Patricia Potter - Familia O - Neill II - SAMARA
Patricia Potter - Familia O - Neill II - SAMARA
Patricia Potter - Familia O - Neill II - SAMARA
Patricia Potter
CAPÍTULO 1
O jantar foi alegre, com a mesa rodeada pela família O’Neill completa. Bren ocupava o
lugar ao lado de Marion, que passava algumas semanas em casa antes de começar a trabalhar
como médico em Charleston. Jere, que vivia em Chatham Oaks, viera para a reunião
acompanhado da esposa, Judith. Conn, sempre despreocupado e brincalhão, sentara-se perto de
Samara, não perdendo nenhuma oportunidade de provocá-la. Em uma das pontas da mesa, o pai
presidia a refeição, enquanto a mãe, na outra ponta, solicitamente verificava se todos se achavam
bem servidos e à vontade.
Samara, como geralmente fazia quando via os irmãos e o pai reunidos, comparava-os aos
homens que lhe faziam a corte. E os pobres pretendentes invariavelmente saíam perdendo.
Nenhum possuía as qualidades dos O’Neill e ela começava a imaginar que jamais encontraria um
rapaz que lhe conquistasse o coração. Onde acharia a sabedoria do pai, a força e a alegria de
Bren, a prudência de Jere, o bom humor de Conn, os modos gentis e a generosidade de Marion?
Além disso, testemunhando o relacionamento maravilhoso do pai e da mãe, sabia que
nunca aceitaria uma ligação menos intensa e apaixonada. O que acontecia entre os pais era raro.
Nenhum dos casais conhecidos portava-se como eles. Viviam trocando olhares cheios de amor,
beijavam-se a todo momento, riam juntos e pareciam captar os sentimentos mais íntimos um do
outro.
Samara achava a mãe lindíssima e muitas vezes desejara ter herdado os olhos azuis e o
cabelo brilhante e encaracolado. Não gostava da cor dos próprios olhos, uma tonalidade
acinzentada, sem se dar conta de que refletiam maravilhosamente a luz do dia e o esplendor do
céu. Invejava os olhos de Bren, azuis como lagos de montanha, em contraste com os cabelos
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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loiros que cintilavam ao sol. Embora Samara também tivesse cabelos negros como os da mãe,
achava-os sem vida por mostrarem-se apenas ondulados ao derramarem-se pelas costas.
_Samara. Em que está pensando?
Os olhos cinzentos ergueram-se para Bren, do outro lado da mesa.
_Em nada.
_Duvido. Quantos apaixonados tentam conquistar seu coração? Já encontrou o eleito? -
perguntou o irmão em tom de brincadeira.
Ela corou, como sempre acontecia quando alguém mencionava seus pretendentes. Todos
inadequados. Muito jovens, muito velhos, altos demais e magros, ou baixos e gorduchos. E todos
maçantes.
_Samara não tem pressa. - salvou-a a mãe. - Tem só dezoito anos.
_E já deixou metade dos jovens da região com o coraçao partido. - continuou Brendan. -
Penso que eu deveria levá-la a Charleston para conquistar mais alguns.
_Charleston? - gritou Samara cheia de excitação.
_Mamãe disse que você deseja visitar Melanie e eu não poderia querer um amuleto
melhor do que sua despedida no cais.
Os olhos de Samara reluziram.
_Posso ir mamãe? Por favor, diga que sim!
_Não sei se devemos deixá-la solta em Charleston - aparteou o pai com um brilho no
olhar que traía seu desejo de provocá-la.
Ela saltou da cadeira e correu a beijar o pai. Depois, como um corisco, voou para a outra
ponta da mesa, abraçando e beijando a mãe.
_E nós, não ganhamos beijos? - reclamou Marion, fazendo a irmã beijar um por um.
Os irmãos ou davam-lhe palmadinhas afetuosas, ou faziam recomendações cheias de
carinho. O amor que sentiu por todos naquele momento fez os olhos cinzentos encherem-se de
lágrimas.
Não conseguiu comer mais nada, nem mesmo a rica torta de amêndoas que era sua
sobremesa favorita. Ia para Charleston com Bren! Finalmente participaria de uma aventura!
Foi em algum instante, naquela noite, surgindo de um escaninho recôndito de sua mente,
que a idéia atrevida surgiu. E por mais que Samara tentasse fazê-la submergir novamente, era o
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mesmo que tentar fazer uma rolha afundarem água turbulenta. O pensamento recusava-se a ser
ignorado.
Não podia pôr tal loucura em prática. Mas a mãe conseguira, no passado. Fugira do pai
cruel e repressor, juntara-se ao exército de Francis Marion e encontrara o homem que passara a
amar com paixão.
Seus pais, porém, não eram cruéis. Eram pessoas maravilhosas que não mereciam sofrer a
ingratidão da filha querida. Não seria ingratidão e eles não teriam motivo para preocupar-se, pois
ela estaria na companhia de Bren, que a protegeria de todos os perigos. Acabariam por compreen-
der sua atitude porque eles também, na juventude, haviam tido uma vida repleta de aventuras.
Seria fácil pôr em prática a idéia audaciosa. Bastava esconder-se no navio um pouco antes
da partida. Quem a encontraria no porão, no momento em que todos estivessem ocupados em
colocar o barco em movimento?
Samara suspirou, consciente de que já perdera a batalha contra suas tendências de rebeldia
e audácia. O pai sempre dizia que uma idéia plantada em sua cabeça florescia rapidamente,
alimentada por sua conhecida teimosia. E tinha razão. Depois que um pensamento germinava em
sua mente, crescia com a força de uma trepadeira selvagem.
Estava decidido. Ia para a França com Bren!
Enquanto Samara acrescentava detalhes ao plano, os pais conversavam sobre ela no
quarto.
_Ela precisa conviver com outra moça - disse Samantha O’Neill. - Aqui em casa só vive
rodeada de homens.
Connor sorriu e brincou com um dos caracóis do cabelo sedoso da esposa.
_Você é mulher, meu amor.
Ela arqueou as sobrancelhas, olhando para o marido com malícia.
_Receio não ser muito desejável como conselheira para uma jovem.
Ele riu. Nunca conseguira fazer a mulher desistir de usar calça quando montava para
percorrer a fazenda a galope, ou de desempenhar tarefas ditas masculinas quando fosse
necessário. E Samantha muitas vezes achava-se indispensável junto aos homens. Por exemplo,
quando uma égua estava em trabalho de parto ou um outro animal qualquer adoecia.
E ele a amava exatamente como ela era. Imprevisível e indomável. Puxou-a para si,
deleitando-se com o contato do corpo macio. Nunca, por mais que os anos passassem, deixaria de
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encantar-se com ela, com sua beleza que era uma chama que a iluminava de dentro para fora.
Tinha esperança de que seus filhos também encontrassem um amor tão intenso e completo em
suas vidas.
Samantha tinha o poder de fazê-lo esquecer as preocupações e era o que tentava, enquanto
o acariciava, excitando-o com a mesma força maravilhosa de trinta e dois anos atrás.
_Não fique preocupado com Samara, querido. Ela precisa sair um pouco de junto de nós e
Melanie é uma doçura.
_Sabe o que me preocupa? Nossa filha dispensa pretendentes com facilidade espantosa. E
eu queria que ela encontrasse alguém para amar. Ninguém é feliz, sozinho.
_Samara compara os apaixonados a você e aos irmãos. E nenhum resiste à comparação.
Mas não posso culpá-la. Vocês são excepcionais. Principalmente você - murmurou ela,
aconchegando-se mais contra o peito do marido.
_Hum... - gemeu ele, já sentindo que a preocupação se evaporava.
_Charleston fará bem a ela. Talvez encontre um jovem por lá que seja capaz de conquistá-
la.
_Espero. Agora, esqueçamos Samara, meu amor.
_Sim... - Foi tudo o que ela pôde sussurrar antes de perder-se no envelope do beijo que os
uniu.
Depois de arrumar a bagagem com o máximo de cuidado, Samara desceu para o desjejum.
Foi a primeira a chegar à sala de jantar, onde o aparador já exibia uma quantidade fantástica de
alimentos apetitosos. Bacon, presunto, ovos, pão quente e vários tipos de geléias e biscoitos.
Serviu-se generosamente, imaginando quando faria sua próxima refeição. Bem cedo, antes que a
cozinha ficasse movimentada, descera do quarto e pegara dois pães redondos, queijo e uma
garrafa de vinho. Escondera as provisões no cestinho de costura, prevenindo-se para uma
eventualidade qualquer. Afinal, não sabia quanto tempo ficaria escondida depois de o navio
zarpar.
Quando os outros membros da família desceram, saudou-os com um sorriso radiante,
ignorando os olhares espantados que eles lançaram sobre o prato exageradamente farto que
preparara. A mãe abraçou-a, dando-lhe um beijo.
_Sei que vai ficar fora apenas uma semana, Samara, mas vou morrer de saudade.
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Ela sentiu uma ponta de remorso, mas sua decisão já fora tomada e a mãe, mais que
qualquer outra pessoa, a compreenderia, depois de passado o choque inicial. O pai, porém,
encararia sua aventura como uma traição. Depois da esposa, a criatura a quem ele mais amava era
Samara. Seu amor imenso transparecia nos mínimos gestos, até nas tentativas de discipliná-la.
Sarnam aproximou-se dele e beijou-o.
_Eu te amo, papai.
_E você é meu segundo amor, filhinha. Comporte-se em Charleston, ouviu bem?
Depois da refeição, Brendan anunciou que deviam partir. Samara levou o máximo que
pôde da própria bagagem para fora, deixando o irmão carregar a mala grande, com os vestidos.
Não queria que os outros notassem quanta coisa estava levando. Na cesta de costura iam o
bordado para a madrinha, as provisões que juntara e um bilhete que escrevera para os país. Numa
caixa à parte, fácil de ser identificada no meio dos pacotes, levava um vestido separado dos
outros.
O dia estava lindo e o sol já começava a aquecer a terra perfumada quando Bren, depois
de amarrar o cavalo atrás da carruagem, sentou-se ao lado da irmã, na parte fechada. César, um
jovem escravo, ia na boléia dirigindo os cavalos. Bren resolvera levá-lo para que acompanhasse
Samara à casa dos Demerest depois de deixá-lo no navio. Pretendia partir ao crepúsculo, quando
seria mais fácil desaparecer no mar sem ser notado. Preocupava-se com o que o aguardava e
pouca atenção prestava ao comportamento da irmã. Todavia notou o silêncio em que ela se
mantinha quando pararam para almoçar nas margens do rio Pee Dee. Olhou-a pensativamente.
_O que está tramando, irmãzinha?
Ela baixou os olhos, disfarçando o embaraço.
_Nada. Só estava pensando como seria bom ir com você.
_Logo ficaria aborrecida. A vida num navio é bastante monótona, a não ser para quem
precisa içar as velas ou esfregar o chão do convés. Você não gostaria dessas tarefas.
_Por que não experimenta me contratar?
_Talvez algum dia, depois de a guerra acabar, eu a leve comigo para a Europa - prometeu
com sinceridade.
CAPÍTULO 2
Brendan descansava pela primeira vez desde o início da viagem. Não se atrevera a deixar
o leme durante os dois primeiros dias no mar. O céu nublado e o abençoado nevoeiro esconderam
o Samara na passagem pelo bloqueio britânico, mas ainda havia o perigo do encontro com algum
navio militar inglês ou uma escuna particular, dedicada à pirataria. Depois, quando chegassem às
águas francesas, teriam de enfrentar os barcos ingleses que patrulhavam a costa. Porém o
primeiro obstáculo fora vencido e Bren interpretou o fato como sendo um bom augúrio para
aquela viagem.
Ajeitou a cabeça no travesseiro, esperando poder dormir por algumas horas. Fechou os
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olhos e sorriu, embalado pelo suave balanço do barco, que cortava as ondas rapidamente. Amava
o navio. O Samara representava a culminância de tudo o que ele planejara nos últimos anos. Era
o primeiro de uma linha de navios mercantes rápidos e competentes.
Desde menino alimentara estranha paixão pelo mar, perdendo horas no cais, quando a
família ia para Charleston, ouvindo histórias dos marinheiros. O pai logo percebera que Glen
Woods e Chatham Oaks, as duas fazendas da família, não atraíam o filho mais velho e fora o
primeiro a incentivá-lo a seguir os desejos de sua alma inquieta e aventureira. Bren assumira a
direção da linha marítima dos O’Neill, dedicada apenas ao transporte do índigo produzido em
suas terras, e transformara-a numa frota respeitável.
Já não capitaneava as embarcações com freqüência, dedicando-se ao desenho e à
construção de novos barcos, à negociação de contratos, dirigindo a formação de tripulações
eficientes e supervisionando todo o negócio de transporte. Porém, com o aperto do cerco
britânico ao redor das águas americanas, tornara-se relutante em mandar o barco que era sua
paixão naquela viagem comandada por uma tripulação ainda inexperiente. E principalmente
sentia-se ávido por experimentar a excitação de navegar novamente depois de algum tempo em
terra. E os ingleses repressores eram um desafio que ele não queria ignorar.
Aos poucos os pensamentos perderam a clareza e ele adormeceu. Subitamente, foi
despertado por violentas batidas na porta da cabine. Saiu da cama, já completamente alerta e
abriu a porta. Deparou com Scotty, um marinheiro, divisando um vulto nas sombras atrás do
homem.
_Desculpe, senhor, mas parece que temos um passageiro clandestino.
O vulto deu alguns passos a frente e Bren reconheceu Samara, de cabeça baixa e
vestido imundo. Olhou-a com espanto indizível, franzindo a testa numa expressão de desagrado.
_Onde ela estava? - finalmente perguntou.
_No porão, senhor. Ficou escondida lá por um dia e meio. Deve ter ficado assustada,
porque começou a gritar quando eu ia passando.
Bren não tirava os olhos da irmã, incapaz de controlar a fúria que crescia dentro dele.
Aquela doida não teria noção do perigo?
_Obrigado, Scotty. Pode voltar às suas tarefas. Samara, entre aqui.
Ela fitou-o nos olhos e não pôde compreender a raiva que via neles. Entrou devagarinho,
já não segura de que o irmão admiraria sua coragem. Nunca o vira com raiva antes. Na verdade,
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julgara-o incapaz de ficar furioso, principalmente com ela.
_Que diabo de atitude estúpida foi essa, Samara?
_Eu queria ir para a França com você.
_Ah, é? E papai e mamãe? Parou para pensar como eles vão sofrer?
_Escrevi a eles. Ficarão tranqüilos, sabendo que você cuidará de mim.
_E os ingleses? Poderei protegê-la contra eles, no caso de um ataque?
_Você é melhor que qualquer inglês, meu irmão. Nenhum deles jamais o apanhará.
Ela disse as palavras com tal confiança que ele teve dificuldade em sustentar o ar de
censura. Sacudiu a cabeça, desorientado.
_A verdade é que estaremos numa encrenca muito séria se um navio britânico nos
descobrir. O Samara é um navio mercante. Não temos canhões para fazer frente a vasos de guer-
ra. Dependemos da rapidez com que navegamos e... da sorte.
_Não tenho medo - teimou ela. - Estou com você.
Ele examinou-a dos pés à cabeça, observando o rostinho cansado e o vestido preto de pó.
_Desde quando vem planejando isto, Samara?
_Tive a idéia na noite anterior à nossa partida de Glen Woods.
_E eu tolamente colaborei com seu plano prontificando-me a levá-la para Charleston.
Os olhos cinzentos brilharam, denunciando que ele acertara.
_Ah, irmãzinha, receio tê-la mimado demais. Todos nós a estragamos de tanto amor. Se
tivesse levado umas palmadas de vez em quando, não seria tão atrevida.
_Não fique zangado comigo, Bren. Eu queria ficar junto de você.
_Seria maravilhoso viajar com você, se não fosse pelos perigos. Mas seria louco se
continuasse viagem nestas circunstâncias. Vamos voltar para Charleston.
_Não pode fazer isso! - gritou ela, desesperada. - Terá de atravessar o bloqueio
novamente!
Não irei para o porto. Chegarei perto da linha costeira e meus homens a levarão para a
terra de escaler. Não há outro modo de solucionar o problema.
_Correremos perigo de qualquer forma - ela observou.
_Mas não tanto como se prosseguíssemos viagem com você. Não sabemos o que
poderemos encontrar pela frente, irmãzinha - disse ele, entre severo e terno.
Samara viu seus sonhos arruinados. Não apenas falhara na tentativa de aventura, como
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arrastara o irmão querido para desnecessário perigo.
_Farei qualquer coisa - ofereceu suplicante. - Esfregarei o convés, trabalharei na cozinha.
_Não preciso de mais marinheiros. Assunto encerrado, Samara. Vamos voltar. - Tornou a
olhar para o vestido enxovalhado. - Tem outra roupa para vestir?
_Trouxe um vestido - respondeu ela, completamente infeliz.
_Vou providenciar um banho para você e depois quero que durma. - Os lábios bem-feitos
curvaram-se num sorriso. - Ficou mesmo no porão durante todo este tempo?
_Fiquei.
Ele estendeu a mão e tocou o rosto da irmã.
_Oh, Samara, o que vamos fazer com você? Com sua teimosia?
Virou-se para sair, pensando na mudança de curso que teria de ordenar, quando se ouviu
um grito vindo de cima.
_Vela! Vela à vista.
Bren sufocou uma torrente de pragas. Má sorte! Um problema nunca surgia sozinho.
Olhou para a irmã com severidade.
_Fique aqui e mantenha a porta fechada.
No instante seguinte desaparecia no corredor.
Bren subiu à torre de vigia.
_Que bandeira traz o navio?
_Não há nenhuma no mastro.
Apanhando a luneta olhou na direção do navio a distância e praguejou baixinho. Era uma
escuna muito parecida com a sua, porém maior e fortemente armada. Encheu-se de apreensão e
olhou para o marinheiro que o fitava preocupado.
- Briggs, vamos dar o máximo de velocidade ao navio e tentar manter distância.
A seguir ordenou aos homens que soltassem as velas do topo. A escuna ganhou
velocidade, mas a outra seguiu-a rapidamente, aproximando-se aos poucos. Em menos de uma
hora o Samara estava ao alcance dos tiros de outra embarcação. Bren viu a bandeira inglesa
subir, acompanhada de flâmulas sinalizantes que ordenavam que fizesse a volta e parasse de
tentar escapar.
Precisava tomar uma decisão imediata, dificultada pela presença de Samara a bordo.
Muitos de seus homens eram ingleses, sujeitos às leis do seu país. Seriam presos por pertencerem
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à tripulação de um barco americano e até enforcados se fosse descoberto que eram desertores da
Marinha Real. E alguns eram. Estaria entregando os companheiros se optasse pela rendição.
Além disso, só Deus sabia o que poderia acontecer a Samara. A escuna que o perseguia não era
da Marinha, portanto só podia pertencer a um particular, tão sem caráter quanto um pirata
ordinário. Já ouvira muitas histórias a respeito de como costumavam tratar os prisioneiros.
Decidiu-se. Não possuíam as armas exibidas pelo barco inglês, mas com alguma sorte
acertariam um tiro capaz de causar algum estrago. Se conseguissem confundir o oponente, teriam
uma chance de escapar.
- Icem nossa bandeira - ordenou a um dos marinheiros. Preparem-se para atirar.
Os sessenta minutos seguintes deram a Samara uma idéia do que era o inferno. Ouviu o
som aterrador do canhão. O espocar dos tiros de contra-ataque do navio do irmão, sentiu o cheiro
da pólvora. Mas o pior de tudo era ouvir os gritos de dor dos homens, que sobrepujavam o ruído
da madeira partida e da correria no convés. Apavorada como nunca se sentira na vida, nem
pensou em deixar a cabine, andando de um lado para o outro, rezando para que nada acontecesse
a Bren. Foi atirada ao chão quando os dois navios se chocaram e a escuna pirata lançou os
ganchos para segurar a presa.
Nem mesmo naquele momento duvidou de que o irmão venceria o inimigo. Brendan
jamais permitiria que algo lhe acontecesse. Jamais.
Brendan sentiu-se ferido no braço e na cabeça. Caiu. Continuara a comandar a defesa de
onde estava, no leme, cujo controle assumira depois que o timoneiro caíra. O convés tornara-se
escorregadio por causa do sangue e o ar ficara irrespirável com a fumaça. A situação era de
derrota, mas algo de dentro dele recusava-se a aceitar o fato. No momento em que girava o leme,
procurando virar o navio e escapar do atacante, foi atingido. O sangue jorrou-lhe do braço e no
mesmo instante uma balaustrada acima dele despencou, ferindo-o na cabeça e fazendo-o
mergulhar na inconsciência.
Sem o capitão para manter a luta, a tripulação capitulou sem mais resistência. Os
marinheiros que ainda se mantinham de pé nada podiam fazer, destreinados no tipo de luta
requerido pela situação. Fugindo ao combate corpo a corpo, ergueram os braços em sinal de
rendição, observando o gigante loiro que agilmente saltou a bordo e tomou o controle da escuna.
Reese Hampton varreu o convés com o olhar, procurando pelo capitão. Não esperava
tanta resistência e desejava evitar novas surpresas. Os olhos atentos pousaram no único homem
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que aparentava ter alguma autoridade.
- Você é o capitão? - indagou asperamente.
- Não - resmungou Briggs. - Primeiro piloto. O capitão está perto do leme, gravemente
ferido. Precisa de um médico:
Reese caminhou até onde Brendan achava-se caído.
- O nome dele?
- Capitão O’Neill.
Reese curvou-se para olhar o braço atingido e depois retirou uma lasca de madeira que se
encravara no couro cabeludo de Brendan. Rasgou a camisa do ferido e, improvisando uma faixa,
amarrou-a ao redor do ferimento do braço para estancar o sangue. Então fez um gesto com a mão,
chamando seus homens.
- Levem-no para o Unicórnio e digam a Yancy para fazer o que puder pelo capitão -
ordenou, antes de dirigir-se novamente a Briggs. - Separe os feridos. Temos um médico a bordo.
Mandou que três homens dessem uma busca no navio atrás de sobreviventes e enviou seu
contramestre à cabine do capitão para pegar todos os documentos que encontrasse. Desejava
saber que tipo de carga o barco capturado levava e se valera a pena expor o Unicórnio a tantos
prejuízos. A seguir avaliou os danos causados ao Samara, pensando qual seria a origem de seu
nome exótico. A escuna podia ser recuperada, depois de muito trabalho. E era linda! Amaldiçoou
o americano teimoso que a deixara em tal estado antes de render-se.
Ainda avaliava o fruto do seu ataque, quando o contramestre retornou.
- Capitão, a porta da cabine está trancada.
Reese olhou com impaciência.
- Arrombe-a, Evans!
- Bem, está trancada por dentro. Deve haver alguém lá.
Reese contraiu as sobrancelhas, irritado. O que seu marinheiro lhe dizia não tinha lógica.
Por que alguém ficaria escondido depois da captura, quando o combate já terminara? Talvez a
pessoa trancada na cabine estivesse ocupada em destruir documentos importantes.
- Vou até lá - declarou, começando a seguir o contramestre.
Chegando à porta da cabine, examinou-a com interesse. Abandonou a idéia que tivera no
momento, de pedir que quem estivesse lá dentro abrisse a porta. A pessoa teria tempo de
preparar-se para atirar. Num cochicho, ordenou a Evans que empunhasse a pistola. Afastando-se
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alguns passos, arremeteu-se contra a porta, empurrando-a com o ombro poderoso. Ouviu a
madeira rachar. Tornou a forçar e a porta abriu-se, batendo contra a parede. O que viu, deixou-o
atônito.
De pé na outra extremidade da cabine, segurando uma garrafa de vinho como se fosse
uma espada, a mulher mais linda que já vira olhava-o com medo e ao mesmo tempo com
expressão de raiva desafiadora.
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CAPÍTULO 3
Mesmo antes de a porta abrir-se com estrondo, Samara sabia que algo não ia bem.
O ruído da batalha silenciara, mas Brendan não aparecera.
E à medida que os minutos passavam, seu coração se enchia de angústia. Por fim, ao
perceber que alguém forçava a porta, sentiu-se tomada de terror.
O irmão não a abandonaria, a não ser que estivesse ferido... ou morto. A última hipótese
era insuportável, mas Samara não conseguia descartá-la. Vozes estranhas gritavam ordens no
convés acima da cabine e passos apressados ressoavam nas tábuas do chão.
Ao ter certeza de que alguém procurava arrombar a porta, olhou em volta, em busca de
uma arma qualquer. Agarrou a garrafa de vinho aparentemente destinada ao jantar do irmão e
preparou-se para enfrentar o atacante. Mas o que viu a deixou atônita.
No primeiro instante imaginou estar na presença do próprio demônio. Gigantesco, o
homem era muito mais alto que o pai e os irmãos, que tinham porte digno de nota. Apesar da
obscuridade que reinava na cabine, ela viu os cabelos desalinhados, estriados de ouro e cobre. A
camisa larga e o calção justo, brancos, mostravam-se manchados de sangue. Os pés descalços
também estavam sujos. Paralisada, não conseguia tirar os olhos da figura aterradora. O olhar dele,
fulgurante, possuía poder hipnótico e deixava entrever que a ferocidade de segundos antes
transformava-se em divertimento e admiração. Arrepiada, deu alguns passos para trás,
encostando-se contra a parede. Como um animalzinho acuado por um predador muito mais forte,
esboçou um gesto de defesa, erguendo a garrafa.
- Encontrei um tesouro - declarou o homem em voz lenta e profunda, fazendo Samara
estremecer.
Cruzando os braços no peito, ele a mediu dos pés à cabeça como se mentalmente a
estivesse despindo.
Pela primeira vez na vida, Samara desejou desmaiar. Apenas para fugir ao olhar que
devassava os mistérios de seu corpo, não encontrando obstáculos no vestido sujo que a cobria.
Jamais um homem a olhara daquela forma. Sentiu-se nua na frente dele. Transparente. Ele notava
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o medo que a dominava e parecia divertir-se com a situação. Aquilo irritou-a mais que a
expressão de luxúria nos olhos que luziam como pedras preciosas.
- Pretende mesmo me enfrentar com essa garrafa? - perguntou ele, zombando. - Por que
não me oferece o vinho em vez de desperdiçá-lo, quebrando a garrafa na minha cabeça?
Apesar do medo, Samara sentiu-se estranhamente tentada a aceitar a sugestão. O homem
era um bruxo e a enfeitiçara, mas não ia render-se tão facilmente.
- Onde está o capitão O’Neill? Está... está... - gaguejou, sem completar a pergunta que a
atormentava.
Reese continuou a estudá-la com indolência, sorrindo de leve ao vê-la corar. Nem a
sujeira que maculava o rostinho corado, nem o vestido imundo, conseguiam esconder a beleza
das feições cinzeladas e a sensualidade do corpo esbelto. Os olhos cinzentos, enormes, emitiam
lampejos de medo e comovedora coragem, enquanto os cabelos negros, longos e ondulados,
tombavam pelas costas de modo encantador. Quem seria aquela mulher? Esposa do capitão?
Não. Nenhum homem em seu juízo perfeito levaria a esposa numa viagem tão perigosa. Amante?
Provavelmente. O pensamento excitou-o. Se era amante do capitão O’Neill, não se negaria a
tornar-se sua. Raramente encontrava uma mulher que não desejasse pertencer a ele. Sorriu
sensualmente.
Samara notou a mudança de expressão nos olhos penetrantes e quase com desespero
ergueu a garrafa mais um pouco.
- O capitão... Onde está o capitão O’Neill? - tornou a perguntar.
- No meu navio. Está ferido, mas acredito que sem muita gravidade. Meu médico está
cuidando dele.
- Quero vê-lo - exigiu ela com audácia, embora seus lábios tremessem.
Ele assumiu um ar mais sério ao perceber que ela estava verdadeiramente preocupada
com o destino do capitão O’Neill. Era evidente que a mulher gostava daquele homem.
- O que você é dele? Esposa?
Já com a preocupação por Brendan ligeiramente acalmada, ela estudou aquele gigante
com mais atenção. O corpo poderoso dava a impressão de ser esculpido em pedra, enquanto o
rosto de feições firmes e bem definidas exibia inegável beleza máscula. A pele bronzeada e o
cabelo clareado pelo sol faziam com que os olhos cor de mar sobressaíssem de forma espantosa
no rosto expressivo. O homem irradiava arrogância e força e afetava-a de forma estranha,
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fazendo-a sentir a pele quente e o sangue fluir com mais rapidez.
Era um inglês. Um pirata. Um ladrão. Estava roubando o navio de Brendan. Devia odiá-lo
e no entanto deixava-se enredar em seu encanto.
Reese leu a confusão nos olhos cinzentos e viu o violento rubor que cobria o rosto de pele
perfeita. Sorriu ao vê-la morder os lábios, embaraçada. Dava a impressão de ser completamente
inocente e indefesa. Sentiu uma onda repentina de compaixão pela jovem, mas sufocou-a sem
hesitação. Não podia possuir a inocência que aparentava, se concordara em viajar num navio
cheio de homens.
- Sou o capitão Reese Hampton - esclareceu, preparando terreno para a pergunta que
desejava fazer. - A quem tenho a honra de me dirigir?
Samara abaixou a garrafa levemente. Os braços estavam ficando cansados e ela começava
a sentir-se uma perfeita idiota, brandindo aquela arma inútil. Porém, quando ele deu dois passos
em sua direção, ela voltou a erguer a garrafa ameaçadoramente.
- Dê-me essa garrafa - ordenou ele mansamente, continuando a aproximar-se e estendendo
a mão.
No instante seguinte ela viu-se olhando para o peito musculoso, enquanto ele lhe tirava a
garrafa das mãos. Depois
de colocar o objeto numa mesa próxima, Reese tomou o rosto dela com uma das mãos,
obrigando-a a erguer os olhos para ele.
- Por favor... - suplicou ela baixinho.
- Por favor o quê, minha bela? Por favor, continue, ou por favor, pare? Quer que eu a
acaricie, ou que a solte?
Ela tremia, magnetizada pelo toque dos dedos longos em seu rosto.
- P... pare - balbuciou
Inesperadamente, os lábios dele cobriram os dela e Samara teve a sensação de estar sendo
tragada por um furacão. Nunca fora beijada daquela maneira e nunca experimentara emoções tão
intensas. Os lábios dele eram gentis, mas tomados de desejo. E o toque deles arrastavas pelo
turbilhão crescente de um prazer que não julgara existir. Assustada com o que lhe acontecia,
lutou nos braços dele até livrar-se e instintivamente esbofeteou-o com a força desesperada do
medo.
Aterrorizada com o que fizera, ficou esperando pela represália. O homem orgulhoso não
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
levaria um tapa no rosto sem revidar a ofensa. Com os olhos desmesuradamente abertos, Samara
não podia deixar de fitá-lo, cheia de apreensão.
A raiva que ele começou a sentir foi prontamente controlada. O pavor da jovem era
legitimo e ele jamais maltratara uma mulher, nem forçara nenhuma a aceitá-lo como amante.
- Por que não me disse que não queria ser beijada? - perguntou, ainda tenso.
- T... tentei.
- Com pouca convicção, devo dizer.
Ela mordeu os lábios, envergonhada. Ele tinha razão.
- Seu capitão deveria tê-la deixado no convés. Teria vencido a batalha - disse ele,
estendendo a mão e afagando-lhe a face.
- Preciso ver Brendan! - declarou ela, dolorosamente, voltando à realidade de que não
sabia o que acontecera ao irmão.
- Se pedir, talvez eu lhe conceda esse favor - zombou Reese, acometido do desejo de
torturá-la.
Contendo o impulso de esbofeteá-lo novamente, Samara baixou os olhos, humilhada.
- Por favor... - pediu num fio de voz.
- Por favor, capitão Reese Hampton - ele ordenou.
- Por favor, capitão Reese Hampton - ela repetiu, sentindo-se mal.
- Quem me pede tal favor? Nem sei seu nome - continuou ele, com insolência zombeteira
que mascarava seu interesse em conhecer a identidade de tão encantadora criatura.
- Samara... Samara O’Neill.
Reese experimentou um choque. Era a esposa do capitão, afinal de contas. E dera seu
nome ao navio. O desapontamento que tornou conta dele deixou-o assombrado. Livre como era,
poucas regras de conduta estabelecera para si mesmo, mas entre as poucas existentes, havia uma
que ele não desobedecia. Jamais cortejava mulheres casadas. Não estava disposto a morrer num
duelo por causa de uma esposa leviana. Nenhuma mulher merecia que um homem morresse por
ela, ou matasse, principalmente uma que traía o marido. O mar oferecia peixes em profusão para
que um homem criasse problemas tentando pegar um que já caíra em rede alheia.
- O capitão O’Neill é seu marido? - Não resistiu ao impulso de perguntar, mesmo já
conhecendo a resposta.
Samara olhou para ele, admirada. Não pensara que ele pudesse chegar àquela conclusão.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
E não deixou de perceber uma quase imperceptível mudança de atitude no tom de voz do homem.
Era incrível que um pirata respeitasse os laços do casamento, mas talvez aquele fosse diferente
dos outros. Deixá-lo acreditar que era esposa de Brendan talvez a colocasse a salvo. Dele e de si
mesma, pois, por mais vergonhoso que fosse, não podia negar que Reese a atraía poderosamente
e que mesmo naquele momento ela sentia o desejo de tocá-lo e de ser novamente beijada. E ele
era inglês. E um pirata. Não sabia o que era pior, mas não podia haver nada mais desabonador do
que ser inglês e pirata.
Fechou os olhos por um instante, depois tornou a abri-los e encarou-o com firmeza.
- Sim, sou esposa de Brendan O’Neill e gostaria de vê-lo... se não for pedir demais a um
pirata.
Os olhos verdes estreitaram-se.
- Sou um navegador particular, sra. O’Neill, e nossos países estão em guerra.
- A guerra é apenas uma desculpa para o assassinato e o roubo - Samara disse, repetindo
as palavras que tantas vezes ouvira do pai.
O medo de que ele pudesse fazer-lhe algum mal desaparecera, mas o modo como sentia-
se afetada pelo magnetismo do capitão Reese perturbava-a. Ocultou-se atrás do conceito de que
piratas eram desprezíveis para proteger-se contra a atração que ele exercia sobre ela. Reforçou a
idéia pensando que esse pirata ferira seu irmão e merecia apenas raiva e desprezo. Lançou-lhe um
olhar fulminante, mas, para sua decepção, percebeu que não chegara a aborrecê-lo. Ele sorriu e
pegou a garrafa de vinho.
- Vou levar sua arma mortal. Pode ter alguma serventia
_declarou com deliberado sarcasmo.
Fitou-a sorridente, mais uma vez admirando a beleza do rosto tornado de irritação. A sra.
O’Neill era linda e ele considerou a idéia de quebrar as regras que impusera ao próprio
comportamento. Casada, ou não, Samara era uma tentação que ele não estava inteiramente
disposto a combater. A viagem dali para a frente prometia ser muito interessante.
Fazendo uma curvatura zombeteira, exageradamente floreada, ele tomou-a pelo braço e
guiou-a para fora da cabine e para o convés. Ao deparar com a situação caótica, Samara sentiu-se
tomada de fúria e teve ímpetos de matar o causador de tantos estragos. Velas rasgadas pendiam
dos mastros, tristes estandartes da derrota. Madeira arrancada a tiros de canhão da estrutura do
navio juncava o convés e havia sangue por toda parte.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Os homens da tripulação de Brendan, negros de pólvora, trabalhavam sob as ordens de
guardas armados e os feridos amontoavam-se num canto, formando um quadro trágico capaz de
revolver o estômago. O medo nos rostos de todos deixava claro que ninguém sabia o que esperar
das horas seguintes.
O olhar de Samara caiu sobre um corpo imóvel. Reconhecendo a camisa listrada de
Scotty, soltou-se da mão de Reese e correu para o homem que conhecera desde a infância.
Lembrou-se de como ficara contente em vê-lo, apenas algumas horas atrás. E Scotty estava
morto. Ajoelhou-se ao lado do corpo, sem perceber que lágrimas quentes corriam
por seu rosto. Nunca tivera contato com a morte e até aquela idade apenas experimentara
a dor da perda de velhos animais, que não via morrer, mas pelos quais chorava sentidamente. E
de repente fora lançada no meio da destruição, da morte e da violência.
- Oh, Scotty - murmurou num soluço.
Reese aproximou-se dela e segurou-a pelo braço, delicado, mas autoritário.
- Sra. O’Neill, este não é um lugar para damas.
Ela levantou-se rapidamente, encarando-o com ódio.
- Você causou esta desgraça! Que seja maldito! Que sua alma seja levada para o inferno! -
gritou, erguendo a mão para bater novamente no rosto dele.
Mas desta vez Reese estava preparado. Segurou a mão erguida contra ele. Num
movimento rápido, prendeu também a outra mão, deixando Samara completamente indefesa..
- Um tapa é tudo o que permito às mulheres no que diz respeito a agressão.
Trêmula, deixando que as lágrimas rolassem livremente, riscando trilhas claras no rosto
empoeirado, sentiu que ele a puxava para o peito. O cheiro de mar, sangue e suor envolveu-a e
algo primitivo e selvagem despertou em seu íntimo. O coração disparou e o rosto ficou quente,
numa reação física que ela não compreendia. Sentiu-se incapaz de pensar e até de respirar.
Subitamente a visão do corpo de Scotty surgiu em sua mente e ela recuou, ficando
surpreendida quando as mãos fortes a soltaram. Olhou-o com desdém, esperando ver o lampejo
de zombaria sempre presente nos olhos claros. Mas encontrou uma expressão carinhosa e terna
que a desarmou. Abaixou os olhos, aturdida. O pirata não podia sentir ternura ou piedade. O que
vira nos olhos dele devia ser mais uma artimanha usada pelo demônio para ludibriá-la. Alguém
capaz de causar tanta morte e destruição não abrigava sentimentos delicados na alma. Maldade e
bondade eram incompatíveis, como a sombra e a luz. Tornou a fitá-lo receosa e os olhos dele
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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estavam frios e penetrantes.
- Vou levá-la ao seu marido - declarou ele secamente.
Tornou-a pela mão e levou-a até o ponto onde os navios
tocavam-se pelas amuradas. Uma prancha colocada em cima facilitava a passagem e
Reese ergueu-a até a ponte improvisada, subindo em seguida, com movimentos ágeis e precisos.
Abraçou-a pela cintura e o contato a fez debater-se, revoltada. Perdeu o equilíbrio e ia cair, mas
ele segurou-a com firmeza, apertando-a de encontro ao peito duro como um rochedo.
Atravessaram para o outro lado, estreitados no estranho abraço, sem que ele deixasse de olhá-la
com expressão indecifrável.
- Parece mesmo determinada a dificultar tudo - ele finalmente disse, com o tom de
zombaria que tinha o poder de enfurecê-la.
- Largue-me! - ordenou ela rispidamente.
- Só se me prometer que vai comportar-se de modo ajuizado.
Os olhos verdes cintilavam e os lábios provocantes achavam-se curvados num sorriso
enigmático. O próprio retrato de Lúcifer. Belo e perverso, tentador e cheio de malícia.
- Eu me comportarei como bem entender!
Os braços de ferro aumentaram a pressão ao redor de seu corpo e Samara sentiu o mundo
girar vertiginosamente. Procurou pensar em Brendan, tentando refrear as loucas emoções que a
dominavam.
- Promete que vai agir com bom senso, sra. O’Neill?
Não vendo de que outra forma poderia livrar-se da prisão perturbadora daqueles braços,
ela fez um gesto de assentimento e ele soltou-a vagarosamente. Logo depois caminhavam por um
corredor, onde pararam na frente de uma porta aberta. Após examinar o interior, ele empurrou-a
gentilmente para dentro.
Brendan achava-se estendido sobre uma mesa, imóvel e silencioso. O rosto, sempre
corado, apresentava agora a palidez da morte. Um homem inclinava-se sobre ele, introduzindo
uma agulha no braço inerte.
Fixando o olhar no rosto do irmão, Samara viu que ele apertava os lábios com os dentes,
certamente sufocando gemidos de dor. Apesar de horrorizada com o que via, sentiu-se invadida
por uma onda de alívio. Brendan estava vivo! O pirata não mentira. De repente percebeu que
Reese colocava uma das mãos em seu ombro, não duramente ou num gesto
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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de posse, mas com gentileza, como se quisesse confortá-la. Continuou a olhar para o
irmão e, assim que o médico deu o trabalho por terminado ela correu para a mesa.
Brendan arregalou os olhos, espantado. Tudo acontecera com tanta rapidez que ele quase
se esquecera da irmã. Estivera inconsciente desde o momento em que fora ferido, recuperando a
consciência alguns minutos antes, com a dor provocada pela sutura.
- Meu esposo querido! Meu amor! - exclamou Samara, curvando-se para beijá-lo.
Atônito, Brendan olhou-a através da névoa que lhe embaçava os olhos.
- Não sabe como fiquei preocupada! - continuou ela, ignorando o olhar espantado do
irmão - Esse... esse pirata
_olhou para Reese - permitiu que eu o visse.
Então Brendan compreendeu. Por alguma razão, Samara achara melhor fingir que era sua
esposa. Seus olhos expressivos demonstraram compreensão e ele ergueu a mão e apertou a dela.
Tentou levantar a cabeça, mas sentiu-se tonto e olhou em volta, indefeso. Além do médico, viu
dois marinheiros em posição de guarda, como se o ferido pudesse oferecer algum perigo. Sorriu
com amargura. Atrás dos dois homens divisou um outro, muito alto, encostado na parede e
aparentando desinteresse. Contudo, apesar da atitude displicente, Brendan percebeu que o olhar
do homem era intenso e ameaçador. Viu-o abandonar o posto junto à parede e caminhar em sua
direção.
- Capitão O’Neill - começou ele, em voz baixa e agradável, marcada pelo forte sotaque
inglês que Brendan já esperava ouvir -, sou Reese Hampton, capitão do Unicórnio. O senhor e
sua tripulação são meus prisioneiros.
- O que aconteceu ao meu navio?
- Não afundou, mas quase. Estamos tentando salvá-lo.
- O que farão com Samara, minha.., esposa?
- Será tratada como hóspede, assim como o senhor, dependendo de seu comportamento. O
de sua esposa, devo dizer, não tem sido exemplar.
- Se você a tocar...
- Não está em condições de fazer ameaças, capitão O’Neill. Todavia, fique tranqüilo. Não
costumo fazer guerra contra mulheres.
Brendan foi obrigado a contentar-se com aquilo. Não devia, por amor a Samara, irritar
demais seu oponente.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- E meus homens? - indagou.
- Sete morreram. Os feridos estão sendo tratados e os que nada sofreram trabalharão para
mim.
- Num navio inglês? - perguntou Brendan com desprezo.
- Se não quiserem morrer de fome, terão de trabalhar.
- E depois?
A expressão severa de Reese relaxou ligeiramente.
- Se não me causar problemas, o senhor e sua tripulação serão desembarcados num lugar
neutro.
- Toda a minha tripulação?
Reese não teve dificuldade em compreender o sentido da pergunta. Os tripulantes de
nacionalidade inglesa poderiam ser acusados de traição por trabalharem num navio americano e
serem presos ou enforcados. Não apenas os ingleses, como também os escoceses e irlandeses,
considerados súditos da coroa britânica e obrigados à lealdade para com o rei.
- Toda - afirmou. - Não tenho nenhum interesse em mandar homens para a forca ou para a
prisão. Meu único desejo é chegar logo às Bermudas com os dois navios.
- Um porto inglês - frisou Brendan. - E isso que considera uma terra neutra?
Reese estreitou os lábios, único sinal de que começava a irritar-se.
- Não estou habituado a tolerar desconfiança quanto à minha palavra ou minha honra,
capitão O’Neill.
- Honra? Um pirata? Por que deveria eu acreditar em você?
- Por que não tem outra escolha - respondeu Reese em tom baixo e controlado, antes de
virar-se para os dois marinheiros. - Levem-no para o porão, com os outros oficiais.
Considerara a hipótese de deixar o capitão e os rnarinheiros mais graduados soltos no
navio, misturados ao resto da tripulação, mas a hostilidade de Brendan O’Neill forçara-o a mudar
de idéia. O homem era orgulhoso e destemido. Poderia causar-lhe sérios problemas se ficasse
junto dos tripulantes do Samara. Uma das coisas que Reese aprendera no correr dos anos fora
que uma tripulação sem líder raramente se amotinava.
- Não! - exclamou Samara, quebrando o silêncio.
Reese olhou-a com as sobrancelhas erguidas, fingindo surpresa.
- Não o quê, sra. O’Neill?
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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- Eu... eu... - ela gaguejou antes de calar-se.
Estivera pensando nas horas terríveis que passara no porão escuro. Não podia suportar a
idéia de Brendan, ferido como se encontrava, ficar preso num lugar horrível daqueles.
Reese desviou o olhar do rostinho angustiado e fitou Brendan com ar de censura.
- Por que, em nome de Deus, trouxe sua esposa numa viagem tão perigosa?
- Ele não me trouxe - explicou Samara. - Estava viajando como clandestina e ele me
encontrou um pouco antes de você atacar nosso navio.
Reese não conseguiu esconder o espanto, começando a compreender a situação. Entendeu
então por que Samara estava tão suja. Devia ter ficado escondida pelo menos durante dois dias,
pois encontravam-se bem longe de qualquer porto. Uma mulher que passasse por tanto
desconforto apenas para ficar ao lado do marido devia amá-lo com loucura, mas algo não
encaixava naquela história. Seu olhar pousou sobre o rosto de Samara, que fitava Brendan com
indisfarçável emoção.
Não podia haver dúvida de que uma grande afeição ligava os dois esposos, mas Reese,
com sua experiência de homem vivido, não deixara de perceber que Samara ficara excitada com
seu beijo, sentindo-se fisicamente atraída por ele. E uma mulher apaixonada por seu marido
repeliria qualquer carícia de outro homem com verdadeira repulsa. No entanto, o tapa que
recebera dela lhe parecera mais uma atitude de defesa contra a emoção que a fizera estremecer
em seus braços, que de revolta.
Desde o início notara que ela não usava aliança, mas a intimidade entre o capitão O’Neill
e Samara era um fato evidente, além de o navio capturado levar o nome dela, uma homenagem
que apenas o amor explicaria.
Sacudiu a cabeça, completamente confuso. Deparava com um enigma, mas teria tempo
para decifrá-lo durante a longa viagem.
Segurou Samara pelo braço e repetiu a ordem que dera aos dois membros da tripulação
para que prendessem o capitão prisioneiro no porão.
Brendan lançou um olhar de advertência para Samara e com grande esforço sentou-se.
- O que vai fazer com minha esposa? - perguntou.
- Ficará com a cabine do primeiro contramestre. Nada acontecerá a ela, a menos que o
deseje. - Reese explicou sugestivamente, desejando provocar uma reação.
- Desgraçado! - gritou Brendan, descendo da mesa. Só não caiu porque os dois tripulantes
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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o ampararam. Frustrado, sem poder manter-se de pé, ergueu um punho ameaçador para Reese,
que o encarava com um sorriso malicioso.
- Eu o matarei, se encostar um dedo nela!
Samara quis correr ao encontro dele, mas Reese a reteve com mão firme. Afastou-a do
caminho quando os dois marinheiros passaram, levando o prisioneiro para fora.
Brendan olhou-a desesperado e Samara pôde ler raiva e preocupação em seus olhos azuis,
de onde desaparecera todo traço da tranqüilidade que era uma faceta marcante de sua
personalidade.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
CAPÍTULO 4
CAPÍTULO 5
Aquela foi a pior noite da vida de Brendan. Tinha a impressão de que algum demônio
divertia-se em atormentá-lo, cravando agulhas incandescentes em seu braço e martelando sua
cabeça ferida. O lugar onde se achava apenas contribuía para aumentar seu tormento. Dividia o
pequeno compartimento de um dos porões com mais çinco homens, seus oficiais, que mal tinham
espaço para esticar os corpos doloridos. Não havia camas nem bancos. Nada. Apenas um balde
fétido que servia como latrina e que infestava o ambiente com cheiro insuportável. A única luz
filtrava-se através de uma pequena janela gradeada ao lado da qual dois guardas ficavam de vigia.
Mas o desconforto físico anulava-se diante da tortura mental que o dominava. Jamais
conhecera o fracasso. Era uma condição inaceitável no conceito orgulhoso dos O’Neill. Perdera o
navio e fora incapaz de proteger a irmã e a tripulação do assalto dos piratas. Falhara ao
negligenciar o treino de defesa dos marinheiros, contando, em sua arrogância, com a rapidez do
Samara para fugir aos ataques e com sua esperteza para ludibriar os ingleses.
Felizmente ele e seus homens haviam escapado à humilhação das algemas. Vira, à fraca
claridade, as argolas de ferro fixadas nas paredes e, por algum obscuro processo da mente,
chegara a ressentir-se por haver sido poupado. Pareceria tão indefeso e inofensivo a ponto de os
britânicos desprezarem algumas medidas de segurança? O pensamento, aliado à lembrança dos
modos insolentes de Reese Hampton, enchia-o de fúria.
E Samara. Ao pensar na irmã à mercê dos desejos do inglês, fechava os punhos
desesperado. Percebera as palavras provocantes do capitão inimigo e a preocupação o punha
doente. Samara, mimada e preservada de todos os perigos, não saberia defender-se de um homem
evidentemente acostumado a fazer o que queria, sem medir conseqüências. O problema maior era
que a irmã pensaria poder lidar com ele como fazia com seus infelizes pretendentes. E sua im-
prudência a envolveria em situações bastante difíceis. Seu caráter impulsivo divertia a família,
que sempre se unira numa espécie de conspiração para protegê-la, sem que ela percebesse, de
suas próprias loucuras. E ali Samara estava sozinha nos domínios de um lobo.
Brendan e seus oficiais foram bem alimentados e ele chegara a surpreender-se com a
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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quantidade e qualidade do ensopado servido ao jantar. Não conseguira comer nada, tomado de
náusea causada pelo seu estado físico e emocional, dando seu prato a outro membro da
tripulação, que parecia não perder o apetite em circunstância alguma. Precisava alimentar-se para
recuperar as forças, mas a boca amargava ao simples pensamento de provar a comida.
Tentando não perder o juízo, dedicou-se a pensar em meios de vingar-se de Reese, e da
afronta sofrida. Tornava conhecimento da passagem do tempo apenas pela troca da guarda e
percebia que o ódio crescia em seu íntimo no compasso das horas que passavam. Ódio. Um
sentimento quase desconhecido que o prendia em dolorosa agonia.
Finalmente, quando a porta se abriu, esqueceu toda a cautela, obedecendo à necessidade
de dar vazão à fúria. Ignorando a dor no braço, atirou-se contra um dos guardas, mal percebendo
que a porta fechava-se atrás dele e que seus companheiros a esmurravam gritando. Alucinado, jo-
gou-se de encontro aos guardas, atingindo um com a cabeça e usando os pés para golpear os
outros. Depois, num momento de dor cruciante, seus braços foram agarrados e suas mãos
amarradas na frente do corpo. Foi empurrado e arrastado por um corredor estreito e uma escada,
até o convés.
Piscou quando seus olhos, depois de várias horas na escuridão, foram atingidos pela
cegante luz do sol. Esperou até que se acostumassem à claridade, lutando para controlar-se.
Vagarosamente focalizou Reese Hampton. Os olhos do inimigo eram frios e o rosto mostrava-se
inescrutável. Mantinha uma das mãos no ombro de Samara, conservando-a a seu lado.
Brendan viu que a irmã olhava alarmada para sua camisa suja de sangue fresco e suas
mãos manietadas. Notou que ela deu um passo a frente, talvez desejando aproximar-se, mas que
Reese a impediu. Leu o medo e a confusão no rosto lindo e seu ódio aumentou. Quis jogar-se na
direção do adversário, mas foi firmemente agarrado pelos braços.
- Disse-lhe que o tratamento dispensado a sua esposa dependeria de seu comportamento -
disse Reese com voz fria. - Ela não entendeu que também devia comportar-se bem para que
recebesse bom tratamento.
Pressentindo que algo terrível estava para acontecer, Samara lutou para livrar-se, mas foi
facilmente dominada por um forte aperto da mão de Reese.
- Sua esposa tentou me matar - continuou ele. - E desde que não me acho disposto, no
momento, a puni-la, você receberá o castigo em seu lugar.
- Não! - gritou Samara, desesperada.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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Reese ignorou o protesto e os movimentos frenéticos que ela fazia para escapar dele.
- Amarrem-no no mastro principal - ordenou aos dois homens que seguravam Brendan. -
Penso que vinte chibatadas serão suficientes.
Brendan fechou os olhos, mas não tentou lutar, enquanto era levado para o mastro.
Desamarraram-lhe as mãos, tiraram a camisa suja de sangue e ataram-lhe os pulsos ao mastro,
fazendo-o abraçá-lo, expondo as costas. Nem ele nem Samara enlouquecida num ataque
histérico, viram os olhares espantados que os membros da tripulação de Reese trocavam entre si.
Em todos os anos sob as ordens do capitão, jamais o haviam visto punir alguém fisicamente. Os
erros eram castigados com a dispensa do culpado ou, em alguns casos menos graves, com poucos
dias de confinamento no porão. Sendo o Unicórnio um navio onde o trabalho corria bem e num
clima de camaradagem, a simples ameaça de castigo tornava-se suficiente.
Reese, por sua vez, estava pronto para pôr um fim à cena. Desejava mostrar a Samara
como ele era capaz de agir ao deparar com o desacato à sua autoridade. Nada mais. Ia ordenar
que soltassem Brendan, quando ela soltou-se e correu para o prisioneiro, abraçando-o.
- Não! - tornou a exclamar. - Fui eu quem errei, e não, Brendan. Se alguém merece
castigo, sou eu. Apenas lamento não ter conseguido matá-lo - declarou, olhando para Reese em
franco desafio.
Os tripulantes acompanhavam o que se passava, olhando de Samara para Reese. Não
compreendiam a forma de agir de seu capitão e admiravam a mulher por sua coragem.
- Tirem-na daqui - pediu Brendan.
- Ela é minha esposa. Sou responsável por seus atos e devo receber o castigo.
Samara abraçou-o com mais força, olhando suplicante para Reese.
- Farei qualquer coisa para livrá-lo deste tormento. Qualquer coisa, capitão.
Brendan compreendeu que ela estava disposta a qualquer sacrifício para livrá-lo da
humilhação. Debateu-se inutilmente e o sangue voltou a escorrer do ferimento no braço.
- Não, Samara! - gritou. - Não tente fazer nada por mim. Capitão Hampton! Tire-a daqui e
acabe logo com isto.
Reese nunca se sentira tão mesquinho. Desprezo por si mesmo invadiu-o em ondas
amargas. Pensara em dar uma lição e acabara por receber uma de que jamais se esqueceria. Uma
lição de honra e amor. Tornado de desgosto, virou-se abruptamente para os tripulantes.
- Soltem o capitão - ordenou secamente. - Deixem que o médico o examine e depois
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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levem-no à minha cabine, Acompanhem a sra. O’Neill até a dela.
Instantes depois desaparecia, deixando os marinheiros boquiabertos de espanto com o que
se passara.
Reclinado preguiçosamente numa cadeira baixa, tendo como assento tiras de couro
flexível, Reese brincava com o copo de conhaque enquanto aguardava a chegada de Brendan
O’Neill. Sua atitude indolente escondia o tumulto que lhe ia no íntimo. Acossado pelo remorso
do que fizera no
convés, procurava alívio no álcool, descobrindo que a bebida não o ajudava a esquecer as
cenas deprímentes. Nunca maltratara um prisioneiro, muito menos um que estivesse ferido, e
envergonhava-se da humilhação e dor que infringira ao capitão do Samara. Perdera o controle
sobre os impulsos por causa de uma mulher casada. Era certo que ela lhe ferira o orgulho na noite
anterior, mas fora muito pior o que ele próprio fizera. Enodoara a consciência, juiz implacável
que considerações mistificadoras não conseguiam enganar. Que o diabo levasse todas as
mulheres e Samara em particular.
Quando a vira, pela manhã, tornara a ficar exaltado diante de sua beleza e seu coração
doera com a demonstração de amor conjugal. Descobrira que ela não estava traindo o marido ao
deixar-se beijar, mas, pelo contrário, que procurava um meio de ajudá-lo. Talvez ele houvesse
imaginado o ardor com que ela correspondera, ou Samara possuía um talento dramático
espantoso. De qualquer maneira, Reese conscientizara-se de que pisava em terreno perigoso e de-
cidira manter-se longe dela.
Suas reflexões foram interrompidas por uma batida na porta.
Sem levantar-se, mandou que entrassem. Brendan O’Neill entrou primeiro, seguido por
dois marinheiros robustos. Rapidamente, Reese examinou a figura do prisioneiro, que vestia
camisa limpa. Sob uma das mangas era possível perceber o volume das ataduras ao redor do
braço sustentado por uma tipóia. Os olhos azuis do capitão americano soltavam fagulhas de ódio
e ninguém poderia censurá-lo.
- Com sua licença, senhor - um dos homens começou a falar. - O dr. Yancy mandou dizer
que, se pretende matar o prisioneiro, que o faça de uma vez. Matá-lo aos poucos é muito trabalho.
- Diga a Yancy para cuidar de seus doentes e calar a boca, se não quiser experimentar o
chicote - respondeu Reese, com uma expressão benévola que desmentia a severidade das
palavras. - Agora, deixem-nos a sós.
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- Quer que fiquemos na porta, senhor?
- Não.
Sozinhos, os dois homens se encararam. Reese já enchera um copo de conhaque,
deixando-o sobre a grande mesa redonda. Empurrou uma cadeira com um dos pés, aproximando-
a do prisioneiro.
- Sente-se, O’Neill.
Brendan não demonstrou ter ouvido. Continuou de pé, oscilando de leve. Perdera muito
sangue e não comera nada nas últimas quarenta e oito horas, mas esperava que a fraqueza não o
fizesse perder a dignidade. Não daria ao inimigo odioso o prazer de vê-lo caído no chão.
Reese ergueu-se da cadeira, sem desviar os olhos dos de Brendan O’Neill. Um duelo
silencioso que durou longos momentos.
- Nunca pedi desculpas a outro homem em minha vida - disse com esforço, quebrando o
silêncio. - Nunca precisei. Queria apenas dar uma lição à sua esposa, mas acho que fui longe
demais. Desculpe.
Brendan ficou atônito. Nada, nos últimos acontecimentos podia deixar supor aquela faceta
da personalidade de Reese Hampton.
- Fez alguma coisa à... minha esposa?
Um lampejo de irritação passou pelo rosto de Reese.
_Não faço guerra contra mulheres. Ela está bem.
_Você me disse que não faria nada que ela não desejasse - Brendan lembrou-o de maneira
hesitante. - Estou enganado, ou havia um segundo sentido oculto em sua declaração?
_Não tem certeza da fidelidade de sua mulher?
- Ela é muito jovem. E muito impressionável.
- E nada frágil. Teria me arrebentado a cabeça, se eu me distraísse.
Entreolharam-se com ainda fraca, mas nascente compreensão.
- Samara é incrivelmente teimosa - explicou Brendan, sem necessidade.
- E muito leal - Reese acrescentou. - E imprudente.
A fraqueza que dominava Brendan ameaçou dobrar-lhe as pernas e ele segurou-se na
mesa.
- Vou pedir pela segunda vez, capitão O’Neill. Sente-se.
Brendan obedeceu. Ainda relutante, começava a sentir uma certa admiração por Reese
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Hampton.
- O conhaque pode ajudá-lo a sentir-se melhor - ofereceu Reese, notando que o outro
homem empalidecia de dor e vertigem.
Brendan ignorou a sugestão.
- O que quer de mim? Por que ordenou que me trouxessem à sua cabine? - perguntou.
- Tenho uma sugestão a fazer.
- Qual é?
- Darei liberdade a você e a seus oficiais para andarem a vontade pelo navio.
- E o resto da tripulação?
- Trabalharão durante o dia e à noite poderão dormir onde quiserem.
Brendan hesitou por um breve instante. Não podia sequer sonhar em retomar a Samara
pois ele e seus homens achavam-se em inferioridade numérica, além de não terem armas. Nem
experiência de combate, como a tripulação do Unicórnio. Mas havia uma vantagem em poder
ficar em liberdade. Seria possível cuidar de Samara e evitar que ela fizesse alguma loucura ditada
por seu caráter impulsivo.
- Está bem. Aceito a oferta.
- Entende que deverá assumir a responsabilidade pelos atos da sua tripulação.., e da sua
esposa?
_É claro - respondeu Brendan, com os lábios cerrados. Odiava ter de render-se, mas não
existia outra alternativa, com uma mulher a bordo.
Reese atirou-lhe uma chave.
- Sua esposa está na cabine ao lado. Pode ficar lá com ela - explicou, tendo o cuidado de
controlar o tom de voz.
Ardia de ciúme irracional, contrário a qualquer lógica, quando observou Brendan O’Neill
levantar-se e caminhar para a porta.
Brendan voltou-se e encarou Reese Hampton, analisando o rosto sério, procurando
entender o que o fizera agir com a brutalidade de uma hora atrás. Mas as feições fortes achavam-
se vazias de expressão e os olhos azul-esverdeados nada revelavam. Saiu, então, fechando a
porta. Ouviu o ruído de vidro estilhaçado e supôs que o copo que desprezara escorregara da mesa
com o balanço do barco.
Reese olhou para o copo que atirara ao chão, numa tentativa de dar vazão às emoções
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Patricia Potter
conflitantes que o dominavam.
A porta para a cabine que Samara ocupava se encontrava trancada. Brendan experimentou
a chave e a porta abriu-se sem dificuldade. A irmã estava encolhida na cama estreita, com uma
expressão de medo e expectativa no rosto.
- Nós, como marido e mulher, teremos de compartilhar a cabine - declarou o irmão, com
indisfarçável tom de censura, ainda não conhecido por Samara.
Sem ter o que dizer, ela reconheceu que Brendan tinha todo o direito de estar agastado.
Tudo o que fizera desde a partida de Glen Woods, terminara em desastre. Os olhos enormes
refletiam um arrependimento grande demais para ser traduzido em palavras. Pedir desculpas não
bastaria. Pensara que morreria, ao ver o irmão amarrado ao mastro do navio inimigo, sabendo que
fora a causadora de seu tormento. Errara ao fugir, escondendo-se no navio de Brendan, errara ao
deixar que Reese a considerasse esposa de Brendan e ao pensar que poderia enganá-lo,
procurando embebedá-lo e roubar-lhe as chaves. Erros e mais erros cometidos por falta de
maturidade e bom senso. Agira como criança e como tal fora tratada. Essa era a dura realidade.
Para seu desespero, não conseguia livrar-se da lembrança de Reese. Os olhos da cor do
mar, que se tornavam frios como gelo e quentes como o fogo, apareciam em sua mente, enquanto
exibira na noite anterior fora terrível, mas a crueldade exibida naquela manhã atingira-a com
violência aterradora. Desde o momento em que fora levada para a cabine, permanecera en-
rodilhada na cama, pensando, sentindo as garras do medo e acalentando o ódio.
Olhou para o irmão com ar indeciso.
_O que aconteceu? - perguntou num murmúrio.
_Nem sei, mas devo admitir que o capitão Harnpton possui um hesitante, mas inegável
traço de honradez.
_Honradez? Aquele vilão?! Pirata! Canalha! Aquele...
Interrompeu-se ao ver o irmão fitá-la com surpresa.
- Penso que minha gentil irmã se deixa levar demais pela ira. Aconteceu alguma coisa
entre você e Hampton?
- Não! Eu odeio esse homem!
Brendan analisou o rosto alterado, por alguns segundos, procurando a verdade. Os olhos
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cinzentos pareciam cheios de paixão, algo além do ódio que Samara aparentava sentir. A cena no
convés fora extremamente desagradável, mas, por uma questão de justiça, era necessário
reconhecer que Reese Hampton não o teria colocado em liberdade se tivesse intenções incon-
fessáveis a respeito de Samara, que julgava sua esposa. Seria muito mais fácil procurar seduzi-la
com o ‘marido’ aprisionado.
- Você foi mexer no caldeirão do diabo, irmãzinha, e caiu dentro dele. Agora temos de
agüentar. Diga-me, como vamos dormir aqui? Há uma cama só.
- Dormirei no chão - ofereceu ela humildemente.
- E não se importaria, não é? - confirmou ele com um sorriso. - Mas não será necessário.
No momento, porém, aceito a oferta e deitarei um pouco em sua cama. Dormi muito pouco nos
últimos dias e meu braço dói como se eu estivesse no inferno.
- Ele... ele disse algo a meu respeito? - indagou Samara, saindo da cama e caminhando
para a cadeira.
Mais uma vez o irmão olhou-a com curiosidade, notando o interesse que ela tentava
disfarçar.
- Apenas que sou responsável por sua conduta. Estava, suponho, aborrecido com você. O
que aconteceu, Samara?
- Tentei embebedá-lo e atingi-lo na cabeça com uma garrafa de vinho. Cheia.
Brendan colocou a mão na boca, escondendo um sorriso.
- E você, querida irmã, sabe como embebedar um homem?
- Ouço a conversa de vocês, em casa. Lembra-se daquela vez...
- Prefiro não conhecer detalhes da sua falta de compostura, mas nao pensou que também
poderia ficar embriagada?
_Não bebi muito. Joguei quase todo o vinho fora.
- Como? Onde? - perguntou Brendan, espantado.
- Na bota dele - explicou ela com satisfação.
O irmão não conteve o riso. A irritação de Reese Hampton tinha fundamento, afinal.
- Jamais vai aprender que não se deve puxar a cauda do leão, Samara?
- Acho que vou, sim. Fiquei com medo, esta manhã.
- Isso é bom. Acredito que o capitão Hampton não seja um leão bonzinho. Quero que me
prometa que vai comportar-se como uma dama, daqui para a frente. Nada de aventuras. Promete?
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Patricia Potter
- Sim.
Estava sendo sincera. Descobrira um lado da personalidade de Reese que não se atreveria
a desafiar novamente. Ficaria longe dele, embora soubesse que seus pensamentos continuariam a
voltar-se para a perfeita figura do homem, excitante e tentadora.
Algum tempo depois, um camareiro levou-lhes alimento. Pão, queijo e carne salgada, que
Brendan comeu com apetite voraz. A seguir, tirou as botas, estendeu-se na cama e adormeceu
quase imediatamente.
Samara ficou na cadeira, olhando para o irmão. Não se lembrava de já ter visto um
homem adulto adormecido. A privacidade era algo muito apreciado no lar dos O’Neill e, apesar
de sua índole travessa, ela nunca se atrevera a invadir os domínios dos irmãos em horas
impróprias. Observou o rosto de Brendan, admirada com a aparência de juventude que o cobria, o
sono dissolvendo a tensão. Os cabelos loiros, muito mais claros que os de Reese, encaracolavam-
se ao redor das faces e ela sentiu uma onda de ternura pelo irmão querido. Ele sempre a tratara
com ternura e indulgência. Mesmo quando ela causava problemas. Como aquele em que se viam
enredados.
Tentaria ser dócil e fazer tudo o que ele mandasse. Daria a todos a certeza de que era uma
jovem esposa obediente. Esposa. Uma palavra estranha que a fez pensar novamente em Reese.
Teria ele aquela aparência quase infantil quando dormia? Perderia o ar sardônico e a dureza
abandonaria a linha perfeita de seus lábios?
Não queria pensar nele. Ela o odiava. Traço de honradez? Que absurdo. A perda de
sangue devia ter perturbado o Cérebro de Brendan para que ele julgasse o pirata odiado capaz de
honra. O irmão até deixara transparecer uma certa admiração pelo patife. Inadmissível! Brendan
não sucumbiria ao charme daquela personalidade dominadora e arrogante. Reese era um inimigo
de seu país. Matara alguns membros da tripulação do Samara, roubara o navio, ferira o orgulho
do irmão. Rira dela, tomara liberdades. Afastou a idéia de que essas ‘liberdades’ haviam sido
estranhamente agradáveis, entorpecendo-a como um filtro mágico.
Endireitou-se na cadeira, começando a sentir-se angustiada com o confinamento na cabine
pequena. Olhou para o baú do contramestre. Talvez encontrasse um livro no meio dos pertences
do homem. Não vira nenhum ao guardar os objetos e roupas que Reese espalhara no chão durante
a busca que fizera. Mas talvez não houvesse prestado atenção, abalada como estava, por terror e
fúria.
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Foi olhar, mas nada encontrou. Em desespero, pensou que ficaria muito feliz em ter sua
cesta de costura ali. Até o bordado serviria para quebrar a insuportável monotonia. Mas nem
podia imaginar onde ela estaria, depois de tanto tumulto. Fazia apenas cinco dias que se revoltara
contra a rotina da sua vida e a desejava de volta. Estaria sendo sincera? Não apreciara a excitação
de estar envolvida num combate? Não ficara extasiada ao deparar com o capitão Reese Hampton,
um verdadeiro deus do Olimpo? O simples olhar daquele homem não a consumia, seu toque não
a levava ao paraíso?
Mordeu as costas da mão, um hábito que a mãe abominava. Precisava tirar Reese da
mente fazendo alguma coisa. Se ficasse na inatividade enlouqueceria. Vira muitos livros na
cabine do capitão Hampton e ele provavelmente estaria no convés. Nunca daria pela falta de um
único livro. Esquecendo os bons propósitos de docilidade e obediência, saiu da cabine e andou
em silêncio pelo corredor. Chegando à porta vizinha, abriu-a e entrou. Andou até a estante, exa-
minando rapidamente os títulos, escolhendo Macbeth, de Shakespeare.
Absorvida no que fazia, não ouviu a aproximação silenciosa de Reese.
- É mesmo sanguinária, não? Só queria matar a mim, ou gosta de assassinatos em geral? -
respondeu, apontando para o livro que ela retinha nas mãos. - Está procurando novos métodos
para livrar-se de mim?
Samara virou-se assustada e deixou o livro cair. Reese achava-se plantado no caminho
para a porta, impedindo a fuga. Sua masculinidade acentuava-se pelos cabelos revoltos pelo
vento, pelo calção de couro agarrado ao corpo musculoso e pelos pés nus, firmemente apoiados
no chão.
Ele percebeu que ela o examinava.
- Desculpe meus trajes, madame. Estou descalço porque algum duende, durante a noite,
encheu minha bota de vinho. Duendes? Acho que não acredito neles, de modo que apenas posso
supor que uma mão humana, muito perversamente, tenha produzido o milagre. Lamento a perda
de vinho tão bom.
Sua voz, com a sensualidade do veludo, tentava-a, fazendo-a perder a clareza de
raciocínio.
- Sin... sinto muito - gaguejou, presa ao sorriso irônico e ao brilho gelado dos olhos
fascinantes.
- Sente? Pelo quê? Pela perda do vinho, pela bota encharcada ou por não haver
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conseguido acabar com minha vida?
- Não queria matá-lo. Desejava apenas...
- Fazer-me dormir para salvar seu amado marido? E agora? O que está fazendo aqui? Já
não tem O’Neill a seu lado? O que mais quer?
- Quero o Samara de volta - retorquiu ela, num impulso irresistível.
- Não é apenas sanguinária, mas também ambiciosa. Seu marido mandou-a aqui para
advogar sua causa? Se foi isso, fique sabendo que é inútil. Por mais bonita que seja, madame, não
trocaria uma presa valiosa como o navio, por você.
Ferida e humilhada, Samara atacou-o. Ele segurou a mão que voou para o seu rosto, mas
não pôde impedir o pontapé que o atingiu na canela. A dor inesperada o fez gemer e soltá-la. Sem
perda de tempo, ela deu-lhe um tapa no rosto.
Praguejando, Reese enlaçou-a pela cintura.
- Está na hora de aprender que não pode ficar batendo em homens impunemente.
Prendendo-a com um dos braços, usou a mão livre para dar três tapas fortes no traseiro
encoberto pela saia farta. Ultrajada, Samara sentiu-se sufocar de fúria, mas não deixando de
reconhecer que ele controlava a raiva. Aquele método de punição era adequado para crianças. Um
homem batendo numa mulher não agiria daquela forma. Reese não poderia feri-la dando-lhe
tapas por cima da roupa... Embora sua pele ardesse um pouco, a humilhação era quase insu-
portável. E Samara sabia que era exatamente aquilo que ele desejava. Humilhá-la.
Como se nada houvesse acontecido, Reese, usando um dedo, secou uma lágrima que
escapara ao controle dela, olhando-a quase com carinho. Mas foi um momento fugidio. No
instante seguinte, os olhos claros mostravam-se gelados novamente.
- Nunca ergui a mão para bater numa mulher... até agora, mas você faria até um santo
perder o autodomínio.
Ela limitou-se a fitá-lo, confusa e exasperada. Mal pôde acreditar quando o viu sorrir de
modo devastador.
- Não que eu seja santo, muito pelo contrário – disse baixinho.
- Não, não é. Se quer saber, faria inveja ao próprio diabo.
Ele riu, achando-a quase irresistível, com aquele olhar espantado, anuviado por lágrimas
duramente retidas. Queria beijá-la, abraçá-la, protegê-la de tudo. E não podia. Samara O’Neill
pertencia a outro homem. E respeitá-la tornara-se uma questão de honra, pois o capitão O’Neill
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era um homem decente.
- Pode levar o livro - disse finalmente. - Quando quiser outro, basta pedir a Davey,
entendeu?
Ela inclinou-se e apanhou o volume, detestando o tom severo que ele voltara a empregar.
Não podia adivinhar que era uma medida de autodefesa.
Segurando o livro de encontro ao peito, saiu correndo da cabine.
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CAPÍTULO 6
Para Samara, o tempo arrastava-se. O navio de Brendan fora restaurado o suficiente para
-se para reiniciar viagem.
O irmão ainda dormia quando ela, com o orgulho ferido, voltara para a cabine. Ficara
furiosa ao constatar que ele podia repousar tranqüilamente enquanto ela sofria humilhação nas
mãos de Reese Hampton.
Todavia não lhe contou nada quando ele acordou e a viu, o verdadeiro retrato da
inocência, sentada perto de uma escotilha, lendo sob a luz de um raio de sol. Brendan não
perguntou onde ela conseguira o livro, já acostumado com a habilidade misteriosa que todos os
O’Neill possuíam de encontrar livros nos lugares mais estranhos.
Saiu da cabine quase imediatamente para falar com seus oficiais, já retirados do porão, e
discutir os termos do trato feito com o capitão Hampton. Depois foi levado para o Samara para
falar com o resto da tripulação. Uma hora depois voltava ao Unicórnio, de cujo convés observou
as velas remendadas de seu amado barco serem içadas para que o navio navegasse sob o
comando de outro homem.
Reese, compreendendo seus sentimentos, deixou-o à vontade. O respeito inicial que
sentira por Brendan O’Neill, notando a ferocidade com que ele defendera seu navio, crescera
incessantemente durante os últimos dois dias, firmando-se naquela manhã, no incidente do
convés. A entrevista em sua cabine reforçara sua opinião. O capitão O’Neill agira como fora
necessário e com dignidade. Sem palavras ásperas e ameaças inúteis. Apenas um homem
corajoso agiria daquela forma, e coragem era uma qualidade que Reese prezava acima de tudo. A
admiração pelo capitão prisioneiro fora o fator preponderante em sua decisão de deixar Samara
ONeill em paz. Só lhe restava aprender a dominar o fervilhar do sangue cada vez que a via,
domar a fascinação que ela, com seu espírito vivaz, lhe inspirava. Sorriu inconscientemente ao
lembrar-se do rosto expressivo, sempre animado por alguma emoção.
Por fim juntou-se a Brendan O’Neill, perto da amurada, sentindo que um laço estranho de
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camaradagem os unia.
_É uma beleza - disse Brendan baixinho. - O Samara foi meu maior motivo de orgulho.
_Tem razão. É um belo navio.
_Eu mesmo o desenhei. Da próxima vez que projetar um barco porei mais velas. Para
maior rapidez.
_Mas então seria um navio de calado maior, o que o impediria de esconder-se nos rios e
nas águas rasas - considerou Reese.
_Como o rio onde o construí, não é? - perguntou Brendan, lançando-lhe um olhar
avaliador. - Suponho que fui espionado, não é verdade, capitão Hampton?
_Provavelmente - respondeu Reese, sem ofender-se.
_Admiro seus navios.
_Isso é evidente - replicou Brendan, analisando a semelhança de linhas dos dois barcos.
O Unicórnio era maior, apropriado para suportar mais velas e armamento, mas possuía o
mesmo casco esbelto, sem ornamentos, e os mesmos mastros altos e orgulhosos. Por causa do
tamanho, não entraria facilmente em pequenas enseadas, mas poderia navegar através de estreitos
apertados. Fora cuidadosamente projetado para a pirataria.
_Suponho que tenha desenhado o Unicórnio - Brendan prosseguiu.
_Como já disse, admiro seus navios. Receio ter copiado algumas idéias suas e de seus
conterrâneos.
Os dois olharam-se quase com estima, percebendo, espantados, que sob circunstâncias
diferentes poderiam ser amigos. De repente Reese afastou-se, entendendo a necessidade que
Brendan tinha de ficar sozinho.
Samara subira ao convés quando os dois acabavam de conversar. Ainda magoada com o
que se passara na cabine de Reese, manteve-se a distância, temendo que ele revelasse a Brendan
o que acontecera. Ficou a observar os dois homens, notando que conversavam com interesse e
que uma espécie de camaradagem transparecia no modo como se olharam. Encheu-se de
ressentimento. Não entendia como o irmão podia falar tanto com o inimigo, com o ladrão do
Samara, com o bruto que zombara dela e... lhe batera! Amaldiçoou todos os homens, insensíveis
e egoístas, e voltou para cabine, batendo a porta com violência.
Sua raiva era grande, mas a inquietação a superava. O cubículo sem atrativos era mais do
que podia suportar. Os o1hos magníficos encheram-se de lágrimas de frustração, enquanto ela
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resmungava contra a traição de Brendan. Ainda estava lá, raivosa, quando o irmão entrou. No
mesmo instante ele percebeu que a irmã encontrava-se em péssimo estado de espírito.
_Acho que precisa de um pouco de ar puro - sugeriu. - Se quiser, posso acompanhá-la.
_Já estive lá em cima, mas você estava ocupado demais com o inglês para me ver.
Brendan olhou-a com curiosidade. Suas reações pareciam prementes demais.
_Estranho como possa parecer, não consigo impedir-me apreciar o inglês, como você o
chama.
Samara olhou-o incrédula.
_Ele é um pirata, Brendan! Papai sempre diz que todos ingleses são piratas. Usurpadores
e canalhas.
_Também há piratas em nossa terra. Não se esqueça muitos de nossos navegantes também
assaltam navios.
_Isso é diferente - ela afirmou, sem convicção. - Além é o Samara que ele está roubando.
Como pode conversar com ele como se nada houvesse acontecido, Brendan?
A tristeza anuviou o rosto do irmão.
_Foi um risco que corri, Samara. Lamento ter sido logrado por Reese Hampton, assim
como lamento perder o navio, mas não o odeio por isso.
_Bem, se você já está se tornando anjo, eu não estou! E odeio Reese Hampton! Odeio
todos os ingleses! Esqueceu-se de que Scotty morreu? Que outros homens morreram?
Brendan sentou-se, desanimado. Como poderia explicar? Como dizer que todos a bordo
do Samara tinham avaliado os riscos e decidido que desejavam corrê-los? Lamentava a morte de
Scotty. O marinheiro trabalhara com ele durante vários anos e tornara-se seu amigo. Mas fora a
guerra que o matara, assim como tempestades matavam outros. Sentir-se culpado seria
insensatez, em ambos os casos. Desistiu de tentar convencê-la. A irmã, no estado emocional em
que se encontrava, não entenderia.
_Quer subir ao convés? - convidou, mudando de assunto. Ela queria e não queria.
Revoltava-se com a idéia de ver Reese, mas enlouqueceria se ficasse enclausurada na cabine.
_Está bem. Vamos.
Brendan levantou-se e ofereceu-lhe o braço.
_Não se esqueça de que somos casados - disse, numa tentativa de fazê-la sorrir. -
Devemos aparentar felicidade.
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Ela encarou-o amuada. Não estava com disposição para brincar.
_Poderíamos dizer a verdade a Hampton - o irmão sugeriu. - Aí você ficaria sozinha na
cabine e teria mais privacidade.
A sugestão soou aos ouvidos de Samara como uma aberração. Sem a presença de Brendan
para protegê-la estaria abandonada às loucuras que pudessem passar pela cabeça do inglês
arrogante. E, por amor à honestidade, devia reconhecer que estaria abandonada às próprias
loucuras. Ainda se sentia descontrolada só em pensar na beleza do capitão pirata.
_Não! Ele precisa continuar pensando que sou sua mulher.
O irmão olhou-a com estranheza mas nada comentou. Quando chegaram ao convés,
Samara prendeu a respiração ao deparar com a beleza do cenário. O sol descia para o horizonte e
o mar ostentava uma auréola de cores cambiantes que iam do coral ao alaranjado, que se
confundia com o céu de tom suave onde se amontoavam nuvens douradas.
Samara percorreu o convés com o olhar, procurando por Reese. Viu-o ao leme, notando as
mãos fortes pousadas sobre a madeira polida da roda. Os pés estavam nus e a camisa aberta até a
cintura expunha o peito poderoso, onde os músculos retesavam-se a cada movimento dos braços,
no trabalho de controlar o leme gigantesco.
Ele virou a cabeça em sua direção e seus olhos se encontraram. Os dele brilhavam, cheios
de vitalidade e exuberante orgulho. O senhor daquele território. Sorriu para ela, que continuou a
olhá-lo, procurando aparentar desdém. Na verdade, porém, admirava-o. Reese Hampton era como
o vento. Livre, perigoso e imprevisível.
Momentos depois, entregando o leme a Michael Simmons, juntou-se ao casal.
_Gostaria de saber se me honraria com sua presença no jantar, capitão O’Neill - disse
educadamente. - O senhor e sua esposa. Yancy, o médico de bordo, e Michael Simmons estarão
presentes também.
Samara aplicou um pontapé na perna do irmão, mas Brendan, ou não entendeu o sinal, ou
ignorou-o.
_Aceitamos, capitão Hampton.
_Sra. O’Neill?
_Sinto-me exausta - respondeu ela com afetação. - Principalmente depois dos tristes
eventos desta manhã.
_Sinto muito, senhora. Mandarei que lhe sirvam o jantar na cabine. - Olhou para Brendan.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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- Espero que ainda esteja disposto a juntar-se a nós, capitão.
Brendan olhou para o rosto furioso da irmã e para a expressão divertida de Reese
Hampton. Havia algo entre os dois e ele daria tudo para adivinhar o que era. Uma corrente de
energia, quase palpável, fluía de um para o outro, fazendo-o temer pela irmã.
_Aceito o convite, capitão - respondeu com menos cordialidade.
_Está bem, então. Meu camareiro, Davey, irá chamá-lo. Senhora, aceite minha simpatia.
Espero que seu mal-estar seja passageiro.
Desapareceu antes que Samara pudesse pensar numa resposta contundente e ela
descarregou sua frustração sobre o irmão.
_Como pode querer jantar com esse patife?
_Perdoe-me, querida, mas foi o que você fez ontem à noite. Samara tornou-se escarlate.
Não queria que a lembrassem da noite anterior. Ou do encontro daquela tarde com o
patife. Não queria que a lembrassem de que ele existia.
_Minha intenção era ajudar você.
_Talvez seja isso o que esteja querendo fazer também.
Ela ergueu os olhos para ele. O rosto de Brendan revelava preocupação e seus lábios
estavam apertados.
_Desculpe, Brendan. Sei que vivo pedindo desculpas e sempre torno a errar, mas estou
sendo sincera. Envergonho-me por deixá-lo preocupado e por causar-lhe aborrecimentos.
O irmão estudou-a demoradamente. Samara não era mais uma criança. A expressão dos
olhos cinzentos era atormentada, denunciando uma alma de mulher que começava a enredar-se
nos fios das emoções adultas. Percebera bem o ar deslumbrado com que observara Reese
Hampton como ficara corada quando ele se aproximara dos dois.
_Cuide-se bem, irmãzinha. Por favor. O capitão Hampton é um homem perigoso.
Ela ficou atônita com a capacidade de compreensão do irmão. Brendan, por sua vez,
entendeu também por que ela insistira em manter a farsa do casamento. Samara temia o
magnetismo de Reese Hampton e reconhecera sua fragilidade diante da atração que ele exercia
sobre ela.
O irmão de Reese sempre dissera que ele poderia enfeitiçar as estrelas do céu se assim o
desejasse. E, por alguma perversa razão, começava a desejar que aquilo fosse verdade.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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Quatro homens reuniam-se ao redor da mesa redonda de sua cabine: ele próprio, Brendan,
Yancy e Michael. Os dois últimos trocavam olhares intrigados, enquanto seu capitão tentava de
todas as maneiras descobrir coisas a respeito do prisioneiro transformado em hóspede... e sua
encantadora esposa.
Samara contara a Brendan tudo o que dissera a Reese sobre sua vida, deixando-o triste ao
relatar que declarara ser órfã e não ter irmãos.
_Mamãe e papai ficariam amargurados. E você, querida e fantasiosa irmã, poderia muito
bem escrever algumas novelas tolas como as que está acostumada a ler - comentara ele.
_São novelas muito boas. Se as lesse, talvez descobrisse que falta amor em sua vida e
decidisse escolher uma esposa.
Ele sorrira apaziguadoramente.
_Bem, parece que você já resolveu esse problema, não é? Não poderia desejar esposa
mais linda e inteligente.
Informado sobre a história improvisada, ele podia responder com segurança às várias
perguntas de Reese Hampton. Não ignorava que o capitão era esperto e que não perdia uma
mudança de expressão de seu rosto, nem uma nuance diferente de sua voz. Uma experiência
desconcertante para Brendan, que detestava mentir, especialmente para alguém que, mesmo com
relutância, começava a admirar.
_Para onde levava sua carga? - perguntou Reese. - A França não recebe navios
americanos.
Ninguém melhor que Brendan sabia daquilo. O único motivo pelo qual os Estados Unidos
haviam declarado guerra à Inglaterra, e não à França, era o embargo que a nação britânica exercia
sobre o trânsito marítimo americano. A França igualmente proibia o livre comércio com os
americanos. Apenas, a jovem nação, tendo conquistado recentemente sua liberdade, não podia
lutar com dois países poderosos ao mesmo tempo. Não havia motivo para esconder seu destino
pretendido.
_Mas era mesmo para a França que eu me dirigia. Lá existem os que não estão satisfeitos
com a política comercial do país.
Reese sorriu com cumplicidade.
_Então faz contrabando?
_Há vários nomes para o que eu faço – respondeu Brendan, dando de ombros. -
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Precisamos de mercados para o nosso índigo e para o algodão. A guerra entre a Inglaterra e a
França os deixaram bem reduzidos. Digamos que me dedico ao comércio clandestino.
_E o que traz de volta? Certamente não retorna com os porões vazios.
_Armas, é claro. Armas e munição.
Os dois homens sorriram e os companheiros de mesa apenas sacudiram as cabeças,
concordando.
Ao fim do excelente jantar, composto de peixe fresco assado, batatas amanteigadas e torta
de maçã, os homens compartilharam uma garrafa de fino conhaque francês.
- Quero agradecer a cortesia com que tem tratado minha esposa - disse Brendan de
repente. - Ela me contou o que tentou fazer e reconheço que você demonstrou louvável
tolerância, capitão Hampton.
Pensando na cena desenrolada no convés, naquela manhã, Yancy e Michael entreolharam-
se. Nenhum dos dois poderia chamar a atitude de Reese de tolerante e ambos condenavam,
intimamente, aquela ação desprezível, mas também não sabiam o que a causara.
_Como você disse - replicou Reese com displicência -, ela é muito jovem e impulsiva.
Faz tempo que são casados?
- Alguns meses. Acredito que ela ainda não tenha aprendido a me obedecer.
Mesmo mantendo expressão neutra, Brendan e Reese tiveram o mesmo pensamento.
Samara nunca aprenderia a obedecer a quem quer que fosse.
Brendan não podia deixar de perceber o interesse do capitão Hampton por sua irmã e
imaginou o belo
protocolo da corte do que ao leme de um navio e uma jovem e rebelde americana, de educação
democrática e caráter independente. Sorriu, dominado pela imagem fornecida por sua
imaginação. O romance seria uma repetição de A megera domada, de Shakespeare; com Reese
Hampton encarnando o autoritário Petruchio e Samara a maravilhosamente endiabrada
Kathanina.
O divertimento acabou quando ele pensou na juventude de Samara, uma menina inocente
demais, inexperiente demais para não passar de simples brinquedo passageiro nas mãos do vivido
capitão Hampton. Os mundos de onde vinham eram opostos, seus caminhos jamais poderiam
juntar-se num só. Com nova clareza, Brendan entendeu o receio da irmã e prometeu a si mesmo
que a defenderia de tudo. Mas que formariam um casal interessante, não restava a menor dúvida.
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Samara atirou o prato de mingau contra a parede. O alimento nada apetitoso chegara com
o bilhete irritante do capitão Reese Hampton e ela podia imaginar com que ar de desdém e
zombaria o escrevera:
Arrependera-se no mesmo instante em que rejeitara o convite para jantar com os homens,
mas seu orgulho a impedira de voltar atrás. No íntimo, porém, remoera-se com a idéia de que
perderia a oportunidade de participar de uma reunião animada e de ficar mais uma vez sob a in-
fluência da personalidade envolvente de Reese. Sua mente achava-se subjugada pela lembrança
do magnetismo fascinante dele e de suas maneiras perturbadoras, ora contundentes, ora
encantadoras. E estremecia sempre que pensava no beijo raivoso que ele lhe dera na noite
anterior.
Quando Davey chegou com o mingau acompanhado do bilhete insolente, as boas
recordações foram anuladas pela raiva. Reese era o mais irritante, condescendente, enfatuado e
egoísta patife que ela já tivera a infelicidade de encontrar. Movida pela fúria, atirou o prato contra
a parede, quebrando-o e espalhando o conteúdo visguento pelo chão. Não entendia como Brendan
podia ver alguma virtude no monstro arrogante. Que os homens fossem para o inferno. Todos
eles e sua idéia estranha de honra. Nada havia de honrado nos acontecimentos dos dias anteriores.
Não mais suportando o ambiente fechado da cabine, saiu e galgou a escada que levava ao
convés. Encontrou um lugar meio escondido e sentou-se, deixando que o vento lhe despenteasse
o cabelo enquanto pensativamente fitava o mar. Via as luzes do Samara a distância, enchendo-se
de tristeza ao pensar na perda que o irmão sofrera. Brendan amava o navio que ele próprio criara,
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
sozinho, sem nenhuma ajuda da família.
E Reese Hampton o roubara com espantosa facilidade. Assim como roubara uma parte
secreta da alma de Samara, um pedaço de sua vida que ela jamais recuperaria. Despertara em seu
corpo jovem emoções desconhecidas, um desejo de alcançar algo ignorado e maravilhoso, uma
consciência aterradora de sua fragilidade perante o fascínio masculino. Nunca se considerara
fraca, mas Reese provara que era vulnerável como cristal. Precisava ficar longe dele, mas re-
conhecia não possuir forças para tanto.
Como uma criança perdida, olhou para as estrelas, procurando uma, que ouvisse seu
desejo, sua prece silenciosa. Havia milhões de astros luminosos piscando no céu de veludo e
Samara, solitária e cheia de dúvidas, ergueu ao espaço seu desejo impossível. Sim, porque Reese
Hampton era o inimigo, um membro da nobreza britânica, defeito agravado por ele ser um
canalha, um pirata que prezava a própria liberdade acima de tudo, sem respeitar a dos outros.
Perturbada, fixou o olhar numa estrelinha azulada.
“Por favor, ajude-me a esquecê-lo.”
Ainda com os olhos postos no céu, sentiu a presença de Reese antes mesmo de vê-lo. Era
a mesma sensação percebida no momento que precede uma tempestade, e tudo parecia parar. O
vento silenciava e o pressentimento do perigo enchia a atmosfera. Apertou as mãos, tomada de
ansiedade, esperando que ele falasse, certa de que seria novamente agredida por palavras
sarcásticas e por aquele sorriso ironicamente frio. Incapaz de permanecer sentada, levantou-se,
preparada para o ataque. Mas ele permaneceu em silêncio, deixando-a inquieta e apreensiva.
Quando ele finalmente falou, não havia em sua voz nenhum traço da zombaria. Pelo
contrário, o tom quente e profundo da voz agradável surpreendeu-a, fazendo-a arrepiar-se.
- A noite está linda - declarou ele simplesmente. - Deus deve sorrir com alegria, quando
olha para o universo que criou.
Samara, que tentava olhar para qualquer lugar, menos para o rosto dele, encarou-o
espantada. Reese parecia sinceramente maravilhado com a beleza da noite. E falara em Deus.
Súbita suspeita abalou-a. Ele estava tentando surpreendê-la para deixá-la insegura. Uma nova
tática para desarmá-la e torná-la ridícula.
- Estava muito pensativa - continuou ele, gentil.
- Estava pedindo algo a uma estrela.
Colocara-se em posição defensiva, não podendo prever o que ele faria a seguir. Seu modo
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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de agir estava diferente e ela quase desejava vê-lo novamente provocativo. Ao menos saberia
defender-se. Mas que defesa poderia ter contra seu encanto? Não desejava, naquele momento,
entregar-se aos braços fortes e sentir os lábios dele nos seus?
Reese reconhecia que nunca vira uma criatura tão desejável e encantadora. A luz do luar
dançava nas mechas de cabelo negro, dando-lhes brilho prateado, e os olhos cinzentos,
desafiadores e ao mesmo tempo confusos, refletiam a cor do céu, espelhando-lhe os mistérios. Os
lábios ligeiramente separados e úmidos eram um convite quase irresistível e o rosto pensativo
mostrava feições da mais pura beleza. Como se estivesse hipnotizado, ergueu uma das mãos e
tomou um punhado dos cabelos escuros. Macios como seda, exalavam perfume suave e tentador.
Samara o estava enfeitiçando. Uma criatura da noite, doce sereia de olhos sedutores... que
pertencia a outro homem. Como seria na verdade? Inocente ou fingida? Possuía a sedução da
pureza ou da perfídia disfarçada? Aquilo tudo pouco importava. Inclinou-se lentamente, fazendo
seus lábios aproximarem-se dos dela, rendendo-se ao feitiço que o prendia, o atraía e anulava seu
desejo de pensar.
Samara sentia-se enredada na mesma atmosfera mágica. O luar derramava-se sobre ele,
fazendo brilhar os cabelos claros, acariciando o rosto bem esculpido. Mais que nunca, Reese
assemelhava-se a um ser fantástico, vindo de um reino mitológico onde ela desejava entrar.
Pensou em resistir, mas sua força de vontade se desfez sob a ação dominadora dos olhos
fulgurantes. Esqueceu-se de tudo, erguendo o rosto para oferecer os lábios.
As bocas encontraram-se, moldando-se como se houvessem sido destinadas àquele beijo
desde a eternidade. Samara sentiu-se tornada de vertigem e o mundo rodopiou fantasticamente.
Nenhum sonho a preparara para a deliciosa realidade daquele instante. Todos os seus sentidos
ganharam vida, levando-a a desejar mais ardor, maior contato. Ela ergueu os braços e passou-os
pelo pescoço dele, tomando mechas do cabelo loiro entre os dedos, entreabrindo os lábios para
melhor saborear a boca exigente que pressionava a sua.
De repente, como se despertasse, puxou a cabeça para trás, interrompendo o beijo e
encarando-o assustada. Descobrira que estava perdida. Pertencia a Reese e sempre lhe perten-
ceria. Ele acabara de tomar toda a sua alma. Porém, com dolorosa clareza, percebeu que nunca
poderia ser dele. Seus mundos eram diferentes demais. Sempre fitando-o com. olhos magoados,
recuou lentamente. Então, virou-se e correu.
Reese permaneceu no lugar, olhando para o céu. Não sabia dizer o que acontecera. Sentira
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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um momento de perfeita alegria, de maravilhoso encanto, mas tudo acabara, deixando-o com um
enorme vazio no peito. Paraíso e inferno. Aprendeu que a distância entre os dois podia ser muito
pequena.
Quando Brendan, preparado para enfrentar Samara, que devia estar amuada e zangada,
entrou na cabine, encontrou apenas o prato quebrado e mingau espalhado. Atravessou o aposento
e um pedaço de papel rangeu sob o tacão de sua bota. Abaixou-se para apanhá-lo e leu o
conteúdo rapidamente. Sorriu. Ali estava a explicação para a explosão de fúria de Samara. As
palavras de Reese haviam funcionado como um fósforo aceso perto da pólvora.
Pensou em subir ao convés e procurar a irmã, mas desistiu. O mau humor de Samara na
certa degenerara para a raiva frenética e ele não estava com disposição para aturá-la. Não havia
perigo em dar um passeio pelo convés, pois ela não corria o risco de encontrar-se com Reese.
Brendan o deixara conversando com o médico e o contramestre e tivera a impressão de que os
três tinham muito a discutir.
Brendan sabia que Samara era estragada de mimo. Nascera já tarde na vida dos pais, o
último filho, e sua mãe passara muito mal no parto. Depois de quatro varões, apenas a mãe
acreditava que aquela criança seria a tão esperada filha. Ele, com catorze anos na época, jamais se
esqueceria da noite do nascimento da irmã. Foram horas de tensão, pontilhadas pelos gritos da
parturiente. O pai dava demonstração de temer uma fatalidade que não poderia suportar e
Brendan, apavorado, procurava confortar os irmãos mais jovens, rezando para que tudo acabasse
bem. E acabara. Samara era pequenina e perfeita e tomara conta do coração de todos, tornando-se
especialmente querida por Brendan, que passara a adorá-la.
Os pais também nutriam verdadeira adoração pela filha.
Amavam todos os filhos, dando-lhes a certeza de serem queridos e reconhecendo sua
individualidade, dando-lhes liberdade para escolher seus caminhos na vida, mas Samara
representava algo precioso para eles. E para os irmãos. Possuía uma vitalidade estonteante e uma
inata inclinação para travessuras, apenas superada por sua natural bondade que a todos encantava.
Era birrenta e teimosa, ponderada e doce. Irresistível. Sentia uma ternura imensa por animais e
crianças e sempre estava pronta para interferir a favor de qualquer empregado que cometesse um
erro.
Os quatro irmãos brincavam com ela, mas a Brendan cabia a responsabilidade de cuidar
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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da irmã, por ser o mais velho e ajuizado. Admirava o espírito independente de Samara,
incentivava sua curiosidade e aplaudia sua personalidade franca e decidida. Todavia a mimava,
superprotegendo-a, tornando-a incapaz de prever as conseqüências de seus atos impulsivos. E
Samara encontrara alguém que não a compreenderia, não toleraria seu modo de agir. Alguém
igualmente teimoso e guiado por uma determinação férrea.
la não saberia lidar com Reese e acabaria por aprender ~ amargas lições. Amargas e úteis.
Os longos dias a bordo decididamente não seriam monótonos.
Brendan acabou por resolver que devia subir ao convés em busca de Samara, mas naquele
instante ela entrou, afogueada e com os cabelos despenteados.
_O que aconteceu? - perguntou o irmão. - Hampton...
_Não aconteceu nada - mentiu ela com voz trêmula, correndo a procurar refúgio nos
braços de Brendan.
_Nada? - duvidou ele, sentindo-a estremecer.
- O que acontece quando uma pessoa se apaixona, Bren? O que ela sente?
Ele afastou-a gentilmente e estudou o rosto ansioso. Não podia responder àquela pergunta,
porque nunca ficara apaixonado. Passara por breves entusiasmos, mas não conhecera o amor
avassalador que os pais experimentavam um pelo outro, um sentimento raro em sua opinião.
Sempre desejara conhecer a paixão consumidora que o ligaria a uma mulher, mas essa felicidade
parecia fugir dele com teimosia perversa.
- Acha que está apaixonada por Hampton? - indagou, com medo da resposta, intimamente
certo de que Reese não se deixaria prender pelos encantos de mulher alguma.
Os olhos cinzentos, onde as Lágrimas brilhavam, expressavam tristeza e confusão.
- Eu... eu não sei... nao... posso...
- O que aconteceu no convés, Samara?
- Ele... me beijou. E eu queria que ele me beijasse, Bren. Não foi contra a minha vontade.
- Quer contar a ele que não somos casados?
- Não! Sei que nada poderá haver entre nós. Pertencemos a mundos totalmente diferentes.
Brendan praguejou baixinho contra a ousadia de Reese Hampton, que não hesitava em
tomar liberdades com uma mulher que julgava casada.
- Vá dormir, irmãzinha. Darei um passeio enquanto você tira o vestido.
Abriu a porta, lançou um olhar para o rosto desanimado de Samara e logo em seguida
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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caminhava na direção da escada.
Reese permanecera no convés, esperando que o vento cada vez mais frio apagasse de sua
mente os pensamentos tumultuados. Desejava desesperadamente algo que não podia ter. Samara
O’Neill o enfeitiçara. Não podia haver outra explicação. Desprezava-se pela fraqueza que o
levara a tocar na mulher de outro homem, mas não tivera nenhuma defesa contra o rosto lindo
banhado de luar, contra o brilho de desejo que distinguira nos grandes olhos cinzentos.
A forma como Samara correspondera o espantara e sua fuga o frustrara, magoando-o. Que
sentimentos abrigavam-se no coração de Samara, afinal? Era uma esposa fiel, apanhada na
mesma rede de magia irresistível que o envolvera? Tudo se confundia em sua mente e ele sentiu-
se perdido.
Sempre julgara o casamento uma armadilha. As pessoas de sua classe geralmente
casavam-se por conveniência, para unir duas famílias tradicionais ou para consolidar fortunas ou
títulos. Acontecera aquilo com o irmão. O casamento com lady Leigh Albarry fora planejado
desde que os dois eram crianças e resultara numa união feliz, mas de modo geral acontecia o
contrário. Da última vez que estivera em Beddingfield, Reese constatara que o irmão e a cunhada
viviam bem e que adoravam os dois filhos. Mas com ele seria diferente. Nunca permitiria que
alguém lhe dissesse com quem deveria casar-se, se resolvesse tomar uma esposa um dia, o que
era bastante duvidoso. A idéia de prender-se a um lar e a uma mulher exigente não o atraía de
forma alguma.
A lembrança de Samara insinuou-se em sua mente. Adorável e desafiadora, jamais seria
cansativa ou insípida.
Naquele instante ouviu passos no convés. Virou-se a tempo de ver um punho fechado
voando na direção de seu rosto. Procurou abaixai-se, mas era tarde. O soco atingiu-o no queixo,
fazendo-o perder o equilíbrio e cair. Não fora um golpe forte demais, mas pegara-o de surpresa.
Brendan O’Neíll acertara-o com a mão esquerda, pois o braço direito estava ferido, não
conseguindo a força e a firmeza necessárias para um soco muito violento.
Reese esfregou o queixo e olhou para o americano com um sorriso incerto. Sacudiu a
cabeça num gesto negativo quando diversos de seus homens apareceram correndo para segurar o
agressor. Embora contra a vontade, os tripulantes dispersaram-se, ao ver que Reese não os queria
por perto.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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- Não gostaria de enfrentá-lo quando estiver curado - disse Reese, levantando-se.
Brendan continuou a encará-lo.
- Deu-me sua palavra...
_Certo - concordou Reese com uma careta.
Samara com certeza contara ao marido a respeito do beijo ou Brendan suspeitara de algo
ao notar sua perturbação. Lamentou haver perdido o controle e cedido ao encanto dela,
pois gostava do capitão O’Neill e não lhe agradava traí-lo. Envergonhado, virou as costas
ao agressor e segurou-se ao varão que corria ao Longo da amurada.
_Sua esposa estará segura no meu navio - declarou por fim. - Todavia, sugiro que a
acompanhe nos passeios pelo convés. Por causa dos homens... de todos nós.
Brendan percebeu que as palavras escondiam um pedido de desculpas e permitiu-se
relaxar. Com seu marcante senso de justiça, reconhecia que grande parte da culpa cabia a Samara.
Ela ainda não estava consciente de sua beleza e do poder de seu encanto e Brendan bem podia
imaginar o impacto que. causara sobre Reese. Também adivinhava que ela, mesmo sem querer,
provocara o beijo, criando o impasse. Nada seria tão grave se não houvessem deixado Reese acre-
ditar que ele e Samara eram casados. Sentiu-se tentado a contar a verdade, mas o rosto da irmã,
ansioso e infeliz, apareceu em sua mente e ele receou que a revelação da verdade pudesse piorar a
situação.
Só podia observar e aguardar. Com um gesto formal de cabeça, deixou o convés.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
CAPÍTULO 7
Nos dias seguintes, Samara aborreceu-se com a rotina imutável das horas. Brendan
estabelecera regras severas a respeito de várias coisas e, pela primeira vez, ela resolvera obedecer
sem discutir, reconhecendo que ele tinha razão. Sua impulsividade já criara problemas sérios e
ela acabara sentindo-se infeliz, perturbada e insegura.
Uma das regras proibia que ela passeasse pelo navio sozinha. Só podia sair da cabine em
companhia de Brendan ou de um de seus oficiais. A única exceção era Yancy, o ~ médico, que se
tornara seu amigo. Certo dia acompanhara Brendan à enfermaria para visitar alguns tripulantes
feridos do Samara e descobrira que poderia ser útil. Yancy encontrava-se assoberbado de
trabalho, cuidando dos homens dos dois navios, e agradecera a oferta de Samara, que declarara
estar disposta a ajudá-lo.
Como qualquer esposa ou filha de fazendeiro, ela possuía noções rudimentares de
medicina e não se sentia mal à vista de sangue ou ferimentos. Depois de certificar-se disso,
Yancy permitira que ela fizesse curativos, alimentasse os impossibilitados de comer sozinhos, ou
simplesmente tentasse animar os mais gravemente feridos. Embora ela própria não estivesse
muito contente, sempre conseguia sorrir. E um sorriso, na opinião do médico, representava
remédio valioso.
Yancy era um enigma. A começar pelo nome, que Samara não saberia dizer se era apelido
ou sobrenome. Um homem taciturno, raramente sorria ou fazia elogios, mas dedicava-se
completamente aos doentes. Com eles, tornava-se gentil, ao passo que se mostrava irascível com
Reese e até mesmo com o bem-humorado Michael Simmons. Samara apegara-se ao médico,
dedicando-lhe afeição. Perto dele, sentia-se útil e madura.
Trabalhar na enfermaria a impedia de pensar demais em Reese. Além das tarefas junto aos
pacientes, ocupava-se em tentar adivinhar o passado de Yancy e a estudar sua estranha
personalidade. O médico não falava sobre si mesmo e as conversas limitavam-se a comentários
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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sobre acontecimentos rotineiros. Contudo, nada escapava aos olhos perspicazes de Yancy, que a
estudavam com expressão pensativa.
Samara não estava certa de que sua presença podia ajudar os pacientes mais desanimados
ou desesperados, mas procurava fazer o melhor que podia, usando a mesma teimosia que aplicava
a todas as situações. Um dos marinheiros da tripulação de Reese, um jovem chamado Rob,
perdem uma das pernas no combate e seu estado de ânimo oferecia um enorme desafio à
dedicação de Samara. Ela costumava sentar-se ao lado dele e ouvi-lo falar da namorada,
procurando persuadi-lo de que a deficiência fisica não faria diferença se a moça o amasse
verdadeiramente. Não se cansava de repetir que não se incomodaria com aquilo se fosse a
namorada em questão. O rapaz mostrava-se desejoso de acreditar naquilo, mas não conseguia,
dominado por ondas de dor e pela impressão de que o membro amputado permanecia no lugar,
latejando horrivelmente. Yancy explicava que a sensação era normal, mas que desapareceria com
o tempo.
Quando a dor se tornava insuportável, o rapaz chorava e Samara apertava-lhe a mão,
desviando o olhar do rosto contorcido pelo sofrimento.
Uma tarde, achava-se ao lado do leito de Rob, com a mão dele entre as suas, quando o
rapaz adormeceu. Não quis correr o risco de despertá-lo e continuou no Lugar, inclinada sobre
ele, olhando-o com extrema compaixão. Sentiu que alguém lhe tocava o ombro e olhou para
cima, encontrando o olhar sério e penalizado de Reese.
Num gesto quase terno, ele desenlaçou os dedos dela dos de Rob e sem uma palavra
guiou-a para fora da enfermaria e para o convés. Lá chegando, soltou-a e fitou o mar.
- Yancy me disse que você tem feito muito por Rob e pelos outros feridos. Obrigado.
- O que acontecerá a Rob? Como ele viverá, sem uma perna? - perguntou Samara com
voz embargada.
- Receberá um bom dinheiro por esta viagem e já fez várias outras. Terá o bastante para
comprar uma casinha e viver confortavelmente pelo resto da vida.
- Confortavelmente? Mutilado como ficou?
- Bem, talvez não, mas farei o que puder por ele.
- Poderá devolver-lhe a perna? - ela atacou. - Por que os homens gostam tanto da guerra?
Por que precisam matar, mutilar e... - Interrompeu-se para não começar a chorar.
A paixão pela guerra não era uma característica apenas de homens como Reese Hampton,
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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ela reconhecia. Seu pai e seus irmãos viviam ansiosos para participar, de um modo ou de outro,
de conflitos. Até o combate entre o Unicórnio e o Samara ela não compreendera bem o horror da
guerra, ouvindo relatos de batalhas através dos quais não podia perceber toda a crueldade. Depois
vira Scotty, Rob, sentira o cheiro de sangue e ouvira os gritos de agonia. E Brendan saíra ferido,
não morrendo por uma questão de sorte. Não, nada havia de heróico na guerra.
Reese percebeu que ela se debatia em pensamentos tristes, mas nada podia dizer.
Admirava-a pela dedicação que demonstrava no cuidado dos feridos, não fazendo diferença entre
americanos e ingleses. Mantivera-se a distância, como prometera a si mesmo, mas Yancy
contava-lhe tudo o que se passava na enfermaria, frisando, com irritante insistência, que Samara
se revelara uma enfermeira maravilhosa. Momentos antes, ao passar pela porta da enfermaria,
vira-a com ar tão infeliz que resolvera tirá-la um pouco do ambiente opressivo. Mas não tentaria
confortá-la. Precisava evitar qualquer contato mais íntimo.
Ela estava diferente, em nada lembrando a mulher vibrante e rebelde que ele conhecera ao
capturar o Samara. Não sabia qual comportamento o atraía mais, intrigando-o. Conhecera muitas
mulheres, algumas até mais belas que Samara, mas nenhuma com aquela beleza que não
dependia apenas do rosto delicado e do corpo harmonioso. Samara era cheia de vida. Inteligente,
generosa e impulsionada por uma coragem admirável. Apresentava facetas diferentes e todas
eram encantadoras. Um mistério que o enfeitiçava.
Samara olhou-o, esperando por uma resposta que ele não podia dar. Como explicaria a
exaltação que o tomava antes de um combate, durante uma luta, levando-o a desejar deses-
peradamente vencer o adversário? Como revelar que a proximidade da morte tornava cada
momento mais precioso e excitante? Não podia dizer-lhe que se destacava dos outros por sua
habilidade de guerreiro. Que pertencia ao mar e à aventura, como nunca conseguira pertencer ao
lugar onde nascera.
Beddingfield. Jamais cobiçara a posse da propriedade, mas não podia negar que invejara o
irmão por ser o centro das atenções do pai. Avery fora preparado, desde a mais tenra infância,
para herdar e dirigir os domínios paternos. Assim, enquanto o irmão era mantido em colégios de
elite, estudando, preparando-se para o futuro, Reese corria pelos campos, livre e imprudente,
criando problemas que suscitavam a ira do pai. E seu comportamento não mudara nem mesmo
quando fora para a Universidade de Oxford. Embora estudasse com afinco, dominado pelo desejo
de conhecimento, dedicara-se também à arte da sedução e ao jogo de cartas, conseguindo, de
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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alguma maneira, conciliar as três atividades com sucesso invejável.
O pai morrera logo depois que ele terminara Oxford e Avery herdara o título e as terras,
enquanto Reese recebia sua parte da herança em dinheiro. Talvez por uma espécie de vingança
contra o pai, que parecera amar apenas o gêmeo mais velho, Reese não perdera tempo em
dilapidar a herança, para grande espanto do irmão. Dedicara-se às conquistas, ao jogo e à bebida,
angariando a reputação de ser um dos mais imprudentes e encantadores libertinos de Londres. Já
estava quase sem dinheiro, ao encontrar-se com o capitão Amos Kendrick e tornar-se seu amigo.
Jogavam juntos freqüentemente e um dia fizeram uma aposta inusitada. Amos, um americano que
enriquecera no contrabando, pretendia passar para a profissão, ligeiramente mais respeitável, de
corsário. Precisava da influência de Reese para conseguir licença para a navegação e da presença
dele no navio para reforçar a aparência de legalidade da aventura. E a aposta foi feita nos
seguintes termos: se Amos ganhasse, Reese o acompanharia, e se perdesse, pagaria mil libras.
Reese perdera.
A princípio revoltado e furioso, Reese acabara por descobrir sua verdadeira vocação. O
mar o desafiava e a vida de marinheiro tornara-se tão fácil quanto respirar. E seu talento natural
para a liderança surgira. Possuía autoconfiança e magnetismo, qualidades essenciais num líder,
assim como senso de justiça e imparcialidade. Ao morrer num combate, dois anos depois, Amos
deixara-lhe o navio e nos dez anos seguintes Reese fora capitão mercante, contrabandista e
corsário. Ou pirata, como os inimigos preferiam dizer. Continuara a ganhar fortunas e perdê-las
no jogo e com mulheres. Prezava apenas a liberdade, não dando importância ao dinheiro.
Um dia descobrira que Avery e Beddingfield estavam em situação difícil. A partir de
então, a maior parte do que ganhava ia para as mãos do irmão. Quando o Maryanne ficara
seriamente avariado numa batalha, ele desenhara o Unicórnio e o mandara construir, fiscalizando
pessoalmente todos os detalhes da construção.
Sua relativa falta de dinheiro em nada desencorajara as mulheres, que continuaram a tecer
armadilhas para obrigá-lo a casar-se. Ele safava-se de todas, sentindo que ficava cada vez mais
cético a respeito da capacidade de lealdade e honestidade do sexo oposto. Contudo, continuava a
deliciar-se com a companhia feminina, preferindo as mulheres loiras e com certa dose de
sofisticação. De modo que ficara espantado ao constatar que se deixara fascinar por uma
jovenzinha morena e inexperiente que enchera sua bota de vinho e tentara desacordá-lo com uma
pancada na cabeça.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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Interrompendo as reflexões, olhou para Samara e não resistiu ao impulso de tomar uma
mecha dos cabelos negros entre os dedos, sentindo-lhe a sedutora maciez. Os olhos cinzentos
procuraram os dele, repletos de indagações mudas, orvalhados de lágrimas e estabelecendo a
corrente de energia que sempre surgia quando os dois se olhavam.
- Por que... - ela voltou a insistir, envolvendo-o com sua voz musical - por que você gosta
de destruir?
Havia respostas para aquela pergunta, mas respondê-la seria desvendar a alma e ele não
podia fazer tal coisa, principalmente com Samara O’Neill, que já roubara uma parte de seu
íntimo.
Simplesmente sorriu, forçando-se a parecer alegre.
_Porque, naturalmente, sou um pirata canalha que gosta de viver bem, custe o que custar.
E agora, penso que deve voltar para a companhia de seu marido. Já o avisei para não deixá-la
andar sozinha pelo navio, mas aparentemente ele não tem ciúme.
Samara foi tornada de fúria. Era sempre assim. Quando pensava que ia descobrir algo
naquele homem que a faria confiar nele, ouvia sarcasmos e zombarias.
_Eu estava com Yancy, e meu marido o considera um homem honrado. Foi você quem
me tirou da enfermaria. Vá para o inferno com sua maldita arrogância, Reese Hampton.
Ela virou-se e começou a andar, muito ereta e segura de si. Reese observou-a afastar-se,
sabendo que a magoara. Irritado consigo mesmo, suspirou.
Era impossível para Samara evitar encontrar-se com Reese. Ele continuava a convidar
Brendan e a ela para jantar em sua cabine, com Yancy, Michael e às vezes outros oficiais. E ela
acompanhava o irmão, não desejando dar a Reese o prazer de sua recusa. As refeições decorriam
sempre no mesmo clima horrível, pelo menos em sua opinião. Reese esbanjava encanto,
dominando a conversa, regalando os convidados com histórias a respeito de portos distantes e
exóticos. Brendan mostrava-se sempre quieto e reticente, em nada lembrando o homem de
personalidade efervescente que realmente era. Yancy e Michael normalmente se mantinham
calados, limitando-se a olhar um para o outro de vez em quando, traindo o espanto que os tomava
em certos pontos das narrativas. Samara mal comia, tolhida pela presença de Reese, que não
perdia ocasião de fitá-la com um sorriso cínico.
Ele a tratava com gentileza e respeito exagerados, piores que seu sarcasmo sem disfarces.
Olhava-o, às vezes, ficando chocada com a frieza que via nos olhos verdes. Para completar sua
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infelicidade, tinha consciência de que Yancy lia seus mais íntimos pensamentos, percebendo as
emoções em que se debatia. Muitas vezes, durante a refeição, o médico olhava para ela de testa
franzida e ar preocupado.
A idade de Yancy era um mistério, mas Samara concluíra que ele devia estar entre os
quarenta e os cinqüenta anos. O cabelo castanho-claro mostrava fios grisalhos e o rosto ostentava
linhas ao redor da boca e dos olhos, mas o andar era rápido e vivo. Os olhos quase negros podiam
exprimir compreensão, tolerância ou impaciência, mas havia sempre um traço de tristeza
atenuando qualquer outra emoção.
Ele e Reese mantinham um relacionamento bastante incomum que transcendia as relações
de trabalho. Discutiam várias vezes e Yancy não demonstrava o respeito quase amedrontado que
um tripulante geralmente dedicava ao capitão. Todavia, seria impossível negar a afeição que os
ligava.
Depois do jantar, ela e Brendan davam um passeio pelo convés e ele permanecia calado,
perdido em pensamentos.
Samara sabia que a inatividade forçada o estava enervando. Na verdade, a situação
tornava-se opressiva também para ela, que vivia temendo um encontro inesperado com Reese.
Quando o via de repente, mal podia controlar os arrepios, o rubor que lhe inundava as faces ou as
batidas alucinadas do coração. E de nada adiantava ficar repetindo que dentro de alguns dias
apenas tornariam caminhos diferentes e que ela não o tornaria a ver.
No sexto dia a rotina foi perturbada.
Samara ajudava Yancy quando ouviu o grito:
_Vela à vista!
Minutos depois, Reese entrou na enfermaria e rispídamente ordenou a ela que o seguisse
até sua cabine. Depois de um rápido olhar ao seu rosto tenso, ela o acompanhou sem nada
perguntar. Michael localizara Brendan e os dois também se encontravam na cabine do capitão.
_É uma fragata britânica - explicou Reese, sem preâmbulos. - Querem vistoriar o
Unicórnio.
Samara viu a tensão tomar conta de Brendan. Sua tripulação estava sujeita à prisão e os
membros de nacionalidade britânica poderiam até ser condenados à morte. Brendan olhou para
Reese, que entendeu sua preocupação.
_Torno a repetir que sua tripulação será protegida. Pode não acreditar, mas costumo
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honrar minha palavra. - Dirigiu-se a Michael: - Mande os tripulantes emprestarem roupas aos
americanos. Qualquer oficial inglês, por mais estúpido que seja, saberá que os homens do capitão
O’Neill são americanos, vestidos daquela maneira. E você - tornou a olhar para Brendan - será
um simples marinheiro que ninguém interrogará. Bastará abrir a boca para que se traia.
_O que faremos com a sra... O’Neill? - Quis saber Michael. - Fingirá ser a sra. Hampton.
Ninguém, a não ser o capitão, poderia levar a esposa numa viagem. Nossos visitantes ficarão
bastante surpreendidos ao ver uma mulher num vaso de guerra.
_Como vai explicar uma tripulação tão grande? - preocupou-se Brendan.
_Terei alguma dificuldade em ser convincente, admito. Porém pretendo dizer, mesmo
ofendendo a modéstia, que pretendo capturar vários navios americanos, por isso trouxe excesso
de tripulação.
Brendan fez uma careta inconsciente, enquanto Reese começava a despejar ordens. Ao
capitão americano foi ordenado que conversasse com sua tripulação, explicando o que ocorria e
pedindo aos homens que envergassem trajes ingleses. Samara recebeu ordens de levar seus
poucos pertences à cabine do capitão e espalhá-los de forma negligente.
_Quero que tenha a melhor aparência possível, sra. O’Neill - declarou Reese. - Depois de
se arrumar, reuna-se a mim, no convés. Nós os receberemos juntos. Entendo que seu marido não
se importará por eu toma-la dele durante algum tempo, pois, dadas as circunstâncias...
Brendan encarou-o por um instante, antes de seguir a irmã para fora da cabine.
_Está se arriscando. Se descobrirem que esconde americanos a bordo, poderá ser acusado
de traição. E sua tripulação? Nenhum dos homens falará?
_Farão o que eu mandar. E duvido que algum desses oficiais de segunda categoria que
virão a bordo se atreverão a pôr em dúvida minha lealdade ao rei ou a validade de meus
documentos.
_Por que está fazendo isto? - persistiu Brendan.
_Não temos tempo para ficar discutindo meus motivos, O’Neill.
_Sim, senhor - respondeu o americano, com um ligeiro sorriso, antes de sair.
A tripulação do Unicórnio demorou a responder aos sinais da fragata, ocupada em descer
as velas e preparar tudo para a abordagem. Brendan e seus homens trabalhavam no convés,
quando uma comitiva de oito oficiais, liderada por um jovem tenente, subiu a bordo. Os militares
percorreram o convés com olhares suspeitosos e finalmente fixaram sua atenção no capitão, alto e
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
imponente, e na linda mulher ao seu lado.
_O capitão Smythe envia suas saudações, capitão Hampton - comunicou o tenente. -
Temos ouvido falar do Unicórnio.
Reese percebeu que Samara ficara tensa e acalmou-a colocando a mão no seu ombro.
_Por favor, cumprimente o capitão Smythe em meu nome. E agora, em que poderei servi-
lo?
_Tenho ordens para verificar seus documentos, senhor. O capitão Smythe notou que
capturaram um navio americano - explicou o inglês, apontando para o Samara, também parado a
alguma distância - e sugere que o livremos dos prisioneiros.
Reese curvou-se ligeiramente, num gesto cortês.
_Fico muito grato, mas não tenho prisioneiros. Tomei o barco americano perto da costa da
Carolina e fiz a tripulação desembarcar e ir para praia. Não tinha lugar, nem disposição para
aturá-los. Como pode ver, estamos levando um número extra de tripulantes, esperando aprisionar
mais navios.
_É muito auto-confiante, capitão - observou o jovem oficial. Reese sorriu polido, sentindo
que Samara voltava a inquietar-se, talvez irritada pelo modo como falavam dos navios de seus
compatriotas. Não resistiu ao impulso de provocá-la.
_Os americanos são presa fácil - disse com desdém.
O tenente concordou com um sorriso de mofa e Reese pensou que deixaria de sorrir
quando se defrontasse com um navio americano. Teria uma surpresa.
_O capitão Smythe ficará desapontado - continuou o tenente. - Estamos com falta de
homens e ele esperava poder ficar com alguns de seus prisioneiros. Sempre há irlandeses e
escoceses nos navios americanos.
_Lamento. Terei isso em mente, no futuro. No momento, porém, gostaria de diminuir o
desapontamento de seu capitão, oferecendo-lhe algumas garrafas de vinho muito especial, usado
por nós só em ocasiões importantes.
Samara sufocou um risinho, já esquecida da raiva. Reese possuía um humor irônico
incorrigível.
_Minha esposa - continuou ele - ficará feliz em procurar pessoalmente algumas garrafas.
E muito sensível a respeito de vinho e sabe reconhecer o que há de melhor.
Ela mordeu os lábios para não rir e depois, com um sorriso, olhou para Reese, perdoando
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os comentários anteriores.
_Ah, meu querido esposo, você é a fonte da minha inspiração.
Reese também sorriu, admirando-lhe a presença de espírito. Faziam uma brincadeira
perigosa e ela portava-se com a coragem que a caracterizava, deliciosamente desafiadora e
audaciosa.
_Vá, então, minha querida. Davey a ajudará. Ela percebeu imediatamente a razão do
último comentário. Não sabia onde guardavam o vinho e nada entendia de tipos ou safras. Devia
procurar Davey. Afastou-se do grupo reunido no convés, deixando o tenente a segui-la com os
olhos, cheio de admiração.
_Sua esposa é muito bonita, senhor - disse, em elogio. - E me admiro por ter tido a
coragem de trazê-la numa viagem tão perigosa.
_Minha mulher é teimosa. Além disso, somos recém-casados e acho muito difícil negar-
lhe qualquer coisa.
_Entendo perfeitamente - respondeu o oficial, com um sorriso cúmplice.
_Se quiser me acompanhar, tenente, apresentarei meus documentos. Gostaria de
prosseguir viagem enquanto o vento me é favorável.
_É claro, capitão.
Na cabine de Reese, o tenente não pôde deixar de notar os artigos femininos espalhados.
Aceitou um copo de vinho e mal olhou para os papéis que pedira para ver. Em dado momento
Davey entrou, carregando cinco garrafas de vinho que submeteu à apreciação de Reese.
_Minha esposa, mais uma vez, aceitou na escolha, tenente - declarou Reese, satisfeito. -
Seu capitão vai gostar do presente.
_Tenho certeza de que ficará muito grato.
Quase sem que o tenente percebesse, Reese dirigiu-o para a porta, conversando
amigavelmente.
- Quem fica grato sou eu, tenente, por suas boas maneiras e pela rapidez com que fez a
inspeção. Meu irmão, o conde de Beddingfield, também agradecerá, quando souber. Ele tem
amigos íntimos no almirantado, como sabe.
- Não... eu não sabia - gaguejou o homem, aturdido e já sem nenhum desejo de continuar
a inspeção.
- Leve meus cumprimentos ao capitão. Ele tem oficiais excelentes - prosseguiu Reese, já
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empurrando o tenente para a escada do navio.
Ficou olhando enquanto o oficial descia para o escaler, onde os companheiros já o
esperavam, e acompanhou a manobra de fazer descer as garrafas de vinho, uma a uma. Assim que
o pequeno barco tomou a direção da fragata, Reese correu pelo convés, tomado de energia.
- Vamos desaparecer daqui - comunicou a Michael. - Não quero dar tempo para que o
capitão possa pensar.
As duas tripulações mal podiam esconder o júbilo pelo feliz desfecho. Animadas,
lançaram-se ao trabalho e logo depois os dois navios cortavam as águas, ostentando as velas
bojudas de vento.
Uma nova harmonia desceu sobre o Unicórnio. Os homens de Brendan, que permaneciam
calados e desgostosos desde a captura, ficaram perplexos e gratos com o rumo dos acon-
tecimentos. Reese nada tinha a ganhar, mas poderia perder muito, protegendo os americanos, de
modo que se tornava difícil entender por que se arriscara tanto. Todos conheciam bem a
penalidade para casos de traição. Decidiram não fazer perguntas irrespondíveis, resolvendo
reunir-se aos ingleses em seus jogos e brincadeiras. As amizades, alimentadas pelo perigo
compartilhado e pelo interesse comum, floresceram.
Brendan considerava Reese um perfeito enigma, de natureza mutável como a do oceano,
sempre mostrando uma característica nova, mas tão rapidamente, que não havia tempo de estudá-
la. Parecia agir de forma totalmente livre, sem ater-se às convenções e códigos tradicionais de
conduta. E nunca como naquele dia, revelara sua capacidade de liderança, fazendo-se obedecer
por amigos e inimigos. Admirado com tudo o que acontecera, Brendan saiu à procura de Reese,
pretendendo agradecer-lhe pela proteção.
Encontrou-o na enfermaria, conversando em voz baixa com Yancy. Ouviu trechos de
conversa, inclusive uma violenta explosão por parte do médico.
- Malditos... desgraçados sanguinários.., arrogantes do demônio...
Brendan afastou-se, percebendo que se tratava de um assunto particular, e ficou esperando
que os dois terminassem de falar. Quando finalmente Reese passou por ele, no corredor,
mostrava o rosto fechado e por pouco não parava. Brendan chamou-o.
- Se ainda quer falar sobre o que se passou, não o faça - avisou Reese. - Já lhe disse que
não tenho nenhum interesse em engrossar as fileiras de prisioneiros do meu país.
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- De toda forma, meus homens e eu ficamos muito gratos.
- Não precisa agradecer, capitão O’Neill. Tive meus motivos para agir daquela maneira. -
Menos tenso, Reese sorriu largamente. - Sua esposa é muito inteligente. Entende tudo depressa e
deixou o pobre tenente apalermado. Se ele estivesse sob minhas ordens, eu o mandaria à corte
marcial. Mal olhou para os documentos e nem estranhou minhas desculpas a respeito do excesso
de tripulantes. A marinha britânica não é mais a mesma.
Brendan ouviu calado o monólogo de Reese Hampton. Falando naquele tom displicente,
desejava anular o mérito do que fizera, desobrigando os americanos de qualquer sentimento de
gratidão. Brendan sorriu, compreendendo a intenção, mas sabia que, enquanto vivesse, seria
devedor em relação ao capitão Hampton. Não tanto por si mesmo, mas pelas vidas dos tripulantes
sob sua responsabilidade. Muitas delas haviam corrido sério risco naquele dia.
Depois do breve discurso, Reese caminhou na direção de sua cabine e Brendan imaginou
se algum dia deixaria de surpreender-se com suas atitudes.
Samara também encontrava-se dominada pela admiração. A despeito do perigo, adorara
os poucos minutos de encenação diante do oficial inglês. Seus braços ainda guardavam a
sensação de calor causada pelo toque de Reese, ~. enquanto sua mente revia o brilho provocante
dos olhos verdes. Empolgara-se ao ser apresentada como esposa dele, insensatamente desejando
que aquilo pudesse ser verdade.
Quando a porta da cabine se abriu, encheu-se de absurda esperança, mas era apenas
Brendan que entrava com um sorriso no rosto.
_Seu capitão, irmãzinha, é um homem fora do comum.
_Ele não é meu capitão, Bren.
_Sua atuação foi bastante convincente, querida. Não havia como duvidar de que vocês
dois eram casados. O que falaram? Dava para perceber que faziam força para não rir.
Ela repetiu o diálogo do convés e Brendan deu uma gargalhada. Sustou o riso ao perceber
que o rosto da irmã anuviara-se.
_Está certa de que não deseja dizer a verdade a Reese?
_perguntou atencioso, mesmo sabendo que seria inútil tentar vencer a teimosia da irmã.
_De nada adiantaria - disse ela com tristeza. - Reese é como uma gaivota que só pode
viver em liberdade. E diferente de nós. Vamos deixar as coisas como estão.
_Talvez tenha razão, Samara.
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E talvez estivesse completamente errada, mas era a vida &dela e a ela cabia decidir sobre
o que fazer. Ele não se perdoaria, se interferisse e algo viesse a causar sofrimento à irmã.
Contudo, não conseguia deixar de pensar como Reese e ela ficavam bem juntos, olhando-se com
naturalidade e com os rostos iluminados de animação, enquanto pregavam uma peça no tenente,
enganando-o sem piedade.
_Reflita bem - acabou por aconselhar.
Samara, porém, mostrou-se irredutível, fazendo o irmão balançar a cabeça, frustrado.
O jantar foi ainda pior de suportar do que nas noites anteriores. Samara sofria em silêncio,
brincando com um pedaço de frango defumado, sem nenhum apetite. Tudo fora mais fácil
quando ela ainda o considerava rude, odioso, cruel e canalha. O que fizera naquele dia, porém,
derrubara todas as suas teorias a respeito de um caráter deficiente. Ainda decidida a não
reconhecer qualidade alguma em Reese, ela forçava-se a pensar que ele fora movido por um
motivo nada decente, mas Brendan com certeza o julgava um perfeito cavalheiro. Os dois
homens conversavam como se fossem amigos de muito tempo, comentando velocidade de barcos
e capacidade de velas, discorrendo sobre as águas mais perigosas do mundo e até descobrindo
que conheciam e preferiam as mesmas tabernas, localizadas em diferentes países.
Em dado momento percebeu que Yancy a fitava. Tentou sorrir-lhe, mas não conseguiu. O
médico enviou-lhe um sorriso compreensivo, como se estivesse lendo seus pensamentos, e ela
desviou o olhar, mortificada.
Reese era todo cortesia e encanto, dirigindo-se a ela polidamente, fazendo perguntas tolas
sobre suas preferências culinárias e outras banalidades. Como se não percebesse que ela se
encontrava sobre brasas, que não conseguia raciocinar de forma adequada e que, se tentasse ficar
de pé, suas pernas provavelmente não a sustentariam. Ela apenas o fitava, consumindo-se de
raiva.
Tentava dizer a si mesma que ficaria imensamente satisfeita quando ele desaparecesse de
sua vida, mas no mesmo instante sentia-se tomada de estranha dor. Com tais pensamentos
conflitantes, voltou a olhar para ele, sendo aprisionada no fluxo mágico que jorrava dos olhos
verdes, postos no rosto dela sem nenhum sinal de riso ou da costumeira provocação. Ninguém à
volta da mesa poderia ignorar a torrente de sentimentos que envolveu os dois, isolando-os num
mundo à parte.
Por um instante ninguém mais existiu. Os olhares chamejantes declaravam verdades
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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contra as quais os dois não podiam lutar, enquanto os segundos passavam, despercebidos.
Yancy olhou para Brendan esperando vê-lo tomado de ira, mas notou apenas um olhar
crítico. Surpreso, ergueu as sobrancelhas.
Michael Simmons achava-se quase que hipnotizado pela cena, olhando de Reese para
Samara, admirado com a força do que se passava entre eles.
- Capitão! - chamou Yancy, procurando trazer Reese de volta à realidade.
Reese demorou a perceber que o chamavam, mas por fim sacudiu a cabeça em
aturdimento, enquanto Samara baixava os olhos, acanhada. Tomando consciência da realidade,
Reese olhou em volta e viu o ar embaraçado de Michael. Estudou o rosto de Yancy, que
se mostrava estranhamente interessado e por fim olhou para Brendan O’Neill. Os dois homens
encararam-se em silêncio. Reese esperava encontrar fúria no olhar de O’Neill, mas não soube
decifrar a expressão enigmática que havia nele. E finalmente voltou a fitar Samara. Seu coração
apertou-se ao ver as lágrimas que escorriam pelo rosto macio. Num movimento brusco, ergueu-
se, derrubando a cadeira no chão.
- Preciso dar algumas ordens - explicou, antes de sair apressado da cabine.
Brendan andava pelo aposento acanhado sem descanso. Samara encontrava-se sentada na
cama, pensativa. Ele percebera a força da atração que arrastava a irmã para Reese Hampton, uma
fascinação irresistível. Sempre que os dois se encontravam a atmosfera enchia-se de tensão e a
magia tornava-se quase palpável para todos os que estivessem perto.
E tudo aquilo era perfeitamente compreensível. Samara era uma linda mulher, tornando-se
ainda mais adorável por desconhecer seu poder de sedução. Tinha senso de humor e inteligência,
e sua inocência devia ter deixado Reese Hampton completamente perplexo. E por mais que
Brendan se preocupasse com ela e com a difícil situação, não podia deixar de reconhecer que os
dois haviam sido feitos um para o outro.
Detestara o capitão Hampton, no início, mas com o passar dos dias vira-se obrigado a
respeitá-lo e admirá-lo por suas qualidades. Como homem, era do tipo certo para Samara.
Jamais se deixaria dominar por ela, mas a incentivaria a cultivar os dons de seu espírito
independente. Todavia precisava conhecê-lo melhor. Não podia imaginar qual seria seu
comportamento se soubesse que Samara era livre. Um aristocrata inglês, mesmo tendo
renunciado ao estilo de vida da nobreza, seria capaz de casar-se com uma americana simples,
considerada inimiga de seu pais? Ou apenas a usaria?
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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Com repentina decisão, Brendan descobriu o melhor caminho a seguir. Falaria com Yancy
e talvez obtivesse respostas para suas indagações. Parou de andar e olhou para Samara.
- Vou procurar Yancy para saber como estão nossos feridos. Gostaria de vê-los.
Ela não pediu para ir junto, sinal do quanto se achava perturbada, e ele deixou a cabine.
Samara respirou aliviada. Desejara desesperadamente ficar sozinha para poder pensar em
Reese, que não lhe saía da lembrança desde a hora do jantar. Depois do que se passara, decidira
contar tudo a ele, esclarecer os fatos. Se cometesse um erro, paciência, mas já não podia sufocar o
desejo de deixá-lo saber que ela era livre. Murmurou o nome dele, carinhosamente. Reese
Hampton. Reese.
Sua mente fantasiava sobre o que aconteceria quando ele soubesse que ela não era esposa
de Brendan. Certamente a tomaria nos braços e a beijaria, declarando que a amava. E ela, entre
lágrimas de alegria, também confessaria seu amor. Não podia haver dúvida. Nunca estivera
apaixonada antes, mas a febre que a dominava, a ânsia de estar ao lado dele e a felicidade que
sentia ao vê-lo só podiam significar amor.
Impaciente, olhou para o vestido. Era o que levara para bordo do Samara e o único que
lhe restara. Só vestia o que usara ao esconder-se no porão quando precisava lavar o outro, pois
manchara-o e rasgara-o naquelas horas de desespero e solidão. Pelo menos os cabelos
encontravam-se em ordem. Limpos e brilhantes, caíam em ondas suaves pelas costas. Beliscou as
faces e mordeu os lábios para deixá-los mais corados e saiu em busca de Reese.
Ele estava onde ela imaginara. No leme. Virou-se ao perceber-lhe a presença e seus lábios
estreitaram-se num gesto de desagrado.
- Gostaria de falar com você - começou ela com hesitação, quase perdendo a coragem ao
perceber que o rosto atraente continuava contraído.
_Onde está seu marido, madame?
_Foi ver os feridos, mas Brendan não é...
_Então por que não foi com ele?- Reese interrompeu-a em tom frio.
_Ele não é...
_O casamento obviamente nada significa para a senhora, madame. Assim como nada
significa para a maioria das mulheres. Depois que apanham um tolo na armadilha, acham-se no
direito de traí-lo.
Olhou-a de relance, ignorando a tristeza que começava a toldar os olhos magníficos. Era
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linda, mas, como todas as mulheres, volúvel e infiel.
_Jurei nunca me casar - prosseguiu ele. - Por que o faria? Tenho tudo o que desejo sem
precisar me prender ?a ninguém.
Sabia que estava sendo cruel, mas precisava deixar claro, para ela e para ele também, que
a situação era impossível. Para o bem dos dois e de Brendan O’Neill, tinha de pôr fim naquela
loucura.
Samara mordeu o lábio inferior, fazendo-o sangrar. Reese nada sentia com relação a ela, a
não ser hostilidade. Falava daquele modo porque pensava que ela era casada, mas não havia mais
motivo para fazê-lo conhecer a verdade. Declarara, sem deixar margem para dúvida, que
desprezava o casamento e as mulheres, limitando-se a usá-las. E dissera que nunca se casaria.
Com o coração dolorido, Samara viu seus sonhos transformarem-se em fumaça.
_Só os idiotas se casam - rematou ele.
Samara virou-se e desapareceu correndo, e ele torceu a roda do leme bruscamente,
perguntando-se por que se sentia cheio de remorso e vergonha. Ela merecera ouvir o que ele
dissera. Portara-se com impressionante falta de pudor, ao flertar com ele na frente do marido, e
tivera a coragem de ir procurá-lo para tentá-lo mais ainda. Que fosse para o inferno.
Olhou para o céu e tentou convencer-se de que ela não valia um único pensamento seu,
mas cada estrela lembrava o olhar brilhante e a brisa murmurava o nome que o torturava.
Samara... Sim que fosse para o inferno!
Yancy ouviu a batida na porta quando se achava despido da cintura para cima, trocando
de roupa para visitar os pacientes. Pensando ser Reese, abriu a porta sem procurar esconder as
cicatrizes que se entrecruzavam em suas costas, marcas de vergonhosa violência. Eram
lembranças de uma agonia tão profunda que procurava escondê-las até de si mesmo. Em sua
cabine não havia mais que um pequeno espelho diante do qual se barbeava e ninguém, a não ser
Reese, sabia do pesadelo por que passara, sobrevivendo por milagre. Reese fora testemunha de
sua tortura. Reese o salvara, curando as feridas profundas com linimento, a despeito das ameaças
e pragas de Yancy, alucinado de dor. Reese lhe devolvera o desejo de viver.
Mas quando abriu a porta viu Brendan O’Neill e, estando meio de lado, sabia que o
americano perceberia as cicatrizes. E pela expressão do rosto do homem, teve certeza de que as
vira. Surpresa. Compaixão. Quase bateu a porta, mas deu de ombros. O outro já tomara
conhecimento dos sinais de sua humilhação e além disso parecia ter algo importante a dizer. E ele
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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próprio desejava fazer algumas perguntas. Acabou de abrir a porta, pediu ao americano que
entrasse e, sem nada dizer, vestiu uma camisa. Voltando a olhar para o visitante, apenas ergueu
uma sobrancelha com ar interrogativo.
- Desejo saber mais a respeito do capitão Hampton - declarou Brendan, sem rodeios.
- Então fale com ele - respondeu o médico rispidamente.
- Achei melhor...
- Falar comigo? Então por que não começa a me explicar por que mostra tanta indiferença
com relação a sua esposa?
Indiferença? Está muito enganado.
- Então digamos que seja um marido nada possessivo, capitão O’Neill.
- Samara não é uma pessoa que possa ser possuída, ou comandada, mas, apesar de seu
caráter impulsivo, acaba fazendo tudo certo.
- Acha certo sua mulher flertar com Reese?
- Não seria elegante perder a compostura por causa de um olhar.
O médico olhou-o mudo de espanto, sem disfarçar a expressão de censura.
_Fale-me sobre Reese Hampton - insistiu Brendan. - Está com ele há muito tempo?
- Cerca de três anos - concedeu Yancy, já planejando obter algumas informações em troca.
- Mas já o conhecia antes.
_Sempre foi assim imprevisível?
_Depende do ponto de vista de cada um. Eu, por exemplo acho-o bastante sensato.
_Penso que ele age seguindo impulsos do momento.
_Reese tem seu próprio código de comportamento, mas possui um forte senso de justiça. -
O médico hesitou um pouco antes de continuar: - Há cinco anos eu trabalhava para uma clínica
perto do cais e um dia alguns de seus tripulantes levaram até lá, quase morto por causa de um
ferimento infeccionado. Sobreviveu e fiquei dois anos sem vê-lo.
Brendan seguia a narrativa com atenção, analisando o rosto compenetrado do médico.
_Uma noite, bebi demais, fui apanhado pelos milicianos e levado para trabalhar, como
prisioneiro, num navio de guerra. Foram anos infernais. Eu reclamava demais a respeito da má
alimentação e do tratamento dispensado aos doentes. O capitão tomava as reclamações como
ofensas pessoais e um dia, exasperado, mandou que me aplicassem cem chicotadas.
_Deus... - murmurou Brendan, horrorizado.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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_Seria o suficiente para me matar. Estávamos nas Bermudas quando isso aconteceu e o
capitão assistia ao meu castigo, já na metade, quando Reese subiu a bordo para entregar
correspondência destinada à Inglaterra. Eu já estava meio morto.
_E o que foi que ele fez?
_Comprou-me. Por uma quantia irrisória. Eu havia me tornado uma pedra no sapato do
capitão e o homem ficou satisfeito em poder livrar-se de mim. Ninguém acreditava que eu
sobrevivesse e a morte teria sido um bênção, na ocasião. Reese, além de não me deixar morrer,
devolveu-me amor pela vida.
Yancy fez uma pausa e riu com amargura.
_Sabe como? - continuou. - Deixando-me tão furioso que eu quis viver para me vingar.
Fiquei bom e ainda desejava esmurrá-lo até deixá-lo inconsciente. Tentei. Não consegui. Ficamos
amigos.
No silêncio que se seguiu, Brendan pesou as palavras que diria. Sentia que aquela fora
uma história muito difícil de ser contada.
_Nunca disse isso a ninguém e espero não precisar dizer novamente - observou Yancy. -
Mas queria que você soubesse que não permitirei que lhe façam mal.
_Entendo.
_Não fiquei satisfeito com as respostas que me deu a respeito de seu relacionamento com
Samara, capitão O’Neill.
_Não posso explicar mais nada por enquanto, Yancy. Desculpe.
O médico perscrutou os olhos do americano e gostou da expressão honesta que viu neles.
Por quê, diabos, com tantas mulheres no mundo, Reese precisava ficar fascinado por uma que já
era casada? A situação toda assemelhava-se a um enigma e nada fora esclarecido depois que
Brendan O’Neill entrara em sua cabine. De qualquer modo, por alguma estranha razão, Yancy
sentiu-se melhor.
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CAPÍTULO 8
Reese saiu do escritório de navegação de Faulk e Henner mais satisfeito do que já estivera
em várias semanas. Tudo saíra conforme planejam e uma transferência de fundos já ~ fora
efetuada através da principal casa bancária da ilha. insistira em receber pagamento imediato pelo
Samara e Upton Faulk, suficientemente apaixonado pela esguia e elegante escuna, não fizera
objeções. O preço era uma bagatela. A carga somente quase já valia a quantia pedida por Reese
Hampton.
Reese não podia deixar de sorrir ao pensar na expressão de Upton. O homem tivera
dificuldade em esconder a alegria pelo bom negócio, mesmo depois que o capitão Hampton lhe
explicara que uma emergência exigia sua presença na Inglaterra e que portanto não podia perder
tempo tentando alcançar um preço mais alto pelo navio capturado. Reese sempre detestara o
desonesto Upton Faulk e seu sócio. Os dois viviam querendo atacar sua tripulação ou cobrar ex-
cessivamente pelas mercadorias compradas para o Unicórnio, além de sempre tornar os reparos
mais demorados do que o necessário. Como proprietários da maior companhia de navegação das
Bermudas, tinham facilidade em desenvolver tais atividades. Também participavam do tráfico de
escravos, um comércio que Reese abominava. Desse modo, representavam um espinho na
garganta de Reese Hampton, que teria grande prazer em fazê-los de idiotas.
Yancy, que conhecia o plano, esperava debruçado na amurada do Unicórnio. Não
pretendia desembarcar, sabendo que o porto se encontrava tomado por navios de guerra ingleses.
Assim que viu Reese, percebeu que tudo correra bem. Esperava que a partir dali as coisas
voltassem ao normal e que o bom humor do capitão Hampton retornasse.
Subindo pela prancha de embarque, Reese acenou para Yancy e logo depois os dois
homens conversavam no convés.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Três dias, Yancy. Ouvi Faulk dar ordens para que o Samara estivesse pronto para
navegar em três dias. Está se desdobrando para alcançar seu objetivo, depois que lhe disse como
a profissão de corsário pode ser lucrativa. Até indiquei o nome de um bom capitão.
Reese riu. Apontara o nome do capitão mais relapso que conhecia, embora o homem
sempre conseguisse esconder dos patrões os erros que cometia. Seus tripulantes, porém, não
podiam ser tão facilmente enganados. O capitão bebia em excesso, sua imprudência beirava a
demência e demonstrava uma crueldade que o tornava odiado.
Yancy pensou no plano elaborado e sorriu ao pensar na reação de Upton Faulk quando o
Samara desaparecesse.
Reese passou os dois dias seguintes observando o trabalho de reparos feito no Samara.
Exigira que o navio americano e o Unicórnio ficassem lado a lado no cais e fora fácil acom-
panhar o serviço. Partes do costado e todas as velas foram substituídas e o casco recebeu reforço
em certos lugares. O nome foi raspado e o novo pintado. Swift Lady.
Brendan, ainda usando os trajes rústicos de marinheiro, não conseguiu esconder o
desgosto ao testemunhar o sacrilégio. Reese, que se aproximara dele para verificar o trabalho de
pintura do novo nome, percebeu a emoção do americano e estendeu a mão, tocando-o no ombro.
Espantado, Brendan olhou para ele. Reese fora seco, quase rude, nos últimos dias,
chegando a ordenar que todos os americanos permanecessem longe do convés superior e
colocando guardas nas escadas para ter certeza de que era obedecido. O próprio Brendan só podia
subir acompanhado de um tripulante do Unicórnio. Tal fato não o deixava esquecer que não
passava de um prisioneiro e, para diminuir a impressão de confinamento, escolhia Yancy para
acompanhá-lo. Pelo menos podia conversar com o médico de igual para igual.
_Vai jantar comigo, hoje - declarou Reese, num tom que não admitia recusa.
_Samara também?
_Não. Só homens.
Brendan estudou o rosto decidido. Reese Hampton estava diferente e a expressão dos
olhos verdes sugeria mistério e satisfação. Que diabo de idéia louca estaria tomando conta de sua
mente?
_Aceitaria uma desculpa? - perguntou.
_Não. Espero-o às oito.
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Patricia Potter
Samara ficou em silêncio quando o irmão contou-lhe o que se passara.
- Preciso ir, Samara. Ele exige.
Ela balançou a cabeça, concordando, mas completamente apática.
- Não estamos em posição de provocar atritos, minha irmã.
- Eu sei - disse ela baixinho. - Não passamos de fantoches nas mãos dele. O inglês ordena
e nós obedecemos.
- Não fique tão deprimida, Samara. Preciso obedecer. Minha tripulação e você dependem
de mim e do meu comportamento.
- Entendo. - Procurou sorrir para não deixá-lo ainda mais desgostoso. - Yancy emprestou-
me um livro e como... Reese estará ocupado durante o jantar... irei ler no convés. Não correrei o
risco de encontrá-lo.
Brendan pensou no Samara com novo nome e decidiu que não desejava que a irmã
passasse por mais aquele desgosto.
- Não acho que seja uma boa idéia, irmãzinha. Fique aqui na cabine. Faça isso por mim,
sim? Não saia sozinha.
Ela tornou a sorrir, mas sem alegria.
- Bren, você será um marido maravilhoso quando uma mulher de muita sorte o conquistar.
Nunca conheci ninguém tão generoso, gentil e com tanta capacidade de perdoar. Ficarei aqui.
Prometo.
Pensou nas noites que ele dormira no chão, com metade do corpo sob a mesa, e de todas
as vezes que ficara com ela na cabine quando desejava estar no convés, com os outros homens.
Nunca, reclamava de nada e sua paciência era infinita.
As oito horas, quando Davey bateu na porta, chamando o irmão para o jantar, sorriu
corajosamente.
Brendan saiu, pensando que Samara começava a recuperar-se do golpe que atingira suas
ilusões românticas. Sua irmã estava amadurecendo.
Brendan não podia acreditar no que ouvia. O jantar transcorrera em atmosfera estranha
desde o início. Além dele, achavam-se ao redor da mesa apenas Reese e Yancy. Brendan a
princípio perguntara-se por que fora convidado, pois os dois homens pareciam ignorá-lo,
conversando em voz baixa. Só lhe dirigiram a palavra uma vez e para perguntar se a refeição lhe
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
agradava.
_O Samara está pronto para navegar - Reese comunicou a Yancy. - Faulk retirou a carga e
abasteceu-o com provisões para vários meses.
_Nem posso acreditar que o capitão Hendricks deixou-o quase sem nenhuma guarda -
comentou o médico. - Aquele louco parece desejar que roubem o navio. Merece perdê-lo.
- Não vale nada, como capitão. Vai partir amanhã e passará a noite numa festa, a que
pretendo ir também. Levarei grande parte da tripulação. Posso contar com sua companhia,
Yancy? - Reese esclareceu, omitindo que fora ele próprio quem inventara a tal festa.
- Sabe como detesto o pessoal da Marinha. Ficarei aqui, ajudando a montar guarda.
Reese considerou a oferta.
- E uma idéia. Assim poderei levar mais um dos homens.
Todos estão loucos por um pouco de divertimento. Acha que pode ficar com os
americanos? Permanecerão a bordo, pois não têm para onde ir. Têm, capitão O’Neill?
Brendan ergueu os olhos do prato, começando a entender.
- Não sei o que poderíamos fazer nesta ilha.
Não falaram mais de navios e tripulantes. Sem nenhum esforço, Reese passou a falar de
livros e de música, deixando Brendan admirado com a profundidade de seus conhecimentos.
Parecia entender de tudo, desde filosofia antiga até literatura americana moderna.
Logo, porém, Brendan tornou-se inquieto, deixando de prestar atenção à conversa. Teria
muito trabalho naquela :noite, se entendera bem as insinuações de Reese, e a longa palestra
parecia-lhe fora de propósito. Finalmente Yancy despediu-se e Reese ofereceu um copo de
conhaque ao americano. Mesmo sem vontade, Brendan aceitou-o. Os dois homens ficaram em
silêncio e Reese estendeu as pernas ~ apoiando os pés na cadeira que Yancy deixara vaga. Sorveu
um longo gole de conhaque, pensativo.
_Ninguém - disse por fim - deve saber deste jantar e do que foi dito aqui. Foi uma
conversa entre... amigos.
Brendan apenas conseguiu balançar a cabeça. Não havia nada que pudesse dizer. Depois
da maneira como Reese e Yancy falaram, passando-lhe informações de forma indireta, qualquer
palavra de agradecimento soaria como traição.
_Ninguém - repetiu Reese.
“Nem Samara” - era a mensagem implícita. Brendan tornou a balançar a cabeça
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demonstrando que compreendera.
_Desejo-lhe uma boa noite, capitão - disse Reese, levantando-se devagar.
Brendan levantou-se também e os dois homens se encararam amigavelmente.
- Foi uma honra jantar em sua companhia, capitão Hampton - declarou Brendan,
curvando-se de leve.
Logo depois saía, achando que jamais esqueceria o sorriso triste que passou rapidamente
pelo rosto de Reese Harnpton.
Brendan não foi diretamente para a cabine, parando para conversar com diversos
membros de sua tripulação, pedindo-lhe que passassem suas ordens adiante. Os guardas haviam
desaparecido das imediações das escadas e não demorou para que os tripulantes do Unicórnio
começassem a sair do navio em grupos de dois ou três. Entre eles, reconheceu Michael e Reese.
Ainda parou na enfermaria, onde encontrou Yancy bebendo.
- Hilly e Adams estão aptos a dar um pequeno passeio, doutor? - perguntou com
naturalidade.
- Com alguma ajuda, sim. Mas tome cuidado para que não façam exercício demais. Peça a
sua esposa para dar-lhes assistência.
- Quero agradecer-lhe, em meu nome e de meus homens. Se algum dia precisar de mim...
Yancy deu-lhe as costas, ignorando o agradecimento. Ele, assim como Reese Hampton,
não queriam que sua ajuda fosse reconhecida. Tornava-se fácil entender por que eram tão amigos.
Tinham muito em comum.
- Davey levou algumas de suas roupas para Samara consertar - anunciou o médico. - Mas
acho que estão imprestáveis e Reese já deu novas peças ao rapaz.
Por um instante, Brendan ficou confuso, mas logo compreendeu. Samara deveria usar as
roupas de Davey, porque os americanos não poderiam subir a bordo do Swift Lady indo pelo cais.
A abordagem seria feita pelo costado, depois que atravessassem a distância que separava os dois
navios, a nado. E nessa manobra toda, um vestido atrapalharia os movimentos de Samara.
- Entendo - disse por fim. - Samara fará o que for possível para dar um jeito nas roupas.
Yancy riu baixinho, mas não se virou para olhar para Brendan. O breve diálogo terminara.
- Vou mandar alguns homens para ajudar Billy e Adams - comunicou o americano antes
de sair da enfermaria.
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Patricia Potter
Quando chegou à cabíne, encontrou Samara andando de um lado para outro, presa de
nervosismo. Uma pilha de roupas velhas encontrava-se sobre a cama.
- Não entendo o que está acontecendo - ela reclamou.
- O que é que está acontecendo, Samara?
- O guarda que ficava aí na porta foi embora.
_Acho que o capitão Hampton descobriu que não ternos para onde ir.
- Não. Penso que ele deseja que nós dois fujamos. Talvez seja uma armadilha. Quem nos
garante que ele não alertou a milícia real?
_E o que ele ganharia com isso?
_Ficaria com sua tripulação.
_Então vamos enganá-lo - propôs o irmão, odiando-se por deixá-la pensar o pior de Reese
Hampton. - Estou planejando retomar o Samara.
Um pouco do antigo brilho passou pelos olhos dela.
_Como?
- Notei que há pouco homens a bordo do Samara. Alguns dos nossos podem nadar até lá e
subjugá-los. Depois, todos, inclusive nós dois, iremos para bordo, cobrindo a distância a nado. -
Apontou para as roupas sobre a cama. - De quem é isso?
_De Davey. Pediu-me para consertar algumas de suas roupas.
_Veja se alguma coisa lhe serve. Você também terá de nadar.
O fato em si não o preocupava. Samara era excelente nadadora. Percebeu que a irmã se
mostrava mais animada, como se a idéia de uma aventura a fizesse recuperar o interesse pela
vida.
Ela, no entanto, mesmo adorando a possibilidade de enganar Reese e todos aqueles
ingleses emproados, não conseguia sufocar a tristeza. Nunca mais o veria. Para vencer a sensação
dolorosa de perda, obrigou-se a pensar nos pais e no lar distante. Logo estaria entre as pessoas
que mais amava no mundo, no meio de coisas que conhecia desde a mais tenra infância.
Brendan saiu da cabíne e ela trocou de roupa rapidamente. Transformada num rapazinho,
correu para o convés superior, encontrando Hugh Butler no caminho. Era o terceiro oficial da
tripulação do Samara e fazia tempo que ela não o via tão animado. Tomando-a pelo braço, Hugh
correu com ela para a amurada, parando apenas para dizer aos outros que ficassem escondidos.
Os dois olharam para a água entre os navios e Samara reconheceu o irmão, dando
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braçadas largas e silenciosas, ao lado de outro homem. Olhou para Hugh com ar indagador.
_Brendan e Mick - explicou o homem.
Ela então lembrou-se do irlandês alto e barulhento, um dos membros mais alegres da
tripulação. Ficou olhando o avanço silencioso dos dois e viu-os chegar à corrente da âncora, na
popa. Com a agilidade de macacos, Brendan e Mick subiram pela corrente e desapareceram de
vista. Vários minutos depois, o irmão surgiu na amurada, fazendo sinal de que tudo estava bem.
Os marinheiros a bordo do Unicórnio jogaram cordas por cima da amurada, no lado
oposto ao cais, enquanto Brendan, no Samara, fazia a mesma coisa.
A noite lhes era favorável. Não havia lua e a água era iluminada apenas fracamente pelos
lampiões dos navios. Um por um, os homens de Brendan escorregaram pelas cordas e nadaram
para o outro barco. Os dois feridos foram colocados em macas improvisadas e levados por outros,
sem grande dificuldade. Samara deveria ir entre os últimos. Se algo acontecesse e o assalto fosse
descoberto, Brendan queria que a irmã continuasse em segurança, no barco de Reese Hampton.
Ela olhou em volta, despedindo-se do Unicórnio. Ali seu coração despertara para o amor.
Um inglês alto e musculoso, de rosto incrivelmente belo, tangera sua alma e fizera seu corpo
acordar para os mistérios da feminilidade.
_Reese Hampton - sussurrou com lágrimas nos olhos. Arrependeu-se da fraqueza,
sabendo que precisava esquecê-lo. Ele não se importava com ela, nem com os sentimentos que
fizera nascer em seu coração. Provavelmente, naquele momento, achava-se na companhia de
outra mulher, sorrindo para ela, enfeitiçando-a com seus olhos verdes.
Acariciou a borda da amurada, como o vira fazer tantas vezes. Nunca mais o veria. Nunca
mais.
Quando, finalmente, deslizou para a água, tinha o rosto coberto de lágrimas. Afastou-se
nadando e ainda olhou para trás, observando o balanço do navio. Inquieto como seu dono.
Já a bordo do Samara, assistiu quase com indiferença ao trabalho dos marinheiros, que
cortavam as cordas e levantavam a âncora- O barco balançou-se livre e distanciou-se lentamente
do cais deserto. Não houve gritos de alarme, nada. Brendan tivera sucesso.
Olhou para o irmão, que, ao leme, levava o navio para o mar aberto. Logo estariam livres,
pois o Samara era mais ágil que qualquer outro barco. Com exceção, naturalmente, do
Unicórnio.
Brendan sorriu, tomado de exaltação. Sentia deixar para trás homens como Reese
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Hampton e Yancy, mas num lampejo de intuição soube que os veria novamente. Acenou para o
Unicórnio, cujas luzes piscantes ainda distinguia na escuridão. Depois, ainda sorrindo, virou a
roda do leme, tomando o rumo da liberdade.
CAPÍTULO 9
A carruagem que levava Brendan e Samara para casa entrou na alameda entre árvores que
terminava na frente da bela mansão de tijolos vermelhos com extensa varanda guarnecida por
trepadeiras que floresciam na primavera.
Estavam perto do Natal e não havia flores, mas Samara guardava na lembrança a beleza
das rosas que pareciam fazer parte de Glen Woods.
A casa era relativamente nova, tendo sido construída em 1793, no lugar da outra,
incendiada pelos ingleses durante a Guerra da Independência. Fora erguida com amor e possuía
uma aura calorosa de conforto e paz. E era de paz que Samara mais precisava, porque não tivera
sossego na viagem das Bermudas até Charleston. Cada segundo que passava acordada era
dominado pela recordação de Reese, e, quando dormia, sonhava com ele. Distante e frio, fugindo
de seus braços, zombando de seu amor.
Não havia livros a bordo com que pudesse se distrair e suas roupas limitavam-se às peças
que Davey sem querer lhe emprestara, velhas e rotas. Parecendo um rapaz, com a blusa de
marinheiro e o calção de algodão grosso e áspero, andara pelo navio sem cessar, indo da proa à
popa, inquieta e desolada. Oferecera-se para trabalhar, mas, exceto pelo serviço que podia prestar
como enfermeira, nada havia que pudesse fazer.
O cozinheiro ameaçara iniciar um motim se ela continuasse a procurar ajudá-lo, criando
confusão na cozinha com suas idéias inovadoras mas impraticáveis. Tentara também lidar com as
velas e um marinheiro a ensinara a puxar es cordas. Ao passar da teoria à prática, cortara a mão
num cabo e Brendan explodira com os dois. Finalmente resolvera cuidar da cabine do irmão, mas
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Brendan pedira-lhe para desistir, pois não podia perder tempo procurando ora o compasso, ora os
mapas, que ela guardava em lugares impossíveis.
Dessa forma, quando não estava na enfermaria, passava o tempo caminhando pelo convés,
deixando que o vento frio lhe despenteasse os cabelos, fazendo-a pensar que logo estariam em
casa e que o inverno já devia ter chegado a Glen Woods.
Um dia, Brendan anunciou que estavam a setenta quilômetros do litoral da Carolina e que
ao romper da aurora atravessariam o bloqueio. Samara estremeceu. Estava farta de aventuras.
Queria ir para casa e descansar.
Quando a carruagem parou na frente da porta principal, todos saíram correndo da casa,
dos celeiros, das cocheiras A das casinhas enfileiradas onde viviam os trabalhadores do campo.
- Sr. Brendan! Srta. Samara ! - gritavam os emprega>~dos, tomados de alegria.
Brendan mandara um mensageiro a Glen Woods assim que haviam aportado em
Charleston e comprara roupas para a irmã, não desejando que ela chegasse em casa maltrapilha
como uma mendiga.
Samara viu o pai e a mãe descerem correndo as largas escadas da varanda, os rostos
iluminados de felicidade. Sentiu remorso pelo sofrimento que lhes impingira e foi com lágrimas a
escorrer pelas faces que se lançou para fora da carruagem para atirar-se nos braços do pai. Depois
agarrou-se à mãe, desejando sentir a mesma tranqüilidade que sempre sentira sob a proteção dos
pais amados. Mas algo mudara. Mesmo envolvida pelo carinho da família, percebia jue um certo
vazio permanecia em sua alma.
Foi a mãe que percebeu que algo não ia bem. Olhou para Brendan, interrogando-o em
silêncio, e ele fez um gesto com a mão, dando a entender que falariam mais tarde.
_Vamos entrar, querida - convidou Samantha, enlaçando a cintura da filha. - Você precisa
de um gostoso banho quente.
O pai olhou para Brendan e os dois sorriram. Um gostoso banho quente era a solução da
mãe para os mais variados problemas.
Um pouco depois, mãe e filha entravam no quarto de Samara , no andar de cima, e as duas
sentaram-se na cama.
_O que aconteceu, meu bem? - perguntou Samantha, com gentileza.
Samara olhou para a mãe com desamparo. O que poderia dizer? Que se apaixonara por
um pirata inglês? Um patife que desprezava o casamento e as mulheres.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- O recado que Brendan nos mandou de Charleston dizia que o navio foi capturado por
um corsário, mas que vocês estavam bem. O que aconteceu, Samara ? Algum homem aproveitou-
se de você, minha filha?
- Não. Ninguém me fez mal. Eu mesma me feri.
Samantha manteve-se em silêncio, pressentindo que não devia forçar uma revelação.
Samara fitou-a com desespero.
- Como uma mulher sabe que está apaixonada? - perguntou baixinho.
- A paixão pode ser a maior alegria para uma mulher. Ou o maior tormento.
- Você e papai são tão felizes! Alguma vez conheceu o desespero, mamãe?
Samantha recordou aquele mês, muito tempo atrás, quando pensara morrer de tristeza. E
teria recebido a morte com alegria se não fosse pelo bebê que carregava no ventre. Connor
descobrira que ela era filha de seu inimigo e que o casamento dos dois não passara de uma farsa,
que a vida em comum nascera de uma rede de mentiras.
- Sim, filha. Fui atormentada pelo desespero. E seu pai também. Talvez seja por isso que
nosso amor é tão forte agora. Nasceu do sofrimento.
Samara olhava para a mãe com espanto indizível. Aquela era uma parte da história dos
pais que ela não conhecia Já percebera que havia alguma coisa no passado, relacionada com
Chatham Oaks, a propriedade da mãe, que fazia
o pai ficar sério e com expressão sombria. Mas não sabia exatamente o que era.
- Não quer me contar tudo, filhinha? - pediu a mãe delicadamente.
- Acho que estou apaixonada por um inglês - desabafou Samara , com tanto desgosto que
fez a mãe sorrir.
- Nem todos os ingleses são maus, querida. E se você e Brendan puderam vir para casa,
sãos e salvos, os que os capturaram não podiam ser tão malvados.
Sarnantha pensou que, se a filha se apaixonara, era porque o objeto de seu amor possuía
qualidades boas. Conhecia Samara muito bem e sabia que ela, com seu instinto infalível, não se
enganaria. Calou-se, sabiamente. Talvez a moça ainda não estivesse pronta para admitir aquilo.
- Como pode dizer tal coisa, mamãe? Papai sempre diz que os ingleses são uns
desgraçados arrogantes.
Samantha não sabia se ria ou repreendia a filha. Decidiu que uma repreensão não
resolveria nada, no momento.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Ele abusou de você? - perguntou em tom calmo.
- Sim... não... eu...
- Sim, ou não?
- Ele... ele me beijou.
- Nada mais?
_Não. Ele pensava que eu era esposa de Bren.
_Ele o quê? - espantou-se a mãe, ficando desanimada com o que ouvira.
Mentiras novamente. Mentiras que quase haviam destruído a felicidade dela e de Connor.
Estaria a história dos >dois se repetindo? Samantha procurou acalmar-se para ouvir o relato da
filha. As palavras saíam aos borbotões e várias vezes a mãe precisou reprimir um sorriso. Ou
Reese Hampton era mesmo um canalha, como dizia Samara , ou era o homem mais paciente da
face da Terra. Talvez fosse uma mistura das duas coisas. Com certeza Brendan contaria tudo ao
pai e seria interessante comparar as duas versões a história e tentar obter uma resposta para o
problema.
Sem emitir nenhuma opinião, Samantha ajudou a filha banhar-se e depois penteou-lhe os
cabelos, como tantas vezes fizera quando Samara era apenas uma garotinha. A moça, exausta,
acalentada pelos carinhos da mãe e pelo calor delicioso da camisola de flanela, deitou-se e não
demorou a adormecer. Samantha ainda ficou longos minutos ao lado da cama, olhando para o
rosto da filha, pensando como era jovem e linda. Teria aquela menina, mal saída da infância,
encontrado o homem de sua vida? Sim, Samantha acreditava firmemente que haveria apenas um
homem para Samara , assim como acontecera com ela. E desejava que a filha conhecesse a
mesma alegria, a mesma felicidade rara de encontrar o amor de sua vida. Sem mentiras.
Se antes da partida dos O’Neill o humor de Reese estivera sombrio, depois tornara-se
intolerável. Nada parecia satisfazê-lo e sua estuante vitalidade dera lugar a uma tensão cheia de
raiva. E a tensão explodira logo na manhã seguinte, quando ele se defrontou com Upton Faulk,
acabando por atirar o homem para fora do Unicórnio.
Faulk fora exigir seu dinheiro de volta e acusara Reese de haver sido cúmplice do roubo.
_Está duvidando de minha honra? - gritara Reese. - Foi descuidado com o navio e agora
deseja jogar a culpa em cima de mim? Quero ser um miserável se me incomodar com o que lhe
aconteceu, Faulk. Seja menos estúpido no futuro.
_Comunicarei o fato às autoridades - berrara o homem, rubro de cólera.
_Faça o que quiser. Torne público o fato de ser um idiota. Mas não se queixe, Faulk. Pelo
menos ficou com a carga, que valia quase mais que o próprio navio.
_Seu desgraçado!
_E a segunda vez que me ofende, Faulk! E a menos que esteja preparado para me
enfrentar, peça desculpas.
O homem fitara os olhos gelados de Reese e recuara assustado.
_ Bem... admito que me excedi.
_Saia do meu navio. Já!
Como Faulk se demorasse a obedecer, Reese pegara-o pelo pescoço e o empurrara pela
prancha de embarque.
_Eu disse já!
O resto da tripulação, que ao amanhecer encontrara o navio estranhamente vazio,
divertira-se à larga com a cena. Não se atreviam a fazer perguntas, mas adivinhavam o que
acontecera. E aplaudiram. Todos gostavam dos americanos e desprezavam as atitudes desonestas
de Faulk.
Zarparam à noite e, para surpresa dos tripulantes, Reese dera ordem para rumarem para a
Europa, contrariando o plano anterior de voltarem à costa dos Estados Unidos.
O Unicórnio chegou a Londres cinco meses depois, rebocando dois navios franceses
capturados. O humor de Reese continuava péssimo e nada conseguia melhorá-lo.
Cada canto do navio guardava a lembrança de Samara O’Neill e, embora ele soubesse que
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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era impossível, tinha a impressão de sentir o perfume de seus cabelos flutuando no ar. E sempre
que tomava vinho, lembrava-se do primeiro jantar em companhia dela. O ridículo da situação não
deixava de provocar um sorriso no rosto tenso, quando ele pensava no bom vinho que ela
desperdiçara sem piedade.
Nunca nenhuma mulher o afetara daquele modo, invadindo seu coração e seus
pensamentos de forma tão absoluta. Por mais que se chamasse de idiota, nada podia fazer para
esconjurar as imagens que o perturbavam. A solidão, que nunca lhe pesara, caía como um chicote
em sua alma, tirando-lhe a paz.
Talvez, voltando para Beddingfield, escapasse à tortura. Sentia saudade de Avery. Os dois
gêmeos sempre haviam sido muito apegados, apesar das diferenças marcantes de personalidade.
Voltar para casa funcionaria como um antídoto ao feitiço lançado por Samara sobre sua vida.
Com o navio fundeado nas docas de Londres, Reese deu uma licença de três semanas à
tripulação e na manhã seguinte, elegantemente vestido, deixou o Unicórnio, juntando-se à
corrente humana que animava o cais. Não precisaria da calça justa, cor de camelo, ou da fina
camisa de linha com gravata de laço, nem da casaca azul, para sobressair no meio da multidão,
pois o porte elevado e o físico privilegiado, realçados pelos trajes, atraíam sobre ele inúmeros
olhares admirados e respeitosos.
Como sempre, deixava-se levar pela fascinação exercida pelos sons e cores que o
cercavam, observando os elegantes londrinos pavoneando-se entre gente do povo. E os meninos.
Legiões de crianças miseráveis que corriam com a agilidade de ratos, avidamente procurando
bolsas para roubar. Prostitutas, cujas idades variavam dos doze aos cinqüenta anos, cobertas por
imundos vestidos coloridos, ofereciam seus favores usando linguajar obsceno. Mendigos, entre
os quais se arrastavam antigos soldados mutilados nas guerras, estendiam as mãos numa súplica
muda. Várias vezes Reese parou para colocar algumas moedas nas mãos sujas, recebendo
comovidos agradecimentos e sorrisos patéticos.
Nauseado, foi atingido pelo cheiro de peixe podre, misturado ao odor desagradável dos
corpos sem banho e dos dejetos lançados à rua através das janelas das casas miseráveis. Já se
esquecera daquele cheiro, talvez porque desejasse ardentemente apagar da lembrança a imundície
da cidade, pobre e doente.
Repentinamente desejoso de escapar ao tumulto do cais, chamou uma carruagem,
mandando o cocheiro seguir para a casa dos Hampton, em Grosvenor Square. Duvidava de que
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encontraria o irmão, mas na manhã seguinte pegaria um dos cavalos e rumaria para Beddingfield.
Quando a carruagem chegou ao endereço dado, Reese pagou o cocheiro e começou a subir
a escadaria externa. Parou ao ouvir uma voz conhecida que o chamava.
_Reese! Reese Hampton, pare!
Olhou para trás e um sorriso abriu-se em seu rosto.
_Jeremy! Seu demônio! Faz tempo que não nos vemos, hein?
Jeremy Clayton, conde de Sheffleld, riu bem-humorado.
_Muito tempo. Ouvi dizer que se tornou pirata.
_Você também me chama de pirata? Sou corsário, Jeremy, algo muito diferente.
_Seja lá o que for, combina com você - observou o amigo, olhando invejosamente para a
pele dourada de sol e o corpo esbelto de Reese. - Espero que não esteja planejando ficar em
Londres muito tempo. Coitados de nós, solteirões, perderíamos todas as nossas namoradas... e
amantes.
Os olhos de Reese brilharam divertidos. Jeremy, com seu rosto de menino, falsamente
inocente, seu título e a imensa fortuna, já dormira com metade das damas londrinas, livres ou
não. E o mais espantoso era que se tomava amigo de todas, graças ao seu jeito descomplicado de
ser e seu amor pela vida.
_Será que existe alguma que não tenha sucumbido ao seu encanto, Jeremy? Se existe,
como foi que isso aconteceu?
O homem exibiu um sorriso diabólico.
_Sim, existe uma. Viúva. Quer fazer uma aposta comigo?
Reese ergueu uma sobrancelha, esperando o que viria.
_Vou a um baile, hoje à noite. No Tallant’s. Ela estará lá. Aposto como você não
conseguirá convencê-la a ir para sua casa depois da festa.
_Qual será o prêmio da aposta?
Se a mulher resistira a Jeremy, com certeza era mesmo diferente. Haviam estudado juntos
em Oxford e inúmeras vezes sido rivais na conquista de uma mulher. O fato acabara por
transformar-se numa espécie de jogo, objeto de [ apostas loucas. Nenhuma dama abalara a
amizade, mas muitas causaram perdas de grandes somas. No jogo, entravam o título e a
amabilidade de Jeremy contra a magnífica beleza física de Reese.
Por um breve instante o rosto de Samara O’Neill ocupou a mente de Reese. Talvez uma
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nova mulher conseguisse apagá-lo para sempre.
_ Você me pagará cem Libras, se perder - estabeleceu Jeremy.
_ E seu eu ganhar?
_ Eu lhe darei um potro de Sable.
Os olhos verdes de Reese brilharam, interessados. Ele sempre desejara comprar um dos
cavalos premiados de Jeremy, mas o preço muito alto o impedira. Não podia des~i pender uma
pequena fortuna quando Beddingfield atravessava uma fase difícil.
_ Está bastante certo de que perderei, não é, Jeremy?
_ Não. E que senti falta de nossas apostas. Vamos recomeçar em grande estilo.
Combinado?
_Combinado.
Aparentemente a alegria das antigas apostas desaparecera. Reese não sentia a velha
excitação e mais uma vez tomou a ver o rosto Lindo e os olhos cinzentos de Samara . Olhos
acusadores. Que sua imaginação fosse para o inferno.
_Não quer nem saber como ela é? - perguntou o amigo, intrigado com seu desinteresse.
_ Loira de olhos azuis? - replicou Reese, sorrindo.
_ Como sempre.
Reese riu, mas não havia alegria em seu coração.
_ Espero ser bem recebido no baile. Não tenho convite.
_Sempre será bem-vindo em qualquer lugar de Londres, amigo. Você é como especiaria
acrescentando sabor ao nosso insípido chá. Até a noite, então. Mandarei minha carruagem
apanhá-lo.
Como se adivinhasse que Reese poderia mudar de idéia a qualquer momento, Jeremy
afastou-se em passo rápido.
Eloise Stanton estava estonteante. O vestido de cetim dourado, da mesma cor dos cabelos
erguidos com arte, expunham o longo pescoço aristocrático. Alta e esbelta, mostrava-se
extremamente fria. Os olhos azuis examinaram Reese com reserva.
_Já ouvi falar a seu respeito, capitão Hampton - disse ela com voz melodiosa. - É dono de
uma reputação bastante extravagante.
Reese, que abrira a boca para elogiá-la pela beleza e elegância, calou-se. O comentário da
mulher, delicadamente, aproximava-se de uma condenação. Já podia ouvir o riso alegre de
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Jeremy, zombando de sua derrota. Curvou-se na frente de Eloise, sabendo que cumprimentos
banais não fariam o mínimo efeito.
_Por que não me diz o que ouviu, senhora, dando-me o direito de me defender?
_Existe defesa possível? - perguntou ela com frieza.
_Depende do quê falam a meu respeito - replicou ele, divertindo-se ao imaginar o que a
imaginação das pessoas acrescentara à verdade dos fatos. - Posso assegurar-lhe, entretanto, que
não espanco crianças ou mulheres.
_Fico mais tranqüila. - Eloise sorriu.
_Agora que já não tem medo de mim, concede-me o prazer desta dança?
Lady ELoise Stanton inclinou a cabeça, pensativa. Era bela. Meses atrás exerceria uma
atração irresistível sobre Reese, mas depois de Samara ...
Como ficaria a linda americana morena envergando um vestido de baile, com o cabelo
negro captando o brilho de centenas de velas? Imaginou-a em seus braços, girando ao som da
música, corada de excitação. Samara . Samara O’Neil.
_Capitão!
Tornou a olhar para o rosto espantado de Eloise.
_Seu pensamento está longe - a dama censurou-o.
_Não. Estava pensando em como é bonita, lady Stanton.
_Não acredito, mas aceito a desculpa. Ah, sim, concedo-lhe esta dança.
Reese ofereceu-lhe o braço e guiou-a para o centro do salão, dando uma olhada rápida
para trás. Jeremy fitava-o boquiaberto.
Foi uma noite agradável, ao contrário do que Reese imaginara. Monopolizou a atenção de
Eloise, a despeito das constantes interrupções por parte dos admiradores da bela mulher.
Começava a gostar dela, picado pelo sentimento de lpa por causa da aposta.
Quando o ambiente do salão tornou-se irrespirável com mistura de perfumes e quente
demais com a aglomeração, Reese convidou-a para ir ao jardim. Caminharam um pouco pelas
alamedas bem cuidadas e finalmente sentaram-se um banco de pedra. Tempos atrás aproveitaria o
momento a tentar seduzi-la, começando com um toque da mão no bro nu, um beijo leve nos
cabelos, um elogio murmurado. Todavía não conseguia forçar-se a nenhum gesto mais ousado.
Gostava de Eloise, mas queria Samara . E descobriu e não podia mais fazer o velho jogo de
apostas com Jeremy, pelo menos no que se referia a Eloise Stanton. A genuína dignidade que a
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cercava merecia ser respeitada.
_Jeremy me disse que é viúva.
_Sim. Meu marido foi morto pelos franceses, há três anos.
_E ainda não o esqueceu, não é?
_Como poderia? Ficamos casados menos de um ano, mas ele era minha vida. As vezes
me pergunto se algum dia voltarei a ser a mesma - confessou ela num suspiro.
_Tem família?
Ele notou que ela se retesou, perdendo a naturalidade.
_Um irmão de meu marido. Também tenho uma irmã e foi ela quem me convenceu a vir
ao baile.
_Sua irmã está certa. A senhora é bela demais para ficar escondida.
_E quanto ao senhor, capitão? Posso perceber que está triste.
_Engana-se, senhora.
_Também me engano a respeito de uma certa aposta?
Ela voltara a relaxar e seus lindos olhos azuis brilharam à luz do luar.
Reese ficou completamente desarvorado.
_Aposta? Como foi que...
_Conheço Jeremy, e a expressão dele, quando aceitei dançar com o senhor, revelou toda a
verdade - ela riu. - E percebi que havia um motivo para ele me revelar coisas horríveis a seu
respeito, quando me visitou, esta tarde. E depois apareceram juntos no baile, como amigos. A
dedução foi fácil.
Reese riu, pensando na reação de Jeremy.
_ Meu amigo deve estar tendo um ataque de apoplexia. Tanto trabalho por nada.
Menosprezou sua inteligência, senhora.
_ E está sendo castigado. Posso saber o que apostaram?
_Cem libras minhas, contra um dos preciosos cavalos de Jeremy.
_ Vamos fazê-lo pagar - decidiu ela com satisfação. - O que devo fazer?
_ Ir para a minha casa comigo. Mas não pode fazer isso, lady Stanton. Precisa cuidar de
sua reputação.
_Conheço Jeremy - ela repetiu. - Sei que não dirá nada a ninguém. Detestaria admitir que
falhou, perdendo para o senhor. Nós lhe daremos uma lição. Vamos desejar-lhe uma boa noite?
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Patricia Potter
_É uma pessoa extraordinária, senhora.
_Eloise, capitão. Se vou com o senhor para sua casa, deve me chamar de Eloise.
_ E não sou capitão para lindas damas inteligentes. Meu nome é Reese.
Voltaram para o salão e Eloise apresentou-o à irmã, explicando que o capitão Hampton a
levaria para casa mais cedo, por causa de uma dor de cabeça que a acometera. A irmã, satisfeita
ao lado do marido, apenas sorriu.
Jeremy ficou atônito e incapaz de dizer uma única palavra. Simplesmente fez uma ligeira
curvatura quando Reese agradeceu-lhe a oportunidade .de conhecer uma dama tão gentil.
Recobrando-se do espanto, fitou o amigo com admiração e piscou-lhe, reconhecendo a derrota.
Reese levou Eloíse para a casa dos Hampton em Grosvenor Square. O irmão e a família
encontravam-se em Beddingfield, como imaginará, e o velho casal que cuidava da propriedade já
se recolhera muitas horas atrás. Portanto não havia o perigo de falatórios e a reputação da mulher
não sofreria danos. Sentados na sala de visitas, conversaram quase como velhos amigos e Reese
descobriu que Eloise conhecia Leigh, esposa de Avery, e que já visitara Beddingfield diversas
vezes.
_Você é muito diferente do que imaginei através das descrições de sua cunhada, Reese.
Acho que Leigh o teme.
_Pode ser. Deve recear que eu contagie meu irmão com este meu amor pela liberdade.
Mas Avery e eu somos diferentes.
_Como a água e o vinho.
_Nem tanto, Eloise. Parecemos muito diferentes, mas temos muita coisa em comum.
Acontece que Avery foi educado para ter responsabilidade e para herdar o título. As vezes penso
que ele inveja minha liberdade.
_Você também o inveja?
_Não. Sempre estive muito satisfeito com minha vida.
Um ar de surpresa passou pelo rosto da mulher e Reese julgou ver um lampejo de receio
nos olhos azuis. Intrigado, ofereceu-lhe mais licor. Ela recusou e ele serviu-se de outra dose de
conhaque.
_Por que me acompanhou até aqui, Eloise? - perguntou de chofre.
_Porque achei-o gentil - respondeu ela sem titubear.
_E porque me surpreendeu. Além disso, queria dar uma lição a Jeremy e precisava de um
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amigo. Enquanto conversávamos no jardim, descobri que você poderia me oferecer uma amizade
sincera.
Reese brincou com o copo, refletindo.
_Você confia demais, Eloise.
_Nem sempre. Muitas pessoas já me falaram de você. Não apenas Leigh e Jeremy, mas
também...
_Sim - Reese interrompeu secamente -, e muito do que falam sobre mim é verdadeiro,
portanto ainda não compreendo sua confiança.
Ela fitou-o de modo indefeso e desarmante, muito diferente do jeito frio e distante que
ostentara no início da noite.
_Tenho uma percepção aguda para descobrir as intenções alheias. E também para
adivinhar certos sentimentos. Estava triste no baile, Reese. Por causa de uma mulher?
Ele sorriu, surpreso e acanhado.
_Não sabia que era tão evidente. Mas já que adivinhou, sim, por causa de uma mulher.
Ela é casada. E o marido é um homem que agora considero meu amigo.
Eloise sorriu, compreendendo-o perfeitamente. A dor pela perda do marido ainda era
grande demais para que ela pensasse em outro homem. George, seu cunhado, não respeitava seus
sentimentos, achando que os mortos deviam ser esquecidos. E ali estava um homem com péssima
reputação, capaz de sofrer por uma mulher e respeitar um amigo. Fora por isso que ele
compreendera sua amargura. Os dois sofriam por amor.
_Qual é o nome dela? - perguntou, percebendo que ele precisava falar para desabafar.
_Samara . Ela tentou me matar com uma garrafa de vinho.
Eloise olhou-o espantada e depois riu.
_Basta ameaçar Reese Hampton com uma garrafa de vinho para fazê-lo apaixonar-se?
Acho que vou espalhar seu segredo.
_Por Deus, não! - gritou ele, fingindo horror. - Se ela me acertasse eu não estaria aqui,
mas no fundo do mar. Acho, porém, que ela me fez um grande mal, mesmo não me matando. Do
contrário, por que estou na companhia de uma das mais lindas mulheres de Londres...
conversando?
_Ah, capitão, eu diria que foi enfeitiçado - ela opinou, levantando-se. - Agora preciso ir.
Se Jererny nos seguiu, já deve estar convencido de que perdeu a aposta.
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Reese olhou-a com seriedade.
_Também percebo as coisas com facilidade, Eloise, e sei que algo a perturba. Se precisar
de qualquer tipo de ajuda, procure-me. Se eu não estiver, fale com Avery.
_Obrigada. Graças a você, tive uma noite bastante interessante.
Depois de deixá-la em casa, Reese, no coche sacolejante que o levava de volta para
Grosvenor Square, perdeu-se em pensamentos. Mal podia acreditar que levara uma mulher linda
para casa e não conseguira parar de pensar em Samara O’Neill, a ninfa de cabelos escuros e
olhos cinzentos que captavam as cores do céu e do mar.
Pensou em Eloise. Algo a amedrontava, mas a mulher não chegara a lhe confiar seus
receios. Falaria com Avery e talvez descobrisse alguma coisa. Aquele enigma o distrairia,
afastando a amargura que se instalara em seu peito.
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Patricia Potter
CAPÍTULO 10
Uma semana antes da anunciada partida de Reese, os Hampton e lady Stanton chegaram a
Londres, para um baile de despedida na mansão de Grosvenor Square. Muitos convites foram
enviados e apenas alguns convidados responderam recusando. Todos queriam ver o notável
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Reese Hampton, que ganhava fortunas na profissão não muito respeitável de corsário e que tinha
fama de louco e canalha. As mulheres sentiam-se excitadas só de pensar nele e os homens
secretamente o invejavam.
George Carlton, o conde de Stanton, estranhou ser convidado. Não mantinha relações
estreitas com os Hampton e pouco via Avery, que preferia a tranqüilidade da herdade ao bulício
de Londres. Mas George sabia que Avery tinha amigos chegados ao rei e seria interessante entrar
para seu círculo de amizades. Reese, porém, não passava de um reles aventureiro e pouco
interessava a George conhecê-lo ou não.
Outro acontecimento ocupava os pensamentos de lorde Stanton. Sua cunhada, Eloise
Stanton, desaparecera da cidade, burlando a vigilância de que ele a cercara. Procurara-a na casa
de Serena, mas a mulher declarara desconhecer o paradeiro da irmã. Talvez descobrisse algo no
baile, mas reconhecia que era uma possibilidade remota.
Seu irmão, ao morrer, deixara todo o dinheiro para Eloise, a amada esposa, ficando
George com um título inútil e uma propriedade pouco rendosa. E o vício do jogo o levara à beira
da ruína. Nos dois anos anteriores assediara Eloise, propondo-lhe casamento, e, desprezado,
passara a ameaçá-la, assim como a Serena e aos amigos das duas irmãs, deixando todos
sobressaltados. Com fria determinação, já planejara, caso a cunhada insistisse em recusar sua
proposta de casamento, matá-la num trágico acidente. A herança viria para suas mãos, graças a
certos documentos forjados. Mas Eloise desaparecera , frustrando seus planos.
O baile já começara e estava animado quando George Carlton chegou. Julgava-se muito
bem vestido, mas em sua vaidade não percebia que a casaca curta e apertada, de um vera
brilhante, apenas acentuava a deselegância do corpo obeso.
A casa cintilava à luz de centenas de velas espalhadas pelos castiçais e candelabros de
cristal e ele invejou a riqueza do móveis em estilo conservador. Seu olhar vagueou pela multl
dão, enquanto ele avaliava os convidados Viu membros da família real e das casas mais nobres e
tradicionais da Inglaterra, portadores de títulos muito mais importantes que o seu Voltou a
questionar o motivo que levara os Hampton a convidá-lo, mas esqueceu a preocupação quando
seu olhar caiu sobre os dois casais que recebiam os convidados. Estarrecido percebeu que seu
coração disparava de surpresa.
Junto de Avery, Leigh e Reese, viu a cunhada. Eloise, muito elegante num vestido branco,
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ostentando uma guirlanda de flores nos cabelos dourados, mantinha-se ao lado de um dos irmãos
Hampton, que ele não sabia dizer se era Avery ou Reese O homem passou um braço pela cintura
esbelta, num gesto possessivo, e George sentiu-se desfalecer de raiva e ciúme. Procurando
dominar-se aproximou-se do grupo.
Depois de breve troca de cumprimentos com os Hampton, George segurou o braço de
Eloise. Deixou cair a mão, assustado, quando Reese encarou-o friamente, com ar tão ameaçador
que ele sentiu arrepios de medo.
_Eloise quer que o senhor seja o primeiro a saber que estamos noivos - comunicou Reese
secamente - Pretendemos anunciar o noivado esta noite.
George empalideceu. Enfurecido, retesou o corpo balofo.
_Como seu parente mais próximo e responsável por seu bem-estar, não darei meu
consentimento – declarou com empáfia.
Reese deu um sorriso de escárnio.
_Ninguém está pedindo seu consentimento - retrucou. - E Eloise ficará com meu irmão e
minha cunhada até o casamento Fique avisado de que ela está sob nossa proteção. Que Deus o
ajude se tentar interferir, de alguma forma - ameaçou com entonação sinistra.
George deu um passo atrás, golpeado pela ameaça clara. O rosto gordo cobriu-se de
violento rubor quando ele percebeu que várias pessoas ao redor o fitavam com desdém.
_Desejo o melhor para Eloise - conseguiu murmurar.
_Isso também não faz diferença - observou Reese.
Humilhado, George estreitou os olhos.
_Sua reputação não o torna recomendável como marido, Reese Hampton - devolveu com
audácia.
_E a sua, George Carlton, não o torna recomendável como homem - foi a resposta
contundente.
E assim o conde de Stanton foi publicamente insultado. Olhou desamparado de Reese
para Eloise, reconhecendo que devia renunciar a toda esperança. Não era homem para enfrentar
Reese Hampton num duelo e portanto restava-lhe apenas engolir o insulto. Ignorando a ofensa,
curvou-se educadamente diante dos Hampton e de Eloise.
_Aceitem meus melhores votos - murmurou com dificuldade.
Afastando-se, começou a engendrar um plano de vingança. O pirata arrogante não perdia
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Patricia Potter
por esperar. Os americanos pagariam regiamente pela informação que revelasse o destino da
próxima viagem de Reese Hampton. Não seria a primeira vez que George venderia informações.
E aquele trabalho não lhe daria apenas dinheiro, como também o doce prazer da vingança.
Apesar dos olhares irônicos e desdenhosos que precisou suportar durante o baile, George
não foi embora, mantendo uma atitude de despreocupação. A dor da humilhação era superada
pelo prazer de acariciar o piano que acabaria com a arrogância de Reese Hampton. Pretendia
transformar-se na sombra do pirata odiado, tomando nota de todos os seus passos. E foi assim
que ouviu o diálogo que Jeremy mantinha com Reese.
_Você é mesmo surpreendente - disse Jeremy, rindo.
_Nunca imaginei que se deixasse apanhar na armadilha. Quando vai ser o casamento?
_Depois que eu voltar da minha próxima viagem. Ainda tenho alguns negócios a acertar.
Durante as últimas semanas, Reese mudara de idéia quanto aos navios americanos. Ficara
ainda mais enfurecido com o domínio que a lembrança de Samara exercia sobre ele e chegara à
conclusão de que, evitando a costa do país onde ela vivia, estava apenas rendendo-se ao
sentimento que o perturbava. Ao contrário, confrontando-se, não com ela, mas com o que lhe era
relacionado, mostraria a si mesmo que se libertara da fascinação. Não explicou a Jeremy o
mecanismo daquele raciocínio complicado, limitando-se a revelar que voltaria à Carolina.
No fim do baile, Reese e Avery gozaram alguns momentos de privacidade, comentando
os eventos da noite.
_Eloise estará em segurança, agora - observou Reese.
_E poderá romper o noivado quando eu voltar. Ou antes, se preferir.
_Ela seria uma boa esposa para você.
_Uma boa esposa, sim, mas não para mim. Ela não me ama e nem eu a ela. Somos
amigos.
_Muitos casamentos felizes foram construídos sobre a amizade, Reese.
_Não é isso o que eu quero. Desejo ser livre.
Aquilo Seria verdadeiro meses atrás, antes de Samara O’Neill, porque, depois, ficaria
feliz em renunciar à liberdade para ligar-se à americana geniosa e de olhos cinzentos
Enquanto os dois irmãos conversavam, George Carlton, que se retirara logo após ter
ouvido a conversa entre Jeremy e Reese, falava com um agente do governo americano.
E numa redação de jornal da Fleet Street, um redator sonolento ordenava os tipos,
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preparando a edição do dia seguinte. Entre várias notícias, sairia a do noivado de Reese Hampton
e Eloise Stanton.
Em Londres, as novidades tinham asas.
CAPÍTULO 11
Depois de passar aquelas semanas no navio corsário, Samara adquiriu novo interesse pela
guerra. Antes de sua infeliz aventura, o conflito parecera muito distante e os assuntos políticos
apenas a aborreciam. Mas vira como Brendan e a tripulação haviam corrido o risco de
aprisionamento e até de morte. Tivera oportunidade de conversar com os tripulantes e ficara
sabendo dos horrores praticados nos navios britânicos contra os prisioneiros, que chegavam a ser
vendidos como escravos.
Outro acontecimento viera reforçar seu patriotismo. O irmão Conn combatera os Creeks,
engajado na milícia do Alabama, e fora ferido na perna por um mosquete inglês. Como resultado,
jamãis recobraria o uso perfeito da perna, tornando-se coxo. Suas histórias a respeito dos horrores
cometidos contra os colonizadores e das atrocidades .sofridas por mulheres e crianças nas mãos
dos britânicos enchiam Samara de fúria e revolta. Com seu inato senso de justiça, intrigava-se
com o fato de que atrocidades semelhantes, infligidas às aldeias indígenas por americanos, e a
violência contra os Cherokees não eram sequer mencionadas.
Todavia, tudo o que era praticado pelos ingleses corria de boca em boca com a velocidade
do vento. Vinham notícias do norte e do noroeste, revelando torturas e assassinatos. Também as
denúncias sobre as péssimas condições dos prisioneiros na prisão Dartmoor, na Inglaterra,
destinada a americanos e corsários, chegavam aos ouvidos dos moradores de Glen Woods. Assim
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o medo da família O’Neill aumentava, porque Brendan, convocado pela Marinha, equipara seu
navio com armas pesadas e se tornara corsário. Fazia meses que ele fora para o mar e ainda não
haviam recebido notícias.
A raiva de Samara contra os ingleses crescia, fazendo-a condenar Reese Hampton por ser
representante do país detestado. Sua condenação não atingia Yancy, Davey ou Michael Simmons
pessoas de quem ela gostava e que afinal apenas seguiam ordens do capitão. E quanto mais
pensava, mais convencida ficava de que Reese planejara traí-los e que fora a coragem de Brendan
que os salvara.
Embora pressentisse a verdade, não admitia que se recusava a reconhecer as boas
qualidades de Reese para não sofrer mais. Se não o julgasse mal, o amor que tentava sufocar a
dominaria por completo, destruindo-a
Não muito tempo após sua volta para casa, Samara fora à caverna que permanecia como
um segredo familiar, procurando o lugar onde tantas vezes tecera sonhos deliciosos para
desabafar a angústia que ameaçava tomar conta de seu coração. Todos da família tinham doces
lembranças ligadas ao lugar. Fora ali que a mãe encontrara o pai ferido, beirando a morte, e que
tratara dele até vê-lo curado. Os filhos gostavam da história de amor e coragem e viam a caverna
como um santuário que jamais poderia ser violado.
Sentada na obscuridade, ficou olhando para os tímidos raios de luz que conseguiam
atravessar a cortina de vegetação, sonhando com um lindo cavaleiro de armadura rutilante que
iria buscá-la. Tentava imaginar um cavaleiro americano, mas sua imaginação teimava em lhe
apresentar uma figura alta e esbelta, um rosto bronzeado onde brilhavam olhos verdes, quase
azuis, como o mar profundo.
Desanimada, permitiu-se recordar o beijo trocado no convés, quando a lua os envolvera
numa aura mágica, tornando-os os únicos habitantes de uma terra encantada.
Era uma tola. Reese Hampton desaparecera de sua vida e muito provavelmente já nem se
recordava da americana que tentara atingi-lo com um garrafa de vinho. Podia até estar atacando
Brendan naquele momento, ou outro navio americano qualquer. Não conseguiu livrar-se do
pensamento de que o próprio Reese podia estar em perigo. Gelou de medo.
_Reese em perigo? - murmurou para as paredes silenciosas. - Nunca! Ninguém faz mal ao
vento.
Contudo suas palavras não puderam conjurar a tortura de um pressentimento. Subitamente
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achando que estava muito frio ali, saiu para a luz do sol.
A estranha sensação daquele dia e o medo permaneceram com ela. Triste, declinava todos
os convites para festas, julgando-as atividades muito frívolas para tempos tão conturbados. Não
se interessava por nada. Os homens do distrito não prendiam sua atenção e tornava-se difícil até
falar com eles educadamente quando visitavam sua família. Aos poucos os convites foram
cessando, as visitas ficando espaçadas.
Passou a ficar muito tempo ao lado do pai, falando da guerra, e embora Connor lhe
censurasse o desinteresse por jovens de sua idade e assuntos apropriados para uma moça,
incentivava sua curiosidade a respeito de política. O pai dizia impropérios contra os Federalistas
que se opunham à guerra e criticava acerbamente as lideranças militares por sua inépcia.
Uma noite, depois de saber de mais um desastre do Exército, Connor ficou
particularmente irado.
_Aquele idiota do William Hull fugiu e deixou que uma coluna de setenta homens fosse
massacrada - anunciou.
_O covarde devia ser enforcado.
Conn deu razão ao pai. O general Hull fora mandado a Detroit com dois mil homens.
Atacado por um destacamento de ingleses e canadenses formado por apenas duzentos e cinqüenta
soldados, hesitara e fraquejara até que uma coluna toda fosse massacrada. A seguir, entregara-se,
sem disparar um único tiro, expondo toda a parte noroeste do país aos índios.
_E a situação não está nada melhor no nordeste - continuou Connor. - O Gazette publicou
que um grande destacamento atravessou o rio Niágara e entrou no Canadá, mas que a outra parte
do exército recusou-se a ir atrás. A primeira tropa nada pôde fazer, a não ser render-se. Com esse
tipo de liderança, só Deus sabe o que acontecerá.
Samara ouvia atentamente. As únicas boas notícias vinham do mar. Embora pequena, a
marinha americana lutava ferozmente, tendo efeito mortal sobre o inimigo. Os capitães do
Constitution e do United States tinham comunicado novas vitórias e até os menores navios
exibiam rapidez e eficiência superiores a muitos barcos ingleses. Os corsários também
desempenhavam seu papel de contrapor-se aos britânicos, capturando seus navios e aprisionando
tripulações e tropas em transporte. Samara lera no jornal do dia anterior que as taxas de seguro de
navios na Inglaterra haviam triplicado de preço por causa das perdas constantes.
Ela geralmente participava das discussões após o jantar, mas naquela noite manteve-se
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calada. A medida que o conflito se encarniçava, tornava-se evidente que a tragédia não deixaria
de atingir um de seus entes amados. Brendan corria enorme risco. Conn pretendia reunir-se à
milícia assim que a perna ferida lhe permitisse andar e Marion engajara-se como médico do
Exército. E havia também Reese Hampton. Samara sorriu com amargura, percebendo a ironia da
situação.
Depois de vários meses, Samara voltou a sentir o desejo de ir à caverna. Vestida com
algumas roupas velhas de Conn, engatinhou para o interior sombrio e sentou-se, olhando, sem
ver, os desenhos que o sol colocava no chão ao filtrar-se pelo emaranhado de trepadeiras que
protegiam a entrada.
- Se ele estivesse morto eu saberia - murmurou.
A corrente de energia que sentia ao pensar em Reese continuava com a mesma força, e
ela, sem saber por quê, tinha a sensação de estar muito próxima dele. Pela primeira vez, desde
que chegara a Glen Woods, Samara chorou. As lágrimas começaram a deslizar mansamente pelas
faces Lisas e ela entregou-se à tristeza, caindo num pranto convulsivo. Sabia que ele estava vivo,
mas chorava, porque a notícia reavivara a saudade, aumentando o desejo quase insuportável de
vê-lo.
Reese devia estar escondido em algum lugar, sozinho e talvez ferido, numa terra estranha.
Entre inimigos. O medo assaltou-a. Medo por ele, que podia ser preso e até torturado. Não havia
como negar. Ela o amava com toda a paixão de seu coração, com todo o ardor, contrariando a
lógica. Reese nem sequer gostava dela. Apenas a usara para se divertir, quebrando a monotonia
dos dias a bordo. E mesmo que gostasse, mesmo que a amasse, o amor deles seria impossível. Ele
era o inimigo e pertencia a um mundo que ela não podia aceitar.
As lágrimas secaram lentamente e os soluços silenciaram, embora uma infinita agonia
permanecesse em sua alma.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Vários dias depois, Samara despedia-se de Brendan, que retornava às perigosas viagens.
Ele tomou-lhe o rosto nas mãos e estudou os olhos pensativos e amargurados.
- Precisa reaver seu entusiasmo pela vida, irmãzinha.
- Eu sei, mas não consigo, Bren.
- Recomece a viver, Samara . Por mim, se não por si mesma. Não pode refugiar-se atrás
de um sonho para sempre.
- A vida não tem sentido sem Reese. Eu o vejo em toda parte, em todos os momentos.
- Ele morreu, Samara . Precisa aceitar isso. Há tantos rapazes que adorariam vê-la sorrir
novamente. Dê-lhes uma chance.
Ela tentou sorrir.
- Emily Fontaine anunciará seu noivado na próxima semana, durante um baile. Pensei em
não ir, mas talvez...
- Vá, minha querida. Por amor ao seu irmão Bren.
- Está bem - respondeu ela num murmúrio.
- E uma promessa?
- Sim.
Ele partiu, deixando-a com um sorriso melancólico nos lábios.
A tristeza de Samara estava afetando todos da casa e ela fez um esforço para disfarçá-la.
Conn e Marion, que passavam alguns dias em Glen Woods, planejavam acompanhá-la ao baile.
Emily era uma de suas melhores amigas e não a perdoaria se ela perdesse a festa de seu noivado.
Para não magoá-la e não deixar a família ainda mais aflita por sua causa, Samara resignou-se a
comparecer. Mas foi sem entusiasmo que se entregou às mãos da costureira, que a obrigava a
ficar longo tempo imóvel enquanto ajustava o tecido ao seu corpo, modelando um traje de baile.
Depois que o vestido ficou pronto, mal o olhou, para decepção de Samantha, que o idealizara
com tanto carinho.
Ao contrário dos vestidos em tons suaves usados pelas moças, aquele era de cetim azul-
escuro, com saia em duas camadas, cintura marcada e decote quadrado bastante generoso,
apropriado para realçar a cor marfim de sua pele e o contorno perfeito dos seios. A cor do vestido
refletia-se em seus adoráveis olhos cinzentos, tornando-os azulados, e acentuava o brilho dos
cabelos negros.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Mas Samara nem pensava na beleza do vestido, enquanto uma criada lhe penteava o
cabelo, juntando fitas azuis e prateadas às mechas sedosas e finalmente prendendo os
cachos na nuca, deixando que as pontas caíssem soltas pelos ombros. Um xale prateado
completaria o traje dando-lhe um toque sofisticado.
Enquanto esperava que os irmãos descessem, Sarnam postou-se a uma das janelas,
admirando a tarde. O céu era como um toldo azul profundo, sem a sombra de uma nuvem, e a
brisa suave amenizava o calor geralmente sufocante de julho.
Finalmente embarcaram na carruagem, levando uma pequena mala com roupas, já que
passariam a noite na casa dos Fontaine. Samara gostaria que a mãe e o pai também fossem, mas o
casal, preocupado com uma égua que estava prestes a dar à luz, decidiu ficar em Glen Woods.
A viagem foi agradável. Conn e Marion conversaram o tempo todo, contando histórias de
seus destacamentos, preferindo as engraçadas, e Samara percebeu que sua amargura dissolvia-se
ligeiramente. Amava os irmãos e estar na companhia deles sempre fora um prazer.
Marion era gentil, atencioso e sensível. Começara a clinicar em Charleston antes da
guerra, mas quando o conflito irrompera alistara-se na milícia como médico, passando os dias de
licença com a família. Conn era o guerreiro, o único dos irmãos que realmente desejara a guerra e
que ficara impaciente para servir. Eram tão diferentes e no entanto tão parecidos fisicamente,
com os cabelos loiros e os invejáveis olhos azuis.
Escurecia tarde nas noites de verão, mas a lua cheia já ia alta no céu quando chegaram à
propriedade dos Fontaine. O lugar parecia ter saído de um conto de fadas. Lanternas coloridas
pendiam dos velhos carvalhos e ciprestes e o ar cheirava a jasmim, magnólia e alecrim.
As carruagens dos convidados enfileiravam-se nas alamedas e o cocheiro dos O’Neill
finalmente parou sob os galhos frondosos de um carvalho. Marion e Conn ajudaram a irmã a
descer e logo depois os três entravam no vestíbulo, onde cumprimentaram os anfitriões. Samara e
Emily abraçaram-se e, quando se separaram, olharam-se com carinho e satisfação. Samara estava
linda, com aquele vestido diferente, mas nada poderia ser mais belo que o brilho emocionado que
iluminava os olhos de Emily. Aquela era a sua noite, a realização de um sonho. E Ernily ficou
feliz por Samara ter saído de seu exílio para participar de sua alegria.
_Venha - Emily convidou. - Quero que veja o homem mais lindo que já conheci. E
realmente magnífico, apesar de eu preferir meu querido Jonathan.
_Quem é ele?
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Não sei bem. É um conhecido do sr. Samuels. É comerciante e muito bonito, Samara . E
talvez perigoso.
_Perigoso?
_Sim, não sei explicar, mas ele me intimida.
Samara procurava ver através da multidão, mas era impossível, enquanto Emily a guiava
na travessia pela sala de jantar, onde as mesas do bufê ofereciam uma infinidade de pratos, até o
salão de baile. Ernily parou de repente e Samara ergueu os olhos, vendo primeiro uma casaca
azul sobre ombros musculosos e subindo para um rosto bronzeado onde cintilavam olhos verde-
azulados que exprimiram surpresa indizível antes de retornarem expressão neutra.
Emily, em seu prazer de poder apresentar um homem tão esplêndido à amiga, não viu o ar
chocado do rosto de Samara . Uma onda de alegria a tornou de assalto. Reese. Ele estava vivo.
Na frente dela. Sem quase ter consciência do que fazia, começou a erguer a mão para ele, mas o
olhar de Reese tolheu o impulso. Era o olhar que alguém lançaria a um estranho. Então, os olhos
expressivos passaram-lhe uma mensagem silenciosa. Aviso ou súplica? Samara não sabia.
_Sr. Avery, esta é minha melhor amiga, srta. Samara O’Neill. Samara , apresento-lhe o sr.
Thomas Avery.
Samara ficou petrificada de surpresa, ao ouvir o nome, mas controlou-se para esconder o
choque. Ele curvou-se profundamente diante dela e, quando voltou a endireitar o corpo, olhou-a
com ar malicioso.
_Srta. O’Neill?
Emily riu, totalmente inconsciente do que se passava.
_É claro que não é por falta de pretendentes - esclareceu. - Samara é a moça mais popular
do distrito.
_Acredito - respondeu ele, sorrindo lentamente. - Desafia a compreensão que uma jovem
tão adorável tenha escapado do casamento.
Samara mordeu os lábios, subitamente incapaz de falar. O que estaria Reese fazendo ali,
com um nome falso, fazendo-se passar por quem não era? Comerciante?
- Sr. Avery - disse finalmente. - Precisa me dizer em que tipo de comércio trabalha e o que
está fazendo em nosso humilde distrito. Acho que nunca ouvi falar do senhor.
Ela falara em tom doce, que não parecia pertencer à Samara que ele conhecia. Mas
também não a conhecia tão bem quanto pensara. A pequena mentirosa. Srta. O’Neill. Onde
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
andaria o mentiroso do Brendan?
A orquestra iniciou uma polca e Reese voltou a curvar-se diante dela.
- Posso ter a honra desta dança, srta. O’Neill?
- Certamente, sr. Avery, embora eu pense que as danças do meu país não são iguais
àquelas a que está habituado.
- Talvez, mas aprendo tudo depressa.
Ele sorriu e o coração de Samara disparou doidarnente. Por um instante, o motivo de ele
estar ali perdeu a importância. Estava perto dela e aquilo bastava. Aceitou o braço que ele lhe
oferecia, acompanhando-o ao centro do salão, enquanto Emily os observava sorrindo satisfeita.
Não havia como conversar durante a dança, por causa das pessoas em volta, que poderiam
ouvir, mas conseguiram trocar algumas palavras.
- Disseram que você estava morto - cochichou Samara .
- E você acreditou?
- Não.
Ele voltou a sorrir, causando arrepios em Samara . Demônio tentador.
Quando a música terminou, eia inclinou-se na direção dele.
- Há um cipreste gigante com raízes retorcidas saindo da terra, nos fundos da casa.
Espere-me lá dentro de uma hora murmurou.
Separaram-se e Reese ficou observando os pares que rodopiavam numa mazurca animada.
Depois de algum tempo saiu da casa e acendeu um charuto. Fora uma coisa estúpida aparecer
naquele baile, mas Samuels insistira tanto que seria desagradável recusar.
Recordou as três semanas anteriores, desde que o Unicórnio explodira e ele nadara até a
praia, mal suportando o frio e o cansaço. Mas uma força interior o impulsionara para a frente até
que, alcançando a praia, ele se largara entre as dunas de areia. Não saberia dizer quanto tempo
dormira, mas já escurecia quando ele despertara. Não vira velas no horizonte, mas apenas um mar
sem fim. Conscientizou-se de que se encontrava em sérias dificuldades. Vestia apenas calções de
marinheiro, de tecido grosso, e uma camisa de algodão rasgada. Não tinha sapatos, nem dinheiro.
Nada. Nem ao menos sabia onde se encontrava. Apenas conservava na memória uma lista de
nomes de sirnpatizantes dos ingleses nas Carolinas, mas não fazia idéia de como os encontraria.
Não poderia passar despercebido, vestido como um mendigo.
Ainda fatigado pelos longos dias de luta contra as tempestades e pela tensão nervosa da
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
batalha contra os navios americanos, decidiu descansar mais um pouco, achando que quando
estivesse menos cansado seria capaz de raciocinar com mais clareza. Dormira a noite toda,
despertando com o primeiro raio de luz da aurora.
Começara a andar para o norte, com a esperança de encontrar uma fazenda. Alegaria ser
um náufrago americano. Não precisava preocupar-se com o sotaque britânico, pois ele havia
muito se perdera no convívio com marinheiros escoceses, irlandeses e mesmo americanos
desertores. Seu modo de falar adquirira um vocabulário e entonação inteiramente original.
Andou durante muito tempo, torturado pela sede e pela fome. E as solas dos pés, embora
endurecidas pelo hábito de andar descalço, encheram-se de bolhas que ardiam ao estourar. O dia
já ia- em meio quando ele encontrou um lugar habitado. Era apenas um aglomerado de cabanas
rodeadas por pequenos barcos em mau estado de conservação.
Foi bem recebido na pequena comunidade. Os habitantes eram gente que convivia com as
tragédias do mar, pessoas simples e prestativas. Deram-lhe um lugar para dormir e dividiram a
comida com ele, até mesmo oferecendo-lhe roupas que evidentemente lhes fariam falta.
Envergonhado das mentiras que era obrigado a contar, recusou a oferta de vestimentas,
agradecendo-lhes a generosa hospitalidade. No dia seguinte partiu, acompanhado por votos de
boa sorte e instruções de como chegar a Charleston.
Mantivera-se fora da estrada e roubara algumas roupas simples de um varal, assim como
dois pães que esfriavam numa janela. Encontrou a casa de Samuels uma semana depois de haver
deixado o Unicórnio, mas deparou com um obstáculo. A casa achava-se fortemente guardada por
homens armados que lhe barraram o caminho para a mansao georgiana. Sabia que sua aparência
era terrível. Filho e irmão de condes? Até que tinha vontade de rir.
Apenas seu anel, uma jóia que ostentava as armas da família, poderia causar algum
impacto. Tirou-o de um minúsculo bolso de abertura costurada, no interior da camisa, e mostrou-
o a um dos guardas. O homem foi até a casa e voltou quase imediatamente com outro, bem
vestido e robusto.
- Hampton? - o homem perguntou em tom de descrença.
- Sim, Reese Hampton.
- Os jornais disseram que você estava morto.
- Era isso mesmo que eu queria que pensassem.
O homem sorriu, finalmente.
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- Conheço seu irmão. Seja bem-vindo. Venha tomar um banho e vestir roupas mais...
apropriadas.
Ficou as duas semanas seguintes com Samuels. O fazendeiro fora um Tory durante a
revolução, mas decidira ficar nos Estados Unidos enquanto os outros companheiros de partido
iam para o Canadá ou para o Caribe. Nos trinta anos desde aquela época os vizinhos esqueceram
sua lealdade aos britânicos e ninguém mais tocava no assunto. Ele, porém, ainda se mantinha
intimamente fiel à coroa e costumava ajudar ingleses em dificuldades. Arranjaria uma passagem
num navio estrangeiro para que Reese Hampton chegasse a um porto do Caribe.
Dez dias depois da chegada de Reese à sua casa, Samuels pediu-lhe um favor. Um amigo
federalista necessitava de informações seguras sobre a navegação corsária americana e navios de
guerra. Samuels sabia que tal informação se destinava à marinha britânica, mas não se
considerava um traidor. Muitos de seu país desejavam que a guerra terminasse e derrotas
seguidas sofridas pelos americanos poderiam apressar a chegada da paz. Como ele não tivesse ne-
nhuma carga para despachar para a Europa, não podia fazer perguntas sem levantar suspeitas, de
modo que pediu a Reese que se fizesse passar por comerciante à procura dos serviços de uma
companhia de navegação. No baile da semana seguinte, na fazenda dos Fontaine, encontrariam
muitos profissionais da área de navegação, figuras importantes na vida da Carolina do Sul.
- Não vai dar certo - Reese avisou-o. - Conheço uma dessas figuras.
- Brendan O’Neill - completou Samuels. - Ouvi as histórias. Mas ele embarcou há poucos
dias e não estará de volta tão cedo.
Reese tentou fugir ao que o homem lhe pedia. Não por medo, porque duvidava que a
esposa de Brendan fosse ao baile sem o marido, mas por achar a espionagem uma atividade
desprezível.
E então o Samuels bonachão desapareceu para dar lugar a um homem que sabia o que
queria e não admitia desculpas. Arriscara a vida para ajudar Reese e merecia algo em troca. Favor
por favor. Embora com relutância, Reese viu-se obrigado a aceitar.
Assim, na noite do baile, Reese compareceu à residência dos Fontaine. Sozinho. No
último instante, Samuels decidira que não seria aconselhável que os dois fossem juntes.
Má sorte. Uma desgraçada onda de má sorte que há sete semanas o atingia. lima longa
seqüência de desastres e situações estranhas. Pensou em ir embora do baile sem falar com
ninguém, mas vira Samara e não poderia partir sem falar com ela mais uma vez. Principalmente
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
depois que descobrira que .ela era livre. Pensara nela durante quase um ano de agonia e não podia
ir embora sem saber o que ela sentia a seu respeito. Talvez Samara concordasse em ir com ele.
Louco. Que mulher aceitaria seguir um homem que podia ser preso a qualquer instante?
Mas talvez... Que lhe custava sonhar?
CAPÍTULO 12
CAPÍTULO 13
Samantha não percebera que Connor saíra da cama. Cansada por ter ficado até tarde com
a égua que finalmente dera à luz um lindo potro, caíra num sono pesado. Porém, um pouco
depois de o marido ter deixado o quarto, despertou e assustou-se ao dar pela ausência dele.
Sentou-se na cama e estava pensando em levantar-se quando ele entrou, carregando uma vela
acesa. A chama fraca iluminava seu rosto preocupado.
_Connor, o que foi?
_Não foi nada, Sam. Durma.
Mas Samantha não se deixou enganar. Conhecia bem o marido e pelo seu tom de voz
soube que algo acontecera.
_Aconteceu alguma coisa com as crianças? - perguntou com voz trêmula.
Ela jamais perderia o costume de chamar os filhos de “crianças” e Connor sempre
brincava dizendo que seria muito engraçado vê-la chamar Brendan, quando ele já tivesse cabelos
brancos, de criança. Ele próprio, porém, ainda não conseguia ver os filhos como adultos.
_Não aconteceu nada aos nossos filhos, Samantha. Apenas vieram para casa depois do
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baile.
_Vieram para casa? Mas não iam dormir na casa dos Fontaine?
Connor enrugou a testa. Não havia como fugir de uma explicação. Esperara poder deixar a
discussão do assunto para a manhã seguinte, até que tivesse tempo de pensar, mas sabia que
Samantha não ia deixá-lo em paz.
_Samara também veio? - insistiu ela.
_Bem, já que deseja saber, seus filhos trouxeram um espião inglês para casa, amarrado
como uma salsicha. E quero que o diabo em pessoa me carregue se eu sei o que fazer com ele.
Samantha olhou para o marido como se ele houvesse perdido o juízo.
_Um espião inglês? - perguntou atônita.
_Reese Hampton.
_Reese Hampton, o capitão de Samara ?
Foi a vez de Connor abrir a boca de espanto.
_O capitão de... Ficou louca, mulher?
Mas a esposa não mais o ouvia. O rosto dela assumira uma expressão estranha e, se ele
não soubesse que era impossível, julgaria que havia um brilho de alegria nos olhos azuis.
_O capitão Hampton - murmurou ela. - Mas como?
_Ele estava fazendo-se passar por negociante, no baile, perguntando sobre navios e cargas
ou algo que o valha. Disse que seu navio naufragou, o que nós já sabíamos, mas não explicou
como foi parar na festa dos Fontaine.
_Onde ele está agora?
- No armazém. Ficará lá até que eu resolva o que fazer com ele. Acredito, porém, que não
haja outra alternativa a não ser entregá-lo às autoridades.
_O que achou dele? - indagou a esposa, prendendo a respiração enquanto Connor pensava
numa resposta.
_E arrogante. Estava furioso, mas parecia divertir-se com a situação. Disse que foi muito
agradável conhecer nossa encantadora família. Tudo isso depois de viajar durante horas amarrado
como um peru.
Samantha saiu da cama e começou a vestir a calça e a camisa que usara para assistir a
égua durante o parto.
_Quero vê-lo - anunciou com firmeza.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Deixe isso para amanhã, Sam.
- Não. Como pôde deixá-lo no armazém sem um colchão, comida e água? Não fazemos
isso nem com um cão. O que ele pensará de nós?
- Pode pensar o que quiser! - exclamou Connor, irritando-se. - E um espião! Ele próprio
admitiu. E nosso armazém é bem melhor que a cadeia, para onde ele irá amanhã.
_Talvez - resmungou ela. - Mas na minha casa passará uma noite confortável.
Connor soltou uma exclamação aborrecida, mas sabia que teria de render-se ao desejo de
Samantha. Nada a faria mudar de idéia.
- Então vou com você - resignou-se.
_Não. Você apenas ficaria irritado. Levarei César e Marcus. Vou precisar deles para
carregar algumas coisas.
_Não fique lá, sozinha com ele.
_Não ficarei, senhor - replicou ela, torcendo os lábios com impertinência.
_Não gosto do que está fazendo, Samantha. Ele é perigoso.
- Temos uma dívida de gratidão para com ele, Connor. O capitão poderia ter feito mal a
Samara e Brendan e no entanto mentiu aos oficiais da Marinha inglesa para proteger nossos
filhos e a tripulação do Samara .
- Esqueceu-se de que foi ele que aprisionou o Samara ? Se não houvesse capturado o
navio, ninguém teria corrido perigo. Nunca entenderei o raciocínio maluco das mulheres!
_Brendan recuperou o navio e sempre achei muito estranho o modo como conseguiu
roubá-lo nas barbas de todo mundo. Connor encarou-a espantado.
_O que está insinuando?
_Teve a impressão de que o capitão Hampton é um homem negligente?
- Tive. Portou-se com displicência irritante, na minha frente.
- Bem, isso não vem ao caso, agora. Vou até lá.
Ela nem lhe deu tempo para replicar. Saiu para o corredor e logo depois chamava os
criados e dava instruções. Irritado, Connor decidiu que não entraria no armazém, mas que ficaria
a uma distância segura, pronto para socorrer sua indomável e teimosa mulher.
Samara vestiu uma camisola e apagou a vela pousada mesinha-de-cabeceira, mas não se
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
deitou, sabendo que seria inútil tentar dormir. Sentou-se no assento abaixo da janela e ficou
olhando para o armazém, onde a luz do lampião ainda brilhava, filtrando-se pelas grades. Reese
confiara nela e ela o atraiçoara. Nos primeiros instantes do encontro sob o cipreste os olhos dele
estavam carinhosos e tomados de admiração. O rosto não mostrava nenhum traço de zombaria e
os lábios sorriam num convite delicioso.
E depois ele descobrira o que ela fizera. O carinho transformara-se em fúria e a admiração
em revolta. Pelos comentários frios e sarcásticos que tecera depois, parecia acreditar que ela
lavrara sua sentença de morte.
E ela apenas quisera impedi-lo de revelar ao inimigo o que descobrira no baile. O pai não
deixaria que o enforcassem. Ou deixaria? O desespero apertou o coração de Samara quando,
gelada de medo, ela começou a avaliar as conseqüências de seu ato impensado.
Queria convencer-se de que agira corretamente. Era seu dever de americana denunciar os
traidores. Brendan acabara de sair em viagem e a delação de Reese poderia causar sua morte.
Não. Reese não revelaria o paradeiro de Brendan. Talvez sim. O que ela sabia de Reese
Hampton, afinal? Nada. Mas não queria que ele fosse condenado à forca. A mais profunda
infelicidade varreu-lhe a alma e lágrimas amargas deslizaram pelo rosto pálido. Precisava fazer
alguma coisa. Fechou os olhos, tentando refletir. Se Brendan estivesse em casa saberia o que
fazer. Mas não estava. A mãe! Ela compreenderia e não deixaria o pai mandar Reese para a forca;
sempre conseguia o que queria. Bem, quase sempre.
Não. Até que explicasse tudo à mãe, poderia ser tarde demais. Precisava agir por conta
própria. Rapidamente formulou um plano para salvar Reese. O primeiro passo seria roubar as
chaves do armazém.
Sem imaginar que se tornara motivo de tanta agitação na casa dos O’Neill, Reese
percorria o lugar de seu confinamento, procurando uma saída. O armazém era quente e abafado,
obrigando-o a tirar a casaca e o colete. Abriu a camisa, deixando à mostra o peito dourado de sol
e coberto de pêlos loiros. Rasgara um pedaço da manga para enrolar num dos pulsos, ferido até
sangrar, quando ele o acertara com uma ripa esfarpada, que usara para tentar deslocar a grade da
janela. Tudo parecia dar errado. E a onda de azar começara meses atrás, quando conhecera
Samara . Maldita bruxinha sanguinária. Maldita família O’Neill. Brendan inclusive. O nome
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
deles lhe faria mal enquanto vivesse. E quanto tempo ainda viveria?
Ouviu um ruído na porta. Uma chave rodando na fechadura. Pegando a ripa que o ferira,
ergueu-a no ar, colocando-se ao lado da porta. Não queria nem saber a quem atingiria, dominado
pelo desejo de ferir como fora ferido.
Connor viu quando a esposa e os dois criados voltavam para casa. Ia sair de onde estava
escondido, quando viu outro vulto aproximar-se do armazém. Reconheceu Samara quase
imediatamente e hesitou sobre como agir. Poderia chamá-la ou esperar para ver o que aconteceria
a seguir. Decidiu esperar. Talvez ela precisasse trocar algumas palavras em particular com o
prisioneiro, tentar explicar-lhe que não pretendera fazê-lo correr o risco de ser enforcado.
Connor encostou-se na árvore que o escondera em sua sombra e observou o desenrolar
dos acontecimentos.
_Capitão Hampton... - Samara chamou baixinho.
Reese acabara de fechar os olhos, ao ouvir o chamado suave. Tomou a abri-los, mas a
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
escuridão não permitia que visse coisa alguma. Todavia reconhecera a voz e sentira-se envolvido
pela magia que sempre se criava entre ele e Samara .
_Saia daqui! - bradou irado.
_Capitão Hampton... Reese... Eu tenho a chave.
Ele não se moveu.
_Agora é tarde. Já não confio em você, Samara .
_Por favor... Eu o deixarei ir se prometer que não dirá a ninguém o que descobriu durante
o baile.
_Não lhe farei nenhuma promessa, garota atrevida. Agora deixe-me em paz.
Samara sentiu os olhos arderem, já cheios de lágrimas. Nada estava acontecendo do modo
que previra.
_Por favor... - insistiu. - Você precisa ir embora. Prometa-me...
Ele se pôs de pé e caminhou até a grade.
_Está preocupada comigo?
_Vá embora - pediu ela num murmúrio. - Por favor, precisa fugir.
Reese não queria aceitar ajuda de quem o traíra, mas sua obstinação era perigosa. A
despeito do que Samantha O’Neill dissera, ele poderia muito provavelmente ser enviado para
uma prisão militar e... para a forca!
_Está bem. Você venceu - respondeu seco, afastando-se da grade e caminhando para a
porta.
Ouviu o ruído da chave e a porta se abriu com um rangido. Samara não estava sozinha.
Atrás dela caminhava o pai e era evidente que Connor O’Neill mal podia conter a raiva.
Os dois homens fitaram-se em silêncio e Samara olhou para trás, deparando com o pai.
Recuou um passo, quase caindo nos braços de Reese. Nunca vira tanta censura nos olhos de
Connor.
_Deixe-o ir, papai - implorou. - Por favor.
_Agora é tarde para arrepender-se do que fez, Samara . Devia ter pensado nas
conseqüências ontem à noite, antes de entregá-lo aos seus irmãos. - A vida não é um jogo, uma
brincadeira. Quando vai aprender?
_Eu só não queria... Ele prometeu que não dirá nada a ninguém - ela gemeu, desesperada.
_E acredita nas promessas de um pirata? Você mesma não passou todos esses meses
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
chamando-o de mau-caráter?
Connor sentia-se profundamente zangado. Decidira deixar Samara falar com o prisioneiro
através das grades, mas não pensara na possibilidade de ela desejar soltá-lo. Havia muito mais
entre eles do que ele a princípio suspeitara. Chegou a esquecer-se completamente da presença de
Reese, que sentia a ira crescer à medida que pai e filha discutiam seu destino.
_Vão para o inferno, vocês dois! - explodiu. - Façam o que quiserem comigo, mas pelo
menos permitam que eu tenha um pouco de paz. - Olhou para Samara . - Eu não preciso de sua
piedade ou de sua ajuda. Não preciso de nada, entendeu? E gostaria de não vê-la mais na minha
frente.
Terminando o desabafo, caminhou até o colchão, onde deixou-se cair.
Connor analisou a situação friamente, acabando por dar uma certa razão ao capitão
Hampton. Mas estava cansado e não conseguia pensar numa solução para o caso. Voltou a trancar
a porta e colocou um braço nos ombros de Samara .
_Vamos dormir, filhinha. E fique tranqüila. Nada acontecerá ao seu inglês.
Samara olhou para o pai. Lágrimas brilhavam nos olhos dela.
_Ele não é meu. E depois do que fiz, nunca será.
Era o mesmo que admitir que amava Reese Hampton, e Connor avaliou a dor que ela
devia estar sentindo. Lembrou-se da agonia que ele e Samantha haviam suportado muitos anos
atrás. Tentaria poupar sofrimento à filha. Só não tinha certeza de que seria possível.
Reese procurou dormir, mas não conseguiu. Além do barulho normal de uma fazenda que
despertava, a raiva também o torturava. Finalmente desistiu de repousar. Levantou-se do colchão,
sentindo-se cansado, deprimido e dominado por um medo desconhecido. O vinho acabara, mas o
alimento trazido por Samantha ficara intocado. Tomava-se impossível comer, quando nem sabia
o que o amanhecer lhe reservava.
Como fizera de madrugada, começou a andar pelo espaço livre do armazém, finalmente
parando perto da janela gradeada. Olhou para a bela casa, imaginando se seu destino já estava
traçado.
Reese lavou o rosto e as mãos com a água levada por um dos criados que acompanhara
Samantha O’Neill na noite anterior. O homem ofereceu-se para barbeá-lo, aparentemente
temeroso de deixar uma navalha afiada em poder do prisioneiro. Reese concordou e sentou-se no
caixote que também servia de mesa. A mão direita amanhecera inchada e vermelha, mas ele até
ficava satisfeito com o desconforto. A dor física parecia ser a única coisa real naquela seqüência
de acontecimentos dignos de um pesadelo.
Depois que o criado saiu, tentou comer. O pão fresco e o presunto com ovos estavam
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
realmente bons, mas seu apetite desaparecera. Forçou-se a engolir um pouco do alimento,
sabendo que não podia permitir-se ficar fraco.
Voltara a sentar-se no colchão quando um dos irmãos de Samara , o de gênio irascível,
entrou no armazém. Não se lembrava do nome daquele, que tanto podia ser Marion, Conn ou
Jeremy. Qualquer um, menos Brendan. O capitão Brendan O’Neill estava no mar, atacando
navios ingleses. Sacudiu a cabeça, achando inacreditável que tivesse sido envolvido numa
situação tão constrangedora.
_Meu pai quer vê-lo - anunciou o jovem.
Sem uma palavra, Reese levantou-se e acompanhou o irmão de Samara , satisfeito com a
oportunidade de sair do confinamento e ansioso por descobrir o que Connor O’Neill tinha em
mente.
O chefe da familia encontrava-se sentado atrás da escrivaninha, no escritório, mas
levantou-se quando Reese entrou. O jovem O’Neill que o acompanhara saiu, fechando a porta.
A entrevista desenrolou-se num ambiente de calma, apesar das emoções tumultuadas que
dominavam os dois homens.
Qualquer outro se sentiria em posição de desvantagem naquelas circunstâncias, mas Reese
Hampton mantinha a postura firme. Apenas o rosto tenso traía o tumulto interior e Connor foi
obrigado a admirar a demonstração de orgulho e dignidade. A energia que emanava do físico
privilegiado e a frieza dos olhos verdes teriam intimidado um homem menos resoluto que Connor
O’Neill.
Incomodado pelo silencioso exame de que era objeto, Reese resolveu ser o primeiro a
falar.
_Há alguma razão especial para eu estar na sua presença, sr. O’Neill?
Connor teve mais um motivo para admirar o prisioneiro. Podia ser um maldito inglês, mas
possuía coragem e uma audácia notáveis. Nada no tom de voz ou na expressão do rosto sugeria
fraqueza ou aceitação da derrota. Connor pensou na conversa que tivera com Samara naquela
manhã. Não havia a mínima dúvida de que ela estava completamente apaixonada pelo inglês e de
que jamais perdoaria a família se Reese Hampton fosse maltratado. A própria experiência trágica
que tivera na juventude, a morte do irmão pelas mãos do pai de Samantha, tornava-o mais
sensível à nova situação. Ele poderia perder Samara para sempre, como Robert Chatham perdera
Samantha. E, possibilidade aterradora, sua filha morreria por dentro se perdesse o homem amado.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Portanto, era essencial que conseguisse fazer Reese Hampton concordar com o que fora
planejado.
Estudando os olhos desafiadores, Connor pesou as palavras certas para nao aumentar a
hostilidade que ainda ebulia entre eles.
- Tem duas opções - começou, com voz firme e serena. - Talvez não aprecie nenhuma E,
se pode servir de consolo, digo-lhe que eu próprio não as apreciaria se estivesse em seu lugar.
Reese voltara toda sua atenção para Connor O’Neill. Minutos antes, quase
inconscientemente, deixara que seus olhos percorressem os livros enfileirados nas estantes altas.
Os livros de uma pessoa revelam muito sobre seu caráter e ele desejava conhecer um pouc& mais
sobre a índole de Connor O’Neill. Quando o homem começara a falar, porém, esquecera os livros
e fixara o olhar no rosto atraente e grave.
- Posso entregá-lo às autoridades e fazer tudo o que puder para minimizar as acusações e
conseqüentemente a pena. Tenho um pouco de influência e talvez, note bem, talvez consiga
salvar seu pescoço. Tenho quase certeza, no entanto, de que nada o livraria da prisão e que lhe
negariam o direito de ser repatriado, mesmo em troca de prisioneiros americanos.
O rosto de Reese Hampton não mudou quando, esperando alguma reação, Connor fez
uma pausa.
_Ou - continuou Connor - podemos oferecer-lhe relativa liberdade em Glen Woods, como
fez com meu filho no navio. Não poderá ver ninguém que não pertença a minha família. Quando
Brendan retomar poderá levá-lo para onde desejar, porque até lá suas informações terão se
tomado obsoletas.
Connor fez nova pausa fitando Hampton, que sustentou seu olhar de modo impassível.
_Enquanto isso - prosseguiu -, será tratado como hóspede, embora, por medidas de
segurança, fique com os movimentos limitados. Como os criados costumam falar mais do que
devem, logo os vizinhos saberão que há um estranho entre nós. Diremos que é um parente
distante, de luto pela esposa, que não deseja relacionar-se com ninguém. Só poderá sair de casa
acompanhado por um de nós e com o conhecimento dos outros.
Connor parou de falar e olhou pela janela, fugindo à expressão neutra do capitão
Hampton. Depois de vários segundos, voltou a encará-lo.
_E agora desejo saber o nome da pessoa que o ajudou, aqui na Carolina.
_Não - respondeu Reese simplesmente.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Nem mesmo se seu silêncio o levar à forca?
Reese encolheu os ombros com aparente indiferença, mas os olhos voltaram a brilhar com
a mesma raiva contida da noite anterior.
- Minha oferta não está condicionada a essa informação - declarou Connor.
_Não? Mas foi a impressão que tive.
_Eu precisava tentar.
Reese relaxou levemente e considerou o oferecimento. Detestava ser encostado na parede
e odiava ter de abrir mão de sua liberdade. Além do que, não desejava dever obrigação a Samara
ou a nenhum dos O’Neill. Seu orgulho já fora bastante pisado por aquela gente. Mas a forca era
algo irreversível e a prisão não oferecia atrativo maior. Decidiu apresentar sua única
reivindicação.
_Prometi aos meus tripulantes que tentaria ajudá-los. Não posso comprar minha liberdade
ao preço da deles.
Connor esfregou a nuca num gesto de frustração.
- Tenho amigos em Washington - revelou por fim. - Verei se posso conseguir que sejam
repatriados. Agora que o navio... e o capitão não existem mais, penso que não haverá grande
problema. Todavia, não posso garantir que serei bem-sucedido.
_Tenho sua palavra de honra de que fará o que for possível?
- Diabos, Hampton, você não está em posição de exigir nada.
_Pode me dar sua palavra, sr. O’Neill?
- Está bem. Dou-lhe minha palavra - concedeu Connor, sem saber se admirava o capitão
ou se ficava irritado com sua impertinência.
_Talvez, então, possamos tomar um conhaque juntos
_disse Reese, aceitando os termos da proposta.
Connor sorriu aliviado. Embora com relutância, Reese Hampton aceitara sua oferta.
Minutos depois, Sarnantha apareceu na porta do escritório e o marido fez um gesto para
que entrasse. Connor sorria, de modo que tudo saíra de acordo com o que fora planejado.
_Ficará no quarto de Brendan, capitão - informou ela, ignorando o olhar gelado que
Hampton lhe lançou. - Vou acompanhá-lo.
Levou-o para o andar de cima, onde pararam na frente de uma porta fechada. Quando
Samantha a abriu, Reese examinou o ambiente confortável.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Uma prisão de luxo, madame, mas o armazém teria servido igualmente. O resultado é o
mesmo.
Samantha fingiu não ter ouvido.
_Pode usar as roupas de Brendan. Talvez fiquem curtas e apertadas, mas Angel dará um
jeito de arrumá-las. Marion trará algumas roupas de tamanho certo quando for a Charleston.
_Pagarei por tudo, quando for possível.
_Está bem - concordou Samantha, desejando evitar uma discussão inútil.
_Marcus lhe preparará um banho. O jantar é às oito. Penso que deseja descansar até lá.
Todos nós tivemos uma noite terrível.
Ela sorriu e Reese admirou a compostura da mulher. Nada parecia assustá-la ou irritá-la.
Enquanto a olhava pensativo, Samantha saiu do quarto.
Reese olhou em volta, captando todos os detalhes do aposento. Viu diversas armas
penduradas nas paredes, inclusive um mosquete antiquado. Pegou-o, acariciando o fino lavor da
coronha. Recolocou-o no lugar, afastando a súbita tentação. Não. Ele aceitara as condições da
proposta, o que equivalia a uma promessa.
Pensou em Samara e procurou decifrar seus sentimentos por ela. Desejava odiá-la e
apagá-la de sua vida para sempre, mas Samara entrara em seu sangue, roubando-lhe a paz. E, a
despeito de tudo o que acontecera, queria-a com uma força que o espantava. Queria Samara , mas
não confiaria nela. Nunca mais.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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CAPÍTULO 14
O verão terminou e chegou o outono, pintando de tons dourados as folhas das árvores que
lentamente se despiam. A familía ainda não tivera notícias de Brendan e Reese passara a ser
encarado como um membro do clã, exceto por Conn, que ainda alimentava suspeitas e não
conseguia vencer a aversão que o “espião” lhe inspirava.
Todavia, Conn, apesar da perna endurecida, acreditava que ainda podia ser útil no
Exército e planejava partir em breve para juntar-se ao general Andrew Jackson no Alabama.
Notícias de um último massacre reforçaram o desejo que ele alimentava de continuar lutando,
coxo ou não. Os índios Creek, desgostosos com as incursões dos brancos em suas terras, haviam
capturado o forte Mims e massacrado seus habitantes. Quinhentas e cinqüenta e três pessoas,.
entre homens, mulheres e crianças. Andrew Jackson então ordenara a entrada no Alabama, onde
pretendia construir fortes e arrasar com a resistência dos índios.
Os O’Neill apreciaram uma notícia sobre a outra guerra, o conflito mantido contra a
Inglaterra. Oliver Hazard Perry derrotara uma frota britânica no lago Erie, resultando na
libertação de Detroit, ainda em poder dos ingleses.
Mesmo satisfeita, a família procurava refrear o entusiasmo em atenção a Reese, mas
tornava-se difícil esconder o júbilo pela vitória.
Reese começava a achar que as restrições impostas sobre ele o deixariam louco.
Naturalmente ativo e inquieto, o ócio forçado aumentava sua insatisfação, acrescida da preocu-
pação com seus tripulantes, ainda mantidos como prisioneiros, apesar dos esforços de Connor
O’Neill. Todos haviam sobrevivido e encontravam-se numa prisão de Boston, mas Reese temia
que sua própria reputação pudesse retardar o processo de repatriação de seus homens.
Notando sua crescente inquietação, Connor freqüentemente o convidava para acompanhá-
lo nas cavalgadas pela fazenda e Reese sempre aceitava. Interessado, aprendeu muito sobre o
trabalho nos campos e ficou admirado quando Connor explicou que os criados e trabalhadores da
lavoura eram livres.
Na primeira vez que saíram juntos, Connor percebera que Reese olhava os trabalhadores
com desaprovação e não fora difícil adivinhar o motivo. A maioria dos ingleses abominava a
escravidão e no parlamento inglês eram constantes as lutas para abolir possessões britânicas.
Connor, entretanto, acusava os ingleses de hipocrisia, pois persistiam em usar o trabalho de
condenados, muitos por causa de política, num regime de escravidão disfarçada. Ficava
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
particularmente irritado quando comentava que inúmeros escoceses e irlandeses haviam sido
enviados para trabalhar na América e depois na Austrália, tendo apenas praticado o crime de
defender seus direitos e suas terras da ganância insaciável da coroa britânica.
Connor desaprovava a escravidão em todas as suas formas e revelou a Reese que todos os
escravos de Glen Woods e Chatham Oaks haviam sido libertos, mas que a maioria permanecera
com os O’Neill, como trabalhadores assalariados. Connor comprava escravos ocasionalmente,
mas libertava-os depois. E aquele procedimento sempre dera frutos compensadores. As fazendas
dos O’Neill produziam quase o dobro das que mantinham mão-de-obra escrava.
Conhecendo todos aqueles fatos, Reese ainda mais apreciou e respeitou Connor O’Neill,
tendo verdadeiro prazer em acompanhá-lo nas vistorias em Glen Woods. A amizade entre os dois
homens cresceu e fortaleceu-se, como acontecera com Brendan.
Certo dia, de sua janela, Samara viu Reese e o pai chegarem aos estábulos depois de uma
cavalgada juntos. Observou-os com inveja e tristeza. Com o cabelo loiro brilhando ao sol e seu
corpo musculoso e esguio balançando com elegância ao ritmo do trote do cavalo, Reese tinha
aparência dominadora e fascinante, como tivera ao leme do Unicórnio. Todavia, era como se ele
estivesse a milhares de quilômetros de distância, e não ali, vivendo sob o mesmo teto que ela.
Para desespero de Samara , ele deixara bem claro que não desejava sua companhia.
Com orgulho e obstinação, ela decidira não deixar que ele percebesse como sofria. Não se
humilharia. Perdera seu coração para o honorável Reese Hampton. Honorável. Um nobre inglês,
que não podia verdadeiramente gostar de uma americana simples, nascida numa fazenda da
Carolina do Sul.
E o abraço ardente, os beijos sequiosos no bosque? Desgraçado Conn. Arruinara tudo.
Quando o irmão os interrompera, ela estivera à beira de descobrir algo maravilhoso e mágico nos
braços de Reese. Sua alma estivera a ponto de explodir de felicidade e seu corpo ardem com
sensações intensas, assustadoras e deliciosas. Desde então o desejo de Reese parecera
transformar-se em gelo e sua paixão em amigável tolerância. Apenas raramente ela captava um
lampejo interessado nos olhos verde-azulados, algo fugaz que desaparecia em um segundo,
deixando-a perdida em frustração.
Já fazia dois meses que ele estava em Glen Woods. Dias e dias de esperanças esfaceladas,
alegrias mortas e desejos sufocados. Reese não demoraria a ir embora. As informações que
colhera na festa de noivado de Emily já não ofereciam perigo, mas o pai queria que ele partisse a
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
bordo do navio de Brendan, com destino a um porto neutro onde não poderia causar dano aos
interesses dos americanos.
E assim Samara via os dias passarem, esperando e temendo. Queria que Reese partisse e
ao mesmo tempo desejava que ele ficasse para sempre. Amava-o e de repente o detestava,
emaranhada na rede implacável de seus sentimentos convulsionados. Nada mais era certo em sua
vida. E tudo porque um dia, bordando um pano de amostras, tivera a idéia louca de viajar com
Brendan. E fora apanhada num tufão que acabara por abalar seu mundo para sempre.
Não desistiria de descobrir se tudo não passava de fantasia de sua mente, ou se na verdade
Reese sentia alguma coisa por ela. Não o deixaria partir sem saber.
Então, mais uma vez, sua imaginação fértil e astuciosa começou a formular um plano.
CAPÍTULO 15
Samara planejou o ataque com o mesmo cuidado com que um general prepararia uma
batalha. Tudo estava perfeito, favorecendo o sucesso de sua trama. O pai fora para a outra
fazenda, Conn partira para Charleston com sua rabugice e Marion voltara para o destacamento
semanas atrás. Ainda havia a mãe, mas Samantha certamente ficaria várias horas no estábulo, às
voltas com um novo potrinho.
Samara pretendia convencer Reese a acompanhá-la numa cavalgada, mentindo que o pai
assim o pediria. Depois o levaria à caverna.
Mas quando o viu, perto da janela da biblioteca, distraído e inconsciente de sua presença,
Samara perdeu a coragem de enganá-lo. Nunca o vira naquela atitude de desânimo, com os
ombros caídos e os olhos perdidos em paragens que só ele via. Frustrado e dominado por
sentimento de fracasso.
E fora ela que o deixara naquele estado.
Fazia muito tempo que descobrira que o amava, desprezando-se por ele ser um inimigo, e
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
ele devia vê-la da mesma forma. Já não a fitava com o mesmo calor de antes e os sorrisos
encantadores tornavam-se cada vez mais raros. A medida que o tempo passava, o desgosto de
Reese devia aumentar, alimentando o vulcão que lhe ia no íntimo. Um dia entraria em erupção.
Preocupava-se com a situação de seus tripulantes e considerava o lar dos O’Neill uma elegante
prisão. Era um tigre forçado a refrear a energia entre as grades de uma jaula, a obedecer ao
comando do inimigo.
Samara não seria capaz de mentir a ele, enganá-lo e induzi-lo a fazer algo que apenas ela
queria. Com a maturidade nascida da descoberta de que o amava, Samara decidiu não mais
manipular Reese, ferindo seu orgulho.
Determinada, caminhou até ele e parou ao seu lado, querendo transmitir sua solidariedade
naquela situação de angústia.
_Não devia vir aqui - observou ele com voz rouca e grave, depois de um longo silêncio.
Ela continuou calada. Percebera na voz dele um tom de tristeza que a chocou. Onde
estava a arrogante autoconfiança que antes tanto a irritara?
_Vá embora, Samara .
_Quero mostrar-lhe uma coisa, Reese.
Ele então sorriu, entre melancólico e irônico.
_Posso saber o que me espera desta vez?
Ergueu a mão e afagou o rosto dela. A pele era macia, sedosa. E os olhos estavam cinza-
azulados, tocados de ternura e compreensão. Olhos perigosos. Samara era perigosa. Como o mar,
cheio de mistério que ele jamais chegaria a desvendar.
_Por favor, Reese, venha cavalgar comigo.
Ela viu indecisão nos olhos verdes e estendeu a mão para ele, sem ousar tocá-lo.
_Feiticeira - murmurou ele suavemente.
_Inglês - respondeu ela em tom de carinho.
Ele tornou a sorrir de leve.
_Sempre serei inglês, Samara . Sabe disso, não é?
_Sei. E provavelmente sempre será um pirata, um patife e...
_E você, americanazinha, sempre será uma menina ardilosa, cheia de mentiras. Casada,
hein? E eu, como um idiota, acreditei.
_Acho que fomos feitos um para o outro - declarou ela, sorrindo indecisa.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Talvez - admitiu ele.
Aquilo bastou para que o coração de Samara saltasse, tomado de esperança. Ele gostava
dela. A expressão dos olhos claros não podia ser falsa. E Reese dissera “talvez”, quase
reconhecendo que ela estava com a razão.
O ar sombrio desaparecera dos olhos luminosos, da cor do mar que ela tanto amava. Mas
ainda não revelavam se de sua energia. Nas últimas semanas a alegria de viver o ele reconquistara
o imenso amor pela vida, a única fonte abandonara e isso Samara não podia suportar.
_Está pensativa, Samara . Por quê?
Ela não respondeu, sustentando seu olhar inquiridor. Estava adorável, banhada por um
raio de sol. Os olhos grandes, tocados de luz, prendiam-se aos de Reese numa tentativa de
entrever o que lhe ia na alma. Os lábios rosados mantinham um sorriso incerto que o afetava de
maneira estranha. Samara o enternecia. Analisou a nova emoção. Já experimentara os mais
variados sentimentos com relação às mulheres, mas nunca sentira aquela ternura que invadia tão
completamente seu coração.
Ele a desejava como nunca desejara mulher alguma. A natureza apaixonada que ele
adivinhava estar escondida na inocência daquele corpo tornava Samara irresistível. Ela era viva,
arrebatada, cheia de otimismo e esperança. E possuía o espírito indomável que a levara a cometer
loucuras, como fugir de casa e partir numa viagem perigosa até para homens. Que a fizera
denunciá-lo como espião, como inimigo de sua gente. Certa ou errada, tivera a coragem de
defender seus ideais e manter-se leal aos seus valores. Do ponto de vista um pouco cínico de
Reese, lealdade era qualidade rara em uma mulher, algo que sempre procurara sem encontrar. Até
conhecer Samara .
_Por favor, venha comigo - pediu ela mais uma vez. Reese ainda procurou uma desculpa,
mas desistiu. Queria sair de casa, correr a cavalo pelos campos, sentir o sol no rosto, fingindo ser
livre. Queria estar com Samara . Derrotado, fez um gesto de assentimento.
Samara levou-o para fora dos limites da fazenda, ao longo do Pee Dee, passando por um
agrupamento de carvalhos e ciprestes gigantescos, de cujos galhos pendiam longos babados de
musgo. Aquela terra era inacreditavelmente fértil e exuberante. Reese comparou-a em
pensamento aos campos de cultura e jardins perfeitamente ordenados da Inglaterra, onde não se
permitia que a natureza se tornasse selvagem. Havia uma beleza primitiva e envolvente naquela
parte da
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
América que tornava possível entender por que ali nasciam mulheres independentes e sem
sofisticação como Samantha e Samara O’Neill. Mulheres que talvez não conseguissem
sobreviver numa sociedade como a inglesa, tantas vezes cruel e destruidora com suas convenções
rígidas.
Reese pensou na primeira vez em que vira a mãe de Samara , vestida como um homem,
usando com total naturalidade calças e camisa de algodão. Lembrou-se do espanto que o tornara.
Depois, vira a própria Samara escapar de casa vezes sem conta, vestida da mesma maneira,
tornando-se tão sensual que ele latejara de desejo ao vê-la.
Olhou para Samara , que cavalgava à sua frente, arrependendo-se de ter cedido às
súplicas. Ela possuía o poder de aquecer-lhe o sangue e anuviar-lhe o raciocínio, enfraquecendo
suas defesas.
Todavia, já era tempo de esclarecer a situação. Havia perguntas demais sem resposta,
torturando-os em cada olhar, em cada palavra trocada. Ele seria louco, se continuasse a ignorar o
amor que brilhava nos olhos dela, ou a negar seu próprio desejo e a força magnética que o
arrastava para Samara . Desejo. Atração física. Nada mais. Então, por que uma dor tão lancinante
o trespassava quando pensava em separar-se dela para sempre?
Samara parou perto da caverna e Reese rapidamente desmontou e amarrou as rédeas do
cavalo a uma árvore antes de oferecer-lhe a mão. Lembrando-se do que acontecera no outro
passeio, ele soltou-a assim que a viu no chão e recuou, esperando para ver o que ela desejava
mostrar-lhe.
Ela abriu caminho, afastando a espessa vegetação ao redor da entrada da caverna e
desaparecendo em seu interior. Reese seguiu-a, embora relutante. Com curiosidade, ele examinou
o lugar que se alargava da entrada para o fundo, formando um rústico aposento. Abandonados ali,
vários objetos acusavam que o lugar era usado de vez em quando. Roupas velhas, uma caneca de
lata, velas e um balde.
Observou Samara acender uma vela. Seu rosto brilhava sob a luz e os olhos lindos
cintilavam, quando ela o fitou, desejando ver sua reação.
E então ele sentiu. Um calor diferente. O dia estava frio, e a caverna, protegida do sol,
gelada. Lentamente, porém, ele percebeu que era envolvido por uma espécie de calor
sobrenatural. Afastou a idéia excêntrica. Devia haver uma causa natural para o fenômeno, alguma
fonte de água quente subterrânea, talvez. Deixou de pensar naquilo quando Samara caminhou
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
para ele.
A luz bruxuleante da vela, estava linda como uma aparição. O rosto delicado revelava
amor e os olhos cinzentos guardavam uma pergunta muda.
- Não - ele tentou dizer, mas o som de sua voz desapareceu quando ela ergueu os lábios
para os seus, com o mesmo teimoso propósito que já demonstrara tantas vezes.
Ela mantinha os olhos nos dele, procurando uma resposta, sabendo que o que veria neles
não seria uma mentira.
E a resposta veio violenta, quando ele a abraçou com força, roçando os lábios nos dela, a
princípio numa carícia suave e depois exigentes, fazendo explodir as centelhas do desejo que se
represava em seus corpos.
Samara apertava-se a ele e os dois sabiam que daquela vez não haveria volta.
Percorreriam todo o caminho maravilhoso que os levaria à realização de um sonho. Beijaram-se
durante longo tempo e, quando se separaram para olhar-se extasiados, consumiam-se no fogo da
paixão avassaladora.
Ela ergueu a mão e acariciou o rosto de feições tão masculinas e belas de que emanavam
poder, vontade férrea e um encanto irresistível.
- Eu te amo, Reese - murmurou, incapaz de guardar o segredo por mais tempo.
Ele recuou ligeiramente, colocando as mãos nos ombros dela e mergulhando o olhar nos
enfeitiçadores olhos cinzentos que, mesmo sem a luz da vela, caída e esquecida no chão,
fulguravam com uma chama interior terna e quente. Nos segundos que durou aquele olhar, ele
viu desejo e esperança transformarem-se em medo e depois em desespero.
Ela sentiu-se invadida pela mais profunda infelicidade e virou o rosto para que ele não
visse as lágrimas que alagavam seus olhos. Revelara seu amor e Reese guardara silêncio, mais
eloqüente que qualquer palavra.
Ele tornou a abraçá-la, beijando-lhe os cabelos perfumados, desejando poder confortá-la,
possuí-la, transformá-la em sua mulher. Mas hesitava. Era um fugitivo da justiça, um estrangeiro
naquela terra, um inimigo do povo a que Samara pertencia. Era amigo de Brendan e de Connor
O’Neill e seria errado seduzi-la e não poder casar-se com ela. E casamento, pelo menos no
momento, estava fora de cogitação. Nada tinha a oferecer enquanto permanecesse na condição de
prisioneiro.
Sentiu-a tremer e as lágrimas silenciosas que ela derramava molharam seu peito, passando
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
através do tecido da camisa. Sacudiu a cabeça desalentado. Pobre Samara , tão indefesa diante
dos próprios sentimentos. Uma virgem confusa, atormentada pelo amor e pelo desejo, com que
ainda não sabia lidar. Reese não resistiu mais. Não podia suportar aquela angústia calada.
Descobriu então, com clareza cegante, que a amava e que preferia morrer a fazê-la sofrer.
Ergueu o rosto afundado em seu ombro com infinita delicadeza e beijou as faces
molhadas de lágrimas. Depois, olhou-a com gravidade.
- Eu também te amo, Samara - declarou lentamente. Jamais esperara dizer aquelas
palavras e elas saíram acanhadas, soando estranhamente. Indecisa, Samara olhou-o, esperando
uma confirmação. Ele sorriu, então, deixando que seu rosto se iluminasse e fazendo com que ela
mergulhasse na mais espantosa felicidade. Um mundo dourado onde apenas os dois existiam.
- Precisa me perdoar, feiticeira. Nunca disse palavras de amor a ninguém.
Ele a amava! O coração de Samara não podia conter tanta alegria. Sorrindo entre
lágrimas, acariciou o rosto adorado.
- Repita que me ama, Reese, por favor. Uma vez, cem vezes!
- Eu te amo, eu te amo, eu te amo!
Beijaram-se cheios de júbilo, antes de olharem em volta, procurando um lugar para sentar.
Havia muito que resolver, muito que falar. Ele viu um velho cobertor entre as roupas amontoadas
a um canto. Pegou-o e estendeu-o perto de uma das paredes de pedra. Tomando Samara pela
mão, ajudou-a a sentar-se e só então ocupou o espaço ao lado dela. Passou o braço pelos ombros
delicados e apertou-a contra o peito, deleitando-se com o contato.
- A questão é, Samara , o que vamos fazer agora?
- Se nos amamos...
- Isso não basta, meu bem. Se eu for apanhado, poderei ser enforcado. Não posso
permanecer nos Estados Unidos, e não sei se você se adaptaria à vida na Inglaterra.
- Serei feliz em qualquer lugar, desde que esteja com você.
Samara não podia pensar com clareza, perdida na euforia de saber que seu amor era
correspondido. Tudo parecia fácil. Não havia obstáculos e o mundo todo poderia ser conquistado.
Ele sorriu. Impulsiva Samara . Sempre confiando em que não havia dificuldades
impossíveis de serem vencidas.
- Partirei com Brendan - avisou. - Assim que ele retornar e zarpar para outra viagem.
- Irei com você.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Clandestinamente? - perguntou ele, rindo.
- Sim, se for necessário.
- Acho que poderá viajar decentemente no meu camarote.
- Então...
- A guerra não vai durar eternamente - observou ele, novamente sério. - Está apenas
prejudicando seu país e o meu. Na Inglaterra já existem muitas frentes de pressão contra o
conflito e logo os dois países entrarão em negociação de paz. Até lá, você deve permanecer aqui,
querida. Será muito perigoso viajar enquanto as hostilidades persistirem.
- Mas você e Brendan...
- Somos soldados. Sei que não vai acreditar, mas teve muita sorte de ser eu a capturar o
Samara . Nem todos os corsários têm os meus escrúpulos. Você é uma dama adorável, minha
feiticeira, e não quero que ande pelos mares despertando a luxúria de... piratas - completou ele,
no velho tom de provocação.
Ele tornou-lhe a mão, entrelaçando os dedos nos dela. Samara olhou as mãos unidas e
sorriu. Amava-o e nada sabia a seu respeito.
- Nunca amou antes? - perguntou num cochicho.
- Nunca. E você? Ernily disse que seus pretendentes formam uma longa fila.
- São todos uns tolos - declarou ela, com tão grande ar de enfado que ele sorriu divertido.
- Nunca pensou em se casar?
- Não. Até conhecer... você.
- Devo então me sentir duplamente honrado - comentou ele com galanteria.
- E você, por que não se casou? Dizem que os casamentos na Inglaterra são arranjados
para atender conveniências.
_Muitos realmente são - concordou ele. - Mas também muitas pessoas casam-se por amor.
Nem meu pai conseguiu obrigar-me a casar, embora tenha tentado obstinadamente. Jamais me
casaria sem amor. E nunca pensei que fosse me apaixonar, um dia.
Samara exultava. Era única para ele. Contudo, ainda não estava satisfeita.
- Nunca ficou noivo sequer? - perguntou, incapaz de acreditar que ele nunca tivera uma
ligação mais séria com uma mulher.
- Não - respondeu ele, não levando em consideração a farsa de seu noivado com Eloise
Stanton. - Não, até este momento. Estou noivo de uma feiticeira.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Oh, Reese...
- Aceita um inglês, um pirata canalha, como marido? Não foi assim que falou de mim a
seu pai?
Ela riu, deliciada com o tom brincalhão com que ele revestia palavras tão sérias.
- Usei muitas outras palavras que a esposa de um nobre inglês não deve falar em
circunstância alguma. E...
Reese silenciou-a com um beijo. E as centelhas da paixão voltaram a inundá-los de calor e
luz, iniciando um incêndio delicioso, onde os dois desejavam se consumir.
As mãos dele iniciaram uma exploração sensual pelo rosto morno de Samara , seguidas
pelos lábios sequiosos que traçavam caminhos de fogo pelas feições delicadas. Desceram para o
pescoço esguio e alcançaram os botões da jaqueta, soltando-os, expondo os seios que se achavam
nus sob o tecido espesso.
Imitando-o, Samara abriu-lhe os botões da camisa, acariciando o peito coberto de pêlos
loiros e macios como tantas vezes desejara fazer.
Olhando-se, deixando que suas mãos tocassem os corpos, ficaram em silêncio, dominados
pelos sentimentos que não precisavam de palavras.
Aos poucos, gentilmente, ele a livrou do traje de montaria, olhando para o corpo adorável
que se aninhava em seus braços.
Samara não se envergonhava, consciente de que se amavam e de que sua união era tão
natural quanto respirar. Via nos olhos dele que Reese a achava bela e sorriu de contentamento.
Não desviou o olhar quando ele começou a se despir, admirando a beleza do corpo sólido, cheio
de graça felina.
Ele ajoelhou-se ao lado dela e tornou a mão que ela lhe oferecia.
_Tem certeza de que deseja isto, Samara ?
_Sim, meu amor. Deite-se aqui ao meu lado.
Mais que qualquer outra coisa no mundo, ela desejava senti-lo junto ao seu corpo, provar
o calor de sua pele, entregar-se à sua virilidade.
Ele obedeceu, tornando-a nos braços, beijando-a com uma ternura que não julgara
possuir, preparando-a para o momento glorioso em que seriam um so.
Samara sentia apenas as mãos que a acariciavam, levando-a a um mundo de cores
vibrantes que lhe tiravam o controle da mente, deixando apenas um turbilhão de sensações a
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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devastá-la por completo.
Agarrou-se a ele, oferecendo-se inteira.
CAPÍTULO 16
Connor O’Neill permaneceu silencioso e atônito depois de ouvir o que Reese Hampton
tinha a dizer.
Na verdade, passara a gostar do inglês arrogante, reconhecendo suas qualidades. Também
acreditara que ele manteria uma atitude de reserva no que se relacionava a Samara e ficara
tranqüilo, apreciando a companhia do hóspede a princípio indesejável. Hampton era divertido,
extremamente inteligente e possuía a capacidade de entusiasmar-se com tudo o que via. Fazia
perguntas pertinentes, ouvia as respostas, suas opiniões eram valiosas e seu humor, picante.
Mas casar-se com sua filha?
Por melhor que fosse como pessoa, Reese Hampton continuava a ser inimigo de sua
pátria, um homem que tirava seu sustento da pirataria contra navios americanos. E, mais terrível
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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que tudo, um homem que levaria Samara para longe, para a Inglaterra, o país odiado.
- Não - disse finalmente, relanceando o olhar pela biblioteca, irritado e perplexo.
Seu olhar pousou em Samantha antes de voltar a fixar-se em Hampton. Samara fora
banida da sala no momento em que o pai percebera que rumo a conversa do inglês ia tomar.
- Não - repetiu. -. Não lhe damos nosso consentimento.
Sarnantha ocupava uma banqueta, ostentando um sorriso enigmático no rosto bonito e
sereno. Também não desejava que a filha fosse levada para a Inglaterra, mas, desde o primeiro
instante em que Samara lhe falara de Hampton, reconhecera que nenhum outro homem a faria
feliz. Ela se preocupara com a indiferença que Reese parecia dedicar a Samara , ficando contente
quando captava um olhar carinhoso trocado entre os dois. Sabia que ia deixar Connor furioso,
mas também já aprendera que ele acabaria por se acalmar e aceitar. O marido gostava de Reese, o
que já era de grande ajuda.
_Como pretende manter Samara ? - indagou Connor ironicamente. - Roubando os navios
de seus conterrâneos?
Reese não pôde reprimir um leve sorriso.
_Assim como seu filho rouba navios britânicos? - retorquiu com um brilho combativo no
olhar.
- Que o diabo o carregue para bem longe, Hampton! - desabafou Connor ao ver-se
encurralado.
O inglês era mesmo insolente, mas, por amor à justiça, e quem podia negar que suas
respostas eram inteligentes e perfeitamente razoáveis?
Reese, por sua vez, reconheceu que não devia exagerar nas respostas ácidas.
- Não mais perseguirei navios americanos - prometeu.
- Escolherei apenas os franceses.
_Existem muitos pretendentes à mão de minha filha. Americanos. Sólidos fazendeiros
sem idéias loucas - resmungou Connor.
_E a amiga de Samara me disse que todos rastejam aos seus pés. Mas sua filha, senhor,
não foi feita para um homem rastejante. Todavia, entendo suas dúvidas - concedeu Reese
solenemente.
Olhou para Samantha e sorriu de leve ao notar que ela lhe piscava um olho, dando a
entender que estava do seu lado.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Connor também viu.
_Você também, madame? Não se importa de ver sua filha partir para longe? Para a
Inglaterra, em nome de Deus? No meio de uma guerra?
- Não pretendo levá-la a lugar algum enquanto a guerra não acabar, senhor - interferiu
Reese. - Além disso, estou pensando em comprar terras aqui ou na Virgínia. Não posso levá-la
para a casa de meu irmão.
Connor percebeu que havia sinceridade na declaração de Reese e ficou pensativo. Tornou
a olhar para Samantha, pensando que um dia também tinham sido inimigos. Ele era Whig e o pai
dela um Tory convicto. O ódio os separava e no entanto o amor mais profundo os reunira. Um
amor que ainda crescia a cada dia.
Sorriu.
- Você é inglês e sempre será, mas, por todos os santos, gosto do seu jeito. E o admiro.
Muito mais do que a qualquer outro pretendente de Samara . São todos uns parvos.
A entrevista estava terminada. Samara , não acreditando que alguém pudesse ser tão feliz,
sentou-se à margem do rio, apoiando as costas no peito sólido de seu noivo, Reese Hampton.
Noivo. O homem prometido. Palavras simples, que encerravam um mundo de esperanças.
E ela chegava a ter medo de acreditar que um dia seria a esposa daquele homem magnífico.
Ainda não entendia por que ele a queria e receava ver o sonho despedaçado. Olhava para ele,
então, procurando a certeza de seu amor nos olhos faiscantes.
O amor estampado no rosto de Samara deleitava Reese. Ela enriquecera-lhe a vida com a
pureza de sua juventude, com a naturalidade dos gestos e com a beleza cativante da qual parecia
não ter consciência. Adorava os olhos cinzentos que mudavam de tom de acordo com seu estado
de espírito, com a cor do vestido ou do céu.
Não previra que a fosse amar com tanta intensidade, embora não a tivesse podido expulsar
do pensamento desde o primeiro dia em que a vira. Mesmo sem saber, apaixonara-se por Samara
no primeiro encontro, na cabine de Brendan, quando ela, aterrorizada, erguera a garrafa de vinho
para defender-se.
Abraçou-a com mais força, deixando que seu dedos brincassem com os cachos macios do
cabelo negro solto ao vento. Sentiu-a afundar-se mais contra seu peito, procurando calor naquele
dia frio de começo de inverno. Desejava-a a ponto de seu corpo latejar, mas controlava-se para
que a loucura desencadeada na caverna não se repetisse. Decidira que só a teria novamente
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
depois que estivessem casados e perguntava-se angustiado quanto tempo a guerra ainda duraria,
impedindo-os de realizar seu sonho de amor.
O tempo que lhes restava achava-se prestes a expirar. A família O’Neill recebera a notícia
de que Brendan ancorara em um dos inúmeros rios que desembocavam no litoral. A viagem fora
bem-sucedida e o Samara , após tantas pelejas, encontrava-se apenas ligeiramente danificado.
Brendan pretendia mandar repará-lo e providenciar o abastecimento para mais uma viagem, antes
de ir para Glen Woods numa visita breve.
Connor anunciara as novas na mesa do café da manhã, observando as várias expressões
que passavam pelo rosto de Samara . Ela estava feliz pela volta do irmão querido, mas
entristecia-se quando pensava que aquele retorno significava a partida de Reese. Samara
discutira, implorara e chorara para conseguir obter permissão para ir com Reese, mas o pai e o
próprio noivo haviam sido irredutíveis.
Samara virou-se para beijar o peito exposto pela camisa aberta pensando que jamais se
cansaria de sentir a proximidade de Reese, de acariciá-lo e amá-lo. Olhou para o rosto dele,
procurando gravar suas feições na memória.
Reese olhou-a detidamente. Uma profunda ternura suavizava o rosto que ele amava e os
olhos apaixonados brilhavam como estrelas. Ele a amava tanto! Inclinou-se e beijou os lábios
macios com imensa gentileza, dominando o desejo de cobri-la de carícias mais intensas.
_Samara , minha adorável ninfa - murmurou depois.
- Não devemos decepcionar Angel.
_Oh... - respondeu ela preguiçosamente.
Ele sorriu daquela languidez sensual. Depois riu, reconhecendo que tudo o que ela fazia o
encantava.
- Não quer comer o lanche que Angel preparou? - tentou novamente.
- Comer? Para quê? - protestou ela, recomeçando a lhe colar os lábios na pele do peito,
fazendo seu sangue ferver.
A pequena feiticeira o estava seduzindo. Foi o último pensamento de Reese antes de
mandar seus bons propósitos para o inferno e mergulhar na doce efervescência da paixão.
Muito depois, ficaram deitados na grama, de mãos dadas, ainda estremecendo de prazer.
O êxtase da união fora aumentado até atingir níveis quase enlouquecedores, com o pensamento
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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de que se aproximava o dia da separação.
_Não sei se vou suportar ficar sem você - lamentou-se Samara com a boca trêmula como
a de uma criança magoada.
Ele virou-se de bruços, puxando o cobertor que haviam trazido para cima de Samara .
- Eu sei, meu amor. Não vou me sentir melhor que você.
Ela balançou a cabeça com ar infeliz. Reese iria para as Bermudas ou para a Inglaterra,
onde ficaria cercado por mulheres atraentes, com títulos de nobreza.
Ele viu a expressão sombria que nublava os olhos lindos e adivinhou o que se passava no
coração de Samara .
- Nunca mulher alguma me fez sentir o desejo de estar com ela noite e dia. Uma mulher
com quem eu quisesse rir, dividir minhas tristezas, passar a vida inteira. E nunca existirá outra a
não ser você, Samara . Precisa acreditar nisso e confiar em mim.
Ela abraçou-o, afundando o rosto em seu peito, começando a chorar amargamente.
Reese apertou-a nos braços, murmurando palavras de consolo, sem perceber que seus
próprios olhos estavam úmidos.
Reese estava com Connor em Chatharn Oaks quando Brendan chegou a Glen Woods.
Jeremy, preocupado porque dependiam quase unicamente da produção de índigo, começara uma
plantação de fumo, que muito interessara a Reese. O solo ali era apropriado para a cultura de
fumo, fértil e com boa drenagem. Reese admirava Jererny por sua habilidade em extrair os
melhores resultados das plantações, sempre fazendo experiências e não receando aceitar inova-
ções. Era um fazendeiro nato.
Em Glen Woods, apenas Sarnantha e Samara encontravam-se em casa quando os criados
começaram a gritar anunciando a chegada de Brendan.
_O Sr. Bren chegou!
As duas mulheres entreolharam-se sorrindo e Samara sentiu uma onda de alegria, mesmo
sabendo que o retorno de Brendan apressaria a partida de Reese. Fazia meses que não via o irmão
e tinha muitas coisas a lhe dizer. Achava que ele aprovaria seu noivado com Reese e a amizade
entre os dois homens, que antes tanto a desgostara, transformou-se numa fonte de satisfação.
Gostaria que todos os irmãos participassem de sua felicidade, mas a aprovação de Brendan era
essencial.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Um lampejo de travessura passou pelos olhos cinzentos. Sabia que Brendan a achara
fantasiosa por afirmar que Reese não estava morto, contrariando toda a evidência. E Reese não
apenas estava vivo, como também morando em Glen Woods e noivo dela. Nada diria ao irmão,
querendo deixá-lo levar um choque quando Reese chegasse. Só então ela lhe daria a notícia
maravilhosa de seu noivado. Pediu à mãe que nada dissesse e correu a alertar os criados, dizendo-
lhes para não revelar nada.
A seguir correu e jogou-se nos braços do irmão, que acabara de desmontar e entregar as
rédeas a um criado.
Ele abraçou-a com força e depois afastou-se para poder examinar-lhe o rosto, satisfeito ao
constatar que o ar triste e desesperado desaparecera para dar lugar a uma expressão radiante.
Aquela era a Samara de sempre, apenas mais bela e autoconfiante, mais madura.
Tornou-lhe pela mão e a fez girar, enquanto ela ria deliciada, segurando a saia rodada do
vestido caseiro.
- Parece uma mulher apaixonada, irmãzinha.
- E estou, Bren. Estou apaixonada, sim!
Ele suspirou aliviado. Sua irmã vencera a paixão que nutrira por Reese Hampton. Estivera
indeciso sobre se devia contar o que lera num jornal inglês que encontrara a bordo de um navio
britânico que capturara. Reese Hampton e lady Emily Stanton, viúva de um conde, haviam
assumido compromisso de noivado. O artigo enfatizava a beleza da mulher, comentando que se
tratava de uma ligação por amor, assim como uma desejável aliança entre duas famílias
renomadas. O noivado fora anunciado durante o baile e os dois demonstraram estar
profundamente apaixonados.
Brendan guardara o artigo. Temendo que Samara ainda conservasse a esperança de que
Hampton estivesse vivo, pretendera mostrar-lhe a notícia do noivado. A desilusão a faria
esquecê-lo e parar de manter ilusões sobre sua sobrevivência ao naufrágio.
- Posso saber quem é esse homem de sorte? - perguntou afetuosamente.
_Espere até a hora do jantar, quando você o conhecerá
_respondeu Samara com um riso alegre.
_Por que me deixa curioso? Pelo menos me diga se vou gostar dele.
_Acho que sim, querido irmão. - Tornou a abraçá-lo.
_Oh, Brendan, estou tão feliz! Ele beijou-lhe a testa.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Mal posso esperar para conhecer o homem que conseguiu prender o coração de minha
irmãzinha. Se foi capaz de torná-la feliz desse modo deve ser muito especial.
Brendan olhou para a mãe, que também parecia muito satisfeita. Abraçou-a
carinhosamente e os três subiram juntos os degraus da escada que levava à varanda.
_Gosta do homem por quem Samara se apaixonou, mãe?
_Muito, meu filho.
_Quem, é?
_Não vou estragar a surpresa, Bren. Samara ficaria furiosa. Venha, filho. Estávamos
prontas para tornar chá quando você chegou.
_Ah, nada como a comida caseira, mamãe. Já nem posso pensar em biscoitos e carne de
porco salgada.
_Estou feliz por tê-lo em casa, filho. - Fez uma pausa, durante a qual o rosto bonito
entristeceu. - Quando planeja partir outra vez?
_Não tenho muito tempo desta vez, mãe. Sinto muito. Precisam de mim. Nossa marinha é
tão reduzi da que não pode dispensar ninguém por longos períodos. E no mar que essa luta pela
abertura dos portos deve ser ganha. Se conseguirmos prejudicar bastante a marinha mercante
inglesa, os comerciantes pedirão pelo fim da guerra.
_Oh, Brendan! Esse conflito está maltratando a todos - suspirou Sarnantha.
_Não vai demorar muito a acabar, mãe - declarou, e olhou para Samara . - Fale-me mais a
respeito desse pretendente que ganhou seu coração, menina.
_Estou noiva - anunciou ela orgulhosa.
Ele fitou-a com surpresa e sorriu jubiloso.
_Desejo-lhe toda a felicidade do mundo, Samara . Eu tinha medo que... - ele interrompeu-
se, não desejando despertar lembranças tristes, mas já era tarde demais.
_Tinha medo de quê? - indagou Samara com um leve sorriso, adivinhando que ele
pensara em Reese. A surpresa ia ser maravilhosa.
_De quê...
_De que eu fosse chorar a morte do capitão Hampton para sempre?
Brendan ficou encabulado, seu rosto admitindo a verdade.
_Como vê, preocupou-se à toa - comentou ela com displicência.
Ele suspirou de alívio.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Isso é muito bom, porque... - Calou-se de repente.
_Porque... - a irmã incentivou-o.
_E que encontrei um jornal inglês num dos navios tomados e li um artigo sobre o noivado
de Reese Hampton.
O rosto de Samara transformou-se. A alegria desapareceu e intensa palidez o cobriu.
Intrigado, olhou para a mãe, percebendo sua expressão de choque.
_Quando? - murmurou Samara com dificuldade.
Brendan olhou da mãe para a irmã, completamente aturdido. Algo estava acontecendo.
Algo muito errado. Poderia Samara ainda pensar em Reese, estando noiva de outro homem?
_Samara ... - começou ele, confuso.
_Quando, Brendan? Quando ele ficou noivo? Quem é a mulher? - insistiu Samara .
_Aparentemente, depois que deixamos as Bermudas. Ele foi para a Inglaterra e
comprometeu-se com lady Stanton, uma mulher da nobreza.
Omitiu que o jornal apregoara ser aquela uma ligação por amor. Com a intuição ditada
pelo afeto por aquelas duas mulheres, percebeu que devia calar-se. Samara dava a impressão de
que ia desmaiar e o rosto normalmente sereno de Samantha mostrava profunda perturbação.
Não entendia por que a notícia causava tanto espanto.
Afinal, Reese Hampton já morrera e Samara comprometera-se a casar com outro homem.
_Sabe que os casamentos ingleses são arranjados para atender a certas conveniências -
disse, em tom apaziguador. - Quase sempre são alianças entre famílias, por uma razão ou outra.
Mas Samara sabia que Reese jamais se deixaria levar a um casamento de conveniências.
Ele simplesmente não toleraria tal prisão. Ele afirmara aquilo na caverna, assim como afirmara
muitas outras coisas.
Parou no topo da escada e começou a tremer, percebendo a traição de Reese. E ele dissera
estar apaixonado pela primeira vez. Confessara nunca ter dito palavras de amor a outra mulher.
Traidor! Vilão!
Angústia terrível apertou seu coração e Samara virou o rosto para que a mãe e o irmão
não vissem as lágrimas que ameaçavam rolar. Reese planejara deixá-la para trás, quando saísse
de Glen Woods, e nunca mais retornar. Tudo não passara de uma brincadeira para ele, que
precisava de uma distração para passar o tempo enquanto não pudesse sair dali, uma prisão
disfarçada. Que idiota ela fora! Todas as dúvidas e receios antigos, já sufocados, voltaram a
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
aflorar em seu coração. Samara o condenou como assassino de seus mais caros sonhos.
Brendan estava atônito. Mesmo sua imperturbável mãe parecia ter visto um fantasma
horrível. Olhou para ela, procurando uma explicação.
Samantha não conseguia falar. Não acreditava que pudesse ter-se enganado tanto a
respeito de uma pessoa. Não. Como poderia ter compreendido mal os olhares ternos e cheios de
amor que Reese lançava a Samara ? Reese era um homem honrado. Não pediria Samara em
casamento se estivesse comprometido com outra mulher.
_Talvez - disse por fim - seja outro Hampton.
_Não, mãe. O jornal dizia que se tratava de Reese Hampton, capitão do Unicórnio, o
irmão do conde de Beddingfield. Mas por que isso tem tanta importância? Por que a senhora e
Samara ...
_Reese Hampton é o homem com quem Samara ia se casar. O noivo que sua irmã
prometeu apresentar-lhe hoje à noite.
_Que diabo... Desgraçado! - explodiu Brendan, dando início a uma torrente de pragas,
esquecendo-se da aversão da mãe por tais palavras.
Samantha franziu o rosto desgostosa, mas secretamente reconheceu que o filho tinha
razão em ficar tão descontrolado. Finalmente, depois do desabafo, Brendan olhou para a mãe,
pálido de raiva.
_Mas como foi que isso aconteceu?
_Quando o navio naufragou, ele conseguiu nadar até a praia. Uma noite apareceu numa
festa na casa dos Fontaine...
Brendan passou um braço protetor pelos ombros de Samara e ouviu a mãe contar tudo o
que acontecera. Quando a narrativa terminou, seu rosto transformara-se numa máscara de pedra.
Todo o respeito e afeição que sentia por Reese Hampton desapareceu. O inglês não apenas se
prestara ao papel imundo de espião, como tirara vantagem da hospitalidade do pai e da
inexperiência de Samara . Não havia nada que pudesse explicar sua atitude desonesta.
- Matarei aquele desgraçado maldito - murmurou por entre dentes.
A ameaça tirou Samara do estupor em que caíra. Ainda atônita com o sofrimento que lhe
dilacerara o coração, descobriu que não podia deixar que Brendan fizesse mal a Reese. Não o
queria morto. Além disso, temia que, numa confrontação, Brendan perdesse a vida. Nem mesmo
seu corajoso irmão venceria Reese num duelo.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Não - declarou, colocando toda sua firmeza na única palavra. - Não.
_Ele... ele tocou em você? - indagou o irmão com voz fraca.
Samara sentiu-se estremecer. Não podia deixar Brendan saber da verdade. Ninguém
podia saber. Sua família mataria Reese sem a mínima compaixão. Ou o pai forçaria o casamento,
o que seria intolerável.
_Não... nunca. Ele apenas me beijou - mentiu.
Brendan olhou-a profundamente nos olhos e Samara precisou reunir toda sua
determinação para não jogar-se nos braços do irmão e contar a verdade.
- Ainda bem - disse Brendan, apaziguado. - Mas o que faremos com ele agora? Não posso
levá-lo para a segurança de outro país, no meu navio, quando ele esteve tão desaver-
gonhadamente brincando com o coração de minha irmã.
Samantha balançou a cabeça.
_Terá de fazê-lo. Seu pai deu-lhe a palavra de honra. E suponho que haja uma explicação
para tudo isso - acrescentou com sensatez.
_Não há explicação nenhuma - contestou Samara . - Ele mentiu sobre várias coisas.
Ela nunca se sentira tão vazia, tão mortalmente desiludida. Passou a mão pelos olhos
como se quisesse apagar as imagens do que acontecera na caverna e na margem do rio.
Reconhecia que se atirara nos braços dele com demasiada facilidade, procedendo como uma
leviana.
De repente um pensamento cruzou-lhe a mente. Não podia tornar a vê-lo. Era intolerável a
idéia de que ele visse a que ponto a reduzira. Precisava ir embora. Seu desespero evoluiu para
uma fria resolução.
_Quero ir para Charleston - comunicou.
Se fosse obrigada a ver Reese novamente, seria capaz de fazer uma loucura.
_Mas, filha... - começou Samantha a objetar.
_Por favor, mamãe, quero ficar com Melanie. Diga que sim, mamãe, antes que ele volte.
_Penso que deveríamos dar-lhe uma chance de explicar
_ponderou a mãe.
_Ele mentiu para mim, mamãe. Não há explicação para isso. Por favor, ajude-me a
conservar pelo menos meu orgulho.
_Eu não sei... - Sarnantha ficou indecisa.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Brendan olhou para as duas, tomando uma decisão.
_Acho que é o melhor a fazer. Vocês devem ir para Charleston imediatamente. César as
levará. Marion está lá e poderá trazê-las de volta. Levarei Hampton para o navio amanhã bem
cedo. Nem que seja amarrado. Se papai não lhe tivesse prometido que sairia daqui em segurança,
eu teria muito prazer em vê-lo enforcado.
_Não quero que papai e Marion saibam da verdade. Eles desafiariam Reese para um
duelo. Por favor, diga-lhes e a ele também que mudei de idéia. Que não quero me casar com um
inglês e que parti para evitar uma cena.
Brendan hesitou. Jamais mentira ao pai, mas Samara estava certa. Connor realmente
desafiaria o canalha para um duelo e provavelmente seria morto. Que Reese Hampton se
estourasse no inferno! E pensar que um dia o julgara digno de sua amizade. Quase não podendo
controlar a raiva, Brendan apertou a irmã nos braços e ajudou-a a entrar em casa.
_Se deseja partir antes que ele volte, é melhor apressar-se - aconselhou.
Seu coração doeu quando ele viu como Samara lutava para esconder o sofrimento,
enquanto o deixava e subia para o quarto para preparar a bagagem.
Feliz e inconsciente do golpe que o esperava, Reese atirou a cabeça para trás e riu
divertido, ouvindo a vívida descrição que o futuro sogro fazia de seu casamento com Sarnantha,
mais de trinta anos antes.
Fora um dia alegre e proveitoso e Reese resolvera vários problemas que lhe agitavam a
mente. E o mais importante, decidira comprar terras no Sul assim que a guerra terminasse, o que
deixara Connor imensamente feliz.
Reese aos poucos descobrira que gostava dos americanos.
Gostava de sua independência, de seu espírito despojado, de seu amor pelo trabalho. E
naquele país surpreendente ainda havia muita terra disponível. E parte dessa terra seria dele,
onde, ao lado de Samara , começaria uma vida nova. Seu senso de honra impedia-o de abandonar
a pátria em tempo de guerra, mas assim que a paz reinasse a América seria seu lar.
Discutira com Connor a possibilidade de ele e Samara casarem-se imediatamente, antes
da partida com Brendan, mas haviam chegado à conclusão de que não seria aconselhável. Reese
não era rico, tendo de mandar a maior parte do dinheiro para Beddíngfield. Precisaria voltar à
profissão de corsário a fim de amealhar fundos para a compra das terras que desejava. Portanto,
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
seria melhor Samara ficar com os pais, onde teria conforto e segurança, do que ir para uma terra
estranha, um país inimigo, e ver-se rodeada de muita gente hostil e preconceituosa.
E havia outro problema. Para casar, Reese teria de usar seu nome verdadeiro, do contrário
o matrimônio não teria validade. E Reese Hampton era um nome que já se tornara conhecido nas
Carolinas. Todos o julgavam morto, e, se ele ressuscitasse de repente, colocaria a família O’Neill
em grande perigo.
Discutidos os obstáculos, Connor, num raro impulso de fazer confidências, contara a
Reese as circunstâncias de seu casamento com Samantha, fazendo-o rir.
_Samantha não usou seu nome verdadeiro, quando nos casamos pela primeira vez, e eu
não sabia que não estávamos legalmente casados até o momento em que ela entrou em trabalho
de parto para dar à luz Brendan - relatara.
_Meu Deus! - exclamara Reese rindo.
_Minha mulher estava na casa de uma amiga que dirigia um famoso bordel. Saí correndo,
praticamente raptei o pastor da igreja local e arrastei-o para aquele “antro de pecado”. Trocamos
nossos votos minutos antes de o bebê nascer. Acho que o pastor jamais se recuperou do choque,
mas foi bastante gentil para ficar no bordel o tempo suficiente para participar do brinde que
erguemos à criança. Como vê, não foi o primeiro a ser raptado pela familia O’Neill.
Reese sorriu.
_E o senhor tem um jeito muito especial para cativar suas vitimas.
Foi a vez de Connor rir. Gostava de Reese cada dia mais. Se pelo menos não fosse
inglês... se a maldita guerra terminasse... tudo seria perfeito.
No meio do caminho de volta para Glen Woods encontraram-se com um criado que lhes
deu a notícia da volta de Brendan. Reese sentiu uma pontada de desapontamento. Seus dias ao
lado de Samara estavam contados. Contudo, a idéia de que poderia reforçar os laços de amizade
com Brendan restaurou-lhe o bom humor. Havia poucos homens que ele apreciava realmente e
Brendan era um deles. Desejava a amizade e a aprovação do futuro cunhado, não apenas por si
mesmo, mas por Samara também. Ela adorava aquele irmão e valorizava sua opinião acima de
qualquer outra.
Ansioso e satisfeito, Reese entrou na biblioteca com a mão estendida e um sorriso aberto
no rosto atraente. Sua expressão mudou ao ver o olhar glacial que Brendan lhe lançou. Deixou a
mão pender, totalmente confuso. A atmosfera da sala era de tensão, espelhando-se nos
movimentos nervosos de Brendan O’Neill.
Reese entrara sozinho, deixando Connor nos estábulos a dar ordens aos cavalariças.
Apertou as mãos, nervoso e sem entender o que acontecia.
- Você já sabe que pedi Samara em casamento - observou, sem cumprimentar o futuro
cunhado. - Pensei que fosse ficar satisfeito.
- Não há mais noivado, assim como não haverá casamento - retorquiu Brendan com
aspereza, fixando nele os olhos gélidos. - Samara descobriu que não quer ser sua esposa. Foi
embora de Glen Woods e só voltará quando você já tiver partido comigo. Amanhã cedo iremos
para Charleston.
_Você está mentindo - acusou Reese com veemência.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_O bom julgador julga os outros por si mesmo - atirou Brendan com brutalidade. - Está
acostumado a mentir e vê mentiras em toda parte. Mas o que eu disse é a pura verdade. Minha
irmã não quer um marido da sua nacionalidade, do seu caráter e da sua profissão.
Reese sentiu que a terra ameaçava desaparecer de sob seus pés. O que acontecera, afinal?
_Brendan... - pediu, sem poder esconder uma nota de desespero na voz.
_Esteja pronto para partir de madrugada - ordenou Brendan, impiedoso.
_Preciso falar com Samara .
_Ela não quer falar com você. Nem agora, nem nunca mais. Descobriu que ia cometer o
maior erro de sua vida.
_Não acredito em você.
_Isso pouco me importa, Hampton. Não tente nenhuma bobagem. Você vai partir comigo
amanhã, nem que eu tenha de amarrá-lo. Se não fosse por meu pai, que lhe deu sua palavra de
honra de que o manteria em segurança, eu o entregaria às autoridades como espião de meu país.
Havia uma nota falsa nas palavras de Brendan, e que Reese não conseguia definir. Sua
carreira de espião fora muito curta, para não dizer inexistente, para causar a raiva tremenda que
adivinhava estar dominando o outro homem.
Os dois encaravam-se com seriedade quando Connor entrou. Como acontecera com
Reese, seu sorriso desapareceu ao sentir o clima tenso.
_Brendan, que bom ver você! - exclamou. - Já sabe do noivado de...
_Pai, Samara decidiu romper o noivado. Descobriu que não quer morar na Inglaterra.
_Mas Reese vai...
_Samara foi visitar alguns amigos. - Brendan interrompeu o pai. - Ficará fora de casa
durante vários dias. Mamãe foi com ela. Devo voltar para o meu navio amanhã e Hampton irá
comigo.
_Mas... - Connor tentou dizer alguma coisa, sendo novamente impedido.
_E isso que Samara quer, papai.
Apesar da aparente firmeza, Brendan estava estupefato. Não ficara muito surpreso ao
constatar que a mãe gostava do inglês. Hampton possuía um poder de atração irresistível. Mas o
pai... Então lembrou-se de como ele próprio sentira-se atraído para Reese Hampton a ponto de
aceitar-lhe a amizade.
_Eu não entendo - confessou Connor, começando a ficar zangado. Reese era um hóspede
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
e Brendan o tratava com grosseria e arrogância, de certa forma usurpando a autoridade paterna. -
Onde está Samara ? Ela deve uma explicação a Reese.
_Ela não deve nada a esse homem.
Connor franziu a testa, diante da declaração enfática. Aquele modo de agir de Brendan
não condizia com seu caráter calmo e ponderado. Havia alguma coisa por trás daquilo tudo. Algo
que o filho lhe escondia. Não desistiria de apurar a verdade, mas nada podia fazer na frente de
Reese. Voltou-se para ele.
_Gostaria de ficar a sós com meu filho, por favor.
Reese, cujo ressentimento aumentava a cada segundo, deu de ombros, simulando
indiferença.
_Não partirei sem falar com Samara - comunicou, caminhando para a porta. Virou-se
para olhar para os dois O’Neill e seus olhos faiscantes denotavam fúria e desafio.
Fechou a porta ao sair, com calma enganadora, e andou para a porta da frente, saindo da
casa. Ficou parado na varanda, olhando para as árvores desnudadas pelo inverno. A paisagem
estava solitária e triste sem o verde da vegetação, mas ele não percebera até aquele momento. A
felicidade que o inundara nos dias anteriores fora como um sol brilhante que dava vida a tudo,
iluminando seu íntimo e tudo ao redor. E o sol de repente se apagara.
A raiva foi desaparecendo e em seu lugar nasceu um terrível vazio. Reese sentia-se oco e,
como poucas vezes na vida, desorientado. Tivera plena certeza de que Samara o amava e
desejava ficar com ele para sempre. Talvez ela houvesse descoberto que havia muitas diferenças
entre eles e se arrependera. Mas ela se entregara tão cheia de amor e confiança. Sem nenhuma
reserva.
Precisava reconhecer que Samara era jovem demais e que fora protegida de tudo durante
toda a vida, crescendo com certa inexperiência, apesar de sua natureza independente. Brendan
devia ter dito alguma coisa para influência-la. Ele tratara Reese com animosidade e sua atitude
oferecia outro enigma naquela seqüência de fatos inexplicáveis. Um ano atrás tinham ficado
quase amigos, gostando um do outro. Faltara apenas convivência para solidificar a amizade.
Reese ergueu a mão e friccionou a nuca, desanimado e frustrado. Desceu a escada e
começou a caminhar sem destino, mal percebendo que dois criados o seguiam como sombras.
_Não posso acreditar que Samara tenha feito tal coisa - disse Connor, quase gritando. -
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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Nunca a vi tão feliz como nos últimos tempos.
Brendan virou as costas ao pai e fitou a parede coberta de estantes da biblioteca.
_Penso que ela ainda não tinha percebido o que significaria estar ligada a um inimigo. Ela
o veria partir, sabendo que ele iria combater os americanos. Muito provavelmente, lutaria comigo
no mar.
_Isso é bobagem - resmungou Connor. - E você sabe disso. Reese não continuaria a atacar
navios americanos. E quanto aos franceses... quem se importa com eles? A França já atacou e
aprisionou navios americanos demais. Merece que lhe façam o mesmo.
Brendan girou nos calcanhares, olhando o pai de modo acusador.
_Ele enfeitiçou você também, não é, pai? Não consegue encarar a verdade? Estava na
Carolina do Sul espionando, traindo segredos do nosso país. Ele revelou os nomes de seus
cúmplices? Quem o ajudou aqui na Carolina? O que é que sabemos dele, afinal? Até pode ser
casado, ou noivo, na Inglaterra. Os membros da nobreza britânica não se casam com plebeus, e
nem por amor.
_Isso...
_Arranjam casamentos entre si - continuou Brendan, ignorando o pai. - Já pensou que ele
poderia estar usando Samara ? Usando a nós todos?
Interrompeu-se, agastado com o que dissera. Nunca fora tão rude com o pai e não
pretendera revelar nada do que lhe ia na mente. Mas deixara que a irritação o vencesse e fora
longe demais.
_Pensei - expôs Connor friamente - que ele fosse seu amigo. Foi a impressão que você me
deu, um ano atrás.
_Isso foi antes de eu saber que o inglês era um desgraçado espião.
_E Samara ? Ela sabia e não se importou. Até agora.
_Ela quis algum tempo para pensar e preferiu ficar longe dele para não ser influenciada -
explicou Brendan em tom mais moderado.
_Não é do feitio de Samara fugir de problemas.
_Esse era grande demais. E mamãe concordou com ela.
Connor olhou-o com descrença. Sarnantha gostara de Reese desde o começo e sempre
achara que ele e Samara formariam um par perfeito. Essa fora uma das razões pela qual Connor
capitulara, aceitando o inglês em sua casa como hóspede, quase como membro da família.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Você está escondendo alguma coisa, Brendan.
_Por que o faria?
_Por que concorda com sua irmã, defendendo a atitude dela com tanta veemência?
_Um noivado agora não faria bem a Samara . A guerra ainda pode demorar um ou dois
anos para acabar. Hampton poderia morrer durante esse tempo, ou mudar de idéia. E melhor
esperar até que a paz seja assinada. Se os dois ainda estiverem apaixonados... ele pode voltar.
Então saberemos que ele a ama realmente.
_Não entendo por que chegaram a essa conclusão repentina, mas sei que Reese não vai
concordar.
O rosto de Brendan endureceu.
_Pouco me importa. Ele colocou nossa família em perigo. Afinal, abrigamos um espião. E
se alguém nos denunciasse?
Connor precisou concordar com aquela hipótese. Manter Reese afastado quando havia
visitas tornara-se algo muito desagradável. E no distrito já começavam a murmurar sobre o
isolamento dos sempre sociáveis O’Neill. Suspirou, derrotado.
_Para onde foram sua mãe e Samara ?
_Charleston. Para a casa dos Demerest.
Connor ergueu uma sobrancelha, ainda bastante irritado.
_Vocês resolveram o problema muito bem, não foi? Esqueceram-se de que existe um
chefe nesta casa.
Em sua opinião, a mulher e os filhos estavam agindo de forma abominável. Dava razão a
Brendan apenas num ponto. A presença de Reese em sua casa colocava todos os membros da
família em perigo. Todavia, mesmo achando que o procedimento da filha em não querer explicar-
se era imperdoável, havia pouco que pudesse fazer. Apenas tentaria convencer Reese de que as
dúvidas de Samara eram normais, mas que ela as superaria e estaria à espera dele.
Reese foi até os estábulos, pretendendo pegar um cavalo e andar pela fazenda numa
tentativa de clarear as idéias e refletir sobre a situação. As restrições que limitavam seus
movimentos haviam sido eliminadas semanas antes e ele fora apenas avisado para permanecer
nos limites de Glen Woods por medida de segurança.
Mas quando pediu uma montaria, o cavalariça olhou-o com um sorriso incerto.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Desculpe, capitão, não posso. Ordens do sr. Bren.
Reese sentiu-se ultrajado. Já não confiavam em sua palavra. Com um gesto de despedida,
saiu da cocheira, mas não se afastou do lugar. Inclinou-se numa cerca e fechou os olhos,
pensando no absurdo das coisas que lhe aconteciam.
Gostaria de saber em que exato momento começara a perder o controle da própria vida.
Quando decidira atacar o Samara ? Quando deparara com uma garota suja e apavorada que
corajosamente o enfrentara? Quando ela tentara embebedá-lo? De qualquer maneira, sua vida
começara a mudar depois que conhecera Samara . Estivera desassossegado na Inglaterra, só
pensando nela. Contrariando planos anteriores, resolvera voltar à costa da Carolina do Sul. En-
contrara Samuels. Fora ao baile dos Fontaine. Um passo inexorável após outro.
Bem, mudaria a marcha dos acontecimentos. Talvez fosse um bem estar livre de Samara
e de toda sua família lunática. Nunca precisara de ninguém. Podia continuar sozinho.
Ouviu som de passos, mas não se virou.
- Sinto muito, Reese - declarou Connor, num tom de voz que deixava transparecer
sofrimento. - Talvez depois...
Calou-se. Se estivesse no lugar de Hampton, não gostaria de ouvir palavras vazias de
consolo.
- Partirei amanhã com Brendan - disse Reese lentamente. A despeito de si mesmo, a
mágoa pontilhara suas palavras. Apertou o arame da cerca com uma das mãos e voltou-se para
encarar Connor O’Neill.
- Eu sei que se arriscou por minha causa. E nunca farei nada que o faça arrepender-se
disso.
Os olhos verdes pousaram nos de Connor, que ficou abalado com a dor que viu ali
estampada.
Reese afastou-se da cerca e, caminhando lentamente, dirigiu-se para a casa.
Connor observou-o até vê-lo desaparecer e experimentou o desejo de estrangular todos os
confusos membros de sua família.
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CAPÍTULO 17
Aquele Natal foi o mais triste que Samara já conhecera. O mais infeliz principalmente
porque, semanas antes, esperara a data com ansiedade, achando que seria de indizível alegria.
Ao voltar de Charleston, no dia 15 de dezembro, Reese já partira e ela caíra numa apatia
que nada conseguia dissipar. Precisara esforçar-se para embrulhar os presentes que comprara em
Charleston sem nenhum entusiasmo. E ela amara os preparativos para o Natal mais do que nin-
guém, porém num tempo que parecia pertencer a um passado muito distante. Não embrulhou um
dos presentes, que escondeu no fundo do baú. Passara muitas noites tricotando um bonito
cachecol para Reese, na esperança de que ele permanecesse em Glen Woods até o Natal. Fora um
sacrifício por amor, desde que ela detestava trabalhos manuais. Mas queria dar ao noivo algo
diferente.
E tudo havia se acabado, mas Samara , como uma perfeita tola, não parava de pensar nele,
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desejando adivinhar onde estaria. Provavelmente no caminho para a Inglaterra e para os braços da
mulher com quem ia se casar. Ou talvez tivesse conseguido outro navio e recomeçado a perseguir
barcos americanos. Não. Ainda era muito cedo. Reese devia estar numa taberna qualquer,
comemorando sua libertação. Livre de Glen Woods, livre dela.
Só de pensar em Reese abraçando outra mulher, possuindo-a, ficava com os olhos cheios
de lágrimas. Nunca chorara tanto como depois que se encontrara com Reese Hampton. Mesmo
em criança, raramente chorava, ao se ferir ou quando ficava desapontada. Mas depois de
encontrar o amor e perdê-lo, as lágrimas rolavam com facilidade embaraçosa, nos momentos
mais inesperados. A mesa das refeições, andando a cavalo, lendo, lembrava-se de algum detalhe
dos dias felizes e não conseguia reprimir as lágrimas.
_Samara ! - A voz do pai tirou-a da divagação.
Enxugou o rosto rapidamente e olhou para ele, sabendo que os olhos úmidos e as faces
marcadas o deixariam ver que estivera chorando novamente.
Connor fitou a filha com tristeza. Logo que ela retornara de Charleston, ele nem tentara
disfarçar a censura, demonstrando que Samara o desapontara profundamente. Tornara-se tão
duro com ela, que sua esposa resolvera contar-lhe a verdade. Reese estava longe e o perigo de um
duelo ou qualquer outro tipo de confrontação já não existia.
Para espanto de Samantha, o marido ficara ainda mais furioso com ela, com Samara e
com Brendan, principalmente. Sarnantha só então percebera que o marido e Reese haviam ficado
mais amigos do que todos supunharn. Ela olvidara o ódio de Connor por mentiras e por injustiça
e, ao contar-lhe o sucedido, teve de suportar sua explosão de raiva.
_Vocês nem lhe deram o direito de defender-se, Samantha! Isso é injusto! Reese ia
comprar terras na Virgínia, ou aqui mesmo na Carolina, para que Samara não precisasse deixar o
país, ficando tão longe de nós. Um homem que pretendesse casar com outra mulher faria esse
tipo de planos?
_Talvez ele estivesse mentindo.
_Ninguém faz as perguntas que ele fez, querendo aprender tudo sobre a terra, se não
estivesse agindo seriamente. E nenhum homem olha para uma mulher como ele olhava para
Samara , se não está apaixonado. Você, Samantha, devia saber melhor que ninguém que arma de
dois gumes é o silêncio, a omissão de explicações.
_Fiquei com pena de Samara , Connor. Ela me implorou para não dizer nada. Não queria
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
ser mais humilhada, deixando-o saber que estava sofrendo.
_E não está com pena agora? Samara está definhando de tristeza. Por Deus, por que não
deram a Reese o direito de se explicar?
Samantha sacudira a cabeça desalentada.
- E o que podemos fazer agora, Connor? Também não suporto mais ver nossa filha tão
infeliz.
- Eu não sei. Se eu fosse Reese nunca mais chegaria perto desta família de insensatos.
Tentarei escrever para as Bermudas e para a Inglaterra, mas não sei o que poderei dizer nem qual
será sua reação.
E na tarde daquele dia de Natal, Connor sentou-se perto de Samara , solidário com sua
dor. Hesitava em entregar-lhe o presente que tinha nas mãos, mas prometera a Reese que o faria.
Antes da chegada de Brendan, quando tudo corria maravilhosamente bem entre os noivos. Reese
desenhara a jóia e pedira a Connor que a mandasse fazer num bom ourives, prometendo pagar
quando voltasse. Na manhã da partida, Reese recomendara que o presente fosse entregue no dia
de Natal.
Connor colocou o pequeno pacote na mão da filha.
- Um presente de Reese, Samara . Achei que desejaria abri-lo quando estivesse sozinha.
O pai saiu da sala e Samara ficou com o pacotinho nas mãos durante longos minutos
antes de desembrulhá-lo. Depois, cuidadosamente retirou o papel que o envolvia. Presa num
pedaço de veludo, havia uma medalhinha de prata. Em um dos lados fora gravada, com detalhes,
a imagem de uma escuna. No outro, uma garrafa de vinho.
Samara apertou a medalha na mão. Sentia as vibrações de amor que emanavam da
pequena jóia, enquanto mentalmente revia o brilho malicioso dos olhos verdes de Reese e ouvia o
som de seu riso.
Voltou a questionar se agira corretamente ao condená-lo com tanta rapidez. Fora
precipitada. Teria permitido que seu medo e sua incerteza destruíssem um amor maravilhoso?
- Errei? - murmurou para si mesma. - Fui injusta com Reese?
Levou os lábios à mão que segurava a medalha, enquanto novas lágrimas escaldantes lhe
escorriam dos olhos.
Reese tomou um gole generoso de rum puro, pensando no pesadelo que fora a viagem de
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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Glen Woods até as Bermudas.
Marion chegara na manhã seguinte à chegada de Brendan. Reese o vira da janela, onde
ficara a noite toda, incapaz de dormir. A vinda de Marion atrasou a partida e já era meio-dia
quando Reese e os dois irmãos O’Neill saíram de Glen Woods. Marion parecia completamente
aturdido e Brendan continuava carrancudo, mas a despedida de Connor fora calorosa, como se o
homem estivesse dizendo adeus a um filho. O fato sensibilizou Reese, que sentiu um pouco de
sua amargura se dissipar.
A despeito das ameaças, Reese não foi amarrado, mas Brendan o fez ficar entre ele e
Marion na viagem a cavalo até Charleston. Pararam brevemente para comer e deixar que os
animais descansassem e bebessem água. Quando finalmente alcançaram o rio onde o Samara
encontrava-se ancorado, Marion estava pensativo e sério. Não sabia o que acontecera para que
Brendan agisse daquela forma com Reese, tratando-o com hostilidade e vigiando todos os seus
movimentos. Também não entendia o silêncio angustiado de Reese. Despediu-se do inglês e
seguiu viagem para a entrada de Charleston levando os outros dois cavalos.
Brendan levou Reese para a cabine do segundo contramestre e ordenou-lhe que não
saísse. Era um espaço peq~.1eno e apenas uma escotilha acanhada permitia a visão do mundo
exterior. Foi apenas quando o Samara chegou ao alto-mar, na madrugada seguinte, que Reese
teve permissão para andar em liberdade pelo navio. Brendan não se aproximou dele, deixando-o
fazer as refeições sozinho no convés superior.
No fim do segundo dia o capitão O’Neill chamou-o à sua cabine.
_Estamos seguindo a costa da Flórida - explicou secamente. - Nas imediações de St.
Augustine, onde você poderá encontrar um navio. Meus homens o levarão até lá num escaler. -
Pegou uma bolsa de couro e atirou-a para
- Reese. - Aqui há bastante dinheiro para uma passagem até as Bermudas e para você se
manter em St. Augustine até a partida. Tem recursos nas Bermudas? -
_Sim - respondeu Reese, examinando o rosto de Brendan, tentando adivinhar o que o
fizera mudar daquele modo em relação a ele.
- Então nada mais temos a conversar. Isto encerra qualquer tipo de ligação entre você e
nossa família.
- Brendan...
O rosto do capitão ficou tenso. Era impossível ignorar a angustiada confusão nos olhos de
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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Reese, mas não estava com disposição para discutir.
- Volte para o seu mundo, Reese. Volte para o lugar onde todos conhecem as regras do
jogo que você joga.
- A que diabo de jogo se refere, Brendan?
- A brincadeira que fez com Samara .
Deixando-se dominar pela cólera, Brendan arremessou-se contra Reese, acertando-lhe um
soco no estômago. Reese ficou tonto, mas revidou o golpe, acertando Brendan no queixo e
jogando-o no chão. Permaneceu de pé, olhando para o adversário, apertando as mãos para
controlar o desejo de tornar a atacá-lo. Lutar com Brendan não resolveria nada.
Lentamente, o capitão O’Neill colocou-se de pé. Sufocava o impulso de chamar os
tripulantes e mandar açoitar o inglês. A costa da Flórida era um ponto perigoso, visado por
barcos, e ele não podia demorar-se ali por uma questão de satisfação pessoal.
- Um dia devolverei isto, Hampton - ameaçou baixinho e com um brilho de fúria no olhar.
- Estarei esperando.
Reese fora levado para a praia e começara a andar, lembrando-se da outra vez que
caminhara sozinho após abandonar o Unicórnio. Mas no momento encontrava-se em melhor si-
tuação. Tinha dinheiro e não se encontrava em solo inimigo.
A Flórida era uma possessão da Espanha e os espanhóis, temerosos da expansão
americana, aliavam-se aos ingleses.
Comprara um cavalo e comida. Em St. Augustine vendera o animal e embarcara num
barco com destino às Bermudas.
Yancy estava esperando por ele no cais de St. George. O médico esperara cada navio que
entrara no porto desde que ele e o resto da tripulação do Unicórnio haviam chegado, semanas
antes. Yancy explicara que a tripulação, presa numa masmorra de Boston, fora inesperadamente
trocada por prisioneiros americanos e enviada para as Bermudas.
Yancy não tivera notícias de Reese e não sabia se ele sobrevivera. Os dois se abraçaram e
seguiram para a taberna mais próxima.
Um dia depois, Reese ainda estava bebendo. Espalhado em duas cadeiras, bebia
diretamente da garrafa de rum, que pousava no chão entre um gole e outro.
Yancy olhava para ele com crescente preocupação. Nunca [ vira o capitão beber daquela
maneira e pela primeira vez ficou grato pelo fato de o rum ser adulterado, tendo uma boa parte de
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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água.
Na rua, cantores embriagados berravam cânticos de Natal, deturpando a letra e
desafinando na melodia. Só então o médico lembrou-se de que era dia de Natal e lamentou a
forma como o estavam celebrando, entre homens sujos e barbados tresandando a álcool. Até o
próprio Reese, de aparência sempre tão apurada, mostrava-se em estado lamentável.
_O quê, em nome de Lúcifer, aconteceu com você, homem? - perguntou, irritado com a
embriaguez do amigo.
_Tudo o que poderia ter acontecido - foi a resposta enigmática e engrolada.
_Explique-se - persistiu Yancy.
Reese passou em revista todos os acontecimentos dos meses passados. Fora espião e
acabara sendo raptado num baile. Ficara preso num armazém de fazenda, depois recebera
tratamento de hóspede, apaixonara-se, perdera a mulher amada, ganhara amigos e perdera-os
também. Finalmente recuperara a liberdade e aportara nas Bermudas. “Em nome de Lúcifer”, o
que lhe acontecera? Ele não sabia. Tudo parecia o enredo louco de um longo pesadelo.
_Você não acreditaria se eu lhe contasse, Yancy.
_Por que não tenta? Talvez eu possa ajudar. Sou seu amigo, Reese.
Reese abriu os olhos levemente.
_Não quero ajuda. As coisas são como têm de ser.
Queria a companhia de Yancy, mas não seus conselhos. Não desejava pensar em Samara ,
ou na Carolina do Sul.
_Nada do que você dissesse, ou fizesse, me ajudaria. Está tudo acabado, amigo. Nunca
mais - murmurou lentamente. - Nunca mais.
Yancy chocou-se com a amargura que percebeu na voz de Reese. Era algo aterrador.
_Reese, toda a tripulação está à sua espera - informou, desejando fazê-lo mudar o curso
dos pensamentos. - Rejeitaram bons contratos, mesmo sem saber...
_Se eu estava vivo ou morto? - Reese completou, lutando para recuperar alguma lucidez.
O comentário do médico causara-lhe um impacto. Responsabilidade e lealdade.
Qualidades importantes. Lealdade. Algo que quase não mais existia. Lealdade, confiança e
responsabilidade.
Tomou mais um gole e, um pouco antes de perder os sentidos, pensou em Samara :
_Você conseguiu me embebedar - murmurou para ela, onde quer que estivesse.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Na manhã seguinte, Reese queria apenas morrer em paz. Acordou num quarto estranho e a
cabeça parecia o interior de um tambor sendo batido sem piedade. O estômago revoltava-se ao
mínimo cheiro e aquele odor de chá ia mandá-lo para o inferno.
Yancy estava de pé ao seu lado, com um sorriso neutro e oferecendo-lhe uma xícara.
- Beba isto! - ordenou.
- Pelo amor de Deus, não! - resmungou Reese.
- Ora, vamos, capitão. Tem um longo dia pela frente.
Reese fechou os olhos, querendo que o médico fosse embora.
- Se não beber por livre e espontânea vontade, capitão, serei obrigado a amarrá-lo e
mandar o chá por sua goela abaixo. E está em estado tão miserável que farei isso com uma das
mãos amarradas às costas.
- Respeite seu capitão - replicou Reese, fazendo uma careta de dor.
Passou a mão pelo rosto, sentindo a barba crescida. Desgostoso, constatou que não se
recordava dos dois dias anteriores. Ainda relutante, pegou a xícara das mãos de Yancy e
experimentou o líquido nauseante, onde obviamente havia mais que folhas de chá. Uma poção
qualquer para ajudá-lo a reanimar-se. Sem perguntar o que Yancy colocara ali, tomou um longo
gole.
- Você é um bom rapaz - brincou Yancy, satisfeito.
Reese voltava aos poucos ao estado normal, embora seus olhos ainda conservassem uma
expressão amarga.
- Há dois navios esperando que vá vê-los, capitão. Não são iguais ao Unicórnio, mas estão
em bom estado.
Finalmente um tênue lampejo de interesse passou pelo rosto de Reese. Fosse o que fosse
que acontecera a ele, certamente quase acabara com sua vontade de viver. Yancy desejava fazer
perguntas, mas refreou a curiosidade. Reese lhe contaria tudo quando estivesse pronto para
confidências.
Enquanto Reese tomava o chá, o médico discorria sobre a tripulação. Apenas três homens
haviam entrado para o serviço de outros navios, premidos pelo desejo de voltar para casa, mas o
resto mantinha-se firme, esperando pelo *melhor capitão da Inglaterra.
- Eles não o viram ontem à noite - explicou Yancy com um sorriso. - Mudariam de idéia
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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rapidamente.
- E você vai dar um jeito de não me deixar esquecer a bebedeira, não é Yancy?
- Talvez não - admitiu o amigo. - Para que não caia em outra.
Reese suspirou. O chá o deixara melhor. E era bom tornar a ver aquele médico
bisbilhoteiro. Irreverente. Leal. Olhando para o rosto do amigo, quase podia acreditar que o ano
que se passara fizera parte de um sonho. Quase. Com o passar do tempo conseguiria considerar
os acontecimentos como um pesadelo que ele um dia esqueceria.
- Quero ver aqueles navios - declarou, pensando quanto dinheiro teria na casa bancária
das Bermudas.
Capturara dois barcos antes do Samara . Devia ter reserva suficiente para poder comprar
um navio adequado e armá-lo.
Mais tarde, saiu com Yancy e os dois passaram a manhã toda visitando as embarcações à
venda. A tarde, Reese falou com sua tripulação e todos juntos escolheram o navio.
Partiriam para a costa francesa dentro de uma semana.
Uma das cartas de Connor finalmente alcançou Reese em Beddingfield. Chegara à
propriedade antes de uma visita de Reese e foi a primeira coisa que Avery mencionou ao ver o
irmão.
Reese ficara no mar durante quase cinco meses e aprisionara seis navios mercantes
franceses, indo a Londres apenas porque o Phoenix precisava de reparos. Dera uma parte maior
dos lucros aos tripulantes para compensá-los pelos meses de prisão em Boston, resultado, ele
concluíra, de sua estupidez. Esse ato de generosidade, mais o custo dos reparos, deixara-o com a
bolsa quase vazia.
Avery estava no escritório quando Reese entrou inesperadamente. Depois de abraços
efusivos e emocionados, Avery apontou para o envelope branco sobre a escrivaninha.
- Quem é que você conhece na Carolina do Sul? - perguntou curioso, pois o irmão nada
mencionara nas cartas que lhe escrevera, contando apenas que perdera o Unicórnio e o substituíra
por outro barco. Assim como também não explicara por que escolhera o nome Phoenix para o
novo navio. Fênix, a ave ressurgida das cinzas.
Reese ficou tenso ao ouvir o nome do Estado americano e empalideceu. Olhou para a
carta que mudamente o desafiava.
Avery ergueu uma sobrancelha, intrigado.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Não vai abrir? Leigh está morta de curiosidade, para não falar do meu interesse fraterno.
Reese tornou a olhar para a carta, como se encarasse um inimigo mortal.
- Não - respondeu secamente, caminhando para a porta e deixando o irmão atônito.
A despeito da longa viagem de Londres até Beddingfield e da hora tardia, Reese mandou
selar um cavalo e saiu do estábulo a galope. Correu como se o diabo estivesse em seu encalço,
como costumava fazer quando se sentia frustrado demais com a indiferença do pai. Cavalgava
para fugir dos demônios que viviam dentro dele, transformando sua vida num inferno. Pensara tê-
los derrotado, mas eles haviam voltado atraídos por seu estado de infelicidade perpétua. E a visão
da carta os atiçara, tornando-os mais atormentadores e cruéis.
Tanto ele como o animal estavam ensopados de suor ao voltarem. Reese entrou na
mansão e enfrentou o olhar preocupado do irmão e a expressão espantada da cunhada.
- Pode me dizer o que está acontecendo? - indagou Avery.
Reese olhou para os dois, picado pela culpa. Agira como um lunático, assustando aquelas
duas pessoas queridas. Inclinou-se e beijou o rosto de Leigh.
_Desculpe-me. Você também, Avery.
_Não precisa se desculpar, Reese - afirmou a cunhada com voz mansa. - Não aqui. Está
em sua casa, entre gente que lhe quer bem. Posso ajudar em alguma coisa?
Reese olhou para as roupas enlameadas.
_Preciso de um banho, Leigh.
A cunhada sorriu.
_Vou providenciar. Enquanto isso, converse com Avery. Ficando sozinhos, os dois irmãos
se olharam. Avery observou a expressão de seu gêmeo. Reese estava inabordável, como se uma
barreira o cercasse, afastando qualquer tentativa de aproximação.
_O que posso fazer por você, meu irmão? - perguntou.
_Nada. Pensei que já houvesse superado tudo.
_Vamos ao meu escritório - convidou Avery. Reese acompanhou-o e, ao entrarem na sala,
a presença da carta voltou a agredi-lo. Apontou para ela.
_Quando foi que chegou?
_Quase quatro meses atrás.
_Antes nunca tivesse chegado.
- Não vai abri-la? - tornou a insistir Avery.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Acho que sou obrigado. Do contrário, os demônios terão mais elementos para me
atormentar.
Fez que não viu o olhar estranho que o irmão lhe lançou e pegou a carta como se ela
estivesse em chamas e pudesse queimá-lo.
_Vou deixá-lo sozinho - observou Avery, saindo e fechando a porta.
Reese analisou a letra espalhada que quase cobria todo o envelope. Uma caligrafia forte.
Masculina. Obviamente não era de Samara . Connor? Brendan?
Vagarosamente, abriu-o. Leu a carta e sua primeira emoção foi de raiva profunda.
Amassou as folhas de papel entre os dedos cerrados com força.
A raiva misturou-se à angústia. Tanta falta de confiança!
Procurou compreender. Pertencia a uma classe que a maioria dos americanos abominava
e, como lhe fora dito várias vezes, era um inimigo do país. Mas pensara, durante os meses que
vivera em Glen Woods, haver conquistado a amizade e a confiança dos O’Neill. Ser condenado
sem ter tido a oportunidade de se defender e de explicar os fatos era, não só doloroso, como
ofensivo.
E Samara ... não tivera fé.
Desamassou a carta e analisou as palavras cuidadosamente. Fora Connor quem escrevera,
evidentemente escolhendo as palavras com o máximo de cuidado. Reconhecia que Reese merecia
uma explicação, revelando que ele próprio só tomara conhecimento da verdade algum tempo de-
pois de tudo consumado. Relatava o conteúdo do artigo do jornal inglês que anunciara o noivado
de Reese e o efeito destruidor que tivera sobre Samara , e logo depois concluía:
“Sinto que deve haver uma explicação e amargamente lamento não lhe terem dado a
oportunidade de defender-se. Acredito que você amava minha filha e que não faria nada que
pudesse magoá-la. Cheguei a considerá-lo uma pessoa da família e minha opinião não mudou.
Sei que é presunção da minha parte escrever-lhe, esperando que nos desculpe e
compreenda. Mas Samara o ama profundamente e está sofrendo muito.
Reconheço que não posso esperar mais, depois do que aconteceu, mas achei que lhe devia
uma explicação.
Respeitosamente, Connor O’Neill”
Com um longo suspiro, Reese afundou-se numa poltrona de couro do escritório. Pelo
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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menos, um dos mistérios fora resolvido. Ficara conhecendo o motivo para a atitude de Samara .
A rejeição sofrida o martirizara, pois não podia aceitar que ela não tivera coragem de confrontar-
se com ele. Samara não era covarde. Lembrou-se daquela tarde fria, na beira do rio, quando ela
fora tão carinhosa, adorável e feliz. Aparentemente confiante em seu amor. Aparentemente, sim,
pois Samara já devia ter dúvidas para depois acreditar tão facilmente que ele fosse capaz de
enganá-la tão insensivelmente.
Analisou a evidência contra ele e com um gemido de frustração lembrou-se da conversa
na caverna, quando haviam declarado seu amor. Ela lhe perguntara se ele já fora noivo, se tivera
alguma ligação séria, e Reese respondera que não. E depois ela tomara conhecimento de seu
“noivado” com Eloise Stanton!
Então ele entendeu a situação claramente. Samara sempre tivera um pouco de receio dele,
como já, instintivamente, suspeitara. Receio de sua posição na sociedade inglesa e do modo como
ele ganhava a vida. Tentara dissipar o sentimento, mas era evidente que não conseguira. Ele era
tudo o que ela aprendera a desprezar, representava uma classe que não merecia confiança e os
dois haviam se encontrado sob as circunstâncias mais desfavoráveis possíveis.
Ele a amava, mas não acreditava que pudesse haver esperança para o seu amor depois de
tudo o que acontecera. Talvez amor não bastasse, pois não fora o suficiente para desfazer dúvidas
e criar no coração de Samara a confiança de que ela necessitava.
Levou a mão ao queixo, coçando-o distraidamente.
Não havia nada que pudesse fazer. Seu navio ficaria em reparos durante várias semanas.
Pensou em escrever para Connor, mas abandonou a idéia. Ainda estava ferido demais. Nada
disposto a dar explicações e a revelar as emoções que se abrigavam em seu coração.
- Que maravilha! - exclamou Samara para Angelique, que sorriu orgulhosa, colocando o
caderno sobre a mesa.
- E eu, srta. Samara ?
- Vai ler a lição, Canty.
O rapazinho de dezesseis anos começou a ler com hesitação, tropeçando nas palavras que
tentava decifrar. Frustrado, abaixou a cabeça.
Samara compadeceu-se. Ele queria tão desesperadamente aprender que o pavor de não
conseguir o tolhia, enquanto a pequena Angelique, descontraída, aprendia tudo com facilidade.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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- Está tudo bem, Canty. Você vai conseguir.
O rosto escuro mostrou-se mais tranqüilo, mas ele não sorriu. Samara pensou com
tristeza que levaria muitos meses até que ele conseguisse demonstrar alegria.
O pai de Samara comprara Canty alguns meses atrás, num leilão, deixando a esposa e a
filha admiradas, pois Connor não costumava freqüentar aqueles lugares degradantes. Ele
explicara que passara pelo local do leilão e que Canty lhe chamara a atenção pelo porte altivo,
apesar das correntes e das costas laceradas pelo chicote. Comprara-o e levara-o para Glen Woods,
mas o rapaz exibia apenas um ódio tremendo e extrema revolta. Levara semanas para ele
acreditar que tivera a melhor das sortes, que tinha uma chance de ser livre e de aprender a ler e a
escrever, como ousara sonhar. Tornara-se o aluno mais dedicado de Samara , embora Canty ainda
fosse incapaz de confiar inteiramente na moça branca, filha de seu senhor.
Ao dispensar a turma, Samara olhou ao redor da pequena sala de aula. A princípio
relutara em aceitar a tarefa de ensinar, não acreditando em sua habilidade de comunicação e em
sua paciência. Mas a mãe insistira, dizendo não poder mais ensinar sozinha tantos alunos e
Samara acabara por descobrir um talento natural para transmitir conhecimentos. Talvez fosse
porque ela gostasse muito de crianças, ou porque desejasse desesperadamente, tornar-se útil.
Depois que Reese fora embora, ela dera um balanço em sua vida e descobrira que possuía poucos
motivos de orgulho. Fora inconseqüente e sem juízo, atirando-se numa situação desastrosa.
Os alunos reuniam-se três vezes por semana numa das casas ao redor da residência da
família. Embora não fosse obrigatório, os O’Neíll incentivavam os criados a mandar os filhos
entre cinco e onze anos para a escola. Pessoas mais velhas, desejosas de aprender, também eram
bem-vindas. De acordo com os O’Neill, de nada valia liberdade sem instrução.
Aqueles que freqüentavam a escola, desde o mais jovem até o mais idoso, compreendiam
e apreciavam o raro privilégio, porque educar um escravo, na Carolina do Sul, chegava a ser
considerado um ato de traição. E tornava-se uma alegria ensinar, porque todos tinham desejo
ardente de aprender. Samara sempre sentia uma doce sensação de paz ao terminar cada aula. O
convívio com os alunos diminuía sua dor, mas nada jamais poderia extirpá-la completamente.
Naquela manhã, ao acabar a aula, correu para casa para contar à mãe o que acontecera
durante a lição, querendo comentar a inteligência de Angelique e as dificuldades de Canty.
Quando entrou na sala de jantar, Samara viu a mãe sentada à mesa, segurando uma carta
com ar indeciso.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Mãe?
- Uma carta, de Annabelle, - informou Samantha. - Ela gostaria que você fosse visitá-la.
Os olhos de Samara brilharam. Adorava a madrinha, a quem pouco via, porque
Annabelle vivia em Washington com o marido, Joshua McLaughlin, capitão reformado da
marinha.
- Não posso abandonar os alunos - respondeu Samara com ar sério. - Canty está
começando a ganhar alguma confiança em si mesmo.
Samantha sorriu. A filha amadurecera grandemente nos últimos seis meses. Estava mais
tranqüila, mais graciosa e gentil. A mãe sabia que ela ainda sofria por causa de Reese, mas
também reconhecia os sinais de uma força interior que a transformava numa mulher que nunca
seria derrotada pela vida.
Talvez uma viagem a Washington a curasse da melancolia que a impedia de rir como
antes e enchia os belos olhos de uma expressão triste. Annabelle dizia que a cidade era
interessante e que ela e o marido participavam de vários eventos sociais que reuniam as pessoas
mais inteligentes e ativas do lugar.
E, secretamente, Samantha tinha esperança de que Samara encontrasse um homem que a
fizesse feliz. Sentia-se culpada pelo que haviam feito à Reese Hampton e esperara com ansiedade
por uma resposta às cartas que Connor enviara para as Bermudas e para a Inglaterra. Mas não
chegara carta alguma e ela supunha que Reese não queria mais nenhuma ligação com eles, no que
não podia ser criticado.
- Você se esquece, filhinha, que venho ensinando há muito tempo. Tomarei conta de seus
alunos durante um mês.
- Mas você já tem tanto trabalho, mamãe!
- Posso deixar alguma coisa de lado.
- Eu gostaria muito de tornar a ver Annabelle. Já faz dois anos...
- Então estamos combinadas. Vamos mandar fazer alguns vestidos e seu pai poderá levá-
la na primeira semana de julho. Assim ele poderá visitar Marion também.
Samara entusiasmou-se. Marion fora enviado para Washington juntamente com a milícia
e ela sentira muita falta do irmão. De todos os irmãos, apenas Jeremy continuava na Carolina do
Sul, de onde nunca sairia. Bren voltara para o mar e Conn encontrava-se em algum lugar na
fronteira com a Flórida, nas tropas de Andrew Jackson.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Connor concordou prontamente com os planos. Ele também acreditava que mudar de
ambiente faria um grande bem a Samara . E não poderia haver melhor companhia, mais alegre e
compreensiva, que Annabelle.
No dia anterior à partida, Samara vestiu algumas roupas de Conn e cavalgou até a
caverna. Estivera lá apenas uma vez depois que Reese deixara Glen Woods. Ficara lá sentada
durante horas, tentando compreender o que acontecera à sua felicidade. O presente de Reese, a
medalha entregue pelo pai, acabara com sua raiva. O tempo, trabalho e senso de humor que ele
dedicara ao desenhar a pequena jóia, denunciavam interesse da parte dele. Mas por que ele men-
tira? Por que não dissera nada sobre Eloise Stanton? Num gesto resoluto, enterrara a medalhinha
no chão da caverna, simbolicamente enterrando também as lembranças.
E assim, antes de partir para Washington, foi lá buscá-la. Cavou até encontrar a pequena
jóia de prata, limpou-a, fazendo-a brilhar, e colocou-a no cordão que levava ao pescoço. Uma dor
lancinante percorreu-a ao lembrar-se dos momentos felizes vividos com Reese naquele lugar. Era
uma dor que jamais a abandonaria, que a torturaria sempre que pensasse nele.
Os olhos de Reese percorriam o rio Tâmisa, enquanto ele levava o Phoenix em direção ao
mar aberto, para longe do porto de Londres. Precisava do mar como nunca. Apenas o desafio do
oceano e seus mistérios limpariam sua alma da amargura que a envenenava.
O ar já mudara, longe da cidade, e o céu mostrava-se de um azul mais claro e puro. Sentiu
repentino prazer quando o rio se alargou e o verde e marrom das margens desapareceram,
deixando ver apenas o azul profundo e brilhante das águas marinhas. Os olhos dele recuperaram
um pouco do brilho perdido e ele ergueu o rosto para o sol, oferecendo-se ao calor tonificante.
Passara as últimas semanas pensando no futuro. Poderia viver em qualquer lugar, menos em
Beddingfield. Ficara cada vez mais inquieto, à medida que Avery esforçava-se para interessá-lo
na administração das terras. Avery não precisava de nenhum tipo de ajuda e a propriedade nunca
estivera tão bem cuidada. Era evidente que apenas desejava que o irmão não se sentisse isolado
da vida da família e um estranho em seu próprio lar.
Reese, porém, decidira comprar terras na Virgínia depois da guerra. Mesmo sem Samara
O’Neill.
Dedicara muito tempo e planejamento à idéia de construir algo verdadeiramente seu. Seus
dias como corsário, sabia muito bem, estavam chegando ao fim. A guerra com a França terminara
semanas antes e ele suspeitava que o conflito com os Estados Unidos não duraria muito. Mesmo
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que durasse, ele não pretendia voltar a atacar navios americanos e tinha pouco desejo de
transformar-se num capitão da marinha mercante ou num pirata, as únicas alternativas, se ele
desejasse continuar no mar.
Curiosamente, durante as cavalgadas e conversas com Connor, a perspectiva de vir a
tornar-se fazendeiro ficara cada vez mais atraente e ele descobrira que intimamente desejava a
estabilidade de um lar e um pedaço de terra que pudesse chamar de seu. E sempre zombara da
idéia de criar raízes, talvez por saber que Beddingfield nunca seria sua. Endeusara a liberdade e,
depois de todos os reveses, passara a questionar que motivo o levara a tal extremo.
Mas teria de esperar até que a guerra terminasse para comprar terras na América. Por que
na América e em nenhum outro lugar? Em parte por razões financeiras. Seus recursos limitados
permitiriam que ele comprasse um pedaço de terra muito maior do que se escolhesse formar uma
fazenda na Inglaterra. Mas principalmente porque fora conquistado pela energia e pelo espírito
independente da nova nação americana. Nos Estados Unidos encontrara um modo de vida que se
identificava com seu temperamento, livre e dinâmico.
Além do que, precisava reconhecer, desejava ficar perto de Samara . Depois de dias e dias
em luta consigo mesmo, desejando arrancar a lembrança dela e dos O’Neill de sua mente,
rendera-se à compulsão de voltar à Carolina do Sul. Não podia deixar que Samara pensasse que
ele se aproveitara dela sem nenhuma intenção de manter um relacionamento duradouro. A mágoa
que ela sentira talvez superasse sua própria dor. Pensara em escrever, mas uma carta jamais
reproduziria fielmente o que ia em seu coração. A batalha mais difícil fora contra o orgulho, mas
a consumidora necessidade de vê-la acabara por vencer.
Contara a Avery e a Leigh, e mais tarde a Eloise, tudo o que acontecera. Avery
incentivou-o a ir em busca da felicidade e Eloise, devastada pelo que a encenação causara ao
amigo, fizera-o prometer que procuraria Samara e tentaria convencê-la de sua inocência. Eloise
passara a morar em Beddingfield, a despeito das tentativas do cunhado em fazer com que os
Hampton a mandassem embora, através de intrigas e ameaças. Sentia-se já bastante segura para
fazer uma declaração pública de que o compromisso com Reese estava rompido, mas que ela
continuaria sob a proteção de Avery e Leigh.
Finalmente, depois de tudo pensado e decidido, Reese reunira a tripulação e avisara que
naquela viagem não haveria ataques a navios de qualquer nacionalidade e que talvez ele vendesse
o Phoenix depois daquela jornada, que poderia ser perigosa porque chegariam até a costa da Ca-
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
rolina do Sul.
- Com o senhor, capitão, iremos até o inferno - declarara um dos homens, traduzindo os
sentimentos dos companheiros.
- Garanto que não é para lá que vamos - replicara Reese, em tom de brincadeira, mas com
os olhos brilhantes de emoção.
Três dias mais tarde levantaram âncora.
E a viagem, ao contrário da conturbada travessia do Unicórnio através de tempestades, foi
perfeita. O Phoenix navegou sempre sobre mar calmo e, no tempo espantosamente curto de
menos de três semanas, aportava nas Bermudas. Reese ancorou o barco no meio de uma enorme
armada de navios britânicos no porto de St. George, pretendendo reabastecer-se de água e
alimentos. O passo seguinte seria procurar um rio que, desembocando no litoral, levasse ao
interior da Carolina do Sul. Passou o comando a Michael Simmons, encarregando-o de tomar as
providências quanto ao abastecimento, e juntamente com Yancy saiu à procura de informações.
Encontraram o que desejavam na taberna Cavalo Branco.
O local fervilhava com a presença de oficiais ingleses, muitos dos quais achavam-se
irremediavelrnente embriagados. Reese procurou um rosto conhecido e de repente sorriu,
localizando um velho conhecido. Abriu caminho cuidadosamente, evitando esbarrões que
poderiam causar uma briga.
- Longley! - chamou, ao aproximar-se de um coronel impecavelmente vestido. - Pensei
que estivesse com Wellington.
O oficial de casaca vermelha levantou-se apressado, estendendo a mão.
- Hampton! Quanto tempo! Sente-se à nossa mesa, homem.
Reese concordou e apresentou Yancy, que mal conseguia disfarçar a hostilidade.
- Este é o melhor médico cruzando os mares - elogiou Reese.
- Penso que vou levá-lo comigo, então - brincou Clífford Longley. - Parece que vamos nos
empenhar em outra batalha.
- Onde? - quis saber Reese.
Ainda não sei exatamente. O almirante não decidiu por enquanto. Pode ser em
Washington. Ou Baltimore. Mas as previsões apontam Washington, pois é o que deseja George
Cockburn. Uma coisa é certa: vai haver luta, porque já está na hora de dar uma lição dura a
Madison.
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Patricia Potter
- Entendo - disse Reese com expressão neutra.
- Ainda faz o corso? Ouvi dizer que capturou um bom número de navios franceses.
- E vários americanos - acrescentou Reese cautelosamente, mostrando falsa animação.
- Por que não se junta a nós, Hampton? As áreas costeiras estão sendo bastante frutíferas.
- Quando zarpam?
- Em primeiro de agosto. Ou seja, depois de amanhã.
Reese sorriu.
- Estarei pronto até lá. Seguirei com vocês pelo menos parte do caminho. Agora conte-me
sobre a derrota de Napoleão. Você e’stava lá?
As duas horas seguintes foram delicadas ao relato das horas finais da guerra contra a
França.
- Os próprios franceses estavam ansiosos para livrarem-se de Napoleão - finalizou
Longley.
Já era tarde quando Reese e Yancy voltaram ao Phoenix. Ficaram ainda diversos minutos
no cais, observando as luzes trêmulas dos vasos de guerra, que eram em mais de cem, entre
fragatas, escunas e barcos transportadores.
- Está certo de que quer acompanhá-los? - indagou Yancy, mesmo sabendo que era uma
pergunta supérflua. Já conhecia bem o brilho determinado que iluminava os olhos de Reese. -
Pode ser apanhado por qualquer um dos lados, como sabe, e acabar enforcado.
Reese percorreu os navios com o olhar.
- Pelo menos estaremos protegidos contra os americanos durante parte da viagem.
- Você é um imbecil, Reese.
- Talvez seja, mas como explica o fato de continuar comigo, Yancy?
- Também sou um imbecil. Completo.
- Como vê, não pretendo ser dono absoluto da estupidez - replicou Reese com um sorriso
afetuoso.
Subiram a bordo e Yancy foi para a cabine, deixando Reese no convés, imerso em
pensamentos.
Reese seguiu a armada durante vários dias, mas impacientou-se com a morosidade dos
pesados barcos e acabou rumando sozinho para a costa americana. O Phoenix, à toda vela,
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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empurrado pelo vento favorável, aproximou-se das Carolinas. Reese passava horas na cabine,
consultando mapas, procurando uma entrada, um rio em particular. O mesmo onde Brendan
ancorara o Samara . Mas a possibilidade de encontrá-lo era mínima.
Finalmente, quando já pensava em desistir, encontrou o rio. Audaciosarnente levou o
Phoenix pelo canal natural até ir longe o bastante para poder esconder o mastro principal entre
carvalhos gigantescos que se alinhavam nas margens. Ancoraram e Reese deixou Michael em seu
lugar, desembarcando em seguida. Yancy insistiu em acompanhá-lo e Reese nem discutiu porque
sabia que seria tempo perdido. O médico iria com ele, tendo permissão, ou não.
Percorreram quilômetros antes de encontrar uma pequena casa de fazenda. Para satisfação
de Reese, viram diversos cavalos pastando num campo fechado. Mandando Yancy ficar
escondido, esfregou terra na roupa, sujando-a, e encaminhou-se para a casa.
Argumentou com o fazendeiro e sua mulher durante mais de uma hora, explicando que
seu cavalo o atirara ao chão e fugira a galope, deixando-o a pé. O fazendeiro, que acabara de
almoçar, gentilmente ofereceu-lhe um copo de sidra, dizendo que não desejava separar-se de
nenhum dos animais, enquanto observava a fina camisa de linho de Reese, considerando a
possibilidade de conseguir bom preço por um cavalo.
Finalmente chegaram a um acordo e Reese conseguiu uma montaria forte e de boa
aparência, por um preço exorbitantemente alto; que em outra situação nem pensaria em pagar.
Colocou Yancy na garupa e trotaram alguns quilômetros antes de repetir a encenação para
conseguir um cavalo para o médico.
Só então, Reese tomou o caminho de Glen Woods, tomado por estranha sensação de
incerteza. Não sabia como seria recebido e quem encontraria na fazenda. Se Conn e Brendan
estivessem lá, haveria problemas. E Samara ? Que tipo de reação podia esperar dela? Fazia oito
meses que estavam separados.
Chegando à propriedade, esporeou o cavalo, sendo imitado por Yancy, e os dois
galoparam até chegar aos estábulos.
_Capitão! - saudou-o Marcus com evidente alegria. – O senhor O’Neill ficará contente.
Reese conseguiu sorrir, no meio da tensão.
- Este é meu amigo Yancy, Marcus. O sr. O’Neill está em casa?
- Oh, sim, senhor, está. Vou dizer que o capitão está aqui.
Marcus chamou um cavalariço para cuidar dos animais montados por Reese e Yancy e,
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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quando os dois desmontaram, fez um gesto com a mão, convidando-os a acompanhá-lo.
_Venham comigo.
_Prefiro ficar aqui .- declarou Reese. - Pode pedir a ele que venha falar comigo?
- Sim, senhor - concordou Marcus, saindo a correr.
- Pelo menos você tem um amigo aqui - observou Yancy com seca ironia.
_Já é alguma coisa - revidou Reese.
A despeito do que Connor escrevera na carta, Reese já aprendera que podia esperar
qualquer coisa da família O’Neill, da qual ficaria longe, se fosse sensato. Mas era um imbecil,
como o definira Yancy.
Levou o amigo para dentro do estábulo onde Samantha conservava seus cavalos e
mostrou-lhe os lindos animais de pelagem dourada e longas crinas ondulantes.
Estavam distraídos admirando um garanhão, quando a porta se abriu e Connor entrou com
passadas firmes.
- Reese?
Reese afastou-se da baia e parou no meio do corredor, fitando o homem com ar sério.
_É você mesmo. - Connor sorriu e depois apontou para Yancy. - Outro espião?
_Agora sou neutro, Connor - afirmou Reese, também sorrindo, mais tranqüilo. - E meu
amigo é mais neutro ainda. Ou, pensando melhor, eu diria que as simpatias de Yancy pendem
para o seu país. E o médico do meu navio. Já falei com você sobre ele.
- Seja bem-vindo, Yancy - saudou Connor, voltando a olhar para Reese. - Estou contente
em vê-lo novamente. Vamos até em casa.
- Onde está Samara ?
O rosto de Connor entristeceu-se.
- Em Washington, na casa da madrinha.
- Washington? - exclamou Reese, alarmado.
Connor notou a estranha entonação na voz de Reese, mas atribuiu-a ao desapontamento.
- Faz um mês que está lá e pretende ficar ainda algumas semanas. O marido de Annabelle
está doente e Samara tem sido útil. Mas escreverei a ela e...
- Não posso ficar, Connor.
Preocupado, Reese pensou no que Longley dissera sobre travar-se uma batalha em
Washington, perspectiva cada vez mais possível. Os britânicos já marchavam naquela direção e,
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se tomassem a cidade, tentariam destruí-la completamente. Sentiu-se mal, ao pensar em Samara
defrontando-se com tropas inglesas. Os oficiais que vira na taberna, em St. George, pareciam ser
da pior espécie, totalmente incapazes de respeito e gentileza. Detestavam os americanos, pois os
culpavam pela duração da guerra entre a França e a Inglaterra, alegando que sua teimosia em lutar
contra o domínio britânico obrigara a coroa a mandar contingentes para a América,
enfraquecendo a luta contra os franceses. Reese e Yancy trocaram olhares desolados.
- Fique alguns dias, ao menos - pediu Connor. – Temos muito a conversar.
Reese permaneceu calado, percebendo a dificuldade da situação. Mesmo que Connor
escrevesse a Samara imediatamente, talvez já fosse tarde demais. A marinha inglesa
provavelmente já se postara na embocadura do Chesapeake. E ele não podia trair os planos
ingleses contando a Connor o que ouvira de Longley. Na turbulência dos últimos tempos só lhe
faltava ser traidor para que passasse a desprezar-se pelo resto da vida.
Ele e Yancy seguiram Connor até a bela casa e Reese ia pensando freneticamente numa
solução honrosa.
Na biblioteca, Connor serviu conhaque, enquanto um criado ia em busca de Samantha.
_Recebeu minha carta? - perguntou Connor, fixando Reese com olhar perscrutador.
Ainda chocado com a notícia de que Samara se encontrava numa zona de perigo, Reese
apenas balançou a cabeça, afirmando.
_Foi por isso que veio?
_Sim, gostaria de... de explicar certas coisas e achei que não seria correto fazê-lo por
carta. Não queria que Samara pensasse que... que não gosto dela.
- E gosta, Reese? Ainda? - indagou Connor suavemente.
Reese abandonou a poltrona onde se sentara e começou a andar pelo aposento.
- Gosto... bem, não sei até que ponto. Ela não confiou em mim e sem confiança não pode
haver.. amor.
Samantha entrou naquele instante, com uma expressão de esperança e alegria nos lindos
olhos azuis.
- Reese? Que bom você ter vindo!
Reese curvou-se respeitosamente, mas sem sorrir, o que fez Samantha estremecer,
decepcionada.
- Este é o médico de bordo e meu amigo, Yancy - apresentou Reese, sem agradecer a
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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calorosa acolhida.
Sarnantha sorriu para Yancy.
- Samara falou-me a respeito do senhor. Obrigada por ter sido bom com minha filha.
Yancy estava tão atônito quanto Reese ficara ao conhecer Samantha. Não podia acreditar
que a mulher delicada, mas de aparência enérgica, tão bonita e jovem, fosse mãe de cinco filhos,
mãe de Brendan!
- Foi um prazer tornar-me amigo de Samara , madame - replicou Yancy com galanteria.
Samantha voltou a olhar para Reese.
- Eu penso... e meu marido também, Reese, que preciso pedir-lhe desculpas.
Reese virou-se de costas, não para ser rude, mas para esconder a expressão confusa que
lhe cobria o rosto e para tentar colocar os pensamentos em ordem.
- Talvez... - começou vagarosamente - tenha sido tudo por minha culpa. Eu devia ter
falado de Eloise, mas não achei necessário. Aquele noivado nada significou.
Tornou a virar-se e encarou o casal.
- Foi um noivado fingido. Uma representação a que me submeti para dar proteção a uma
dama que conheço e respeito. Foi uma encenação para desencorajar uma pessoa que a ameaçava.
Não disse nada a Samara , porque foi algo sem validade, a que não dei maior importância.
Ele fez uma longa pausa, o rosto atraente assumindo um ar de amargura e ressentimento.
- Eu teria explicado.., se tivesse a oportunidade.
Samantha recebeu as palavras como se fossem bofetadas. Sofrera terrivelmente nos
últimos oito meses, por Samara e de remorso pela precipitação imperdoável.
- Sinto muito, desculpe - pediu baixinho.
Reese não se enterneceu. Experimentara um sofrimento indizível com a atitude de Samara
e de Brendan também, enchendo-se de revolta com a carta de Connor, que atestava a pouca
confiança que os O’Neill depositavam nele.
Connor o compreendia perfeitamente. Também sofrera pela falta de confiança de
Sarnantha, trinta longos anos atrás.
_Podia ter explicado tudo por carta - comentou.
- E Samara acreditaria? - perguntou Reese, e dirigiu-se a Samantha. - A senhora teria
acreditado? Parece que minha palavra não tem valor nesta casa.
Connor fitou-o sem perder a calma.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Para mim tem - afirmou. - Ficará aqui até que eu mande buscar Samara ?
Reese olhou-o e sacudiu a cabeça lentamente.
_Desculpe, mas não posso.
Connor encarou-o espantado. Reese Hampton cruzara o Atlântico para ver Samara e
corrigir os erros cometidos por ambas as partes. Sua pressa em ir embora era simplesmente
incompreensível.
_E Samara ? O que diremos a ela? - perguntou.
_Que eu voltarei, mas não sei quando.
_Vai voltar para a Inglaterra?
Reese hesitou. Não desejava mais mentiras ou mal-entendidos, mas não podia dizer a
Connor que pretendia participar da invasão de Washington juntando-se às tropas britânicas. Nem
que fosse apenas para assegurar-se de que nada aconteceria a Samara .
Balançou a cabeça, como se não tivesse idéia de para onde iria e perguntou pelos cavalos
de Samantha, desviando o assunto. A manobra não passou despercebida de Connor, que sentiu
um arrepio percorrê-lo. Uma estranha premonição o invadiu e ele teve quase certeza de que
Reese ia entrar na guerra.
Depois do jantar com Samantha e Connor, Reese e Yancy iniciaram o caminho de volta.
Quando Glen Woods desapareceu numa curva da estrada poeirenta, o médico virou-se para Reese
com um sorriso sardônico.
_Sou capaz de apostar que vamos para Washington.
Reese concordou com um gesto breve de cabeça e os dois homens incitaram os cavalos a
galopar.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
CAPÍTULO 18
Reese não parou, ao notar o tumulto no fim da rua. Viu uma mulher debruçada sobre o
corpo de um homem, mas não lhe pôde ver o rosto, escondido por um capuz largo. Por um
instante pensou em oferecer ajuda, mas vários soldados já se reuniam ao redor da cena e fariam o
que fosse necessário. Além do que, tinha algo mais importante a fazer.
Com seu navio, reunira-se à frota britânica na embocadura do Chesapeake e navegara pelo
rio Potomac até Alexandria. Não lhe deram licença para seguir com o navio dali para diante e ele
apressadamente comprara, novamente pagando um preço exorbitante, um cavalo de um Tory
local. Sentiu-se culpado ao passar pelos prédios incendiados de Washington, um quadro de total
destruição. Sua solidariedade agora pendia para os americanos e consolou-se pensando que estava
fora da luta. Encontrava-se ali para procurar Samara , levá-la para casa e tentar entrar em
entendimento com ela. Só esperava que a violenta invasão de Washington não alargasse o abismo
que já existia entre eles.
Parou para perguntar onde ficava a casa de Joshua McLaughlin a um passante e depois de
receber instruções começou a trotar com mais pressa. Seu otimismo morreu quando ele
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
presenciou a cena trágica. Uma esposa chorando o marido, uma noiva...
A casa dos McLaughlin era graciosa, ostentando linhas clássicas e com um vasto jardim
florido na frente. Muito diferente dos canteiros ingleses, com plantas simetricamente dispostas e
podadas para perder a exuberância; os dos jardins americanos exibiam flores em profusão e
folhagens soberbas que podiam crescer em toda sua pujança. Sorriu ao comparar Samara a uma
planta daquelas, linda e livre para ocupar o espaço que quisesse.
Bateu na porta, que logo se abriu. Annabelle e Reese se encararam, ambos reconhecendo-
se imediatamente sem nunca se terem visto.
Reese tinha a impressão de conhecer Annabelle de muito tempo, de tanto ouvir Samara
falar da madrinha, uma mulher que desafiara as convenções durante a maior parte de sua vida. E
lá estava ela, olhando para ele com aqueles calorosos olhos verdes de grande beleza.
Annabelle, por sua vez, não podia se enganar quanto à identidade do homem à sua frente.
Samara o descrevera vezes sem conta, mas nem assim a preparara para o encontro com aquele
inglês. Não conhecia ninguém com aqueles olhos, que pareciam a água do mar do Caribe tocada
pelo sol. Era o homem mais belo que já vira. Sorriram um para o outro.
- Capitão Hampton - ela declarou, sem duvidar de que acertara.
Ele sorriu agradavelmente surpreso.
- Annabelle - respondeu ele. - Samara sempre falou muito de você.
- Nem quero saber o quê - brincou ela, olhando-o sem nenhuma reserva, observando a
camisa um pouco suja, as calças justas e as botas, esfoladas, mas obviamente caras.
- Não precisa temer - ele disse findo. - Se eu não tivesse dado meu coração a Samara ,
certamente você o roubaria. Eu adorava as histórias que ela me contava a seu respeito.
Ela percebeu que ele estava sendo sincero e pensou na sorte que Samara tivera ao
encontrar alguém tão excepcional. De certa maneira, Reese parecia-se com Connor. A velha
ferida reabriu-se em seu coração. Amara Connor durante cinqüenta anos. Na verdade, nunca
deixaria de amá-lo. Mas o destino não permitira que o tivesse e ela contentava-se em saber que
ele era seu amigo e que levava uma vida completamente feliz com Samantha. Fora tudo o que
sempre desejara: a felicidade dele. Assim como desejava a felicidade de Samara .
Não permitiria que a afilhada a atirasse pela janela.
- Entre, capitão - convidou por fim. - Samara saiu para dar um recado, mas logo estará de
volta.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
- Ela... disse alguma coisa?
- Muitas coisas, capitão.
- Agora sou eu quem não sabe o que foi dito. Embora possa adivinhar uma parte. Pirata,
canalha, espião, inglês. Este último, para ela, é o pior dos insultos, suponho.
- Samara o ama, capitão. Nunca duvide disso.
- Mas tenho de duvidar - confessou ele com um sorriso triste, que tocou o coração de
Annabelle. - Ela não confiou em mim.
- E a história do seu noivado na Inglaterra?
- Não existiu noivado algum. E eu teria explicado, se ela permitisse. Contudo, não sei se
acreditaria em mim.
- Penso que Samara o ama demais e que isso a assusta. Foi a mesma coisa com
Samantha, mais de trinta anos atrás. Também vivia fugindo do amor.
- E o que posso fazer para obrigar Samara a parar de fugir de mim?
- Nada. Samara precisa parar por si mesma. E vai conseguir. Lamentou demais haver
abandonado você no ano passado.
_E agora... com este ataque à cidade...
- E claro que esta nova revolta contra os ingleses não vai ajudar em nada, mas acredito
que você não despreze um bom desafio - comentou Annabelle, lançando-lhe um olhar avaliador.
- E você? Não se sente mal, recebendo um inglês em sua casa?
Haviam chegado à aconchegante sala de jantar e ocuparam cadeiras frente a frente.
- Depende do que fizer aqui dentro. Se tentar roubar ou capturar algo que não seja o
coração de minha afilhada, posso apontar-lhe meu rifle. E atiro muito bem.
- Não duvido - disse ele, sorrindo, sentindo-se à vontade com aquela mulher
extraordinária.
Conversaram ainda durante uma hora e então Annabelle começou a ficar preocupada.
Reese também tornou-se inquieto, achando que Samara não devia ficar andando pelas ruas com
tantos soldados ingleses à solta. Era perigoso. Principalmente para uma moça bonita como
Samara , e tão pronta a dizer o que lhe vinha à cabeça.
- Vou procurá-la - decidiu por fim. - Tenho um amigo que... - Calou-se no meio da
sentença, embaraçado.
- Não se acanhe, capitão. ~E claro que tem amigos no exército britânico. Use-os, se for
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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preciso.
Ele sorriu, agradecendo a compreensão, desejando que Samara houvesse aprendido a ter
um pouco de tolerância com a madrinha.
Reese esperou impaciente enquanto Longley conferenciava com o general Ross. Sua
mente enchia-se de perguntas atormentadoras. Quem era o homem que acompanhava Samara ?
Ela gostava dele? Um arrepio correu por suas costas quando ele pensou na cena que vira na rua.
Samara inclinava-se tão ternamente sobre o homem ferido! Ela aceitaria as condições para sua
liberdade? A Reese não agradava a idéia de obrigá-la a casar-se com ele, mas de que outra
maneira poderia salvá-la? Devia aquilo à família O’Neill e, por mais que odiasse admitir, amava
Samara desesperadamente e sabia que nunca a expulsaria do coração e da mente.
Seria um casamento diferente do que imaginara, pois ocultaria o fato de que a amava. Já
sofrera demais por Samara e não lhe daria mais uma arma para que ela o torturasse.
Tomada a decisão, estava calmo quando Longley retornou à biblioteca. O coronel tinha
um leve sorriso satisfeito no rosto.
_O general Ross literalmente adorou sua proposta. Concorda em que é uma boa solução
para um problema muito sério. Não quer ser acusado de ter enforcado uma mulher, assim como
detestaria tê-la a bordo de um navio de guerra durante semanas. Se a moça concordar, vocês
serão casados imediatamente por nosso capelão e escoltados até seu navio. Apenas queremos que
prometa que zarpará em seguida, sem dar chance a... sua esposa de entrar em contato com
alguém.
_Prometo. E o jovem? Duvido que ela concorde com minha proposta, a menos que tenha
certeza de que nada acontecerá a ele. Um ponto a favor de Samara é que ela sabe ser leal em
qualquer circunstância.
Leal. Reese torceu os lábios em frustração. Samara era leal com todos, menos com ele.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_O rapaz irá para Dartmoor. Foi o que pude conseguir.
_Obrigado, Clifford.
_Guarde seus agradecimentos, amigo, porque ainda é cedo. Ainda há algumas condições.
Quero falar com ela e tentar descobrir se tem cúmplices ou se apenas aproveitou-se de uma
oportunidade.
Reese concordou, sabendo que Samara não planejara nada daquilo, mas que novamente
sucumbira aos seus impulsos indomáveis.
_Quero ir junto - declarou.
_Não será possível, Reese. Já abusamos demais.
_Que processo usará para fazê-la falar?
Longley quase riu da ansiedade de Reese.
_Fique tranqüilo. Só vou fazer perguntas e explicar o que a espera, e ao seu amigo, se não
falar. Está mesmo disposto a casar-se com ela, Reese?
_Há alguma outra saída?
_Não. E cabe a você mantê-la de boca fechada durante quatro meses, no mínimo.
Entendeu? Isso é de importância vital.
_Sei muito bem o que se encontra em jogo, Clífford. E acredito que você não duvida da
minha lealdade à Inglaterra - respondeu Reese exasperado.
_Não, claro que não. Se duvidasse, nunca teria concordado com esse plano louco.
_Quando a trará para cá?
_Dentro de algumas horas. O general sugeriu, e concordei com ele, que ela ficasse um
pouco de tempo na prisão. Talvez isso ajude a destravar-lhe a língua.
_Diabos, Clifford! Ela ficará apavorada.
_Espero que sim. Sinceramente.
Samara enrodilhou-se no banco estreito, na cela quase completamente escura. Nada mais
havia ali, além de um balde a um canto. O cheiro era insuportável. Suor. Sujeira. Medo.
O lugar não tinha janelas, a não ser um quadrado gradeado na porta, que deixava entrar
um fiapo de luz. Ela percebera, ouvindo passos cadenciados, que um guarda andava sem parar
pelo corredor. Ela pedira, exigira, que alguém procurasse Annabelle, mas fora inútil.
Mais uma vez agira impensadamente. Vira os documentos e num impulso os roubara. E
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
aquele ato causara a tragédia que atingira Julien. Nem pensara em si mesma, revendo o rosto
pálido de Julien, o sangue pingando do ferimento horrível no lado da cabeça. E ninguém lhe dizia
nada. Nem mesmo informavam se Julien estava vivo ou morto.
Apalpou a trouxinha feita com o lenço. Num gesto quase inacreditável, um sargento lhe
permitira ficar com o remédio, depois que ela explicara por que precisava dele, implorando para
que não lhe fosse tirado. Os pequenos frascos encontravam-se intactos, mas não alimentava
esperanças de poder fazê-los chegar até Joshua. Pobre Annabelle! Devia estar enlouquecendo de
preocupação.
O ruído suspeito de algo que rastejava pelo chão a fez encostar-se mais contra a parede de
pedra. Estava com calor. Não entrava a menor brisa na cela horrível e ela estava com sede. Não
havia água. Passou a língua pelos lábios, sentindo-os secos. De sede. De medo.
Obrigou-se a pensar em algo bonito ou engraçado e até sorriu, ao lembrar-se da última vez
em que estivera numa escuridão tão pavorosa. No porão do navio de Brendan. Mas naquela
ocasião ela poderia sair no momento em que quisesse. E ali, na prisão, permaneceria trancada até
que alguém a tirasse do buraco imundo.
Reese. Pensou em Reese. Dias de verão e sorrisos ternos. Reese montado elegantemente
num garanhão, ou mostrando todo o seu vigor na roda do leme. O destino do navio nas mãos
fortes e queimadas de sol. O vento gostava de brincar naqueles cabelos dourados e o sol refletia-
se nos olhos verdes. O riso dele. Riso de bucaneiro destemido, que tanto a deleitava como a
assustava.
_Oh, Reese, onde está você? - murmurou. - Preciso de você. Por favor, Reese, preciso de
você.
Talvez ele estivesse na Inglaterra, casado com uma dama da nobreza. Afundou a cabeça
nas mãos, desesperada demais para poder chorar.
As horas de angústia na cela escura não conseguiram acovardar Samara quando, numa
carruagem toda fechada, ela foi levada de volta ao centro de comando. A prisão apenas servira
para aumentar a fúria ultrajada, onde remorso e tristeza se misturavam.
O coronel Longley a fitava procurando adivinhar seu estado emocional, enquanto Samara
mentalmente insultava todos os ingleses do mundo. Invasores. Incendiários. Assassinos
sanguinários que haviam matado Julien. Malditos.
Na frente do coronel, Samara não se dava conta da aparência miserável que exibia. O
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vestido largo achava-se sujo de pó e sangue e o rosto pálido parecia menor no meio da massa de
cabelos desgrenhados. Procurando não se deixar dominar pela piedade, Longley olhou-a com ar
severo.
_Srta. O’Neill, sente-se.
O olhar era frio e não havia a mínima gentileza em seu tom de voz. Samara quase não
acreditou que fosse o mesmo homem com quem falara horas antes, naquela mesma casa.
Ela sentou-se, assumindo postura rígida, enquanto seus dedos nervosos torciam o lenço
contendo o remédio de Joshua, ainda amarrado ao cinto. Se as mãos denunciavam nervosismo, os
grandes olhos cinzentos mostravam coragem, faiscando de raiva e revolta.
Longley teve dificuldade em esconder sua admiração. Deu razão a Reese por interessar-se
tanto por essa mulher. Era bela, mesmo suja e maltratada, além de possuir coragem e espírito
forte.
O plano do coronel de dominar a entrevista caiu por terra quando Samara exigiu, com
insolência, saber o que acontecera a Julien Devereaux.
Longley reclinou-se na cadeira, deliberadamente demorando a responder.
_Não morreria, apenas para ser enforcado daqui a alguns dias. E o mesmo pode acontecer
a você.
O tom displicente da voz foi o que mais ínstilou medo em Samara . O casaca-vermelha
falava como se enforcamentos fossem ocorrências corriqueiras. Nada a lamentar. Naquele
instante, não duvidou de que a vida de Julien e a sua também estavam em perigo. Fora ela quem
conduzira o rapaz àquela situação horrível, portanto precisava salválo. Ficou com os olhos
úmidos ao visualizá-lo caído, ensangüentado, na rua.
_Fiz tudo sozinha - confessou com desesperada sinceridade. - Julien não fez nada. Vi
aqueles papéis e... - interrompeu-se. - Julien é inocente. Só estava tentando me proteger e o
soldado atirou nele.
O coronel manteve o ar glacial.
_Não pode ter visto aqueles documentos por acaso, srta. O’Neill. Estavam guardados
numa pasta.
Não havia defesa contra a acusação.
_Mas fui eu quem os pegou, e não Julien. Vi os papéis, abri a pasta, roubei o mapa e os
documentos, mas meu amigo nada fez. Ele nem entrou na biblioteca.
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_Não está tentando proteger o sr. Devereaux apenas porque acredita que não
enforcaremos uma mulher? Se está, desista. A forca é o castigo para espiões. Homens ou
mulheres.
_Mas Julien não...
_Ele não é um espião, mas você é. Admite isso?
Longley odiava-se pelo que estava fazendo, mas precisava descobrir a verdade.
Samara encarou-o, sentindo que a coragem a abandonava. Apertou as mãos, determinada
a ir até o fim. O homem queria Julien ou ela. E Julien era inocente.
_Sim, sou. Agora, deixe Julien em paz.
_Com quem trabalha? Terá atenuantes se indicar os nomes de seus cúmplices.
Pelo rosto chocado de Samara , ele soube que não havia mais ninguém envolvido no caso.
Ela agira movida por um impulso de momento que resultara em conseqüências desastrosas para
várias pessoas, inclusive ele mesmo. Ele, que imprudentemente dera oportunidade para que tudo
aquilo acontecesse.
Samara mordeu os lábios, inquieta com o olhar duro que ele lhe lançava. Acreditara nela?
Não queria morrer, mas também não desejava viver se Julien morresse em seu lugar.
_Uma alternativa para a forca é a prisão - continuou, ele implacável. - Teve uma
experiência, hoje, e sabe como é terrível ficar numa cela. Pois bem, as prisões inglesas são muito
piores. Ainda afirma que é a única responsável pelo crime cometido?
_Sim - disse ela baixinho, por um instante achando que a morte seria preferível ao
confinamento degradante.
Mas só por um instante. Não se voltava da morte, e, mesmo encarcerada, estaria viva. E
enquanto houvesse vida, haveria esperança.
_Pode ser que encontremos outra alternativa - anunciou. Longley, fazendo um breve sinal
ao soldado de pé na porta.
Os grandes olhos cinzentos brilharam esperançosos, mas logo abaixaram-se, fixando as
mãos que tremiam de leve.
_Como descobriu que eu... tinha... - perguntou, querendo retardar o momento em que o
inglês lhe ofereceria outra opção monstruosa.
_Não descobri nada - informou Longley. - Mandei aqueles soldados acompanhá-la para
que chegasse em casa em segurança. Seu amigo pensou que o roubo houvesse sido descoberto e
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
atacou um dos homens. Para protegê-la.
Um riso conhecido soou atrás dela e Samara virou-se repentinamente, quase se erguendo
da cadeira. Não poderia esquecer o som daquele riso zombeteiro, nem o timbre daquela voz.
_Parece, meu amor, que você e eu somos os espiões mais ineficientes deste mundo. - Os
cantos da boca sensual estavam retorcidos num sorriso amargo e os olhos verdes mostravam-se
gelados. - Temos muito em comum. Somos um casal talhado no céu. Ou no inferno.
Ele estava na porta, encostado no batente, mantendo uma atitude displicente. Mas Samara
sabia o que havia por trás da calma aparente. Tensão. Raiva quase incontrolável. A onda de
alegria que a atingira no primeiro instante refluiu quando ela compreendeu tudo o que se passara.
Reese estivera lá o tempo todo. Ouvira a conversa que a humilhara e aterrorizara. E nada
fizera para salvá-la. E encontrava-se no centro de comando dos ingleses. Ele era um deles. Um
dos invasores. Samara apertou as mãos, enquanto os olhos se orvalhavam e parte de sua alma
morria. Mas não ia deixar que as lágrimas escapassem de seus olhos. Não lhe daria tal satisfação.
_Maldito inglês! - insultou-o com tal sinceridade que as palavras tornaram-se ainda mais
cortantes.
Longley pareceu chocado, mas logo sorriu. O famoso conquistador, que roubara e atirara
fora tantos corações, estava recebendo a recompensa merecida. O rosto de Reese permaneceu
impassível, embora os olhos verdes mostrassem maior frieza. Curioso, Longley esperava para ver
o que ele responderia ao insulto.
_Já passamos por isso antes, madame. E daquela vez você também tinha a aparência de
uma gata de borralho.
A lembrança irritante enfureceu Samara , que desejou levantar-se e acertar um soco no
rosto arrogante. Dominou-se, porém, reconhecendo que Reese tentava provocá-la. Encontrava-se
furioso e ela procurou um motivo. Se alguém tinha o direito de ficar com raiva, era ela.
Com toda a força de vontade de que dispunha, Samara ignorou-o e virou-se para o
coronel Longley.
_Ele precisa ficar aqui? - perguntou.
_Receio que sim. Ele é a sua terceira alternativa, srta. O’Neill.
As palavras abriram caminho na mente anuviada pela raiva e Samara olhou do rosto
malicioso do coronel, que se divertia com a situação, para o de Reese, uma máscara
impenetrável.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Eu não entendo - confessou nervosamente.
_Nosso bondoso capitão ofereceu-se para recebê-la em casamento e levá-la para longe,
em segurança. Para bem longe, onde não poderá divulgar as informações que roubou de nós.
Samara ficou em silêncio, tonta de espanto. Os olhos confusos voltaram-se para Reese e
depois pousaram no rosto do coronel. Até que compreendeu. Brincavam com ela. Reese já fora
prometido a outra mulher. Talvez já estivesse casado. Não participaria daquele jogo cruel. Mas,
sim, ele a queria transformar num joguete. Samara sentiu o manto do desespero envolvê-la,
porque, apesar de tudo o que Reese lhe fizera, ela desejava atirar-se nos braços dele e procurar
conforto entre os braços que já a haviam enlaçado com carinho. Mas não podia. Não abriria mão
da única coisa que lhe restava. Seu orgulho.
_Prefiro ser enforcada - declarou sucintamente.
Reese não se mostrou comovido.
_E levar seu amigo com você? - perguntou, observando-a para captar uma indicação do
que ela sentia.
Lutava para esconder o ciúme furioso que o devorava e abafar a dor da traição.
_O que quer dizer? - perguntou ela, empalidecendo.
_Não estamos discutindo apenas o seu destino, srta.
O’Neill - aparteou o coronel -, mas o de seu companheiro também.
_Mas eu já lhe disse...
_Acha mesmo que eu o deixaria livre, sabendo que ele pode ter visto aqueles
documentos?
_Mas ele não viu... - Samara insistiu.
_Sinto muito. Não posso ter certeza.
_Juro que Julien não sabe de nada.
_Posso acreditar na sua palavra, srta. O’Neill? Posso confiar? Como confiei quando a
deixei sozinha na outra sala?
Samara percebeu que ele não mudaria de idéia.
_O que vai fazer com ele? - perguntou com lágrimas nos olhos, enquanto suas mãos
gelavam.
Não viu o rosto de Reese, não percebendo a dor intensa que nublou os olhos verdes.
Apenas ouviu-lhe a voz.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Tanta preocupação, Samara ! Não ficou tão abalada quando estava brincando com o meu
pescoço.
Samara levantou-se e caminhou para ele, com a mão estendida num apelo.
_Ele não fez nada! Apenas tentou me proteger. Oh, Reese, não pode deixar que o
enforquem!
_Ah, não posso? Por quê, Samara ? Porque ele é seu amante?
Espicaçada pela fria indiferença de Reese, por seu sorriso mordaz, ela deixou-se levar
pelo desejo de vingar-se.
_Sim, é isso mesmo - confirmou ela.
Os dois haviam esquecido a presença de Longley.
Você o ama? - quis saber Reese, falando em tom baixo, quase murmurando.
_Sim - prosseguiu ela, mentindo. - Ele é bom, gentil e...
_Ele é tudo o que eu não sou - completou ele.
Ela olhou para ele e viu tristeza nos olhos verdes. Um traço de dor que nunca vira antes.
Mas então a expressão ferida desapareceu e ela julgou haver imaginado o que nunca poderia
existir.
_E sua resposta, Samara ? Vai casar-se comigo, ou não? Ela tornou a perder-se em
confusão, sem entender por que ele insistia em fazer aquela brincadeira maldosa.
_Mas você.., você já...
Àquela altura ele não sentia o menor desejo de explicar o noivado com Eloise. Nem havia
necessidade. O casamento com Samara seria apenas outra encenação. Ela não o amava mais, se
alguma vez nutrira algum sentimento. Olhou-a friamente, pensando que a salvaria por causa de
sua dívida de gratidão com Connor. Depois o casamento poderia ser desfeito por anulação e sem
nenhum escândalo. Seria apenas um contrato que terminava, sem envolvimento de emoções.
_É sua única alternativa, Samara - explicou Reese. - Sua chance de salvar-se e ao seu
amigo. Se você cooperar, ele será enviado para uma prisão na Inglaterra. Se não, ele irá para a
forca.
_Mas por quê? Por que está fazendo isso?
_Por seu pai - respondeu ele secamente.
A última esperança que ela ainda guardava no coração morreu. Reese não a estava
ajudando por sentir alguma coisa, mas por dever gratidão a Connor O’Neill.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Eu te odeio - atacou, mentindo dolorosamente. Jamais poderia odiá-lo; pelo contrário,
pedia ao céu que ele nunca descobrisse o quanto ela o amava, o quanto sofrera por sua causa.
_Isso não fará a menor diferença. Aceita, ou não?
_Sim... por Julien - disse num murmúrio.
_Muito bem. O casamento será realizado ainda esta tarde. - Reese estudou-a com ar
crítico. - Vou buscar roupas para você na casa de Annabelle.
_Quero vê-la. Quero ver Julien.
_Receio que isso seja impossível, srta. O’Neill - Longley declarou, lembrando-os de sua
presença.
_Por que não? - insistiu ela com audácia.
_Porque, prezada futura sra. Hampton, não lhe daremos oportunidade de passar qualquer
informação. Seu casamento será oficiado aqui, por nosso capelão. Depois será escoltada até o
navio de seu marido.
Samara olhou de um para o outro, sem encontrar a mínima expressão de simpatia. Em
todos os seus conflitos com Reese, nunca o vira tão frio e reservado. Uma onda de desespero
varreu sua alma. Ia ser obrigada a abandonar seu país, sua família, em companhia de um homem
que a detestava. O mesmo homem que ela tão estupidamente passara a amar. De cada vez que
olhasse para ele tornaria a sentir seu contato, o calor de sua pele. Sua mente a atormentaria com
lembranças de seu riso e de seu olhar tocado de ternura. Ela não sabia se suportaria ver o rosto
fechado e os olhos gelados, continuamente, tendo consciência de que estavam ligados pelo ódio,
e não pelo amor.
_O que dirá a Annabelle? - perguntou, com voz inexpressiva.
_Que você resolveu casar-se comigo na Inglaterra, que preciso partir imediatamente e que
você lhe envia lembranças e os melhores votos de felicidade - respondeu ele com duro sarcasmo.
- Não há necessidade de deixar sua família preocupada.
_Quanta gentileza! - zombou ela. - Mas Annabelle não acreditará em você. Vai querer me
ver.
_Não tenha tanta certeza. Ela e eu já nos conhecemos e nos demos muito bem. E você
escreverá um bilhete explicando a situação e declarando que está imensamente feliz.
_Não! - rebelou-se Samara . - Não vou mentir!
_Fará o que disser, Samara . Do contrário, cancelarei o casamento. Não quero que sua
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
família pense que a arrastei contra a sua vontade para uma situação indesejável.
_Mas é exatamente isso o que você está fazendo! - gritou ela, presa de fúria. - Não quero
me casar com você!
_Pense em Julien - recomendou ele com suavidade irônica~
_Vá para o inferno! Que o diabo o carregue para o inferno! Ele saiu batendo a porta e ela
não ouviu suas últimas palavras:
_Você já me carregou, feiticeira. Para o pior de todos os infernos.
O primeiro bilhete que ela escreveu foi rejeitado pelo coronel Longley, que mal pôde
conter um sorriso ao lê-lo. Havia uma parte que falava com ênfase demais de sua preocupação
com um irmão em Nova Orleans.
O segundo foi rasgado por Reese, que o achou muito frio e sem entusiasmo. A paciência
dele esgotava-se rapidamente.
_Eu ditarei, Samara , e você escreverá - resolveu ele por fim.
Exausta e zonza, ela concordou. Quando Reese já ia sair, ela lembrou-se do remédio de
Joshua.
_Espere! - gritou, incapaz de pronunciar o nome dele, enquanto tirava da cintura o lenço
contendo os frascos de remédio. - Para Joshua - explicou, entregando-lhe o pacotinho.
Reese o pegou, os brilhantes olhos verdes percorrendo o rosto cansado e infeliz de Samara
. Apertou os lábios para deter as palavras de ânimo que algo em seu íntimo desejava dizer.
Simplesmente fez uma curvatura muito breve e saiu.
Longley mandou que levassem Samara para um quarto no andar de cima para que ela
descansasse. Ela ouviu a chave girar na fechadura, trancando a porta por fora, e correu para a
janela. No jardim, um guarda andava de um lado para o outro, de vez em quando olhando para
cima. Derrotada, atirou-se na cama. Horas mais tarde, dois soldados levaram uma banheira de
cobre e baldes de água fumegante para o quarto. Um terceiro homem carregava um vestido, seu
favorito, juntamente com a caixa onde ela guardava os pentes e escovas.
_Bem... deve estar pronta dentro de uma hora, senhorita - comunicou um deles,
gaguejando de embaraço.
Quando os homens saíram, ela olhou para a água quente, que em qualquer outro momento
a encheria de prazer. Mas conseguia pensar apenas na farsa do casamento. Reese a odiaria ainda
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
mais por perder a liberdade. Por ser separado da noiva, que certamente o esperava em Londres. E
Samara ... viveria amarrada aos seus sonhos mortos.
Uma lágrima deslizou lentamente pelo rosto empoeirado.
CAPÍTULO 19
Aquele poderia ser o dia mais feliz da vida de Samara . E no entanto estava sendo o mais
aflitivo. Ao lado de Reese, diante do capelão inglês, ela perdeu-se em pensamentos amargos, de
vez em quando lançando um olhar rápido para o rosto do homem que se tornava seu marido. Ele
mantinha os lábios estreitamente cerrados e ao redor dos olhos magníficos viam-se linhas de
cansaço e preocupação. Ela o viu morder o lábio inferior, quando o capelão pediu que juntassem
as mãos para a bênção.
A mão de Samara estava gelada, refletindo o frio intenso que tomara conta de seu
coração. Momentos antes, ao descer para a cerimônia, ela encontrara Reese no meio de um grupo
de oficiais convidados a assistirem ao tenso espetáculo. Digno de um teatro de ínfima categoria.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Os olhos dele não tinham a mínima luz de carinho e a boca, sempre pronta a sorrir, não mostrava
nem um traço da alegria zombeteira que ela aprendera a amar.
Samara procurara tornar sua aparência a melhor possível, mas, sem ajuda de uma criada e
sem os apetrechos necessários, não pudera prender o cabelo num penteado mais sofisticado.
Escovara-o bastante e o puxara para trás das orelhas, segurando-o com pentes espanhóis e
deixando-o cair solto nas costas.
Annabelle lhe mandara o vestido predileto, de musselina azul-pálido, com decote baixo
que deixava entrever as curvas dos seios firmes. As mangas curtas e fofas acentuavam a
tonalidade de marfim de sua pele, enquanto a saia reta, drapeada em um lado dos quadris,
revelava sua silhueta perfeita. Conseguira ficar bastante atraente, alcançando o objetivo de não
mostrar que se achava derrotada e presa de desespero. Vira a admiração nos olhos dos oficiais,
mas Reese mantivera-se completamente indiferente.
Samara tinha dificuldade em compreender as palavras do capelão, como se elas fizessem
parte de um sonho confuso. Não podia ser Samara O’Neil aquela mulher rodeada por soldados
de uniforme escarlate, ao lado de um estranho de olhar frio, usou o beijo tradicional em seus
lábios com gélida rapidez que ele achou uma ironia quase insuportável que servissem
champanhe após a cerimônia. Ridículo celebrar tamanha farsa. No entanto, ela bebeu, procurando
acalmar a dor que lhe dilacerava o coração. Pouco depois, sentiu que Reese passava um braço por
sua cintura e a conduzia para a rua, onde uma carruagem fechada os esperava. O marido ajudou-a
a entrar e fechou a porta, deixando-a sozinha. Quando o veículo colocou-se em movimento, ela
percebeu que seus mais firmes propósitos se esfacelavam. Desejava exibir a mesma indiferença
de Reese, mas no fundo ansiava desesperadamente por sua presença confortadora, por ouvi-lo di-
zer que tudo acabaria bem. Mas Reese não a queria, dando mesmo sinais de odiá-la. As lágrimas
começaram a descer pelas faces pálidas, pingando no vestido, colocando pequenas manchas
molhadas no tecido de musselina azul.
Finalmente sozinhos no abrigo da cabine, Samara e Reese ficaram de pé, frente a frente,
contemplando-se, apertando-se as mãos quase com desespero. Então ele tomou a boca tentadora
na sua, matando a sede que o consumira em meses de sofrimento. E ela aceitou-o, dominada
pelas sensações violentas que agitavam seu corpo e sua alma.
Amavam-se. Loucamente. Docemente. Para sempre.
Reese correu as mãos pelo corpo sedutor, desamarrando, soltando botões, fazendo o
vestido escorregar para o chão. Depois a camisa de baixo, por fim a calça de cambraia. E a nudez
de Samara apareceu gloriosa diante de seus olhos.
Despiu-se rapidamente e deitaram-se na cama, lado a lado. Ela quis admirar o corpo
maravilhoso perto do seu, mas deixou-se levar pelas ondas inflamadas que as mãos dele
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
provocavam em sua pele. Fechou os olhos, esquecendo o mundo, mergulhando num mar de
emoções.
Com os corpos ainda dominados por doce languidez, ficaram abraçados. Os rostos unidos
exprimiam a mesma felicidade avassaladora, o mesmo encantamento.
- Eu te amo, Reese - murmurou ela. - Sempre amei. Desde o primeiro instante, no
Unicórnio, quando você riu de mim.
- Por que não me disse isso lá em Washington, minha querida? Teria nos poupado um
bocado de tristeza.
- Você também não disse. Muito pelo contrário, deixou que eu pensasse que me detestava.
- Nunca mais vou permitir que duvide, meu amor.
Ele tornou a puxá-la para si e o calor do desejo voltou a envolvê-los.
Samara passou a noite nos braços dele, rejubilando-se com sua proximidade. Acordou
várias vezes para olhá-lo maravilhada, tocando-o de leve para certificar-se de que não estava
sonhando.
Os dias passavam e Reese e Samara permaneciam muito tempo na cabine, para satisfação
de Michael e Yancy, que não toleravam mais o sofrimento do capitão. Os meses sem Samara
haviam sido dificeis não só para ele, mas também para toda a tripulação, formada de homens que
o estimavam e desejavam sua felicidade.
Reese, quando aparecia no convés, era um homem diferente, que cantava e assobiava,
esquecido dos tempos de solidão e incerteza. E todos paravam para admirar o casal, quando os
dois subiam para ver o sol se pôr sobre as águas. O amor que os unia transparecia em seus olhos
brilhantes, despertando lembranças em alguns, esperança em outros.
E apenas uma nuvem pairava sobre a felicidade de Samara . Era o que ficara sabendo
através dos documentos roubados da biblioteca do dr. Ewell. Tentava esquecer, considerando que
não tinha poder para alterar o curso dos acontecimentos. O Phoenix dirigia-se para a Inglaterra,
levando-a para longe do palco da guerra, mas o que sabia podia significar a vida ou a morte de
centenas de americanos. Conn, inclusive. Seu irmão encontrava-se a serviço na área de Nova
Orleans.
A realidade distante agredira-a agudamente no dia em que transferira seus pertences da
cabine de Michael para a de Reese. No bolso do vestido manchado com sangue de Julien,
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encontrara um frasco do sonifero destinado a Joshua. Retirara-o do lenço, nas horas que ficara
isolada na cela da prisão, e o colocara no bolso, obedecendo a um estranho impulso.
Colocara-o no baú, no meio das roupas, sem entender por que não se decidia a jogá-lo no
mar.
CAPÍTULO 20
Mais uma vez, durante a longa viagem sob a chuva, Reese amaldiçoou a estranha com-
pulsão que o obrigara a sujeitar-se a todo aquele desconforto.
Várias vezes, durante os últimos dois meses, planejara empreender aquela jornada através
do sul da Inglaterra, mas desistira. Naquele dia, porém, atendera aos apelos da consciência.
Não precisava visitar a lúgubre fortaleza de pedra que abrigava prisioneiros de guerra.
Yancy tomara sobre si a tarefa de verificar as condições de Julien Devereaux, continuamente
informando que, mesmo desconfortável, a prisão não mataria o americano até o fim da guerra.
Depois de ouvir histórias trágicas sobre o lugar, Reese mandara Yancy ver Julien e as
visitas tornaram-se rotineiras. Depois de salvá-lo da forca, Reese não desejava que o rapaz
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
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morresse numa masmorra inglesa.
Pelo menos essa era a desculpa que dava a si mesmo. Reese estremeceu sob o pesado
capote que o insistente frio de fevereiro atravessava, aumentando a sensação desagradável que a
chuva fina lhe causava, deixando a paisagem cinzenta e melancólica. Imaginou como os
prisioneiros se protegeriam do frio. Yancy dissera que havia poucos cobertores, pouco
aquecimento e quase nenhum alimento. O médico fizera o que pudera, dando roupas quentes e
cobertores a Julien e subornando os guardas para que o rapaz recebesse mais comida. O que não
chegaria a acontecer se não fosse o peso do influente nome dos Hampton.
Reese mudou de posição no assento de couro do coche.
Teria preferido ir a cavalo, mas Yancy o desaconselhara, explicando que Julien
provavelmente estaria fraco demais para cavalgar. No assento da frente, Reese colocara um
pacote de roupas limpas e quentes, um cesto com alimentos e uma pasta de couro com os
documentos de anistia de Julien Devereaux.
A guerra terminara havia mais de um mês, mas o tratado de paz, assinado na véspera de
Natal, ainda não passara a vigorar. A troca de prisioneiros fora retardada e R.eese precisara de
todo o seu prestígio para conseguir tirar Julien da prisão antes do prazo previsto. Principalmente
depois da completa derrota dos ingleses em Nova Orleans. Por ironia, a batalha fora travada no
dia 8 de janeiro, duas semanas após o tratado de paz. A Inglaterra ficara furiosa com a extensão
do desastre. Três regimentos britânicos dizimados e mais de dois mil soldados mortos, entre os
quais o general que comandava a ação. Os americanos haviam sofrido poucas perdas, numa
vitória verdadeiramente fantástica.
Reese, ao saber das notícias, perguntara-se quanto sua cegueira contribuíra para a derrota.
Ele duvidava que as autoridades dessem ouvidos à palavra de uma jovem mulher, mas a
revelação de planos britânicos podia ter desencadeado uma série de raciocínios e estratégias
cuidadosamente estudadas. A verdade era que Andrew Jackson estava à espera quando os
ingleses chegaram a Nova Orleans.
Voltou em pensamento à manhã de setembro em que ele despertara, zonzo e sozinho, na
cabine do Phoenix. Ao recobrar a total clareza de idéias, dera ordens para que o navio fosse
revistado e que um barco fosse enviado à praia em busca de pistas. Nada fora encontrado, nem
pegadas, que provavelmente a maré apagara. Isso significava que Samara fugira muitas horas
antes.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
Quase fora atrás dela, mas Yancy e Michael acabaram por convencê-lo de que ele apenas
colocaria o navio e a tripulação em perigo, sem conseguir nenhum resultado positivo.
Não lera o bilhete que ela deixara. Seria sofrer mais e inutilrnente. Samara era sua esposa
e não respeitara sua honra, fugindo quando sabia que ele se comprometera a levá-la para a
Inglaterra. Naquele momento fizera sua escolha e nada mais adiantava discutir. Nada mais
restara.
Reese pegara o bilhete e o queimara na chama de uma vela, até transformá-lo num
montículo insignificante de cinzas que a brisa varrera para o chão. E o mesmo acontecera ao seu
coração desiludido. Um punhado de cinzas.
Voltando à realidade, olhou para fora do coche e avistou a silhueta sinistra da prisão de
Dartmoor recortada contra o céu de chumbo. Mesmo a distância, sua aparência monstruosa era
opressiva.
Dentro era pior ainda. Reese sentiu-se nauseado com o cheiro fétido, enquanto observava
os pobres farrapos humanos que se amontoavam entre as paredes cruéis. Os guardas não
passavam de animais que carregavam porretes e não tinham nenhuma repugnância em usá-los
sobre os corpos castigados pela fome e pela doença.
Depois de falar com o capitão responsável pela prisão, Reese foi levado por um longo
corredor de pedra até uma cela com porta de ferro onde a única abertura se resumia a um
retângulo com grades.
- Aqui ficam os prisioneiros especiais. Arruaceiros, espiões e outros do mesmo naipe -
explicou o carcereiro, dando a lanterna a Reese, enquanto procurava a chave. - Não sei por que
um cavalheiro como o senhor se importa com essa escória.
- E nem precisa saber. - Reese não controlou o desprezo. - Abra a porta!
O homem obedeceu e Reese entrou num espaço escuro e mal-cheiroso. Ergueu a lanterna
para que a luz caísse sobre a figura que se ergueu na frente dele. O homem, vestido de trapos,
colocou uma das mãos sobre os olhos, protegendo-os da súbita claridade.
O guarda aproximou-se do prisioneiro, que se encolheu, esperando um golpe.
- Saia daqui - exigiu Reese.
O guarda hesitou, lançando um olhar para o rosto de Reese.
- Ficarei na porta - avisou, antes de sair.
Reese fitou o rosto do americano. A pele, acima da barba, muito pálida, fazia os olhos
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
azuis parecerem maiores e mais brilhantes. O cabelo estava empastado de sujeira e as roupas,
trapos imundos, pendiam do corpo magro. Todavia, a postura era orgulhosa.
- Onde estão as roupas que Yancy lhe trouxe?
Julien não respondeu, continuando a olhar para o homem impecavelmente vestido e de
porte vigoroso e imponente.
- O senhor é Reese Hampton - afirmou.
- Sim, sou.
- Acho que devo agradecer minha vida ao senhor e ao dr. Yancy. Ele me falou do seu
interesse. Muito obrigado.
- Yancy fala demais. Mas onde estão as roupas que ele trouxe?
- Dei-as a quem precisava mais. Homens doentes.
- Recebeu comida a mais?
- Sim.
Reese ficou calado por alguns instantes, achando difícil falar naquele lugar deprimente.
- Consegui sua anistia - disse num arranco, entregando o pacote de roupas a Julien. - Vista
isto. Vai se sentir melhor.
- .Eu não estou entendendo - disse o jovem com um leve tremor na voz.
- A guerra acabou. Faltam apenas algumas formalidades para que as relações entre os
nossos países sejam de paz. Consegui apressar seu livramento e trouxe uma carruagem. Iremos
até Londres, onde comprarei a passagem para que você volte para casa.
- Por quê? Por que faz isso por mim?
- Ah, a forma direta de os americanos perguntarem as coisas - comentou Reese com um
leve sorriso. - Talvez eu me sinta responsável por você estar aqui. Ou ainda, pode ser que
estejamos ligados por uma mulher que nos levou a ambos para o desastre.
- E os outros prisioneiros americanos?
- Sairão daqui dentro de algumas semanas. Só pude fazer alguma coisa por você.
Julien olhou-o com curiosidade.
- Imagino que tenha tido muito trabalho. Neste lugar horrível tratam-me de modo
diferente dos outros, como se eu fosse pior que a maioria.
- Agora tudo acabou, rapaz. Esperarei lá fora enquanto você se troca.
- Estou sujo demais.
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Patricia Potter
- Pararemos numa hospedaria e você poderá tornar quantos banhos quiser.
Reese virou-se para sair, mas Julien segurou-o por um braço.
- Ainda não entendi por que está fazendo tudo isto por mim. - Eu também não entendo.
Digamos que o destino nos uniu. Agora, apresse-se, antes que alguém mude de idéia.
Julien sorriu pela primeira vez.
- Estarei pronto em segundos, capitão.
Não muito tempo depois saíam apressados. Reese segurava Julien pelo braço, ajudando-o
a andar o mais depressa que podia para sair daquelas infernais paredes de pedra. Quando
chegaram à carruagem e Reese abriu a porta, o rapaz olhou o rico interior e recuou, rubro de
embaraço.
- Viajarei na boléia com o cocheiro. Não quero...
Reese compreendeu imediatamente. Apesar das roupas limpas, o americano devia estar
infestado de parasitas e o odor da prisão achava-se impregnado em sua pele.
- Não quero que morra de pneumonia. E é muito fácil limpar um coche - esclareceu.
Como Julien ainda hesitasse, Reese sorriu-lhe amigavelmente. - Vamos, homem -
incentivou. - Eu trouxe vinho e comida, que não quero saborear sozinho.
Julien entrou finalmente e Reese seguiu-o, dando ordens ao cocheiro para partir
imediatamente. E enquanto a carruagem começava a se movimentar, Reese abriu a cesta. Pegou a
garrafa de vinho e abriu-a fazendo um gesto para que o americano se servisse do que quisesse.
Julien começou a comer devagar, cuidadosamente, saboreando cada bocado. Tomando um
gole do vinho servido por Reese, encarou seu benfeitor ainda com ar assombrado.
- Yancy me contou um pouco de tudo o que aconteceu. Disse que o senhor casou-se com
Samara e...
O rosto de Reese mostrou amargura.
- Um acontecimento que espero seja resolvido pela anulação. Diga isso a ela, quando a
encontrar.
- Samara o ama. Descobri isso, ouvindo-a falar do senhor. Assim como percebi que
nunca o esqueceria, mesmo quando, lá em Washington, ela acreditava nunca mais vê-lo.
- Gostaria de discutir isso se ainda me interessasse por Samara . Mas para mim está tudo
acabado.
Saga: Família O’Neill Livro II: Samara
Patricia Potter
_Então por que está me ajudando? Não acredito que seja apenas por solidariedade.
_Estou pagando um débito, Julien. Nada mais.
_Está bem. Estou grato demais para ficar discutindo seus motivos, mas lembro-me do que
disse um de seus poetas: AEu não te poderia amar se não amasse mais a honra@. Isso se aplica a
Samara , eu acho.
_Lovelace! - exclamou Reese, olhando para Julien com renovado interesse. - Richard
Lovelace. Ele também escreveu que “paredes de pedra não fazem uma prisão e barras de ferro
não formam uma gaiola”. Será que concorda com isso, Julien?
O americano riu.
_Preciso tomar cuidado ao falar com o senhor, ou sairei perdendo sempre.
Acalentado pelo balanço do coche e pelo vinho, Julien encostou-se confortavelmente no
assento e adormeceu.
Pararam várias horas mais tarde, numa hospedaria. Reese tomou dois quartos,
recomendando que levassem uma tina e baldes de água quente ao de Julien.
Enquanto o americano se banhava, Reese foi para a sala de refeições e pediu um
conhaque. Sentou-se num canto e sua expressão sombria desencorajou todos os que pensaram em
fazer-lhe companhia. Tomou um gole da bebida e pensou nas palavras de Julien citando o poeta.
Honra. Uma palavra curiosa. Significava coisas diferentes para pessoas diferentes. Nunca pensara
muito naquilo, mas fora compelido a comportar-se de maneiras determinadas, gostasse ou não. E
por que não aceitara as ações de Samara ? Por que seu orgulho fora ferido? Por que ele não
percebera que ela possuía um forte senso de lealdade? Se a situação fosse inversa, ele não teria
agido da mesma forma?
Mas Samara fugira dele e aquilo doía em sua alma.
Tornou outro gole, pedindo que o álcool amenizasse um pouco a dor que não lhe dava
paz, dia após dia, noite após noite. Ainda não requerera o divórcio, nem procurara se informar se
seria possível iniciar um processo de anulação do casamento, incapaz de decidir-se a acabar com
a ligação. E hesitar em tomar decisões não condizia com seu caráter. Em desespero, passara
diversos meses em Londres, voltando aos antigos vícios sem nenhum entusiasmo. Perdera o
gosto pela vida boemia. Retornando a Beddingfield, continuara descontente.
Até pensara em cortejar Eloise depois que seu casamento com Samara fosse desfeito, mas
não havia aquela centelha mágica entre eles, apenas sólida amizade. Não iria destruir a vida de
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Eloise na vã tentativa de exorcizar seus demônios.
A guerra chegara ao fim e ele decidira fazer alguma coisa por Julien Devereaux. Talvez,
encerrando mais aquele assunto, encontrasse a paz de espírito de que tanto necessitava. Não
entendia bem por quê, mas a prisão do americano tornara-se um peso em sua consciência. Talvez
porque fosse uma conseqüência indireta dos desatinos que haviam marcado o seu amor por
Samara .
E descobrira, na viagem da prisão até a hospedaria, que gostava de Julien Devereaux.
Apesar de sua juventude, possuía maturidade e dignidade admiráveis.
Um ruído na mesa tirou-o dos pensamentos. Ergueu os olhos e viu Julíen. A barba se fora
e o rosto pálido exibia feições finas.
_Pensei que nunca mais fosse tomar um banho ou comer algo decente - comentou o
americano com um sorriso franco.
Reese pediu-lhe que sentasse e, chamando o hospedeiro, mandou que o jantar fosse
servido.
Como fizera na carruagem, Julien comeu devagar e bebeu vinho, olhando freqüentemente
para Reese com ar pensativo.
_E agora? - perguntou Julien ao terminarem a refeição.
_Iremos a Londres procurar um navio que o leve para a América. Suponho que prefira um
que não seja de bandeira inglesa.
_E muito perceptivo, capitão Hampton.
_Tem família, Julien?
_Pai, mãe e uma irmãzinha. Estou contente em poder voltar para casa. - Começou a
brincar com o copo de vinho, desviando o olhar do rosto de Reese. - Por que não vai comigo,
capitão? Falar com Samara .
Reese sorriu.
_Um americano pacifista?
Acho que sim - respondeu Julien, com um largo sorriso.
Reese percebeu de repente que o americano era um homem muito generoso. Pela
expressão de seu olhar, quando falava em Samara , tornava-se fácil adivinhar que estivera apaixo-
nado por ela. A despeito do empenho de Reese em seu favor, Julien não tinha nenhum motivo
especial para gostar dele ou de qualquer outro inglês. Não depois do inferno pelo qual passara em
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Dartmoor. Considerou a proposta do jovem, chegando à conclusão de que ainda era cedo demais.
A ferida aberta com a partida de Samara ainda doía muito.
_Não posso ir agora - respondeu. - Tenho alguns negócios a tratar aqui.
_Entendo.
Três dias depois, Reese levou Julien para bordo de um navio dinamarquês.
A tarde, sentindo-se mais leve, seguiu para Beddíngfleld. Dormiu numa hospedaria e
chegou à propriedade dos Hampton por volta de meio-dia. Foi imediatamente à procura de
Avery.
_Vou para a América - anunciou, ao encontrar o irmão no campo.
_Já me perguntava quanto tempo levaria para que seu orgulho se dobrasse diante do bom
senso - replicou Avery malicíosamente.
_Quero comprar terras na Virgínia. Venderei o Phoenix para ter com que começar.
Avery apertou os lábios, pensativo. Sabia o quanto o irmão gostava do navio, e se Reese
estava disposto a sacrificar aquele último vestígio dos tempos de liberdade, era porque realmente
desejava estabelecer-se e criar raízes.
_Talvez isso não seja necessário - observou Avery enigmaticamente.
Reese lançou-lhe um olhar inquiridor, mas o irmão apenas riu.
Pouco depois voltavam a galope para casa e todas as perguntas foram esquecidas no
prazer da corrida.
No escritório de Avery, os irmãos tomaram uma bebida juntos, falando de coisas sem
importância e rindo de velhos casos. Em dado momento, Avery deixou a poltrona e acercou-se da
escrivaninha. Depois de hesitar alguns segundos, abriu uma gaveta e retirou diversos pacotes.
Encarou o irmão com gravidade, descobrindo que o rosto de Reese mostrava-se mais tranqüilo, o
que não acontecia havia muito tempo. Sabendo que os próximos instantes seriam uma prova para
seu relacionamento, Avery escolheu as palavras que diria a seguir.
_Samara me escreveu alguns meses atrás. Mandou uma carta para você, sob meus
cuidados, pedindo que aguardasse um pouco antes de entregá-la. Disse que eu saberia quando
chegasse o momento certo.
Avery tirou uma carta de um dos pacotes e entregou-a a Reese, que apenas olhava para o
irmão. Espanto e raiva brilhavam em seus olhos.
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_Por que não jogou fora? - perguntou por fim, sacudindo o envelope no ar.
_Ainda não acabei de lhe fazer surpresas, portanto acalme-se - aconselhou Avery. - Sobre
o dinheiro que você tem mandado para Beddingfield, descobri que não precisava dele. E o investi
em seu nome, em algo mais seguro que jogo. Você agora tem uma pequena fortuna, o suficiente
para comprar quanta terra desejar, sem precisar vender o navio.
Não pestanejou quando percebeu que a raiva de Reese subia vertigínosamente e que o
irmão apertava os punhos como se quisesse atingi-lo com um soco. Mas preparou-se para ser
atacado e revidar. Não culpava Reese por ter ficado tão furioso. Afinal, mesmo pensando em
fazer o bem, interferira na vida do irmão, que sempre fora independente ao exagero, detestando
até o mais simples conselho.
Mas Reese não o agrediu. Ainda tremendamente irritado, ergueu a carta de Samara .
_Sabe também o que ela escreveu? Afinal, parece saber mais da minha vida do que eu
mesmo.
_Não - respondeu Avery sem se alterar. - Todavia, posso adivinhar. Ela é uma jovem
muito infeliz, desesperadamente apaixonada por você.
Reese olhou-o com as sobrancelhas contraídas.
_Posso ao menos pedir um pouco de privacidade para ler a carta?
Avery balançou a cabeça afirmativamente e saiu da sala.
Reese observou o envelope branco com a caligrafia miúda de Samara e soltou o lacre
com dedos trêmulos.
“Adorado inglês:
Pedi ao seu irmão para lhe entregar esta carta quando sua raiva diminuísse ou, o que
espero que aconteça, você sinta falta de sua mulher.
Porque sempre me considerarei esposa do honorável Reese Hampton. Mesmo que você
deseje a anulação, com a qual concordarei. Eu concordaria com qualquer coisa que o
compensasse por todo o sofrimento que lhe causei. Só peço que acredite que eu o amo. Sempre
amei e jamais deixarei de amar.
Você me deu tantas coisas, Reese, e tantas vezes, enquanto eu lhe dei apenas desgostos. E
essa idéia me persegue noite e dia, como um castigo.
Por favor, compreenda meus motivos para abandonar o navio naquela noite. Foi o ato
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mais difícil da minha vida. Mas eu não conseguiria viver com o pensamento de que poderia ter
ajudado meu irmão e muitos outros como ele, sem no entanto nada fazer. Eu não traí você, meu
amor. Apenas não quis trair a mim mesma.
Aceitarei sua decisão, mas espero, com toda a minha alma e o meu coração, que você
encontre a compreensão em seu íntimo. Não posso pedir que me perdoe, porque eu voltaria a
fazer o mesmo se fosse necessário. Contudo, lamento o sofrimento que causei a nós dois.
Com todo o meu amor,
Samara”.
CAPÍTULO 21
A viagem foi calma e agradável para Samara . Era bom olhar para a infinidade do oceano
e ver velas ao longe sem temer que pertencessem a um navio inimigo. Pela primeira vez, em
muitos anos, o mundo passava por um período de paz.
A despeito do corpo volumoso, ela passava longo tempo na amurada, observando a linha
do horizonte, onde terra e céu se reuniam. Naqueles momentos, quase podia sentir a presença de
Reese a seu lado, ouvir seu riso contagiante e sua voz profunda.
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Depois de tomar sua decisão, ficara satisfeita. Gozava o prazer de perceber os
movimentos do bebê em seu ventre, pensando que Reese ficaria orgulhoso de ter um filho. E
abençoava cada lufada de vento que. enfunando as velas, levava-a para mais perto do marido.
E o Samara singrava as águas com rapidez e segurança.
Na hora do crepusculo, quando o sol coloria o mar com uma infinidade de tonalidades
fantásticas, ela olhava para a roda do leme e quase podia ver Reese ali, com os pés descalços, a
camisa aberta no peito e os cabelos loiros despenteados pelo vento.
Sem prestar atenção à jovem criada que lhe fazia companhia no quarto, Samara sentou-se
perto da janela, lançando o olhar para a longa alameda de entrada.
Acabara de amamentar o bebê, que gorgolejava satisfeito no berço. Olhou para o filho e
seu rosto triste suavizou-se.
A criança era linda, com os cabelos negros e incríveis olhos azuis. Pequena e perfeita,
conquistara o coração de todos e Samara esperava que conquistasse também o do pai.
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Já fazia duas semanas que não saía da janela, olhando para a alameda que terminava na
estrada, ansiando pelo momento em que veria Reese, chegar.
Os jardins começavam a florescer e os primeiros botões balançavam-se à brisa, numa
dança colorida e alegre. Samara viu Leígh e os filhos brincando despreocupadamente numa das
veredas sombreadas e sorriu. Todos tinham sido tão bons. E ela passara a gostar deles com todo o
carinho que dedicava à própria família.
Mais uma vez seus olhos buscaram a estrada. Um cavalheiro vencia a distância,
aproximando-se da propriedade. Então, Samara soube que sua espera terminara. Ninguém tinha
aquela, postura orgulhosa e arrogante, nem os cabelos loiros que pareciam fios de ouro brilhando
ao sol.
Entrando no pátio de pedra à frente da casa, Reese olhou para as janelas e não viu Samara
. Ela já corria pelos corredores da mansão, alucinada de alegria, indo para os braços de seu
marido. Do único amor de sua vida.
Três semanas mais tarde, Tristan Adrian Hampton foi batizado na capela de Beddingfield,
tendo como padrinhos Leigh e Brendan e sob os olhos orgulhosos do tio Avery. Fora ele quem
sugerira que Brendan fosse o padrinho, alegando que desse modo as famílias ficariam unidas por
mais um laço.
Brendan levou seu papel muito a sério, segurando a criança cuidadosamente, olhando-a
com afeição indisfarçável. Quando a cerimônia terminou, olhou para Reese e Samara , enviando-
lhes um sorriso de agradecimento.
Apertando a mão do marido, Samara pensou que aquele era o terceiro momento mais
feliz de sua vida. Os outros, não sabia qual o mais importante, foram o nascimento de Tristan e o
instante glorioso, três semanas antes, em que ela se atirara nos braços de Reese.
Quando a vira, ele saltara do cavalo e a abraçara, olhando-a como se estivesse
contemplando o mais precioso tesouro do mundo.
_Eu te amo, sra. Hampton - disse simplesmente, antes de colar os lábios aos dela, num
beijo que exprimia toda a felicidade de estarem juntos.
_Eu te adoro, Reese Hampton - ela murmurou depois.
_Oh, Samara , espero que a felicidade não torne a fugir de nós.
_Não fugirá, meu amor. Venha, tenho um presente para você.
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_Tendo você, não preciso de nenhum presente, feiticeira.
Ela ficou séria, analisando o rosto querido.
_Venha, Reese. Não posso esperar mais.
_Sempre apressada e teimosa, não é madame?
_Sim. Agora, venha.
_Devo levar o cavalo comigo? Acho que Leigh não vai gostar.
Ela riu e acompanhou-o aos estábulos.
_Está mais gordinha, Samara . Linda e radiante. - Reese continuou a estudá-la, achando
que havia algo diferente no rosto onde resplandecia uma beleza luminosa.
Ela riu, pensando que ele não a acharia tão bela se a visse três semanas antes, um pouco
antes de seu filho nascer. Voltaram abraçados para casa, trocando beijos, ignorando o digno
mordomo que fingia nada ver.
Sem dar tempo para que Reese respondesse aos cumprimentos dos criados, Samara
arrastou-o para o quarto. Abriu a porta e disse à criada que ficara com a criança, que saísse. Só
então deixou o marido entrar, tomando-o pela mão.
Reese olhou-a com curiosidade e naquele instante o bebê chorou, fazendo-o olhar para o
lado do berço.
_Seu filho grita como você - comentou Samara .
Atônito, ele venceu o espaço que o separava do berço em três largas passadas. Da porta,
Samara assistiu às mudanças de expressão do rosto do marido. Incredulidade, espanto e
finalmente uma alegria esfuziante.
_Quero lhe apresentar o pequeno Hampton - disse Samara , sorrindo entre lágrimas. -
Esperei você chegar para escolhermos juntos o resto do nome.
Ela caminhou para o marido e os dois se abraçaram em silêncio, olhando para a criança
que se aquietara e olhava em sua direção.
Fim!