FINK. Sobre o Problema Da Experiência Ontológica
FINK. Sobre o Problema Da Experiência Ontológica
FINK. Sobre o Problema Da Experiência Ontológica
A filosofia atualmente vigente na Alemanha encontra-se na urgência de uma reviravolta. Isso não
diz respeito a uma aporia ou a um constrangimento do espírito humano, dos quais finalmente novas e ra-
dicais questões pudessem ser despertadas, assim como uma revolução no modo de pensar. Nesse sentido,
todo pensar autêntico já se encontra desde sempre e por toda parte em uma tal urgência. Isso tampouco
diz respeito à tragédia histórico-espiritual da Europa, à entonação niilista do espírito de época. A filosofia,
justamente porque capta um momento determinado em seu pensamento, não pode jamais se reduzir à
mera expressão de uma época, a um sintoma de uma cultura ascendente ou decadente. A historicidade da
filosofia procede em um ritmo diferente e mais lento do que as ligeiras mudanças de visões de mundo, da
concepção do Estado ou dos sistemas econômicos, as quais formam o conteúdo da chamada “história uni-
versal”. O pensar da filosofia funda as idades do universo, cunha ao longo dos séculos o pensamento sobre
o ser que conduzem e iluminam a existência humana. Tal fundação só é possível para a filosofia quando seu
pensamento está próximo do próprio ser. Mas essa proximidade ao ser não é objeto de escolha para o hu-
mano; o morar junto à origem não pertence ao seu arbítrio. O pensar filosófico, esse ato o mais ousado da
liberdade humana, só é possível enquanto destino, ou seja, como o destino no qual o próprio ser se revela
ao humano. O pensar filosofante só pode se realizar sobre o fundamento de uma experiência ontológica.
A reviravolta em que a filosofia alemã do nosso tempo se encontra pode ser caracterizada como a
situação histórica de uma experiência ontológica ainda não conceitualizada. O último grande pensamen-
to ontológico-conceitual (no âmbito histórico da filosofia alemã) foi o sistema de Hegel. Aí pensou-se
exaustivamente, e pela última vez, o que seriam uma coisa, uma qualidade, o geral, o particular, o uno e o
múltiplo, a existência, a essência, a realidade e a possibilidade, a totalidade das coisas, a entidade suprema
de todos os entes e a essência da verdade. Hegel elaborou a última grande projeção ontológica do ociden-
te, uma obra gigantesca – e desde então, há um século, o pensar ontológico-conceitual se estagnou. Hegel
representa assim um final, o final da metafísica ocidental. Com Kierkegaard, mas sobretudo com Nietzs-
che se anuncia uma nova originalidade; são eles os arautos de uma nova experiência ontológica, muito
embora totalmente incapazes de expressar em conceitos suas intuições sobre o ser. Ambos são geralmente
considerados os avivadores de um novo sentimento da vida, de uma revelação mais profunda da existên-
cia, os descobridores da “interioridade” ou do “fundamento dionisíaco da vida”. Trazer à luz seu significa-
do ontológico é uma tarefa a ser ainda realizada e, se bem-sucedida, poderá cunhar a nova experiência
ontológica desses pensadores em uma nova e originária projeção de todo pensamento ontológico. Com a
fenomenologia de Husserl e Scheler ocorre uma virada para as questões centrais da filosofia. Com Heide-
gger, o pensamento retorna à questão fundamental que dominou o filosofar ocidental em seu início histó-
rico, à questão pelo ser. A filosofia alemã contemporânea se compreende em sua aspiração central como
* Texto originalmente publicado nas Atas do Primeiro Congresso Nacional de Filosofia de Mendoza, Argentina, realizado entre os meses de
março e abril de 1949 [tomo 2, pp. 733-747]. Posteriormente publicado na coletânea E. Fink, Nähe und Distanz, Karl Alber Verlag: Freiburg/
München, 1976, pp. 127-138. Tradução feita por Anna Luiza Coli, Giovanni Jan Giubilato e José Fernandes Weber no contexto das atividades
do Núcleo de Pesquisa em Fenomenologia (https://nucleodefenomenologia.wordpress.com), Universidade Estadual de Londrina (UEL).
** Eugen Fink (1905-1975), Filósofo alemão, nascido em Constança, estudou em Münster, Berlim e Freiburg, doutorando-se nesta últi-
ma, sob orientação de Edmund Husserl. Posteriormente foi seu assistente e – ao lado de Ludwig Landgrebe e H.L.Van Breda – um dos
responsáveis por salvar os manuscritos de Husserl, tendo sido um dos principais fundadores dos Arquivos Husserl em Louvaina, Bélgica.
Desenvolveu sua obra como uma terceira via em relação às filosofias de Husserl e Heidegger, dialogando diretamente com a tradição
filosófica alemã, dentre os quais Kant, Hegel e principalmente Nietzsche. Após a morte de Husserl e como professor pela Universidade de
Freiburg im Breisgau, Fink desenvolveu sua filosofia cosmológica, cujas bases se colocam na confrontação com a tradição metafísica e mais
especificamente com a proposta heideggeriana de crítica à metafísica. Aí também ele se propõe como uma alternativa à filosofia de Hei-
degger. Algumas obras: Vom Wesen des Enthusiasmus, Freiburg, 1947. Nachdenkliches zur ontologischen Frühgeschichte von Raum - Zeit
-Bewegung, Den Haag, 1957. Alles und Nichts, Den Haag, 1959. Spiel als Weltsymbol, Stuttgart, 1960. Nietzsches Philosophie, Stuttgart,
1960. Metaphysik und Tod, Stuttgart, 1969. Heraklit. Seminar mit Martin Heidegger, Frankfurt/Main, 1970.
ontologia. Mas justamente porque essa ontologia atual não é sustentada por uma auto-revelação válida do
ser, porque ela se situa na reviravolta histórica de tal forma que a linguagem do pensamento é ainda insu-
ficiente diante do crescente despontar do ser, porque ainda lhe faltam os conceitos, é que a própria ideia
da ontologia deve se transformar em problema num sentido mais radical que o até aqui considerado. Em
outras palavras, o pensar filosófico deve se voltar expressamente à fonte oculta da qual ele vive, deve con-
siderar explicitamente a experiência ontológica que torna possível toda projeção de pensamento. Somen-
te com uma reflexão que pensa a relação do pensar com o próprio ser é que a Ontologia pode se apropriar
mais acuradamente do questionamento atualmente necessário. Nossa referência aqui é feita justamente
em relação a esse problema, o qual permanece uma tarefa essencial vindoura. A ontologia – assim se diz
– ocupa-se do ente enquanto tal, do ὄν ᾗ ὄν1. Mas onde e quando nos deparamos com esse “ente enquanto
tal”? Em todo lugar e em lugar algum. Não o constatamos, mas o conhecemos antes de toda e qualquer
constatação. Não conhecemos o ser ente do real que nos circunda, que nós mesmos somos, posteriormen-
te, por meio da experiência; ao contrário, temos que conhecê-lo de antemão, para só então “experimentar”
coisas, animais, plantas, humanos, etc., como existentes. A compreensão do ser é o incógnito em que sem-
pre nos encontramos e nos demoramos, – é a luz originária de nosso espírito. E essa familiaridade original
com o ser não se deixa limitar a uma função particular da faculdade cognitiva; ela não corresponde à
sensibilidade nem ao entendimento e tampouco à razão. Mesmo na impressão sensível e “irrefletida”, na
mera apreensão de cores ou de um cheiro, o ser do ente das cores e do cheiro é já pré-compreendido. Essa
pré-compreensão única e extensiva a todas as coisas do mundo compreendido como o campo de ação do
ser do ente se encontra desde sempre organizado em pré-conhecimentos de determinadas áreas, de regi-
ões: as coisas são pré-conhecidas segundo seus domínios básicos de matéria inanimada, vida vegetal e
animal, e assim por diante; por outro lado, como o ente regional sempre difere segundo sua “essência”,
todas as diferenças regionais se propagam a partir da estrutura fundamental comum de ser uma coisa.
Essas pré-compreensões anteriores a toda experiência fática ou “apriori”, nas quais nossa relação com o
ente desde sempre se estabelece, perpassam a existência humana sob o modo da obviedade e escapam as-
sim a todo “exame”. O óbvio, o sempre já conhecido e inquestionável é a tirania mais poderosa da Terra.
As obviedades mais profundas e autênticas são aquelas de que nem nos damos mais conta: são aquelas nas
quais vivemos, que nos envolvem como um meio, que são nosso ar vital. Desse “sono” só pode nos arrancar
a filosofia, e isso somente na medida em que ela não se detiver sobretudo diante da pergunta pelo que é
óbvio e se espantar diante daquilo que todos sabem. Com outras palavras, a filosofia faz a tentativa des-
comunal de dizer o trivial, de nomeá-lo, de pensar explicitamente as representações ontológicas funda-
mentais que nos governam. E ela se torna ontologia regional dos diferentes domínios básicos do ente e
explicação ontológico-categorial da coisa. Esses são os dois pontos de partida tradicionais do pensar on-
tológico: primeiro pela variedade dos domínios essenciais, pelas “ideias”, e então pela concepção do ser do
ente por excelência, o que corresponde a todo ente diferenciado segundo sua essência. O ente é então in-
terpretado segundo seus gêneros e espécies puros, segundo a diversidade de sua quididade – e, por sua vez,
novamente segundo o esquema básico [Grundriss] comum a todos os gêneros, segundo sua estrutura cate-
gorial. Mas tal interpretação segundo eidos e categoria não se dá nem como uma simples investigação nem
tendo em vista um campo temático. Vivemos no pensamento ontológico, mas não estamos a ele objetual-
mente confrontados; estamos sob seu poder, e não o contrário. É necessário um esforço desmedido para
evidenciar os pensamentos que vivenciamos dia após dia; eles nos são demasiado próximos. Lidamos com
os pensamentos ontológicos, operamos com eles; mas a conversão do uso operativo em uma consciência
temática é, na verdade, um trabalho de Sísifo; – a pedra tão laboriosamente levada ao alto da montanha
rola de volta até o vale. Trata-se de uma conversão de tipo muito peculiar, de uma “reflexão”; todavia, de
modo algum se trata de uma reflexão no sentido da auto-observação, da inflexão daquele que conhece
sobre si mesmo; até mesmo a mais sutil auto-observação é ontologicamente ingênua quando se volta para
a interioridade da alma, ou seja, quando está sob o feitiço de pensamentos ontológicos que lhe conduzem
com “obviedade”; o que pode ser encontrado no fundo da alma conta de todo modo como “ente”; a reflexão
habitual, bem como a análise fenomenológica mais diferenciada da consciência, é apenas uma conversão
dos objetos-entes de fora para as vivências-entes de dentro. Quando converte o óbvio em questionável, a
filosofia se torna reflexão ontológica. Isso significa que a filosofia é o conceber que pensa os pensamentos
ontológicos que, de outra forma, estariam sob o poder da obviedade. Que pensamentos são esses? Por ra-
zões profundas que não podem ser resumidamente discutidas aqui, trata-se de pensamentos nos quais o
humano compreende de modo apriori o ser ente do real como quádruplo; essa quadruplicidade diz respei-
to à estrutura transcendental da pergunta pelo ser. Na intimidade nos relacionamos de modos distintos
com o ente: observamos, desejamos, amamos, trabalhamos sobre coisas, somos atraídos ou repelidos por
elas; mas qualquer que seja o modo como nos relacionamos com elas, sabemos de antemão o que uma
coisa é; nos mantemos em um pré-entendimento da coisidade das coisas; mas essa pré-compreensão é
1 “O ente enquanto ente”. No quarto livro da Metafísica (IV.1 1003a) – tradução de Lucas Angioni, IFCH, UNICAMP, 2007 –
Aristóteles afirma: “há uma ciência que estuda o ente enquanto ente e aquilo que se lhe atribui em si mesmo”. Essa ciência (episteme)
não é idêntica “a nenhuma das assim chamadas ciências particulares” porque, de fato, “nenhuma outra examina universalmente a
respeito do ente enquanto ente”. Portanto ela é chamada também de “filosofia primeira”, pois deve “apreender as causas primeiras
do ente enquanto ente”, ou seja, aqueles elementos que lhe pertencem enquanto tal e não por acidente [NT].
vaga; a partir do momento em que temos de dizer o que uma coisa é, nos atrapalhamos. O esquema básico
da coisa, a coisidade da coisa é a cada vez já compreendida, mas não apreendida conceitualmente. E, no
entanto, todas as coisas estão juntas, uma ao lado da outra, as coisas finitas se limitam, se avizinham umas
das outras, – e estão juntas no todo abrangente do mundo. O ente na sua totalidade, o mundo, nunca é algo
desconhecido mas tampouco é, na maioria das vezes e justamente por isso, apreendido conceitualmente.
E ainda assim lidamos com a distinção comum entre ser autêntico e inautêntico, entre realidade e mera
ilusão, entre essência e aparência; ou seja, fazemos uso de uma distinção interna no próprio ser, atribuí-
mos a cada ser diferente uma ordem ontológica diferente e nos movemos em uma antecipação obscura do
ente supremo, que se torna então a medida de todas as coisas. Mas é inicialmente impossível dizer concei-
tualmente o que seja esse “absoluto”. E sempre sabemos, afinal, a diferença entre o verdadeiro e o falso,
sustentamos nossas intuições como verdades, mas geralmente não consideramos, de fato nem mesmo nos
perguntamos como o ente em geral pode ser verdadeiro, como a verdade lhe pertence e qual é a essência
desta verdade. Só a filosofia faz as perguntas “esquecidas” sobre a coisidade, sobre o ente na sua totalidade,
sobre a medida do ser e sobre a verdade. Estas quatro questões derivam necessariamente da única questão
fundamental da filosofia: a pergunta pelo ser. Elas não correspondem a disciplinas distintas nem signifi-
cam uma diferenciação da filosofia; são, antes, as dimensões “transcendentais” de um único problema on-
tológico, o qual desde a Antiguidade já girava em torno das relações internas entre ens - unum - bonum -
verum, ὂν - ἓν - ἀγαθόν - ἀληθές2. De fato, sabemos das coisas antes de toda filosofia, todavia somente numa
compreensão vaga da coisidade, – desde sempre habitamos o mundo, mas não apreendemos conceitual-
mente sua totalidade e abrangência –, distinguimos sempre entre ser autêntico e inautêntico, mas a luz
desta distinção não nos é clara, – sempre temos e procuramos “verdades”, mas a pregunta pelo que seja de
fato a verdade não nos interessa. Vivemos numa indiferença em relação ao que é “sempre já conhecido”, e
esta indiferença é o que garante a saúde e a autoconfiança da vida. Mas a estranha tarefa da filosofia não
seria justamente a de tornar “consciente” aquele apriori não temático que sustenta nosso comportamento
diante do mundo? E de transformar o operativamente compreendido em um entendimento explícito?
Absolutamente não; uma maior clarificação da vida e de sua conduta não é algo que lhe diga respeito. A
única tarefa da filosofia consiste em pensar o ser. Tal pensamento, no entanto, é distinto da mera concei-
tualização de um conhecimento pré-conceitual. A filosofia pensa o ser enquanto projeta os conceitos fun-
damentais que, dali em diante, formam a estrutura do mundo; ela é projeção dos pensamentos ontológicos
fundamentais. Mesmo na “irreflexão” da nossa vida quotidiana dispomos de conceitos ontológicos (e não
apenas de conceitos de coisas existentes), os quais permanecem, todavia. imobilizados, representam a he-
rança estagnada de uma filosofia anterior que agora se degrada à banalidade. Onde já não pensamos,
tampouco supomos um conceito e, no entanto, nossa ingenuidade é iluminada por pensamentos funda-
mentais há muito pensados pelos gregos. Não só onde se filosofa é que ecoam as costas da Grécia, o eco
não está nos textos antigos. Pelo contrário, a filosofia grega está presente, mesmo que de modo esvaziado,
na construção do mundo, na disposição estrutural de cada uma das coisas com que lidamos. O anterior-
mente alcançado apenas mediante um esforço sem paralelo nos é há muito trivial. A ingenuidade da nossa
vida é a imobilidade da projeção, a letárgica imobilidade dos pensamentos ontológicos. Os conceitos fun-
damentais de substância, mundo, deus e verdade são consideradas “ideias inatas”, ideae innatae; o apriori é
considerado como um bem estável e constante do nosso espírito, como se nossa razão tivesse sido apare-
lhada com “verdades eternas”. Embora a abertura intuitiva ao ente pertença à essência da razão humana,
ela é a cada vez “interpretada” por conceitos fundamentais dotados de uma “história”: surgem nas filoso-
fias e terminam na vida quotidiana. A mobilidade da projeção se esgota na imobilidade da obviedade. Esta
decadência pertence à historicidade da filosofia. A determinação da natureza da projeção ontológica em
sua interação entre movimento e imobilidade é uma tarefa de fundamental importância. Foi Kant quem
reconheceu de modo definitivo o carácter projetivo dos conhecimentos apriori. Os conceitos ontológicos
não retratam estruturas pré-dadas no ente; pelo contrário, o que o ente é, como ele se divide entre sua
quididade e o seu existir, entre realidade e possibilidade, isso deve ser pensado pelo conceito ontológico. O
que significa a expressão “projeção”? Projeção deriva do projetar, e em seu uso comum significa tanto o
ato de projetar quanto aquilo que é projetado. Projetar é um modo de planejamento preliminar, de regu-
lamentação antecipatória, de ordenamento provisório – chamamos “projeção”, por exemplo, o esboço de
um pintor, a planta de um arquiteto, a primeira elaboração de um texto. Os momentos importantes são: a
existência prévia e antecipatória da projeção com respeito à coisa real; o plano do arquiteto antecipa a
realidade futura da casa e prescreve uma regra para seu curso de realização; a projeção antecipa algo e o
submete com antecedência a uma lei. O projetado é o esquema básico do que só posteriormente vem a ser
realizado, é o pensamento que lhe subjaz, como a planta de construção de uma casa. Projetar é o relacio-
2 “On – hen – agathon – alethes”, “o ente – o uno – o bom – o verdadeiro”. Para São Tomás, como para Avicena, a primeira noção que
o intelecto concebe, e que, portanto, é pressuposta por todas as outras, é a noção de “ente”, isto é, “de algo que é” (quid est). Nesta noção é
possível distinguir dois componentes distintos: a “essência”, isto é, a “quididade” ou “natureza”, e o ser, isto é, o ato por meio do qual a coisa é.
Além disso, pertencem a cada “ente enquanto ente” algumas características ou atributos mais gerais – chamados de “transcendentais” – que
são condições concomitantes do ente, a ele coextensivas e com ele convertíveis (contrariamente às categorias, que o subdividem em gêneros
distintos). Os transcendentais diferem apenas entre si “secundum rationem”, ou seja, segundo o modo de consideração. Trata-se então de
propriedades ou atributos que vão além (transcendem) das divisões categoriais, segundo o conhecido lema da Escolástica “ens, verum,
bonum, pulchrum et unum convertuntur”, “o ente, o verdadeiro, o bom, o belo e o uno não se distinguem”. [NT]
nar-se com possibilidades, não com possibilidades quaisquer, mas com possibilidades possibilitadoras; e,
finalmente, projetar é uma ação criativa. – Todos estos momentos ressurgem em uma transformação fun-
damental ocorrida no pensamento ontológico cuja natureza é a da projeção. O discurso da “projeção” é
uma metáfora, um modelo ôntico para uma relação fundamental com o ser. Para cada metáfora e cada
modelo há um perigo. A “projeção” da filosofia é preliminar-antecipatória (apriori), ou seja, fornece uma
regra para o real, conflui em um “pensamento”, em um esquema básico e é, além disso, um relacionar-se
com possibilidades possibilitadoras e uma atividade criativa. E no entanto ela não projeta um ente único,
determinado, e tampouco se relaciona com possibilidades pré-dadas; ela não projeta uma coisa, mas a coi-
sidade, tampouco um ordenamento ou um conjunto de entes, mas a totalidade do mundo que abrange todos
os entes, projeta a medida do ser (o absoluto) e a essência da verdade. Ela concebe com antecedência o es-
quema básico do ente em geral, o plano do mundo, ex-cogita a articulação dos conceitos ontológicos que
governam o mundo. E essa projeção não é uma antecipação vazia sucessivamente superada pela ocorrên-
cia das coisas reais; ela permanece preliminar e é precisamente na manutenção dessa preliminaridade que
ela torna o encontro com as coisas sobretudo possível. A projeção preliminar da coisidade não se perde
quando experimentamos as coisas reais, mas permanece a “condição de possibilidade” daquela experiên-
cia. A projeção ontológica não é, portanto, algo a ser encontrado, mas o ex-cogitar do ser na concepção da
estrutura de coisa, mundo, deus e verdade. O pensamento projetivo é criativo. Isto significa que ele é sub-
traído à arbitrariedade humana. O humano não produz os pensamentos de substância, mundo, deus e
verdade, mas tampouco os lê nas coisas disponíveis. São preconceitos da fenomenologia ainda hoje em
circulação os que afirmam que a ontologia deveria considerar o ser tal como uma coisa. As coisas estão
disponíveis, encontram-se por aí, mas estaria a coisidade das coisas igualmente disponível? O caráter
criativo do pensamento ontológico-conceitual não pode ser acessado a partir da oposição entre “produzir”
– “encontrar”; o ser do ente não pode ser nem “encontrado”, nem “produzido”, é acessível apenas ao pensa-
mento. O pensamento na forma móbil da projeção é o modo originário como o ser “se abre” ao humano. O
pensamento originário não transforma a revelação do ser previamente subsistente em “conceitos”; ao
contrário, em sua vigilância e atividade extremas, ele representa o modo como o ser humano se expõe à
proximidade essencial com o ser, o qual então lhe concede ou nega a ascensão. A projeção ontológica é a
única via à experiência ontológica. É somente no conceito pensante que o ser pode se iluminar originaria-
mente. O pensamento ontológico é recordação [An-denken] do Uno, do Ἕν τὸ Σοφόν3 – mas, precisamente
nesse estar-reunido, é ainda a escuta do logos que governa o mundo, que perpassa a “irrupção mundana
do ser” e que força cada ente finito à cunhagem da sua forma.
O humano não se destaca enquanto pensador do ser pelo fato de ser o centro do ente, mas por sua
posição e dignidade na mediação. O humano é “mediador”: ele é um ente finito em meio a coisas finitas – e
é ao mesmo tempo cúmplice do fundamento único e originário do qual todas as coisas “surgem” a partir
da nulidade; ele é mediador na medida em que existe entre as coisas – e ao mesmo tempo se estende para
além delas, no todo-abrangente do “mundo”; ele é mediador na medida em que existe na distinção entre o
ente verdadeiro e o nulo; e finalmente é mediador na medida em que suporta, ao mesmo tempo, a abertura
e o ocultamento do ser, em que está na penumbra, no crepúsculo, onde o ser nunca recua e nunca se dispõe
totalmente.
O humano é algo a ser superado – não pelo asceticismo ou pela suma ascensão, mas pela séria con-
sideração de sua medialidade. A originalidade da existência humana se revela na πλάνη4, na errância ao
centro abismal de todo ente, ao umbigo a partir do qual o ser encobre o ente.
No pensamento do humano o próprio ser se revela. Mas, se ele se esgota nestas revelações ou se, a
partir de um centro inesgotável, põe sempre de novo em jogo a história de novos surgimentos, isso não
podemos saber, como com razão afirma o antigo ditado de Epimênides:
“Nem na terra nem no mar há no meio um umbigo; e mesmo que haja, é evidente aos deuses, mas
está escondido aos mortais”
3 “Hen tò sophon”, “Uno é o saber”, “a unidade que coincide com a sapiência”. No famoso fragmento de Heráclito (DK 22 B 41) lemos:
“Um é o saber [hen tò sophon]: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo”, em tradução livre. [NT]
4 “Plane”, “errância”. Diz Eurípides: “biotos anthropon plane”, “o tempo da vida dos homens é errância” (fragmento 659.8), em tradução
livre. [NT]