, até
explodir em palmas, com o sorriso de quem diz: “E quem não é?” [...] 17

15
BRITTO, Jomard Muniz de; LEMOS, Sérgio. Inventários de um feudalismo cultural. Jaboatão dos
Guararapes: Gráfica Nordeste, 1979.
16
MORAES, Fabiana; OLIVEIRA, Aristides. Jomard Muniz de Britto: professor em transe. Recife: Cepe, 2017.
p. 165.
17
TREVISAN, João Silvério. Jomard Barreto, filho de Tobias Muniz de Britto. São Paulo: Impresso, 1997.
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Ao mesmo tempo em que se apropriava de um recurso pedagógico capaz de


reverter o constrangimento que lhe era imputado, Jomard Muniz de Britto atravessava,
também, duas dimensões que aqui podem ajudar a dar forma ao argumento central do
trabalho. A primeira delas é a tentativa de “fugir do próprio rosto”, assim como aponta Denise
Bernuzzi de Sant’Anna a respeito do filósofo francês Michel Foucault, na tentativa daquele de
descentralizar a autoria de sua própria obra18. Na medida em que devolve a pergunta à plateia,
Jomard escapa à sua resposta, produzindo uma desreferencialização da identidade
homossexual, a mesma identidade que, por outro lado, conformava a figura de um Trevisan
cuja atuação na imprensa alternativa era, em larga medida, uma claro exercício de assumir-se
e militar pela causa do movimento homossexual no Brasil19. A segunda dimensão é que, na
mesma atitude, Jomard provocava um ato coletivo de percepção da sexualidade como um
construto social acidental, moldado na cultura, assim como o é a própria identidade de gênero.
Transforma, portanto, a sexualidade em uma espécie de maquinação paródica, revertendo a
tradição discursiva elaborada em torno dessa dimensão, que opõe constantemente o “eu”
heterossexual ao “outro” homossexual, fragmentando a narrativa da heteronormatividade
compulsória e estabelecendo-se a partir de uma dúvida frequente sobre todos20: afinal, “e
quem não é?”
O questionamento do aluno do curso de treinamento da faculdade de Agronomia
remetia à construção de um certo padrão de masculinidade que se encontrava em pleno
conflito de temporalidades. Por um lado, estava localizado em um tempo cujos padrões
encontravam-se em vias de desconstrução, notadamente nos espaços urbanos, mesmo naquele
Nordeste tão marcado pelo patriarcado narrado por Gilberto Freyre em seu Casa-grande &
senzala21. Por outro, parecia ser ainda a tentativa de manutenção de códigos de gênero
dominantes até o início do século XX, onde a representação do “macho” permanecia vigente.
Nesse sentido, é compreensível ser o nordestino “um ponto de encontro entre certo número de
acontecimentos históricos, é fruto de um conjunto de operações de construção de um sujeito

18
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. Fugir do próprio rosto. In: RAGO, Margareth (org.). Figuras de Foucault.
Belo Horizonte: Autêntica, 2008. p. 87.
19
Para uma discussão mais ampla a respeito do jornal Lampião da Esquina, ver: RODRIGUES, Jorge Caê. Um
lampião iluminando esquinas escuras da ditadura. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.). Ditadura e
homossexualidades: repressão, resistência e a busca pela verdade. São Carlos: EdUFSCar, 2015. p. 83-123.
20
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015. p. 248.
21
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da sociedade
patriarcal. Rio de Janeiro: Record, 2001.
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histórico, de um sujeito regional, de um personagem extremamente importante para a história


política e cultural do Brasil contemporâneo”22.
Entendendo o gênero dentro dessa perspectiva profundamente relacional, e
compreendendo ser histórica essa masculinidade que se materializava em práticas sociais tão
arraigadas e discursos tão propalados, Jomard Muniz de Britto passa a investir, em sua
passagem pelo espaço paraibano, em uma nova leva de produções em super-8. Conforme é
sabido, o mesmo desenvolvera, no Recife, uma trilogia cuja pauta central de debates era o
próprio estatuto da cultura brasileira e nordestina, na qual critica os moldes nos quais tais
padrões foram constituídos. Conforme apontam Fabiana Moraes e Aristides Oliveira, “Jomard
sempre buscou trilhar um caminho nas suas produções fílmicas fora do circuito comercial,
utilizando a película/suporte super-8 enquanto espaço de crítica e debate sobre a conjuntura
político-cultural do país na época da ditadura”23. Data dessa experiência tanto a participação
do filmaker de mostras de filmes, seja como realizador, seja como jurado, tais como as
Jornadas Baianas de Curta-Metragem, seja, em 1974, da instalação do Festival JMB, ou, em
1975, da I Mostra Recifense de Filme Super-8.24 Ainda em 1974, o jornalista Celso Marconi,
atuante no Jornal do Commercio e companheiro de Jomard de suas aventuras tropicalistas,
noticia em sua coluna a exibição da produção jomardiana no auditório do Departamento de
Estradas de Rodagem (DER), no qual destaca a exibição de filmes tais como Babalorixá
Mario Miranda/Maria Aparecida no Carnaval e Mito, Vivencial I e Contramito da Família
Pernambucobaniana25.
Os filmes divulgados por Marconi tratam-se de produções do cineasta nas quais o
mesmo não abordava apenas questões de ordem cultural ou do que chamaria de “feudalismo
cultural nordestino”, mas também de instituições sociais que, ainda que inseridas em tal
“feudalismo”, participavam de uma ampla experiência histórica do Ocidente: a família, a
sexualidade e a religiosidade católica, postas, portanto, em debate. Conforme pode ser
observado, trata-se também de uma perspectiva que aparece nos experimentos estéticos do
professor e filmaker, demarcados também pelo seu encontro com o grupo performático
Vivencial Diversiones, da cidade de Olinda, cuja estética circulava pelo próprio uso do corpo
como instrumentos de experimentação. Sob a égide do desejo de “gozar os mais ternos
patriarcas de nossa sempiternas oligarquias culturais”, bem como “nada salvar, nem mesmo a

22
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino... op. cit., p. 229.
23
MORAES; OLIVEIRA, op. cit., p. 138-139.
24
Ibid., p. 139.
25
Ibid., p. 139-140.
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alegria”26, a proposta lançada por esse encontro conformava-se principalmente em uma


carnavalização das relações tradicionais postas na cidade. Assim, nasceria uma outra
sequência de filmes, ainda no Recife, que carrega a transgressão do corpo como pretexto
central. Nesse ínterim, encontra-se o já citado Vivencial I, além de Uma Experiência
Didática: o Corpo Humano, ambos de 1974, Toques, de 1975, e Jogos Frutais Frugais, de
1979.
No mote de tais produções, a passagem por João Pessoa igualmente tornar-se-ia
um gatilho para a produção fílmica, que também buscava desordenar as políticas do corpo
propostas no âmbito do tradicionalismo nordestino. É, portanto, da primeira metade da década
de 1980, ainda em super-8, a consagração de uma nova trilogia do artista, dessa vez tendo
como palco central a capital paraibana e o debate sobre as suas próprias cristalizações
históricas. Espécie de percurso afetivo pelo espaço paraibano, a sequência, iniciada com
Esperando João (1981), entremeada por A Cidade dos Homens (1982) e concluída com
Paraíba Masculina Feminina Neutra (1982), compõe um indício potente das subjetividades
que, para além da própria ambiência urbana, denotava experiências corporais que já vinham
sendo indicadas nos filmes pernambucanos outrora realizados.

Esperando João: táticas de descentramento de gênero no Nordeste do Brasil

Em 1981, a cineasta gaúcha Tizuka Yamazaki propunha-se a produzir um filme


cuja história pautar-se-ia no livro Anayde Beiriz: paixão e morte na Revolução de 30, escrito
em 1980 pelo paraibano José Jiffily27. O livro tratava-se de um misto entre romance e
narrativa histórica, contando a história de amor trágica entre a professora Anayde Beiriz e o
advogado e jornalista João Duarte Dantas, à época o principal opositor de João Pessoa
Cavalcanti de Albuquerque, então presidente do Estado da Paraíba e candidato a vice na
chapa presidencial encabeçada por Getúlio Dornelles Vargas para a eleição de 1930, a
primeira, desde a ocorrência de presidentes civis na República brasileira a não conter como
seu cabeça de chapa um político paulista ou mineiro. João Dantas vivia intensa refregas com o
então líder político do Estado, de forma que suas vidas privadas misturavam-se à vida pública,
configurando, em diferentes momentos, ataques pessoais da parte de Pessoa à família de
Dantas. Em um episódio marcante das trocas de ofensas públicas e privadas, intensificadas
com a ascensão de Pessoa à concorrência ao pleito majoritário do país, Dantas teve seu

26
BRITTO, Jomard Muniz de. Encontros. Rio de Janeiro: Azougue, 2013. p. 180.
27
JOFFILY, José. Anayde Beiriz: paixão e morte na Revolução de 30. Rio de Janeiro: GBAG, 1980.
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escritório, localizado à rua Duque de Caxias, na capital do Estado, à época chamada


Parahyba, da qual foram roubadas as cartas íntimas trocadas entre este e sua amante.
A exposição, no jornal estatal A União, da vida íntima mantida entre o advogado e
a professora tornou-se motivo para uma radicalização ainda maior das relações entre os
opositores, configurando-se um caso de emoções exaltadas no Estado. Tratava-se Anayde
Beiriz também de poetisa e alinhada aos debates e círculos literários de seu tempo,
defendendo ideias consideradas impróprias para uma mulher dos primeiros anos do século
XX. Uma vez que falamos de uma época em que o feminino constituía, notadamente, uma
dimensão ligada à esfera do privado28, a junção de ideias malvistas com a exposição de cartas
íntimas de um relacionamento vivido fora da estrutura tradicional do casamento afrontava o
patriarcalismo vigente. A exposição de Anayde e as emoções políticas em exaltação latente
levariam João Dantas, àquela época convencido pelos amigos a mudar-se para Olinda, a
adentrar, em 26 de julho de 1930, dezesseis dias após a invasão e subsequente divulgação do
conteúdo de seu escritório, a irromper na Confeitaria Glória, no Recife, e a assassinar a tiros o
candidato a vice-presidente. Criticada publicamente, ali não mais apenas por suas posições
sociais e por seu relacionamento extraconjugal, mas também por ser o pretenso pivô do
assassinato de João Pessoa e da consequente Revolução de 1930, Anayde Beiriz falece,
supostamente envenenada, alguns dias após o suicídio de João Dantas na prisão.
A história de amor e morte narrada por Joffily, de fato, tornar-se-ia conteúdo do
filme Parahyba Mulher-Macho, dirigido por Tizuka em 1983. No entanto, o desejo da
cineasta de ser a pioneira em tornar imagens em movimento a trama política e afetiva que
colocou a capital paraibana – após a morte de seu governador rebatizada de João Pessoa –
seria vencido, uma vez que Jomard Muniz de Britto, dois anos antes, dirigiria e divulgaria
Esperando João, o primeiro de sua trilogia paraibana. Realizando seu desejo de “fazer um
filme antes do filme da Tizuka”29, Jomard investe na análise da personagem e de sua história,
conformando-a no interior de uma estética não-linear e sequer guiada por um roteiro
tradicional, mas sim através de uma justaposição de imagens sequenciadas, que bem mais
passeiam pela capital paraibana e performatizam os corpos femininos e masculinos que por
ela circulam.

28
Para uma discussão mais ampla, ver: PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto,
2007.
29
SLVA, Laércio Teodoro da. Parahyba masculina feminina neutra: cinema (in)direto, super-8, gênero e
sexualidade (Paraíba, 1979-1986). 2012. 225 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, p. 45.
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Esperando João tem em sua materialidade elementos próprios da cinematografia


superoitista. Tratando-se de uma câmera sem negativo, a tecnologia super-8 era “advinda da
miniaturização da película 16 mm e do aprimoramento do formato 8 mm”, sendo
“inicialmente pensada como ferramenta para a realização de filmagens no âmbito do privado,
uma espécie de eletrodoméstico para o registro de cenas domésticas ao alcance da classe
média”30. O filme em super-8 constituía, ele próprio, um corpo transitivo, cuja dimensão
tangível expressava sua natureza selvagem. No caso específico em questão, a ausência de
negativo e a inviabilidade de materiais de iluminação do ambiente de filmagem contribuíam
para que a paleta de cores variasse entre tons de cinza e lilás, proporcionando ao objeto uma
pequena variação em seus cortes e descentramentos de câmera.
Do ponto de vista narrativo, as condições tecnológicas próprias do filme dotariam
Esperando João, de fato, de uma estética bastante distinta daquela que, nos anos seguintes,
seria moldada a película de Tizuka Yamazaki, notadamente um longa-metragem que contaria
com recursos financeiros da Empresa Brasileira de Cinema (EMBRAFILME), bem como com
um elenco formado por atores já consagrados no cenário artístico brasileiro, a exemplo de
Cláudio Marzo e Tânia Alves. Em contrapartida, a película de Jomard Muniz de Britto
localizava sua própria narrativa na cidade, onde o corpo de Anayde Beiriz é representado por
diferentes intérpretes, que a fazem escorrer pelos espaços de João Pessoa como uma espécie
de personagem conceitual. Sua multiplicidade inicia-se mesmo nas primeiras sequências de
imagens, onde os cartazes de abertura se sobrepõem. Ao som de piano, o espectador coloca-se
diante de uma sequência de pequenas bonecas, todas nuas, algumas completamente
destituídas de pelos, mesmo na cabeça. Como espécies de Lolitas31, que flertam entre a pureza
e a provocação, aparecem como prenúncios de uma Anayde que se inseria na capital
paraibana em tempos de um patriarcalismo que a desejava instalar, devido à sua condição de
mulher, em espaços muito específicos da casa: a sala, como elemento decorativo e
subserviente ao marido, na cozinha, como “rainha do fogão” e mantenedora da ordem do lar,
ou no quarto, submetida aos desejos sexuais de seu esposo.

30
MONTEIRO, Jaislan Honório. Arte como experiência: cinema, intertextualidade e produção de sentido.
Teresina: EDUFPI, 2017. p. 115.
31
Trata-se de uma referência à personagem-título do romance do escritor russo-americano Vladimir Nabokov,
publicado em 1955, onde o narrador-personagem descreve sua relação ambígua de desejo com Dolores Haze, ou
“Lolita”, garota de doze anos, de quem o referido se torna padrasto.
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Figura 1: Boneca Nua

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s

No frame exposto na Figura 1, a boneca nua apresenta como único adorno ao


olhar enviesado a cabeleira típica dos salões parisienses que beiraram a Revolução Francesa
do final do século XVIII. Parece representar o olhar de relance sobre a sociedade tradicional
paraibana, de ares cortesãos, que a rejeitava de forma sutil, e que, ao verem reveladas suas
histórias íntimas, passam a lançar sobre ela os discursos normatizadores sobre o corpo e a
sexualidade. Assim como Anayde Beiriz torna-se desnuda aos olhos da sociedade à qual
pertencia, pode-se perceber que nela incidia a cobrança de alinhavar-se à imagem da “dama
antiga” em oposição aos “maus costumes” da mulher moderna, aquela que, em suas
provocações, seduz e degenera os homens, sendo o elemento desviador da sociedade de sua
natureza sã e de sua caminhada rumo ao progresso32.

32
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino... op. cit., p. 95.
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A trilha sonora clássica que acompanha a sequência, dando-a tom de nostalgia,


mostra a substituição das bonecas que se justapõem aos créditos do filme pelo seu título. Em
forma de uma carta aberta, Esperando João aparece, conforme é demonstrado na Figura 02,
como repetidas palavra “esperando”, sobrepostos pela palavra “João”, todos manuscritos,
acompanhados por um monóculo característico das primeiras décadas do século XX.
Desnudada em um tempo cujas intimidades circulavam pelos manuscritos em papel dobrado
cuidadosamente, a vida de Anayde Beiriz e João Dantas aparece na tinta de um papel roto,
cujo corpus era dilacerado para que pequenas partes deles “viessem a aparecer renovadas em
tinta nova e em papel cheirando a novo”33.

Figura 2: Painel com título do fome.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s

É, portanto, a deixa para que se inicie a sequência de uma cidade que se pauta, a
partir dos acontecimentos de 1930, em torno de uma representação de masculinidade. Após o
assassinato do líder político paraibano e a consequente Revolução de 1930, que elevaria
Getúlio Vargas à condição de Presidente da República, a capital da Paraíba seria rebatizada de
João Pessoa e a imagem do ex-Presidente do Estado tornar-se-ia um lugar de memória34,

33
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Raros e rotos, restos, rastros e rostos: os arquivos e
documentos como condição de possibilidade do discurso historiográfico. ArtCultura, Uberlândia, v. 15, n. 26, p.
14, jan./jun. 2013.
34
Para uma reflexão mais ampla a respeito do conceito de lugar de memória, ver: NORA, Pierre. Entre a
memória e a história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, v. 10, p. 7-28, nov. 1993.
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tornado estátua e monumentalizado. Realizando uma sequência em plongé, a câmera percorre


o monumento erguido a João Pessoa, denotando sua imagem ereta, sisuda, carregada dos
elementos que demarcavam as representações de masculinidade no Nordeste do Brasil. Figura
pública, ao mesmo tempo, cobrava-se daquele João uma postura firme mas também elegante,
embotado no terno e com o queixo em direção ao horizonte. Tratava-se, portanto,
parafraseando Pedro Vilarinho Castelo Branco, quando trata de modelos de masculinidade
lançados em Teresina (PI), e com os quais os que aqui traçamos guardam vários paralelos, de
um homem cuja masculinidade era resultado de uma educação, parte de um processo de
tornar-se homem, “cujos corpos aparecem como construção, moldados por um saber que
procura impor-se como verdade, problematizados, esquadrinhados”, cujos “gestos mais banais
são alvo de exame minucioso, que procura diagnosticar falhas, desvios, que, posteriormente,
deveriam ser transformados a partir dos saberes legítimos que a Ciência Jurídica, a Higiene, a
Medicina e a Pedagogia construíram sobre os corpos”35.

Figura 3: Busto de João Pessoa

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s

Na disputa pela memória, João Pessoa sairia vitorioso com relação a João Dantas,
tornando-se, portanto, ele o herói monumentalizado da Paraíba, em detrimento do jornalista

35
CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. A cultura física, os afetos patrióticos e a construção de novos padrões
de masculinidade: Teresina – 1900-1930. In: MATOS, Maria Izilda Santos de; CASTELO BRANCO, Pedro
Vilarinho (org.). Cultura, corpo e educação: diálogos de gênero. São Paulo: Intermeios; Teresina: EDUFPI,
2015. p. 21.
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que dele seria algoz. Tal dimensão aparece com maior clareza na Figura 04, onde, abaixo da
estátua de corpo inteiro do ex-Presidente do Estado, seguia-se a placa com o letreiro “A João
Pessoa, à Paraíba”. Era, em tempo de necessidade de heróis, uma forma de dotar seu
personagem de um caráter de universalidade, de patrimônio de uma República ainda jovem36.
Em contraponto ao herói nacional, João Dantas aparecia como o intelectual das letras, parte
de um momento em que emergiam os filhos das elites locais, só que, agora, atrelados ao título
e à vivência de bacharéis em Direito, cujo espólio não esperado pelos grandes proprietários de
terra era o seu antipatriarcalismo, parte de “um processo de desidentificação com as gerações
anteriores, com os modelos de sujeito que os antepassados representavam37.

Figura 4: Letreiro sob o busto de João Pessoa.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s

Conforme ensina Durval Muniz de Albuquerque Júnior, a figura do bacharel ia na


contramão à identidade do macho construída nos engenhos de cana-de-açúcar, calcado na
relação promíscua entre os rapazes e as negras. Aqui, aqueles rapazes filhos das elites locais,
“em sua estadia na cidade, ao atingirem a adolescência, não foram mais iniciados pelas carnes
negras e mestiças das escravas ou mulheres pobres do campo, mas pelas cocotes estrangeiras,

36
José Murilo de Carvalho reafirma a necessidade de símbolos para a República nascente ao retomar a figura de
Tiradentes, tido pela narrativa imperial como um insurreto, e tornado herói nacional com a emergência do novo
regime. Ver: CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
37
ALBUQUERQUE JÚNIOR. Nordestino... op. cit., p. 53.
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mulheres de carne branca e de modos refinados”, cujos hábitos haveriam contribuído para
refinar os homens, “fazendo deles quase umas moças”38. Ainda que não se enquadrasse como
uma “cocote estrangeira”, a poetisa Anayde Beiriz encaixava-se perfeitamente na construção
da “mulher de carne branca e de modos refinados”, que acentuava a distinção ao defender
ideais progressistas no contexto paraibano do período.

Figura 5: Ator do grupo Vivencial Diversiones interpretando Anayde Beiriz

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ZdJBjce-PMc&t=379s

Na perspectiva que temos, historicamente, a construção de rapazes afeminados


aos olhos do patriarcalismo ainda vigente no tempo ao qual Esperando João faz referência, a
película de Jomard Muniz de Britto promete brincar, ao mesmo tempo, com a figura transitiva
de uma mulher destacada dos padrões de sua época e com a de um homem de traços
femininos. Cria, assim, um andrógino, homem de roupas de mulher, que escapa aos padrões
do macho paraibano. Anayde Beiriz, sob a forma de jovens homens, na verdade atores do
grupo olindense Vivencial Diversiones, é performatizada como uma antípoda da “mulher-
macho” que aparece no título de Tizuka Yamazaki, ao se referir ao modelo feminino vigente
na Paraíba. É, conforme aparece na Figura 05, muito mais um “homem-fêmea”, um corpo

38
Ibid., p. 56.
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estranho, que transcende a substância do sexo, apontando, portanto, não haver em si uma
identidade de gênero que não seja construída na performatividade39.

Considerações finais

A análise das performances de gênero promovidas por Jomard Muniz de Britto em


Esperando João indica importante indício de uma discussão que vinha sendo enfrentada pelo
“mau velhinho” naquela fase de sua trajetória acadêmica e cultural. Não desejando, naquele
momento, ser o filmaker dos debates culturais do Brasil, Jomard estabelece para si uma
proposta menos grandiloquente do que confrontar com a linha evolutiva da cultura
brasileira40, pretendendo, então, muito mais promover um passeio pela cidade e pelos corpos
possíveis que por ela transitam.
No entanto, não cabe, para efeito de análise, apontar que houvesse em sua
proposta qualquer fim de militância ou de desejo de visibilidade das questões relacionadas ao
então chamado movimento homossexual. Não existe desejo de afirmação de uma identidade,
mas, provavelmente, de sua constante subversão, descentrando os gêneros com corpos que se
colocam constantemente em trânsito. Assim como a pergunta com a qual Jomard interpelaria
os participantes do curso ofertado aos estudantes de Agronomia, o filme também convida seus
espectadores ao questionamento. Talvez não necessariamente indicando que a
homossexualidade seja um tabu compartilhado por todos ali presentes, em maior ou em menor
medida. Mas, provavelmente, indicando que é aquela pecha uma dentre as muitas questões
possíveis quando se põe em debate as categorias de corpo, gênero e sexualidade, sendo,
portanto, passível de fuga e de reduções estabelecer tal conceito como um norteador de todas
as análises.

39
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2015. p. 56.
40
Para uma discussão mais ampla desse conceito, ver: BRITO, Fábio Leonardo Castelo Branco. Visionários de
um Brasil profundo: invenções da cultura brasileira em Jomard Muniz de Britto e seus contemporâneos.
Teresina: EDUFPI, 2018.

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