Oficios Da Justica e Julgadores Reforma

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Teoria e História

do Direito
Revista

THD | Centro de Investigação da Universidade de Lisboa

Publicação Semestral
N.º 1
1/2016
Ofícios da Justiça e Julgadores:
Judicial offices and judges:
Reforma e carreiras nos tribunais superiores (séculos XVI-XVII)
Reform and careers in High Courts (16th-17th centuries)

Jorge Veiga Testos

Assistente Convidado da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa


jorgetestos@fdulisboa.pt

Resumo: A transição para o Estado Moderno é acompanhada por importantes alterações


institucionais do ponto de vista da organização judiciária. Através das carreiras de
quatro desembargadores (António da Gama e seu filho Luís da Gama Pereira, Miguel
de Cabedo e seu filho Jorge de Cabedo), acompanhamos os principais momentos
de reforma na tríade judicial superior portuguesa: Casa do Cível (Relação do Porto
depois de 1582), Casa da Suplicação e Desembargo do Paço.

Palavras-chave: Idade Moderna; organização judiciária; tribunais superiores; juízes

Abstract: The transition to the Modern State is accompanied by important institutional chan-
ges form the judicial organisation’s viewpoint. Following the careers of four high
court magistrates (António da Gama and his son Luís da Gama Pereira, Miguel de
Cabedo and his son Jorge de Cabedo) we observe the main moments of reform in
the portuguese high courts: Casa do Cível (Relação do Porto after 1582) Casa da
Suplicação and Desembargo do Paço.

Keywords: Early Modern Age; judicial organisation; high courts, judges

Sumário: I. Introdução. II. Quadro institucional. III. Formação académica e admissão à carreira.
IV. Casa da Suplicação. V. Desembargo do Paço. VI. Chancelarias. VII. Conclusão.
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I. Introdução corte e no conselho régio e produção de obras jurí-


dicas impressas4. Procurámos, então, reconstruir as
carreiras destes quatro juristas que, em termos glo-
A presente comunicação propõe um olhar sobre o sé- bais, se desenvolveram entre a segunda metade do sé-
culo XVI e início do século XVII, enquanto período- culo XVI e o primeiro quartel do século XVII5.
-chave da passagem para o Estado Moderno, do pon-
to de vista dos tribunais superiores. Concretamente,
centramo-nos nas carreiras dos seus julgadores, pro-
curando identificar os momentos essenciais de altera-
ção e reforma que abrem caminho para a evolução dos II. Quadro institucional
séculos seguintes.
Como alternativa a uma análise prosopográfica que
defina o perfil dos julgadores dos tribunais superiores Em 1550, numa informação enviada a Roma, o doutor
neste período1, focámo-nos em quatro carreiras in- João Monteiro, desembargador do paço, descreve do
dividuais2, enquadradas em dois núcleos familiares seguinte modo as justiças superiores do reino6:
(compostos por pai e filho) distintos mas contempo-
râneos no tempo e no espaço: por um lado, António “Elrey nosso senhor tem duas casas grandes de jus-
da Gama (1520-1595), autor do célebre e muito di- tiça em estes regnnos de Portugal aas quaaes vem
vulgado livro das Decisões do Reino (1578), e seu fi- per apelação e agravo todas as demandas dos dictos
lho Luís da Gama Pereira (c.1560-1622); por outro, regnnos de Portugal e Algarve e das ilhas e doutras
Miguel de Cabedo (1525‑1577), jurista e poeta no- partes do dominio e jurisdiçam de Sua Alteza: huu-
vilatino e seu filho Jorge de Cabedo (c.1549‑1604), ma se chama a casa da suplicação que he a princi-
compilador filipino e autor de uma igualmente famosa pal de mais neguocios e de mais desembarguadores
e difundida obra decisionista, as Decisões do Senado e officiaes em a qual há um regedor fidallgo nobre
do Reino de Portugal (1602-1604)3. que a rege e governa, esta anda as mais das vezes
As carreiras que escolhemos para retratar e acom- com Sua Alteza e se muda pera as cidades e vilas
panhar as principais alterações orgânicas experimen- pera onde Sua Alteza vay quando comodamente se
tadas pelos tribunais superiores são, por vários moti- pode fazer e quando não estaa em Lixboa ou em ou-
vos, invulgares. Conjugam, porém, características que tro lugar segundo a Sua Alteza parece que convem;
surgem, com maior habitualidade, isoladas: tradição a outra se nomea a casa do civel e estaa de asemto
familiar no universo jurídico, estudos na universidade na cidade de Lixboa. Ha em ela huum guovernador
nacional com eventual passagem por universidades que a guoverna, ao qual ao presemte he huum bispo
estrangeiras, carreiras preenchidas nos tribunais da letrado em direito: nestas duas casas especialmen-
te na casa da suplicação ha grande numero de de-
sembarguadores e descrivaães e outros officiaes de
1.
Q
 ue não estamos, ainda, em condições de realizar. justiça pera despacho das causas e negocios que a
2.
Sobre a escolha entre as opções biográfica ou prosopográ- elas vem e alem dos desembarguadores e officiaes
fica, v. Guenée, B. (1987), Entre l’Église et l’État. Quatre
vies de prélats français à la fin du Moyen Âge, Éditions
Gallimard, Paris, pp. 7-16. Sobre o estudo prosopográf-
ico dos juristas, v. Hespanha, A.M. (1992), ‘L’étude
4.
erfil que, conjugado, caracterizará igualmente os
P
prosopographique des juristesentre les “pratiques” et praxistas alemães do séc. XVII; cfr. Wieacker, F. (2010),
leurs “représentations”’ in Scholz, J.-M. (ed.), El terc- História do Direito Privado Moderno, Fundação Calouste
er poder: hacia una comprensión histórica de la justicia Gulbenkian, Lisboa, pp. 239-240.
contemporánea en España, Klostermann, Frankfurt am 5.
Utilizámos como fontes principais as fichas individuais
Main, pp. 93‑102. de alunos da Universidade de Coimbra, as nomeações
3.
Sobre a literatura decisionista e, em particular, sobre as para ofícios nas chancelarias régias e os registos paroqui-
obras de António da Gama e Jorge de Cabedo, v., por ais de baptismos e óbitos.
todos, Cabral, G. (2013), Os decisionistas portugueses 6.
A informação destinava-se a fundamentar um pedido

entre o direito comum e o direito pátrio, tese de dou- régio dirigido ao Papa, tendo em vista a obtenção das
torado na Faculdade de Direito da Universidade de São dispensas necessárias ao Cardeal D. Henrique para fazer
Paulo, São Paulo. visitações às justiças superiores do reino.

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Teoria e História do Direito | Revista 1

de justiça que ha nas ditas casas tem tambem Sua (dos juízos da Casa do Cível, da Correição da Corte, da
Alteza desembarguadores que se chamão do paço Ouvidoria do Crime) que ultrapassem a sua alçada12;
os quaes continuadamente andão com Sua Alteza (iii) finalmente, o Desembargo do Paço13, de natureza
com os quaaes despacha cousas de justiça e do go- híbrida entre tribunal e conselho, que “continuada-
verno de seus regnnos e senhorios”7. mente” anda com o soberano. Os desembargadores
do paço, reunidos em Mesa, formam um órgão de
Este é, em meados do século XVI, o quadro institu- despacho directo com o rei, com competências pró-
cional português no que respeita aos tribunais supe- prias e progressivamente aumentadas até se tornar
riores: (i) a Casa do Cível8, estabelecida fixamente a principal instituição da administração central, “o
em Lisboa desde há muito, funciona como tribunal de proprio, & verdadeyro conselho dos senhores Reys
recurso, em matéria cível e crime, da comarca da Es- deste Reyno”14. O Desembargo do Paço é competen-
tremadura, incluindo a cidade de Lisboa e seu termo, te, designadamente, em matérias política (aconse-
e com competência para o julgamento das apelações lhando o rei a sua solicitação), judicial (concedendo o
cíveis de todo o reino9 (salvo onde estiver a corte e perdão régio e a revista das sentenças) e governativa
cinco léguas em redor)10; (ii) a Casa da Suplicação11, (confirmando a eleição dos órgãos do poder local e in-
cada vez menos itinerante, acompanha quando pos- tervindo no provimento dos ofícios de justiça).
sível o rei, passando muito tempo em Lisboa; é com- A autonomia — progressiva desde finais do século
petente para o julgamento das apelações crimes de XV — do ofício dos desembargadores do paço, des-
todo o reino (excepto da comarca da Estremadura), tacados da Casa da Suplicação, constitui o principal
sendo também o tribunal de recurso, em matéria cí- marco na configuração dos poderes judiciais na Ida-
vel e crime, da corte e cinco léguas em redor; conhece de Moderna e consagra-se definitivamente no ano de
ainda dos feitos vindos por agravo de juízes superiores 1534. Com efeito, por via de quatro regimentos, todos
datados de 10 de Outubro de 1534, D. João III liberta do
ofício de chanceler-mor um conjunto vasto de com-
7.
Leal, J. Mendes (1884), Corpo Diplomático Portuguez,

tomo VI, Academia Real das Ciências, Lisboa, pp. 367- petências que reparte pelos desembargadores do paço
370. e pelos novos ofícios de chanceler e juiz da chancelaria
8.
Sobre a Casa do Cível, v. Barros, H. Gama (1885), História da Casa da Suplicação. Até então o chanceler-mor es-
da administração pública em Portugal nos séculos XII tava integrado na orgânica da Casa da Suplicação, que
a XV, tomo I, Imprensa Nacional, Lisboa, pp. 611-626; não dispunha de chancelaria própria. Agravando-se a
Caetano, M. (2000), História do Direito Português, Ver- tendência para este tribunal se fixar em Lisboa, dimi-
bo, Lisboa, pp. 484‑486. Em específico para o terceiro
nuindo a sua itinerância, obrigava ao “inconveniente
quartel do século XVI, v. Cruz, M. R. Azevedo (1992),
As regências na menoridade de D. Sebastião, I volume,
que hera cada vez que a casa [da Suplicação] se de
INCM, Lisboa, pp. 145-155. mim apartaua ficarem os selos em mão doutra pes-
9.
Com a extinção do juízo dos sobrejuízes da Casa do Cível soa para asellar as cousas que per mim pasauão que
determinada por D. João III em 8.7.1529, o despacho são de mayor sustançia”15.
das apelações cíveis passou a estar dividido entre a Casa
do Cível e a Casa da Suplicação, com o valor da alçada
da Casa do Cível fixado em 30$000 reais (ou 50$000
reais vindos das Ilhas). Esta ordenação foi revogada em
12.
OM, Livro I, tít. 4 (Dos Desembarguadores do Agravo da
23.9.1559, sendo determinado que as apelações cíveis Casa da Sopricaçam) e Livro III, tít. 77 (Dos agravos das
regressassem à competência da Casa do Cível, cabendo sentenças definitivas).
agravo para a Casa da Suplicação [Leis extravagantes de 13.
Sobre o Desembargo do Paço, v. Hespanha, A. M. (1982),
Duarte Nunes de Leão (1569), segunda parte, tít. I, leis III História das Instituições: época medieval e moderna,
e IV (=ff. 74 v.º a 76)]. Almedina Coimbra, pp. 357-366; Homem (2006), op.
10.
Ordenações Manuelinas (OM), Livro I, tít. 32 (Dos sobre- cit., pp. 159-162. Em específico para o terceiro quartel
juízes e do que a seu Officio pertence). do século XVI, v. Cruz, (1992), op. cit., pp. 103-128. Para
período posterior, v. Subtil, J. (2011), O Desembargo do
11.
Sobre a Casa da Suplicação, v. Barros (1885), op. cit., pp.
Paço (1750-1833), EDIUAL, Lisboa.
611-626; Caetano (2000), op. cit., pp. 482‑484; Homem,
A.P. Barbas (2006), O Espírito das Instituições, Almedi-
14.
Ribeiro, J. Pinto (1729), Lustre ao Dezembargo do Paço,
na, Coimbra, pp. 162-164. Em específico para o terceiro na oficina de José Antunes da Silva, Coimbra, p. 7.
quartel do século XVI, v. Cruz, (1992), op.cit., pp. 129- 15.
 egimento do chanceler-mor constante da compilação
R
145. manuscrita de Duarte Nunes de Leão de 1566 (ANTT,

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Assim, com a nova distribuição de competências, Integrado nesta reforma e ajustado à concepção da
o chanceler-mor fica liberto para acompanhar o rei, universidade ao serviço do monarca, D. João III de-
juntamente com os desembargadores do paço, que re- terminará, por carta de lei de 13 de Janeiro de 1539,
cebem as competências graciosas do ofício. É criado o o tempo de estudo obrigatório dos “letrados de que
novo ofício de chanceler da Casa da Suplicação16 — se- me eu ouver de servir assi de meus desembargado-
gundo na hierarquia do tribunal, após o regedor —, res- res como de corregedores ouvidores das comarcas e
ponsável pela validação jurídica da produção da Casa. juyzes de fora e assi outros quaesquer letrados que
As competências contenciosas que pertenciam ao em meus reynos e senhorios ouverem de ter algum
chanceler-mor passam para o novo ofício de juiz da offiçio de julgar, avogar ou procurar”19. Aos letra-
chancelaria da Casa da Suplicação17. dos que fossem nomeados para servir os ofícios de
Vejamos, então, como se articulam as carreiras dos desembargadores era exigido o estudo “em dereyto
julgadores ao nível dos tribunais superiores. çivil ou canonico ou em ambos os ditos dereitos doze
anos ao menos na universidade da çidade de Coym-
bra despois de serem gramaticos ou os que teverem
estudado oyto annos na dita universidade e despoys
me servirem quatro annos ao menos de juyzes de
III. F ormação académica e admissão fora ouvidores ou corregedores ou forem procura-
à carreira dores na casa da sopricaçam os ditos quatro anos ao
menos”20.
Mais do que exigir a formação universitária como
As cartas de nomeação de ofícios para os tribunais su- requisito compulsório para a admissão nos tribu-
periores constantes dos livros das chancelarias régias nais superiores, que já se verificava na prática desde
destacam, quase sempre, no seu formulário, as letras a segunda metade do século XV21, estava em causa
e o saber do agraciado, enquanto representação valo- a criação do monopólio da universidade coimbrã na
rativa do conhecimento que se adquire na universida- formação da burocracia letrada do reino e a definição,
de. D. João III levará a cabo uma importante reforma
da universidade portuguesa, de feição humanista, en- (1997b), ‘O Direito (Cânones e Leis)’ in História da Uni-
cerrando os Estudos de Lisboa e transferindo-os para versidade em Portugal, I volume, tomo II (1537-1771),
Coimbra no ano de 1537, aprovando novos estatutos Universidade de Coimbra / Fundação Calouste Gulben-
em 154418. kian, pp. 823-834.
19.
Figueiredo, J.A. (1790), Synopsis chronologica de subsid-
ios ainda os mais raros para a historia e estudo critico da
Feitos Findos, Casa da Suplicação, livro 72, fl. 61), adiante legislação portugueza: desde 1143 até 1603, tomo I, Aca-
designada por Leão I. demia Real das Ciências, Lisboa, pp. 383-384.
16.

 [P]era as partes serem com mais breuidade despacha- 20.
 lei não seria aplicável aos estudantes que até 1 de Ou-
A
das e por outras justas causas que me moverão apartei tubro de 1539 tivessem estudado noutras universidades
do officio de chanceler mor certas cousas pera pas- o número de anos determinado nem aos que já estives-
sarem pela chancelaria que ora nouamente ordeno que sem recebidos em Colégios. Os que até 1 de Outubro de
haia nessa dita casa da sopricação e criey de nouo hum 1539 estudassem fora deviam vir acabar seu tempo em
chanceler pera as passar e na dita casa Resedir” (Leão Coimbra e daí em diante não seria contado o tempo que
I, Regimento do chanceler da Casa da Suplicação, fl. 65). estudassem fora. Cfr. Figueiredo (1790), op. cit., tomo I,
17.

 [A]ntre as cousas que apartey do officio de chanceler pp. 383-384.
mor foy huma os feitos E causas de que o dito chanceler 21.
Se no início da segunda metade do século XV ainda en-
mor conhecia e ouue por bem que hum desembargador contramos desembargadores para os quais não conhece-
qual eu pera Isso ordenar conheça das ditas causas E mos graus académicos, em 1501 todos os julgadores da
sera Juiz dellas como fazia o dito chanceler mor” (Leão Casa da Suplicação eram licenciados ou doutores, com
I, Regimento do juiz da chancelaria da Casa da Supli- uma excepção (o bacharel João Cotrim, Corregedor da
cação, fl. 69). Corte do Cível); para a Casa do Cível existem três bacha-
18.
Para o ensino do Direito na universidade portuguesa, v. réis, sendo os restantes licenciados ou doutores. Cfr. os
Costa, M. J. Almeida (1997a), ‘O Direito (Cânones e Leis)’ róis de pagamentos destes tribunais relativos ao ano de
in História da Universidade em Portugal, I volume, tomo 1501 publicados em Duarte, L. M. (1999), Justiça e Cri-
I (1290-1536), Universidade de Coimbra / Fundação minalidade no Portugal Medievo (1459-1481), Fundação
Calouste Gulbenkian, pp. 270-283 e Costa, M. J. Almeida Calouste Gulbenkian, Lisboa, pp. 668-671.

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através da determinação do tempo de estudo, das vias penhode ofícios de justiça nos juízos de fora e cor-
de acesso ao serviço régio. regedorias25)26 — é a escolha para o preenchimento
Com efeito, configuram-se fundamentalmente de ofícios dos letrados que já serviam. Quer na Casa
duas vias possíveis para aceder à carreira nos tribu- do Cível quer na Casa da Suplicação existiam desem-
nais superiores: (i) o aprofundamento dos estudos bargadores extravagantes ou sobresselentes: aqueles
universitários ou (ii) a experiência decorrente do de- não têm ofício certo e são distribuídos pelo Regedor
sempenho de ofícios de justiça na administração pe- ou Governador da Casa de acordo com as necessida-
riférica (provedorias e corregedorias)22. Em qualquer des, enquanto aguardam por uma vaga nos ofícios de
dos casos não é de olvidar a importância de parentes número. A escolha para desembargador extravagante
ou patronos influentes, elemento coadjuvante cuja ou sem ofício permite um primeiro contacto com o
extensão é mais difícil de avaliar. tribunal e constitui uma etapa prévia para o percurso
Estes caminhos alternativos surgem bem eviden- honorário nos tribunais superiores.
tes num parecer do Bispo do Porto D. Rodrigo Pinhei- Passemos a acompanhar, a partir de agora, os per-
ro em carta dirigida ao Rei de 17 de Abril de 1561 (no cursos individuais dos quatro juristas já identificados.
período da regência de D. Catarina). Na opinião do Comecemos por António da Gama27, nascido em
prelado23, para ofícios nas Casas da Suplicação e do 1520 no Funchal, na Ilha da Madeira, e filho de um le-
Cível a escolha deveria recair sobre os letrados que já trado que aí serviu como provedor dos defuntos e au-
serviam nas Casas, por serem já conhecidos, obten- sentes28. Iniciando os seus estudos universitários aos
do-se deles facilmente referências, recordando o bis-
po que no seu tempo e mesmo antes “nunca se meteo 25.
“[E] o pior he que cada vez sabem menos porque com
homem de novo nas casas com lhe darem logo offi- diligenças e devasas e com andarem de lugar em lugar
cio porque primeiro se quiria saber para que era (…) nom veem livros nem podem estudar de maneira que
Tambem meu parecer he (…) que para desembarga- quando acabam de servir de Corregedores tem já pou-
dores das casas [da Suplicação e do Cível] e para po- cas ou nenhumas letras e se asi he como podem com
derem por boas tenções nos feitos Vossa Alteza deve Rezão ser tomados por desembargadores e para officios
e para darem a cada hum o seu e porem boas tenções
de tomar os homens que veem do Estudo com xij xb
nos feitos e cada vez mais cuido nisto me afirmo a com
anos de estudo contanto que tenhão as outras boas verdade o poder dizer a Vossa Alteza” [Cruz (1992), op.
partes dos bons costumes que se Requerem porque cit., vol II, p. 365].
estes taies sabem rrevolver os livros e trazem as le- 26.
 alorização que se manifestava, igualmente, nas Cortes
V
tras no biquo da língua e na memoria e porão muito de 1562, onde os prelados pediam que “os Desembar-
boas tenções nos feitos e comumente estes taies são gadores se tomem per suficiência, abilidade e virtudes,
homens honrados e de boas cartas que [se] o nom fo- e não per outros respeitos, e sejão de trinta anos ao
menos, e de bom nacimento, que estudassem em De-
rão nom poderão aturar tanto tempo o estudo. Com
reitos ao menos doze anos inteiros, não per Cursos, e
os que começarão por juizes de fora e depois por dous destes pello menos que lessem ou estudassem em
Corregedores pollas mais das vezes se comtentarão Collégio ou recolhidos. Que a estes taes que vem do Es-
com cinquo seis anos de estudo e em tam breve tem- tudo se dee o Desembargo e não a Juizes de fora nem
po nom podem aquirir nem saber muitas letras”24. Corregedores por andarem destrahidos das Letras,
nem se tomem Procuradores para Desembargadores”
Outro aspecto a realçar — a par da valorização do
[Ribeiro, J. Pedro (1836), Reflexões Históricas, Parte II,
percurso universitário (em detrimento do desem- Imprensa da Universidade, Coimbra, p. 101].
27.
V. António, N. (1672), Bibliotheca Hispana sive Hispano-
rum, vol. I, ex officina Nicolai Angeli Tinassii, Roma, p.
22.
Sobre as nomeações para os tribunais superiores, v. Cruz 95; Machado, D. Barbosa (1747), Bibliotheca Lusitana,
(1992), op. cit., pp. 155 e ss. Para o séc. XVII e XVIII, v. tomo I, oficina de Ignacio Rodrigues, Lisboa, pp. 286-
Camarinhas, N. (2010), Juízes e administração da Justiça 287; Ferreira, F. Leitão (1937), Alphabeto dos lentes da
no Antigo Regime, Portugal e o império colonial, séculos insigne Universidade de Coimbra desde 1537 em diante,
XVII e XVIII, Fundação Calouste Gulbenkian / Fundação Universidade de Coimbra, Coimbra, pp.77-78.
para a Ciência e Tecnologia, Lisboa, pp. 264 e ss.. 28.
 ntónio da Gama era filho do doutor Lourenço Vaz
A
23.
Que fora o Governador da Casa do Cível (1547-1552) a que se (Pereira) e de Branca Homem de Gouveia. O doutor Lou-
referia a informação acima citada de 1550, enviada a Roma. renço Vaz servia como provedor dos resíduos e cape-
24.
 NTT, Corpo Cronológico, parte I, maço 104, doc. 109,
A las da capitania do Funchal no ano de 1541 (cfr. ANTT,
transcrito em Cruz (1992), op. cit., II volume, pp. 364-365. Corpo Cronológico, Parte I, Maço 70, doc. 92) e faleceu

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17 anos, Gama irá presenciar a transferência da Uni- tos entre portugueses e franceses. Cabedo estudou
versidade de Lisboa para Coimbra. Sendo estudante dois anos no Colégio de Guiena em Bordéus, onde
em Leis, em Março de 1537 provava, através de teste- era Reitor André de Gouveia36. Em 1540 foi enviado
munhas, que nesse ano lectivo tinha ouvido o curso de para Toulouse para estudar ambos os Direitos, onde
Institutas no Estudo de Lisboa29. Em Dezembro desse permaneceu até 1542, quando D. Gonçalo Pinheiro
mesmo ano já se matriculava em Leis em Coimbra, decide regressar a Portugal na sequência da declara-
onde obteria o grau de bacharel em 154330. Mantendo- ção de guerra de Francisco I de França a Carlos V. Em
se na Universidade, levou por oposição a substituição Março de 1543 Miguel de Cabedo encontra-se já em
de uma cadeira de Código no ano de 154631. Coimbra para se matricular na Universidade. A esta-
Em 1549 encontrava-se em Bolonha e nesta pres- dia em Coimbra — que lhe permitiu ser discípulo do
tigiada Universidade se terá feito Licenciado e Doutor, célebre Martin de Azpilcueta, o Doctor Navarrus —
sendo aí Colegial do Colégio dos Espanhóis. Chamado durou apenas dois anos, uma vez que o tio, feito Bispo
de volta a Portugal por D. João III para o serviço do rei, de Tânger e nomeado embaixador ao rei de França, o
Gama ingressa na Casa da Suplicação em 1552, aos 32 chama novamente para junto de si em 1545. Cabedo
anos de idade, sem que se lhe conheça o desempenho estudará direito civil em Orleães e direito canónico
de ofício judicial prévio, sendo nomeado desembar- em Paris, vivendo algum tempo no Colégio de Santa
gador (extravagante) da Casa da Suplicação32. Bárbara. Em 1548, D. Gonçalo Pinheiro regressa defi-
A formação de Miguel de Cabedo33 também pas- nitivamente a Portugal com o sobrinho; nesse mesmo
sou por fora do reino. Nascido em 1525 em Setúbal34, ano D. Gonçalo Pinheiro é nomeado Desembargador
foi chamado para França aos 13 anos de idade por seu do Paço e, mais tarde, Bispo de Viseu (1553).
tio materno D. Gonçalo Pinheiro (1490-1567)35, en- Entre o regresso a Portugal e a entrada na Casa da
tão Bispo de Safim, que fora enviado por D. João III Suplicação, sabemos que Miguel de Cabedo se de-
a Baiona em missão diplomática, integrando o tribu- dicou às boas letras, fazendo publicar um opúsculo
nal aí criado por acordo entre D. João III e Francisco I pelo nascimento de D. Sebastião em 155437, e obte-
de França, destinado a dirimir os frequentes confli- ve o grau de Doutor em Leis em Coimbra em 155838.
No ano seguinte, aos 34 anos, sem que se lhe conhe-
ça igualmente experiência judiciária anterior, é no-
a 30.10.1545 na freguesia da Sé do Funchal (Arquivo Re- meado Desembargador (extravagante) da Casa da
gional da Madeira, Registos Paroquiais, Sé, Funchal, Liv- Suplicação39.
ro 1.º de óbitos, fl. 65). Sobre a família Gama Pereira, v.
Loureiro, G. Maia de (2001), ‘Os Gamas: subsídios para
o estudo duma família madeirense’ in Revista de Gene- 36.
 oi sempre acompanhado no seu percurso académico,
F
alogia & Heráldica, n.º 5/6, tomo I, Porto, pp. 269-282. em França e em Portugal, entre 1538 e 1548, pelo pri-
29.
A
 uctarium Chartularii Universitatis Portugalensis mo (e depois cunhado) Diogo Mendes de Vasconcelos
(1979), vol. III, INIC, Lisboa, doc. MCDXXXVI [=p. 390]. (1523-1599), igualmente chamado para junto de si pelo
tio materno D. Gonçalo Pinheiro. Sobre a juventude dos
30.
Índice de alunos da Universidade de Coimbra, Letra G,
sobrinhos de D. Gonçalo Pinheiro, v. Brandão, M. (1948),
António da Gama, disponível online em http://pesquisa.
A Inquisição e os professores do Colégio das Artes, tomo
auc.uc.pt/details?id=177026 [consultado em 15.11.2015].
I, Acta Universitatis Conimbricensis, Coimbra pp. 345
31.
 condição de docente universitário terá levado à sua
A e ss.. Concretamente, sobre Diogo Mendes de Vasconce-
entrada no desembargo régio, uma vez que o seu epitáfio los, v. Freire, J. G. (1963-1964), ‘Obra poética de Diogo
diz que serviu o rei durante 49 anos, o que remete para Mendes de Vasconcelos — I — Biografia’ in Humanitas,
o ano de 1546. 15-16, Coimbra, pp. 1-80.
32.
Por carta dada em Lisboa em 28.9.1552 (ANTT, Chance- 37.
Michael Cabedius in partum Ioannae Serenissimae Lu-
laria de D. João III, doações, ofícios e mercês, L.º 68, fl. sitaniae Principis, João Barreiro, Coimbra, 1554. Já se
120 v.º). evidenciara nas bonae litterae ao publicar em 1547 em
33.
V
 . ‘Vita Clarissimi Viri Michaelis Cabedii Senatoris Paris a tradução para latim da comédia grega Pluto, de
Regii’ in Resende, A. (1597), De Antiquitatibus Lusita- Aristófanes.
niae, Roma, pp. 392-402; Machado (1747), op. cit., tomo 38.
Índice de alunos da Universidade de Coimbra, Letra C,
III, pp. 467-469. Miguel de Cabedo, disponível online em http://pesquisa.
34.
F
 ilho de Jorge de Cabedo e D. Teresa Pinheiro. auc.uc.pt/details?id= 127793 [consultado em 15.11.2015].
35.
 obre D. Gonçalo Pinheiro, v. Machado (1747), op. cit.,
S 39.
Por carta dada em Lisboa a 14.4.1559 (ANTT, Chancelaria
tomo II, pp. 400-401. de D. João III, doações, ofícios e mercês, L.º 3, fl. 301).

114
Teoria e História do Direito | Revista 1

D. Sebastião introduzirá um requisito adicional na em 1581, aos 32 anos, sendo nomeador Desembarga-
entrada para os tribunais superiores, ao determinar, dor (extravagante) por Filipe I de Portugal46.
por provisão de 28 de Maio de 1568, que todos os le- Filipe I instituirá, no início do seu reinado, uma
trados que fossem tomados para o seu serviço no de- comissão para a reforma da Justiça47, tendo como ob-
sembargo entrassem e começassem a servir na Casa jetivo que “em meu tempo a justiça se administre a
do Cível40, que se torna, então, um degrau prévio todos meus súbditos, & vassallos, & aos destes Reg-
obrigatório para chegar à Casa da Suplicação. Reco- nos da Coroa de Portugal (que especialmente amo)
nheceremos essa etapa no percurso do próximo jul- com inteireza, liberdade, brevidade, & execução”48.
gador. Os trabalhos desta comissão traduziram-se na apro-
Jorge de Cabedo41, nascido em Setúbal por volta vação, a 27 de Julho de 1582, de um pacote legislativo
de 154942 (depois de seu pai Miguel de Cabedo ter composto pela Lei da Reformação da Justiça e pelos
regressado de França43), inscreve-se no Colégio das novos Regimentos da Relação da Casa do Porto, da
Artes de Coimbra em 1565, matriculando-se nos anos Casa da Suplicação e do Desembargo do Paço, que
seguintes em Cânones e em Leis, obtendo o grau de altera o panorama processual e orgânico das justiças
Bacharel em 1571 e de Licenciado e Doutor em Câno- superiores do reino.
nes em 157544, sendo nesse ano admitido por Colegial Antes da reforma filipina, os dois tribunais su-
do Colégio de S. Paulo. periores — Casa do Cível e Casa da Suplicação — re-
Dois anos depois ingressa nos tribunais superiores. sidiam em Lisboa49. No início de 1570, D. Sebastião
No final do ano de 1577, com 28 anos e tendo seu pai mandara despachar pelo reino duas alçadas50 “pera
falecido em Abril desse ano — a sua filiação é, aliás, re- se ministrar justiça aos naturaes e povo deles”.
cordada na carta de nomeação —, é nomeado Desem- A concentração em Lisboa dos tribunais superiores,
bargador (extravagante) da Casa do Cível45. Depois encontrando-se estes demasiado distantes para parte
de servir na Casa do Cível como Desembargador dos da população do reino, obrigava a muitas despesas e
agravos, Jorge de Cabedo entra na Casa da Suplicação delongas: “alguns que sam presos fogem das cadeas
e prisões em que estam primeiro que seus feitos ajam
fim e se faça nelles execuçam das penas em que sam
40.
Leis extravagantes de Duarte Nunes de Lião (1569), parte
I, tít. 5, lei XVII [=fl. 27].
41.
 . Albuquerque, M. (1985), ‘A Primeira História do Di-
V 46.
 or carta dada em Tomar a 27.4.1581 (ANTT, Chancelaria
P
reito português — O De Lusitanorum Legibus de Fran- de D. Sebastião e D. Henrique, doações, ofícios e mercês,
kenau (1703)’, in Revista da Faculdade de Direito da L.º 45, fl. 146).
Universidade de Lisboa, vol. 26, pp. 600-601; Machado 47.
 residida por D. António Pinheiro, Bispo de Leiria, e
P
(1747), op. cit., tomo II, pp. 794-795; Silva, I. F. (1860), constituída ainda pelo doutor Simão Gonçalves Preto,
Diccionario Bibliographico Portuguez, tomo quarto, Im- chanceler-mor do Reino e pelos juristas Paulo Afonso,
prensa Nacional, Lisboa, pp. 161-162; Fernández Conti, Pedro Barbosa e Lourenço Correia [cfr. Silva, F. Ribeiro
S. (1998), ‘Cabedo de Vasconcelos, Jorge’ in J. Martínez da (1990), ‘Tradição e inovação na administração da jus-
Millán e C. J. de Carlos Morales (dir.), Felipe II (1527- tiça em Portugal nos primeiros tempos da União Ibérica’,
1598). La configuración de la monarquia hispana, Sala- Revista de História, 10, Faculdade de Letras da Universi-
manca, p. 337. dade do Porto, Porto, p. 68].
42.
 arbosa Machado diz que começou a administrar os lu-
B 48.
 eformaçam da Ivstiça (1583), por António Ribeiro, im-
R
gares da República aos 28 anos. A sua primeira nomeação pressor régio, à custa de Luís Martel, livreiro do Rei, em
dá-se em 1577. Lisboa, fl. 3.
43.
 iguel de Cabedo casou com sua prima co-irmã D. Le-
M 49.
O fim da itinerância da Casa da Suplicação fora reclama-
onor Pinheiro de Vasconcelos, irmã de Diogo Mendes de do pelos prelados nas Cortes de 1562, pedindo que o tri-
Vasconcelos, que partilhara com Cabedo todo o percurso bunal não se mudasse de Lisboa “pela muita despesa e
académico. vexação que de sua mudança se segue aas partes, to-
44.
Índice de alunos da Universidade de Coimbra, Le- dos os Officiaes e os Desembargadores della e tambem
tra C, Jorge de Cabedo, disponível online em http:// he dano da fazenda de S.A.” [Ribeiro (1836), op. cit., p.
pesquisa.auc.uc.pt/details?id=127790 [consultado em 101].
15.11.2015]. 50.
 ma às comarcas entre o rio Tejo e a costa do Reino do
U
45.
 or carta dada em Lisboa a 12.12.1577 (ANTT, Chancelaria
P Algarve e outra do rio Tejo à raia do Reino da Galiza e
de D. Sebastião e D. Henrique, doações, ofícios e mercês, Castela, cada uma com seu presidente e cinco desembar-
L.º 38, fl. 176 v.º). gadores da Casa do Cível ou da Suplicação.

115
THD | Centro de Investigação da Universidade de Lisboa

condenados e que por seus delictos merecem e ou- Branco56) e das correições de Coimbra e Esgueira57,
tros morrem e gastam suas fazendas antes de serem havendo possibilidade de recurso, em matéria cível,
despachados”51. Apesar deste esforço, mantinha-se o para a Casa da Suplicação.
problema da distância e da excessiva centralização dos Com a criação do novo tribunal — e consequente
tribunais superiores, que não era novo, repetindo-se transferência dos desembargadores da extinta Casa do
as queixas em Cortes desde o reinado de D. Afonso V, Cível de Lisboa para o Porto (que não terá sido bem
com a sugestão de criação de novas relações52. acolhida por todos) —, motivado “pelo trabalho que
A reforma judiciária levada a cabo por Filipe I aco- na dita mudança recebem”, Filipe I, por alvará de 24
lhe finalmente a vontade manifestada, sobretudo, de Setembro de 1582, compromete-se, quando tiver
pelas populações das comarcas do norte do reino. O de tomar algum desembargador para a Casa da Supli-
Regimento da nova Relação da Casa do Porto53 extin- cação, a escolher em primeiro lugar entre os desem-
gue a Casa do Cível — por a Casa da Suplicação se fixar bargadores do Porto, “conforme as antiguidades,
definitivamente em Lisboa — e cria um novo tribunal serviços e merecimentos”58.
na cidade do Porto54, competente para conhecer to- Luís da Gama Pereira59, nascido por volta de
das as apelações e agravos, cíveis e crimes, vindas das 156060, em Lisboa, cursou Institutas em 1577 em
comarcas de Entre-Douro-e-Minho, Trás-os-Mon-
tes e Beiras55 (com excepção da correição de Castelo
as mais distantes, & alongadas da Cidade de Lisboa,
onde residem as Casas da Supplicaçam, & do Ciuel, &
51.
 eys e prouisoes que elRey dom Sebastiam nosso sen-
L a opressão que os moradores das ditas comarcas re-
hor fez depois que começou a governar (1570), por Fran- cebem em virem as ditas Casas com suas appellações,
cisco Correia, em Lisboa, fl. 88 e ss.. José Anastácio de & aggrauos, & muitas vezes por casos tam leues, & e
Figueiredo fez notar que estas alçadas “ou Tribunaes de tam pequenas contias, que importam menos, que a
e Relações Volantes são as ultimas, que entre nos se despesa que nisso fazem” [Regimento da Casa da Supli-
conhecem, e achão na nossa Historia Juridica” [Figue- caçam e da Relaçam do Porto. E o Perdão geeral, com
iredo, J. A. (1790), Synopsis Chronologica, tomo II, Aca- outras Leys & Prouisões (1583), por António Ribeiro, im-
demia Real das Ciências, Lisboa, p. 152]. pressor régio, à custa de Luís Martel, livreiro do Rei, em
Lisboa].
52.
 ueixas já manifestadas nas Cortes de 1473, sugerindo
Q
a criação de mais duas casas, uma em Évora e outra em
56.
“[Q]ue posto que seja da Comarca da Beira, podem vir a
Coimbra ou Porto; o mesmo pedido nas Cortes de 1481- Casa da Suplicação com menos trabalho, & despesa das
1482 (Évora-Viana do Alentejo); nas de Torres Novas partes” (Regimento da Relação da Casa do Porto, §2).
(1525) e nas de Évora (1535). Cfr. Figueiredo (1790), op. 57.
“[P]or ficarem mais perto da dita casa do Porto,& po-
cit., pp. 198-203. derem a ella yr com menos trabalho, & despesa: porem
53.
Sobre a Relação do Porto, v. Homem (2006), op. cit., pp. os agravos que sairem dante o conservador da Univer-
164-165. sidade de Coimbra virão a casa da Suplicação como ate
aqui vinhão” (Regimento da Relação da Casa do Porto, §3).
54.
ilipe I avisou a câmara do Porto da mudança em
F
21.10.1582 mas a primeira Relação apenas se fez na nova
58.
 ollecção Chronológica de várias leis, provisões e regi-
C
Casa da Relação do Porto a 4.1.1583. Entre o Verão de mentos delRei D. Sebastião (1819), Imprensa da Univer-
1582 e o início de 1583 os feitos já iniciados na Casa do sidade, Coimbra, pp. 107-108.
Cível deviam ser despachados na Casa da Suplicação (por 59.
 ilho do doutor António da Gama e de D. Branca Pais,
F
estarem ambas em Lisboa), excepto aqueles que em que filha do licenciado Mateus Esteves, desembargador da
já tivesse sido posta alguma tenção, os quais seriam le- Casa do Cível (1549) e da Casa da Suplicação (1551) e
vados à relação da Casa do Porto [alvará de 27.11.1582, desembargador dos feitos da fazenda (1560); sobre esta
Collecção Chronologica de várias leis, provisões e regi- poderosa família de juristas construída à volta do dou-
mentos delRei D. Sebastião (1819), Imprensa da Univer- tor Cristóvão Esteves da Espargosa, v. Olival, F. (2002),
sidade, Coimbra, pp. 114-117]. ‘Juristas e mercadores à conquista das honras: quatro
55.
 Regimento da Relação da Casa do Porto justifica a nova
O processos de nobilitação quinhentistas’ in Revista de
distribuição geográfica em matéria de relações: “(…) História Económica e Social, 4, 2.ª série, pp. 7-53.
considerando eu, como allem da obrigação que tenho 60.
 ncontram-se nos registos paroquiais da freguesia de
E
de fazer administrar justiça a meus subditos, & vas- Santiago, em Lisboa, os baptismos de outros filhos do
sallos, a tenho tambem de dar ordem como se lhe faça doutor António da Gama e D. Branca: Francisco (b.
com o menos trabalho de suas pessoas, & gasto de suas 24.11.1565; ANTT, Registos Paroquiais, Santiago, Lis-
fazendas que possa ser, & auendo respeito as comar- boa, L.º M1, fl. 20 v.º); Lourenço (b. 4.4.1567; ANTT,
cas de Tralos montes, entre Douro & Minho, & Beira Registos Paroquiais, Santiago, Lisboa, L.º M1, fl. 26);
(tirando a correição da villa de Castelo Branco), serem e Mateus (5.9.1575; ANTT, Registos Paroquiais, San-

116
Teoria e História do Direito | Revista 1

Coimbra e matriculou-se em Leis em 1578. Tomou o desembargadores que nela ham de servir”, serão fi-
grau de bacharel em 1583 e o de licenciado em 158561. xados a composição e número de ofícios65.
Em 1589, quatro anos após a licenciatura e sendo fi- A Casa da Suplicação dividia-se, então, em cinco
dalgo da Casa do Rei, Luís da Gama Pereira é nomea- núcleos essenciais: (i) o Juízo dos Agravos e Apelações
do Desembargador (extravagante) do novo tribunal, (integrado por sete desembargadores dos agravos
a Relação da Casa do Porto62. Teria 29 anos, sem ex- em 1561; dez previstos nas Ordenações Filipinas66),
periência conhecida como julgador e a sua relação fi- que exerce jurisdição de recurso sobre os outros nú-
lial com António da Gama, então desembargador do cleos e julgadores; (ii) o Juízo da Correição da Corte
paço, é expressamente referida na carta de nomeação. (composto por dois Corregedores do Crime da Corte
Um ano após ingressar na Relação do Porto, é provi- e dois Corregedores das causas cíveis da Corte); (iii)
do a desembargador dos agravos da mesma Relação63. o Juízo dos Feitos do Rei (com um Juiz dos Feitos do
Gama Pereira ingressará na Casa da Suplicação no fi- Rei e um procurador dos Feitos do Rei em 1561; de-
nal de 1591, aos 31 anos — depois de ter servindo ape- pois composto por dois Juízes dos Feitos da Coroa e
nas dois anos na Relação do Porto — , sendo nomeado um Procurador dos Feitos da Coroa, a que se somam
desembargador (extravagante) daquele tribunal64. dois Juízes dos Feitos da Fazenda e um procurador dos
Feitos da Fazenda, integrados no tribunal em 156867 e
confirmados nas Ordenações Filipinas); que despacha
e defende os feitos dos direitos reais, direitos da co-
roa e fazenda do rei; (iv) o Juízo da Ouvidoria do Cri-
IV. Casa da Suplicação me (quatro ouvidores das apelações dos feitos crimes
em 1561; a que se soma mais um em 1565; novamente
quatro nas Ordenações Filipinas68), que conhece em
Chegados à Suplicação com o ofício extravagante, os recurso de apelação dos delitos; (v) a Chancelaria (nú-
desembargadores serão, mais tarde ou mais cedo, no- cleo criado em 1534, com um chanceler e um juiz dos
meados para os ofícios do número. feitos da Chancelaria), que julga dos erros dos escri-
O número de ofícios da Casa da Suplicação aumen- vães, tabeliães e outros funcionários.
tará ao longo do século XVI. No período da regência Na hierarquia da Casa da Suplicação, depois da
de D. Catarina, por alvará de 15 de Março de 1561, passagem pelo núcleo dos extravagantes69, sem ofí-
pelos “inconvenientes que se seguiam por até ora cio certo, o primeiro degrau dos ofícios do número
nom aver na Casa da Suplicação numero certo dos está na Ouvidoria do Crime e o mais elevado no Juízo
dos Agravos. O desembargador dos agravos mais an-
tigo toma o lugar do chanceler quando o ofício está
tiago, Lisboa, L.º M1, fl. 37 v.º). Lourenço da Gama vago70.
Pereira, nascido em 1567, cursou Institutas em Coim- Em 1582 a Casa da Suplicação também recebe
bra em 1582, aos 15 anos [para o percurso universitário
novo regimento (publicado na Chancelaria a 26 de
de Lourenço da Gama Pereira v. Índice de alunos da
Universidade de Coimbra, Letra G, Lourenço da Gama
Pereira, disponível online em http://pesquisa.auc.
uc.pt/details?id=177095 (consultado em 15.11.2015)].
65.
 eis extravagantes de Duarte Nunes de Leão (1569), Parte
L
Admitimos que o irmão mais velho, Luís, matricula- I, tít, 5, Lei XIII [=f. 26 v.º].
do em 1577, o tivesse feito igualmente aos 15 anos (na- 66.
Ordenações Filipinas (OF), Livro I, título 5.
scendo em 1560). 67.
Leis extravagantes de Duarte Nunes de Leão (1569), Parte
61.
Índice de alunos da Universidade de Coimbra, Letra 5, tít, 1, Lei I [=f. 179].
G, Luís da Gama Pereira, disponível online em http:// 68.
OF, Livro I, título 5.
pesquisa.auc.uc.pt/details?id=177103 [consultado em 69.
 número de Desembargadores extravagantes era
O
15.11.2015].
de doze em 1561, aumentando para quinze em 1582,
62.
 arta dada em Lisboa a 23.10.1589 (ANTT, Chancelaria
C servindo um de promotor da justiça (oficial que for-
de Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 12, f. 464 v.º). ma a acusação contra os criminosos) e outro de juiz da
63.
 arta dada em Lisboa a 7.12.1590 (ANTT, Chancelaria de
C chancelaria [cfr. Lei da reformação da Justiça (1582), §
Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 23, fl. 34 v.º). Casa da Suplicação].
64.
Carta dada em Lisboa a 15.11.1591 (ANTT, Chancelaria de 70.
Lei da reformação da Justiça (1582), § Desembargadores
Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 23, fl. 121). das Casas.

117
THD | Centro de Investigação da Universidade de Lisboa

Outubro de 1582). Para melhor administração da nhecia vindos de todo o reino74. Miguel de Cabedo
justiça, o tribunal perde definitivamente o carácter será nomeado um mês depois para o novo ofício en-
itinerante, “pela muita opressao que por essa causa tão criado75. No ano de 1571 é um dos desembargado-
recebiam as partes que na dita casa tinham nego- res dos tribunais superiores escolhidos para integrar
cio e pela muita despesa que o Regedor, Desembar- a alçada enviada por D. Sebastião ao norte do reino.
gadores e mais oficiais faziam nas mudanças dela Em 1575, aos 50 anos, Miguel de Cabedo é nomeado
e inquietação que recebiam os quais pera melhor desembargador dos agravos76. Servirá o ofício apenas
fazerem seus oficios e cumprirem com suas obri- dois anos, uma vez que faleceu precocemente em Lis-
gações convem estarem quietos e dassento em um boa a 22 de Abril de 1577, aos 52 anos e com 18 anos de
lugar”. A Casa da Suplicação passa a ter competên- serviço nos tribunais superiores77.
cia para o julgamento, em matéria cível e crime, das Em 1583, dois anos depois de ser admitido na Casa
apelações e agravos vindas das Comarcas da Estre- da Suplicação, Jorge de Cabedo é nomeado desem-
madura, Entre Tejo e Guadiana, Algarve e Ilhas e de bargador dos agravos78. Filipe I fê-lo depois fidalgo da
certos juízos privilegiados. sua casa e em 1589, “pela boa conta que sempre de sy
Analisemos, então, os percursos na Casa da Supli- deu asym do dito oficio como em todas as mais cou-
cação dos letrados que estudámos. sas da justiça e de meu serviço” nomeia-o procura-
Em 1560, oito anos após entrar na Casa da Supli- dor dos feitos da Coroa na Casa da Suplicação, ofício
cação (e tendo publicado entretanto, em 1554, o seu vago pelo falecimento do doutor Heitor de Pina79, que
“Tratado sobre a prestação dos sacramentos aos acumularia com o desembargo dos agravos.
condenados ao último suplício, e sobre os testamen-
tos, anatomia e sepultura”71), António da Gama é
74.
 NTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, do-
A
nomeado ouvidor dos feitos crimes da Casa da Supli-
ações, ofícios e mercês, L.º 15, fl. 156 v.º.
cação, ofício que então se encontrava vago72.
75.
 or carta dada em Almeirim a 3.3.1565 (ANTT, Chancelar-
P
Em 1561, durante a regência de D. Catarina, pesando
ia de D. Sebastião e D. Henrique, doações, ofícios e mer-
os serviços prestados a D. João III, quer nos ofícios da cês, L.º 15, fl. 156 v.º).
Suplicação quer “em outras coisas de que foi encar- 76.
 or carta dada em Lisboa a 30.5.1575 (ANTT, Chancelaria
P
regado que deu de si toda boa conta”, Gama é acres- de D. Sebastião e D. Henrique, doações, ofícios e mercês,
centado a desembargador do agravo, ofício vago pelo L.º 34, fl. 117 v.º).
falecimento do doutor António Pais73. Menos de nove 77.
ANTT, Registos Paroquiais, Castelo, Lisboa, L.º M1, fl. 130.
anos após ingressar no tribunal e um ano depois de ser Deixou testamento, sendo testamenteiros sua mulher e
nomeado ouvidor dos feitos crimes, António da Gama seu cunhado Diogo Mendes de Vasconcelos. Foi sepultado
atinge o ofício de julgador mais prestigiado do tribunal. na Igreja de Santa Cruz (Lisboa) mas por disposição testa-
mentária seu corpo foi trasladado para a capela-mor da Ig-
Entretanto, em 1565, por alvará dado em Almei-
reja de Santa Maria da Graça de Setúbal, onde se encontra
rim a 5 de Fevereiro desse ano, é criado um novo ofí- no pavimento a lápide de mármore dos Cabedos, com a se-
cio de ouvidor dos feitos crimes, além dos quatro já guinte epígrafe e sepultura armoriada: “ESTA SEPULTURA
existentes, por haver informação que o número de É DE MIGUEL DE CABEDO E DE D. LEONOR / PINHEIRO
ouvidores não era suficiente para o despacho das ape- DE VASCONCELLOS, SUA MULHER, DA QUAL LHE / FEZ
MERCÊ EL-REI D. SEBASTIÃO, PARA ELES E TODOS OS
lações de feitos crimes que a Casa da Suplicação co-
/ SEUS DESCENDENTES E PARA ELA MANDOU TRASL-
DAR OS / OSSOS DE SEU PAI E MÃE, JORGE DE CABEDO
E TAREJA PINHEIRO / E DE SEUS IRMÃOS MANUEL DE
71.
T
 ractatus de Sacramentis praestandis ultimo supplicio CABEDO, DIOGO DE CABEDO, / ANTONIO DE CABEDO E
damnatis, de eorum testamentis, anatomia et sepultur- DE SUA IRMÃ D. LEONOR, MULHER QUE / FOI DE JOÃO
is (1554), João Blávio, Lisboa. Cfr. Anselmo, A. J. (1926), GOMES DE LEMOS, SR. DA TROFA E NO ANO DE 1701 SEU
Bibliografia das obras impressas em Portugal no século 4º NETO JORGE DE CABEDO DE VASCONCELOS / MAN-
XVI, Biblioteca Nacional, Lisboa, n.os 302 e 328. DOU FAZER À SUA CUSTA O PAVIMENTO DESTA CAPELA”.
72.
 arta dada em Lisboa a 1.4.1560 (ANTT, Chancelaria de D.
C 78.
 or carta dada em Lisboa a 11.2.1583 (ANTT, Chancelaria
P
Sebastião e D. Henrique, doações, ofícios e mercês, L.º 8, Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 5, fl. 69). Tomou
fl. 53 v.º). posse do ofício a 21.2.1583 (ANTT, Feitos Findos, Casa da
73.
 or carta dada em Lisboa a 15.7.1561 (ANTT, Chancelaria
P Suplicação, liv. 1, f. 104).
de D. Sebastião e D. Henrique, doações, ofícios e mercês, 79.
Por carta dada em Lisboa a 20.12.1589 (ANTT, Chancela-
L.º 5, fl. 270). ria de Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 16, fl. 324.

118
Teoria e História do Direito | Revista 1

Quanto a Luís da Gama Pereira, quatro anos após Vimos como António da Gama fora rapidamente
o ingresso na Casa da Suplicação e alguns meses após nomeado desembargador do agravo da Casa da Supli-
a morte do pai, em 1595, é nomeado desembargador cação em 1561. Dezassete anos mais tarde, em 1578,
dos agravos80, ocupando o lugar deixado vago pelo publicará o seu famoso livro das Decisões do Reino85,
doutor Luís Lopes de Carvalho81. Em 1604 é nomea- feito por mandado régio86 e que conheceu, pelo me-
do Corregedor do Crime da Corte, acumulando com o nos, 19 edições em vários centros impressores euro-
ofício dos agravos82. peus até meados do séc. XVIII87.
Partidário de Filipe I, Gama é nomeado para o seu
Conselho em Agosto de 1580, pelos serviços presta-
dos “e a como por elles e pelas partes que nelle con-
correm he razão que receba de mim acresentamento
V. Desembargo do Paço

Atingido o ofício dos agravos na Casa da Suplicação e


os suficientes anos de vida e serviço ao rei, os desem-
bargadores podem aspirar a integrar o Desembargo 85.
Decisiones supremi senatus inuictissimi Lusitaniae
do Paço. Os desembargadores do paço, sem número Regis per Antonium à Gama Regium senatorem olim
fixo até 1582, são magistrados elevados ao topo da cum doctissimis collegis decrete & nunc in luce[m] ed-
carreira. itae (1578), por Manuel João, em Lisboa.
Nas Cortes de 1562 os prelados pediam que hou- 86.
 o privilégio que é concedido por alvará de 7.3.1758 ao
N
vesse número certo e limitado de desembargadores doutor António da Gama para a impressão do livro, pelo
período de 15 anos, se diz que “Jmprimidor nem livrey-
do paço e que estes fossem tomados entre os desem-
ro algum nem outra pessoa de qualquer calljdade que
bargadores do agravo da Casa da Suplicação, “por que seja não possa jmprimir nem vender em todos meus
estes devem ser sempre os mais Letrados e califica- Reynos E senhorios os livros das decisões deste Reyno
dos e como se occupão somente em cousas de Letras, que o dito doutor per meu mandado tem feytos” (ANTT,
hiram sempre ao Desembargo do Paço os mais Le- Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, privilégios,
trados do Reino, como he rezão”83. L.º 13, 101). Por alvará de 9.6.1578, “avendo Respeito
aos serviços do doutor Antonio da guama do meu de-
A Lei da Reformação da Justiça de 1582 dá número
sembarguo E desembargador dos agravos em minha
certo aos Desembargadores do Paço, determinando que corte E casa da suplicação a per meu mandado fazer
não sirvam mais do que cinco. O ofício deve ser provido Jmprimir o liuro das decisões deste Rejno ey por bem
“a pessoas que por sua consciencia, letras, experien- E me apraz de lhe fazer merce de corenta mil reaes de
cia, idade e mais qualidades merecam ser providos tença em cada hum anno nas despesas da Relação da
dita casa da suplicação” (ANTT, Chancelaria de D. Se-
de oficio de tanta importancia e confiança”84.
bastião e D. Henrique, doações, ofícios e mercês, L.º 42,
Dos quatro letrados que estudámos, três chegaram 78).
a desembargadores do paço. 87.
 ezanove edições identificadas para a obra de Gama
D
entre 1578 e 1735: Lisboa (1578, 1603,1610), Barcelo-
na (1597), Frankfurt (1598 e 1599), Cremona (1598),
Tomou posse a 2.1.1590 (ANTT, Feitos Findos, Casa da
Valladolid (1599), Veneza (1600, 1610), Madrid (1621),
Suplicação, liv. 1, f. 113).
Hamburgo (1655) e Antuérpia (1622, 1650, 1652, 1683,
80.
 or carta dada em Lisboa a 3.11.1595 (ANTT, Chancelaria
P 1699, 1731 e 1735) [v. Scholz, J.‑M. (1977), ‘Portugal’
de Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 32, fl. 226). in Coing, H., Handbuch der Quellen und Literatur der
81.
 ue, por seu turno, fora nomeado a 23.6.1595 Chancel-
Q neueren europäischen Privatrechtsgeschichte, Band
er da Casa da Suplicação para o lugar de António da II, Neuere Zeit (1500-1800), das Zeitalter des Gemein-
Gama, falecido em 30 de Março (ANTT, Chancelaria de en Rechts, 2. Teilband: Gesetzgebung und Rechtspre-
Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 28, fl. 272). chung, München, C.H. Beck, p. 1335]. Sobre a im-
portância e pioneirismo da obra de António da Gama,
82.
 or carta dada em Lisboa a 5.7.1604 (Chancelaria de
P
v. Cabral, G. (2015), Case law in Portuguese decisiones
Filipe II, doações, ofícios e mercês, L.º 10, fl. 353).
in the Early Modern Age: Antonio da Gama’s Deci-
83.
Ribeiro (1836), op. cit., p 100. siones Supremi Senatus Lusitaniae, in forum historiae
84.
 omo vimos, o Desembargo do Paço recebeu também
C iuris, http://www.forhistiur.de/2015-06-machado-
novo regimento datado de 27.7.1582. cabral/?l=en.

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THD | Centro de Investigação da Universidade de Lisboa

honra e merce”88. Um mês depois, aos 60 anos, é no- As cartas que fossem expressamente contra as Orde-
meado desembargador do paço e petições89. nações ou direito não eram seladas: o chanceler pu-
Em 1593, aos 44 anos, Jorge de Cabedo é nomeado nha-lhes uma glosa e levava-as à Relação94. Se, pelo
desembargador do paço e petições, pelos seus “servi- contrário, o chanceler achasse que as cartas não ti-
ços e merecimentos” e pela “calidade deles que me nham qualquer dúvida, punha nelas o seu sinal costu-
servira sempre com muito cuydado E imteireza asy mado e mandava-as selar.
nos ditos cargos como em todas as demais coisas de António da Gama e Jorge de Cabedo, com as
que ey encarregado damdo de sy toda a boa comta carreiras mais longas, terminariam o seu curso hono-
que delle se esperava E pela muita comfiança que rário ao serviço dos tribunais superiores na chancela-
delle e de suas letras tenho E hasy ho fara ao diante ria da Casa da Suplicação95.
em tudo o mais de que encarregar”90. Na qualida- Em 1590, dez anos depois da sua nomeação como
de de desembargador do paço integrou o Conselho de Desembargador do paço e petições, com 70 anos de
Portugal em Madrid, regressando a Portugal em 1597. idade e tendo já sido feito fidalgo da Casa Real, An-
Em 1616, aos 56 anos, Luís da Gama Pereira é tónio da Gama é nomeado chanceler da Casa da Su-
nomeado desembargador do paço e petições, ofício plicação (que acumula com o ofício no Desembargo
vago pelo falecimento de Fernão de Aires de Almei- do Paço) pelos “muitos e continuados serviços que
da91. Gama Pereira faleceria a 31 de Agosto de 1622 por muitos anos me tem feitos e aos senhores Reis
em Lisboa, aos 62 anos (e 33 anos de serviço nos tri- meus predesesores”, quer no ofício de desembar-
bunais superiores), sendo sepultado no Mosteiro de gador do paço, quer “em outros de muita jmpor-
Santo Elói92. tancia Cuidado E intejreza E deu de sy toda boa
conta como dele se esperava E pela muyta con-
fiança que tenho de suas letras E da experyencia
E conhecimento que tem das cousas da justiça”96.
Era o culminar de uma longa carreira. A 30 de Março
VI. Chancelarias de 1595 faleceu em Lisboa, na freguesia de S. Tiago,
sendo sepultado no Convento de Santo Elói97. O seu
epitáfio rezava o seguinte: “Sepultura do Doutor
O lugar mais exclusivo na carreira de desembargador Antonio da Gama Pereira do Conselho delRey N.
é atingido nas chancelarias dos tribunais superiores. Senhor, seu Dezembargador do Paço, e Chanceller
Os ofícios de chanceler-mor do reino (que funciona da Casa da Supplicaçaõ nos quais Tribunaes ser-
junto do Desembargo do Paço e por tradição é dado vio 49. annos viveo 75. Faleceo em 30. de Março de
ao desembargador do paço mais antigo) e de chan- 1595.”98.
celer da Casa da Suplicação93 conferiam o mais eleva- Terminamos com a carreira de Jorge de Cabedo,
do prestígio. Sem funções contenciosas, o chanceler o mais renomado destes letrados. Em 1597, aos 48
garante que nada de contrário às leis escritas emana anos, é nomeado chanceler da Casa da Suplicação99.
do Desembargo do Paço ou da Casa da Suplicação. Em 1600 já é conselheiro do Rei.

88.
Por carta dada em Badajoz a 5.8.1580 (ANTT, Chancelaria
D. Sebastião e D. Henrique, privilégios, L.º 13, fl. 148). 94.
OF, Livro I, tít. 4, §1.
89.
Por carta dada em Badajoz a 5.9.1580 (ANTT, Chancelaria 95.
Embora vários autores apontem Jorge de Cabedo como
de D. Sebastião e D. Henrique, doações, ofícios e mercês, chanceler-mor do reino, não encontramos evidências de
L.º 43, fl. 388). tal nomeação (podendo ter servido o ofício a título mera-
90.
Carta dada em Lisboa a 14.8.1583 (ANTT, Chancelaria de mente interino).
Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 28, fl. 109). 96.
 or carta dada em Lisboa a 22.2.1590 (ANTT, Chancelaria
P
91.
Por carta dada em Lisboa a 7.6.1616 (ANTT, Chancelaria de Filipe I, doações, ofícios e mercês, L.º 17, fl. 375).
de Filipe II, doações, ofícios e mercês, L.º 34, fl. 162 v.º). 97.
 NTT, Registos paroquiais, Santiago, Lisboa, L.º M1,
A
92.
 NTT, Registos Paroquiais, Santiago, Lisboa, L.º M2, fl.
A fl.150 v.º.
113. 98.
Machado (1746), op. cit., p 286.
93.
 ue substitui o regedor da Casa da Suplicação nas suas
Q 99.
 omou posse a 27.11.1597 (ANTT, Feitos Findos, Casa da
T
ausências (OF, Livro I, tít.1, §48). Suplicação, liv. 1, f. 123).

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Teoria e História do Direito | Revista 1

Publica em 1602 o opúsculo Dos padroados VII. Conclusão


das igrejas da Real Coroa do Reino de Portugal100
e a primeiraparte das suas Decisões do Senado do
Reino de Portugal101 (a segunda parte é publicada em Qualificámos, antecipadamente, como invulgares as
1604102)103. carreiras dos julgadores que analisámos, característi-
O seu nome está igualmente ligado à reforma das ca que só pode ser medida na sua verdadeira extensão
Ordenações do Reino, tendo sido um dos seus com- por via da comparação prosopográfica do grupo pro-
piladores. Aprovadas por lei de 5 de Junho de 1595 e fissional em que se enquadram.
finalmente impressas em 1603, Cabedo fez ainda pu- Destacaríamos, em primeiro lugar, o ingresso na
blicar nesse mesmo ano uma errata de erros que en- magistratura judicial superior sem que tenhamos co-
controu na impressão da nova recompilação, porque nhecimento de exercício prévio de funções judiciais.
“desejo que não aja erro nenhum (se possível for) em Como vimos, o exercício de funções nos juízos de fora
obra, na qual muitos anos por mandado del Rey, que e nas provedorias ou comarcas, embora criticado por
Deos tem, ajudei a trabalhar”104. alguns, constituiria uma via frequente, senão mesmo
Jorge de Cabedo faleceu a 4 de Março de 1604 em maioritária106, no acesso aos ofícios régios em matéria
Lisboa, sendo sepultado na Igreja de Santiago105. Teria de justiça.
55 anos e 27 anos de serviço nos tribunais superiores. Este início temporão de carreira pode, em parte,
ser explicado pelo contexto familiar, ainda que sem
menosprezar os méritos próprios que os seus per-
cursos revelam de forma inequívoca: António da
Gama, que inicia o seu percurso aos 32 anos, é filho
de um jurista; Miguel de Cabedo, ingressando aos
100.
D
 e patronatibus ecclesiarum regiae coronae Regni Lu- 34 anos nos tribunais superiores, é sobrinho e pro-
sitaniae : Liber unus autore Doctore Georgio de Cabedo tegido de um desembargador do paço. Jorge de Ca-
regio consiliario et Palatij Senatore Ad Philippum III bedo ingressa na Casa do Cível aos 28 anos, apenas
Hispanae Regem et Lusitaniae II (1602), na oficina de uns meses depois da morte do pai (o que não deixa de
Jorge Rodrigues, em Lisboa.
indiciar um favor prestado à família). Luís da Gama
101.
P
 rima pars Decisionum Senatus Regni Lusitaniae col-
Pereira inicia funções na Relação do Porto aos 29
lectae per Doctorem Georgium de Cabedo, Regium
anos, quando o seu pai ocupa um lugar no Desem-
Consiliarium Palatij Senatorem et supremi senatus su-
pplicationis Cancellarium; ad Philippum III. Hispaniae bargo do Paço.
Regem, et Lusitaniae II (1602), na oficina de Jorge Rodri- Outra marca da invulgaridade destas carreiras
gues, em Lisboa. manifesta-se através dos degraus alcançados: tirando
102.
 ecunda pars Decisionum Senatus Regni Lusitaniae,
S Miguel de Cabedo, com uma carreira mais curta de
in qua de deonationibus regijs circa iurisdictionalia 18 anos (em 52 de vida) em que chegou a desembar-
et iura regalia tractatur collectae per Doctorem Geor-
gador dos agravos, os demais tiveram assento no mais
gium de Cabedo, Regium Consiliariumet Senatus Pa-
alto tribunal do reino, o Desembargo do Paço, fruto de
latij Senatorem; ad Philippum III. Hispaniae Regem, et
Lusitaniae II (1604), na oficina de Pedro Crasbeeck, em carreiras longas. Com efeito, Jorge de Cabedo serviu
Lisboa. 27 anos (em 55 de vida), Luís da Gama Pereira serviu
103.
 nze edições identificadas para a obra de Cabedo en-
O 33 anos (em 62 de vida) e António da Gama serviu 49
tre 1602 e 1734: Lisboa (1602-1604); Offenbach am Main, anos (em 75 de vida).
1610; Antuérpia, 1619, 1620, 1635, 1684, 1699, 1719 e Todavia, o traço mais indelével desta invulgari-
1734; Frankfurt, 1646 [Scholz (1977), op. cit., p. 1336].
dade apresenta-se na obra jurídica que nos legaram.
104.
C
 abedo, J. (1603), Errata da nova recopilaçam das leis Num panorama relativamente árido a nível nacional,
e ordenações deste Reyno de Portugal com algumas
António da Gama e Jorge de Cabedo consagra-
advertencias necessarias e substanciaes, por Pedro
Crasbeeck, Lisboa. Pela sua raridade, José Anastácio de
ram-se como autores incontornáveis, citados amiúde
Figueiredo republicou o opúsculo [Figueiredo (1790), op.
cit., p. 296].
105.
ANTT, Registos paroquiais, Santiago, Lisboa, L.º M2, fl. 106.
Assim nos parece pela análise dos primeiros exames de
97 v.º. Não restam dúvidas acerca da data da morte de leitura de bacharéis no Desembargo do Paço, a partir de
Cabedo, que vários autores atribuíram ao ano de 1602. 1541 (ANTT, Manuscritos da Livraria, L.º 870).

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THD | Centro de Investigação da Universidade de Lisboa

nos séculos seguintes. As obras decisionistas de um


Gama e de um Cabedo foram livros obrigatórios na
biblioteca dos juristas do Antigo Regime107. Antó-
nio da Gama, pela sua formação em Bolonha e con-
sequente proximidade com a literatura jurídica eu-
ropeia, será o fundador da literatura decisionista
em Portugal, encomendada pelo próprio rei. Tendo
deixado obras inacabadas, parece-nos estranho que
seu filho Luís da Gama Pereira não tenha deixado
marca na produção escrita. Jorge de Cabedo, criado
no ambiente cultural humanista de seu pai e família,
deixa igualmente um legado jurídico valioso. O seu
traço mais marcante será, porém, o papel como um
dos compiladores das novas Ordenações do Reino,
que Filipe I lhe confiou, obra que perdurará até ao séc.
XIX108.

107.
 . Camarinhas, N. (2008), ‘Bibliotecas de magistrados
V
— Portugal, século XVIII’, comunicação apresentada no
XXVIII Encontro da Associação Portuguesa de História
Económica e Social. Sobre a influência destes autores no
séc. XIX, v. Hespanha, A. M. (2010), ‘Razões de decidir
na doutrina portuguesa e brasileira do século XIX. Um
ensaio de análise de conteúdo’ in Quaderni fiorentini per
la storia del pensiero giuridico moderno, 39, pp. 109-151.
108.
 , no caso brasileiro, até ao início do século XX, com a
E
publicação do Código Civil brasileiro de 1916.

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