Educação Psicomotora No Brasil
Educação Psicomotora No Brasil
Educação Psicomotora No Brasil
CURITIBA
2007
2
Ás crianças da classe
trabalhadora, motivo da luta.
À Professora Doutora Lígia Regina Klein, pela disponibilidade e rigor com que me
acompanhou nos esforços de sedimentar os caminhos na reflexão dialética.
Ao Professor Doutor João Batista Freire, pelas colaborações e pelo afetuoso reencontro.
Ao Professor Doutor Claus Magno Germer, pelo exemplo de rigor teórico e ético.
Aos filhos Gabriel, Laura e Helena, pelo ensinamento do amor e por mais uma vez,
compartilharem, afetuosa e pacientemente, de meus projetos.
Aos meus pais, neste momento, especialmente ao meu pai, por mostrar o sentido da
vida.
LISTA DE GRÁFICOS 6
LISTA DE TABELAS 6
RESUMO 7
ABSTRACT 7
INTRODUÇÃO 8
REFERÊNCIAS 121
LISTA DE GRÁFICOS
LISTA DE TABELAS
Tabela 1- Quantificação por GT, dos trabalhos com a entrada <corpo> em seus
títulos, inseridos na seção trabalhos e pôsteres, relativos às reuniões
anuais da ANPEd – 2000 a 2006 ........................................................ 98
7
RESUMO
ABSTRACT
In an area in which, despite the multitude of schools of thought, traditionally the body
and corporal movements are seen as dissociated from the material reality, we adopted a
materialistic perspective, historic and dialetic, to examine these concepts. Such decision
can only take place if one considers how vital processes take place under certain
historical conditions. This study, motivated by the concern over the social role of
Psychomotor Education aimed to discuss, from the theoretical perspective, the way
theoretical concepts address psychomotor practices and their impact in the development
of conscience among children from public daycares and preschools, using current
documental sources. The present study indicates that the techniques and methods of
corporeal approaches found at schools, the so-called Psychomotor Education, as well as
research on the area of early childhood education, do not attempt to examine how their
proposals and interventions are articulated with social determinants. The theoretical
production in this area, found in the located documentation, do not make the economical
determinants explicit.
Key words: Psychomotor Education, Body, Early Childhood education, Work,
Psychomotricity.
8
INTRODUÇÃO
1
Neste trabalho sempre que utilizarmos o termos Educação Infantil, estaremos sempre nos referindo à
primeira etapa do processo de formação da população menos favorecida, ou seja, nos referimos sempre à
Educação Infantil pública.
9
denominadas sob o termo genérico de Educação Psicomotora.
2
Vale ressaltar que a pedra fundamental, por assim dizer, das reflexões relativas à consciência, as quais
influenciaram a psicologia marxista, já se encontrava lançada na obra de Marx intitulada Manuscritos
econômico-filosóficos –1844, da qual, também nos serviremos para nossa análise.
3
Referindo-se a este sistema teórico, Leontiev diz o seguinte: “Compreendíamos todos que a psicologia
marxista não é uma tendência particular, não é uma escola, mas uma nova etapa histórica que representa o
princípio de uma psicologia autenticamente científica e conseqüentemente materialista”. (LEONTIEV,
A.N. O desenvolvimento do psiquismo. São Paulo, SP: Moraes, s/d: 10)
4
Ao pesquisarmos a respeito do período em que Leontiev desenvolveu a teoria geral da atividade,
encontramos artigos que indicam a data de 1978 como marco desta elaboração intelectual, porém, a data
da primeira edição da obra Atividade, consciência e personalidade, toda ela pautada na análise da
atividade, data de 1975.
13
Neste capítulo, optamos por focalizar os referenciais teóricos oferecidos por este
último autor5, uma vez que seus estudos se distanciam, radicalmente, das concepções
idealistas e mecanicistas biologizantes, predominantes na ciência burguesa sobre o
corpo, incluindo-se a Psicomotricidade, nos oferecendo importantes subsídios para o
avanço da compreensão desta dimensão humana – o corpo -, enquanto elemento
constituído e constitutivo do processo de hominização.
5
As obras de Leontiev consultadas foram: O desenvolvimento do psiquismo (1959). São Paulo, SP:
Editora Moraes, s/d. (Esta edição apresenta, como data do prefácio da segunda edição, da qual,
provavelmente, o livro é a tradução, o ano de 1964.); e - Actividade, cosnciencia y personalid (1973). 2a.
ed. La Habana, Cuba: Editora Pueblo y Educación, 1983.
6
Atividades bifásicas são próprias dos mamíferos superiores, cuja característica é a divisão da atividade
em duas fases distintas: uma preparatória e outra, conclusiva.
7
Sobre o desenvolvimento do psiquismo animal, ler LEONTIEV, A.N. O desenovlvimento do
psiquismo. São Paulo, SP: Editora Moraes, s/d. Capítulo 1, O desenvolvimento do psiquismo animal.(21-
75)
14
de inter-relações, de hierarquias e um sistema de comunicação cada vez mais complexo.
Deste modo, o homem, quando produziu o primeiro instrumento, já possuía uma
estrutura social, psíquica, física e fisiológica, suficientemente desenvolvida por seus
antepassados, que lhe permitiu romper com a cadeia de adaptação à natureza, para
assumir um caráter de apropriação sobre ela. Mais que isto, lhe permitiu reorientar o
sentido de sua atividade do eixo biológico para o eixo social.
8
MARX apud. LEONTIEV, s/d:81.
9
LEONTIEV, s/d:85.
10
ASBAHR, Flávia da Silva Ferreira. A pesquisa sobre a atividade pedagógica: contribuições da teoria da
atividade. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro-RJ, v. nº29, n. mai/jun/ju, p. 108-118, 2005.
15
11
[objeto da atividade] sempre responde a uma ou outra necessidade.
11
“... el objeto de la actividad es su verdadero motivo real. Por supuesto, este puede ser tanto externo
como ideal, tanto dado perceptualmente como existente sólo en la imaginación, en la idea. Lo importante
es que más allá del objeto de la actividade siempre está la necesidad, que él siempre responde o una u otra
necesidad.” (LEONTIEV, A. N.,1983:83.) (Tradução e colchetes nossos)
12
MARTINS, Lígia Márcia. A natureza histórico-social da personalidade. Caderno Cedes, Campinas,
vol. 24, nº 62, p.82-99, abril de 2004.
13
O ciclo de atividades dos animais ou primatas antropomorfos, restritos ao sentido biológico, nos lembra
a forma simples da circulação de mercadorias, pelo seu caráter circular e de auto-consumação. A
atividade é completada, não restando dela nada além da satisfação da necessidade imediata. Já o processo
implementado pelo homem, uma vez orientado pelo sentido social, a cada necessidade satisfeita, novas
necessidades são geradas, ampliando desta forma os graus de consciência do homem a respeito das
relações nas quais se insere. Este aspecto da atividade nos lembra a fórmula de acumulação do capital que
é, necessariamente, progressiva e aberta, ao invés de, como na circulação simples, se auto-consumir.
14
Vale ressaltar que o primeiro objeto reconhecido pela criança, no curso de seu desenvolvimento, é o
outro cuidante, capaz de satisfazer suas necessidades básicas de alimentação, higiene, organização
16
Alcançar o objeto, motivo da atividade torna-se, portanto, o objetivo da
atividade. Um objetivo, frente a determinadas condições materiais, corresponde a uma
tarefa, a qual, o sujeito para concluí-la deverá organizar processos subordinados ao
objetivo da atividade. Estes processos são denominados ações. Na medida da
complexificação das atividades, como no caso da atividade social, a decomposição da
tarefa pode conter ações que necessariamente não coincidam com o motivo da
atividade. Um exemplo clássico que pode nos auxiliar no entendimento desta questão é
aquele dos batedores, os quais, dentro do grupo de caça, têm como função afugentar a
presa, conduzindo o animal para um local onde será emboscado e, posteriormente,
abatido por outros integrantes de seu grupo. Entendendo o abate e a apropriação da
presa como motivo da caça, a ação dos batedores – espantar a caça -, se analisada
separadamente da ação do restante do grupo tarefa, parecerá totalmente sem sentido. Ela
só constitui sentido na medida em que é apreendida em sua inserção na atividade social,
neste caso, no encadeamento que estabelece com a emboscada, na qual o restante do
grupo finalizará a caçada, efetivando os objetivos da atividade. Deste modo, ao falarmos
de ação podemos dizer que o motivo que a subordina, não é dado nela mesma, mas na
atividade da qual ela é parte integrante. Desta forma, podemos dizer que a ação é
originada pelo objetivo da atividade.
Cada ação possui um método e uma forma de se empreender, fato que lhes
outorga um duplo aspecto: aspecto intencional (relativo ao que deve ser realizado) e um
aspecto operacional (relativo ao como pode ser realizado)15. Os elementos que
constituem a parte operacional da ação são denominados operações. Pelo seu caráter
operacional, podemos dizer que a operação é a tecnicização da ação e seu destino, na
maioria das vezes, é converter-se em uma função mecânica16. Já a ação é sempre
consciente uma vez que se origina do objetivo da atividade e, portanto, guarda estreita
relação com o conteúdo da mesma. As operações, por sua característica executiva,
dependem somente das condições materiais disponíveis, podendo, inclusive, uma
mesma operação subsidiar várias ações.17
emocional, mediação e apropriação do mundo circundante. A atividade humana é, portanto, regida por
um sentido social desde sua origem.
15
LEONTIEV, 1983:86.
16
LEONTIEV, 1983: 88.
17
Por esta exposição podemos ter uma idéia de como se processa o esvaziamento da tarefa e do próprio
trabalhador manual. Na medida em que atividade de produção foi dividida em operações muito simples e
17
Do até aqui exposto, sintetiza Leontiev18:
que a atividade é mediadora da consciência humana, preso a operações simples e repetitivas, alheias ao
conteúdo da tarefa, sua consciência segue o mesmo caminho.
18
“ Y así, del flujo general de la actividad que forma la vida humana en sus manifestaciones superiores
mediadas por el reflejo psíquico, se desprenden en primer término, istintas – especiales – actividaes según
el motivo que las impela; después se desprenden las acciones – procesos – subordinados a objectivos
conscientes; y finalmente, las operaciones que dependem directamente de las condiciones para el logro
del objectivo concreto dado.” (LEONTIEV, 1983: 89. – tradução e colchetes nossos.)
18
19
Tribo da família Karajá (Javaé, Karajá, Xambioá), segundo informações da Enciclopédia dos Povos
Indígenas, os Karajá propriamente ditos sempre habitaram as margens do rio Araguaia, seja do lado oeste
da ilha do Bananal ou no alto curso do rio, mais recentemente; os Xambioá ou "Karajá do Norte"
associam-se ao baixo curso do rio, ou seja, ao norte do estado de Tocantins; os Javaé, por sua vez,
segundo a tradição oral nativa e os primeiros registros históricos por escrito, costumavam viver no
interior da ilha do Bananal e ao longo do rio Javaés e seus afluentes até o início do século 20.
20
RODRIGUES, Patrícia de Mendonça. Tribo Javé (1993). Enciclopédia dos povos indígenas no
Brasil. 1999. Disponível em: http://www.socioambiental.org/pib/epi/javae/javae.shtm. Acesso: agosto
de2006.
21
Barra divisória, a qual demarca os limites entre o primeiro e o segundo momento do relato mítico, aos
quais faremos referência.
19
estações do ano, dia e noite) e que, portanto, demarca a dinâmica das necessidades e da
condição humana, esta medida que na sociedade moderna é a régua sobre a qual se
organiza a vida, apresenta-se para o “indivíduo”, com um elemento perene, suspenso,
ilimitado, não exercendo sobre ele, nenhuma influência; b) fica explícito aquilo que
poderíamos chamar de um reconhecimento dissociado a respeito da alteridade, ou seja,
do NÃO EU. Ao referir que “[os] homens viviam em coletividade, mas não em
sociedade, eram seres humanos não sociais”, o relato indica que, a princípio, havia uma
noção incipiente da existência do outro, porém, o fato deste outro existir, não resultava
em qualquer implicação concreta para a existência do “indivíduo”. Além disto, uma vez
que a necessidade, neste estágio da consciência, ainda não se constituía como tal para o
sujeito - nem como necessidade do estômago, ou seja, não se evidencia enquanto
possibilidade de descontinuidade da existência -, os sensos de alteridade e de
temporalidade, também se mantêm incipientes. Nestas condições, a existência era, de
fato, uma existência eterna, o próprio corpo não se encontrava diferenciado do entorno e
das coisas, apenas existia na sua condição mais elementar, comparativamente ao corpo
humano, é um não-corpo.
“[um] ser que não tenha nenhum objeto fora de si não é nenhum ser
objetivo. Um ser que não seja ele mesmo objeto para um terceiro ser
não tem nenhum ser para seu objeto, isto é, não se comporta
objetivamente, seu ser não é nenhum [ser] objetivo. [...] Um ser não-
objetivo é um não-ser”.22
22
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. 1ª ed. São Paulo, SP.: Boitempo, 2004. p.127.
20
pessoas morriam, era preciso trabalhar para comer e, principalmente, casar-se e manter
relações sexuais para garantir a reprodução do grupo” e que “[a] única saída era viver
em sociedade, através da aliança entre famílias”, o mesmo explicita a alteridade como
objeto fundante da própria objetivação do sujeito, mote de superação da condição de
coletividade – neste contexto, agregado de existências em si -, para o patamar de
sociabilidade, no qual os resultados dos processos de satisfação das necessidades
humanas constituem a própria história do desenvolvimento do gênero humano.
23
Segundo Marx, “[chama-se] cooperação a forma de trabalho em que muitos trabalham juntos, de
acordo com um plano, no mesmo processo de produção ou em processos de produção diferentes, mas
conexos.” (MARX, l.1, v.1, 2001:378.)
24
MARX, l.1 v.1, 2001:387.
21
25
colméia.
25
Temos que considerar sobre a citação de Marx, quando o autor compara o homem primitivo à abelha,
para que não se confunda grau de dependência, com grau de consciência. Partindo de uma citação deste
mesmo autor - “... o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua
construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que
já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o
qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei
determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade”. – podemos dizer que, se
existe cooperação e trabalho no sentido lato do senso é porque, já se supõe um reconhecimento do outro e
um plano de trabalho, o sujeito está inserido numa condição social, portanto, neste caso, o homem,
embora absolutamente dependente dos outros homens, seu grau de consciência não deve ser confundido
com o da abelha, que, sequer, desprendeu-se da determinação biológica. (MARX, l.1 v.1, 2001:211-12.)
26
Segundo Marx: “... o trabalho é um processo de que participam o homem [indivíduo] e a natureza
[alteridade], processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula, e controla sue
intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em
movimento as forças naturais de seu corpo - braços e pernas, cabeça e mãos -, a fim de apropriar-se dos
recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa
e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza.” (MARX, l.1 v.1, 2001:211. –
colchetes explicativos nossos) – Com respeito à questão individualidade-comunidade e vice-versa,
também, pode-se consultar HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janiero, RJ.: Paz e Terra,
1972.
27
MARTINS, 2004:88.
22
estudo desta relação podemos apreender aquela existente entre consciência e
atividade.28
28
O termo sentido subjetivo pode ser encontrado neste trabalho como sinônimo de sentido pessoal. O
mesmo ocorre com o termo significação, o qual pode ser encontrado como sinônimo de sentido objetivo,
termo sugerido por Karel Kosik (1963) em sua obra – Dialética do concreto - (São Paulo: Paz e Terra,
1985.)
29
LEONTIEV (s/d.); MARTINS (2004); ROSLER (2004); DUARTE (2004).
30
Leontiev definiu significação como: “aquilo que num objeto ou fenômeno se descobre objetivamente
num sistema de ligações, de interações e de relações objetivas. A significação é refletida e fixada na
linguagem, o que lhe confere a sua estabilidade. Sob a forma de significações lingüísticas, constitui o
conteúdo da consciência social; entrando no conteúdo da consciência social, torna-se assim a ‘consciência
real’ dos indivíduos, objetivando em si o sentido subjetivo que o refletido tem para eles”. (LEONTIEV,
s/d.:100)
23
o pensamento marxiano31 o qual explicita que não é a consciência do ser humano que
determina o seu ser, mas o inverso, é o ser social que determina a sua consciência, o fato
psicológico que se refere ao sujeito é o de que se aproprie ou não, que assimile ou não
uma dada significação e, em que grau isto acontece e qual a influência disto sobre sua
personalidade.32
31
MARX e ENGELS,1987.
32
LEONTIEV, op. cit.
24
dos sucessivos avanços mediados pela atividade humana33.
33
Para aprofundamentos sobre a história da produção de instrumentos ver: LEROI-GOURHAN, André.
Evolução e técnicas: o homem e a matéria. Lisboa, Portugal: Edições 70, 1971.
34
Para aprofundamento das questões do desenvolvimento das forças produtivas como elemento dinâmico
do desenvolvimento social, consultar: GERMER, Claus M. As forças produtivas e a revolução social
revisitadas. Texto veiculado no Espaço Marx – Curitiba em abril de 2006:06-07. Neste artigo, o autor
apresenta o seguinte: “[sinteticamente], eis a linha lógica do enunciado de Marx: primeiro, o
conhecimento nasce com a atividade prática do ser humano e é continuamente aumentado como resultado
dela. Em segundo lugar, a atividade prática fundamental e primordial é a produção dos meios necessários
à vida cotidiana. Esta atividade repete-se interminavelmente, dia a dia, ano após ano, geração após
geração, sendo portanto a fonte inesgotável e irreprimível do novo conhecimento e da renovação contínua
dos métodos e materiais utilizados na produção. Assim, abstraindo catástrofes naturais ou sociais, o
conhecimento não pode deixar de expandir-se e aprofundar-se, e os meios de produção não podem deixar
de desenvolver-se, porque a produção, que é a sua fonte, não pode ser interrompida. Com isto expande-se
e diversifica-se o universo do pensamento, povoando a mente humana com conceitos e sistemas de
conceitos em número e precisão crescentes. Os sistemas de conceitos são teorias. Inicialmente
rudimentares, aos poucos se tornam mais complexas, mas correspondem sempre, em cada momento, ao
grau do conhecimento correspondente ao nível de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas.
Portanto, o ato obrigatório e ininterruptamente repetido de trabalhar é a origem das mudanças sofridas
pela sociedade. Terceiro, à medida que o trabalho se repete interminavelmente, o conhecimento dos
materiais naturais estende-se e aprofunda-se, novos instrumentos são gradualmente concebidos e
continuamente desenvolvidos, os materiais de que são feitos diversificam-se, e a aptidão do trabalho
aperfeiçoa-se correspondentemente. Como resultado, o processo social de trabalhar transforma-se aos
poucos, até fazer emergirem os elementos que apontam para uma nova estrutura social. O
desenvolvimento do conhecimento, por um lado, e da organização e dos processos de produção
correspondentes, por outro, dão origem a novas formas de trabalhos e a trabalhadores de novo tipo, e a
novas formas materiais de apropriação dos meios de produção, que entram em conflito mais ou menos
intenso com os trabalhos e trabalhadores, e com as formas de apropriação, anteriormente existentes.”
35
LEONTIEV, s/d.:109.
25
36
ALVES,Gilberto Luiz. A produção da escola pública contemporânea. Campinas, SP.: Unicamp,
1998:37.
26
não comprar mais o produto do trabalho, mas sim a própria força de trabalho - o produto
do trabalho agora lhe pertence de saída -, tornou-se ele, então, o próprio capitalista.
Deste modo, “a partir da manufatura se institui e se consagra, como conteúdo específico
do modo capitalista de produção, a forma de divisão calcada na separação entre o
produtor e o produto do trabalho37” e entre atividade material (o trabalho propriamente
dito - a produção da mercadoria) e atividade intelectual (planejamento da produção).
Uma vez subsumido pelo capital, na medida em que vende sua força de
trabalho, vende a si próprio (corpo, energia, tempo e potencial criativo) para que o
capitalista usufrua o produto de sua atividade, torna-se ele mesmo uma mercadoria e sua
atividade, bem como seu próprio corpo, algo, também, estranho a ele. Enquanto na
cooperação primitiva a atividade social inclui um sentido pessoal, no capitalismo, a
cooperação tange o mecânico, abstraindo da atividade qualquer sentido pessoal - de
atividade para si, reverte-se o trabalho em atividade em si, cujo único objetivo é o
41
MARX, K. O trabalho estranhado e propriedade privada. In: Manuscritos Econômicos e Filosóficos
(1844). Primeiro Caderno. São Paulo, SP: Boitempo Editorial, 2004:79-90.
29
salário que lhe permite uma ínfima margem de vida, fora do trabalho.
42
MARX, K. 2004.
43
HELLER, 1972:38.
30
50
MARX, 2001:453.
34
despossuída em idades cada vez mais precoces, o processo de estranhamento toma
proporções inimagináveis. Marx51 descreveu da seguinte maneira, um dos sintomas
evidenciados pela barbárie na qual estava imersa a infância inglesa daquela época:
51
MARX, op. cit.:455.
52
Tendo em vista o conhecimento de que a situação da classe trabalhadora, para Marx, se dava em
decorrência dos abusos do capital na exploração da força de trabalho, acreditamos que a expressão
desnaturadamente, atribuída a Marx pelo tradutor, tenha sido aplicada, no original, mais com o sentido de
que o referido estranhamento contraria a natureza materna, do que no sentido de qualificar
negativamente ou valorar judiciosamente o comportamento das mães. Às nossas reflexões adicionamos as
de Aníbal Ponce o qual releva a agudeza de uma observação de Marx ao dizer que: “quanto mais
alquebrada estiver a ordem das coisas, mais hipócrita se torna a ideologia da classe dirigente. A burguesia
não só deixou correr algumas lágrimas sobre a desgraçada causa da infância, como ainda responsabilizou
o “abandono culpável dos pais” pelo ocorrido. Como se, antes de decidir-se a “proteger”, com leis nunca
cumpridas, o desamparo das crianças operárias, não tivesse sido essa mesma burguesia quem primeiro
destruiu as antigas condições familiares!” (PONCE, Aníbal. Educação e luta de classes. 15 ª ed. São
Paulo, SP.: Cortez, 1996:151.)
53
O termo “tempos orgiásticos do capital” é encontrado originalmente em: PONCE, 1996:150.
54
Segundo Richard Donkin, o nome dos ludistas adveio de Ned Ludd, um aprendiz de Nottinghan que ao
ser ameaçado de punição pelo chicote, pulou sobre o tear em que trabalhava e o destruiu a marteladas.
Este tipo de insurreição tomou vulto e se tornou uma prática que, segundo o autor, “por meio do terror”,
pretendia induzir os empresários a abandonarem a mecanização que lhes reduzia postos de trabalhos e
salários. (DONKIN, Richard. Sangue, suor e lágrimas: a evolução do trabalho. São Paulo, SP.: M.books,
2003:80.)
35
da maquinaria, tinham como bandeira de luta a destruição das máquinas. Destruir as
máquinas, como se sabe, pode lentificar a expansão, mas não elimina o cerne da
reprodução e da expansão capitalista. As mães operárias, ao degradarem a principal
fonte de extração de mais-valia - a força de trabalho, presente e futura -, foram,
repetimos, mesmo que inconscientemente, mais precisas e silenciosas em seu ataque ao
capital. Aos ludistas, o capital respondeu com exércitos e munições; frente à
possibilidade de extermínio de sua fonte de lucro – a força de trabalho -, se posicionou
com “leis sociais” de proteção à infância e “professores”.
55
Segundo Gomes e Lhullier, “[o] spencerismo procedia das teorias de Herbert Spencer (1820-1903) e se
caracterizava por uma visão evolucionista baseada em um princípio comum e incognoscível, abrangendo
da matéria à vida, da vida à consciência. Era uma teoria que defendia à hereditariedade das qualidades
adquiridas. A psicologia, para Spencer, estaria ao lado da biologia. As capacidades psicológicas seriam
funções adaptativas que levariam o humano a um melhor convívio com o ambiente e consigo mesmo.
Neste sentido, o evolucionismo de Spencer culminaria com o individualismo que seria orientado para uma
perfeição possível, assentada na liberdade, na ética e na moral”. (GOMES,W.B.; LHULLIER, C.
Formação Intelectual de Porto Alegre. s/d. Disponível em: www.ufrgs.br/museupsi/PSI-RS/Chap1.htm.
Acesso em: outubro de 2006.
56
Em oposição às concepções idealistas que outorgavam um caráter primordial do espírito/razão em
relação à natureza/realidade concreta, a corrente materialista prioriza experiência direta com realidade
para a edificação do pensamento. A denominação mecanicista deve-se ao fato desta corrente, além de não
considerar que a realidade está sujeita a um desenvolvimento histórico, estabelece uma relação linear
entre o femômeno e seus detreminantes.
37
2.1.1 As teorias evolucionistas: desdobramentos da ciência burguesa na
formação da nação brasileira
57
(Jardim do Rei)
38
imperativos da natureza, os quais obrigariam os seres vivos a especializar determinadas
partes do corpo a fim de melhor cumprirem sua função na sobrevivência. Deste modo,
para Lamarck, ”[os] órgãos e sistemas animais nasceram pela necessidade de
desempenhar certas funções, o que é expresso, abreviadamente, quando se diz que a
função cria o órgão. E as condições do meio ambiente e o uso são o que aperfeiçoa esses
órgãos, enquanto o seu não uso produz a atrofia e, finalmente, o desaparecimento” ·. Um
dos seus esforços de aplicação desta teoria no mundo dos vertebrados mamíferos é a
tese sobre o pescoço das girafas. Nesta tese, Lamarck defendia que, pela necessidade
dos antepassados deste animal em buscar alimentos em lugares altos tinham que esticar
o pescoço para tal, esta parte do corpo foi se especializando e ganhando comprimento,
especialização esta que era transmitida por hereditariedade, até resultar no que hoje se
classifica como a espécie das girafas. É, portanto, de referência lamarckista afirmações
contemporâneas, tais como o dito de que o homem do futuro será um homem magrinho
e com a cabeça grande porque a humanidade atual tem uma vida sedentária e tende a
utilizar demasiadamente o cérebro; ou que o apêndice, órgão do aparelho digestivo, e o
dedo mínimo do pé, tendem a desaparecer pelo desuso. Guardando-se o devido respeito
para com a importância dos trabalhos deste eminente cientista para sua época, tomar isto
como verdade, em tempos nos quais a ciência já avançou sobre os mistérios da genética,
seria o mesmo que esperar que os filhos dos judeus e de outros semitas, por exemplo,
pelo fato da circuncisão ser um ritual milenar, começassem a nascer sem o prepúcio, ou
que o costume pastoril de cortar o rabo das ovelhas produziria, um dia, ovelhas sem
rabo.
Não obstante, é importante ressaltar que as teses lamarckistas, mesmo com sua
validade refutada há mais de um século pelas descobertas das leis da genética, ainda nos
dias de hoje são utilizadas como argumento de autoridade, justificando ideologias e
práticas higienistas, autoritárias e segregacionistas, inclusive no meio escolar. O mesmo
se deu com alguns pressupostos darwinianos. Vamos a eles.
39
Quando, em 1831, subiu no Beagle58 para uma viagem de seis anos pela África,
América do sul (oriental e ocidental) e Oceania, Darwin era um jovem estudante, o qual
foi recrutado por seus modos polidos e pelo seu interesse em colecionar e catalogar
espécimes naturais. De caráter meticuloso, durante o tempo em que esteve a bordo do
navio inglês, Darwin acumulou grande quantidade de espécimes e anotações da fauna e
da flora dos lugares por onde passou.
58
HMS Beagle foi um brigue de 10 peças da classe Cherokee, que, ao serviço da Marinha Real Britânica,
empreendeu três viagens de exploração, incluindo uma viagem de circum-navegação da Terra com o
objetivo de explorar as terras e mares por onde passasse. Em sua segunda viagem, o então capitão Robert
FitzRoy, temendo pelos males da solidão em alto mar que já haviam levado outros dois companheiros de
esquadra ao suicídio, tentou encontrar um companheiro de viagem. Para esta função definiu-se por
recrutar um cavalheiro que fosse um verdadeiro "gentleman", mas que simultaneamente tivesse
suficientes conhecimentos de História Natural que lhe permitissem assumir as funções de naturalista da
expedição. Essa busca levou, em segunda opção, ao recrutamento de Charles Darwin para o cargo, na
época um jovem estudante, que de forma inadvertida transformou aquilo que seria mais uma viagem
hidrográfica feita por um pequeno navio, numa viagem histórica que catapultou o "Beagle" para os
píncaros da fama. Informações retiradas de: Wikipédia - enciclopédia livre. Disponível em
http://pt.wikipedia.org/wiki/HMS_Beagle. Acesso em :13/10/2006.
59
O título completo da obra é An Abstract on the Origln of Species and Varieties Through natural
Selection on the Preservation of favoured Races in the Struggle for Life. (SANTAMARIA, s/d.)
60
Cabe ressaltar, até porque o próprio Darwin fez questão de fazê-lo, que sua teoria da Seleção Natural
foi compartilhada com Alfred Russell Wallace, naturalista inglês que trabalhou na Amazônia e no
arquipélago malaio, a quem, na introdução de A origem das espécies, Darwin o trata por, Sr. Wallace.
61
Figura extraída de RENESTO, Erasmo. Darwin e Wallace: a teoria da evolução e sua relação com a
ecologia. s/d. Disponível em: http://www.nupelia.uem.br/Servico/Wallace.PDF. Acesso: 13/10/2006.
40
Ao delinear sua Tese da Seleção Natural, Darwin partiu dos seguintes
referenciais: domesticação de animais – seleção artificial; evidência da diversidade dos
organismos da mesma espécie encontrada nos diversos pontos de sua viagem; leis da
evolução sistematizadas por Lamarck; obra de Thomas Malthus (1766-1834) - Essai sur
la population (Ensaio sobre a população) -; Teoria da Uniformidade de Charles Lyell
(1797-1875).
62 DARWIN, Charles. A origem das espécies. São Paulo, SP: Martimn Claret, 2005, pp. 82-90.
63 Por espécie e neste caso específico Espécie Biológica, entende-se: categoria taxonômica abaixo do
gênero, cujos indivíduos são morfologicamente semelhantes entre si e com seus progenitores e se
entrecruzam gerando descendentes férteis. (HOUAISS, edição eletrônica)
41
Todas as espécies têm potencial para crescerem geometricamente;
O número de indivíduos de cada espécie permanece geralmente constante;
A cada geração os indivíduos de cada espécie lutam (competição) para
permanecerem vivos até a época da reprodução;
Em muitas espécies animais os machos lutam entre si pela posse das
fêmeas;
Ocorrem variações favoráveis e variações nocivas aos organismos na luta
pela vida. A causa das variações não está completamente compreendida,
mas boa parte delas advém do uso e desuso dos órgãos;
Os organismos que tiverem variações favoráveis têm mais chance de
sobreviver e reproduzir enquanto aqueles com variações nocivas serão
forçosamente extintos;
Seleção natural é a preservação das variações favoráveis e a eliminação das
nocivas;
Durante um período de muitas gerações a seleção natural cria variedades;
A seleção natural tende a acentuar as diferenças entre as variedades porque
quanto mais diferentes elas forem, melhor podem explorar os diferentes
recursos do ambiente;
Ao longo do tempo as variedades vão se divergindo cada vez mais até se
tornarem espécies;
O isolamento ajuda, mas não é imprescindível para a formação de espécies
novas;
Esses princípios se aplicam ao ser humano tanto quanto às outras espécies.
Destas formulações, bem como daquelas propostas por Lamarck, anteriormente
explicitadas, Darwin sistematizou reflexões as quais foram orientadas por uma
perspectiva funcionalista adaptativa e pelas diferenças morfológicas entre as raças e
espécies. Isto se deveu, fundamentalmente, ao fato destes cientistas não possuírem,
naquele momento, o conhecimento das leis que regem a genética, ainda que o próprio
Darwin tenha tangenciado esta questão com suas experiências de seleção artificial,
experiências estas relatadas, por exemplo, no capítulo primeiro de As origens.
42
65 COMTE, A. Discurso sobre o espírito positivo. In: Auguste Comte (Os pensadores). São Paulo, SP.:
Abril Cultural, 1978:68.
45
que “suas mãos”, tão carentes de evolução quanto sua capacidade de pensamento,
dependiam do planejamento e da propriedade alheia para materializar sua força de
trabalho em mercadorias -, também, deixava em aberto a possibilidade do trabalhador,
caso se empenhasse, por gerações seguidas, em adaptar-se aos imperativos da nova
sociedade, de um dia poder conquistar habilidades e propriedades que lhe permitiriam
ascender ao lugar de indivíduo dominante na estrutura social.
Tomando como ponto de partida a orientação burguesa do livre jogo das forças
individuais e depositando no indivíduo a responsabilidade pelos problemas e
contradições sociais, Herbert Spencer, se posicionava contra a intervenção do Estado na
economia e na educação - para ele, tanto as empresas quanto os indivíduos estavam
sujeitos ao princípio da auto-adaptação, imposto pelos desígnios do mercado. Porém, ao
analisar as necessidades da agenda capitalista novecentista, frente às condições de vida
e de formação – sobretudo, moral - da população trabalhadora, este filósofo inglês
defendeu a importância da transmissão de rudimentos científicos para o proletariado. A
defesa tanto de Spencer quanto de Comte ao ensino da ciência - ciência enquanto
conhecimento prático, utilitário -, evidenciava uma clara oposição destes filósofos
contra o ensino religioso, o qual, segundo eles, pouco podia contribuir para uma
sociedade movida pela técnica e pelo paradigma da ordem e progresso.
A última metade do século XIX foi marcada por profundas mudanças em todos
os setores da sociedade, engendraram-se em nosso país vários mecanismos legais e
institucionais voltados a dar sustentabilidade ao projeto liberal de unidade nacional a
partir do ideário de igualdade social. Tal perspectiva, dentre outras coisas, incentivou e
justificou o engajamento da população nos diversos programas de combate à pobreza,
dentre eles a expansão da escola pública e das instituições e leis de proteção à infância.
66 O movimento denominado Nova Escola, do final do século XIX – início do XX, não deve ser
confundido como movimento de Escola Nova dos anos 1920-1930.
67 MONCORVO F º., In: KRAMER, Sonia. 2ª ed. A política do pré-escolar no Brasil. Rio de Janeiro,
RJ: Achimé,1984:53.
68 Sobre tais instituições, vamos encontrar no trabalho de Kuhlmann (2000) e Kramer (1984; 1993),
alguns relatos referentes ao âmbito nacional e, em Piloto (1954) e Diez (1998), importantes referências
relativas ao Paraná.
69 Este mesmo pediatra, de 1879 a 1888, foi redator do jornal A Mãi de Família, no qual encontra-se a
primeira referência sobre creches, num artigo publicado pelo Dr. Kossuth Vinelli. Dividido em 6 edições
e denominado A Creche (asilo para a primeira infância), em tal artigo, o articulista chamava a atenção
da sociedade brasileira para importância desses estabelecimentos frente às repercussões sociais da Lei do
Ventre Livre e do ingresso da mulher pobre no mercado de trabalho. (KUHLMANN, 2000)
47
aponta para o fato de que, no Brasil, a situação do menor das classes subalternas era
tratada como uma questão de patologia social, higiene (física, moral e cultural) e de
segurança (urbana e nacional). Partindo desta orientação, as primeiras ações voltadas à
infância desvalida, as quais buscavam garantir a este setor da sociedade a possibilidade
de cuidados básicos, tinham, inicialmente, como principal elemento norteador, o
arrefecimento dos movimentos de revolta popular que, a princípio, adotavam o ataque à
propriedade como uma de suas principais táticas.70 Seguindo estratégia semelhante a
que encontramos nos primórdios da escola burguesa na Inglaterra, através da
culpabilização dos genitores pelo descuido com a prole, sob uma aura de paternalismo
messiânico, a classe dominante enfraqueceu a força revolucionária da classe popular,
justificou a educação burguesa para o proletariado e, além disso, disseminou no
imaginário das novas gerações uma referência idealizada de Estado protetor.
70
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar (Brasil 1890-1930). 2ª ed. São
Paulo, SP: Paz e Terra, 1987.
71 Rui Barbosa, 1886; Souza, 2000; Monteiro, 2000; Valdemarin, 2000.
72 VALDEMARIN, Vera Teresa. Lições de coisas: concepção científica e projeto modernizador para a
sociedade. Caderno Cedes, ano XX, nº 52, novembro/2000:84.
48
trabalho, a escola popular das últimas décadas de 1800 assumiu um papel distributivo
73
do saber , ajustando-o às necessidades estipuladas pela burguesia para cada camada
social. Além da formação intelectual para o desempenho das atividades técnicas
relativas à execução do trabalho em geral, caberia às instituições escolares populares
constituir um corpo coletivo, procurando dirimir os conflitos sociais e fomentar uma
predisposição cooperativa entre as classes, instalando, sobretudo na população
marginalizada, um senso de pertencimento nacional.
73 A este respeito, comenta Monteiro: “[a] dinâmica interna das sociedades industriais e, portanto, das
sociedades que representavam o ideal de evolução e progresso no final do século XIX determinava que a
educação fosse ministrada de forma diferenciada entre seus próprios membros, pois a educação da cidade
não seria a do campo, assim como a do burguês não seria a do operário. Nesse sentido, a educação
comportaria dois momentos, delimitados: a) pela necessidade de formação profissional que, por sua vez,
exigiria aptidões e conhecimento específicos; e b) pela necessidade de disseminação de idéias e valores
que constituiriam o código moral dessa sociedade. Foi nesses termos que as elites intelectuais de São
Paulo pensaram a educação no país”. (MONTEIRO, Regina Maria. Civilização e cultura: paradigmas da
nacionalidade. Cad. CEDES, vol.20, no.51,Nov 2000:60.)
74 A idéia de comunidade fabril, ou seja, o conceito de “vida em torno da fábrica”, posteriormente, terá
sua versão “século XX” com as vilas operárias e bairros industriais.
49
entre 12 a 14 horas de trabalho, em NL os operários tinham uma jornada de trabalho de
10 horas e 45 minutos/dia 75. Além da jornada de trabalho, comparativamente, reduzida,
havia a possibilidade de acesso, por parte dos operários, à educação básica, saúde e
moradia, segundo consta, a preços irrisórios 76.
Assim disse Owen (1816), ao proferir o discurso de Ano Novo, diante dos
1200 habitantes de New Lanark:
75 Cabe um aparte referente ao processo de extração de trabalho excedente – mais-valia - por parte do
capitalista. Existem duas maneiras de explorar a força de trabalho neste sentido: prolongando a jornada de
trabalho e, desta maneira, fazendo o trabalhador trabalhar mais horas gratuitamente para o capital – mais-
valia absoluta, ou intensificar/condensar o trabalho de modo que, num período de tempo menor, o
trabalhador produza a mesma quantidade de valores de uso (mercadorias) - mais-valia relativa – ou seja, o
período gasto tanto para a reprodução da força de trabalho, quanto para produzir o trabalho excedente se
encurtam sem prejudicar o volume da produção. Alguns fatores, dentre outros, colaboram para esta
intensificação da absorção de força de trabalho: a diminuição dos espaços da produção com o sistema
integrado de máquina, intensificação do ritmo de funcionamento das máquinas que resultam numa maior
objetivação da atenção (dispêndio de energia psíquica) e da capacidade termo-dinâmica (dispêndio de
energia física) dos trabalhadores. Além disto, podemos considerar o avanço dos processos formativos, de
reprodução psico-motora (psico= desenvolvimento de hábitos e costumes pró-laborais, de processos de
pensamento lineares e naturalizantes, favorecedores da penetração da ideologia dominante etc.; motora =
desenvolvimento de habilidades básicas de relação entre cerebração e musculação da força de trabalho.),
que, ao atingirem idades cada vez mais precoces se tornam cada vez mais econômicos e efetivos.
76 Uma das publicações consultadas – www.infed.org - estima a mensalidade das aulas noturnas,
destinadas aos habitantes maiores de 10 anos, idade em que as crianças eram consideradas prontas para
assumir a jornada de trabalho fabril, em torno de 3 dines/mês. Este valor era considerado por Owen um
valor abaixo do preço do material didático consumido. Estima-se que 40% da população de New Lanark
freqüentavam as tais aulas noturnas.
77
ENGELS, F. Del socialismo utópico al socialismo cientifico. Moscou: Ediciones en Lenguas
Extrangeiras, 1941:44.
50
78
estado da sociedade se torne universal.
[os] alunos de toda uma escola se dividem em grupos que ficam sob a
83 Utilitarismo: movimento filosófico que, segundo filósofos ingleses tais como Francis Hutcheson
(1694-1746) e Jeremy Benthan (1748-1831), defendia os propósitos da burguesia como regeneradores da
barbárie social e, portanto, um bem para toda a sociedade. Segundo estes filósofos, “a melhor ação é a
que busca a maior felicidade para o maior número de indivíduos”.
84 Instituto para a Formação do Caráter. – Vale ressaltar que, para Owen, como já deixamos claro nas
passagens anteriores, formação do caráter está intimamente ligado à obediência.
53
infância, sistematizada por Pestalozzi, a questão da intervenção corporal toma uma
posição muito diferenciada das outras propostas educacionais de seu tempo ou mesmo
anteriores a ela; mais notadamente aquelas pautadas no ensino religioso ou
encaminhadas por instituições educativo-correcionais. Nestas, a repressão e os maus
tratos corporais eram práticas correntes na sustentação do processo educativo-
repressivo. Reconhecendo o papel das experiências corporais para a educação das
crianças, o pedagogo suíço priorizou uma orientação afetiva positiva das práticas
pedagógicas, a partir da qual, o corpo passa a ser concebido, incentivado e orientado na
direção do agir para o bem comum.
85 MÉZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo, SP: Boitempo, 2002:718.
86 Marx (2001:551) a respeito do processo de desenvolvimento das forças produtivas diz o seguinte: “[a]
indústria moderna rasgou o véu que ocultava ao homem seu próprio processo social de produção e que
transformava os ramos de produção naturalmente diversos em enigmas, mesmo para aquele que fosse
inciado num deles. Criou a moderna ciência da tecnologia o princípio de considerar em si mesmo cada
processo de produção e de decompô-lo, sem levar em conta qualquer intervenção da mão humana, em
seus elementos constitutivos. As formas multifárias, aparentemente desconexas e petrificadas do processo
social de produção se decompõem em aplicações da ciência conscientemente planejadas e
sistematicamente especializadas segundo o efeito útil requerido. A tecnologia descobriu as poucas formas
fundamentais do movimento, em que se resolve necessariamente toda a ação produtiva do corpo humano,
apesar da variedade dos instrumentos empregados, do mesmo modo que a mecânica nos faz ver, através
da grande complicação da maquinaria, a continua repetição de potências mecânicas simples. A indústria
moderna nunca considera nem trata como definitiva a forma existente de um processo de produção. Sua
base técnica é revolucionária, enquanto todos os modos anteriores de produção eram necessariamente
conservadores.”
54
vivo de um organismo morto, também impôs ao capital a necessidade de gerar um
processo educacional voltado à classe trabalhadora. Como se evidencia historicamente,
o capital não faz nenhuma concessão sem que, posteriormente, se aproprie dela como
fonte de benefício para o seu projeto. A experiência educacional idealizada e realizada
por Robert Owen (1771-1858), representativa de um movimento de oposição em relação
à lógica capitalista, acabou ampliando as possibilidades de encaminhamento de uma das
contradições centrais implementadas pelo avanço do desenvolvimento das forças
produtivas e das relações de produção na divisão capitalista de produção - a dialética
formação-controle no âmbito da relação capital-trabalho.
87
Calkins, N. A. Primeiras Lições de Coisas: manual de ensino elementar para uso dos paes e
professores. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1886. Vertido da Quadragésima Edição por Ruy Barbosa.
Esse livro teve grande influência na disseminação do método intuitivo no Brasil, pois foi adotado nas
escolas normais, que formavam os professores primários. [1a. edição em inglês, Nova Iorque: 1861.]
88
Importante ressaltar a distinção desta denominação em relação àquela representativa do movimento
educacional brasileiro intitulada, nos anos de 1920, Escola Nova.
55
implementar a inserção e adequação do trabalhador ao processo industrial capitalista.89
Com relação aos dois primeiros itens, escreveu Rui Barbosa, numa das
passagens de sua proposta de reforma do ensino nacional de 1883:
89
Rui Barbosa, 1886; Souza, 2000; Monteiro, 2000; Valdemarin, 2000, dentre outros.
90
BRASIL – Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de Rui Barbosa. Vol. X – 1883, T. II –
Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro,
RJ.: Imprensa Nacional,1947:59-60. (Sic.)
91
BRASIL – Ministério da Educação e Saúde. Op. cit.:361.(Sic.)
56
o futuro trabalhador há de sentir, pela direção da cultura que
receberem as suas faculdades nascentes, o valor supremo, a
inviolabilidade absoluta dos interesses que presidem à distribuição das
categorias socais pela herança, pelo merecimento e pelo trabalho.[...]
Só então o seu espírito disporá da lucidez precisa, para se revestir em
tempo do tríplice bronze do bom-senso contra as loucuras socialistas,
contra os ódios inspiradores de subversão revolucionária, e
compreender que o nível da demolição, preconizado pelos inventores
de organizações sociais em nome da igualdade universal, representa
em si, pelo contrário, a mais tenebrosa de todas as opressões, a mais
bárbara de todas as desigualdades, a mais delirante de todas as
utopias.[...] Ora, se, para atuar nesse indivíduo, não lhe encontrardes
no espírito certos conhecimentos fundamentais e certos hábitos de
reflexão, que probabilidade haverá de persuadirdes a um faminto de
que o capitalista não é um ladrão privilegiado? [...] é de todas as
matérias de estudo que deve resultar a ação moralizadora: eis a
fórmula de toda educação eficaz.92
92
BRASIL, v.X.; t.II, 1947:361-70. (Sic.)
93
A este respeito, afirmou Barbosa: [é] dirigindo, pois, insensivelmente as diversões infantis, que o
método Froebel realiza a sua obra verdadeiramente prodigiosa. No seu sistema os brincos representa a
atividade livre da criança; e a espontaneidade da ação (selfpactivity, na expressão americana) é o primeiro
princípio do método froebeliano. [...]A atividade nos folguedos pueris (...) proporciona os elementos de
todo o conhecimento e a capacidade de executar, estabelecendo assim a coerência e a unidade na cultura
educativa. (Brasil – Ministério da Educação e Saúde. t. III. 1947:85-86.)
94
O período descrito por Le Camus, no qual prevalecem práticas corporais pautadas na relação
cerebração-musculação, ou seja, voltadas a criar um corpo hábil, circunscreve-se entre o final do século
57
Do contato com a realidade, seja diretamente ou indiretamente – pela sua
reprodução -, o método intuitivo partia do princípio de que o que penetra a mente
humana, sobretudo na primeira infância, pela via dos sentidos, pela experiência
corporal, fixa-se na memória de maneira indelével. Uma vez experimentado e fixado na
memória, pela via sensorial, o objeto do conhecimento, posteriormente, passava por um
processo de análise comparativa, de modo que “discernindo as paridades e as
diversidades, (...) associando as semelhanças, e opondo os contrastes, que a inteligência
do indivíduo, entregue a si próprio, como a da humanidade na sua infância, arrisca e
95
acerca os primeiros passos da vida” . Neste sentido, o mentor da reforma de 1883,
evidenciando um nítido engajamento ao espírito spenceriano96, sintetiza que “[não] é
outro o segredo do método intuitivo, senão tratar o menino como criatura, que possui
em si mesma o instinto do saber e todas as faculdades precisas para o adquirir: o seu
empenho [dos professores] está em deixar entregue a si própria a natureza, tanto quanto
se possa”97.
XIX até por volta de 1940. A orientação científica sob a qual se desenvolvem as diversas teorias e
práticas deste período, denominou-se paralelismo psicomotor, o qual, pautado pela evidência de uma
interdependência entre cerebração e musculação, segundo uma ótica localizacionista, mecanicista e
impregnada do dualismo cartesiano mente-corpo, concebia o corpo numa condição passiva, de
“receptáculo da tradição”. Ao apresentarmos, mais adiante os contexto e concepções relativos à
Psicomotricidade, aprofundaremos esta questão.(LE CAMUS, Jean. O corpo em discussão. Porto
Alegre, RS: Artes Médicas, 1986:29.)
95
BRASIL, 1947, v.X; t.III:54. (Sic.)
96
Para esclarecer as posições de Robert Spencer, nos utilizamos de LUCAS e MACHADO (2002/2003:
s/p), os quais comentam as posições do filósofo novecentista a respeito da inserção do Estado e da
Educação nos processos sociais colocando que “...de acordo com a filosofia spenceriana, [o Estado pode
contribuir] desde que tenha suas funções bem-delimitadas, pois as leis da sociedade têm um caráter tal
que os males naturais são corrigidos pelo princípio de auto-adaptação. Assim, o Estado é útil somente
para manter a ordem, do restante o princípio de auto-adaptação se encarrega.[...] Assim, da mesma forma
como não se aconselha interferir na economia de uma nação, também na educação não há necessidade de
intervenção. Tal como na luta pela vida as espécies superiores, consideradas mais aptas, prosperam e se
multiplicam enquanto as espécies inferiores sucumbem, assim a educação dos indivíduos, oriundos das
diferentes classes sociais, deve ser concebida. (Colchetes e grifo nossos.)
97
BRASIL, ibidem.
98
A este respeito , estacando as palavras de Froebel, Barbosa, ressalta que: “[sem] dúvida, mais fácil é
receber juízos alheios, do que formular cada qual o seu. Mas a quarta parte de qualquer resposta com que
a criança atine, vale infinitamente mais para a sua instrução, do que a metade, compreendida pelo menino,
58
Ao discutir sobre o papel da Educação Infantil, Barbosa torna ainda mais claras
as posições utilitaristas de sua proposta reformista para a educação popular brasileira.99
Quando o conselheiro nacional toma a proposta norte-americana de ensino infantil
como referência, se revela o propósito de engajamento deste nível da educação com os
princípios liberais capitalistas. Tomando o discurso do presidente de uma secretaria de
instrução norte-americana, o conselheiro nacional ratificou que:
de uma resposta enunciada por vós. Limitai-vos a assegurar aos vossos filhos condições que os habilitem
a acertar com a resposta.”
99
Valendo-se dos argumentos contidos nas disposições essenciais do regulamento de 20 de junho de
1872, ato do Ministro Stremayr, a respeito dos propósitos da educação austríaca para a primeira infância,
Barbosa ressalta que: “O fim do jardim de crianças é fortificar e completar em relação às crianças de mais
tenros anos, a educação da família, prepará-las para o ensino escolar ulterior, mediante exercícios
corpóreos bem regulados, a educação dos sentidos e uma primeira cultura espiritual apropriada à idade.
[...] Os seus meios são: 1o., ocupações próprias para desenvolver o instinto de atividade, que impele o
menino a querer crias, e manipular; 2o., exercícios de movimento e canto;3o., exercícios de intuição e
conversação acerca de objetos e imagens; 4o., narrativas e poesiazinhas; 5o., enfim, trabalhos fáceis de
jardinagem...”(Brasil – Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de Rui Barbosa. Vol. X –
1883, t. III. – Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio
de Janeiro, RJ.: Imprensa Nacional, 1947:61.)
100
Brasil – Ministério da Educação e Saúde. Obras completas de Rui Barbosa.. Vol. X –1883, t. III. –
Reforma do Ensino Primário e várias instituições complementares da instrução pública. Rio de Janeiro,
RJ.: Imprensa Nacional, 1947:69.
59
termo Psicomotricidade, podemos dizer que os kindergartens tinham como fulcro a
intervenção precoce sobre os aspectos do desenvolvimento psicomotor. Nossas
considerações se evidenciam com maior clareza na citação reproduzida abaixo, de
autoria de Willian Harris, superintendente da instrução pública de S. Louis/Missouri.
Diz ele:
Uma vez que era clara a utilização dos processos (pré) escolares para remediar
a necessidade de aliciar o elemento humano para a atividade manual, fomentando,
precocemente, o gosto pelos ofícios mecânicos, desenvolvendo habilidades motoras,
organizando comportamentos e formas de pensar, podemos inferir que a ênfase dada
pelos educadores para que os jardins fossem lugares agradáveis, tinha como um de seus
princípios norteadores relacionar, no imaginário infantil, a idéia de prazer, à de trabalho
manual, obediência e disciplina.102 Neste sentido, a atribuição das instituições de
Educação infantil enquanto lugar de cuidado a infância, voltado a liberar/incentivar a
mão de obra adulta para o trabalho fabril, fica qualitativamente ampliada. A extensão
dos mesmos ficará ainda mais clara quando analisamos os objetivos das práticas
corporais propostas no documento de Babosa, para os jovens e adolescentes, instrução
complementar àquela destinada à primeira infância.
103
Brasil – Ministério da Educação e Saúde. t. II. 1947:94.
104
M. Edwin Chadwick, apud. Brasil – Ministério da Educação e Saúde. t. II. 1947:94.
61
105
mutuamente.
Pelo até aqui exposto, fica explícito que as práticas pedagógicas enaltecidas
pelo projeto de Reforma do Ensino Primário de 1883, pressupondo uma íntima ligação
entre processos cerebrais e processos motores, foram convocadas, desde a Educação
Infantil, a respaldar o ideário liberal constituindo, parafraseando Barbosa, certos
conhecimentos fundamentais, certos hábitos de reflexão e de viver, que pudessem
acolher como natural: as desigualdades materiais; a hierarquia social; a divisão do
trabalho; a exploração do trabalhador como fundamento do progresso e constituição da
nação; a defesa, com a própria vida, da propriedade alienada; a instrução formal como
pressuposto e possibilidade de participação política e mobilidade social.107
105
Brasil – Ministério da Educação e Saúde. t. II. 1947:94-95.
106
Brasil – Ministério da Educação e Saúde. t. II. 1947:75.
107
MONTEIRO, 2000.
62
mais para subtrair-se de sua própria classe social e adquirir a mentalidade imposta por
seu próprio inimigo, que para apropriar-se das condições de vida e do conhecimento
produzido coletivamente. Além disto, as técnicas de intervenção sobre o corpo,
implementadas na origem da escola burguesa, seguindo a simplificação resultante da
divisão do trabalho sobre a atividade humana, ao abordarem o corpo humano, desde a
primeira infância, numa perspectiva enciclopedista e utilitarista, reduziram as condições
de apropriação e utilização do corpo e, conseqüentemente, de desenvolvimento da
consciência, na perspectiva de Leontiev, ao nível operacional. Deste modo, embora
restituindo no indivíduo, um senso primário de unidade psico-orgânica, podemos dizer
que as práticas corporais institucionalizadas e desenvolvidas na e pela escola burguesa
novecentista, ao pretender formar o cidadão, o homem novo, o ser integral, de fato,
preparou o campo para o surgimento, no Brasil, de um novo homem, a saber: o
trabalhador coletivo.
Neste sentido, no meio acadêmico, fica evidenciada uma gama mais ampliada de
noções elementares sobre a Psicomotricidade, que vão desde concepções funcionais
(maturação do sistema nervoso, processos neuromotores, pré-requisitos, coordenação
etc), até perspectivas ligadas aos aspectos relacionais da motricidade humana (corpo e
emoção). Assim, ao radical psico, os alunos e alunas vinculam, alguns separadamente,
outros a partir da idéia de um todo indivisível, aspectos biomaturacionais, cognitivos e
psicoafetivos, ao movimento. O movimento, por sua vez, é considerado, em alguns
casos, como objetivação, exteriorização, dos aspectos intrapsíquicos e noutras, como
elemento fundamental para a constituição destes mesmos aspectos.
PSICO MOTRICIDADE
Movimento
Ação corporal
Aspectos Biomaturacionais
Aspectos Cognitivos
Aspectos Psicoafetivos
108
LAPIERRE, André. Psicomotricidade. In: Anais do II Congresso Brasileiro de Psicomotricidade,
1984: 36-37. (Destaques do autor.) – Quando Lapierre se refere ao REAL, pretende explicitar a dimensão
racionalizável das relações, o campo das relações imediatas, circunscritas no tempo e espaço presentes. A
intervenção corporal, nestes casos, motivada por emoções circunstanciais, prioriza os aspectos funcionais
da motricidade humana. Referindo-se ao IMAGINÁRIO, indica um tipo de abordagem que tem por
pressuposto trabalhar, sob as bases da Psicanálise, com os fantasmas inconscientes, os quais, para o autor,
engendram as motivações e os comportamentos, num sentido positivo ou negativo; objetivando, desta
maneira, re-significar a experiência corporal-afetiva vivida pelo sujeito com seus pares cuidantes.
109
A atual Sociedade Brasileira de Psicomotricidade foi fundada em 1980, durante uma reunião ocorrida
em Araruama, Rio de Janeiro, na qual estavam presente representantes de diferentes áreas da Educação e
Saúde, sendo batizada, inicialmente, como Sociedade Brasileira de Terapia Psicomotora.
110
MORIZOT, R. História e rumos da Psicomotricidade no Brasil. Anais do II Congresso Brasileiro de
Psicomotricidade – Corpo Integrado. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1984.
111
Totalidade, “ nada tem a ver com as imprecisas noções de ‘todo’, de ‘contexto social’,
sistematicamente presentes nas falas dos educadores. Totalidade, no caso, corresponde à forma de
sociedade dominante em nosso tempo: a sociedade capitalista. Apreender a totalidade implica,
necessariamente, captar as leis que a regem e o movimento que lhe é imanente.” (ALVES, Gilberto Luiz.
Apresentação. In: Klein, Lígia Regina. Alfabetização: quem tem medo de ensinar? São Paulo: Cortez;
Campo Grande: Editora da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. 1996. p. 10 ) –
Complementando, para Kosik, totalidade significa, “ realidade como um todo estruturado, dialético, no
qual ou do qual um fato qualquer(classes de fatos, conjuntos de fatos) pode vir a ser racionalmente
compreendido. Acumular todos os fatos não significa ainda conhecer a realidade; e todos os fatos
(reunidos em seu conjunto) não constituem, ainda, a totalidade. Os fatos são conhecimento da realidade
se são compreendidos como fatos de um todo dialético – Istoé, se não são átomos imutáveis, indivisíveis
e indemonstráveis, de cuja reunião a realidade sai constituída – se são entendidos como partes estruturais
do todo. (KOSIK, Karel. Dialética do concreto. 3ª ed. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1976.)
66
considerações que nos permitirão acompanhar o processo histórico constitutivo desta
área do conhecimento. Para tanto, adotaremos como referencial teórico a obra
historiográfica de Jean Le Camus - O corpo em discussão112-, na qual o autor realizou
estudos relativos a abordagens corporais, desenvolvidas desde o final do século XIX, até
meados dos anos de 1980, na França. Nesta obra, Le Camus dividiu a história da
Psicomotricidade em três momentos distintos, a saber: corpo hábil, corpo consciente e
corpo significante. Além disto, para proceder a diferenciação entre estes diversos
momentos, o autor se valeu dos seguintes elementos: a) período histórico; b)
organizador – perspectiva científica norteadora dos constructos teóricos -; c) concepção
de corpo; d) bases teórico-práticas. Mesmo que se referindo à história das abordagens
corporais na França, dentre elas, aquelas sob a denominação de abordagem psicomotora,
justificamos a escolha por este referencial teórico na medida em que, a constituição das
práticas e abordagens psicomotoras em nosso país, sofreu profunda influência das
técnicas e métodos produzidos naquele país.
112
LE CAMUS, Jean. O corpo em discussão. Porto Alegre, RS: Artes Médicas, 1986.
113
O Brasil acompanha esta periodização, tendo como marco inicial de sua expansão da escola pública.
67
...o corpo “sutil” delineado no início do século XX deve ser captado
no seio desta estrutura bipolar, duplamente focalizada, e a primeira
imagem do corpo novo é a de um corpo hábil – representação ainda
fragilmente estruturada, de contornos imprecisos, mas que toma força
e relevo quando conseguimos percebê-la sobre o fundo das outras
representações do corpo: a do corpo atlético, conhecedor de todas as
acrobacias, fortificado pelo hábito do combate simulado e pronto à
defesa da pátria; bem modelado pela repetição de movimentos
localizados e corrigidos; do corpo forte, tornado resistente pela prática
de um método dito natural que coloca como objetivo primeiro o
reforço de qualidades fundamentais; do corpo preparado para o
esporte, avolumado pelas competições pacíficas mas encarniçadas do
estádio, da piscina ou do ginásio. Este corpo sutil do primeiro
momento é um corpo não apenas regido pelas leis da mecânica e da
termodinâmica, mas também pelas da psicologia.114
114
LE CAMUS, O corpo em discussão. Porto Alegre, RS.:1986:29.
115
Para aprofundamento desta questão, consultar: SILVA, D.V. A Psicomotricidade como prática
social: uma análise de sua inserção como elemento pedagógico nas creches oficiais de Curitiba (1986-
1994). Coleção Teses e Dissertações: Universidade Tuiuti do Paraná – Movimento, 2006. (no prelo)
68
116
116
Imagem de domínio público, na qual encontram-se evidenciadas, dentre outras, as três áreas cerebrais
envolvidas na comunicação humana (fala), incluindo-se a área de broca.
117
A respeito das referidas transformações nos modos de produção, consultar MARX, K. O capital:
crítica a economia política. l.1 v.1, capítulo XIII - A maquinaria e a indústria moderna. São Paulo, SP:
Civilização Brasileira, 2001: 425-572.
118
A respeito da adequação do trabalhador aos modos de produção capitalista explicitou Marx: [a]
principal dificuldade na fábrica automática consistia em sua disciplina necessária, em fazer seres
humanos renunciar a seus hábitos irregulares no trabalho e se identificar com a invariável regularidade do
grande autômato. Divisar um código de disciplina fabril adequado às necessidades e à velocidade do
sistema automático e realizá-lo com êxito foi um empreendimento digno de Hércules. (The Masters
Spinners and Manufactures Defence Fund. Report of the committee. Manchester, 1854. p. 15 Apud:
MARX, 1984, p.44)
119
Além dos autores considerados no corpo do texto, podemos citar, dentre outros: Charles Scott
Sherrington (1857-1952), fisiologista britânico, o qual, ao desenvolver estudos sobre sinapses nervosas,
explicitou os fenômenos de excitação e inibição centrais e os diferentes níveis do sistema nervoso; Ivan
M. Sechenov (1829-1905), pai da fisiologia Russa e Ivan P. Pavlov (1849-1936), seu seguidor,
aprofundam e ampliam a concepção dos reflexos e do condicionamento do comportamento; Ernest Dupré
(1862-1921), em 1901, define a síndrome da debilidade motora, composta de sincinesias, paratonias e
inabilidades, sem que haja algum dano ou lesão extrapiramidal; Henry Wallon (1879-1962), em 1925,
ocupa-se do movimento humano dando-lhe uma categoria fundante como instrumento na construção do
psiquismo; relaciona o movimento ao afeto, à emoção, ao meio ambiente e aos hábitos da criança,
69
no final do século XIX, receberam grandes investimentos.
Sob estas bases, Tissié desenvolveu uma técnica de abordagem corporal que,
pautada, sobretudo, em conhecimentos científicos desenvolvidos nas áreas médicas e
paramédicas, foi denominada por psicodinâmica. Esta técnica, concomitantemente, de
diagnóstico e intervenção sobre o corpo foi sendo especializada, dividindo-se em dois
grandes ramos: ginástica pedagógica, destinada à profilaxia da saúde da criança em
geral, e ginástica médica, voltada à reabilitação das crianças disfuncionais.121 Estava,
em embrião, lançada a idéia daquilo que posteriormente denominou-se Educação
Psicomotora e Reeducação Psicomotora.
confirmando que os desenvolvimentos gerais da personalidade não são isolados das emoções. (LE
CAMUS, 1986)
120
TISSIÉ, P. apud. Le Camus, 1986:16. (Colchetes nossos.)
121
Id., ibid.:24.
70
desordens psicomotoras e procurava sistematizar medidas para saná-las (Reeducação
Psicomotora).
122
LE CAMUS, 1986.
71
123
Segundo Le Camus, este período, na França, está compreendido entre os anos de 1945 e 1973. (LE
CAMUS, 1988, p.48) No Brasil, podemos concebê-lo a partir dos anos 1950 até, aproximadamente, 1980.
124
Dizemos principalmente, pois, além da psicologia do desenvolvimento, encontramos como
colaboradoras deste período as produções oriundas da fenomenologia e da psicanálise. Porém o que
imperou, sobretudo no Brasil, como base teórica para respaldar teoricamente a prática deste período, foi a
psicologia infantil ou do desenvolvimento.
72
oposição dos trabalhadores ao plano burguês, fatores estes, aprofundados pela depressão
125
(1929-1933) e a II Grande Guerra ; para recolocar a economia européia ocidental
numa direção ascendente e estável, era preciso uma nova sociedade, um novo Estado,
uma nova ideologia, que estimulasse o engajamento de todos, sobretudo da classe
trabalhadora, na reconstrução das nações destroçadas. Foi neste sentido que, opondo-se
à racionalidade do livre mercado e à expansão dos princípios socialistas, surgem, mais
marcadamente a partir dos anos de 1940, o que se denominou Sociedade de Bem-Estar
Social. Neste contexto, ultrapassando o espaço da produção, o Estado toma para si as
funções de gestão e reprodução da força de trabalho, assumindo um papel
intervencionista, o qual teve como tarefa fundamental garantir o processo de
acumulação e arrefecer as pressões sociais; financiando a produção e oferecendo aos
trabalhadores, além de estabilidade empregatícia, certa eqüidade no acesso aos serviços
sociais (educação, saúde, transporte etc.). Desta maneira, pela regulação do Estado se
propôs uma via de tipo “colaboracionista” que, pretendia retirar do campo político da
luta de classes o conflito político, “ pela satisfação das necessidades [básicas - DVS] da
classe operária e da promoção dos meios de atendimento de forma coletiva”.126
125 No Brasil: “Com a grande depressão, em 1929, os preços do café despencaram. A saca, que custava
duzentos mil réis em agosto de 29, passa a 21 mil réis em janeiro do ano seguinte. A crise atingiu toda a
economia brasileira. Mais de 500 fábricas fecham as portas em São Paulo e Rio de Janeiro. O país tinha
quase dois milhões de desempregados no final de 1929. A miséria e a fome atingiram a maioria da
população”. (Navarro, Fernando. A revolução de 1930. In: Cenas do século XX. São Paulo, SP:TV
CULTURA, Roteiro para série de programa televisivo, s/d. Disponível em <
http://www.tvcultura.com.br/aloescola/historia/cenasdoseculo/index.htm>; acessado em 10/12/2006.)
126
LEAL, Suely Maria Ribeiro. A outra face da crise do Estado de Bem-Estar Social: neo-liberalismo e
os novos movimentos da sociedade do trabalho. Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – NEPP,
caderno 13: Universidade Estadual de Campinas, 1990:08.
73
estreitamente ligadas aos elementos acima citados e ao domínio da respiração. Nesta
perspectiva, da Psicomotricidade do segundo período descrito por Le Camus, podemos
dizer que, mais que oportunizar o desenvolvimento de pré-requisitos, seu objetivo era
colaborar no aprofundamento dos estudos e técnicas relativos à economia do
movimento127, traduzidos pelos psicomotricistas como desenvolvimento do esquema
corporal128.
127
Podemos inferir, destes objetivos, uma íntima ligação de seus princípios com os princípios do
taylorismo (F.W. Taylor; 1856-1915) e, também, do fordismo (H. Ford; 1863-1947), relativos à
maximização da produtividade pelo controle minucioso, dentre outros aspectos, das operações da
produção, incluindo-se aí o corpo, o movimento e seus diversos elementos constitutivos.
128
Para Michel Ledoux, “[o] esquema corporal especifica o indivíduo como representante da espécie.
Mais ou menos idêntico em todas as crianças da mesma idade, ele é uma realidade de fato, esteio e
intérprete da imagem do corpo. Graças a ele, o corpo atual fica referido no espaço à experiência imediata.
Ele é inconsciente, pré-consciente e consciente”. (LEDOUX. Michel H. Introdução à obra de Françoise
Dolto. Rio de Janeiro, RJ.: Zahar, 1991:.85)
129
PICQ, L.;VAYER, P. Educación Psicomotriz y retraso mental: aplicación a los diversos tipos de
inadaptación. Barcelona, España: Editorial Científico-Médica, 1969:23. ( tradução nossa)
130
A citação que ora explicitamos, evidencia com muita propriedade os objetivos preconizados pelos
profissionais deste período e o sentido que o termo voluntária toma, inserido nesta significação. Segundo
Picq e Vayer: (...) para criar os automatismos indispensáveis, a consciência deve passar a um segundo
termo; habitualmente a participação voluntária do sujeito é condição para a Educação ou Reeducação
Psicomotora, estando presente em todos os instantes, outorgando-lhe caráter. O movimento em si não é
educativo. Para que o exercício possa intervir na vida psíquica e contribuir para seu desenvolvimento, é
necessário que seja voluntário, pensado, preciso e controlado. (PICQ-VAYER, 1969:25 – tradução
nossa.)
74
redundar, inclusive, em programas de educação e reeducação psicomotora destinados às
crianças institucionalizadas em creches e pré-escolas, ampliou as forças e sutilizou as
formas de subsumir os indivíduos a partir da intervenção sobre seus corpos.
131
Jean Le Boulch, cientista francês ligado à área da Educação Física, é um dos principais inspiradores da
Educação Psicomotora , um dos autores mais citados na sua área de origem e na própria
Psicomotricidade, além de único referencial teórico de trabalho psicomotor, utilizado no documento
federal brasileiro - Referenciais Nacionais para a Educação Infantil.
132
LE BOULCH, J. A educação pelo movimento. Porto Alegre, RS.: Artes Médicas, 1984:28.
133
Le Boulch escreve entre aspas “estímulos sociais”. Pensamos que Picq e Vayer são mais explícitos e
até mesmo mais precisos quando utilizam o termo “imperativos sociais”.
75
o fim a ser alcançado e não as modalidades de ação, que permanecem infraconscientes e
dependem do jogo da função de ajustamento. 134
Pelo até aqui exposto, podemos apreender que a proposta de Le Boulch para a
Educação Psicomotora é produzir no indivíduo, o mais precocemente possível, um
padrão de adaptação motora sintético, eficiente e perene, objetivando que o mesmo
responda aos estímulos / imperativos sociais de modo infraconsciente, sem que haja a
necessidade de acompanhamento consciente dos destinos de sua ação – o que importa é
fixar-se no fim a ser alcançado.
Desta forma, consciência, no senso “leboulchiano” do termo está, pelo até aqui
exposto, mais próximo de seu sentido metonímico - uma peça na extremidade da haste
da broca manual (o trabalhador), constituída por uma chapa curva de metal que o
operador (o capitalista) encosta ao peito quando quer exercer pressão sobre a ferramenta
-; que do princípio filosófico, mais comumente difundido - vida espiritual humana,
passível de conhecer a si mesma de modo imediato e integral, estabelecendo dessa
maneira uma evidência irrefutável de sua própria existência e, por extensão, da
realidade do mundo exterior.135
137
GENTILI, Pablo. Neoliberalismo e Educação: manual do usuário. Inserido em 24/03/2004 no site:
<http://firgoa.usc.es/drupal/node/3036> . Acessado em novembro de 2006.
77
3.3 CORPO SIGNIFICANTE138: EXPRESSIONISMO E ECONOMIA DO
DESEJO
138
Le Camus, ao considerar sobre este período, se propõe a analisar as produções da área da
Psicomotricidade entre os anos de 1974 a 1980. Sabemos que esta periodização é um recurso didático,
que intenciona circunscrever as propostas de estudo daquele autor. Sendo assim, vamos considerar o
período, denominado pelo autor como Corpo Significante, extensivo aos dias de hoje, na medida em que
os paradigmas que o fundamentam ainda se encontram presentes na Psicomotricidade atual.
139
LE CAMUS, 1986:49.
140
LEAL, 1990.
141
Mobilizados pela ideologia da anistia do sujeito pela anistia do corpo, as formulações levadas a cabo
neste período encontraram um campo fértil de expansão na América do Sul, sobretudo, no Brasil e
Argentina, a partir de meados do ano de 1980, respaldando a diluição das ditaduras militares.
78
Neste sentido, os profissionais da Psicomotricidade, alinhados aos novos
imperativos sociais, promovem o desenvolvimento de métodos e técnicas orientadas a
partir de uma perspectiva educacional para e pelo corpo, com objetivo de incentivar a
expressidade, a desculpabilização dos desejos, a apresentação do “sujeito original”,
influenciados por um contexto social que retoma, radicalmente, a concorrência e a
individualidade como pressuposto de progresso e desenvolvimento para “todos”.
Para tal, estes profissionais adotaram, até hoje válidos, os princípios advindos
da psicanálise – livre discurso, investimento libidinal, inconsciente, relações objetais etc
-; da psicologia das comunicações não verbais - na qual a expressão corporal se
apresenta como um veículo de libertação dos recalcamentos emocionais -; e da etologia
infantil – para a qual, parte importante das mensagens humanas se dá pelas mímicas,
pelas posturas, pelos gestos. Aliando corpo, emoção e expressividade, encontramos no
corpo significante uma tendência acentuada ao psicotropismo das técnicas do corpo, as
quais passam a considerar e objetivar os conteúdos psicoafetivos em suas práticas e
formulações teóricas, e ao somatotropismo das técnicas verbais que se valem da
experiência sensorial e motora do corpo como trampolim para a verbalização.
142
LE CAMUS,1986:61.
79
Para que tenhamos a noção precisa do que representou o movimento
expressionista na Psicomotricidade, trazemos os posicionamentos de André Lapierre e
seus colaboradores, os quais nos situam com bastante propriedade a respeito dos
pressupostos desta corrente psicomotora, no campo educacional. Contrapondo-se às
tendências que priorizavam a tecnicização dos processos educativos e reeducativos,
Lapierre procurou, no final dos anos 70, trazer para o centro do fazer psicomotor a
valorização da relação sujeito-sujeito, em oposição aos princípios de relação sujeito–
objeto, predominantes nos períodos anteriores. Propondo um trabalho que priorizou as
relações humanas e as potencialidades do indivíduo, na vanguarda do pensamento
dominante do período corpo significante, aquele autor declarou que:
143
LAPIERRE, André e AUCOUTURIER, Bernard. A simbologia do movimento: Psicomotricidade e
educação. Porto Alegre, RS.: Artes Médicas, 1988:13-14.
80
Seguindo a perspectiva psicanalítica, a terceira geração dos psicomotricistas
partiu do pressuposto de que os distúrbios orgânicos podem ser de tipo psicogênico,
radicados nas relações corporais primárias, e que a emancipação afetiva e intelectual do
sujeito dependeria de uma ressignificação positiva destas relações. Neste sentido, a
concepção de Imagem Corporal - organização psíquica inconsciente, fruto das relações
de prazer e desprazer que o sujeito estabelece com seus pares humanos cuidantes -,
tornou-se o objeto central da intervenção psicomotora deste período144. Para os
profisisonais engajados nesta perspectiva de abordagem corporal, “[uma] função
orgânica (a função alimentar, por exemplo) ou uma atividade percepto-motora (a
marcha, por exemplo) apenas serão exercidas adequadamente se forem previamente
‘investidas’”, carregadas de afetividade.145
144
Curiosamente, a imagem do sujeito, o apelo emocional e afetivo e a competição, são, também,
elementos articuladores importantes no âmbito das campanhas publicitárias.
145
LE CAMUS, 1986:42-43.
81
A partir desta breve historicização relativa à Psicomotricidade, elencamos
alguns pressupostos norteadores para avançarmos em nossos estudos:
146
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
curricular nacional para a educação infantil. v.II. Brasília: MEC/SEF, 1998:13.
84
conhecimento das potencialidades corporais, afetivas, emocionais,
estéticas e éticas, na perspectiva de contribuir para a formação de
crianças felizes e saudáveis.147
147
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
curricular nacional para a educação infantil. v. I. Brasília: MEC/SEF, 1998:23.
148
Conforme consta no documento, os princípios norteadores para a Educação Infantil são: o respeito à
dignidade e aos direitos das crianças, consideradas nas suas diferenças individuais, sociais, econômicas,
culturais, étnicas, religiosas etc.; • o direito das crianças a brincar, como forma particular de expressão,
pensamento, interação e comunicação infantil; • o acesso das crianças aos bens sócio-culturais
disponíveis, ampliando o desenvolvimento das capacidades relativas à expressão, à comunicação, à
interação social, ao pensamento, à ética e à estética; • a socialização das crianças por meio de sua
participação e inserção nas mais diversificadas práticas sociais, sem discriminação de espécie alguma; • o
atendimento aos cuidados essenciais associados à sobrevivência e ao desenvolvimento de sua identidade.
( BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
curricular nacional para a educação infantil. v. I. Brasília: MEC/SEF, 1998:13.)
149
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
curricular nacional para a educação infantil. v. I. Brasília: MEC/SEF, 1998:07.
85
significativa aos conteúdos teóricos, ideológicos e às orientações didáticas nele contidas
no documento.
150
Na intenção de facilitar o acompanhamento deste trabalho, sistematizamos um mapa da referida seção,
o qual pode ser visualizado no anexo 1.
86
espaço: constitui-se em uma linguagem que permite às crianças
agirem sobre o meio físico e atuarem sobre o ambiente humano,
mobilizando as pessoas por meio de seu teor expressivo.151
151
BRASIL. /Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
curricular nacional para a educação infantil. v. III. Brasília: MEC/SEF, 1998:15.
152
Segundo o documento: “[as] maneiras de andar, correr, arremessar, saltar resultam das interações
sociais e da relação dos homens com o meio; são movimentos cujos significados têm sido construídos em
função das diferentes necessidades, interesses e possibilidades corporais humanas presentes nas diferentes
culturas em diversas épocas da história.” (BRASIL, v. III, 1998:15.)
153
Procurando apreender com exatidão o significado desta expressão, fizemos um estudo na área da
Educação Física, procurando estabelecer uma diferenciação entre os seguintes termos: corporalidade,
corporeidade e cultura corporal. Deste estudo evidenciou-se que, segundo Oliveira e Oliveira, o conceito
de corporalidade parte, fundamentalmente, “de uma tradição materialista de entendimento do homem e
da sociedade, e, por conseqüência, de suas repercussões sobre a construção de nossa dimensão corporal”.
Sendo assim, nesta perspectiva, “são as condições histórico-sociais que definem qualquer forma de
expressão humana, sendo, portanto as circunstâncias objetivas e materiais que determinam aquilo que
somos, inclusive corporalmente”. Estes mesmos autores fazem uma distinção entre corporalidade e
corporeidade explicitando que este último conceito, “em nome de uma certa pluralidade, tenta agrupar
diferentes tradições de pensamento que, em muitos momentos, até mesmo se contrapõem no modo de
conceber as relações humanas”. Deste modo, “o que se verifica é uma espécie de mosaico que justapõe
tendências e concepções que não dialogam entre si e também não nos auxiliam a entender as
manifestações corporais no plano da cultura”. Em relação ao conceito cultura corporal, Oliveira e
Oliveira explicitam que o mesmo implica como centralidade a “transmissão de determinados conteúdos
(esporte, jogo, dança, ginástica etc.), promovendo um certo destaque daquilo que se convencionou
chamar de práticas, em detrimento de qualquer outro tipo de intervenção sobre as formas corporais de
existir”. Desta maneira, acrescentam os autores, cultura corporal se diferencia de corporalidade, termo o
qual, “apesar de contemplar e reconhecer a importância dessas atividades corporais expressivas, pretende
superar essa maneira tradicional de compreender a interferência da Educação Física sobre a formação
humana [...] contemplando formas diferenciadas de manifestações que provoquem reflexões sobre o
significado do que é 'ser corpo' no mundo moderno”. (OLIVEIRA, L.P.A. de & OLIVEIRA, M.C.T. de.
Questões norteadoras do debate sobre a corporalidade. In: PARANÁ. Secretaria Estadual de
Educação/ Departamento de Ensino Fundamental. Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental
- Educação Física – anexo 6. 2004 (data provável): s/p. Disponível no site http://www.seed.pr.gov.br/.
Acessado em 30/03/2006.)
154
Id., ibd.
87
do ato motor - dança, jogos, brincadeiras, esporte etc -, nas quais se utilizam diferentes
gestos, posturas e expressões corporais, proporcionando um gama de situações
favorecedoras do desenvolvimento motor, do conhecimento e percepção do corpo nas
situações cotidianas, bem como, da ampliação da cultura corporal de cada criança.
155
RCNs, v.III, 1997:17.
88
Reparar os danos, sobretudo os danos à saúde física, causados pela
extremada exploração do capital sobre o trabalho, sobretudo, sobre o
trabalho infantil;
Implementar novas possibilidades de extração da mais-valia.
Não defendendo as posições autoritárias, devemos considerar que sem o
entendimento destas demandas sociais, até hoje presentes no cotidiano escolar, cada vez
mais intensamente e precocemente, não é possível analisar com clareza o motivo pelo
qual parte dos educadores tende a adotar tais posições. Além disto, como resultante
destas mesmas demandas sociais, temos as exíguas condições de formação à qual estão
sujeitos os educadores e que, embora historicamente tenham oportunizado certo avanço
no que tange ao grau de escolaridade, não oportunizou, na mesma proporção, o avanço
em relação ao grau de reflexão destes profissionais. Disto resulta a necessidade de
considerarmos, também, o fato de que o silêncio e a disciplina continuam sendo
parâmetros balizadores do que se entende, no senso não tão comum, pela mais valiosa
qualidade do educador – o domínio de sala. Desta maneira, sem evidenciar as
significações que orientam os sentidos da escola e da atitude dos profissionais frente ao
fazer pedagógico, é impossível que se possa ter consciência e manejo das contradições
inerentes ao contexto escolar, as quais se objetivam nas metodologias e posições
adotadas. Como veremos, o próprio documento oficial é permeado de contradições.
Analisemos, alguns aspectos relativos às bases teóricas que lhe dão sustentação.
4.1.1.3 RCNs: sobre as bases teóricas da seção “movimento”e sua relação com os
objetivos imanentes da proposta
Numa primeira visualização do texto, salta aos olhos que o mesmo não
contenha, salvo numa única nota de rodapé, alusiva à obra de Wallon, nenhuma citação
direta que explicite a posição teórica sobre as quais se sustentam as reflexões nele
contidas. Outro fator complicador na identificação da orientação teórica do texto e das
proposições que defende, se refere ao vasto leque de obras e assuntos de diferentes
tendências, distribuídos por autor e não por assunto, nas 8 páginas de bibliografia, as
quais não encontram-se referidas ao longo do texto.
156
A Psicomotricidade, no Brasil, aparece como técnica de apoio para diversas áreas da saúde –
Psicologia, Pedagogia, Fonoaudiologia, Educação Física, dentre outras -, em meados dos anos de 1960.
Há 26 anos fundou-se a Sociedade Brasileira de Psicomotricidade (1980), órgão representativo dos
psicomotricistas, o qual vem trabalhando para a expansão e legalização da área, promovendo encontros
científicos e congressos, regularmente. Existe, também, há, aproximadamente, 12 anos, um curso de
graduação em Psicomotricidade, no Rio de Janeiro, licenciado pelo MEC e Coordenado pelo Instituto
Brasileiro de Medicina e Reabilitação. Além destas iniciativas, existem inúmeras instituições espalhadas
pelo Brasil, que oferecem cursos de especialização e de formação na área, há,pelo menos 10 anos.
157
Pautada numa perspectiva bio-psico-social, a teoria de Piaget evidencia a importância do movimento
enquanto elemento fundante para o desenvolvimento de uma inteligência essencialmente prática.
Enquanto elemento primário e central para o desenvolvimento de esquemas básicos de ação, o
movimento, para este autor, permite a construção de noções básicas - de objeto, de espaço, de causalidade
e de tempo - sobre as quais se edificarão estruturas e formas cada vez mais complexas de assimilação
cognitiva do meio. A critica que se tem feito à teoria piagetiana no campo psicomotor, é a de que ela
abandona a importância do movimento nos estágios ulteriores ao estágio sensório-motor. Vale ressaltar
que a perspectiva psicomotora no Brasil , mais alinhada às bases piagetianas é aquela denominada por Le
Camus de corpo consciente. (LE CAMUS, 1986.)
90
Educação de Corpo Inteiro, na medida em que reconhecemos a importância deste
trabalho para a área da Educação Física, no tocante ao questionamento das práticas
mecanicistas de abordagem do corpo. Porém, não podemos deixar de considerar que o
renomado autor, à época da elaboração do citado trabalho (1989), encontrava-se
bastante influenciado pelo conhecimento produzido por autores da psicomotricidade,
área praticamente desconsiderada pelos assessores que produziram o documento federal.
Este é um outro aspecto a ser questionado: o alijamento dos referenciais pertencentes ao
campo psicomotor. Tal fato se confirma de modo contundente, ao analisarmos as
referências relativas a esta área do conhecimento, presentes no documento oficial.
Dentre tantos autores brasileiros e estrangeiros com trabalhos publicados em nosso país,
encontramos somente dois autores referidos na bibliografia dos Referenciais.
Indubitavelmente, os dois mais citados em estudos sobre psicomotricidade. Um deles,
Jean Le Boulch, principal representante do corpo consciente, com mais de 4 títulos
traduzidos para o português, está representado por uma única referência: O
desenvolvimento psicomotor do nascimento até 6 anos158. O outro, André Lapierre,
embora com uma vasta produção abordando Educação, Reeducação e Terapia
Psicomotora, com mais de 10 livros publicados no Brasil, está referido na bibliografia
do documento, ironicamente, por sua única obra não específica do campo psicomotor -
Reeducação Física. Embora laureada pela Academia Francesa de Osteopatia, a obra em
questão é um estudo sobre biomecânica do corpo humano, ao nosso ver, totalmente sem
sentido para os propósitos anunciados na seção analisada, salvo se o documento guarda
pretensões, não explicitadas, de alinhamento com práticas corporais corretivas dos
desvios físicos, foco da educação do corporal do século XIX. Como se pode notar, o
tratamento dado à área da Psicomotricidade, nos RCNs, é totalmente incipiente, para
não dizer, restrito ao senso comum.
158
Nas referências bibliográficas do documento oficial, o nome do autor está escrito errado:
LEBOULCH, ao invés de LE BOULCH.
91
Curitiba, é uma das áreas que mais tem contribuído para as reflexões e sistematizações
relativas ao corpo/desenvolvimento, sobretudo, no âmbito da Educação Infantil? 2) Qual
a base teórica que norteia as reflexões e orientações contidas na seção movimento?
159
PARANÁ. Secretaria Estadual de Educação/ Departamento de Ensino Fundamental. Diretrizes
Curriculares para o Ensino Fundamental - Educação Física. 2004 (data provável). Disponível no site
http://www.seed.pr.gov.br/portals/portal/diretrizes/dir_ef_educfis.pdf. Acessado em 30/03/2006.
Como o próprio documento explicita: “O trabalho de elaboração das Diretrizes curriculares para a área de
Educação Física, teve início com a realização do I Seminário Estadual das Diretrizes Curriculares para o
Ensino Fundamental no mês de maio de 2004 em Curitiba. Naquela oportunidade foram estabelecidas as
bases sobre as quais professores assessores pedagógicos do Ensino Superior, equipe técnico-pedagógica
de Educação Física do Departamento de Ensino Fundamental – SEED/DEF e professores da rede
Estadual de Ensino, fundamentariam o seu trabalho. Daquele seminário foi tirada uma proposta que
incluiu encontros de assessoria, encontros descentralizados, reuniões técnicas, além de um II Seminário,
realizado em Foz do Iguaçu, em setembro de 2004.”
160
PARANÁ. Secretaria Estadual de Educação/ Departamento de Ensino Fundamental. 2004 (data
provável):04.
92
seria normal ou anormal sem considerar o contexto histórico, político,
social e cultural que oferece balizas para a corporalidade. Além disso,
não podemos mais permanecer com uma concepção de infância que
seja “etapista”, como se todas as crianças fossem iguais e uniformes
em suas respectivas idades – supondo, portanto, que aquelas que não
se encaixam no modelo seriam “anormais”.161
Por sua vez, Sayão162, embora reconhecendo certa predominância histórica das
técnicas psicomotoras na Educação Infantil, não diferindo muito das posições expostas
acima, embora as pondere, diz o seguinte:
161
Idem, ibidem. (grifos nossos)
162
SAYÃO, Deborah Thomé. Infância, Educação Física e Educação Infantil. 2000. Disponível no site
http://www.ced.ufsc.br/~nee0a6/dborahfln.rtf . Acessado em 03/04/2006.
163
SAYÃO, 2000.
93
garantia de bom desempenho nas etapas posteriores da formação escolar. Tampouco,
retiramos a razão dos autores, quando se referem à esta modalidade específica de
Psicomotricidade, orientada por uma perspectiva cognitivista, enfatizando seus aspectos
higienista e segregacionista. De fato havia, na utilização destes conhecimentos sobre o
corpo, um caráter “normalizador” e “classificador” do humano pela via do seu
movimento. Porém, a crítica do modo como está contida nos referidos documentos, não
esclarece que tal caráter da Psicomotricidade, enquanto elemento da prática social, se
constitui pelo alinhamento do saber produzido nesta área, às demandas do processo de
divisão capitalista do trabalho. Neste sentido, acreditamos que o conhecimento da
Psicomotricidade tradicional/racional, o qual deu suporte à sistematização de diversas
técnicas voltadas à economia do movimento, não deva ser criticado pelo que é, mas
analisado dentro das significações que o suportam e o norteiam. 164 Neste sentido, faltam
às criticas evidenciadas nas duas citações anteriores, justamente o suporte anunciado –
considerar o contexto histórico, político, social, cultural e adicionamos, econômico, do
fenômeno analisado.
Além destes comentários, devemos ressaltar a omissão dos autores sobre o fato
de que, desde meados dos anos de 1980, no Brasil, embora subsistam, majoritariamente,
as técnicas psicomotoras cognitivistas, esta tendência vem sendo contraposta por
métodos semio-motores de abordagem corporal, os quais concebem o corpo enquanto
corpo expressivo, adicionando ao termo psicomotor a centralidade da dimensão
subjetiva, relacional e afetiva, como constitutiva do sujeito. Exemplo disto é o caso da
Psicomotricidade Relacional de André Lapierre, constante, inclusive, como anexo da
Proposta Pedagógica curitibana para a Educação Infantil, editada em 1997.
164
Este tipo de abordagem, voltada ao desenvolvimento de pré-requisitos, na França, já sofria
contraposições desde meados dos anos de 1970. Para apreender o movimento histórico das práticas
corporais na França, ler: LE CAMUS, Jean. O corpo em discussão: da reeducação psicomotora às
terapias de mediação corporal. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986. Para um aprofundamento do tema
no contexto nacional, ler: SILVA, Daniel Vieira da. A Psicomotricidade como prática social: uma
análise de sua inserção como elemento pedagógico nas creches oficiais de Curitiba (1986-1994),
2002. 144p. (Dissertação de mestrado. Universidade Tuiuti do Paraná)
94
gerada pela necessidade de reprodução da força de trabalho e das relações de produção,
as quais se modificam ou transformam, respondendo às necessidades produtivas de seu
tempo, arrastando consigo a produção do saber.
165
BRASIL. /Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Referencial
curricular nacional para a educação infantil. v. III. Brasília: MEC/SEF, 1998:17-18.
95
• explorar diferentes qualidades e dinâmicas do movimento, como força,
velocidade, resistência e flexibilidade, conhecendo gradativamente os limites e
as potencialidades de seu corpo;
• controlar gradualmente o próprio movimento, aperfeiçoando seus recursos de
deslocamento e ajustando suas habilidades motoras para utilização em jogos,
brincadeiras, danças e demais situações;
• utilizar os movimentos de preensão, encaixe, lançamento etc., para ampliar
suas possibilidades de manuseio dos diferentes materiais e objetos;
• apropriar-se progressivamente da imagem global de seu corpo, conhecendo e
identificando seus segmentos e elementos e desenvolvendo cada vez mais uma
atitude de interesse e cuidado com o próprio corpo.
Como podemos notar, os objetivos acima expostos, se analisados à luz da
história das práticas corporais, alinham-se em conformidade com os princípios do corpo
consciente, período histórico no qual mais se investiu no desenvolvimento de
conhecimentos e práticas sobre o homem e seu corpo, visando a objetividade e a
tecnicização do movimento.
166
Ver, neste texto, O corpo Consciente: impressionismo e economia do movimento.
96
treinamentos por nós ministrados, junto a educadores de creche e pré-escolas167. Na
maioria das vezes, quando solicitados a sistematizar uma atividade corporal para os
colegas de curso, ou mesmo quando no exercício de suas atribuições laborais o fazem
para as crianças, fica evidente que os desdobramentos práticos da proposta oficial têm
se revertido numa supervalorização dos aspectos lúdico-culturais e de seus atributos
subjetivos e de convivência. Tal se dá, em detrimento de uma aproximação consciente
com os princípios teóricos que orientam os objetivos preconizados pelo documento
oficial: desenvolvimento das estruturas e habilidades psicomotoras funcionais com
vistas á instalação de pré-requisitos para formação do trabalhador manual.
169
O Congresso Brasileiro de Psicomotricidade, principal evento da área no do país, tem se constituído
como espaço aglutinador das discussões e produções sistematizadas a partir das diversas formações,
especializações, práticas clínicas e institucionais de nosso país. Vale ressaltar que a primeira versão deste
Congresso se deu em 1980, em Umuarama, Rio de Janeiro. Organizado pela Sociedade Brasileira de
Psicomotricidade, tal Congresso, até o ano de 1986, era realizado bienalmente. A partir daquele ano,
passou a ocorrer de três em três anos. Desde sua primeira versão, esse evento é realizado em diferentes
regiões do país, visando oportunizar a participação do maior número de profissionais atuantes na área.
170
Esta entrada foi utilizada pois através dela poderíamos rastrear, inclusive títulos que contivessem
termos como corporeidade, corporalidade e cultura corporal. Ressaltamos que também fizemos,
também, uma busca com a entrada <psicomotricidade>, sem, no entanto, encontrar nenhum título que a
contivesse ou mesmo alguma de suas derivadas: psicomotor, psicomotora etc.
98
Seguindo estes critérios, encontramos nos últimos 6 anos de produção acadêmica, 22
trabalhos, distribuídos da seguinte maneira: 2 no GT2 – História da Educação; 2 no GT3
– Movimentos Sociais e Educação; 1 no GT4 – Didática; 2 no GT6 – Educação Popular;
2 no GT7 – Educação de 0 a 6 anos; 1 no GT8 - Formação de Professores; 2 no GT12 –
Currículo; 3 no GT13 – Educação Fundamental; 1 no GT16 – Educação e
Comunicação; 3 no GT17 – Filosofia da Educação; 1 no GT20 – Psicologia da
Educação e 3 no GT23 – Gênero, Sexualidade e Educação.
Desta maneira, considerando uma média de 15 trabalhos por ano, por GT, dos
aproximados 2000 títulos verificados, 1% deles se refere, explicitamente, a temáticas
ligadas ao corpo e destes, apenas 9% encontram-se inseridos no GT7, principal grupo
trabalho que concentra os estudos relativos à Educação de 0 a 6 anos.
99
4%
9% GT16 -EDUCAÇÃO E
COM UNICAÇÃO
GT17 -FILOSOF IA DA EDUCAÇÃO
13% 4%
9% GT2 0 -Ps ico lo g ia d a Ed ucação
27% 28%
Educação Pscomotora
Reeducação Psicomotora
Terapia Psicomotora
Outros
23% 22%
26%
Educação Infantil
44% Ensino Fundamental
Educação Especial
12% Outros
18%
33%
Pública
Privada
67%
171
Segundo dados do Governo Federal, em levantamento feito em 2004, eram 4.915.945 crianças
atendidas nas creches e pré-escolas públicas brasileiras e 7.039.171, somando-se o numerário matriculado
nas instituições particulares.
102
no campo da Psicomotricidade. Disto se pode inferir que a área da Educação Infantil,
produz muito pouco sobre o corpo e que a área do corpo/psicomotora, produz muito
pouco sobre Educação.
172
Segundo nosso levantamento, o percentual de incidência das principais perspectivas de intervenção na
Educação Psicomotora, evidenciado nos anais do IX Congresso, é o seguinte: 56% - perspectiva
relacional; 33% - perspectiva funcional; 11% - Outras.
173
As linhas de trabalho psicomotor consideradas aqui como funcionais, são aquelas, explicitamente,
alinhadas com os fundamentos do corpo consciente. Já aquelas consideradas por nós como portando uma
inclinação relacional, estão assim agrupadas pelo seu engajamento nas perspectivas do corpo significante.
Aquelas denominadas por outras tendências, são aquelas práticas corporais que misturam aspectos
teóricos e práticos do corpo consciente e do corpo significante, resultando, na sua maioria, em
intervenções relacionais mecanicistas, ou em intervenções tecnicistas que consideram o aspecto da
socialização como um dos fatores motivadores de sua abordagem. Vale ressaltar que, segundo nosso
levantamento, das nove produções relativas à Educação Psicomotora na primeira infância, 5 são de
abordagem relacional (aproximadamente 55%); 3 se engajam na perspectiva funcional (aproximadamente
33%) e uma encontra-se dentre as outras tendências (aproximadamente 11%).
103
em outros, sinteticamente, são estas as argumentações utilizadas para legitimá-las:
Os trabalhos apresentados pelos autores do GT7, por sua vez, são unânimes em
evidenciar uma perspectiva marcada pela denúncia à disciplinarização do corpo.
Partindo de uma concepção de corpo, de sujeito e de processo escolar pautada numa
perspectiva culturalista, a posição dos autores pesquisados se assemelha muito aos
pressupostos defendidos pelos RCNs. Segundo o entendimento de que as práticas
corporais implementadas nas escolas, bem como em outras instâncias do cotidiano,
forjam e normatizam o comportamento e a subjetividade dos indivíduos, tais autores
defendem a necessidade de uma abordagem que se distancie das perspectivas
biologicistas, as quais tendem a desconsiderar o sujeito para além da conservação e
assimilação à norma social, dispensando a exigência do pensamento.174 Seguindo este
pensamento, estes pesquisadores compartilham da idéia de que a preponderância de uma
racionalidade instrumental nos modelos e práticas escolares, reflexo da ciência
174
RICHTER, 2005. - Embora não explicite, tal posição pode ser interpretada, também, como um ataque
às concepções de Educação Psicomotora do corpo consciente.
104
moderna, circunscreve as individualidades a espaços e tempos controlados e
massificados, “imprimindo-lhes profunda e permanentemente certas disposições
(disciplinares) que passam a operar pelo resto da vida.”175
175
CARVALHO, Rodrigo S. de. Educação Infantil: práticas escolares e o disciplinamento dos corpos.
Anais da 29ª Reunião Anual da ANPEd. Caxambu, MG: 15 a 18 de outubro de 2006. Disponível no site
da ANPEd. Acessado em novembro de 2006.
176
RICHTER, Ana Cristina. Sobre a presença de uma Pedagogia do Corpo na Educação. Anais da 28ª
Reunião Anual da ANPEd. Caxambu, MG: 16 a 19 de outubro de 2005. Disponível no site da ANPEd.
Acessado em novembro de 2006.
105
Educação Psicomotora é vazio. Uma vez que a dissociação entre corpo e mente é da
ordem do impossível, tal argumentação não passa de uma formulação idealista.
Neste sentido, uma vez que consideramos os aspectos das práticas funcionais
como suficientemente analisados em outras passagens deste trabalho, passamos à
análise de alguns aspectos ligados à questão da subjetividade, categoria fulcral dos
estudos de perspectiva culturalista, bem como das abordagens relacionais do campo
177
Ver capítulo 2, a respeito da origem da escola burguesa no Brasil.
178
No caso da escola pública, os indivíduos aos quais nos referimos são aqueles pertencentes à classe dos
explorados.
106
psicomotor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
179
KLEIN, Lígia. Uma leitura de Piaget sob a perspectiva histórica. Tese de Doutorado. Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP:1996:163.
109
tipo de atividade, específico das comunidades primitivas – a cooperação primitiva -,
oportunizou a expansão do psiquismo humano, pela coincidência entre o sentido pessoal
e as significações sociais, ou seja, pela possibilidade do indivíduo participar
conscientemente da produção social. Em seguida, discorremos acerca do processo de
complexificação das forças produtivas e das relações de produção que, culminando na
divisão capitalista do trabalho, resultou numa dissociação entre sentido pessoal e sentido
objetivo. Nesta medida, evidenciamos a relação existente entre atividade, consciência e
as categorias marxianas - estranhamento e alienação -, esclarecendo que se, na
cooperação primitiva o ato de exteriorizar-se, de objetivar-se através de suas produções,
reflui sobre o sujeito significando um sentido pessoal, na divisão capitalista do trabalho,
este mesmo ato, produz estranhamentos, os quais, aprofundam o abismo entre o
desenvolvimento do humano-genérico e as possibilidades de desenvolvimento do
humano-individual, gerando como resultado, a alienação.
Além disto, a exigüidade de artigos ligados à nossa temática bem como, o teor
das argumentações que sustentam posições muito próximas àquelas defendidas, há
111
quase uma década, pelos RCNs e outros documentos oficiais que o sucederam,
evidencia que as pesquisas relativas à díade corpo-educação, não tem encontrado
repercussão, nem no contexto da Psicomotricidade, nem no âmbito acadêmico. Ao
mesmo tempo que este fato nos apontou a importância de trabalhos como o que aqui
efetivamos, nos preocupa, tendo em vista que esta dimensão de significativa
importância para o processo de formação da primeira infância - o corpo e as práticas
que sobre ele intervém -, encontra-se quase desprovida de análises, quanto mais, de
crítica.
CONSIDERAÇÕES
PRELIMINARES
PRESENÇA DO
MOVIMENTO NA
EDUCAÇÃO INFANTIL:
idéias e práticas correntes.
A CRIANÇA E O O PRIMEIRO ANO DE VIDA
MOVIMENTO
CRIANÇAS DE UM A TRÊS
ANOS
CRIANÇAS DE QUATRO A
SEIS ANOS
OBJETIVOS CRIANÇAS DE ZERO A
TRÊS ANOS
CRIANÇAS DE QUATRO A
SEIS ANOS
GT 4 – Didática
CORPOREIDADE: A LINGUAGEM QUE CONSTRÓI E PRODUZ CULTURA
CORPORAL NA PROFISSIONALIZAÇÃO CONTINUADA DOS DOCENTES DA
UNERJ
MONTAGNOLI, Dilma (UNERJ)
GT 2 - FORMAÇÃO DE PROFESSORES
119
OS CORPOS PERFEITOS E SAUDÁVEIS QUE A PÁTRIA NECESSITA: o concurso
de robustez infantil e a imagem materna (São Paulo, 1928)
ALMEIDA, Jane Soares de - UNIBAN /UNESP
GT 12 – CURRÍCULO
O CURRÍCULO MULTIEDUCAÇÃO NUMA LEITURA PÓS-COLONIAL: A
IDENTIDADE, O CORPO E A SEXUALIDADE COMO ENTRE-LUGAR NO
PORTAL MULTIRIO.
BARREIROS, Débora - UERJ
FRANGELLA, Rita de Cássia Prazeres – UERJ
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA