EXERCÍCIOS DE COMPREENSÃO OU COPIAÇÃO - Marcuschi
EXERCÍCIOS DE COMPREENSÃO OU COPIAÇÃO - Marcuschi
EXERCÍCIOS DE COMPREENSÃO OU COPIAÇÃO - Marcuschi
Luiz Antônio Marcuschi** A exposição divide-se em três partes: 1a) apresentação dos tipos de
exercício de compreensão de texto presentes nos manuais escolares; 2a)
desenvolvimento de alguns aspectos teóricos para fundamentar uma
O problema noção de compreensão e 3a) reexame dos exercícios de compreensão
dos manuais, oferecendo sugestões alternativas.
Quase todos os manuais de ensino de Língua Portuguesa apresentam
uma seção de exercícios chamada Compreensão, Interpretação,
Entendimento de texto, ou algo semelhante. Essa parte da aula deveria Alguns exemplos extraídos de manuais escolares
exercitar a compreensão, aprofundar o entendimento e conduzir a uma
reflexão crítica sobre o texto. A iniciativa é elogiável e extremamente
A maioria absoluta dos exercícios de compreensão dos manuais
necessária, pois a compreensão deve ser treinada, já que não é uma
escolares resume-se a perguntas e respostas. Raramente são sugeridas
habilidade inata, transmitida geneticamente pela espécie humana. Além
atividades de reflexão. Em geral são perguntas padronizadas e
disso, a compreensão de texto é um dos aspectos básicos no domínio do
repetitivas, de exercício para exercício, feitas na mesma seqüência do
uso da língua.
texto. Quase sempre se restringem às conhecidas indagações objetivas:
O quê? Quem? Quando? Onde? Qual? Como? Para quê? ou então
Neste ensaio, vamos analisar as atividades desenvolvidas nesse tipo de contém ordens do tipo: copie, ligue, retire, complete, cite, transcreva,
tarefa escolar e verificar se elas de fato são exercícios de compreensão.
escreva, identifique, reescreva, assinale...partes do texto. Às vezes, são
A conclusão será bastante melancólica ao descobrirmos que, em sua
questões meramente formais. Raramente apresentam algum desafio ou
maioria, esses exercícios não passam de uma descomprometida
estimulam a reflexão crítica sobre o texto.
atividade de copiação e, neste caso, se
3. Copie, do segundo parágrafo, o trecho que diz como estava 9. Cite o único período do texto que faz referência ao pai de
vestida a personagem. Luciana.
4. A menina gostava de camarão? Copie do texto o trecho que
justifica sua resposta. Não é raro encontrar um exercício inteiro sem orientação ou núcleo
temático. As perguntas vão para todo lado. Observemos esta técnica
E mais estes para aumentar a coleção3: de perguntas num exercício de interpretação, após um texto curto
(Lippi, 1991a, p.24-25):
Exemplo 4:
Exemplo 5:
8. No 4º parágrafo, há duas perguntas das galinhas, mostrando
que elas nada faziam sem perguntar ao galo. Cite-as. 1. Quem é o autor dessa história?
9. Cite o trecho do texto que mostra o desespero das galinhas 2. Na história, que sobremesa a mãe tinha feito para o almoço?
quando o Rei as obrigava a tomarem decisões. 3. O que Zizi fez quando todos se distraíram?
4. Complete:Estávamos à mesa quando..............notou a ..............
Quem teria ......... esta ...........neste doce? Zizi, que estava ...........,
3
Todas as questões desse exemplo foram extraídas de Tesoto, 1988 e Discini, não..............
1986, p.25, 35, 66, 121, 132, 156, 198. 5. Quem era Eva?
Desde que discutida a resposta com a turma, esta é uma pergunta típica
Exemplo 7: de compreensão textual. Pois não se dá um título a um texto sem mais
nem menos. O exercício do Exemplo 7 poderia ser um bom trabalho de
1. O fato narrado no texto acontece: compreensão. Deveria trazer uma forma de operar em sala de aula.
4. Como é que o texto descreve a pequena Lisete? Transcreva. — Quer vender os porcos, Pedro?
Portanto, a língua é uma atividade constitutiva5 com a qual podemos Com esta concepção de língua, podemos facilmente notar que nem
construir sentidos; é uma forma cognitiva com a qual podemos tudo o que dizemos está inscrito objetivamente no texto que
expressar nossos sentimentos, idéias, ações e representar o mundo; é produzimos (oralmente ou por escrito). Nem é possível dizer tudo,
uma forma de ação pela qual podemos interagir com nossos já que para isso teríamos de produzir uma grande quantidade de
semelhantes. Em conseqüência, a língua se manifesta nos processos linguagem e os textos não terminariam nunca. Assim, é claro que
discursivos, no nível da enunciação, concretizando-se nos usos textuais o autor de um texto sempre vai ter de deixar muita coisa por conta
mais diversos. É importante não confundir a língua com o discurso. do leitor ou ouvinte. Isto quer dizer que os textos são sempre
contextualizados, sejam eles escritos ou falados. O grande
Nesta perspectiva, a língua é mais do que um simples instrumento problema é o quê e quanto se deve supor como compartilhado
de comunicação; mais do que um código ou uma estrutura. pelos ouvintes ou leitores quando se fala ou escreve. Qual é o
Enquanto atividade, ela é indeterminada sob o ponto de vista limite até onde devemos ser explícitos para dar a entender o que
semântico e sintático. Por isso, as significações e os sentidos queremos transmitir?
textuais e discursivos não podem estar aprisionados no interior
dos textos pelas estruturas lingüísticas. A língua é opaca, não é Na realidade, um texto bem-sucedido é aquele que consegue
totalmente transparente, podendo ser ambígua, polissêmica, de dizer o suficiente para ser bem-entendido, supondo apenas aquilo
modo que os textos podem ter mais de um sentido e o equívoco nas que é possível esperar como sabido pelo ouvinte ou leitor. É
atividades discursivas é um fato comum. interessante notar que se o autor ou falante de um texto diz uma
parte e supõe outra parte como de responsabilidade do leitor ou
A língua permite a polissemia (a pluralidade de significações) e ouvinte, então a atividade de produção de sentidos (ou de
pode levar ao mal-entendido (pois as pessoas podem entender o que compreensão de texto) é sempre uma atividade de co-autoria.
não foi pretendido pelo falante ou o autor do texto). Certamente, Isto quer dizer que os sentidos são parcialmente produzidos pelo
muitas destas questões se devem a escolhas sintáticas (nós texto e parcialmente completados pelo leitor. Nesta maneira de
ver os fatos e os usos da língua, percebemos que não é
justificável ficar buscando todos os sentidos do texto como se
5
Várias das idéias aqui defendidas a respeito da noção de língua podem ser
eles estivessem inscritos de modo objetivo dentro do texto.
melhor observadas nos trabalhos de ( Franchi, 1977) e (Possenti, 1988).
Embora a intenção do presente estudo não seja fornecer uma bibliografia sobre
as questões levantadas, parece útil dar pelo menos algumas indicações. Quanto
7
à noção de texto e a outros aspectos observados mais adiante, ver Marcuschi, Quanto a este aspecto e a outros abordados aqui, pode-se consultar, com
1983, Koch, 1989; 1992). Uma obra proveitosa e que analisa muitos desses proveito, os trabalhos de (Kleiman, 1988 ; 1989). Úteis neste contexto são
temas é a de Geraldi, 1991. também os trabalhos da coletânea editada por (Zilbermann, Silva, 1988).
Retornemos ao nosso tema inicial, os exercícios escolares, e vejamos, A noção de compreensão como simples decodificação só será superada
brevemente, como se comportam em relação à teoria aqui levantada. quando admitimos que a compreensão é um processo criador, ativo e
Em seguida, nos dedicaremos a fazer algumas propostas de trabalho de construtivo que vai além da informação estritamente textual.
compreensão com texto em sala de aula. Compreender um texto envolve muito mais do que o simples
conhecimento da língua e reprodução de informações.
Quanto a este último aspecto, convém ressaltar que os textos Uma primeira tentativa de aproximação do texto poderia ser a técnica
trabalhados nos manuais escolares são pouco representativos da de identificação das idéias centrais do texto e as possíveis intenções do
diversidade textual encontrada no dia-a-dia. A escola poderia oferecer autor, na medida em que muitos aspectos podem não estar envolvidos
mais oportunidade de contato com textos mais complicados em que não diretamente nas informações objetivas do texto. Se tomássemos o texto
aparecem personagens, tais como as bulas de remédio, as instruções de "Pedro Urdemales", por exemplo, poderíamos comentar qual teria sido
uso de aparelhos, os contratos de aluguel, as atas de condomínio, as a intenção central do autor daquele texto e quais os indícios no texto
propagandas, as notícias de jornal. Enfim, uma diversidade imensa sem que poderiam levar a esta suposição. Neste caso haveria várias
um espécime seu representado nos manuais escolares. possibilidades.
Por fim, lembramos que há uma atividade raramente praticada com a Se os manuais escolares ainda não tomaram conhecimento das diversas
compreensão textual. Raquel Salete Fiad (Fiad,1991) tem trabalhado possibilidades que existem de tratar a compreensão de texto, isto não
com certa insistência e sucesso a reescritura de textos, ou seja, ela deve ser motivo para desânimo. Nem significa que devemos jogar fora
analisa e propõe sucessivas correções (geralmente autocorreções) de os manuais. Eles são úteis e podem continuar em uso, mas precisam de
textos ao longo de um tempo. Parece que essas mesmas atividades de uma complementação. Já é suficiente ter claro que a compreensão,
revisão poderiam ser realizadas com a compreensão textual. A leitura de enquanto "leitura da realidade", "leitura do mundo", é uma atividade
um texto e a correspondente compreensão registrada por escrito bastante complexa, em geral de cunho ideológico e nunca isenta de
poderiam ser objeto de revisão tempos depois, mediante uma nova equívocos. Também não é uma pura atividade de garimpagem de
leitura e verificação do que teria mudado na compreensão e por quê. É informações objetivas.
muito provável que numa segunda ou terceira leitura de um texto em
tempos diversos teremos outra visão e outra compreensão. Tratar este Será proveitoso conscientizar-se de que ninguém é "dono" exclusivo
aspecto em sala de aula é estar fazendo algo proveitoso, pois esta do(s) sentido(s) dos textos. O autor não põe no texto todos os sentidos;
situação é comum no dia-a-dia, já que costumamos rever nossas o leitor não é dono dos sentidos e os sentidos não estão todos no texto.
posições ao longo da vida. Vamos mudando de posições, opiniões, O sentido é algo que surge negociada e dialogicamente na relação entre
idéias e isto influencia nossa forma de compreender os textos. Por isso é o leitor, o autor e o texto sob as condições de recepção em que estamos
bom rever nossas compreensões. Todos nós já fizemos experiências situados, pois os textos têm seus sentidos determinados por muitas
interessantes com filmes vistos há muitos anos e que então nos condições, sobretudo as condições em que ele é produzido e lido. O
fascinaram, mas que hoje não nos fascinam tanto, ou então o contrário. autor pode ter querido dizer uma coisa e o leitor ter compreendido
De resto, é um fato inconteste que as compreensões de textos variam outra: o equívoco é possível.
historicamente de tempos em tempos em função de uma série de fatores.
Hoje não lemos os livros de Machado de Assis com a mesma Uma coisa é certa: não podemos ter a ilusão de que um texto tem uma
compreensão que se tinha na época em que foram editados. Também só leitura (compreensão) nem que a nossa leitura ou compreensão é a
entendemos os textos de filósofos, políticos, sociólogos, cientistas ou única ou a mais correta. O sentido se dá num processo muito complexo
jornalistas de maneira diversa do que esses textos foram entendidos na em que predominam as relações dialógicas, e os conteúdos textuais são
época de sua escritura. apenas uma parte dos dados. O dia em que a escola se conscientizar
disso estará efetivamente contribuindo de maneira substantiva para a
formação de cidadãos críticos. Estará
DASCAL, Marcelo. Strategies of understanding. In: PARRET, H., LIPPI, Valéria Martins. De palavra em palavra: 2a série. São Paulo:
BOUVERESSE, J.(Eds.). Meaning and understanding. Berlim; FTD, 1991.
New York: W. De Gruyter, 19-.
a
_____________ ._____________ .: 3a série. São Paulo: FTD, 1991.
DISCINI, Norma. Produção de textos: 5 série. São Paulo: Ed. Brasil,
1986. MARCUSCHI, Luiz A. Lingüística de texto: o que é e como se faz.
Recife, 1983. Pós-Graduação, UFPE.
FIAD, Raquel S. Operações linguísticas presentes nas reescritas de
textos.Revista Internacional de Língua Portuguesa, n.4,1991. MARISCO, M.T. et al.Marcha criança: português: 4a série [do] 1.º
grau. São Paulo: Scipione, 1994.
FIORE, Amara. Aprender é viver: 5a série : comunicação e expressão.
São Paulo: Ed. Brasil, 1979. POSSENTI, S. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: M. Fontes,
1988.
FRANCHI, C. Linguagem: atividade constitutiva.Almanaque, n.5, p.9-
27,1977. TESOTO. Lídio. Texto e contexto. São Paulo: Ática, 1988.
GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. São Paulo: M. ZILBERMANN, Regina, SILVA, Ezequiel T. da. Leitura: perspectivas
Fontes, 1991. interdisciplinares. São Paulo: Ática, 1988.