EXERCÍCIOS DE COMPREENSÃO OU COPIAÇÃO - Marcuschi

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EXERCÍCIOS DE COMPREENSÃO OU COPIAÇÃO NOS prestam, na melhor das hipóteses, como exercícios de caligrafia, mas

MANUAIS DE ENSINO DE LINGUA?* não estimulam a reflexão crítica.

Luiz Antônio Marcuschi** A exposição divide-se em três partes: 1a) apresentação dos tipos de
exercício de compreensão de texto presentes nos manuais escolares; 2a)
desenvolvimento de alguns aspectos teóricos para fundamentar uma
O problema noção de compreensão e 3a) reexame dos exercícios de compreensão
dos manuais, oferecendo sugestões alternativas.
Quase todos os manuais de ensino de Língua Portuguesa apresentam
uma seção de exercícios chamada Compreensão, Interpretação,
Entendimento de texto, ou algo semelhante. Essa parte da aula deveria Alguns exemplos extraídos de manuais escolares
exercitar a compreensão, aprofundar o entendimento e conduzir a uma
reflexão crítica sobre o texto. A iniciativa é elogiável e extremamente
A maioria absoluta dos exercícios de compreensão dos manuais
necessária, pois a compreensão deve ser treinada, já que não é uma
escolares resume-se a perguntas e respostas. Raramente são sugeridas
habilidade inata, transmitida geneticamente pela espécie humana. Além
atividades de reflexão. Em geral são perguntas padronizadas e
disso, a compreensão de texto é um dos aspectos básicos no domínio do
repetitivas, de exercício para exercício, feitas na mesma seqüência do
uso da língua.
texto. Quase sempre se restringem às conhecidas indagações objetivas:
O quê? Quem? Quando? Onde? Qual? Como? Para quê? ou então
Neste ensaio, vamos analisar as atividades desenvolvidas nesse tipo de contém ordens do tipo: copie, ligue, retire, complete, cite, transcreva,
tarefa escolar e verificar se elas de fato são exercícios de compreensão.
escreva, identifique, reescreva, assinale...partes do texto. Às vezes, são
A conclusão será bastante melancólica ao descobrirmos que, em sua
questões meramente formais. Raramente apresentam algum desafio ou
maioria, esses exercícios não passam de uma descomprometida
estimulam a reflexão crítica sobre o texto.
atividade de copiação e, neste caso, se

Apesar desta observação negativa inicial, é bom lembrar que esses


exercícios não são inúteis. Eles podem ser feitos, e talvez sejam
* Este ensaio deve ser visto como uma tentativa de estimular o(a) professo(a) a necessários, mas eles não são exercícios de compreensão, pois eles se
ir além dos manuais que ele/ela recebe em sala de aula. Por isso, se atém ao preocupam apenas com aspectos formais ou então reduzem todo o
estritamente essencial. Quanto à bibliografia, friso que ela não aparece no
final e sim nestas notas de rodapé. Este procedimento pareceu-me mais útil.
trabalho de compreensão à identificação de informações objetivas e
Portanto, as notas deveriam ser lidas para maior proveito. superficiais. Esta é uma forma muito restrita e pobre de ver o
** Professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

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funcionamento da língua e não é assim que as coisas acontecem Estas perguntas poderiam ser feitas em outro contexto, pois elas
no dia-a-dia. conduzem a conhecimentos formais interessantes. Exigem que se
saiba, por exemplo, o que é parágrafo, verso, título, autor, etc.
Uma análise de sete manuais de 1a a 7a série atualmente em uso Contudo, não se trata de questões de compreensão. O máximo que
nas diversas escolas, particulares e públicas, com um total 1.463 elas conseguem é evidenciar a má noção do que seja compreender
perguntas, mostrou que cerca de 60% das perguntas eram de cópia um texto. No final deste ensaio veremos a importância de trabalhar
ou citação de alguma parte do texto. Aproximadamente 30% eram com o título do texto, mas esta é uma atividade de reflexão sobre o
perguntas de caráter pessoal nada tendo a ver com o texto; apenas título e não uma simples ação de copiar o título ou o nome do autor.
5% das perguntas exigiam que se relacionassem duas ou mais
informações textuais para responder. Poucas perguntas se Em muitos casos, sob o pretexto de interpretação, encontramos
preocupavam com alguma reflexão crítica1. pedidos de simples transcrição de falas, por exemplo (Lippi,
1991a, p.110)2:
Perguntas muito comuns nos exercícios de compreensão são
aquelas que indagam sobre aspectos formais do texto, sem
necessidade de análise. Entre elas encontramos: Exemplo 1:

— Quem é o autor do texto? 3. Complete:


— Qual o título do texto? a) As frases de Sandro foram: ....................................................
— Quantos versos tem o poema? b) Pedro escreveu: ......................................................................
— Em quantos parágrafos apareceu a fala das personagens? c) As frases do seu Nicolau foram: ............................................
— Quantos parágrafos tem o texto?
— Numere os parágrafos do texto. Já que a questão mais freqüente é a que manda copiar, transcrever,
citar alguma parte do texto, vejamos mais perguntas desta técnica
de tratamento formal do texto (Azevedo, 1992, p.8 e 16).
1
Agradeço este levantamento aos meus alunos de graduação em Letras na
disciplina Lingüística 3, do Departamento de Letras da Universidade Federal
2
de Pernambuco, 2° semestre de 1994. O levantamento mostrou que em quatro Para entender melhor as citações, observe-se que os exemplos estão
manuais não havia uma única pergunta de caráter inferencial. Os manuais numerados em seqüência. E cada pergunta tem o número original do exercício
analisados pelos alunos não foram os mesmos que utilizei neste trabalho. em que aparece no livro-texto.

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Exemplo 2: 4. "Bem moleca mesmo". Cite três ações, no primeiro
parágrafo, que justificam o qualificativo de moleca para Bel.
2. Copie do texto a frase que indica que Tiago estava: 5. Transcreva o trecho do primeiro parágrafo que descreve
a) aflito: ................................................... um pouco Marcela.
b) apaixonado:..........................................
6. Transcreva o parágrafo que mostra a reação da lavadeira,
4. Esta história é uma narração. Como ela começa? Ou
quando o motorista reclamou.
então estes casos bem típicos (Marisco, 1994, p.31):
12. Cite o trecho do texto que prova a alternativa assinalada
Exemplo 3: na questão anterior.

3. Copie, do segundo parágrafo, o trecho que diz como estava 9. Cite o único período do texto que faz referência ao pai de
vestida a personagem. Luciana.
4. A menina gostava de camarão? Copie do texto o trecho que
justifica sua resposta. Não é raro encontrar um exercício inteiro sem orientação ou núcleo
temático. As perguntas vão para todo lado. Observemos esta técnica
E mais estes para aumentar a coleção3: de perguntas num exercício de interpretação, após um texto curto
(Lippi, 1991a, p.24-25):
Exemplo 4:
Exemplo 5:
8. No 4º parágrafo, há duas perguntas das galinhas, mostrando
que elas nada faziam sem perguntar ao galo. Cite-as. 1. Quem é o autor dessa história?
9. Cite o trecho do texto que mostra o desespero das galinhas 2. Na história, que sobremesa a mãe tinha feito para o almoço?
quando o Rei as obrigava a tomarem decisões. 3. O que Zizi fez quando todos se distraíram?
4. Complete:Estávamos à mesa quando..............notou a ..............
Quem teria ......... esta ...........neste doce? Zizi, que estava ...........,
3
Todas as questões desse exemplo foram extraídas de Tesoto, 1988 e Discini, não..............
1986, p.25, 35, 66, 121, 132, 156, 198. 5. Quem era Eva?

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6. Coloque M na fala da mãe e Z na fala de Zizi: 3. O que a mãe fez?
[] — Os dentes de Eva ficaram pequenos, minha filha. 4. O que a mãe, aborrecida, falou para Marisa?
[] — Por quê? 5. O que começou a incomodar Lílian?
[ ] — Porque a dentadinha que aqui está é de dentes muito 6. O que Lílian resolveu contar para a mãe?
pequeninos.
7. Ligue:
[ ]—Ela pediu minha boquinha emprestada.
Lílian —Não preciso falar nada sobre o que aconteceu.
Aqui temos questões de forma, de cópia e de identificação de Mamãe —Mamãe, me desculpe, eu menti para você.
personagens. A pergunta 6 merece entrar em qualquer antologia. Sua 8. O que a mãe de Lílian acha que devemos sempre fazer?
resposta sequer exige a leitura do texto, pois uma vez percebido que a
primeira é M (basta ver que a personagem diz "minha filha") e as outras 9. Por que a mãe pediu desculpas a Marisa?
falas são seqüenciadas, só resta alternar:M, Z, M, Z.4 10. Qual foi a principal lição que você tirou dessa história?
11. No lugar de Lílian, o que você teria feito se quebrasse algo de
Uma técnica oposta a esta, na elaboração de questões de interpretação, é
seus pais?
a que faz o aluno percorrer a história na mesma ordem da narração,
apenas copiando as falas ou as informações. Veja este caso típico
(Lippi, 1991b, p.76-78): A questão 7 é auto-evidente e não necessita sequer de uma consulta ao
texto. As questões 10 e 11 são uma tentativa de refletir sobre o texto,
mas aceitam qualquer resposta. Para se tornarem relevantes, poderiam
indagar a razão da posição pessoal como justificativa para a resposta.
Exemplo 6:

Muitas vezes, encontramos propostas de trabalho que não se enquadram


1. O que aconteceu quando Lílian estava se pintando?
propriamente na seção "Interpretação de texto", mas poderiam levar a
2. O que Lílian disse para sua mãe, quando ela chegou? discutir relações semânticas ou formas de percepção das informações
na organização sintática. Contudo, quando colocadas no sistema de
escolhas alternativas, perdem seu efeito e se tornam uma simples
identificação de palavras. Este é o caso da pergunta 7 no Exemplo 6.
* Este é um caso interessante em que se poderia fazer um trabalho inferencial
com base apenas em conhecimentos pessoais sem necessidade de ir ao texto. A Ou então este caso de um texto interessante de Clarice Lispector, que
pergunta poderia ser: Nesta conversa entre mãe e filha, quem falou primeiro, a inicia assim (Fiore, 1979, p.66,68):
mãe ou a filha? Você saberia dizer por quê?

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Uma tarde eu estava andando pelas ruas para comprar presentes de Não é conveniente identificar a autora com a personagem. Pode ser até
Natal. As ruas estavam muito cheias de pessoas... No meio daquela uma narrativa autobiográfica, mas isto deveria ser discutido e não
gente toda havia um agrupamento. Fui olhar. Era um homem, passado como óbvio. Das no e perguntas do exercício, apenas a última
vendendo vários micos, todos vestidos de gente e muito engraçados. tem a ver com questões propriamente de interpretação e sugere uma
compreensão global do texto:
Na seção "Interpretando o texto", as duas primeiras propostas de
trabalho são: 9. Dê um novo título ao texto.

Desde que discutida a resposta com a turma, esta é uma pergunta típica
Exemplo 7: de compreensão textual. Pois não se dá um título a um texto sem mais
nem menos. O exercício do Exemplo 7 poderia ser um bom trabalho de
1. O fato narrado no texto acontece: compreensão. Deveria trazer uma forma de operar em sala de aula.

( ) num dia de Natal; ( )


Em geral, os próprios textos não são desafiadores, pois a miséria na
numa tarde; ( ) num
domingo. seleção é geral. Em manuais das 1a e 2a séries há conglomerados de
frases que nem sequer formam textos e apenas brincam
2. A autora foi à rua para: desajeitadamente com sons. Contudo, encontramos certos textos que
( ) comprar um mico; poderiam suscitar reflexões críticas, já que portam um discurso que
( ) comprar presentes de Natal; mexe com costumes, crenças, formas de vida, relações de trabalho, etc.
( ) ver o vendedor de micos. Uma reflexão cuidadosa levaria a atitudes que culminariam no
exercício de cidadania. A título de exemplo, observemos mais de perto
este texto(Marisco, 1994, p. 109-110):
Mesmo identificando informações objetivas, as duas perguntas são boas
para testar a capacidade de relacionar os elementos do enunciado. Pedro Urdemales
Problemáticas são perguntas apenas objetivas como estas do mesmo
exercício, na seção de interpretação: Pedro Urdemales cuidava de uns porcos do patrão, que estavam
pastando perto de um lamaçal, quando passaram por ali uns
3. Que comprou a autora para sua família? viajantes e gritaram:

4. Como é que o texto descreve a pequena Lisete? Transcreva. — Quer vender os porcos, Pedro?

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Pedro respondeu: rabinhos) diante de seu desafiante (o ilusionista aproveitador
— Quero sim, mas sem os rabos. Urdemales). Vejamos os desafios:

Assim sendo, depois de acertarem o negócio, cortaram o rabo


de todos os porcos. Pedro recebeu o dinheiro e os viajantes Exemplo 8:
seguiram viagem.
Então Pedro Urdemales enterrou os rabos na lama, deixando Responda:
de fora só a pontinha. Em seguida foi correndo até o patrão e a) O que fazia Pedro Urdemales?
lhe disse:
b) O que gritaram os viajantes?
— Patrão, patrão, os porcos afundaram na lama!
c) O que respondeu Pedro?
O patrão, assustado, correu até o pântano e, ao ver todos os
rabinhos enterrados, mandou que Pedro fosse buscar um laço. d) O que fez Pedro com os rabos cortados?
Pedro foi e voltou bem depressa. Os dois amarraram um dos e) O que fez o patrão com o laço que pediu?
rabos numa das extremidades do laço e começaram a puxar. f) O que aconteceu com o patrão ao puxar o laço que pediu?
Já sabendo o que ia acontecer, Pedro não fez força, deixando
isso por conta do patrão. Este sim, puxou com todo o seu
fôlego. O rabo saiu e ele se esborrachou na lama, de pernas Após o exercício, vem uma seção sob o título "Comentando", em
para o ar, e não quis mais continuar. que uma das propostas é: 'Você acha que um empregado deve
enganar seu patrão para conseguir ganhar mais dinheiro? Por
Pedro Urdemales ainda deve estar gastando o dinheiro que quê?". Se esta indagação poderia ser um bom início para outros
ganhou e zombando da cara do patrão, que jamais se deu debates sobre o discurso daquele texto, isto fica mascarado no verbo
conta do acontecido. você acha e na solicitação de uma justificativa para o possível sim
(Contos populares para crianças da América Latina. Editora Ática.) ou não que o aluno dará. Mais uma vez, malbarata-se a possibilidade
de aprofundar uma boa idéia. A escola parece ter um verdadeiro
Já o nome do empregado, Urdemales, seria um bom início para horror das questões ideológicas; julga-as intocáveis ou as ignora.
discussão, isto sem contar as possíveis implicações da esperteza
nas relações de trabalho. Mas o teste que se segue ao texto só Muito comuns são os exercícios de opiniões pessoais aleatórias,
contém perguntas essencialistas que tratam o texto como se fosse subjetivas e até imotivadas, que ignoram o texto. Vejamos este
um repositório de informações evidentes. O exercício é um retrato caso em que, das cinco perguntas, três nada tinham a ver com o
da mentalidade do patrão de Urdemales (o iludido caçador de texto, embora fosse um teste de interpretação (Lippi, 1991a, p.73).

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Exemplo 9: As questões formais, como já lembramos acima, são também muito
comuns. Vejamos este caso prototípico (Marisco, 1994, p.6):
3. Escreva aqui as coisas boas que a natureza nos oferece.
4. Se você fosse Presidente da República, o que faria para proteger Exemplo 11:
a natureza?
5. Quem pode preservar a natureza? 1. Escreva o que se pede:
a) o título do texto:..............................................................................
Isto fica mais claro neste outro caso em que, das 10 perguntas de
interpretação de um texto, cinco nada têm a ver com a compreensão b) o personagem principal:.................................................................
(Lippi, 1991b, p.116), valendo qualquer resposta: c)o nome do autor:..............................................................................

Há exercícios inteiros preocupados com questões formais. Em um deles,


Exemplo 10: após um poema, encontramos as seguintes questões (Azevedo,
1992,p.l73-174):
6. E você, que tipo de música prefere?
7. Quais são as três músicas que você mais gosta de ouvir?
Exemplo 12:
8. Você gosta de tocar algum instrumento?
9. Você conhece algum músico brasileiro? Qual? 1. Responda:
10. O que você acha que é necessário para se tornar um bom a) Onde aconteceu a história?
músico?
b) Quem é a personagem da história? Qual o seu nome?

Todas essas perguntas são de fato interessantes se colocadas em outro 2. Escreva:


contexto, mas não se referem a uma atividade de compreensão, nem a) quantas estrofes há no poema?
são feitas a propósito de alguma sugestão vinda do texto inserido no b) quantos versos há na: Ia estrofe.................. 2a estrofe ................
manual. Poderiam motivar uma discussão entre os alunos e levá-los a
defender suas opiniões. Mas não é este o sentido do trabalho 5a estrofe ............ 7a estrofe.................
proposto, porque o aluno escreve sua opinião individualmente e tudo Rimas são sons semelhantes no final dos versos. Exemplo: vibração
fica como está. — animação

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3. Releia o poema e complete rimando: 2. Perguntas não-respondíveis, mesmo lendo o texto
No circo. É um só ................ Todo pachola, anda e................... 3. Perguntas para as quais qualquer resposta serve
No circo, é um só .................Bate ferro na ............................... 4. Perguntas que só exigem exercício de caligrafia
é ouro, é ouro, é...................equilibra-se numa .......................
é ferro, é ferro, é ................. cai, grita, chora...........................
4. O que significam as palavras tombaço e espinhaço? Um pouco de teoria
5. Qual é a forma correta de escrever "É ladrão de muié"?
Não é este o lugar de desenvolver uma teoria completa da
compreensão textual. Isto demandaria mais espaço e tempo do que
O exercício está aqui transcrito na íntegra (com exceção da pergunta
aqui é possível. Contudo, com uma pequena explanação e com alguns
3 que contém mais versos), e não é difícil ver que nada aqui é
princípios gerais podemos determinar os elementos essenciais dessa
desafiador sob o ponto de vista da reflexão exigida sobre o texto em
teoria. Não são muitos os princípios básicos para fundamentar um
si. O texto é visto como um simples objeto produzido com sinais
bom trabalho no estudo da compreensão. E o resultado final será
gráficos. A própria variação lingüística é sumariamente tratada
uma melhor percepção de como se produz e capta o sentido na leitura
como forma errada de produzir fala.
de textos. Além disso, mostrará por que os exemplos dos exercícios
referidos acima representam um desvio considerável na maneira de
Não é necessário prosseguir, nem precisamos consultar muitos tratar as capacidades cognitivas dos alunos.
outros manuais para confirmar estas observações. Certamente, há
muitos deles que já trazem propostas de trabalho mais
O primeiro aspecto importante numa teoria da compreensão de texto
desafiadoras e interessantes, que se dedicam à exploração de
é a noção de língua que se adota. Os manuais escolares analisados
processos cognitivos e à formação do espírito crítico. Não tivemos
concebem a língua simplesmente como um código ou um sistema de
oportunidade de vê-los. O certo é que os exemplares aqui
sinais autônomo, totalmente transparente, sem história, e fora da
manuseados estão ainda no mercado e são muito usados. Servem
realidade social dos falantes. Mas a língua é muito mais do que um
como amostra do universo de que procedem e podem ser tomados
sistema de estruturas fonológicas, sintáticas e lexicais. A rigor, a
como representativos. Sumariamente, a conclusão é esta: mais da
língua não é sequer uma estrutura; ela é estruturada
metade das perguntas dos exercícios de compreensão de nossos
simultaneamente em vários planos, seja o fonológico, sintático,
manuais escolares pode ser dividida em quatro categorias:
semântico e cognitivo no processo de enunciação. A língua é um
fenômeno cultural, histórico, social e cognitivo que varia ao longo do
1. Perguntas respondíveis sem a leitura do texto tempo e de acordo com os falantes: ela se manifesta no uso e é sensível

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ao uso. A língua não é um sistema monolítico e transparente, mas conhecemos as ambigüidades sintáticas como "o burro do vizinho",
é variável, heterogênea e sempre situada em contextos de uso. Não "o quadro de Di Cavalcanti'); ambigüidades semânticas (muitas
pode ser vista e tratada simplesmente como um código. piadas baseiam-se neste aspecto) e assim por diante.

Portanto, a língua é uma atividade constitutiva5 com a qual podemos Com esta concepção de língua, podemos facilmente notar que nem
construir sentidos; é uma forma cognitiva com a qual podemos tudo o que dizemos está inscrito objetivamente no texto que
expressar nossos sentimentos, idéias, ações e representar o mundo; é produzimos (oralmente ou por escrito). Nem é possível dizer tudo,
uma forma de ação pela qual podemos interagir com nossos já que para isso teríamos de produzir uma grande quantidade de
semelhantes. Em conseqüência, a língua se manifesta nos processos linguagem e os textos não terminariam nunca. Assim, é claro que
discursivos, no nível da enunciação, concretizando-se nos usos textuais o autor de um texto sempre vai ter de deixar muita coisa por conta
mais diversos. É importante não confundir a língua com o discurso. do leitor ou ouvinte. Isto quer dizer que os textos são sempre
contextualizados, sejam eles escritos ou falados. O grande
Nesta perspectiva, a língua é mais do que um simples instrumento problema é o quê e quanto se deve supor como compartilhado
de comunicação; mais do que um código ou uma estrutura. pelos ouvintes ou leitores quando se fala ou escreve. Qual é o
Enquanto atividade, ela é indeterminada sob o ponto de vista limite até onde devemos ser explícitos para dar a entender o que
semântico e sintático. Por isso, as significações e os sentidos queremos transmitir?
textuais e discursivos não podem estar aprisionados no interior
dos textos pelas estruturas lingüísticas. A língua é opaca, não é Na realidade, um texto bem-sucedido é aquele que consegue
totalmente transparente, podendo ser ambígua, polissêmica, de dizer o suficiente para ser bem-entendido, supondo apenas aquilo
modo que os textos podem ter mais de um sentido e o equívoco nas que é possível esperar como sabido pelo ouvinte ou leitor. É
atividades discursivas é um fato comum. interessante notar que se o autor ou falante de um texto diz uma
parte e supõe outra parte como de responsabilidade do leitor ou
A língua permite a polissemia (a pluralidade de significações) e ouvinte, então a atividade de produção de sentidos (ou de
pode levar ao mal-entendido (pois as pessoas podem entender o que compreensão de texto) é sempre uma atividade de co-autoria.
não foi pretendido pelo falante ou o autor do texto). Certamente, Isto quer dizer que os sentidos são parcialmente produzidos pelo
muitas destas questões se devem a escolhas sintáticas (nós texto e parcialmente completados pelo leitor. Nesta maneira de
ver os fatos e os usos da língua, percebemos que não é
justificável ficar buscando todos os sentidos do texto como se
5
Várias das idéias aqui defendidas a respeito da noção de língua podem ser
eles estivessem inscritos de modo objetivo dentro do texto.
melhor observadas nos trabalhos de ( Franchi, 1977) e (Possenti, 1988).

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Em segundo lugar, ao lado da noção de língua, é necessário ter uma não será mais uma atividade de garimpagem de informações. Um
noção de texto6. A escola trata o texto como um produto acabado e texto oferece muito mais surpresa que um garimpo e tem muito
que funciona como uma cesta natalina, onde a gente bota a mão e mais coisas escondidas que um garimpo.
tira coisas. O texto não é um produto nem um simples artefato
pronto; ele é um processo. Assim, não sendo um produto acabado, E muito difícil, em qualquer situação de uso da língua, obter a
objetivo, como uma espécie de depósito de informações, mas sendo explicitude completa nos textos, pois, como vimos, eles sempre estão
um processo, o texto se acha em permanente elaboração e contextualizados numa determinada situação, cultura, momento
reelaboração ao longo de sua história e ao longo das diversas recepções histórico, campo ideológico, crença e assim por diante. Além disso,
pelos diversos leitores. Em suma, um texto é uma proposta de sentido uma pessoa pode entender mais do que outra quando lê um texto,
e ele se acha aberto a várias alternativas de compreensão. Mas todo já que a compreensão dependerá também dos conhecimentos
cuidado aqui é pouco, pois o texto também não é uma caixinha de pessoais1 que os indivíduos têm. É por isso que os conhecimentos
surpresas ou algum tipo de caixa preta. Se assim fosse, ninguém se pessoais, aquela enciclopédia que cada um construiu na sua mente,
entenderia e viveríamos em eterna confusão. vão ser tão importantes na hora de compreender um texto.
É possível haver leituras diferenciadas e ainda corretas. A proposta
Estes conhecimentos pessoais podem ser muito diversificados:
dos exercícios escolares falha porque concebe o texto como uma
conhecimentos lingüísticos, conhecimentos de regras de
soma de informações objetivas facilmente identificáveis.
comportamento, conhecimentos sociais, antropológicos, históricos,
Concebendo o texto como um processo e uma proposta de sentido,
factuais, científicos e muitos outros. Também são importantes as
elimina-se aquela idéia de compreensão como identificação de
nossas crenças, nossa ideologia, nossos valores. E como não vivemos
informações objetivas. Portanto, com um conceito de língua tal
isolados no mundo, mas em sociedade, será importante para a
como o aqui adotado, que se recusa a restringir a língua a um
compreensão o contexto social, ideológico, político, religioso, etc.,
simples instrumento com a função de transmitir informação, uma
em que vivemos.
noção de texto como proposta de sentido pode sugerir exercícios e
tarefas muito mais instigantes aos alunos. Compreender o texto
Agora podemos introduzir um último conceito que será
importantíssimo para entender melhor ainda por que os exercícios

Embora a intenção do presente estudo não seja fornecer uma bibliografia sobre
as questões levantadas, parece útil dar pelo menos algumas indicações. Quanto
7
à noção de texto e a outros aspectos observados mais adiante, ver Marcuschi, Quanto a este aspecto e a outros abordados aqui, pode-se consultar, com
1983, Koch, 1989; 1992). Uma obra proveitosa e que analisa muitos desses proveito, os trabalhos de (Kleiman, 1988 ; 1989). Úteis neste contexto são
temas é a de Geraldi, 1991. também os trabalhos da coletânea editada por (Zilbermann, Silva, 1988).

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de compreensão dos manuais escolares são falhos. Trata-se da noção de simplesmente uma reação de recepção passiva. Compreender textos não
inferência, isto é, aquela atividade cognitiva que realizamos quando é simplesmente reagir aos textos, mas agir sobre os textos.
reunimos algumas informações conhecidas para chegarmos a outras
informações novas. Tomemos um exemplo: suponhamos que Pedro e Nesta maneira de conceber o processo de compreensão, fica evidente
João se encontrem e mantenham o seguinte diálogo: que a compreensão não é uma atividade com regras precisas ou exatas
Contudo, se compreender não é uma atividade de precisão, isto também
Pedro: — Acabei de vender meu carro! não quer dizer que a compreensão seja uma atividade imprecisa de pura
João: — Mas que cara de sorte heim ?! adivinhação. Ela é uma atividade de seleção, reordenação e
reconstrução, em que uma certa margem de criatividade é permitida. A
compreensão é, além de tudo, uma atividade dialógica que se dá na
A observação de João mostra que ele tomou (compreendeu) o
relação com o outro. É uma via de mão-dupla.
enunciado de Pedro não como sendo uma informação, mas como uma
expressão de alívio. Isso só foi possível porque João conhecia muito
bem o carro de Pedro — velho, completamente enferrujado e caindo aos Se tudo o que dissemos até aqui é certo e pode ser defendido com
pedaços. A inferência que o levou a considerar a venda como um lance segurança, também é certo que a leitura e a compreensão de texto não
de sorte, e não uma simples transação normal, baseou-se nos são uma espécie reino da liberdade total, onde tudo é permitido.
conhecimentos partilhados por ambos e não em uma informação textual Compreender um texto não é uma atividade de vale tudo. Um texto
explícita. Para inferir, João reuniu as informações de que ele dispunha e permite muitas leituras, mas não inúmeras e infinitas leituras. Não
as informações dadas por Pedro. podemos dizer quantas são as compreensões possíveis de um
determinado texto, mas podemos dizer que algumas delas não são
possíveis. Portanto, pode haver leituras erradas, incorretas, impossíveis e
Na atividade de compreensão, geralmente partimos de informações
não-autorizadas pelo texto. Por exemplo, não podemos entender o
textuais (que o autor ou falante nos dá no seu discurso) e informações
contrário do que está afirmado, ou seja, nossa compreensão não pode
não-textuais (que nós, como leitores, colocamos no texto ou que fazem
entrar em contradição com as proposições do texto.
parte de nossos conhecimentos ou da situação em que o texto é
produzido). Com isto construímos os sentidos (inferimos os conteúdos)
e estabelecemos uma dada compreensão do texto. Portanto, podemos Para que isto fique claro, imagine-se o texto como uma cebola8. As
admitir que a compreensão textual se dá em boa medida como um camadas internas (as cascas centrais) seriam as informações
processo inferencial, isto é, como uma atividade de construção de
sentido em que compreender é mais do que extrair informações do
texto: é uma atividade de produção de sentidos. Daí a afirmação feita
Essa imagem da "cebola" devo-a a Dascal (19-, p.327-352), que propõe uma
acima de que a compreensão é uma atividade criativa e não teoria semântica a partir dessa imagem da cebola.

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objetivas que formariam um núcleo de objetividade que qualquer um de O texto original é aquele que recebemos para leitura, por exemplo, o
nós teria de admitir sem mudar o conteúdo. Logo em seguida,.vem uma texto de "Pedro Urdemales", ou que ouvimos de alguém oralmente.
segunda camada (as cascas intermediárias) que é mais passível de Certamente, podemos ler esse texto de várias maneiras. Essas diferentes
receber interpretações diversas, mas válidas; este é o terreno das maneiras são horizontes ou perspectivas diversas. Tentemos uma breve
inferências. A camada que vem em seguida (as cascas mais longe do explicação:
núcleo) já é mais complexa e está sujeita a muitos equívocos, pois ela
vem misturada com nossas crenças e valores pessoais ou de nosso 1. Falta de horizonte — nesta perspectiva, apenas repetimos ou
grupo. Por fim, existe uma camada externa (as últimas cascas) que é a copiamos o que está dito no texto. Permanecer neste nível de leitura é
mais descartável, mais vulnerável e sobre ela podemos discutir muito, agir como se o texto só tivesse informações objetivas. Neste caso o
pois ela está no domínio das extrapolações, das imagens das idéias autor é tido como soberano, e os sentidos possíveis foram por ele
vagas. inscritos no interior do texto. A atividade do leitor se reduziria a uma
mera atividade de repetição. Esta é a perspectiva dos exercícios
Traduzindo esta imagem da cebola num diagrama para entender melhor escolares. Ela existe, mas não é a única e é muito óbvia.
como se dá a compreensão, poderíamos usar a figura abaixo, na qual
estão desenhados cinco horizontes que ilustram o que se passa com a
2. Horizonte mínimo — neste caso teremos o que aqui se chama de
compreensão. Vejamos:
leitura parafrástica, ou seja, uma espécie de repetição com outras
palavras em que podemos deixar algo de lado, selecionar o que dizer e
escolher o léxico que nos interessa. Certamente, vamos colocar alguns
Os cinco horizontes da compreensão
elementos novos, mas nossa interferência será mínima, e a leitura fica
ainda numa atividade de identificação de informações objetivas que
podem ser ditas com outras palavras.

3. Horizonte máximo — esta é a perspectiva que considera as


atividades inferenciais no processo de compreensão, isto é, as
atividades de geração de sentidos pela reunião de várias informações do
próprio texto, ou pela introdução de informações e conhecimentos
pessoais ou outros não contidos no texto. E uma leitura do que vai nas
entrelinhas; não se limita à paráfrase nem fica reduzida à repetição. São
muitos os tipos de inferências e não é tão simples assim identificar até
onde ainda é possível dizer se a interpretação é válida ou não.
Seguramente, este horizonte representado pelas

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inferências constitui o horizonte máximo da produção de sentido. caso, baseado em suposições várias, ele poderia inferir que o autor
No horizonte inferencial temos a possibilidade de um extenso e do texto quis dar a entender de maneira irônica que em Pernambuco
proveitoso treinamento do raciocínio lógico, do raciocínio prático, não há só frevo e maracatu no carnaval.
do raciocínio estético, crítico e outros tipos de raciocínio. Quanto a
isto, é bom lembrar que as inferências lógicas aparecem menos Com esta última observação entramos num terreno delicado e
que as pragmáticas ou as fundadas na experiência do dia-a-dia. limítrofe, que é o de perceber as intenções no texto. É difícil
desenvolver uma teoria consistente e clara para esta finalidade.
4. Horizonte problemático — embora este horizonte não seja em Existem várias delas9, mas nós não vamos expô-las aqui. Basta
princípio descartável como inadequado, ele vai muito além das saber que todas elas defendem que é possível, com uma frase ou
informações do próprio texto. Trata-se do âmbito da extrapolação. um texto, dar a entender o contrário daquilo que é expresso pelo
Não é uma inferência no sentido estrito do termo e sim uma suposto sentido literal. Mas aí entramos numa questão bastante
extrapolação enquanto inserção de elementos. São leituras de complexa, ou seja: existe ou não o sentido literal?10 O sentido
caráter idiossincrático, bem pessoal, onde o investimento de literal existe, mas de uma maneira geral as palavras não
conhecimentos pessoais é muito grande e chega a ser preocupante. funcionam literalmente. Nós dificilmente vivemos em "estado de
Assim, por exemplo, parece possível, mas é problemático dizer que
dicionário". Parece que os autores de livros didáticos analisados
Pedro Urdemales odiava seu patrão.
conseguem esta façanha!
5. Horizonte indevido—finalmente, identificamos uma zona muito
nebulosa que qualificamos como indevida ou proibida. É a área da Um aspecto não tratado aqui, mas que deve ser considerado, é o
leitura errada. Por exemplo, suponhamos este texto: que diz respeito aos tipos de leitores. Nem todos os leitores têm o
mesmo desempenho ou a mesma perspectiva nas leituras. Portanto,
Todas as músicas tocadas e cantadas no carnaval pernambucano há leitores que conhecem mais e outros que conhecem menos os
de 1996 ficaram entre o frevo e o maracatu numa demonstração assuntos tratados num texto; leitores mais maduros e menos
inequívoca da supremacia da cultura local. maduros; leitores que se interessam mais por um que por outro

Se com base neste texto alguém dissesse que entre as músicas


tocadas no carnaval pernambucano estavam o chorinho e o axé Refiro-me aqui a teorias tais como a do princípio de cooperação de Grice, ou
music, ele estaria contestando o texto, mas não compreendendo a algumas teorias de Análise do Discurso, como as de Ducrot e outras. Na
ou interpretando, pois o texto não permitia aquela leitura. Contudo, verdade, todas elas têm base inferencial e situam-se no patamar do horizonte
se alguém tivesse lido esse texto numa seção de variedades da máximo detectado acima.
revista Veja, poderia achar que se tratava de uma ironia. Neste Excelentes observações sobre o assunto podem ser vistas nos trabalhos de
Sírio Possenti na obra citada acima.

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tema e assim por diante. Seguramente, ao lado dessa tipologia de são a mesma coisa, ou seja, compreender é identificar informações
leitores deveríamos ter também alguma tipologia de textos, nem que textuais objetivas.
fosse para diferençar níveis de dificuldades, pois os textos oferecem
dificuldades diferentes a depender do tipo, da profundidade com que Essas suposições são ingênuas e fundadas numa noção equivocada de
trata os temas, da complexidade lexical, da natureza dos assuntos língua, de texto e de compreensão. Partem de uma teoria da
abordados etc. comunicação teoricamente ingênua e empiricamente inadequada. A
noção equivocada de língua como um código autônomo com
Neste estudo não interessa todo tipo de trabalho com o texto em sala de propriedades imanentes conduz à adoção de uma teoria da compreensão
aula nem todos os problemas relativos à compreensão textual. Nosso em que compreender eqüivale a decodificar. Mas como nós vimos,
interesse centra-se apenas na questão de como andam os exercícios compreender não é o mesmo que decodificar palavras e frases do texto.
escolares de compreensão. Contudo, é evidente que não se pode falar Compreender é inferir, criar, representar e propor sentidos. A noção de
sobre um tal tema sem tocar numa série de outros. Isto apenas atesta a compreensão como simples ato de decodificação leva a fazer as
urgência de propostas mais claras e concretas de trabalho com o texto perguntas equivocadas que encontramos nos exercícios analisados no
em sala de aula. início deste estudo.

Retornemos ao nosso tema inicial, os exercícios escolares, e vejamos, A noção de compreensão como simples decodificação só será superada
brevemente, como se comportam em relação à teoria aqui levantada. quando admitimos que a compreensão é um processo criador, ativo e
Em seguida, nos dedicaremos a fazer algumas propostas de trabalho de construtivo que vai além da informação estritamente textual.
compreensão com texto em sala de aula. Compreender um texto envolve muito mais do que o simples
conhecimento da língua e reprodução de informações.

Observando os exercícios de compreensão textual existentes nos


Análise crítica e sugestões de trabalho manuais didáticos, tem-se a impressão de que a compreensão só pode
ser treinada ou testada mediante a técnica da pergunta e resposta. No
A estas alturas é fácil perceber que os exercícios de compreensão dos entanto, pode-se pensar numa série de outras atividades que vão além
livros didáticos falham em pelo menos três aspectos centrais: 1. supõem disso. Pode-se trabalhar a própria reprodução do texto integralmente
uma noção instrumental de linguagem e imaginam que a língua após a sua leitura. Trata-se da perspectiva do estudo global do texto, o
funciona apenas literalmente como transmissora de informação; 2. que pode ser feito em grupo ou individualmente. É interessante treinar
supõem que os textos são produtos acabados que contêm em si a compreensão gerada em grupo, pois esta é uma forma de se testarem
objetivamente inscritas todas as informações possíveis e 3. supõem que as opiniões e de
compreender, repetir e memorizar

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exercitar a leitura como um ato de comunicação interpessoal, uma Também seria interessante ter presente que a escola ganharia muito em
atividade dialógica por excelência. sua função pedagógica se propiciasse condições de leitura e
compreensão nos moldes mais próximos possíveis do que acontece no
Fique claro, no entanto, que não descartamos a técnica da pergunta- dia-a-dia das pessoas. Observe-se que em geral uma pessoa conta para a
resposta como plausível e adequada no treinamento da compreensão outra a notícia que ouviu no rádio, na TV, ou que leu no jornal; resume
textual. Ela é sempre útil, porém, não é a única forma de tratar a questão uma longa conversa que teve com um amigo ou amiga; comenta, critica
e, sobretudo, não é ideal se for reduzida a um questionamento textos, conversas, acrescenta idéias novas e assim por diante.
essencialista e repetidor, tal como vimos. De pouco interesse para a
compreensão são as questões do tipo onde, quando, quem, o quê e qual, As atividades aqui sugeridas partem de uma discussão ou exploração do
se estas indagações só buscam identificar fatos e dados objetivos do texto em partes para depois trabalhá-lo globalmente. Essas sugestões
texto. partem da suposição de que a compreensão de texto se acha ligada ao
processo de produção. Quem compreende um texto sempre produz,
As sugestões aqui feitas resumem-se a algumas poucas alternativas mesmo que mentalmente, um outro texto paralelamente. É incrível
consideradas produtivas. Mas há outras que podem ser facilmente como os manuais escolares não percebem este fato e nunca treinam a
imaginadas. Estas foram escolhidas por duas razões: primeiro, porque produção e compreensão integradamente. Os exercícios aqui sugeridos
não são praticadas com freqüência em sala de aula e podem renovar a visam propor alternativas para este tipo de tratamento textual integral.
maneira de trabalhar a compreensão e tornar mais atraente esse tipo de
exercício. Segundo, porque representam situações de tratamento textual
comuns na vida diária e lidam com os textos numa perspectiva integrada
à realidade cotidiana. Identificação das proposições centrais do texto

Quanto a este último aspecto, convém ressaltar que os textos Uma primeira tentativa de aproximação do texto poderia ser a técnica
trabalhados nos manuais escolares são pouco representativos da de identificação das idéias centrais do texto e as possíveis intenções do
diversidade textual encontrada no dia-a-dia. A escola poderia oferecer autor, na medida em que muitos aspectos podem não estar envolvidos
mais oportunidade de contato com textos mais complicados em que não diretamente nas informações objetivas do texto. Se tomássemos o texto
aparecem personagens, tais como as bulas de remédio, as instruções de "Pedro Urdemales", por exemplo, poderíamos comentar qual teria sido
uso de aparelhos, os contratos de aluguel, as atas de condomínio, as a intenção central do autor daquele texto e quais os indícios no texto
propagandas, as notícias de jornal. Enfim, uma diversidade imensa sem que poderiam levar a esta suposição. Neste caso haveria várias
um espécime seu representado nos manuais escolares. possibilidades.

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Perguntas e afirmações inferenciais uma forma de trabalhar os conteúdos globalmente. Veja-se, por
exemplo, o título do texto que já comentamos aqui: "Pedro
Uma alternativa excepcional de trabalhar a compreensão textual é Urdemales". Com este título, pouco podemos fazer. Já se o título
montar um conjunto de perguntas que exigem a reunião de várias fosse: "A vingança de Urdemales", iríamos esperar alguma coisa
informações para serem respondidas, ou afirmações que para serem e o texto receberia um enfoque bem diferente. Já um título como
justificadas exigiriam vários passos. Não seriam perguntas objetivas, "Rabos traiçoeiros" seria pouco sugestivo e não colocaria as
mas inferenciais; perguntas cujas respostas não se acham relações entre Urdemales e seu patrão no enfoque central.
diretamente inscritas no texto. As inferências baseiam-se em Trabalhar os títulos de textos é uma boa forma de perceber como
informações textuais explícitas e implícitas, bem como em se constrói um universo contextual e ideológico para os textos
informações postas pelo leitor. Na atividade inferencial, costumamos mesmo antes de lê-los.
acrescentar ou eliminar, generalizar ou reordenar, substituir ou
extrapolar informações. Isto porque avaliamos, generalizamos,
comparamos, associamos, reconstruímos, particularizamos Produção de resumos
informações e assim por diante. Essas são atividades constantes na
vida diária e podem ser treinadas como atividades ligadas aos
processos de compreensão textual. Uma das atividades mais praticadas no dia-a-dia é a produção de
resumos, mesmo que isso não seja feito na forma de resumo. Por
exemplo: quando contamos a um amigo, a uma amiga a notícia lida
no jornal, estamos resumindo. Quando contamos a história ou o
Tratamento a partir do título conteúdo do livro que acabamos de ler, estamos resumindo. O resumo
é uma seleção de elementos textuais a partir de um certo interesse.
O título de um texto é sempre a primeira entrada cognitiva no É possível fazer vários resumos bem diferentes do mesmo texto. É
texto. A partir dele fazemos uma série de suposições iniciais que impressionante observar que, apesar de uma das atividades mais
depois podem ser modificadas ou confirmadas. É uma maneira de comuns na escola e na vida diária ser a produção de resumos, a
avançarmos hipóteses de conteúdos com base em nossas escola quase nunca treina as técnicas de resumo. É bom não esquecer
expectativas. Assim, não é indiferente a presença de um ou outro que para resumir um texto temos antes de compreender o texto. E
título no texto. Se olharmos com cuidado a imprensa diária, vamos os resumos variam consideravelmente de pessoa para pessoa. Isso
ver que os mesmos fatos recebem manchetes diferentes de um porque cada um pode julgar de maneira diversa o que é essencial.
jornal para o outro e, às vezes, elas se contradizem. Analisar Trabalhar a compreensão pela técnica do resumo é uma forma muito
títulos, sugerir títulos, justificar títulos diversos para textos é produtiva de perceber o funcionamento global dos textos.

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Reprodução do conteúdo do texto num outro gênero textual outras disciplinas, como Matemática, Ciências, História, etc. E assim
também se pode facilitar o trabalho dos alunos com os textos destas
Muitas vezes temos de comunicar a alguém, por escrito, algo que áreas, pois é um engano dos autores de manuais escolares pensar que só
ouvimos oralmente, ou então o contrário. Neste caso, estamos fazendo textos narrativos, poéticos ou descritivos sejam interessantes na escola.
retextualizações de uma modalidade de uso da língua para outra, ou Hoje já encontramos muitos textos em quadrinhos, mas não achamos
seja, estamos mudando o texto falado em escrito ou o contrário. Mas referências a textos de outras disciplinas nos manuais escolares. Este é
também ocorre que temos de transmitir na forma de uma carta o que um trabalho urgente de relações interdisciplinares e de diálogo entre os
lemos numa notícia de jornal. Ou então passar para um bilhete o que diversos professores, pois todos lidam, de uma maneira ou de outra,
ouvimos numa reunião. Ou contar em prosa o que lemos num poema. A com problemas de compreensão em suas aulas.
reprodução do conteúdo de um texto mudando da fala para a escrita ou
da escrita para a fala ou mudando um gênero textual em outro é uma
técnica muito boa para tratar integradamente a produção e a
Reprodução do texto oralmente
compreensão de texto. Aliás, quanto a isso, é bom ter presente que no
dia-a-dia sempre mostramos como entendemos um texto produzindo um
outro texto. A compreensão de texto é uma forma de produção de texto. Um texto escrito pode ser reproduzido oralmente. É um tipo de
retextualização que exige um conjunto de transformações. Como se
disse acima, esta é uma atividade bastante comum no dia-a-dia. Nós
costumamos contar oralmente o que lemos. Isto pode ser treinado de
Reprodução do texto na forma de diagrama maneira sistemática em sala de aula. A escola deve ocupar-se tanto da
compreensão na escrita como na fala. Não há dúvida de que ela se
A transformação ou representação de um texto no formato de um ocupa mais com a escrita, no que está certa, mas não pode, em hipótese
diagrama não é simples e em geral causa problemas, mas é importante alguma, ignorar a fala. Afinal de contas, todos nós já falamos quando
treinar este tipo de visão do texto porque ele permite estabelecer chegamos na escola e não vamos ali calar. Compreender expressando
raciocínios e relações esquemáticas e formais muito importantes. isso por escrito ou oralmente sempre traz problemas diferentes e vale a
Também pode ser um bom caminho para se aprender a ler diagramas. A pena discutir essa questão, pois na fala há recursos que não aparecem
produção e a leitura de diagramas não são uma coisa tão óbvia assim. na escrita, como, por exemplo, a entonação expressiva, o ritmo, a
Precisa ser treinada. Este tipo de trabalho pode ser feito com muito gestualidade e outros aspectos que envolvem um sistema semiótico
proveito se se utilizar textos de mais amplo e não apenas a linguagem verbal.

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Trabalhos de revisão da compreensão Ultimas palavras

Por fim, lembramos que há uma atividade raramente praticada com a Se os manuais escolares ainda não tomaram conhecimento das diversas
compreensão textual. Raquel Salete Fiad (Fiad,1991) tem trabalhado possibilidades que existem de tratar a compreensão de texto, isto não
com certa insistência e sucesso a reescritura de textos, ou seja, ela deve ser motivo para desânimo. Nem significa que devemos jogar fora
analisa e propõe sucessivas correções (geralmente autocorreções) de os manuais. Eles são úteis e podem continuar em uso, mas precisam de
textos ao longo de um tempo. Parece que essas mesmas atividades de uma complementação. Já é suficiente ter claro que a compreensão,
revisão poderiam ser realizadas com a compreensão textual. A leitura de enquanto "leitura da realidade", "leitura do mundo", é uma atividade
um texto e a correspondente compreensão registrada por escrito bastante complexa, em geral de cunho ideológico e nunca isenta de
poderiam ser objeto de revisão tempos depois, mediante uma nova equívocos. Também não é uma pura atividade de garimpagem de
leitura e verificação do que teria mudado na compreensão e por quê. É informações objetivas.
muito provável que numa segunda ou terceira leitura de um texto em
tempos diversos teremos outra visão e outra compreensão. Tratar este Será proveitoso conscientizar-se de que ninguém é "dono" exclusivo
aspecto em sala de aula é estar fazendo algo proveitoso, pois esta do(s) sentido(s) dos textos. O autor não põe no texto todos os sentidos;
situação é comum no dia-a-dia, já que costumamos rever nossas o leitor não é dono dos sentidos e os sentidos não estão todos no texto.
posições ao longo da vida. Vamos mudando de posições, opiniões, O sentido é algo que surge negociada e dialogicamente na relação entre
idéias e isto influencia nossa forma de compreender os textos. Por isso é o leitor, o autor e o texto sob as condições de recepção em que estamos
bom rever nossas compreensões. Todos nós já fizemos experiências situados, pois os textos têm seus sentidos determinados por muitas
interessantes com filmes vistos há muitos anos e que então nos condições, sobretudo as condições em que ele é produzido e lido. O
fascinaram, mas que hoje não nos fascinam tanto, ou então o contrário. autor pode ter querido dizer uma coisa e o leitor ter compreendido
De resto, é um fato inconteste que as compreensões de textos variam outra: o equívoco é possível.
historicamente de tempos em tempos em função de uma série de fatores.
Hoje não lemos os livros de Machado de Assis com a mesma Uma coisa é certa: não podemos ter a ilusão de que um texto tem uma
compreensão que se tinha na época em que foram editados. Também só leitura (compreensão) nem que a nossa leitura ou compreensão é a
entendemos os textos de filósofos, políticos, sociólogos, cientistas ou única ou a mais correta. O sentido se dá num processo muito complexo
jornalistas de maneira diversa do que esses textos foram entendidos na em que predominam as relações dialógicas, e os conteúdos textuais são
época de sua escritura. apenas uma parte dos dados. O dia em que a escola se conscientizar
disso estará efetivamente contribuindo de maneira substantiva para a
formação de cidadãos críticos. Estará

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dando um passo decisivo para a melhoria das condições sociais e KLEIMAN, Ângela.Leiíura, ensino e pesquisa. Campinas: Pontes,
individuais dos milhões de estudantes de hoje que amanhã serão os 1989.
adultos responsáveis nas mais diversas atividades do dia-a-dia.
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Campinas: Pontes, 1988.
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