2017 - Oitocentos - Tomo IV O Atelie Do PDF

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Arthur Valle

Camila Dazzi
Isabel Sanson Portella
Rosangela de Jesus Silva

O Ateliê do Artista
Apresentação

Arthur Valle e Camila Dazzi

Oitocentos - Tomo IV: O Ateliê do Artista é constituído por um conjunto de escritos


e imagens que promovem a discussão sobre o ateliê do artista no século XIX e
primeiras décadas do XX. O livro se insere em uma tendência internacional entre os
investigadores de história da arte que busca refletir, de uma maneira ampla, sobre os
espaços de criação dos artistas.

Em artigo recente,1 Rachel Esner apresentou um levantamento da bibliografia sobre


o tema do ateliê, incluindo publicações-chave como: Imagination’s Chamber: Artists
and their Studios (London, 1983), de Michael Peppiatt e Alice Bellony-Rewald; The
Studios of Paris. The Capital of Art in the Late Nineteenth Century (New Haven, 1988),
de John Milner; Das Atelierbild in der Französischen Malerei 1855-1900 (Köln, 1999),
de Ingeborg Bauer; Das Atelier des Malers: Die Diskurse eines Raums in der zweiten
Hälfte des 19. Jahrhunderts (Berlin, 2004), de Eva Mongi-Vollmer; Inventions of
the Studio, Renaissance to Romanticism (Chapel Hill e London, 2005), editado por
Michael Cole e Mary Pardo; Ateliergeheimen. Over de werkplaats van de kunstenaar
vanaf 1200 tot heden (Amsterdam e Zutphen, 2006), editado por Mariëtte Haveman
entre outros; The Fall of the Studio. Topos Atelier. Werkstatt und Wissensform (Berlin,
2010), editado por Michael Diers e Monika Wagner. Entre as exposições que trataram
do ateliê do artista e cujos catálogos são fontes preciosas, Esner destaca: Rebels and
Martyrs. The Image of the Artist in the Nineteenth-Century (2006); The Artist’s Studio

1  ESNER, Rachel. In the Artist’s Studio with L’Illustration. RIHA Journal 0069 | 18 March 2013.

IX
(2009); Mythen van het atelier. Werkplaats en schilderpraktijk van de negentiendeeeuwse
Nederlandse kunstenaar (2010); L’Artiste en représentation. Images des artistes dans
l’art du XIXe siècle (2012); Mythos Atelier. Von Spitzweg bis Picasso, von Giacometti bis
Nauman (2012); Bohèmes, de Léonard de Vinci à Picasso (2012).

O ateliê do artista como tema de investigação não é, portanto, novo na historiografia


da arte, mas a insistência sobre ele verificável nos últimos anos é digna de nota.
Alguns exemplos ainda mais recentes incluem o periódico Perspective, vinculado ao
Instituto Nacional de História da Arte da França, que, em meados de 2014, dedicou
um número exclusivamente ao ateliê, reunindo trabalhos que o abordam em diversos
espaços e tempos, da Antiguidade aos dias atuais. Também em 2014, dentro da
coleção “Iconographie en débat,” foi lançado Portraits d’ateliers, a reedição de um
álbum de fotografias de artistas em seus ateliês, editado originalmente no fim do
século XIX. Em 2016, por fim, o Petit Palais abrigou a exposição Dans l’atelier. l’artiste
photographié D’ingres à Jeff Koons, que exibia centenas de fotografias (mas também
pinturas, esculturas e vídeos) que aproximavam o visitante do processo de criação de
artistas diversos.

Partindo desse corpus de estudos, Oitocentos - Tomo IV: O Ateliê do Artista considera
que o tema do ateliê do artista é de grande relevância para a compreensão dos
processos de produção e recepção da arte, bem como de construção da imagem
do artista. Nessa perspectiva, o ateliê constitui uma encruzilhada decisiva onde se
evidenciam as relações entre processo criativo, produto acabado, modos de exibição
das obras e identidade do artista.

Os capítulos reunidos neste livro propõem uma análise do que acontece nesses espaços
Figura 1 - Tito Conti de criação e o que deles se representa. São considerados diversos aspectos do tema:
(842-1924), Nello studio o ateliê como espaço de recepção da obra de arte; o ateliê como um espaço entre o
del pittore, 1867. Óleo
sobre tela, 28 x 40 cm. privado e o público; o ateliê como local de ensino e aprendizagem; as representações
Collezione Molo, Itália. do ateliê na literatura artística; o ateliê como espaço de comercialização de obras; a
geografía dos ateliês em determinadas
cidades; entre outros. Um aspecto é,
entretanto, privilegiado no contexto
do livro: trata-se das representações
do ateliê, incluindo aquelas que se
relacionam com a construção da
imagem do artista.

Como é bem sabido, a partir do


chamado Renascimento cresceu
o desejo dos artistas em conferir
uma dimensão mais nobre ao
seu trabalho, distinguindo-o do
mundo do artesanato. Uma nova
iconografia do atelê então se afirmou,
simultaneamente ao processo de

X
Figura 2 - Jean-Baptis-
te Debret (1786-1848),
Meu ateliê do Catumbi,
1816. Aquarela sobre
papel, 7,9 x 10,9 cm.
Museus Castro Maya -
IPHAN/MinC

pretensa dissociação entre fazer artístico e fazer manual. A elevação do estatuto social
do artista implicou na modificação do seu lugar de trabalho, que gradativamente se
transformou em um espaço privado, dedicado em boa medida a um labor de caráter
intelectual [Figura 1].

Como demonstram os estudos sobre o ateliê acima referidos, o século XIX assinalou
um aumento expressivo na produção e propagação de imagens retratando esses espaços
de criação. Foi justamente nesse período que representações pintadas, desenhadas ou
fotografadas do ateliê se tornaram mais frequentes também na arte do Brasil e de
outros países da América Latina [Figura 2]. Concomitantemente a tal fenômeno, o
ateliê passou a ser entendido como um reflexo do temperamento e singularidade do
artista, como “uma sinédoque capaz de conter a sua personalidade e o conjunto de
suas realizações.”2 Esse processo conduziu a uma codificação de imagens do atelê
em categorias retóricas recorrentes como, por exemplo: o ateliê austero do artista
dedicado exclusivamente ao seu trabalho, em contraste com o ateliê como espaço
marcado por ritos de sociabilidade; ou, ainda, o sótão miserável do artista rejeitado
por um público filisteu em contraste com “ateliê-salão,” caracterizado pela opulência
de sua decoração.

Oitocentos - Tomo IV: O Ateliê do Artista visa, assim, contribuir para o entendimento
dessas representações do ateliê como um elemento importante no processo de
construção da imagem do artista e revelador das funções díspares que o seu espaço
de criação podia assumir.
2  LACROIX, Laurier. L’atelier-musée, paradoxe de l’expérience totale de l’oeuvre d’art. Anthropologie et Sociétés, vol.
30, no 3, 2006, p. 29.

XI
XII
Almeida Reis e o ateliê
escultórico no Brasil Imperial

Alberto Martín Chillón 1

O vernáculo, à pressão do vulgo, perfilha palavras de varios idiomas. Exemplifique-o


a palavra atelier. Emigrou do francês para português significando a casa ou o logar onde
trabalham artistas ou operarios, a estes mais reservada a palavra oficina. Atelier é o local
de reunião dos que estudam arte em comum à vista, e a conselhos de mestres, também o
aposento onde o artista já formado busca celebridade por suas télas ou lhes pede ganha-
pão.2

Com estas palavras Luís Gastão d’Escragnolle Dória definia em 1944 o termo ateliê, um
lugar multifuncional, de formação, de trabalho, de exposição e de venda. Este espaço
artístico, seguindo com a opinião de Dória, era difícil de conseguir, reunindo todos
os requisitos necessários, no Rio de Janeiro oitocentista, e os artistas se contentavam
frequentemente “com o sofrível das adaptações em residencias particulares, nelas
buscando compartimentos menos improprios para exercicio de arte.”3 Mas se era
difícil achar um ateliê para os pintores, o era muito mais para os escultores, pois
“o bloco de marmore, superando este em peso o cavalete demandava espaço para
estatuas de vulto, sobretudo equestre.”4

1 Doutorando em Artes (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). Fundação Biblioteca Nacional (Programa Nacional
de Apoio à Pesquisa).
2 DÓRIA, E. O atelier do Paço. Revista da Semana. Rio de Janeiro, 22 jan. 1944, p. 6.
3 Idem.
4 Idem.

13
Como assinala Doria, “na arte de lavrar matéria dura o outrora separava duas classes,
a dos estatuários e a dos escultores. Os primeiros só se dedicavam a estatuas, os
segundos esculpindo ou entalhando sobretudo em madeira”5. Manuel de Araujo
Porto-Alegre também assinala esta diferenciação e afirma que:
esculptura é propriamente a arte de esculpir, cinzelar e entalhar, e a estatuaria é a arte
que representa o homem e o divinisa”. E´esculptor aquelle artista que modela, e levanta
toda a especie de esculptura que está debaixo do dominio da architectura; em quanto que
o estatuario permanece em toda a sua individualidade. O esculptor trabalha em todas as
materias, e o estatuario, rigorosamente fallando, é o homem do marmore e do bronze.6

A classe dos escultores, como destaca Porto-Alegre, secundária e menos importante


que os estatuários, compreendia escultores-formeiros, escultores douradores de
santos e escultores em madeira, além de marmoristas e estucadores. Para todos eles,
não estatuários, o ateliê era substituído pela oficina, que cumpria funções similares
ao ateliê. E foi precisamente numa oficina de santeiro na qual Cândido Caetano de
Almeida Reis começou sua carreira, como entalhador na oficina do seu pai, Cândido
Manoel dos Reis, na rua da Alfândega, principal núcleo dos escultores, junto com
as ruas de São Pedro, rua do Hospício, rua do Cano o rua do Sabão. Nessas ruas se
agrupavam, além dos entalhadores, uma interessante e pouca conhecida indústria, as
marmorerias, que contavam com estatuários trabalhando nelas, e que se constituem
um outro tipo de produção e de ateliês. No caso dos marmoristas destacam nomes
como José Berna e Blas Crespo Garcia, ambos na rua da Ajuda, dos quais pouco
sabemos, o mesmo que acontece com os estucadores, que aportaram uma luz no
panorama escultórico. Como caso especial encontramos uma fábrica de escultura,
a Fábrica Nacional de louça branca vidrada, de José Gory, na rua do Espirito Santo,
45, que realizava qualquer tipo de escultura para qualquer destino, bem como
“bem parecidos bustos de pessoas vivas ou que acabão de falecer.”7 Estas oficinas
escultóricas compartilhavam espaços e mercados com os estatuários, em muitos casos
misturando-se com eles, e na prática, a diferença entre uns e outros é muito menor, e
em alguns casos inexistente.

Durante o Império, não é excessivo o número de estatuários que se repartem no


mercado carioca. Num primeiro momento destacam, entre os escultores estrangeiros,
Marc Ferrez, que aparece em 1849 na rua de Matacavallos, 58,8 atual rua Riachuelo.
Camillo Formilli, entre 1862 e 1864,9 tem seu ateliê na rua Nova do Conde, 99,
depois rua do Conde d´Eu, atuais ruas de visconde de Rio Branco e Frei Caneca.
Luigi Giudice, em 1859,10 trabalha na rua dos Latoeiros, atual rua Gonçalves Dias,
em 1861 na rua do Passeio,11 mas já ausente da cidade, e depois, entre 1869 e 1872,12

5 Idem.
6 PORTO-ALEGRE, Manuel de Araújo. A. O novo estatuário. Illustração Brasileira, jul. 1854.
7 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1860, p. 535.
8 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1849, p. 271.
9 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1862, p. 627; 1863, p. 630; 1864, p. 645.
10 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1859, p. 515.
11 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1861, p. 462.
12 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1869, p. 498; 1870; p. 484; 1871, p. 471;
1872, p. 502.

14
no Almoxarifado do Paço. Joaquim Alves de Souza Alão, em 182613 aparece na Rua
do Sabão, a desaparecida rua General Câmara, hoje Presidente Vargas, e na rua dos
Ferradores, 274,14 atual Alfandega, em 1828 na rua da Alfandega, 284,15 e depois, até
1863,16 na rua da Alfandega, 188. Leon Despres de Cluny aparece trabalhando na rua
do Cano, atual rua Sete de setembro, entre 1861 e 1864.17

Os escultores nacionais se distribuem da seguinte forma: Antônio de Pádua e Castro,


na rua do Cano, entre 1855 e 1857;18 Honorato Manoel de Lima, na rua do Passeio
entre 1849 e 1862;19 Chaves Pinheiro é o único que aparece com seu ateliê fora da
cidade, apesar de sempre manter seu endereço profissional também na Academia
das Belas Artes. Aparece na rua de São Leopoldo, entre 1861 e 1865,20 para depois se
trasladar à rua Sete de Setembro, 14021 entre 1866 e 1867, na rua das Flores 62 entre
1869 e 1872,22 e na rua do Castro 11 em 1882 e 1883.23

Um lugar privilegiado de trabalho seria o Paço Imperial, e em salas do pavimento


térreo, dom Pedro II disponibilizou um espaço para ateliê e permitiu nele a instalação
de vários artistas, o pintor August François Biard e o escultor Ferdinad Pettrich entre
1849 e 1852. Depois fixaria sua residência em Iguassu, onde realizaria alguns dos seus
trabalhos, “retirou se para a sua fazenda, onde vai executar oito bustos de marmore
para o paço imperial,”24 fazenda situada no Rio de São Pedro. Antes disso o endereço,
como aparece no catálogo da Exposição Geral de 1843, figura na rua do Ouvidor,
número 41.25

Também ocuparam aquele espaço, fato menos mencionado pela historiografia, dois
escultores, Quirino Antônio Vieira e Severo da Silva Quaresma, que compartilharam
endereço profissional durante vários anos, entre 1862 e 1870, no Paço Imperial, junto
à Portaria das Damas. Quirino Vieira aparece também radicado em outra direção ao
mesmo tempo, na rua dos Inválidos 112 e 114,26 e já figurou na rua da Alfândega,
32327 e 170 A, em 1859,28 precisamente no endereço da companhia Severo da Silva

13 Diário do Rio de Janeiro, 20 abr. 1826.


14 Idem.
15 Diário do Rio de Janeiro, 29 de fevereiro de 1828.
16 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1852, p. 491: 1854, p. 524; 1855, p. 582; 1857,
p. 476; 1862, p. 627; 1863 p. 479.
17 Recordações da Exposição nacional de 1861. Rio de Janeiro. Typ. Universal de Laemmert, 1862. Almanak Adminis-
trativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1862, p. 627; p. 1863, p. 630; 1864, p. 645.
18 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1855, p. 582; 1856, p. 622; 1857, p. 629.
19 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1849, p. 271; 1857, p. 473; 1859, p. 515; 1861,
p. 462; 1862, p. 475,
20 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1861, p. 462; 1862, p. 475; 1863, p. 478; 1864,
p. 492; 1865, p. 477.
21 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1866, p. 459; 1867, p. 458.
22 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1869, p. 498; 1870, p. 484; 1871, p. 471; 1872,
p. 502.
23 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1882, p. 237; 1883, p. 535.
24 Iris, 1848, p. 31.
25 LEVY, Carlos Roberto Maciel. Exposições Gerais da Academia Imperial e a Escola Nacional de Belas Artes. Perío-
do monárquico. Catálogo de artistas e obras entre 1840 e 1884. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 1990, p. 47.
26 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1868, p. 111.
27 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1861, p. 100.
28 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1859, p. 515.

15
Quaresma & Comp, que se anunciava assim, “Incumbem se de objectos pertencentes
á escultura, tirão mascaras, retratos, etc”29.

No entanto, durante o Império, poucos são os registros dos ateliês escultóricos, e


devemos esperar aos últimos anos do século XIX e princípios do século XX para
começar a ver registros, tanto fotográficos como literários, dos ateliês de alguns
escultores como Rodolpho Bernardelli. Um caso excepcional será o de Almeida Reis,
que permaneceria nesse espaço do Paço Imperial entre 1877 e 1889, data de sua
morte e nele produziria a maior parte de sua obra. Este espaço, num dos locais mais
privilegiados da cidade, se constituirá não só como um espaço de trabalho, senão
também como um espaço de ensino, convívio e discussão artística e exposição. O
motivo desta cessão de tão importante espaço resulta desconhecido até o momento,
mas é relevante assinalar como Almeida Reis começa a utilizá-lo depois da Exposição
Internacional de Filadélfia de 1876, na qual o escultor expôs duas obras, O Crime,
pela qual já ganhou em 1875 o Hábito da Ordem da Rosa, e a Estatua do bispo de
Chrysopolis, que fizeram parte da representação da arte brasileira.

O conhecimento do ateliê se deve principalmente às obras de três críticos, amigos do


escultor, que o frequentavam: Gonzaga Duque, em a Arte Brasileira, 1888, e Mocidade
Morta, 1899; Generino dos Santos, em Humaniadas, 1938, mas que foi redigido anos
antes; e Mello Moraes Filho, em Artistas do meu tempo, 1904; além das notícias
recolhidas na imprensa. Este espaço, segundo Gonzaga, era “ao rés-do-chão, nas
vastas lojas de um velho prédio para os lados da Misericórdia,”30 e na descrição de
Mello:
o sonhador estatuario, de gorro de velludo e blusa do officio, avistava-se no interior,
acercado da profusão dos utensílios próprios da lide. E aqui e alli, tamboretes sustendo
caixões com gêsso e barro, modelos e esboços em prateleiras e no chão; e a um
canto, fragmentos de estatuas, destroços de altos relevos atirados á poeira. Ao lado
da entrada, uma estatueta ou um busto sobre mais elevado tamborete emergia de uma
espécie de disco rodante, envolto em pannos molhados, que serviam para humedecer
o barro e tornal-o maleavel.

A’s paredes alvas, objectos inacabados, compassos, desenhos de escôrso e retratos de typos
de rua, taes como o Príncipe Obá o Castro Urso e o Cayapo, habilmente traçados a carvão
pelo amoravel artista. Rastilhos de gêsso e de barro, um balde com água, e, separada da
officina por um biombo, uma leve cama de ferro, completavam o mobiliário do esculptor.31

Por sua vez, o outro crítico que conheceu pessoalmente o ateliê do escultor, Gonzaga
Duque, o descreve da seguinte maneira:
Uma luz igual, batida de cima, pela vidraça de uma janela rasgada até o teto, descia
sobre o enorme recinto. Telas esquecidas, desconjuntadas em molduras de uma pobreza
de ouro roído pelo tempo, remendavam a espaços o severo vermelho Van Dyck dos muros;
desordenadamente, sem disposições decorativas ou simetria de ordem, cabeças partidas
a bustos, modelos anatômicos, moldagens de membros, dependurarados por cordéis,
29 Correio Mercantil, 13 fev. 1854.
30 DUQUE-ESTRADA, Luís Gonzaga. Mocidade Morta. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1971, p. 114.
31 MORAES, Alexandre José de Mello. Artistas do meu tempo. Rio de Janeiro: Garnier, 1904, p. 5.

16
entregues à lepra da poeira grossa e falripas de teias, lembravam soturnas sacristias
recamadas de promessas. Dividindo a grandeza da loja, corria de parede a parede, um
tapume negro, coberto pela metade com medalhões ovais de lápislazúli cavados em baixo
relevo, croquis de estátuas, esboços de grupos de monumentos ideados, em cera, em
plastelina, em barro.32

Este lugar de trabalho, cheio de moldagens e esboços, estaria presidido pelo busto de
Auguste Comte e por um lema, segundo Gonzaga, por cima de sua cabeça, respeitando
a curva das auréolas e das inscrições solenizadoras, sobressaía o lema positivista
escrito a giz, com meticulosidade gráfica, num cuidado de mão que acaricia: ‘Amor
por princípio, Ordem por base, Progresso por fim’”33.

Se faz necessária uma revisão profunda dos testemunhos destes críticos, que
modificaram ou privilegiaram umas informações sobre outras, construindo uma
imagem do escultor que chega até nossos dias, destacando o caráter moderno,
antiacadêmico, de artista isolado e afastado das esferas oficiais da arte. Assim, parece
pouco provável a afirmação de Gonzaga Duque, que outorgava ao ateliê uma outra
função, a de vivenda, pois nele moraria o escultor “desiludido, reumatizado por um
grande dissabor de sonhos extintos, representava o obscuro orgulho de um convicto.”34

O ateliê de Almeida Reis se apresenta como um lugar movimentado, num local


privilegiado, um lugar de exposição para suas criações, o que aconteceu com várias
de suas obras como O Progresso, obra que aparece modelando em Mocidade Morta,35
e o modelo para o monumento ao General Osório, e também um lugar de visita e
de reunião. Apesar das diferentes informações, parece que se constituiu como um
lugar de convívio e discussão de vários artistas e intelectuais, sede da mocidade
ávida por mudanças. Todos os seus biógrafos destacam o ateliê de Almeida como um
núcleo artístico importante, no qual ele se constituía como um cicerone, “A todos
o jovem estatuário prodigalizava, com ardente abundancia, sem refolhos, preciosos
ensinamentos, uteis conselhos animando os moços, onde vislumbrava aptidão, com
generosos estímulos.”36 Mello Morais, que viveu aquele tempo, conta como:
A’ noite, ás vezes, por aquelle rasgão de luz da meia porta núa de sua officina, sons de
violão e de nativas cantilenas se entornavam no obscuro do largo, com a melancolia de
um planger suspiroso e suavíssimo. Era o estatuario que confiava ao seu instrumento as
expansões de sua alma scismadora e bella; éramos nós outros, rapazes d’aquelle tempo,
que, alli reunidos, nos entregávamos á intimidade da convivência, aos languores adoráveis
da musica.37

Junto com ele conviveriam, segundo a crítica, L. Guimarães Júnior, Ferreira de


Menezes, Fagundes Varella, Leopoldino de Faria, Mathias Carvalho, Arthur de
32 DUQUE-ESTRADA, 1971, op. cit. p. 115.
33 Idem. p. 116.
34 DUQUE-ESTRADA, op. cit. p. 112.
35 Idem.
36 SANTOS, Generio dos. O estatuário brasileiro C. C. Almeida Reis. Vol. VII de Espólio literário de Generino dos
Santos: Humaniadas: o mundo, a humanidade, o homem. Rio de Janeiro, Editor Typ. do Jornal do Commercio, 1938,
p. 103.
37 MORAES, op. cit., p. 5.

17
Oliveira, Miranda Azevedo e os pintores Souza Lobo, Estevão Silva, Barbosa,
Monteiro, Rodolpho Bernardelli, Rodolpho Amoedo, Belmiro de Almeida e Heitor e
Hortencio de Cordoville, entre outros.

No meio dessa mocidade, Almeida Reis se apresenta como um “cicerone,” quase um


mestre, segundo a historiografia, e conhecemos pelo menos três fatos interessantes
relacionados com Almeida Reis e o ensino da arte: ele se ofereceu para ocupar a cadeira
de escultura da Academia Imperial, mas não foi aceito; participou de um projeto para
criar um liceu para operários na Escola de Santa Rita, junto com o professor Antônio
José Marques, Cordoville, Fortunato Lopes, Cerqueira Lima, Pedro Souto, Jose Maria,
Foligonio Warleit, bacharel Pereira, Thomson e o tenente Palha; e contou com um
aprendiz, Emanuel Lacaille, descrito nas fontes como “acocorado a um canto, no
preparo das barras de tabatinga que, à força da massagem, estereotipava a compressão
dos dedos” e “Agachado, de canto a canto, arrastava-se o aprendiz, recolhendo os
esboçadores e ferramentas.” Quase não temos dados sobre este jovem escultor, que
realizou em 1885 o relevo representando o seu mestre.

Uma das experiências mais interessantes e incomuns no período se produz em 1874,


quando o pintor Antonio Araujo de Souza Lobo, o arquiteto José Rodrigues Moreira e
o estatuário Almeida Reis se reúnem para formar um “estabelecimento das Belas Artes”
chamado Acropolio, na rua do Senado, 34 e 36. O grupo escolheu precisamente um
nome da antiguidade clássica, acropolio, o lugar mais alto das antigas cidades gregas,
destacando o de Atenas, que aparece assim na imprensa da época: “O Acropolio
silencioso e em ruinas, recorda aquelles artistas, cheios da sagrada chamma da
inspiração. Hoje o espectaculo das suas ruinas maravilha os olhos do tourista, attrahe
o artista, faz cogitar o philosopho, e desafia o estudo ao archeologo!”38

Pouco sabemos deste “estabelecimento,” que já foi definido como uma escola que
pretendia modernizar o ensino da arte, se opondo à Academia. Nas fontes da época,
nada achamos ao respeito, desconhecendo de onde viriam essas informações.
Na época, as funções de Acropolio, divididas nas seções de arquitetura, pintura e
escultura, se anunciam na imprensa assim:
Seção de architectura. Diretor José Rodrigues Moreira. Encarrega-se de executar:
prospectos e planos, medição de terras, trabalhos de engenharia, edificação de predios;
assentamento de trilhos urbanos ou de estrada de ferro; restaurações e avaliações dos
trabalhos acima mencionados.

Seção de desenho e pintura. Diretor, Antônio Araújo de Souza Lobo. Pintura a oleo, a
colla, a aquarella, desenho a lapis e a pastel: encarrega-se de composições historicas,
retratos em todos os tamanhos, miniaturas, paisagens, scenographias, etc. Lithographia
e gravura sobre pedra ou madeira; illustra jornaes, obras litterarias, retratos, mappas e
qualquer genero de trabalho. Restauração de pinturas a oleo, desenho a lapis, a pastel,
gravuras, litographias, photographias, etc.

Seção de estatuaria. Diretor Cândido Caetano de Almeida Reis. Encarrega-se de executar:


estatuas em bronze, marmore, gesso e barro cosido: decóra theatros, igrejas, salões, tectos
38 A Consciencia, 11 ago. 1876, p. 2.

18
e corredores; imagens de todos os tamanhos em madeira, bem como encarna-las; restaura
qualquer dos trabalhos acima mencionados; mascaras sobre cadaveres. Assim, Almeida
está reunindo as funções tanto de estatuário, escultor, entalhador, dourador, restaurador,
etc. 39

Além destes artistas, outros professionais tiveram seu lugar de trabalho no Acropolio,
como o engenheiro Carlos Araujo de Ledo Neves40, os agrimensores Xavier de Alcantara
e Leonel Gomes41, ou Carlos Alberico de Souza Lobo, professor de desenho42.

Este estabelecimento existiu durante mais de 20 anos, de 1874 até, pelo menos, 1885,
mas só como ateliê de pintura. Almeida Reis abandona o grupo em 1877 e Rodrigues
Moreira em 1879, continuando somente Souza Lobo. As atividades realizadas no
Acropolio continuam sendo um mistério, tendo apenas algumas referências dos
trabalhos de pintura realizados, e em alguma obra se define Acropolio como um
“estabelecimento de pintura de paisagens e retratos.”43

A iniciativa mais interessante será uma exposição entre o dia primeiro e 15 de abril
de 187744, seguida de um leilão das obras no dia 26 de abril, com catálogo publicado,
iniciativa que tinha “por fim animar e desenvolver os talentos nacionaes”45. A imprensa
oferece dados da concorrência, visitada por 154 pessoas no dia 1 de abril, 225 no dia
2, 189 no dia 3, e177 no dia 4,46 332 pessoas no dia 10 de abril, e 284 no dia 11.47
Termina hoje a exposição de quadros do Acropolio, á rua do Senado, por um leilão
d´elles. E´ excelente ensejo para amadores adquirirem alguns trabalhos de incontestavel
merecimento que ahi ha, ao mesmo tempo que assim auxiliam os artistas nacionaes a
proseguir n´uma carreira, que é entre nós tão cheia de difficuldades. Fazemos votos
para que a boa idéa do Sr. Souza Lobo surta o desejado effeito, e o anime a repetir a
experiencia. A concorrencia do visitantes foi bastante numerosa; assim seja hoje a de
compradores.48

Nesse mesmo mês, abril de 1877, se celebra outra exposição no Acropolio, neste caso
do pintor João Bancalari:
Importante leilão de quadros a oleo João Bancalari auctorisado pelo seu particular amigo
o distincto pintor Antonio Araujo de Souza Lobo apresentará em leilão hoje quinta feira,
26 do corrente, as 10:30 da manhã no seu Acropolio, rua do Senado, 36, toda a sua
magnifica collecção de quadros a oleo de seu afamado pincel, e varios quadros, estudos
de seus discipulos e da Imperial Academia das Bellas Artes. O catalogo impresso avulso
que se distribue em casa do annunciante á rua de S. Pedro n. 54 e á do Senado n. 36, dá

39 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1875, p. 43.


40 Indicador alphabetico, 1875, p. 34.
41 A Nação, 4 ago. 1875, p. 4.
42 Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, 1885, p. 816.
43 BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento. Diccionário Bibliographico Brazileiro. Rio de Janeiro: Typographia
Nacional, 1883 v.1, p. 110.
44 O Globo, 1 abr. 1877. A Reforma, 26 de abril de 1877.
45 O Globo, 22 abr. de 1877.
46 O Globo, 5 abr. de 1877, p 2.
47 Jornal da Tarde, 10 abr. de 1877.
48 Gazeta de Notícias, 17 abr. 1877.

19
minuciosamente todos os lotes. Chama-se a attenção dos amadores das bellas artes para
esta collecção de quadros.49

Entre as obras e encomendas feita a Acropolio, destaca a encomenda dos alunos do


Colégio Rocha do retrato do seu diretor, A. M. de Cunha Rocha,50 feito pelo Sr. Netto,
aluno da Academia das Belas Artes, a quem Lobo deixou o espaço do Acropolio
para sua realização,51 ou “o retrato a oleo do distincto músico Norberto Amancio de
Carvalho, alumno do Conservatorio de Música”,52 obra de Lobo, ou um retrato de
senhora exposto na Galeria Moncada.53

Sob a assinatura Acropolio, artistas desta instituição ilustraram o jornal A Comedia


Popular. Hebdomadario ilustrado e satyrico,54 propriedade de Alberico de Souza Lobo,
mas segundo Herman Lima, o responsável destes desenhos seria Aluísio Azevedo.55
Também produziram litogravuras para alguns jornais, como o Pygmeu, Propriedade
de Alberico Lobo & Co, que em seu número 4 publicou “um retrato de S. M. a
Imperatriz, lithographado na officina do Acropolio.”56 Do mesmo modo “na officina
lithographica dos Srs. Angelo & Robin acaba de ser impresso um retrato do invicto
general Ozorio, trabalho do Sr. José Antunes Porciuncula e lithographado pelo Sr.
Souza Lobo, no Acropolio.”57

Como antecedente claro do Acropolio, e com a mesma intenção - exibir anualmente


trabalhos de artistas nacionais -, encontramos o Congresso Juvenil Artístico, criado
em 1863, formado por alunos da Academia das Belas Artes, entre eles Almeida Reis,
que foi tesoureiro e conselheiro, entre 1863 e 1865, e no qual expôs suas ideias sobre
o progresso da sociedade, e além disso reformulou os estatutos58 e doou uma de suas
obras, Michelangelo,59 para a exposição. Em 1863, a associação é definida assim:
Não deixão de ser dignas de apreço as tentativas de que se lance mão para se erguer as
bellas artes do lugar mesquinho que occupão entre nós. Com esse intento varios alumnos
de nossa abandonada Academia das Bellas Artes organisarão uma sociedade intitulada
Congresso Juvenil que se dispõe a exhibir annualmente, em exposição, trabalhos de
artistas nacionaes.60

Pouco sabemos das ideias que motivaram a estes artistas e intelectuais nestas duas
agrupações, tanto o Congresso Juvenil Artístico, como o Acropolio, mas talvez, para
esclarecer os propósitos deste último, uma obra escrita por Souza Lobo e não localizada
até o momento, se constitui como uma peça chave. Bellas-artes. Considerações sobre a
reforma da Academia, publicada no Rio de Janeiro em 1874:
49 Gazeta de Notícias, 26 abr. 1877, p. 44.
50 Diário do Rio de Janeiro, 10 set. 1876.
51 O Globo, 8 set.1876, p. 3.
52 Gazeta de Notícias, 25 maio 877, p. 2.
53 O Cruzeiro, 12 jun. 1878.
54 O Fígaro, 1877, p. 698.
55 FANINI, Ângela Maria Rubel. Os romances-folhetins de Aluísio de Azevedo: aventuras periféricas. Tese de dou-
torado (Teoria literaria), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2003, p. 15.
56 O Globo, 24 set. 1881, p. 3.
57 O monitor campista, 18 nov. 1879, p. 3
58 Brazil Litterario, 20 nov. 1864, p.4.
59 O Portuguez, 18 de setembro de 1864.
60 Revista mensal da Sociedade Ensaios Litterarios, 1 jun. 1863, p. 163.

20
E’ uma memoria de 68 pags. em que o autor trata dos seguintes assumptos, tendo cada
um destes seu respectivo capitulo. Os titulos dos diversos capitulas são: Direcção da
academia antês escola de bellas-artes - Que resultados tem apresentado a academia? -
Quantos milhares de contos de réis tem empregado o governo até hoje? - Em que condições
frequentam os alumnos a academia?. – Quaes as garantias dos que se formam em
bellas-artes? - Mathodo e disciplina - Exposições - Considerações sobre as maneiras de
criticarmos as bellas-artes - Conservatorio de musica - Ordenados.61

Mas, no final, quem eram aqueles jovens artistas que frequentaram o espaço do
Acropolio? Vários são os nomes de artistas e intelectuais que segundo os biógrafos
frequentaram o ateliê de Almeida Reis, mas quem fez parte do Acropolio era bastante
desconhecido, até o achado de uma pequena notícia de 1877,62 escrita paradoxalmente
por Phidias, que saluda os artistas de Acropolio, muitos deles alunos da Academia,
sendo estes F. Monteiro (Firmino Monteiro ou Francisco Monteiro Caminhoá), Assis,
Almeida Reis, Belmiro de Almeida, Carlos Leopoldo Cesar Burlamaqui, também do
Congreso Juvenil, Estevão Silva, Felix e Henrique Bernardelli, Villaça (Francisco
Vilaça), Carlos Alberico de Souza Lobo, Hortencio de Cordoville, o único escultor,
Leoncio (da Costa Vieira), Antonio Bernardes Pereira Netto, Rodolpho Amoedo,
Pedro José Pinto Peres, Portella, Antonio Araujo de Souza Lobo, Villela, Zeferino da
Costa e José Rodrigues Moreira.

A modo de síntese, vemos como o ateliê de Almeida Reis, dentro do pouco conhecido
mundo da escultura oitocentista, se constitui como uma área que merece estudos
mais aprofundados, um espaço multifuncional, de trabalho artístico, de ensino, de
exposição e venda, além de reunião e discussão artística, literária e cultural, um
ponto chave que acolheu a muitos dos mais importantes nomes da arte e da cultura
brasileira do período.

61 BLAKE, op. cit.


62 Gazeta de Notícias, 13 abr. 1877.

21
22
Fernando Corona e o
“Documentário fotográfico
de esculturas executadas
pelos alunos desde a fundação
do curso de escultura”

Alfredo Nicolaiewsky 1

Figura 1 - Escultura dos


alunos do Instituto de Be-
las Artes: 1938-1956. Volu- Este
texto se propõe a um primeiro olhar sobre o documento intitulado
me 1. Capa do documento “Documentário fotográfico de esculturas executadas pelos alunos desde a fundação
em cartão e nanquim; 22 x
28cm. Porto Alegre/RS, Ar-
do curso de escultura,” [Figura 1, Figura 2 e Figura 3] feito pelo professor Fernando
Corona (1895-1979), que lecionou no atual Instituto de Artes (Instituto de Belas
quivo Histórico do Instituto
de Artes/UFRGS. Artes – IBA, à época) no período de 1938 a 1965, quando criou e ministrou o Curso
Figura 2 - Escultura dos de Escultura. Este documento pertence ao Arquivo Histórico do Instituto de Artes
alunos do Instituto de Be-
(AHIA-UFRGS).
las Artes: 1938-1956. Volu-
me 1. Capa do documento
em cartão e nanquim; 22 x
28cm. Porto Alegre/RS, Ar-
quivo Histórico do Instituto
de Artes/UFRGS.
Figura 3 - Escultura dos
alunos do Instituto de Be-
las Artes: 1938-1956. Vo-
lume 1. Folha de rosto do
documento: foto colada so-
bre papel; 22 x 28cm. Porto
Alegre/RS, Arquivo Histó-
rico do Instituto de Artes/
UFRGS.

1 Artista plástico e professor Associado junto ao Departamento de Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.

23
Sobre Fernando Corona
Fernando Corona, escultor, arquiteto, crítico de arte e professor, nasceu em 1895,
em Santander (Espanha) e morreu em 1979 em Porto Alegre (Rio Grande do Sul).
Ele era filho do também escultor e arquiteto, maçom e republicano espanhol Jesus
Maria Corona (1871–1938). Sua vinda para o Brasil em 1909 se deve a problemas
políticos: ele fugiu da Espanha por ter participado de movimentos republicanos
contra a monarquia. Inicialmente vem para a Argentina, se estabelecendo em Buenos
Aires e, de lá, a convite, vem trabalhar em Porto Alegre, como escultor e decorador
para os prédios que estavam sendo edificados na cidade.

Em 1912, aos 17 anos, Fernando Corona vem a Porto Alegre, por ordens da mãe, para
buscar o pai. Mas, ao invés de levar o pai de volta a Espanha, começa a trabalhar por
aqui como arquiteto/decorador, iniciando seu aprendizado no ofício com o pai. Em
1919 Jesus Corona vai para Pelotas, desgostoso com o resultado do concurso para o
projeto da catedral de Porto Alegre, cujo projeto havia vencido, porém fora preterido
e não executado. Fernando Corona permanece em Porto Alegre, se associando a
diversos empresários da construção, trabalhando com ornamentos e esculturas para
decorações de fachadas.

Em 1922 Jesus Maria retorna a Espanha, mas Fernando Corona permanece em Porto
Alegre, onde exerce a profissão de arquiteto/escultor, no ramo da construção, por
vinte anos. Ele também colabora na imprensa, entre o final da década de 1910 e o
início da década de 1920, criando capas para a revista Máscara. Casa-se em 1920
e a família se completa com o nascimento de seus três filhos, dos quais dois serão
arquitetos e professores, um na USP e o outro no IA/UFRGS. Quando é proclamada a
república na Espanha ele pensa em voltar, mas a decisão vai sendo adiada, em função
de encomendas que vão surgindo, e acaba por ficar definitivamente em Porto Alegre,
somente voltando a Europa para passear e visitar museus.

Dentre os muitos prédios que tem sua marca podemos citar o Hospital Modelo (atual
Hospital São Francisco, junto a Santa Casa de Misericórdia), a fachada e os elementos
escultóricos do Banco do Comércio (atual Santander Cultural) e o prédio do Pavilhão
Cultural da Exposição Farroupilha de 1935 (atual Instituto de Educação General
Flôres da Cunha).

 Em sua trajetória como artista foi contemplado com inúmeras premiações: em 1933
recebe Medalha de Bronze no Salão Nacional de Belas Artes/RJ, e em 1940 recebe,
no mesmo Salão, a Medalha de Bronze em Arquitetura,; no 7º Salão de Belas Artes
do RS (1956) obteve Medalha de Ouro. É autor de dois capítulos sobre escultura e
arquitetura no Rio Grande do Sul publicados na Enciclopédia Rio-grandense (1957,
Porto Alegre): “Cem anos de formas plásticas e seus autores” onde discorre sobre
a arquitetura e os escultores do séc. XIX e início do XX (2º volume) e “50 anos de
formas plásticas e seus autores” (3º volume), no qual retoma aspectos da arquitetura
e da escultura, desta feita com ênfase na primeira metade do séc. XX.2 Atuou também
2 CORONA, Fernando. Cem anos de formas plásticas e seus autores. In: 2º volume da Enciclopédia Rio-grandense.
Porto Alegre: Livraria Sulina Editôra, 1968 e CORONA, Fernando. 50 anos de formas plásticas e seus autores in 3º

24
como crítico de arte, com colaborações para periódicos como o Correio do Povo e
a Revista do Globo, além de publicações de artigos e livros, como “Caminhada nas
Artes” (1940-1977), onde reuniu suas crônicas e críticas de arte.3

Corona foi mais reconhecido como professor e crítico do que como artista. “Como
professor, sua atuação é exemplar, o que o caracteriza como um escultor de escultores”
em suas próprias palavras. O menor reconhecimento de sua obra escultórica se deve
certamente a ausência de um olhar abrangente sobre sua produção, dispersa em
coleções privadas, em monumentos e em obras desenvolvidas para integrarem
fachadas arquitetônicas. Dentre estas últimas, são notáveis as esculturas que
integram, por exemplo, a fachada do Santander Cultural, em Porto Alegre, e os
monumentos, como as cabeças de Beethoven e Chopin, no Auditório Araújo Viana.
Mas onde podemos ver o escultor de linguagem particular é no Inca, na imagem
Nossa Senhora do Líbano (fachada da Paróquia Maronita) e, ainda no painel
cerâmico instalado no 8º andar do Instituto de Artes. Todas essas obras são de um
equilíbrio admirável e de uma fatura excepcional. São sintéticas e econômicas,
com volumes funcionais, traços fisionômicos recortados e uma elegância superior,
revelando um escultor tecnicamente perfeito e um esteta admirável.4

Em 1938 é convidado por Tasso Correa (1901-1977), diretor do IBA, a criar o curso
de escultura, que ele divide em Escultura e Modelagem, e do qual será professor até
1965, quando é aposentado por ter chegado aos 70 anos. Em 1944 ajuda a fundar
o Curso Superior de Arquitetura do IBA, onde lecionou até 1950. Quando é criada
a Faculdade de Arquitetura da UFRGS, não o aceitam como professor, por não ter
curso superior. A despeito da ausência de formação específica um bom exemplo de
sua competência como arquiteto é o prédio do atual Instituto de Artes, inaugurado
em 1943. Infelizmente o conjunto arquitetônico foi apenas parcialmente construído,
pois constam ainda, no projeto original, um grande teatro/auditório e um museu de
artes.

Sobre o “Documentário Fotográfico”


O material, hora em análise, é composto de dois volumes encadernados em cartão
rígido, sendo os cadernos unidas, artesanalmente, com barbantes, medindo, cada um,
22 x 28 cm, sendo que o primeiro volume tem 198 páginas5 e segundo 143 páginas6.
Ambas as pastas têm capas identificadas e ilustradas pelo próprio artista. Nestas
páginas temos, principalmente, fotos dos trabalhos dos alunos e também algumas
anotações manuscritas e recortes de jornais e revistas, que se referem aos alunos ou a
ex-alunos do curso de escultura

volume da Enciclopédia Rio-grandense. Canoas/RS: Editôra Regional Ltda, 1957.


3 Seu trabalho como critico de arte foi o objeto de investigação de Elvio Antonio Rossi, que apresentou em 2013, como
trabalho de conclusão do bacharelado em História da Arte, a monografia intitulada Pensando com Arte: as críticas de
Fernando Corona sobre artes plásticas (1958-1970). Disponível em: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/97686
4 GOMES, Paulo. Academismo e Modernismo: possíveis diálogos. In: 100 Anos de Artes Plásticas no Instituto de
Artes da UFRGS - três ensaios. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2012, p.54.
5 Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufrgs.br/da.php?nrb=000953458&loc=2015&l=ac6601d27d45138e
6 Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufrgs.br/da.php?nrb=000953458&loc=2015&arq=2&l=776aad720a-
da47d0

25
Para falar da criação do curso de escultura e do documento tema deste estudo, passo
a palavra ao próprio professor Corona, citando o texto que escreve nas primeiras
páginas deste material:
Curso de Escultura no I.B.A.

Em 1938, meu amigo Tasso Corrêa, Diretor do Instituto de Belas Artes da


Universidade de Porto Alegre, me convidou (já o vinha fazendo há mais de ano)
para fundar o Curso de Escultura da mesma Escola. Não havia nada no Rio
Grande do Sul. Afinal aceitei e no dia 12 de maio de 1938, na Reitoria do Dr.
Aurélio de Lima Py, assinei contrato com vencimentos de um conto e duzentos
mil reis, que era igual ao dos demais catedráticos. Ora, eu ganhava um conto e
oitocentos como arquiteto da firma Azevedo Moura e Gertum, e teria que dividir
o horário. Logo que assumi não havia nenhuma instalação nem barro para
poder iniciar as aulas. Como o prof. Ernani Corrêa estava impedido de dar Arte
Decorativa e Arquitetura Analítica, Tasso me pediu, (enquanto se preparavam
as mesas e se comprava o barro) que lecionasse aquelas duas cadeiras que eram
também dos meus conhecimentos. Havia só três alunas de Arte Decorativa e cinco
de Arquitetura Analítica. Meu contrato, além de fundar o Curso de Escultura se
estendia também à Modelagem I e II ano do Curso Geral de Artes Plásticas. Tanto
Escultura como Modelagem tinham que esperar as instalações. Só no segundo
semestre é que pude começar as aulas da minha cátedra.
Em agosto de 1938 iniciei as aulas de Escultura e Modelagem. Aulas eminentemente
práticas, não me limitei a explicar os temas dados com modelo vivo que era a
execução de uma cabeça. Era o princípio para tomar contato com os músculos da
face sem que houvesse preocupação em fazer retrato do modelo. As aulas práticas
eram acompanhadas de outras teóricas sobre escultura antiga, como ilustração
e nunca para copiar nem grego nem romano. A liberdade de cada aluno estava
em seu próprio temperamento, criando formas a seu modo logo que aprendia a
ver e a sentir a verdade do modelo natural. As primeiras alunas que tive foram
Vera Wiltegn e Cristina Balbão. O aproveitamento viria em 1940, quando as duas
modelaram obras apreciáveis.
Para documentar meu trabalho fazia fotos das obras dos alunos e consegui
organizar dois álbuns. Neste primeiro que vai de 1938 a 1956, existem 241 fotos e
no segundo, de 1957 a 1965, há 167 fotos. Em 26 de novembro, contando 30 anos
de serviço, incluindo licenças prêmio que não gozei, caí na compulsória aos 70
anos de idade.
Fernando Corona7

A análise destes dois registros feitos pelo professor Fernando Corona nos abre
um grande leque de possibilidades de estudo. É um material que apresenta farta
iconografia sobre os processos e resultados do ensino de escultura e modelagem à
época, em Porto Alegre. Mas não somente isto. Podemos inferir uma série de outras
questões que somente podem ser percebidas pela passagem do tempo.

7 Idem, nota 5.

26
Sobre as questões de gênero
Chama a atenção, ao se examinar os cadernos, a ausência, nos primeiros vinte anos
de curso, de alunos do sexo masculino. A primeira referência a presença de alunos
aparecerá somente no início do segundo caderno, já em 1957. Apesar de sempre ter
havido predominância de alunas nos cursos do IBA (isto até os anos setenta), diversos
alunos homens tinham freqüentado os cursos da instituição, mas, aparentemente,
não na escultura. Ao mesmo tempo observamos que, de todas as alunas que passaram
pelo ateliê de escultura, até o final dos anos
cinqüenta, muito poucas desenvolveram
carreiras artísticas.

A única aluna, deste período inicial, que fará


efetivamente carreira como escultora será Sonia
Ebling (1928–2006), estudante no IBA durante
os anos de 1950 e 1951, e que se mudou para
o Rio de Janeiro, posteriormente para Paris,
retornando em definitivo para o Rio de Janeiro
[Figura 4]. Dentre as outras alunas que se
destacam estão Alice Soares (1917–2005), que
se tornará professora de desenho e fará uma
significativa carreira como artista; Christina
Balbão (1917–2007) e Dorothéa Vergara (1923),
que também serão importantes professoras, a
primeira também de desenho e a segunda de
escultura. O que impediu, ou dificultou, que estas
competentes alunas seguissem carreiras como
escultoras, apesar dos prognósticos otimistas
do professor Corona, nunca saberemos. Mas
sabemos também que estas três jovens, que
se tornaram importantes profissionais, não
se casaram e não constituíram famílias, o que
talvez explique algo sobre o fato de fazerem
carreiras em um contexto adverso à profissionalização das mulheres, principalmente Figura 4 - Escultura dos
alunos do Instituto de
no mundo das artes. Belas Artes: 1938-1956.
Volume 1. Página não
Isto nos remete a uma matéria publicada na Revista do Globo (07/07/1957), que numerada do documen-
encontramos colada no “Documentário”, e que é exemplar sobre a situação das alunas to: fotos coladas sobre
papel; 22 x 28 cm. Por-
naquele momento. Já na chamada da matéria – Garôtas fazendo Arte – parece-nos to Alegre/RS, Arquivo
que está dado o tom da reportagem e indica, desde o título, uma matéria sexista e Histórico do Instituto de
depreciativa. Além da chamada, podemos encontrar no texto algumas afirmações, Artes/UFRGS.
como “Pode ser até estranho que uma arte de técnica tão complexa e pesada, mais
própria para os homens, devido ao esforço físico que exige, seja tão entusiasmadamente
praticada por um grupo de moças, e o que é mais interessante, de moças bonitas”. Na
matéria esta indicada, com toda clareza, que sendo a escultura uma manifestação

27
artística “complexa e pesada”, não deveria ser uma opção feminina e, mais significativa,
que essas alunas não poderiam ser bonitas, pois moças bonitas deveriam fazer coisas
mais “delicadas”. A matéria termina com a declaração de Fernando Corona: “E quando
Figura 5 - Esculturas
lhe perguntam se o casamento não é uma barreira para a moça que se dedica à arte,
dos alunos do curso:
1957-1965. Volume dois. ele não deixou dúvidas quando nos respondeu com todo o seu categórico acento
Página não numerada do espanhol: - ‘Ora, depende do marido...’ ” [Figura 5 e Figura 6]
documento: página de re-
vista colada sobre papel; Não acusando o professor Corona de machista, nem mesmo a reportagem, o que
22 x 28 cm. Porto Alegre/
fica muito claro é a maneira como as mulheres, de modo geral, eram consideradas
RS, Arquivo Histórico do
Instituto de Artes/UFR- naquele contexto: poderiam ter atividades profissionais, se os maridos permitissem,
GS. mas estas deveriam ser adequadas a sua condição de frágeis e femininas. Talvez seja

Figura 6 - Esculturas por isso que, querendo escapar desta submissão programada, Alice Soares, Christina
dos alunos do curso: Balbão e Dorothea Vergara não se casaram.
1957-1965. Volume 2.
Página não numerada
do documento: página
Sobre uma história do ensino no Instituto de Artes
de revista colada sobre
Do ponto de vista de uma história do ensino das artes no Instituto de Artes, podemos
papel; 22 x 28 cm. Por-
to Alegre/RS, Arquivo constatar, a partir da análise do “Documentário Fotográfico”, que um grande número
Histórico do Instituto de alunos de Fernando Corona, tornaram-se professores do Instituto de Artes,
de Artes/UFRGS.
alguns na escultura e outros em áreas como o desenho e a gravura. É extremamente
interessante vermos, no “Documentário Fotográfico”, as produções iniciais de alguns
desses futuros artistas/professores. Também é interessante ver que algumas das
previsões do mestre Corona não se concretizaram, pois ele, que anunciava carreiras
artísticas vitoriosas para alguns dos seus alunos mais talentosos, acabou por vê-los
dedicados exclusivamente ao magistério.
28
Dentre essas promessas artísticas mais notáveis e não concretizadas está a já citada
Christina Helfensteller Balbão, talentosa escultora, pintora e desenhista, que foi
professora de desenho entre 1944 e 1987 e atuou também como funcionária no
Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Outro caso semelhante é o de Dorothéa Vergara
Pinto da Silva, talento excepcional na escultura, com premiações importantes, que se
dedicou quase exclusivamente ao magistério, inicialmente na Universidade Federal
de Santa Maria e, depois, no Instituto de Artes, entre os anos de 1967 e 1991.

Alice Ardhoin Soares é uma exceção dentre as alunas, pois, além de professora de
desenho, entre os anos de 1945 e 1978, tendo deixado sua marca em diversas gerações
de artistas, manteve-se ativa como artista. Escultora e pintora de grande qualidade
dedicou-se, a partir dos anos 1960 (por motivos de saúde) exclusivamente ao desenho,
tornando-se a primeira referência de desenhista no Rio Grande do Sul, alcançando
grande prestígio e sucesso.

Dentre outros alunos, tornaram-se também professores Claudio Martins Costa (1932–
2005), dedicado ao ensino da escultura entre 1971 e 1992; Solange Uflacker (1944–
2000) no ensino de desenho no Curso de Artes Plásticas e cenografia e indumentária
no curso de Arte Dramática, entre 1980 e 1996. Ambos tiveram carreiras discretas
como artistas.

Três outros alunos destacaram-se de modo notável em suas áreas: Carlos Gustavo
Tenius (1939) foi professor de escultura entre 1965 e 1993 e desenvolveu importante
carreira como escultor, criando alguns dos mais notáveis monumentos de Porto Alegre
(dentre os quais o Monumento aos Açorianos, a respeito do qual, também consta um
recorte de jornal, no “Documentário”, quando de sua inauguração); Luiz Fernando
Barth (1941), professor na área de gravura, entre 1970 e 1991, que desenvolveu um
marcante trabalho em serigrafia e, ainda, Luiz Gonzaga de Mello Gomes (1940),
professor de escultura entre 1969 e 1996 (anteriormente lecionou na UFSM) que
desenvolveu uma carreira brilhante na escultura.

Dentre os artistas, que se formaram no ateliê de Fernando Corona, podemos enumerar


além da já citada Sonia Ebling, que fez notável carreira nacional, Cláudio Carriconde
(1934–1981) e Lêda Flôres (1917). Atuantes de modo intenso até hoje são Zoravia
Bettiol (1935) e Joyce Schleiniger (1947).

Sobre o acervo artístico do Instituto de Artes


Outro aspecto notável do “Documentário Fotográfico” são as dezenas de imagens
de esculturas em processo ou já finalizadas, tanto dos alunos, quanto de Fernando
Corona. Dentre essas imagens algumas correspondem a obras do próprio Corona e de
alunos, que foram preservadas e hoje integram o acervo da Pinacoteca Barão de Santo
Ângelo do Instituto de Artes.8

Destacamos aqui, de Fernando Corona, a foto da fôrma do “São Francisco de Assis”


(1956, registro nº317), peça em gesso de grande formato (190 x 70 x 55 cm). Rica
8 GOMES, Paulo (org.). Pinacoteca Barão de Santo Angelo: Catálogo Geral – 1910-2014. Porto Alegre: Editôra da
UFRGS, 2015.

29
de informações é a foto da sala de escultura, feita em 1963,
na qual Corona aparece, com a seguinte legenda “O professor
estudando em seu recanto do atelier”. Nesta imagem do
“recanto” aparecem obras de diversos artistas, que hoje
integram a coleção da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo,
dentre as quais podemos identificar, do próprio Corona, a
importante “Máscara cubista de Borges de Medeiros” (1924,
registro nº420) e a “Mascara de Beethoven” (sem data,
registro 346); além dessas podemos ver na parede do ateliê
o desenho a nanquim de João Faria Viana, datado de 1940
(registro 415), que está inventariado como “Retrato”, mas que
Corona identifica como “Francisco Lisboa – ‘O Aleijadinho’
– Patrono do atelier”. Neste mesmo recanto podemos ver
ainda a pintura de Alice Soares (que está inventariada sem
data, registro 416) retratando o professor e suas alunas. Sobre
esta obra, verdadeiro ícone da coleção da Pinacoteca Barão
de Santo Ângelo, Corona escreveu na página do caderno na
qual está colada a foto: “Quadro pintado por Alice Soares em
1943. Cristina Balbão, Lêda Flores, Dorothéa, Teresa Gomes
Gruber, Alice Soares, Eu. Estas são históricamente (sic) as
Figura 7 - Esculturas
dos alunos do curso: primeiras alunas que tive no Curso de Escultura desde 1938.” [Figura 7]
1957-1965. Volume 2.
Página não numerada do Em outras páginas do documento encontramos os trabalhos das alunas Christina
documento: foto colada Balbão, com a foto da “Cabeça de Velha” (1941, registro nº1020), com a legenda
sobre papel; 22 x 28 cm.
Porto Alegre/RS, Arqui-
“Trabalho de aula – o modelo, humilde esmoleira da Rua da Praia.” [Figura 8] Também
vo Histórico do Instituto com relação à Christina Balbão temos uma situação que reforça a importância deste
de Artes/UFRGS. documento como fonte de pesquisa para identificação e certificação de autoria: há na
Pinacoteca Barão de Santo Ângelo uma
peça registrada como obra de sua autoria,
a “Cabeça de Dorothéa” (sem data,
inventário 609), representando a colega
Dorothéa Vergara. Neste documento,
no qual a obra aparece em duas fotos,
Corona atribui à autoria a Alice Soares,
junto a imagens que trazem a data de
1947.

De Dorothéa Vergara temos duas


Figura 8 - Escultura dos
alunos do Instituto de
esculturas no documento, obras que
Belas Artes: 1938-1956. também integram o acervo artístico do
Volume 1. Página não Instituto de Artes: uma é a “Medusa”
numerada do documen-
to: fotos coladas sobre
(1946, inventário 596) que consta como
papel; 22 x 28 cm. Por- “estudo sem modelo” [Figura 9] e, a
to Alegre/RS, Arquivo outra é a “Figura feminina” (inventário
Histórico do Instituto de
Artes/UFRGS.
424), que esta registrada como de 1958 no

30
inventário da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo (data
que corresponde, na verdade, a sua exibição no Salão
Pan-Americano de Arte, na qual recebeu a Medalha
de Ouro na Seção Escultura). Esta obra de grande
formato (210 x 65 x 35 cm) é outra que o documento
permitiu, não somente a correção de data de execução,
mas o conhecimento completo de seu desenvolvimento.
Através de seis fotos deste trabalho podemos
acompanhá-lo detalhadamente, desde a primeira, que
mostra a escultura em seu estágio inicial de execução,
explicando que é a “prova final do curso de escultura”
do ano de 1947. A informação se completa com a
explicação de que “o tempo de duração do trabalho é
de um ano letivo. Esta fotografia mostra o trabalho no
início, quando o modelo vivo é permanente”. A segunda
imagem mostra o trabalho, em sua forma final, bastante
diferente da primeira, mas ainda em barro. A terceira
foto é um detalhe da escultura, nomeando-a de “Moça”
e atribuindo-lhe grau 10. Junto à quarta fotografia
temos a legenda “foto do trabalho em barro ‘Moça’
2.00 m de altura. Foi fundida em gesso e faz parte do
Figura 9 - Escultura
Museu de Arte do Instituto.” A quinta foto mostra Dorothéa dando o acabamento na dos alunos do Insti-
peça e, finalmente, na sexta, temos mais um detalhe da escultura. O “Documentário tuto de Belas Artes:
fotográfico” altera duas informações relativas a esta peça, deixando claro que o ano 1938-1956.Volume1.
Página não numerada
de execução foi de 1947 (e não 1958, como do documento: fotos
constava) e que foi batizada à época como coladas sobre papel; 22
“Moça”, não sabemos se pela autora ou pelo x 28 cm. Porto Alegre/
RS, Arquivo Históri-
professor, e não como “Figura feminina”, co do Instituto de Ar-
conforme registro no inventário. [Figura tes/UFRGS.Histórico
10] do Instituto de Artes/
UFRGS.
Dentre outros trabalhos da coleção que
aparecem nos cadernos estão a escultura
cerâmica da aluna Glaé Macalós (1965,
inventário 602), e um autorretrato (1960,
inventário 405), do professor João Fahrion.

Estão apresentados neste texto apenas Figura 10 - Escultura


dos alunos do Insti-
alguns aspectos e dados que podemos obter
tuto de Belas Artes:
a partir do “Documentário Fotográfico”. 1938-1956. Volume1.
Sua riqueza e preciosidade já foram Página não numerada
do documento: fotos
demonstradas por ocasião da exposição
coladas sobre papel; 22
“Branco de Forma”, realizada na Galeria x 28 cm. Porto Alegre/
da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, que RS, Arquivo Histórico
do Instituto de Artes/
versava sobre o uso do gesso nas artes
UFRGS.

31
plásticas. Nessa ocasião a curadoria da exposição apresentou um vasto painel com
dezenas de ampliações de fotos dos “Cadernos”, o que despertou grande interesse
por parte dos visitantes e mesmo de antigos alunos, que foram conferir a mostra9 e
que puderam conhecer a história do ensino da escultura no Instituto de Artes. Com
certeza outros estudos virão, trazendo novas análises e com novos enfoques, que
somente irão confirmar a riqueza e a importância documental e testemunhal deste
legado do professor Fernando Corona.

9 “Branco de Forma”, exposição com curadoria de Tetê Barachini & Paulo Gomes, realizada na Galeria da Pinacoteca
barão de Santo Ângelo, de 11 de novembro a 5 de dezembro de 2014. Da mostra participaram, entre outros, Alice
Soares, Christina Balbão, Dorothéa Vergara, Fernando Corona, Jesus Maria Corona, todos com obras pertencentes a
Pinacoteca Barão de Santo Ângelo.

32
O ateliê e a imagem do artista:
o caso de Eliseu Visconti
na França (1893 a 1915)

Ana Maria Tavares Cavalcanti 1

O ateliê de um artista no século XIX tinha muitas funções. Seu espaço, de preferência
amplo e iluminado para facilitar o aprendizado e o trabalho, era também local de
exposição e venda de obras, de encontro do artista com seus clientes. Assim, se no
dia a dia cumpria seu papel de lugar reservado e protegido de olhares indiscretos,
em certas ocasiões o ateliê se abria ao convívio social. Era portanto fundamental na
afirmação da imagem ao mesmo tempo romântica e respeitável de pintores, escultores
ou gravadores.

A curiosidade que esse espaço provocava entre os amadores da arte no final do século
era grande, resultando inclusive na multiplicação de pinturas com o tema do artista
e seu modelo no ateliê.2 Entre os brasileiros, um dos quadros mais conhecidos e
admirados do período é justamente O Descanso do modelo3 de Almeida Junior (1850-
1899) que apresenta um momento de descontração no intervalo da pose.Também
a fotografia foi muito utilizada para retratar ateliês. Pintores e escultores souberam
explorar a curiosidade do público e se fizeram fotografar nesse ambiente, por vezes

1  Professora de História da Arte, Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Brasil (EBA-UFRJ).
2  Sobre a proliferação de telas com o tema do artista e seu modelo no ateliê, conferir em BANDEIRA, Alice Guimarães.
Descanso do modelo: trajetória e repercussão da pintura de gênero brasileira no final do século XIX. (Dissertação).
UFRJ, (Ana Maria Tavares Cavalcanti), Rio de Janeiro, 1 abr. 2013.
3  Pintado em 1882, o quadro integra o acervo do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro. Existem réplicas de
autoria do próprio Almeida Junior, hoje em coleções particulares no Rio de Janeiro e em São Paulo.

33
simplesmente posando para o retrato, mas frequentemente simulando pintar ou
esculpir.

Para pensar no ateliê como parte integrante da imagem dos artistas, vejamos o
caso de Eliseu Visconti (1866-1944) durante sua trajetória parisiense. Vamos partir
da observação de suas fotografias nos ateliês onde estudou ou trabalhou em Paris,
fotos que se encontram no site oficial do pintor, criado por seu neto Tobias Stourdzé
Visconti.4 O período se inicia em 1893 com seu pensionato na Europa, após vencer
o concurso de Prêmio de Viagem de 1892, e se encerra em 1915 com a exposição,
em seu ateliê parisiense, das pinturas decorativas destinadas ao foyer do Theatro
Municipal do Rio de Janeiro.

“Como o pintor queria ser visto?” é a pergunta que nos guia ao observar as fotos que
foram conservadas pelo próprio Visconti. O primeiro aspecto que devemos sublinhar é
que em nenhuma delas vemos o registro instantâneo de um momento casual. O pintor
está sempre posando, consciente da câmera que captura sua imagem. Tem os cabelos
muito bem penteados, a barba cuidada e as roupas impecáveis, geralmente veste terno
e gravata. Este apuro no vestir, visível nas fotos realizadas em Paris, acompanhou o
Figura 1 - Eliseu Visconti pintor ao longo de sua vida, e foi observado alguns anos mais tarde por Angyone
na Academia Julian, ate- Costa na visita que fez a Visconti em seu ateliê da rua Mem de Sá, no Rio de Janeiro.
liê Benjamin-Constant e Angyone descreve suas “calças e colete pretos, bem postos, camisa irrepreensível,
Jean-Paul Laurens, Paris.
Foto: autor desconheci- peito duro e gravata de seda negra, laço feito, comprido ‘veston’ de brim de linho claro,
do, 1893. Fonte: http:// suprindo vantajosamente o avental”, e afirma que essas peças “concorrem para dar ao
www.eliseuvisconti.com- artista uma presença, simultaneamente, grave e simpática.”5
br/
É essa a imagem que já está presente
numa foto de 1893, tirada na
Academia Julian, em que vemos
Visconti e outros alunos do ateliê
conduzido por Benjamin-Constant
e Jean-Paul Laurens. [Figura 1]
A fotografia mostra o ambiente
descontraído desse local de ensino
e camaradagem que propiciava a
formação de amizades. Ao mesmo
tempo nota-se o cuidado dos artistas
com sua apresentação, estão todos
bem vestidos e se prepararam para

4  Agradeço a Tobias Stourdzé Visconti a presteza em tirar minhas dúvidas a cada vez que o consultei e disponibilizar
as imagens para esse texto. O endereço do site por ele criado é :http://www.eliseuvisconti.com.br/
5  COSTA, Angyone. A Inquietação das abelhas: o que pensam e o que dizem os nossos pintores, esculptores, archi-
tectos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello e CIA., 1927, p. 78. Dispo-
nível em: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/artigos_ac_arquivos/ev_entrevista.pdf Acessado
em 12 de novembro de 2014.

34
a foto, como era comum em retratos oficiais de grupos de
estudantes ou profissionais.

A imagem a seguir é um retrato de Visconti em 1894, em seu


ateliê privado na rue de la Grande Chaumière [Figura 2].
Aqui vemos o pintor sentado em frente ao cavalete, a paleta
e os pincéis nas mãos, como se tivesse acabado de pintar o
quadro que, no entanto, já está emoldurado. Esse detalhe
nos faz perceber que a cena foi montada para a fotografia,
simulando o artista em ação, ainda mais porque pode-se ler
o número 1822 fixado na moldura. Ora, essa foto deve ter
sido tirada pouco antes de Visconti enviar a tela, intitulada
La Lecture, para o Salão da Société des artistes français em
1894. No catálogo do Salão daquele ano, sob o nome de Eliseu
Visconti, há a indicação das pinturas En été e La Lecture sob
os números 1821 e 1822, justamente. Outra informação que
consta no catálogo é o endereço do ateliê de Visconti – rue
de la Grande Chaumière, n. 16.6 Sabe-se que no número 10
dessa mesma rua ficava a Academia Colarossi, frequentada
por Visconti conforme registrado em seus cadernos de notas que hoje se encontram Figura 2 - Visconti no
ateliê da rue de la Gran-
no arquivo histórico do Museu Nacional de Belas Artes. A famosa Academia de la
de Chaumière, n. 16,
Grande Chaumière ainda não existia, somente em 1904 seria aberta no número 14. Paris. Foto: autor des-
É interessante observar os quadros pendurados nas paredes do ateliê, testemunho do conhecido, 1894. Fonte:
http://www.eliseuvis-
trabalho prolongado, e novamente o esmero na apresentação pessoal do pintor, bem
conti.com.br/
penteado, barba bem feita e bem vestido.

O cavalete visto nessa


fotografia deve ser o mesmo
que aparece em outra,
tirada em 1899, que mostra
Visconti no ateliê da rue
des Fourneaux (atual rue
Falguière) [Figura 3].
Com um enquadramento
Figura 3 - Visconti no
mais aberto, essa foto ateliê da rue des Four-
nos deixa ver diversos neaux (atual rue Fal-
trabalhos pendurados guière), n. 9, Paris. Foto:
Autor desconhecido,
no ateliê, não apenas 1899. Fonte: http://www.
pinturas de modelo vivo, eliseuvisconti.com.br/
mas também paisagens,
retratos, alegorias e um estudo para o São Sebastião de 1897. Novamente Visconti
tem a paleta e os pincéis nas mãos. No catálogo do Salão da Société nationale des

6  Explication des ouvrages de peinture, sculpture, architeture, gravure et lithographie des artistes vivants exposés
au Palais des Champs-Elysées le 1er mai 1894. Paris: Paul Dupont, 1894, p. 152. Disponível em: http://gallica.bnf.
fr/ark:/12148/bpt6k497822/f398.item. Acessado em 3 de março de 2014.

35
beaux-arts de 18997, encontram-
se as informações sobre o
endereço de Visconti na antiga
rue des Fourneaux, número 9, e
os nomes dos quadros expostos
– Mélancolie (depois chamada de
Gioventu) e Tendresse (que depois
recebeu o nome de O Beijo),
ambos de 1898. Na fotografia,
no entanto, não aparecem as
telas enviadas ao Salão. Vemos
o estudo para as Oréadas no
cavalete e o quadro finalizado
(1899), de maiores dimensões,
na parede. Chama nossa atenção,
bem no centro da imagem, ao
fundo, uma estampa emoldurada
- ou seria uma cópia pintada? - da
Figura 4 - Visconti e o Primavera de Botticelli. A presença da reprodução de Botticelli no ateliê de Visconti
pano de boca no ateliê do
Boulevard du Château,
não é casual, pois demonstra sua admiração por esta pintura que foi uma fonte de
n. 38, Neuilly-sur-Seine. inspiração para sua produção de tendência simbolista, no final da década de 1890,
Foto: autor desconhecido, aqui bem representada pelas Oréadas.
1907. Fonte: http://www.
eliseuvisconti.com.br/ Pouco tempo depois, no início do século XX, sua carreira chega ao amadurecimento.
Em 1905, Visconti recebe o convite para apresentar projeto de pinturas decorativas
para o Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Dois anos mais tarde, se faz fotografar
no ateliê do Boulevard du Château, n. 38, em Neuilly-sur-Seine, nas proximidades
de Paris, onde executou as pinturas do pano de boca, do plafond e do primeiro friso
sobre o proscênio, posteriormente encoberto pelo novo friso realizado entre 1934 e
1936. [Figura 4 e Figura
5] As fotos impressionam
ao mostrar o espaço e as
instalações deste ateliê que
havia sido construído para
Puvis de Chavannes (1824-
1898) realizar suas grandes
decorações de edifícios
Figura 5 -Visconti e o públicos franceses. Após
pano de boca no ateliê do a morte de Puvis, o ateliê
Boulevard du Château,
n. 38, Neuilly-sur-Seine.
fora alugado por Jean-
Foto: autor desconhecido, Joseph Benjamin-Constant
1907. Fonte: http://www.
eliseuvisconti.com.br/

7  SOCIÉTÉ NATIONALE DES BEAUX-ARTS. Catalogue Illustré du Salon de 1899. Paris: Ludovic Baschet, 1899,
p. XXVIII. Disponível em: https://archive.org/details/catalogueillust1899soci Acessado em 4 de outubro de 2013.

36
(1845-1902),8 que mais tarde o adquiriu tornando-se proprietário. Visconti alugou-o
da viúva do pintor, Jeanne Benjamin-Constant9, pois necessitava de um ateliê
especialmente amplo para abrigar a enorme tela do pano de boca.

Em algumas cartas trocadas entre Visconti e Francisco de Oliveira Passos, chefe


da comissão construtora e arquiteto do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, há
informações sobre a encomenda dessas fotografias.10 Em 4 de julho de 1907, Visconti
menciona o projeto de expor as pinturas decorativas em seu ateliê, com o intuito de
“fazer reclame do Teatro e sobretudo do Brasil que é infelizmente mal conhecido!”11
Na mesma carta informa que “o trabalho fotográfico de todas as decorações não
poderá ser feito por menos de 600fcs ficando o fotógrafo com os clichês e dando-
me as duas provas de cada clichê. Haverá pelo menos 16 clichês porém o trabalho é
perfeito”. Sobre esse assunto, pede uma resposta imediata de Francisco de Oliveira
Passos, com a expectativa de ter o custo das fotografias reembolsado. Um ano e meio
mais tarde, Visconti solicita autorização para reproduzir essas fotos, e é atendido por
Oliveira Passos que lhe escreve comunicando que “a Prefeitura do Distrito Federal,
vos autoriza a fazerdes reproduzir as fotografias das diversas fases dos trabalhos de
pintura que executastes para o interior do Theatro Municipal, pelo processo mais
conveniente para a propaganda da arte nacional.”12

A propaganda da arte nacional, neste caso, coincidia com a divulgação do trabalho


de Eliseu Visconti que aparece nas fotografias pintando no ateliê do Boulevard du
Château. Nas fotos vemos a grande claraboia que deixa passar a luz natural, tendo um
fino véu próximo às vidraças, regulando a iluminação. A imensa tela do pano de boca
está posta numa aparelhagem que permite que seja em parte enrolada, pois sua altura
total não cabia no ateliê. Vemos ainda o esboço completo da pintura num cavalete
sempre à vista do pintor, assim como outros desenhos e estudos também expostos.
Diversas escadas estão posicionadas em frente ao pano de boca e, em cima de uma
delas, vemos Visconti em plena ação.

A exposição planejada ocorre de 20 a 28 de julho, no próprio ateliê do pintor, a ela


acorrendo grande número de convidados, entre autoridades brasileiras, artistas
e jornalistas.13 Uma fotografia muito significativa nessa série é a de Visconti com
Francisco de Paula Rodrigues Alves, que fora presidente do Brasil de 1902 a 1906,
acompanhado de outras autoridades, suas esposas e crianças em visita à exposição

8  Talvez por mera coincidência, o pintor Benjamin-Constant fora professor de Visconti na Academia Julian.
9  Essas informações sobre o ateliê de Neuilly-sur-Seine se encontram numa carta de Jeanne Benjamin-Constant para
Visconti (em 12 de março de 1907), conservada no arquivo histórico do Museu Nacional de Belas Artes - Arquivo
Eliseu Visconti, cartas originais.
10  FERNANDES, Caroline (org.). Cartas de Eliseu Visconti a Francisco de Oliveira Passos sobre a ornamentação do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro. 19&20, Rio de Janeiro, v. VI, n. 4, out./dez. 2011. Disponível em: http://www.
dezenovevinte.net/txt_artistas/cartas_visconti_passos.htm Acessado em 15 de setembro de 2015.
11  Acervo Bibliográfico do Museu dos Teatros - Rio de Janeiro. Manuscrito. Carta de E. Visconti a Oliveira Passos. No.
de identificação 53980. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/txt_artistas/cartas_visconti_passos.htm.
Acessado em 15 de setembro de 2015.
12  Carta de Francisco de Oliveira Passos a Eliseu Visconti, em 12 de dezembro de 1908. Arquivo histórico do Museu
Nacional de Belas Artes - arquivo Eliseu Visconti, cartas originais.
13  VISCONTI, Tobias Stourdzé. Theatro Municipal do Rio de Janeiro. In Eliseu Visconti, a arte em movimento. Rio
de Janeiro: Hólos Consultores Associados, 2012, p. 170.

37
das pinturas decorativas
para o teatro [Figura 6].
Essa fotografia com o ex-
presidente em seu ateliê marca
a consagração de Visconti
como pintor “oficial” da arte
nacional. De fato, suas pinturas
decorativas para o Theatro
Municipal participavam do
projeto republicano do início
do século XX, manifesto no
desejo de colocar nossa capital,
a cidade do Rio de Janeiro, em
pé de igualdade com as capitais
europeias. Em livro publicado
após 1945, e portanto após o
Figura 6 - Visconti com
o presidente Rodrigues falecimento de Visconti, Francisco Acquarone (1898-1954) conta que durante uma
Alves, autoridades, suas visita ao ateliê do pintor no Rio de Janeiro, este, que gozava então de notoriedade
esposas e crianças no
ateliê do Boulevard du resultante de uma carreira longa e bem sucedida, lhe confessou tristemente “que
Château, n. 38, Neuilly- o grande público não conhecia o lado grandioso, verdadeiramente artístico de sua
-sur-Seine. Foto: Autor
desconhecido, 1907. extensa produção.” Esse lado verdadeiramente artístico, o pintor quis lhe mostrar, e
Fonte: http://www.eli- Acquarone relata:
seuvisconti.com.br/
[...] desembrulhando velhas pastas guardadas cuidadosamente em armários envidraçados,
[Visconti] exibiu aos nossos olhos extasiados, deslumbrados, grandes fotografias de
suas decorações realizadas, principalmente, no Teatro Municipal do Rio e no palácio do
Conselho Municipal.
Percorrendo o atelier, mostrou-nos depois, vários esbocetos a óleo, croquis a carvão,
uma infinidade de estudos, em suma, traçados antes da execução definitiva daqueles
trabalhos. [...]
- A obra de um artista - dizia-nos Visconti - deve ser sempre apresentada com a
reprodução do que ele tenha de melhor: suas composições ou suas decorações. Um nu,
uma paisagem ou um retrato não são o bastante para dar uma idéia do potencial criador
de um artista. 14
Vemos que o próprio Visconti considerava as decorações como a parte mais
importante de sua obra. Integradas à arquitetura do teatro e, por conseguinte, ao
espaço urbano, essas pinturas faziam e fazem parte da vida cultural do Rio de Janeiro.
As decorações do Theatro Municipal custaram-lhe muito trabalho, tempo e esforços
que foram recompensados com o reconhecimento de críticos, de historiadores da arte
e do público. Tendo consciência da importância desse projeto, Visconti quis preservar

14  ACQUARONE, F. Mestres da Pintura no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Paulo de Azevedo, s.d., p. 184 -185.

38
a memória de sua realização
contratando o fotógrafo que o
registrou no ateliê em 1907.

Quando em 1913 recebeu


novamente a tarefa de realizar
pinturas decorativas para o
Municipal, agora destinadas
ao foyer do teatro,15 Visconti
retornou a Paris para lá executar
os trabalhos, alugando novo
ateliê situado na rue Didot n.
102. Mais uma vez contratou um
profissional para fotografá-lo
trabalhando. Em duas fotos de
1913 o vemos no ateliê esboçando
os desenhos preparatórios para as pinturas que ocupariam os tímpanos laterais do Figura 7 - Visconti com
foyer [Figura 7 e Figura 8]. Nas duas se vê a grande janela típica dos ateliês, quase modelo e estudos para
uma fachada envidraçada que deixa entrar luz abundante filtrada por um tecido fino. as pinturas do foyer do
Theatro Municipal no
Nelas também se vê o modelo masculino que posa como Dante, sobre um estrado ateliê da Rue Didot, n.
com rodinhas. O estrado facilitava o trabalho do artista, ao posicionar o modelo a 102, Paris. Foto: Autor
certa altura, e também o trabalho do modelo que podia ficar próximo do aquecedor desconhecido, 1913.
Fonte: http://www.eli-
no centro do ateliê. São ainda visíveis em ambas as fotos as várias telas sem chassis seuvisconti.com.br/
penduradas na parede ao fundo, entre elas estudos de modelo vivo.

Em um detalhe as fotos diferem. Numa delas, Visconti está em frente ao cavalete, de-
senhando o modelo. Na outra, o pintor se aproximou do estrado e parece orientar o
modelo sobre sua pose. Essas fotos, mesmo que a partir de atitudes posadas e dirigidas,
nos dão uma ideia das etapas do trabalho do pintor, de sua maneira de proceder, da
necessidade de con-
sultar os estudos an-
teriores, por exem-
plo, que estavam à
vista pregados nas
paredes.

Em 1915, com o
trabalho finalizado, Figura 8 - Visconti com
modelo e estudos para
antes de retornar ao
as pinturas do foyer do
Brasil para instalar Theatro Municipal no
as pinturas no teatro, ateliê da Rue Didot, n.
102, Paris. Foto: Autor
Visconti expôs as
desconhecido, 1913.
novas decorações Fonte: http://www.eli-
em seu ateliê da seuvisconti.com.br/

15  Tobias Stourdzé Visconti menciona que em 1912 foi aberto concurso para essa decoração do foyer do teatro, sendo
que Rodolpho Amoedo também teria concorrido, perdendo para Eliseu Visconti. (VISCONTI, op. cit., p. 184)

39
rue Didot. Ainda em Paris se fez fotografar no
ateliê, com as pinturas [Figura 9]. Tudo o que
observamos sobre as fotos anteriores permanece
válido para esta de 1915. Num cavalete próximo à
tela podemos ver o estudo referente ao fragmento
da alegoria da música que Visconti está pintando.
Nesta fotografia, no entanto, o enquadramento
mais fechado favorece uma visão do pintor
mergulhado em sua obra. Sua figura elevada na
escada está na mesma altura, e quase da mesma
dimensão, das figuras femininas que representam
a música. É quase uma fusão entre artista e obra
de arte, operada pelo fotógrafo.

Esta série de fotografias de Visconti em seus ateliês


no período em que realizou as pinturas decorativas
para o Theatro Municipal são muito significativas
das estratégias dos artistas para se estabelecer
e ter a carreira reconhecida. Como afirmamos
anteriormente, a reprodução e a divulgação dessas
fotos eram mais uma maneira de um artista fazer
conhecer suas obras e seu nome.

Figura 9 - Visconti pin- Curioso é lembrar que a partir de 1914, enquanto Visconti pintava as decorações
tando a alegoria da músi- do foyer, Paris passava por um período extremamente turbulento devido à Primeira
ca para o foyer do Thea-
tro Municipal no ateliê da Guerra Mundial. Há um imenso contraste entre a imagem de tranquila estabilidade
rue Didot, n. 102, Paris. que transparece nas fotografias que analisamos, e os relatos escritos por Visconti em
Foto: autor desconhecido, um diário pessoal no qual documentou os efeitos da inquietação cotidiana sobre sua
1915. Fonte: http://www.
eliseuvisconti.com.br/ atividade. Vejamos algumas passagens escritas por ele:
7 de setembro de 1914
Neste dia, eu juntamente com o Costa fui obrigado pelas circunstâncias da guerra a
enrolar os tímpanos do foyer já pronto. Temendo um ataque no meu atelier pelos obuses
prussianos na manhã do dia 7 enrolei as minhas pinturas assim como as nove decorações
da frisa. Os dois rolos foram transportados para o meu apartamento e colocados sobre
duas cadeiras horizontalmente, Boulevard Edgard Quinet 33.16

Vemos que Visconti teve que tomar providências para proteger suas pinturas de
possíveis bombardeios. No dia seguinte, continua a relatar:
8 de setembro, 1914
De manhã estive no atelier às sete e meia. Carreguei numa carrocinha as minhas duas
telas com as decorações e os cartões. O Sr. Elleboude emprestou-me o filho para esta

16  De um caderno de notas de Eliseu Visconti, consultado pela autora em 1997 na casa de Tobias Visconti, filho do
pintor. Hoje este caderno se encontra no arquivo histórico do Museu Nacional de Belas Artes.

40
operação.17
A situação melhora em 1915. Visconti começa a preparar a tela para a pintura do teto
do foyer, com as alegorias da música.
No dia 14 de janeiro efetuou-se a operação da colocação da grande tela na parede. Na
parte superior foi colocado um sarrafo de dois centímetros de espessura, em cujo bordo
superior da tela foi pregado por cima, a fim desta pender no vazio por causa da umidade.
A tela foi enrolada sobre dois cilindros e começou-se a operação pelo centro. Primeiro a
esquerda, esta operação ficou terminada no mesmo dia a noite. Éramos 4 pessoas para
tal fim. […]
Comecei a pintar no dia 10 de fevereiro de 1915, pelo grupo do violoncelo. Pintura branco
de zinco e terra de siena queimado em camaïeu [com apenas duas cores realiza-se o
claro-escuro] cores Le Franc décoration à l’huile.18
A concentração no trabalho, cujo passo a passo é descrito por Visconti, é no entanto,
entremeada de momentos dramáticos, como no trecho a seguir:
No dia 23 de fevereiro 1915 comecei a pintar as três figuras do centro, levando três dias
cada uma para prepará-las a camaïeu, branco de zinco e terra de siena brulé, décoration.
No dia 1° de março continuei a figura do centro horizontal. No dia 21 de março de 1915
Zepelins em Paris, às 2 e 1/2 da manhã. [Bombardeios]. Ainda os Zepelins às nove e meia
da noite. Paris no escuro completamente.19
Alguns meses mais tarde, continua a descrever a pintura:

Figura 10 - Visconti ao
terminar as decorações
do foyer do Theatro Mu-
nicipal no ateliê da rue
Didot, n. 102, Paris. Foto:
Autor..des con he cido,
1915. Fonte: BARATA,
Frederico. Eliseu Vis-
conti e seu tempo. Rio de
Janeiro: Zélio Valverde,
1944, p. 116.

17 Idem.
18 Idem.
19 Idem.

41
1°- agosto-1915 comecei a figura deitada a direita. Uma atmosfera de rose, esta figura
foi primeiro preparada com ocre, depois vermelhão menor quantidade verde émeraude e
alguns toques de azul e cadmio aqui e ali para fazer vibrar.20
Essa passagem, na qual Visconti sublinha a atmosfera rosa da figura e os toques de
cor que a fazem vibrar, nos faz pensar nas decorações que ele preparava como um
refúgio de beleza em meio ao mundo em conflito. O ateliê que aparece nas fotografias
é também como um refúgio, um lugar em que se cultiva a arte que permanecerá, após
o fim das guerras.

Na fotografia que deixamos para o final, também de 1915, se vê o pintor após a


conclusão do trabalho [Figura 10]. Ele aparece diminuto em meio às grandes telas
em que deixou suas pinceladas, suas cores, sua arte. Assim Visconti queria ser visto,
como o criador de um mundo de deleite para os olhos e a alma. Seu ateliê era o lugar
onde essa criação era possível. Afinal, deixando-nos além das próprias pinturas que
podemos admirar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, as fotografias em que
o vemos no ateliê rodeado por suas imensas telas, Visconti nos deu pistas sobre as
escolhas que fez na construção de sua imagem e um vislumbre de sua ideia sobre o
significado do seu trabalho de artista pintor.

20 Idem.

42
Sociabilidade, boêmia e carnaval
em ateliês de artistas brasileiros em
fins do século XIX e início do XX

Arthur Valle 1

Na historiografia das artes visuais, é bem conhecido o papel que o ateliê desempenhou na
construção do mito do artista romântico, um dos mais conhecidos e duradouros da cultura
ocidental moderna. Na passagem do século XVIII para o XIX, é possível perceber um
novo foco sendo dado ao ateliê como um espaço de solidão e retiro onde o artista podia
dedicar-se inteiramente à sua arte, um espaço que se encontrava além do mundo ordinário
e não raramente era investido de um caráter quase sagrado. O fenômeno tem, certamente,
origens mais antigas. Já no século XVII, por exemplo, o ateliê tornou-se o tema de pinturas
que o revelavam aos olhos do público como um espaço privado de criação, projetando,
desse modo, um tipo particular de persona artística, para quem a produção da arte era um
processo solitário e interior.2

Sem sombra de dúvida, porém, essa ênfase na interiorização do processo de criação artística
tornar-se-ia realmente corriqueira por volta de 1800. Uma conhecida pintura que Georg
Friedrich Kersting fez de seu amigo Caspar David Friedrich em seu ateliê mostra esse
último contemplando uma tela cuja frente não podemos ver, pousada sobre um cavalete
[Figura 1]. A imagem parece se relacionar intimamente com a prática e a filosofia artísticas
de Friedrich, segundo o qual um artista:
1 Professor de História da Artes do Departamento de Artes, Instituto de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Fe-
deral Rural do Rio de Janeiro.
2 CHAPMAN, H. Perry. The imagined studios of Rembrandt and Vermeer. In: COLE, Michael; PARDO, Mary. (ed.).
Inventions of the Studio, Renaissance to Romanticism. Chaper Hill NC, London: University of North Carolina Press,
2005, p. 108 sg. Chapman fundamenta essa afirmação na análise de uma pintura de Rembrandt van Rijn intitulada The
Artist in his Studio (O Artista em seu ateliê, c. 1629), hoje no Museum of Fine Arts de Boston.

43
“não deve pintar apenas o que vê diante de si, mas também
o que vê dentro dele mesmo”. O próprio despojamento do
espaço é significativo, uma vez que, de acordo com outro
conhecido de Friedrich, este mantinha o seu ateliê livre
de qualquer desordem, pois sentia que “todos os objetos
estranhos perturbavam o seu mundo pictórico interior”.
O espaço fechado do ateliê torna-se, assim, uma metáfora
para a interioridade do artista.3

Obviamente, tanto quanto um reflexo de fatos reais,


a imagem do artista isolado em seu ateliê deve
ser entendida como uma fabricação, como uma
componente do referido mito do artista romântico.
Aqui, não vou me deter na crítica desse mito,
ainda hoje muito em voga, nem na ambivalência
algo hipócrita de pinturas como a de Kersting, que
aparentemente proclamam a serena autossuficiência
do artista, mas que ao mesmo tempo agem como
publicidade para ele.4 Faço questão, porém, de
relembrar que, durante todo o século XIX, o ateliê
do artista, além de simulacro de cela monástica,
também funcionou e foi representado como um local
de sociabilidade.5 Dão prova disso diversas pinturas
que tematizam o ateliê executadas especialmente a
Figura 1 - Georg F. Ke- partir de meados do Oitocentos, como Un atelier aux Batignolles (Um ateliê em Batignolles,
rsting (1785-1847), Cas- 1870) de Henri Fantin-Latour, ou L’Atelier du peintre (O ateliê do pintor, c. 1853) de Jean
par D. Friedrich em seu Gigoux [Figura 2], que, em um registro diametralmente oposto ao do quadro de Kersting,
ateliê, 1812. Óleo sobre
tela, 54 × 41 cm. Berlin, se apresentam “sobretudo [como] um pretexto para mostrar um grupo de amigos.”6
Nationalgalerie. Foto:
Arthur Valle. A minha intenção no presente artigo é justamente discutir algumas imagens do ateliê do
artista nas quais o que se enfatiza desse espaço de criação é o seu lado público, o seu cará-
ter social e, em alguns casos extremos, a sua total permeabilidade ao mundo externo. Para
tanto, tomarei como objeto principal de minhas considerações um conjunto de fotografias
presentes em um álbum intitulado “München Rio de Janeiro Paris 1896-1914,”7 que foi or-
ganizado pelo pintor brasileiro Helios Aristides Seelinger e que reúne imagens relativas
3 Cfr. BARKER, Emma. Inventing the Romantic artist. In: _____. (ed.). Art and Visual Culture 1600-1850: Academy
to Avant-Garde. Tate Publishing, Open University, 2012, p. 307. Essa e todas as outras traduções são de minha auto-
ria.
4 Como lembra Emma Barker, “Significativamente, uma versão anterior deste tema atraiu muita atenção quando foi
exibida na Academia de Dresden em 1811. Apesar de Friedrich cultivar a imagem de um artista afastado da sociedade
e totalmente dedicado ao seu trabalho, ele ficou, sem dúvida, satisfeito com a aclamação crítica e a segurança financeira
que havia conseguido até esta data”. (Idem) A versão de 1811 do ateliê de Friedrich pintada por Kersting é provavelmente
aquela que hoje se encontra na Hamburger Kunsthalle.
5 A esse respeito, cfr.: MARTIN-FUGIER, Anne. La vie d’artiste au XIXe Siècle. Paris: Édition Louis Audibert, 2007, em
especial a parte intitulada Sociabilité dans les ateliers, p. 107-115.
6 Idem, p. 103.
7 Atualmente, o álbum pertence à coleção particular da neta de Seelinger, Sra. Heloisa Maria Seelinger Pereira da Silva, a
quem agradeço por me ter permitido o acesso ao álbum, bem como pela autorização para reproduzir as fotografias que
acompanham o presente texto.

44
aos anos iniciais de sua for-
mação e atuação profissio-
nal, compreendidos entre
a década final do século
XIX e a eclosão da I Guerra
Mundial.

“München Rio de Janeiro


Paris” é um álbum
composto de 27 folhas
de cartão rígido, a quase
totalidade das quais está
coberta, na frente e no
verso, por imagens coladas.
No verso da primeira capa,
uma inscrição informa
que estamos diante de
um “álbum de fotografias,
desenhos, ilustrações” - o que anuncia, de modo razoável, o caráter bastante heterogêneo Figura 2 - Jean Gigoux
do material visual ali reunido. Sobretudo as primeiras páginas do álbum constituem bons (1806-1894), O ateliê do
pintor, 1850-1875. Óleo
exemplos dessa heterogeneidade, bem como do modo de justaposição das imagens nas
sobre tela, 110 x 159,5
páginas que, por vezes, recorda uma colagem modernista. Algumas das fotografias são cm. Besançon, Musée
acompanhadas por inscrições, feitas aparentemente pelo próprio Seelinger, que auxiliam des Beaux-Arts et d‘Ar-
chéologie.
na sua identificação e datação. Todavia, os fragmentos de imagens impressas oriundas
de revistas ilustradas que podem ser encontrados do começo ao fim do álbum e que são
datadas provavelmente dos anos 1940 ou 1950, deixam claro que não estamos diante de um
diário visual, mas, sim, de uma construção tardia, feita bem depois das datas assinaladas
na capa.

Em meio à diversificada imagética de “München Rio de Janeiro Paris,” interessa-me aqui


o conjunto de fotos de ateliês mantidos por Seelinger e por outros artistas brasileiros em
cidades da Europa e do Brasil, como Munique, Paris e Rio de Janeiro. Não me deterei,
todavia, nas tradicionais fotos de artistas simulando o seu processo de trabalho, pintando
ou esculpindo suas obras - que, não obstante, são abundantes no álbum de Seelinger. Como
adiantado no título, minha seleção de imagens foi guiada por três conceitos principais -
sociabilidade, boêmia e carnaval -, que procurarei relacionar com algumas fotos nas quais
se encontram encenados diversos ritos sociais como conversações, noivados e preparações
para bailes carnavalescos.

Gostaria de começar apresentando duas fotografias já discutidas em outro trabalho.8


A primeira delas exibe o interior de um ateliê que Seelinger manteve no Boulevard du
Montparnasse 132, em Paris, por volta de 1913. Nessa foto podemos ver, em primeiro
plano, o próprio pintor em pé, de costas e, à sua direita, confortavelmente sentado em uma

8 VALLE, Arthur; DAZZI, Camila. Studio studies e fotografias de atelier de pintores brasileiros. AURA. Revista de His-
toria y Teoría del Arte, v. 3, p. 38-49, 2015; Disponível em: http://www.ojs.arte.unicen.edu.ar/index.php/aura/article/
view/252 Acessado em 1 set. 2015.

45
poltrona e fumando cachimbo, o seu amigo escritor
Luiz Edmundo; mais ao fundo, diante de uma parede
coberta por obras emolduradas, esboços, moldagens
e espelhos, vemos uma mulher, possivelmente uma
modelo [Figura 3]. O pintor nos é mostrado aqui
completamente desvinculado do ato de criação
artística. De modo quase demonstrativo, suas mãos
estão em seus bolsos, indicando que, no momento,
ele não tem nenhuma necessidade delas. Nessa foto,
recebem pouca ênfase os indícios mais ou menos
explícitos do ofício do artista, como os pinceis em
um pote ao centro da imagem ou a máscara em
gesso da dita Inconnue de la Seine, frequente nos
ateliês parisienses da passagem do século XIX para
o XX.9 A ênfase recai, antes, sobre a conversação
aparentemente descontraída entre os dois homens e
a mulher. Se quiséssemos descrever essa e algumas
outras fotografias semelhantes presentes no álbum
de Seelinger, poderíamos tomar emprestadas as
palavras que o cronista e colecionador de arte
francês Paul Eudel usou, em meados dos anos 1880,
para caracterizar a atividade social no luxuoso ateliê
do pintor Carolus-Durand: “Aqui conversa-se e
goza-se a vida da maneira mais agradável possível,
Figura 3 - Helios See-
abreviando as horas em meio a inteligentes discussões, das quais todas as banalidades
linger, Luiz Edmundo e
uma mulher não-identi- estão proscritas.”10
ficada no ateliê do pintor
no Boulevard du Mon- A imagem do ateliê como espaço dedicado à sociabilidade é ainda mais evidente em uma
tparnasse 132, Paris, c. fotografia do ateliê parisiense do pintor Augusto Bracet, datada provavelmente de 1913
1913. In: “München Rio
[Figura 4]. Uma inscrição ao lado dessa foto nos informa que estamos diante do “NOIVADO
de Janeiro Paris 1896-
1914”, fo 22 vo. Rio de DO BRACET” e, de fato, o que vemos é um espaço de celebração, que teve um de seus cantos
Janeiro, Coleção Parti- cuidadosamente arranjado para abrigar a mesa com a ceia, cercada de convidados. Uma
cular.
cortina instalada de modo algo teatral dá a esse canto o aspecto de um palco improvisado,
dramaticamente iluminado pelos candelabros com velas sobre a mesa. Se uma inscrição
acima dessa foto e outras imagens do álbum de Seelinger não confirmassem que o aposento
que nos é apresentado é de fato o ateliê de Bracet, poderíamos pensar, talvez, que o que
vemos é interior de um restaurante frequentado por artistas, que - como usualmente
ocorria e ainda ocorre - foi decorado com as obras de seus fregueses. Entre os diversos
pormenores da imagem, é de se destacar a nota burlesca acrescentada por Seelinger, que
se apresenta no lado direito inferior da foto portando um grande guardanapo enrolado

9 Cfr.: TILLIER, Bertrand. La belle noyée. Enquête sur le masque de l’Inconnue de la Seine. Paris: Les Éditions Arkhê,
2011.
10 EUDEL, Paul. Les ateliers de peintres. Carolus Duran. L’Illustration, Paris, 3 jul. 1886, p. 3. citado em ESNER, Rachel.
In the Artist’s Studio with L’Illustration. RIHA Journal 0069 (18 mar. 2013), Disponível em: http://www.riha-journal.
org/articles/2013/2013-jan-mar/esner-lillustration Acessado em 1 set. 2015.

46
na cabeça, enquanto outro
convidado, de olhar sonhador,
inclina-se docemente sobre o seu
ombro.

A imagem de Seelinger
vinculada nessa última imagem
se conforma perfeitamente com
aquela de artista boêmio, que ele
deliberadamente fez questão de
difundir a seu respeito e que se
encontra explicitamente afirmada
nos textos de seus amigos e
contemporâneos, como o aqui já
referido Luiz Edmundo,11 bem
como em entrevistas e escritos
autobiográficos do próprio
Seelinger.12 Como é bem sabido,
um dos resultados da almejada
Figura 4 - O noivado do
independência do artista propugnada pelas ideologias do Romantismo foi justamente pintor brasileiro Augus-
o surgimento do boêmio, talvez o mais característico tipo de artista ocidental do século to Bracet em seu ateliê
XIX. A boêmia emergiu como um meio social distinto, formado por tipos marginalizados em Paris, c. 1913. In:
“München Rio de Ja-
e empobrecidos, na Paris dos anos 1830 e 1840 e, embora permanecesse desde então neiro Paris 1896-1914”,
estreitamente associada à essa cidade, foi rapidamente “exportada” para todo o mundo: fo 22 vo. Rio de Janeiro,
para “a Bruxelas de [Jan] Toorop, a Cristiana (hoje Oslo) de [Edward] Munch, a Barcelona Coleção Particular.
de Picasso, a Berlim de [Max] Beckmann e para Greenwich Village, na Nova Iorque dos
anos 1940 - qualquer lugar, em suma, onde comunidades eram estabelecidas para criar arte
em desafio às convenções e à política burguesas”.13

Originalmente, “boêmia” se referia à vida errante dos ciganos, que eram tidos como oriundos
do reino da Boêmia, hoje parte da República Checa. No século XIX, porém, “o nome foi
assumido [...] por muitos artistas e intelectuais que se viam metaforicamente ‘sem-teto’ na
cultura da sociedade capitalista.”14 Aventureiros, excêntricos, pobres, em constante desafio
à sociedade convencional e seus valores, os boêmios eram já explicitamente referidos
em um texto de 1834 do dramaturgo francês Félix Pyat, no qual este fala sobre “a mania

11 Cfr.: EDMUNDO, Luiz. O Rio de Janeiro do meu tempo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1938; EDMUNDO,
Luiz. De um livro de memórias. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 5 v., 1958.
12 Cfr., por exemplo: COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas - O que dizem nossos pintores, escultores, arqui-
tetos e gravadores, sobre as artes plásticas no Brasil. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927, p. 157-165. Um fa-
c-símile dessa entrevista pode ser consultado em: http://www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/artigos_ac_arquivos/
hs_entrevista.pdf Acessado em 1 mai. 2015; SEELINGER, Helios. Biografia, s/d. Essa “biografia” é um longo manuscrito
no qual Seelinger narra a sua vida através de uma série de anedotas. Junto com outros escritos, esse manuscrito teria sido
pensado para uma edição em livro, que nunca chegou a se concretizar. Atualmente, o documento pertencente à coleção
particular Sra. Heloisa Maria Seelinger Pereira da Silva.
13 STURGIS, Alexander et al. (ed.). Rebels and Martyrs. The Image of the Artist in the Nineteenth-Century. London,
2006, p. 89 (catálogo de exposição).
14 BLAKE, Nigel; FRASCINA, Francis. As Práticas Modernas da Arte e da Modernidade. In: FRASCINA, Francis [et
alli]. Modernidade e Modernismo. A pintura francesa no século XIX. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998, p.
50.

47
ordinária dos jovens artistas que desejam viver fora de seu tempo, com outras ideais e
outros costumes, [e que] os isola do mundo, os torna estranhos e bizarros, os coloca fora
da lei, os expulsa da sociedade; eles são os boêmios de hoje.”15

Mas o que mais projetou mundialmente a ideia de boêmia foi provavelmente o enorme
sucesso das Scénes de la vie Bohème (Cenas da Vida Boêmia) do escritor francês Henri
Murger, uma série de contos ambientados no Quartier Latin de Paris versando sobre o
idealismo, as dificuldades e os amores de um grupo de artistas. As scénes começaram a ser
publicadas em 1845, sendo reunidas em livro somente em 1851.16 Para se ter uma ideia
de quão duradouro foi o impacto das pitorescas descrições da vida boêmia de Murger
no Brasil, vale lembrar, por exemplo, que várias décadas depois o importante escultor
Rodolpho Bernardelli ainda sentiria uma necessidade ética de se posicionar contra o
livro. Em uma entrevista dada em 1926 em seu ateliê no Leme, Rio de Janeiro, Bernardelli
afirmou: “Jamais fiz boêmia, como aliás todos os artistas, antes do aparecimento de um
livro que reputo - assassino - Vida de Boêmia [sic] de Murger. Este livro, só, fez mais
vítimas que uma epidemia. Antes deles os artistas não se inutilizavam.”17

Figura 5 - Preparando o
Cullach” [sic], Munique,
1896-1899. In: “Mün-
chen Rio de Janeiro Paris
1896-1914”, fo 4 vo. Rio
de Janeiro, Coleção Par-
ticular.

15 PYAT, Félix. Les Artistes. In: _____. Nouveau tableau de Paris au XIXme Sièle. Tome Quatrième. Paris: Libraire de
Mme. Charles-Béchet, 1834, p. 8-9.
16 A maior parte das scénes foi publicada de modo independente por Murger na revista literária Le Corsaire. Elas logo se
tornaram o pretexto para numerosas adaptações de teatro, ópera e cinema, a mais conhecida das quais é provavelmente
a ópera La Bohème (1896), de Giacomo Puccini.
17 COSTA, op. cit., p. 29. Um fac-símile dessa entrevista pode ser consultado em: http://www.dezenovevinte.net/artigos_
imprensa/artigos_ac_arquivos/bernandelli_entrevista.pdf Acessado em 1 mai. 2015. Essa e todas as outras transcrições
de textos de época em português tiveram a sua grafia atualizada.

48
Figura 6a – Marie-Ale-
xandre Alophe (1821-
1883), La Gloire et le Pot
au Feu, 1858. Fotografia,
20,9 x 16,6 cm. Paris, Bi-
bliotheque Nationale

Figura 6b – “Bishop was


our cook”, Ilustração de
Edward Cucuel para:
Bohemian Paris of to-
-day. Philadelphia &
London: J. B. Lippincott
Company, 1900, p. 19.

Embora tenha se iniciado nas artes junto à Bernardelli, Seelinger em nada parecia subscrever
as palavras de seu antigo mentor. Muito pelo contrário, ele foi uma das encarnações
mais perfeitas da ideia oitocentista de boêmio traduzida para um contexto artístico
brasileiro. Não surpreende, portanto, que a iconografia da boêmia, fixada desde meados
do século XIX, apareça de forma explícita e abundante nas fotos do álbum de Seelinger,
especialmente naquelas referentes aos anos iniciais de sua carreira, quando ele ainda não
havia atingido a relativa estabilidade financeira que viria a conhecer sobretudo a partir
dos anos 1910. Nas fotos de Munique datadas entre 1896 e c. 1899, por exemplo, podemos
encontrar a frugalidade do ateliê, desprovido de luxo; o desarranjo de obras de arte e de
livros; cachimbos e copos, evocando fumo e bebida; a associação entre arte e música etc.
Não falta sequer uma cena centrada em torno do fogão e da refeição modesta [Figura 5],
que haviam se tornado atributos dos boêmios e de seus ateliês desde os contos de Murger.
18
Uma das fotos de “München Rio de Janeiro Paris” nos mostra dois homens preparando
de modo improvisado um kolache, uma sobremesa comum na Europa central. As obras no
fundo da foto nos permitem identificar inequivocamente o interior como sendo o de um
ateliê que Seelinger manteve em Munique. O homem à esquerda é o húngaro Ernő Barta,
que tornar-se-ia reconhecido como artista gráfico e que foi amigo próximo do brasileiro
em seus anos na Alemanha.

De maneira premeditada ou não, essa foto se insere em uma longa tradição iconográfica
que, na França do século XIX, vai de Octave Tassaert até Paul Cézanne.19 Por seu tom
jocoso, ela se aproxima muito de imagens como La Gloire et le Pot au Feu [Figura 6a],

18 “Algumas das histórias de Murger se passam ao redor de fogões ou lareiras, nos quais a mobília é alegremente arre-
messada em momentos de farra ou, em situações mais desesperadoras, Rodolphe, o alter-ego de Murger, vestido com
uma fantasia de urso polar, queima os manuscritos de uma peça sua para se aquecer. Com efeito, com evidente ironia,
Murger faz com que o tio burguês de Rodolphe seja um construtor de fogões e, em outra cena, mostra Rodolphe con-
gelando em um apartamento repleto de fogões mas sem combustível, forçado a escrever um manual sobre ‘O perfeito
construtor de chaminés’.” STURGIS, op. cit., p. 92.
19 Ibidem, p. 92-95 e p. 102-104.

49
uma fotografia de Marie-Alexandre Alophe de finais dos anos 1850,20 ou de uma das
ilustração do livro Bohemian Paris of to-day (1900) [Figura 6b], baseado em notas do
pintor estadunidense Edward Cucuel,21 o que evidencia quanto esse tipo de encenação
havia se tornado uma tópica convencional da boêmia.

No começo dos anos 1900, Seelinger estava de volta ao Rio de Janeiro, sem todavia ter
deixado do outro lado do Atlântico os seus hábitos boêmios. Em 1903, foi com um quadro
intitulado justamente Boêmia, que Seelinger ganhou o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro
na Exposição Geral de Belas Artes do Rio de Janeiro.22 Uma pintura de grandes dimensões
que não deixa de se relacionar com as acima referidas representações de ateliês de Gigoux
e Fantin-Latour , Boêmia evoca, de modo algo fantasmagórico, uma tertúlia presidida pela
figura alegórica de La Bohème, em torno da qual, em um obscuro aposento, se encontram
agrupados os vultos de destacados artistas e intelectuais atuantes no Rio de Janeiro do
início do século XX.23 Além de ser uma espécie de manifesto que então afirmava uma nova
geração de artistas, Boêmia vale aqui ser referida pois foi com o Prêmio de Viagem a ela
concedido que Seelinger pode pela primeira vez se instalar em Paris. Para a “Cidade-Luz”
ele voltaria várias vezes até a o começo da I Guerra Mundial, como registra em entrevista
dada a Angyone Costa em 1926: “fui, por muito tempo, um itinerante em meu país,
produzindo na França, vendendo no Rio, para gastar em Paris.”24

As estadias em Paris aproximaram Seelinger ainda mais da boêmia. Comprovam isso, por
exemplo, os endereços de ao menos três de seus ateliês - Rue Vercingétorix, Rue Falguiére 9
e o já referido Boulevard du Montparnasse 132 -, localizados na órbita do conhecido bairro
boêmio de Montparnasse, que desde finais do século XIX era um dos principais centros da
vida intelectual e artística parisiense.25 Seelinger assim descreveu os ambientes boêmios
que teve oportunidade de freqeuntar na “Cidade-Luz”:
A França é aquilo que sabemos, ruído, boêmia, tipos estudadamente clássicos de artista,
o cabelo e o chapéu usados de determinada maneira, o corte da barba, o nó da gravata, a
peculiaridade de andar, tudo feito para que o burguês se impressione e o artista acentue a sua
individualidade, espantando-o com a sua projeção. A vida que os artistas franceses vivem em
Montmartre é muito conhecida para que haja necessidade de pintá-la. Tudo obedece a uma
intenção, a um fim marcado.26

20 Ibidem, p. 93, fig. 27.


21 MORROW, W. C.. Bohemian Paris of to-day. Philadelphia & London: J. B. Lippincott Company, 1900, p.
19.
22 A obra é reproduzida e analisada de maneira pormenorizada em: CARDOSO, Rafael. A arte brasileira em 25 qua-
dros (1790-1930). Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 132-140.
23 São eles: João Luso, João do Rio, Gelabert Simas, Plácida dos Santos, Lucilio de Albuquerque, Gonzaga Duque,-
Trajano Chacon, João Timótheo da Costa, Rodolpho Chambelland, Lima Campos, Araújo Vianna, Calixto Cordeiro,
Raul Pederneiras, Luiz Edmundo, Cunha e Mello, Heitor Malagutti e Fiuza Guimarães, além do próprio Seelinger. A
identificação de todos esses retratados é possível graças a um desenho de Seelinger hoje conservado no Museu Nacional
de Belas Artes do Rio de Janeiro; cfr.: VALLE, Arthur. Helios Seelinger, um pintor “salteado”. 19&20, Rio de Janeiro, v.
I, n. 1, mai. 2006, nota 22. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/artistas/artistas_hs.htm Acessado em 1 mai.
2015.
24 COSTA, op. cit., p. 160.
25 A respeito da mítica centralidade de Montparnasse na vida artística francesa do início do século XX, cfr: FRANCK,
Dan. Bohèmes, Les Aventures de l’Art Moderne 1900-1930. Paris: Calmann-Leévy, 2000; RENAULT, Olivier. Montpar-
nasse. Les Lieux de Legende. Parigramme: Paris, 2013.
26 COSTA, op. cit., p. 160.

50
Fica evidente nessa passagem o quanto a boêmia que Seelinger conheceu no começo do
século XX havia se convertido em algo convencional, até mesmo socialmente aceitável.
Entre tantos indicadores desse convencionalismo, é digno de nota o esvaziamento político
de persona boêmia do artista brasileiro. Com efeito, procuraríamos em vão nas fotos de
“München Rio de Janeiro Paris” por um indício do fervor revolucionário ou do radicalismo
de confrontação que cerca de meio século antes caracterizou a boêmia de, por exemplo,
Gustave Courbet.27 Todavia, algumas passagens dos textos autobiográficos de Seelinger
deixam entrever que um ideário político potencialmente revolucionário não estava
completamente extinto nos ambientes boêmios que o brasileiro frequentou na Europa.
É o caso, por exemplo, do famoso café A la Rotonde, que ficava a poucos passos de seu
ateliê no Boulevard du Montparnasse. A la Rotonde era então um espaço de sociabilidade
que, nas palavras do próprio Seelinger, era “frequenta[do por] uma clientela internacional.
Artistas, escritores, modelos - modernismo de todas as cores e feitios.”28 Foi lá, por volta de
1913, que Seelinger teria conhecido e até jogado damas com ninguém menos do Alexander
Kérensky, um político e advogado que desempenhou importante papel na queda do regime
czarista na Rússia em 1917.29

A persona boêmia de Seelinger e de alguns outros artistas brasileiros do início do século


passado adquire seus contornos mais histriônicos na última série de fotografias de que
eu gostaria de aqui comentar, vinculadas a festejos de Carnaval ou a bailes à fantasia. As
primeiras imagens do gênero datam dos anos de Seelinger em Munique e se relacionam
a uma certa Lumpen Fest (literalmente, Festa dos Farrapos), promovida por volta de 1896
na Ažbe-Schule (Escola Ažbe), um estabelecimento de ensino artístico capitaneado pelo
pintor esloveno Anton Ažbe e ainda hoje muito lembrado por ter atraído nos anos 1890
artistas como o russo Wassily Kandisnky.30 Como era usual em outras academias privadas
na Europa de fins do Oitocentos, tal como a conhecida Académie Julian em Paris, os
estudos na Ažbe-Schule se centravam no modelo vivo. Ali, qualquer interessado (homem
ou mulher) podia, mediante o pagamento de uma quantia em dinheiro, praticar desenho
e pintura sob os conselhos do diretor do ateliê. Uma das fotos de “München Rio de Janeiro
Paris” mostra exatamente uma aula na Ažbe-Schule na qual podemos ver o próprio Ažbe
dando instruções a outro brasileiro que frequentou Munique nos anos 1890 - Antonio de
Souza Vianna -, diante de uma modelo feminina que posa nua para uma classe mista de
alunos.31

27 Em meados do século XIX, os boêmios “embora não fizessem parte das chamadas ‘classes dangereuses’, as ‘classes
perigosas’, vistas como sementeiras da revolução, crime e desordem, eram frequentemente cúmplices destas”. BLAKE,
FRASCINA, loc. cit..
28 SEELINGER, op. cit., fo 32 ro.
29 Seelinger assim descreve o encontro: “O Café de la Rotonde [...] Ao meu lado um homem de barbicha conversava com
outros em várias línguas. Chega o [Luiz] Edmundo senta-se em frente a nós. Diz o barbicha ao Edmundo: Monsieur -
vou joué des dames ?! Oui - e jogaram e eu tomava parte. Despedimos e ele deu o seu nome: Kerensky. Saímos sem ligar,
entre sorrisos das mulheres e os tchaus! dos companheiros. Veio a revolução russa - Kerensky da barbicha era senhor
absoluto do grande movimento revolucionário” (Idem, ibidem).
30 A respeito de Ažbe e de sua escola, cfr.: WEISS, Peggy. Kandisnky in Munich. The Formative Jugendstil Years.
Princeton, New Jersey: Princeton University Press, 1979, p. 13-18; PAVLINEC, Donovan. Slowenische Maler und Mün-
chen. Zeitenblicke, 5, Nr. 2, 2006. Disponível em: http://www.zeitenblicke.de/2006/2/Pavlinec Acessado em 1 set.
2015.
31 Essa fotografia se encontra reproduzida em: VALLE, Arthur . Bolsistas da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de
Janeiro em Munique, na década de 1890. ARTCIENCIA.COM, v. VII, 2012, p. 4. Disponível em: http://www.artciencia.
com/index.php/artciencia/article/download/54/180 Acessado em 1 set. 2015.

51
Mais uma vez, é o
próprio espaço fre-
quentado por Seelin-
ger que evidencia a
sua imersão na cul-
tura boêmia europeia
de fins do século XIX.
Se ainda não sabemos
o endereço do(s) ate-
liê(s) do brasileiro em
Munique, o certo é
que a Ažbe-Schule se
localizava no bairro
de Schwabing, o ver-
dadeiro coração da
vida boêmia da “Ate-
nas do Isar.” Ažbe, por
Figura 7 - “Lumpen- sua vez, era renomado como “o mais boêmio dos artistas,” possuidor de uma persona
32
-Fest” no ateliê da Ažbe-
-Schule, Munique, c.
pública e de hábitos muito associados a todo tipo de excentricidades e excessos.
1896. In: “München Rio
de Janeiro Paris 1896- As fotos da referida Lumpen Fest presentes em “München Rio de Janeiro Paris” reafirmam
1914”, fo 2 ro. Rio de tais estereótipos: elas mostram um baile frequentado por uma multidão de homens e
Janeiro, Coleção Parti- mulheres, confirmando o quão popular era a Ažbe-Schule nos anos 1890. Apinhados no
cular
espaço fechado do ateliê, a maioria dos fantasiados usa andrajos, ao modo de mendigos.
Seelinger parece ser o jovem com um cachimbo extravagante que pode ser visto à esquerda
de uma dessas fotos, em uma pose jocosa [Figura 7]. Vale notar que esse uso de fantasias
marcado por um caráter enfaticamente auto-derrisório não era propriamente uma regra na
Munique de fins do século XIX, parecendo, antes, estar vinculado aos círculos boêmios de
Schwabing. Isso fica mais evidente quando comparamos a atitude dos alunos de Ažbe com
a de outros estrangeiros instalados na cidade, É o caso, por exemplo, dos estadunidenses
como William Merritt Chase, os quais, mesmo quando se deixavam fotografar fantasiados,
buscavam emular o exemplo dos admirados “artistas aristocratas” de Munique, como
Franz von Stuck ou Franz Lenbach, através de uma reconstituição refinada de figurinos de
época e da encenação de poses que dialogavam explicitamente como modelos artísticos
respeitados, como os retratos pintados pelos mestres flamengos e holandeses do século
XVII.33

Seelinger manteria essa sua atitude debochada em Paris. Prova disso é uma série de
fotografias dispersas em “München Rio de Janeiro Paris” e vinculadas a um conhecido
evento artístico de caráter carnavalesco: o Bal des Quat’z’Arts (Baile das Quatro Artes).
Realizado pela primeira vez em 1892 no bairro de Montmartre, o baile era uma grande

32 WEISS, op. cit., p. 13.


33 A esse respeito, cfr.: FROHNE, Ursula. “A kind of Teutonic Florence.” Cultural and Professional Aspirations of
American Artists in Munich. In: In: FUHRMEISTER, C.; KOHLE, H.; THIELEMANS, V. (eds.) American Artists in
Munich. Artistic Migration and Cultural Exchange Processes. Berlim/München: Deutscher Kunstverlag, 2009, p.78-
79.

52
festa à fantasia organizada a cada primavera pelos alunos de pintura, escultura, arquitetura
e gravura da École des Beaux-Arts parisiense. Os participantes deviam comparecer
obrigatoriamente fantasiados, ainda que suas fantasias normalmente se perdessem no
transcorrer do baile, que com frequência adquiria um tom orgiástico. Os registros escritos
ou visuais do Bal des Quat’z’Arts não são raros. A título de exemplo, em Bohemian Paris
of to-day, Cucuel dedica todo um capítulo à detalhada descrição, ricamente ilustrada, de
como era a festividade na passagem para o século XX34 e, no Salon da Société Nationale
des Beaux-Arts de 1903, o pintor Louis Abel-Truchet exibiu uma tela dedicada a edição
de 1902 do baile,35 que tinha como título “Bal Antique, Rome et Grèce exceptés” (Baile
Antigo, excetuando Roma e Grécia).36

Desde a sua primeira estadia em Paris, sob os auspícios do Prêmio de Viagem de 1903,
Seelinger já estava familiarizado com o Bal des Quat’z’Arts, como comprova um convite
nominal ao brasileiro para a edição de 1904, que foi realizada no dia 26 de abril, tendo como
tema uma “Foire à Byzance” (Festa em Bizâncio).37 Para minha argumentação, são as fotos
referentes à edição de 1913 do Bal des Quat’z’Arts, como a da Figura 8, que mais interessam.
Embora o título do baile desse ano fosse “Les Barbares envahissent la Gaule” (Os bárbaros
invadem a Gália),38 os fantasiados que posam no interior do ateliê de Seelinger, em frente
a uma cortina e ao lado do onipresente fogão, parecem pouco preocupados em respeitar o
tema da festa ou a verdade histórica. Em meio aos pouco convincentes guerreiros “Vikings,”
vemos o que seriam membros da elite faraônica egípcia e um cavalheiro do século XVII,
todos justapostos sem se importar com o caráter inverossímil da reunião.

Figura 8 - Preparações
para o Bal des Qua’z’Arts,
Paris, 1913. In: “Mün-
chen Rio de Janeiro Pa-
ris 1896-1914”, fo não
numerado. Rio de Janei-
ro, Coleção Particular.

34 MORROW, op. cit., p. 79-108.


35 Essa obra se encontra reproduzida em: L’Illustration, Paris, n. 3140, 2 mai. 1903, p. 304.
36 Material iconográfico relativo ao Bal des Quat’z’Arts de 1902 pode ser consultado em: http://4zarts.org/bals/1892-1914/
1902-bal-antique-15 Acessado em 1 mai. 2015.
37 Uma das fotos de “München Rio de Janeiro Paris” relativas ao baile de 1904 mostra Seelinger caracterizado com um
turbante na cabeça e blackface, a infame forma de maquiagem usada por brancos para representar pessoas negras, que
era muito popular no Ocidente desde o século XIX. Material iconográfico relativo ao Bal des Quat’z’Arts de 1904 pode
ser consultado em: http://4zarts.org/bals/1892-1914/1904-byzance-17 Acessado em 1 mai. 2015
38 Material iconográfico relativo ao Bal des Quat’z’Arts de 1913 pode ser consultado em: http://4zarts.org/bals/1892-1914/
1913-les-barbares-26 Acessado em 1 mai. 2015

53
Inscrições na foto nos ajudam a identificar alguns dos fantasiados como importantes
nomes da intelectualidade brasileira do começo do século XX. Além de Seelinger, ali estão
os artistas Genesco Murta e Augusto Bracet; o escritor Medeiros e Albuquerque; e até, ao
que parece, o sisudo filósofo e matemático positivista Teixeira Mendes. Fotos como essas
evocam um mundo de festas que tinha claramente o poder de invadir o ateliê e conectar
os espaços interno e externo, como fica patente quando vemos outras fotos relativas ao
baile de 1913 nas quais Seelinger e seus companheiros posam fantasiados não mais entre
as paredes de seu ateliê, mas nas próprias ruas de Paris, quando da realização do Bal des
Quat’z’Arts.

O caso desses bailes a fantasia organizados por e para artistas constitui um excelente objeto
para investigar os modos como artistas brasileiros como Seelinger podiam atuar como
autênticos tradutores culturais, adaptando e modificando tendências que eles vivenciaram
primeiramente em países europeus para a realidade dos campos artísticos brasileiros. Pouco
tempo depois de se instalar definitivamente no Brasil, após a eclosão I Guerra Mundial,
Seelinger começou a produzir no Rio de Janeiro o seu próprio baile à fantasia. Tratava-se
do Baile dos Artistas, cuja primeira edição se deu na segunda-feira do Carnaval de 1918, no
teatro Phenix, no Rio de Janeiro. Embora notícias de época publicadas em periódicos como
a Revista da Semana se referissem a esse baile como um autêntico “‘quat’zarts’ carioca,” vale
notar que ele não reunia apenas artistas visuais, mas sim “os mais festejados [...] pintores,
Figura 9 - Preparações escultores, literatos e músicos.”39 O leque de artes no baile carioca era, portanto, diverso
para o Baile dos Artistas, daquele do baile parisiense - fato que, por si só, parece apontar para uma significativa
Rio de Janeiro, data des- diferença entre os campos artísticos do Rio e de Paris.
conhecida. Foto repro-
duzida em: KAZ, Pauli- Em uma reportagem tardia sobre Seelinger, publicada na revista A Cigarra de março de
na. Os últimos Boêmios.
A Cigarra, Rio de Janei- 1969,40 se encontram reproduzidas diversas fotos relativas a edições do Baile dos Artistas
ro, mar. 1969, n. p. do Rio, algumas das quais não constam em “München Rio de Janeiro Paris.” Em uma delas,
possivelmente datada dos anos
1920 [Figura 9], tudo indica que
estamos de volta ao interior de um
dos ateliês do artista, a julgar pelas
pequenas pinturas (possivelmente
esboços) que vemos na parede, na
esquerda ao fundo. Em primeiro
plano, Seelinger, fantasiado como
gladiador romano, protagoniza
uma divertida mise em scène,
ao lado de seus amigos Luiz
Edmundo e Luiz Peixoto, entre
outros homens. Mas essa foto me
interessa também por outra razão.
Nela, como em outras ligadas ao
Carnaval - seja na Europa, seja no

39 O Baile dos Artistas no “Phenix.” Revista da Semana, Rio de Janeiro, 23 fev. 1918, n. p.
40 KAZ, Paulina. Os últimos Boêmios. A Cigarra, Rio de Janeiro, mar. 1969, n. p.

54
Figura 10a - Salambô e a
cobra, obra de Helios Se-
elinger reproduzida em:
DUQUE, Gonzaga. He-
lios Seelinger. Kósmos,
Rio de Janeiro, ano 5, n.
3, março de 1908, p. 33.

Figura 10b – Helios


Seelinger e amigos fan-
tasiados, Paris, c. 1913.
In: “München Rio de Ja-
neiro Paris 1896-1914”,
fo 22 vo. Rio de Janeiro,
Coleção Particular.

Brasil -, os fantasiados parodiam deliberadamente, com seus gestos e expressões faciais


exagerados, a retórica convencional das fotografias de atores. Cumpre constatar, portanto,
que tais encenações, apesar de debochadas, não deixam de manter relação e mesmo ser
comparáveis às obras de arte que alguns desses mesmos fantasiados produziam em telas
ou em esculturas, nas rotinas diárias de trabalho em seus ateliês.

Nesse sentido, vale a pena dispor lado a lado a reprodução de uma obra de Seelinger
intitulada Salambô e a cobra, publicada na revista Kósmos em março de 1908 [Figura
10a],41 e uma foto do ateliê do pintor, datada de c. 1913, na qual vemos Seelinger junto
a uma mulher e um homem não-identificados, todos fantasiados all’antica [Figura 10b].
As analogias visuais, especialmente no que diz respeito às personagens femininas e seus
gestos, sugerem que um repertório comum de formas e atitudes podia ser mobilizado tanto
na composição de uma pintura quanto em uma encenação mais ou menos espontânea
cujo destino era o registro fotográfico. Certamente, essa é uma hipótese que necessita ser
melhor estudada, mas creio que ela é interessante por sugerir a existência de uma espécie
de fluxo entre arte e vida usualmente só associado, no Brasil, a atitudes artísticas bem mais
recentes.42

Vale frisar, à guisa de conclusão, que o locus privilegiado desse fluxo arte-vida era
justamente o espaço do ateliê, com sua topografia liminal que participava simultaneamente
do mundo dito real e do mundo da criação artística. As fotografias de ateliês que aqui
procurei apresentar são igualmente ambivalentes, simultaneamente registros documentais
e representações simbólicas. Estou convicto de que elas adquirem um encanto ainda maior
quando nos conscientizamos o quanto, além do cotidiano prosaico dos artistas brasileiros
de fins do século XIX e início do XX, essas mesmas fotografias nos permitem vislumbrar
de que maneira vida e arte intimamente se imbricavam nos espaços de seus ateliês.

41 DUQUE, Gonzaga. Helios Seelinger. Kósmos, Rio de Janeiro, ano 5, n. 3, março de 1908, p. 33.
42 Nesse sentido, vale citar aqui uma sugestiva observação de Rafael Cardoso: “Numa era que nem sonhava com Hélio
Oiticica e décadas antes de Flávio de Carvalho, as ações e atitudes dele [Seelinger] poderiam ser descritas, com certa
justiça, como performáticas”. CARDOSO, op. cit., p. 137.

55
56
Geografia dos ateliês de artistas
brasileiros em Roma (1880-1900)

Camila Dazzi 1

Inicialmente, o presente artigo lança uma questão: é possível mencionar uma geogra-
fia dos ateliês dos artistas brasileiros em Roma na segunda metade do século XIX, a
qual possibilita a identificação do bairro específico que se tornou centro de atividade
cultural e de produção, bem como apontar as instituições e os locais de convivência
que serviram de ponto de reuniões regulares para os artistas brasileiros?

Para responder tal interrogação, com base no mapeamento realizado no decorrer da


pesquisa, é analisada a área de localização dos ateliês dos artistas brasileiros que re-
sidiram em Roma entre os anos de 1880 e 1890, tendo em consideração uma signifi-
cativa lógica espacial que tomou forma na cidade italiana ao longo das décadas finais
do século XIX. Essa lógica marcou o surgimento e a permanência dos polos de con-
centração de artistas em Roma, a qual deve ser entendida no contexto das dinâmicas
que moldaram o tecido urbano da “città eterna.”

Os artistas que então se dirigiam a Roma, desejosos da sua inserção na linha de uma
tradição bem estabelecida, tinham como expectativa permanecer na área em torno da
Piazza di Spagna [Figura 1] e da “sala de estar” da vida artística em Roma, a Piazza
del Popolo. A tradição teve início no século XVI, quando as novas estradas urbanas,
Paolina (atual Via del Babuino), Margutta e Sistina, acolheram grande fluxo de resi-
1 Professora Associada do Centro Federal de Educação Tecnológica (RJ). Realizou Pós-doutorado (CAPES) junto a
Università degli Studi di Napoli Federico II/Itália; Doutorado em História e Crítica da Arte pelo PPGAV/UFRJ e Mes-
trado em História da Arte pelo PPGH/UNICAMP. O mapeamento e a análise fazem parte do pós-doutoramento reali-
zado na Itália, com financiamento da CAPES.

57
Figura 1 - Veduta della
Piazza del Popolo. Fon-
te: Giovanni Battista
Piranesi, Francesco Pi-
ranesi e d'altri. Vedute
di Roma. Paris: Firmin
Didot Freres, 1835-1839.
Tomo I, tav. 22.

dentes estrangeiros – na sua maioria, artistas e artesãos –, em virtude do privilégio


de isenção do imposto sobre o exercício do comércio e sobre a propriedade de bens
imóveis numa área ainda marginal, concedida pelo Papa Paolo III Farnese para pro-
mover a urbanização.2 

Desde o Cinquecento, a região era um lugar de


morada para artistas italianos famosos, como
os Gentileschi, pai e filha.3 Mas ao longo dos
seus séculos de existência abrigou, sobretudo,
os ateliês de artistas estrangeiros, muitos de-
les do norte da Europa, como belgas e holan-
deses4, com um crescente número de artistas
espanhóis5, bem como de sul-americanos, na
segunda metade do século XIX.

Nessa geografia dos ateliês de Roma nas déca-


das finais do século XIX [Figura 2], é possível
identificar dois tipos diferentes de estruturas
nas quais os ateliês se localizavam. Ainda que
Figura 2 - Mapa atual do todos ficassem próximos, desfrutando do mesmo ambiente do que se pode denomi-
Google, mostrando a dis-
tância entre a Via Nazio- 2 HOOGEWERFF, Godefridus Joannes.  Via Margutta: centro di vita artistica.  Roma: Istituto di Studi Romani,
nale e a Piazza del Popolo. 1953. p. 13.
À direita, Piano Regola- 3 DI CASTRO, Francesca. Storia e segreti di Via Margutta. Roma: Palombi e Partner, 2012. p. 39-42.
tore di Roma, 1883. ASC, 4 Sobre o conflito dos artistas holandeses residentes na Via Margutta com a Accademia di San Luca, no século XVII,
ver: HOOGEWERFF, Godefridus Joannes. Nederlandsche kunstenaars te Rome (1600-1725): uittreksels uit de paro-
Biblioteca Romana: Car-
chiale archieven. Den Haag: The Hague, 1943.
tella XIII, 119. 5 REYERO, Carlos. Artisti espagnoli e portoghesi: l’esperienza italiana, um passaggio obbligato per la formazione
artistica. Ottocento: cronache dell’arte in italiana dell’Ottocento, n. 20. Milano: Giorgio Mandadori, 1991. Ver ainda:
GONZÁLES, Carlos; MARTÍ, Montse (org.). Pintores españoles en Roma (1850-1900). Madrid: Tusquets Editaes,
1996.

58
nar “quartiere degli artisti” – uma zona que ia dos ar-
redores da Piazza del Popolo até a Via Nazionale –,
havia, além dos ateliês “independentes”, o conceito
inovador de “villagio d’arte”, uma espécie de “condo-
mínio” (embora a comparação seja simplória), onde
os artistas podiam trabalhar solitariamente e, ao mes-
mo tempo, trocar ideias entre seus iguais e discutir
a formação de uma comunidade real.6 É o caso dos
Studi Patrizi, localizados na Via Margutta 53/54/55 –
que abrigavam os ateliês de Pedro Weingärtner e de
Modesto Brocos, ambos em 19007 – e da Villa Strohl-
-Fern, situada nas proximidades dos jardins da Villa
Borghese, onde residiram Pedro Weingärtner, Henri-
que Bernardelli e Zeferino da Costa, todos entre os
anos de 1880 e 1890.8 Posteriormente, serão retomados os “villagio d’arte” [Figura 3]. Figura 3 - Mapa atual
do Google mostrando
Os ateliês “independentes” ficavam nos diferentes prédios ao longo das muitas vias ao a localização da Villa
Strohl-Fern e dos Studi
redor e nas proximidades da Piazza di Spagna e da Piazza del Popolo: Via Flaminia, Patrizi, na malha urba-
Via della Vite, Via del Gambero, Via Frattina, Via Bocca di Leone, Via della Croce, na de Roma.
Via della Vittoria, Via Ripetta, Via del Babuino e Via Margutta. Existia ainda uma
significativa concentração de estúdios nas imediações da Piazza Borghese e da Piazza
Barberini.

Na pesquisa, foi possível identificar a


localização precisa de quatro ateliês
aqui denominados de “independentes”,
dois deles pertencentes aos irmãos Ber-
nardelli (Henrique e Rodolpho), um de
domínio de Zeferino da Costa e outro
pertencente a Rafael Frederico. Um dos Figura 4 - Mapa do atu-
al do Google mostrando
ateliês dos Bernardelli em Roma foi
a localização dos dois
ocupado por eles de data indetermina- ateliês dos irmãos Ber-
da (provavelmente, desde a chegada de nardelli em Roma. À di-
reita, no canto inferior,
Rodolpho Bernardelli à “città eterna”,
foto do prédio da Via
em 1877) até 1880; o ateliê ficava na di San Nicola Tolentino,
Via di San Nicola da Tolentino, núme- 72. Foto da autora.
ro 72 (estúdio número 3). Naquele ano (1880), se mudaram para um ateliê na Via di
9

San Basílio, número 16.10 Os dois ateliês – muito próximos um do outro – ficavam nas
vizinhanças da Piazza Barberini. [Figura 4]
6 DI CASTRO, op. cit., p. 30.
7 PATERNO, Valentina Moncada Di (org.). Rubricella: artisti residenti a via Margutta dal XIX secolo a oggi. In: ATELIER
A VIA MARGUTTA: cinque secoli di cultura internazionale a Roma. Roma: Allemandi & C., 2012. p. 292-3010. Pedro
Weingärtner ainda manteve o ateliê nos anos de 1905, 1910, 1914 e 1920.
8 FEO, Giovanna Caterina de. Alfred Wilhelm Strohl-Fern. Roma: Davide Ghaleb Editore, 2010. p. 106-130.
9BERNARDELLI, Rodolpho. Carta para João Maximiano Mafra. Roma, 21 mar. 1878. Arquivo do Museu Dom João
VI, Pasta Rodolpho Bernardelli.
10 BERNARDELLI, Rodolpho. Carta para João Maximiano Mafra. Roma, 25 nov. 1880. Arquivo do Museu Dom João
VI, Pasta Rodolpho Bernardelli.

59
Ora, é de conhecimento dos estudiosos da arte brasileira do período que Rodolpho
Bernardelli, o mais velho dos dois irmãos, foi para Roma agraciado por um Prêmio
de Viagem, que embora não fosse grandioso, certamente, supria suas necessidades
mais básicas. Todavia, também se sabe que Henrique Bernardelli viajou a Roma por
conta própria, objetivando concluir seus estudos.11 Isso significa que, mesmo que
ambos conseguissem vender suas obras nas galerias e nas praças de Roma, a situação
financeira dos irmãos não devia ser das mais privilegiadas. Desse modo, explica-se,
ao menos em parte, a localização dos ateliês, que ficavam um pouco afastados da Pia-
zza del Popolo. Ainda assim, há de se considerar que os ateliês estavam a menos de 12
minutos de caminhada da Piazza di Spagna e a 20 minutos da Piazza del Popolo, onde
ocorriam as famosas exposições na Casina del Pincio12, bem como a menor distância
da Via Margutta – onde os artistas podiam aproveitar a biblioteca e as aulas notur-
nas da Associazione Artistica Internazionale di Roma – e a menos de 12 minutos da
Via Nazionale, na qual ficava o Palazzo delle Esposizioni, que abrigava igualmente
a Galleria Nazionale d’Arte Moderna.13 Ou seja, se
os ateliês não possuíam a melhor localização possí-
vel – que seria nas imediações da Piazza del Popolo
–, não estavam tão pouco mal situados; assim, se o
aluguel não era dos mais dispendiosos, não era dos
mais econômicos. Nesse sentido, há um claro indí-
cio de que era preferível gastar mais e viver dentro
do centro geográfico artístico-cultural de Roma a
pagar menos e estar fora dele.

Para se ter uma dimensão dos esforços empreen-


didos pelos Bernardelli para se manterem inseri-
dos nesse contexto, pode-se considerar o tom de
lamento que Rodolpho Bernardelli utiliza em uma
Figura 5 - Arquivo do das suas cartas para se referir à vida que levava em
Museu Dom João VI. Li- Roma nos anos de 1880.
vro de correspondências
recebidas. Carta para Zefe- Nunca pedi nada ao governo e fiz minhas viagens fazendo economias, vendendo algumas
rino da Costa por parte da coisinhas, para isso, porém, se me vir muito apertado, será necessário que eu faça mais
Delegacia do Thesouro do trabalhos para vender (o que me rouba tempo). Tenho 130 fr. de aluguel do ateliê e casa,
Brazil. Roma, 8 out. 1891. É
possível ler no documento não me atrevi a pedir ao governo um auxiliar.14
o endereço de Zeferino:
Via del Corso, 36. O ateliê “independente” de Zeferino da Costa, por sua vez, estava muito bem situado
no coração pulsante desse “quartiere degli artisti” [Figura 5]. Ficava na Via del Corso,
11 DAZZI, Camila. Relações Brasil-Itália na arte do segundo Oitocentos: estudo sobre Henrique Bernardelli (1880
a 1890). Campinas (SP), 2006. Dissertação (mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas.
12 A Associazione Artistica Internazionale di Roma organizava exposições das obras dos seus sócios, cujo propósito
era a venda de estudos e quadros em benefício dos autores e da associação. Tais exposições foram realizadas, a partir de
1871, na famosa Casina Valadier, localizada na Piazza Bucarest, na colina do Pincio, a qual se abria sobre a Piazza del
Popolo. DAZZI, Camila. A Associazione Artistica Internazionale di Roma: sodalício de artistas estrangeiros residen-
tes na Itália em fins do século XIX. 19&20, Rio de Janeiro, v. IX, n. 1, jan./jun. 2014. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/aairoma.htm Acesso em: 7 abr. 2015.
13 GALLERIA NAZIONALE D’ARTE MODERNA. Le collezioni Il XIX secolo. Milano: Electa, 2006. p. 17.
14BERNARDELLI, Carta para João Maximiano Mafra, 1880, op. cit.

60
número 36, a apenas três minutos de cami-
nhada da Piazza del Popolo.15 O documen-
to localizado indica que o artista morou no
ateliê por volta de 1891. O endereço reflete,
certamente, a posição de Zeferino da Costa,
que, em 1890, já era um artista conceitua-
do, de uma geração anterior à dos irmãos
Bernardelli, estando responsável pela en-
comenda, naqueles anos, da etapa final das
pinturas da Igreja da Candelária no Rio de
Janeiro.

Rafael Frederico, bolsista da Escola de Be-


las Artes, possuía, no ano de 1897, um ateliê
na Via Flaminia, número 120 [Figura 6].16
Figura 6 - Arquivo do
O espaço era, possivelmente (e esta é somente uma hipótese), dividido com Bento Museu D. João VI. Carta
Barbosa, outro bolsista da instituição, que residia em Roma desde 1895. A Via Fla- de Rafael Frederico para
minia era ocupada por numerosos ateliês, alguns de artistas de significativo relevo Rodolpho Bernardelli.
Roma, 19 out. 1897. É pos-
no panorama artístico italiano, como Giulio Aristide Sartorio, que possuía um ate- sível ler no documento o
liê no número 44 dessa rua, onde trabalhava desde 1883. A partir dos anos 1870, a endereço de Rafael Fre-
Via Flaminia se tornou especialmente atraente para os escultores, entre eles Giulio derico: Via Flaminia, 120,
Roma.
Monteverde e Ettore Ferrari.17 Ainda nos anos finais da década de 1890, a famosa via
parecia manter seu charme e seu status, ao menos para jovens bolsistas como Rafael
Frederico. Além disso, ficava a apenas 10 minutos de caminhada da Piazza del Popo-
lo, estando muito bem localizada na malha cultural urbana de Roma.

Figura 7 - Detalhe de
mapa, alterado pela au-
tora, disponibilizado no
artigo: Elena Frontaloni e
Gabriele Pedullà: “I Iluo-
ghi della cultura in Roma
Capitale”. Atlante della
letteratura italiana: ro-
manticismo a oggi. v. III.
Torino: Einaudi.
Para compreender melhor a escolha da localização dos ateliês dos artistas brasileiros
em Roma, se faz necessário um estudo aprofundado sobre os lugares de cultura na
Roma da segunda metade do Oitocentos. No artigo intitulado I Iluoghi della cultura
15 DELEGACIA DO THESOURO DO BRAZIL. Carta para Zeferino da Costa. Roma, 8 out. 1891. Arquivo do Museu
Dom João VI. Livro de correspondências recebidas.
16 FREDERICO, Rafael. Carta para Rodolpho Bernardelli. Roma, 19 out. 1897. Arquivo do Museu Dom João VI.
Livro de correspondências recebidas.
17 FRONTALONI, Elena; PEDULLÀ, Gabriele. Iluoghi della cultura in Roma capitale. LUZZATTO, Sergio; PEDULLÀ,
Gabriele (a cura di). Atlante della letteratura italiana: romanticismo a oggi. v. III. Torino: Einaudi, p. 328.

61
in Roma Capitale, as autoras Elena Frontaloni e Gabriele Pedullà desenvolvem uma
análise primorosa da área que concentrava, efetivamente, a vida cultural da cidade
[Figura 7].18 No presente texto, a explicação histórica fornecida pelas autoras não
será examinada, mas é relevante destacar que sua pesquisa reitera que, nas décadas
finais do Oitocentos, o epicentro cultural de Roma era aquela que as autoras chamam
de “zona del tridente” e sobretudo a Via del Corso (como visto, lugar onde Zeferino
da Costa possuía um ateliê em 1891) se impunha como sede privilegiada da nova
produção e fruição cultural, acolhendo redações de jornais políticos, tipografias e
livrarias.19 Não muito longe dali – de acordo com o artigo –, os ateliês de artistas
continuavam a amontoar-se ao longo da Via Margutta, como mencionado, lugar de
moradia de Modesto Brocos e Pedro Weingärtner.

As autoras confirmam o que esta pesquisa já havia observado, ou seja, que tal zona
de Roma foi marcada por uma geografia cultural determinada e dependente das ins-
tituições detentoras de poder cultural. No caso dos artistas, em especial, a Accademia
di San Luca, o Istitutto di Belle Arti e instituições de ensino estrangeiras, como Villa
Medici, a qual, desde 1803, por vontade de Napoleão, hospedava a prestigiada Acadé-
mie de France à Rome20 e a British Academy of Arts in Rome,21 assim como algumas
salas dos Studi Patrizi, na Via Margutta, que foram a sede da Associazione Artistica
Internazionale di Roma – a qual disponibilizava para seus sócios biblioteca e aulas
noturnas de modelo-vivo. Havia, ainda, escolas de modelo-vivo, como a Accademia
Gigi. Instituições que, a um só tempo, eram núcleos de tradição histórica e pilares de
um programa cultural cosmopolita.22

A Accademia Gigi, localizada na Via Margutta, mais precisamente nos Studi Nar-
di, número 48, é um bom exemplo de lugar de reunião entre artistas de diferentes
procedências e classes sociais – muito possivelmente frequentada pelos brasileiros
residentes em Roma. A academia que era uma escola de modelo-vivo e foi fundada
por Luigi Talarici, ex-modelo de Anticoli Corrado, o qual soube astutamente apro-
veitar o desejo de muitos artistas romanos e estrangeiros de aprender e aprimorar
os princípios pictóricos e plásticos, observando ao vivo pintores mais renomados e
modelos. Na Accademia Gigi, segundo John Grioni, “uma aula de modelo-vivo e de
costume imersa no fumo e tendo como modelo alguma figura decadente e ligeira-
mente bêbada, contava, muitas vezes, com a presença de figuras renomadas, como
Galli, Ferrari, Signorini, Mancini, Pascarella, além de ingleses, americanos e tipos
excêntricos, bizarros, geniais”.23

Todavia, não podem ser esquecidos os museus. Uma parte significativa dos artistas
que se dirigia a Roma buscava simultaneamente entrar em contato com a obra dos
18 Idem.
19 Idem.
20 DESMAS, Anne-Lise. L’Académie de France à Rome aux XIXe et XXe siècles: entre tradition, modernité et créa-
tion. Somogy, 2002.
21WALLACE-HADRILL, Andrew. The British School at Rome: one hundred years. Roma: British School at Rome,
2001.
22 FOTI, Francesca. Studi Patrizi: atelier d’artista a Via Margutta (1850-900). In: ATELIER A VIA MARGUTTA, op.
cit., p. 34.
23 GRIONI, John S: Via Margutta: ritratto di una strada. Roma: Palombi, 1970. p. 11.

62
grandes mestres do passado – e a zona estudada neste texto reunia museus como a
Galleria Borghese –, mas igualmente desejando conhecer os segredos dos expoentes
da modernidade italiana. O Palazzo delle Esposizioni, que abrigava a Galleria Na-
zionale d’Arte Moderna, em pleno funcionamento nos anos de 1880, expunha obras
de artistas modernos, dentre eles, Giuseppe De Nittis, Giacomo Favretto, Giovanni
Fattori e Francesco Paolo Michetti.24

Com palavras de entusiasmo, Rodolpho Bernardelli relembra os preparativos para a


Exposição Nacional de Roma de 1883, que ocorreu no Palazzo delle Esposizioni loca-
lizado a apenas 10 minutos do seu ateliê.
Estão agora preparando um grande palácio aqui para a Exposição Geral de Belas
Artes em dezembro de 1882, os artistas estão preparando grandes quadros! Eu
tenho que fazer alguma coisa, mas... estou esperando.25
Essas eram, talvez, as instituições mais significativas para os artistas brasileiros, mas
não é possível desconsiderar que tal “zona cultural” abrigava outras igualmente re-
levantes, o que pode ter influenciado, de modo direto ou indireto, a escolha da loca-
lização dos ateliês dos artistas brasileiros em Roma. Entre elas, estavam os salões da
aristocracia, onde ocorriam saraus, récitas líricas, bailes e concertos. A Roma de fins
do Oitocentos conheceu uma intensa atividade dos salões. Nos palácios e nas vilas
citadinas, se encontravam aristocratas e burgueses, políticos e escritores, artistas e
cantores; nos salões, todos se divertiam, se faziam conhecer, estabeleciam acordos e
iniciavam inimizades. Na área onde estavam situados os ateliês dos artistas brasilei-
ros, havia nada menos que oito salões.26 Seguramente, o mais significativo para este
estudo era o salão do príncipe Baldassarre Odescalchi (1844-1909), localizado na Via
del Corso – esse personagem será retomado posteriormente.

A cultura romana de fins do Oitocentos permaneceu, portanto, conduzida pela aris-


tocracia, que encontrava, na corte sabauda (Casa de Savoia) e nos seus salões nobili-
árquicos, centros de agregação determinantes. Ao lado do mundo frenético das artes,
possuía peso uma sociedade da distinção. Muitos jornais e revistas de importância
no campo da cultura eram de propriedade de figuras proeminentes da aristocracia
citadina, como é o caso do príncipe Maffeo Sciarra Colonna, financiador da Rivista
politica e letteraria e da terça série da Cronaca Bizantina.27 Ao mesmo tempo em que
abriam seus salões como locais de convívio, os nobres colocavam em prática sua in-
fluência, de modo que um rico conde ou barão podia influir de maneira decisiva na
carreira de um jovem literário ambicioso (como bem se sabe, Gabriele D’Annunzio
era protegido de Sciarra Colonna e de Gégé Primoli, marido da duquesa Maria Har-
douin di Gallese).28

O que ocorria no mundo literário se passava igualmente no mundo das belas artes. Ao
24 GALLERIA NAZIONALE D’ARTE MODERNA, op. cit., p. 419-420. Obras desses artistas foram adquiridas pela
galeria em 1883 e 1884.
25 BERNARDELLI, Rodolpho. Carta para João Maximiano Mafra. Roma, 21 jan. 1882. Arquivo do Museu Dom João
VI/EBA/UFRJ.
26 FRONTALONI, PEDULLÀ, op. cit., p. 315.
27 Idem.
28 Ibidem, p. 309-328.

63
príncipe Baldassare Odescalchi e ao duque de Fiano Leopoldo Torlonia é atribuído o
mérito de viabilizar com o governo a construção do já referido Palazzo delle Esposizioni.29
Ambos, mas sobretudo Odescalchi, eram ferrenhos defensores da conveniência de
promoção e de renovação das artes italianas, bem como da importância da “educação”
do público burguês para uma arte mais propensa a experimentaçõ formais.30

É digna de nota a apaixonada relação de Odescalchi com o mundo artístico


contemporâneo, sendo um obstinado fomentador de um “carattere originale e na-
zionale” para as artes do período pós-unitário da Itália e da ideia de que Roma fosse
a sede permanente das exposições nacionais.31 Certamente, essa atitude combativa e
defensora das artes o tornava provido das qualidades necessárias para ser o presiden-
te da Associazione Artistica Internazionale di Roma 32, da qual praticamente todos
os artistas brasileiros que complementaram suas formações artísticas na Itália foram
sócios e da qual todos fizeram questão de manter próximos seus ateliês – ou, no caso
de Brocos e Weingärtner, mais do que isso, ocuparam espaços nos Studi Patrizi, que
abrigavam a associação.

Assim, a compreensão da geografia dos ateliês dos artistas brasileiros em Roma pas-
sa duplamente pela ação da aristocracia. Se por um lado, ela agia como promotora
de artistas e das artes, por outro, cada vez mais, os nobres assumiram as mesmas
atitudes da alta burguesia, a começar pela atenção com que administravam suas pro-
priedades, conduzindo, dessa forma, a transformação do centro histórico por meio
de uma especulação imobiliária bastante lucrativa
e da construção de edificações destinadas a abri-
gar ateliês.33 A ideia de criar ambientes específi-
cos para ateliês, em função do desenvolvimento
da atividade artística, ocorreu graças à iniciativa
de proprietários sagazes, que notaram a nova con-
corrência maciça de artistas italianos e estrangei-
ros na cidade, o que caracterizou o século XIX e
se intensificou na sua segunda metade. As bases
para a renovação da “peregrinação” cultural à ca-
pital da civilização artística italiana encontraram
novo impulso no grande fervor social e artístico
que marcou as primeiras décadas de Roma como
capital da Itália.
Figura 8 - Fachada de Exemplo notório desse processo são os conjuntos arquitetônicos encomendados pelo
um dos edifícios do com-
marquês Francesco Patrizi Montorio – muito possivelmente influenciado pelo prín-
plexo dos Estudi Patrizi,
Via Margutta 53A-54-55. cipe Baldassarre Odescalchi –, que ficaram conhecidos posteriormente como Studi
Construção iniciada em
29 SILIGATO, R. Le due anime del palazzo: il museo artistico industriale e la società degli amatori e cultori di belle arti.
1883 para abrigar os novos In: PALAZZO DELLE ESPOSIZIONI: catalogo della mostra. Roma: Carte Segrete, 1990. p. 165-181.
ateliers. Foto da autora. 30 Idem.
31 ODELCALCHI, Baldassare. Delle esposizioni: conferenza artistica di Baldassare Odescalchi. Roma: Giovanni Poli-
zza & C., 1873; SILIGATO, op. cit., p. 165.
32 L’ASSOCIAZIONE ARTISTICA INTERNAZIONALE. Statuto e Rigolamenti. Tippografia Literaria, Roma, 1872.
Art.1. p. 3.
33 FRONTALONI, PEDULLÀ, op. cit., p. 315.

64
Patrizi. O lugar abrigou, a partir de 1887, a Associazione Artistica Internazionale di
Roma. Como mencionado, residiram nos Studi Patrizi, certamente pelo alto custo dos
ateliês, apenas os artistas Pedro Weingärtner e Modesto Brocos, já em 1900 [Figura
8].34

Outro exemplo é a Villa Strohl-Fern, construída a pedido do nobre Alfred Guillaume


Strohl, proveniente de Saint-Marie-aux-Mines, na região da Alsácia. Após a guerra
franco-prussiana, quando a Alsácia se tornou parte da Alemanha, o jovem Alfred
viajou pelo mundo, fixando-se definitivamente em Roma, em 1879. Na cidade, ele
adquiriu várias propriedades que foram antigas partes da Villa Giulia e da Villa Pa-
niatowski, entre a Via Flaminia e a Villa Borghese, por ele unificadas e redesenhadas
para criar a Villa Strohl-Fern. No novo espaço, além de erigir um casarão em estilo
neogótico cercado por oito hectares de jardins românticos, com árvores exóticas e
Figura 9 - Detalhes de
um dos ateliês remanes-
centes no Viale degli Stu-
di, na Villa Sthrol Fern,
além de fotos de algumas
de suas fachadas.

estátuas clássicas, seguindo o que faziam outros nobres em Roma – como será abor-
dado posteriormente –, Strohl-Fern mandou edificar, em uma longa estrada arbori-
zada, ateliês simples e funcionais, providos de largas claraboias para a entrada de luz
[Figura 9].35

Em 1888, Henrique Bernardelli alugou um ateliê na Villa Strohl-Fern e novamente


o fez em 1890, 1891, 1892 e 1893. Não é possível saber se esse período foi corrido,
tendo sido o aluguel apenas renovado, ou se o aluguel foi estabelecido apenas por
alguns meses ao longo desses anos.36 A mesma Villa Strohl-Fern foi lugar de moradia
34DAZZI, A Associazione..., op. cit.
35 TROMBADORI, Antonello. Villa Strohl-Fern. Strenna dei Romanisti, Roma, 21 aprile 1982.
36 MONACI, Tito. Guida Monavi, Guida Commerciale di Roma. a. XVIII. Roma, 1888. p. 749; ivi, a. XIX, Roma,

65
e trabalho para Zeferino da Costa e Pedro Weingärtner.37 Zeferino da Costa lá residiu
em 189238, coincidindo com o período de residência de Henrique Bernardelli. Pedro
Weingärtner habitou o local em 1887, 1888, 1890 e 1891.39

Sem nos alongarmos sobre a Villa Strohl-Fern como espaço de convivência para os
artistas brasileiros, cabe, no presente texto, apenas mencionar que o local era famo-
so por ter se tornado, entre 1880 e 1910, um lugar central na cena artística do norte
da Europa. De fato, nas duas últimas décadas do século XIX, a Villa Strohl-Fern era
chamada de “Accademia di Berlino”.40 A denominação se explica pelo grande número
de artistas alemães e prussianos que possuíam ateliês no local. A tradicional “Italien-
sehnsucht” – essa nostalgia inquieta pela Itália – ainda vigorava profundamente na
cultura artística alemã.41 É, portanto, muito pouco provável que os brasileiros que lá
residiram não tenham entrado em contato com determinado clima artístico alemão,
cuja tendência simbolista não pode ser ignorada.

O espaço da Villa Strohl-Fern foi descrito por vários dos seus inquilinos como pos-
suidor de uma atmosfera simbolista, fruto, sem dúvida, “da influência definitiva de
Arnold Böcklin, com ‘L’isola dei morti’” sobre o senso estético de tantos contempo-
râneos, como o próprio Alfred Guillaume Strohl, que, não à toa, adicionou o sufi-
xo “Fern” ao seu sobrenome, cujo significado pode ser traduzido como “distante do
mundo”.42

Em redutos simbolistas ou em meio ao alvoroço da Via Margutta, se os artistas esco-


lhiam os arredores da Piazza del Popolo e da Piazza di Spagna para viverem e estru-
turarem seus ateliês, cabe mencionar que o fator mercadológico influenciava tal de-
cisão. Essa era a zona onde se localizavam os estabelecimentos que comercializavam
arte43 e era também procurada pelos turistas da alta burguesia que então visitavam a
“cidade eterna”. Já no início do século XIX começaram a circular guias e itinerários
redigidos para os estrangeiros com a finalidade de conduzi-los na visita aos lugares
mais significativos à descoberta das maravilhas de Roma e, entre eles, estavam os ate-
liês dos artistas. Segundo Francesca di Castro:
[...] não era somente a Roma monumental, a Roma das igrejas e dos museus que
interessava: os turistas queriam sentir-se ‘romanos’, penetrar nos usos e costumes da
cidade, fazer parte dela, conhecer suas tradições, mas, sobretudo, vivenciar a arte,
penetrar na sacralidade do seu ateliê para atingir diretamente o mistério da criação de
uma obra de arte.44

1889, p. 755; ivi, a. XX, Roma, 1890, p. 750; ivi, a. XXI, Roma, 1891, p. 817; ivi, a. XXII, Roma, 1892, p. 843; ivi,
a. XXIII, Roma, 1893, p. 867.
37 Idem.
38 MONACI, op. cit., a. XXII, Roma, 1892, p. 844.
39 MONACI, op. cit., a. XVII, Roma, 1887. p. 688; ivi, a. XVIII, Roma, 1888, p. 750; ivi, a. XX, Roma 1890, p. 754; ivi,
a. XXI, Roma, 1891, p. 820.
40 WINDHOLZ, Angela. Villa Strohl-Fern Accademia di Berlino: aspirazione e chimere del Kaiserreich. In: FEO, op.
cit., p. 61-78.
41 Idem.
42 Idem.
43 FRONTALONI, PEDULLÀ, op. cit., p. 315.
44 DI CASTRO, op. cit., p. 51.

66
Em 1824, com o Elenco di tutti gli pittori, sculttori, architetti, [...], posteriormente
com O Mercurio Romano e os Almanaques de Roma e, finalmente, em 1879, com a
renovada edição de um famoso guia turístico, o Guida del Nibby,45, foi possível ao
viajante encontrar as mais completas listas com os nomes e as residências de artis-
tas estrangeiros e italianos em Roma. Além disso, os artistas podiam apresentar aos
visitantes todo tipo de mercadoria e de serviços, oferecendo soluções para qualquer
exigência.46

São testemunhos da escolha dos artistas de morar nas proximidades da Piazza del
Popolo e da Piazza di Spagna esses numerosos guias turísticos, os quais forneciam ao
viajante oitocentista um sugestivo itinerário através dos singulares museus e espaços
de venda que eram os ateliês.47 No ano de 1880, Rodolpho Bernardelli revelou, em
uma carta a João Maximiano Mafra, as vantagens mercadológicas de estar no “quar-
tiere degli artisti” da cidade de Roma.
Na exposição do Popolo que se faz anualmente, expus duas cabeças em terracota, das
quais creio ter-lhe mandado fotografias, têm por título Furba e Gigetto. São dois estudos
que os amigos me influíram que expusesse; enfim lá foram e agradaram a todos. Os jor-
nais as citaram como das melhores e alguns escreveram alguma coisinha. O melhor para
mim foi vendê-las; agora vejo-me obrigado a assim fazer, preciso vender porque a pensão
não me basta e para mais caiporismo.48

A região delimitada neste estudo, que vai dos arredores da Piazza del Popolo até a Via
Nazionale, pode, por conseguinte, ser considerada geograficamente como o fulcro da
comunidade artística cosmopolita em Roma, lugar de agitada atividade, que benefi-
ciava a circulação de ideias e as trocas culturais em nível internacional, favorecendo,
por certo, no século XIX, o surgimento de novas correntes artísticas.

À guisa de considerações finais, cabe ressaltar que as três diferentes gerações de artis-
tas brasileiros mencionadas no estudo – Zeferino nasceu em 1840 e foi professor dos
irmãos Bernardelli; os Bernardelli, Brocos e Weingärtner nasceram na década de 1850
e todos foram professores de Rafael Frederico, nascido em meados dos anos de 1860
– optaram por ter seus ateliês em Roma na mesma zona cultural que, a um só tempo,
resumia as noções de tradição e de inovação, tendo desse espaço geográfico surgido
novas correntes e tendências artísticas. Nesse sentido, o trabalho de mapeamento e
os resultados obtidos fornecem uma visão da estruturação do centro geográfico ar-
tístico-cultural de Roma e revelam a importância da análise da dinâmica urbana das
cidades no fim do Oitocentos, estando os ateliês dos artistas no centro das atenções.

45 NIBBY, Antonio. Itinerario di Roma e suoi dintorni / di Antonio Nibby: corretto ed ampliato secondo le ultime
scoperte e gli studi piu recenti dal prof. Filippo Porena. Roma: Ermanno Loescher & C., 1879.
46 DI CASTRO, op. cit., p. 51.
47 FOTI, op. cit., p. 35.
48BERNARDELLI, Carta para João Maximiano Mafra, 1880, op. cit.

67
68
El taller de Antonio Smith:
una iniciativa picante,
poética, imprevista

Catalina Valdés Echenique 1 e José Miguel Frías Reyes 2

Santiago de Chile, fines de la década de 1860. El camino que llevaba de la Academia


de Pintura al taller de Antonio Smith (Santiago, 1832-1877) era bastante corto, pero al
recorrerlo, los jóvenes aprendices de artista realizaban en verdad un trayecto mucho
mayor: de una formación basada en el dibujo de estampa y figura humana, que pretendía
prepararlos para la pintura de historia, pasaban a un espacio de producción libre, volcado
al género de paisaje, una materia que quedaba fuera del programa de la Academia.
Salían así de una institución normada que esperaba de sus alumnos obras funcionales
a requerimientos públicos, para llegar al lugar donde se activaban por primera vez en
Chile algunas de las dinámicas de producción de la pintura moderna: la inspiración, la
autonomía, podríamos decir, en suma, las primeras manifestaciones locales del arte por
el arte.

El taller imaginario
No han quedado imágenes visuales de este taller, sin embargo –y de modo excepcional
para el contexto chileno- la literatura artística se encarga de describirlo por medio
de anécdotas y evocaciones de autores que pasaron por ahí o que a su vez las
escucharon de otros. Para este trabajo, hemos leído a Carmen Smith y Arturo Blanco,
1 Doctoranda de Historia del Arte, École des Hautes Études en Sciences Sociales de París (Francia) y Universidad Na-
cional de San Martín (Argentina). Académica del Departamento de Arte de la Universidad Alberto Hurtado. Santiago
de Chile.
2 José Miguel Frías es estudiante de la Licenciatura en Teoría e Historia del Arte del Departamento de Arte de la Uni-
versidad Alberto Hurtado. Santiago de Chile.

69
hijos de la primera generación de artistas chilenos del periodo republicano, quienes
rememoraron en escritos posteriores la época de sus padres. También revisamos
publicaciones más próximas en el tiempo, como las del homme de lettre Vicente Grez
o el cronista Antonio Pérez, ambos activos fundadores del campo de la escritura sobre
arte en la prensa periódica. Se suman las voces de dos artistas: la del pintor Pedro
Lira, escritor y figura clave del mundo del arte en Chile desde mediados del siglo XIX;
y la del pintor Onofre Jarpa, célebre paisajista. Ambos pasaron sus primeros años
de formación asistiendo al taller de Antonio Smith. Por último, hemos recuperado
la tesis de grado de Niobe Zúñiga que permanece inédita y tiene el interés de ser el
primer estudio académico que menciona al taller de Smith, reseñando, en ocasiones,
entrevistas a testigos directos o indirectos de la época, que para 1946 estaban vivos
aún.

Esta multiplicidad de tipos de bibliografía revela una coherencia historiográfica que


vale la pena señalar: un espacio informal de producción y enseñanza artística queda
inscrito por medio de documentos igualmente informales que no responden al patrón
de una “fuente primaria”. Las crónicas y la escritura memorialista nos conducen a un
terreno que no es el de los hechos oficiales o periodísticos, sino el de la subjetividad de
la memoria y de la invención. El relato que pueda construirse a partir de estas fuentes
deberá contemplar por lo tanto su condición polifónica, fragmentaria, incompleta y
dispersa, a veces también repetitiva, puesto que se trata de autores que se leen entre
sí y toman “prestados” recuerdos ajenos. Estas escrituras contribuyen al proceso de
literalización del artista y conforman géneros periodísticos y literarios muy propios
del siglo XIX.3

El único medio de contrastar estas fuentes es ligándolas a los vestigios materiales


de nuestro objeto de estudio, el taller. Estos vestigios son las obras que un grupo de
jóvenes pintores chilenos desarrolló en el entorno de Antonio Smith, señalado ya
por sus contemporáneos como el primer paisajista chileno. Consideramos entonces
las pinturas presentadas en exhibiciones nacionales a partir de 1867, momento que
probablemente coincide con la apertura del taller, un año después que el artista
regresara de Europa. Nos detenemos en 1876, último año en que este pintor expone en
vida. La tarea no es fácil cuando muchas de estas pinturas se encuentran en colecciones
privadas sin catalogar, con títulos genéricos como “paisaje”, “atardecer” o “bosque”,
sin fecha y a veces mal atribuidas. Sin embargo, tenemos piezas suficientes como para
al menos dimensionar el puzle; fragmentos que componen este lugar de enseñanza
y creación artística informal que estimuló una producción numerosa, celebrada de
inmediato por el público y reconocida por parte de la crítica contemporánea como la
esperada primera escuela de pintura nacional.

Un taller frente a la Academia


Según comenta Arturo Blanco, el artista instala su taller cerca de la Academia de
Pintura de Santiago4. La primera institución de formación artística republicana fue
3 Tomamos el término de BONNET Alain, La transfiguration de l’artiste. BONNET Alain y JAGOT Hélène (Orgs).
L’artiste en représentation. Images d’artistes dans l’art du XIXe siècle. Lyon: Fage, 2012, 10-11.
4 Arturo Blanco reconstruye la época a partir de lo que debe haber recabado escuchando y leyendo en casa de su padre,

70
fundada en 1849, siendo su director un pintor napolitano también conocido en Brasil,
Alessandro Ciccarelli.5 Hacia 1859, la Academia experimenta su primera reforma y
pasa a la Universidad de Chile. Diez años después, la dirección queda a cargo del
pintor germano Ernst Kirchbach, quien mantuvo la línea más bien convencional
de educación artística en cuanto a método, temas y jerarquía de géneros.6 Para ese
entonces, las aulas se instalan en la parte posterior del Palacio de la Universidad, hoy
casa Central de la Universidad de Chile, muy cerca de la Alameda, avenida principal
de la ciudad.
Frente a la academia rejuvenecida y triunfante se alzaba el modesto taller de Smith,
concurrido por los más aventajados discípulos de Kirchbach que iban ahí en busca de esa
iniciativa picante, poética, imprevista, que refrescaba la fantasía después de una pesada
tarea. Los que terminaban en la academia una figura sombría, una bruja, un demonio,
un verdugo, un político o un nécio, se dirigian al taller de Smith a pintar un cielo, un claro
de luna, un rayo de sol.7

La contraposición entre el taller de Smith y la Academia no es solo una cuestión


de ubicación urbana, ella escenifica una nutrida lista de antagonismos y críticas
por parte de diversos actores que acusaban la falta de calidad de la institución y
particularmente, las deficiencias en su dirección.

Desde sus primeros años de funcionamiento se escucharon voces discrepantes, por


ejemplo, la de extranjeros como James Melville Gilliss, director de la expedición
naval-astronómica de Estados Unidos por el Hemisferio Sur, visitó la Academia de
Pintura hacia 1851 y criticó la mediocre producción de su director, objetando que
no se practicara la pintura de paisaje siendo Santiago una ciudad rodeada de vistas
pintorescas.8 También el pintor francés Ernest Charton, quien residió algunos años en
Chile, llegó al límite de retar a un “duelo de pinceles” al director napolitano en 1859,
acusándolo de no ser capaz de pintar una escena tomada del natural, denunciando
con ello lo anticuado del método de enseñanza que estaba implantando en Chile.9
el escultor José Miguel Blanco, importante promotor de las Bellas Artes en Chile. Junto a Smith, Blanco formó parte de
la primera generación de alumnos de la Academia, aunque en cursos diferentes. Evocando los recuerdos de su padre,
relata que “Terminado que hubo la guerra, Smith instaló su taller frente a la Academia de Pintura. Este fue un lugar de
reunión y estudio para los jóvenes artistas”. BLANCO, Arturo. Antonio Smith, pintor de paisajes y caricaturista chi-
leno. Santiago: Anales de la Universidad de Chile, 1954, 166. No contamos con documentos para confirmar la exactitud
de esta ubicación, pero en los textos se reitera con mayor o menor precisión, por lo que no debieran caber dudas de la
proximidad física de ambos lugares.
5 En una primera instancia, las aulas se instalaron en las antiguas dependencias de la Real Universidad de San Felipe,
establecimiento de educación superior de la época colonial y que durante la primera mitad del siglo XIX se encontraba,
al igual que toda la ciudad, en permanente mutación hacia la vida republicana. El edificio de la Academia ocupaba el
predio en el que desde 1884 está emplazado el Teatro Municipal, en pleno centro de la ciudad.
6 En 1873, Pedro Lira escribe Artistas nacionales, comentando la obra de Cosme San Martín y Nicolás Guzmán, dos
colegas suyos de la Academia dirigida por Kirchbach. No reconoce ningún mérito al director, por el contrario, denuncia
el desprecio que este hace del trabajo con el color y le atribuye los errores que en este sentido acusa San Martín. Ver
LIRA, Pedro. Artistas nacionales, Revista de Santiago. Tomo II, 1873, pp. 696-702.
7 GREZ, Vicente. Antonio Smith: historia del paisaje en Chile. Santiago: Establecimiento tipográfico de La Época,
1882, p. 70.
8 VALDÉS, Catalina (Org.). Cuadros de la naturaleza en Chile la pintura de paisaje y su literatura artística du-
rante el siglo XIX. Santiago, Ediciones UAH, 2014.
9 Ver sobre esto el artículo de DE LA MAZA, Josefina. Duelo de pinceles: Ernesto Charton y Alejandro Ciccarelli.
Pintura y enseñanza en el siglo XIX chileno. GUZMÁN, Fernando y MARTÍNEZ, Juan Manuel (Orgs.). Vínculos
artísticos entre Italia y América. Silencio historiográfico. Santiago: Universidad Adolfo Ibáñez, Museo Histórico
Nacional, CREA, 2012, pp. 218-220.

71
También los alumnos, por supuesto, habían tomado partido a
favor o en contra de Ciccarelli, siendo Smith del grupo de estos
últimos. De hecho, el joven aspirante a pintor solo duró un par
de años en la institución, puesto que la abandonó tan pronto se
dio cuenta que no conseguiría ahí la formación de paisajista que
esperaba tener. De esa época datan las caricaturas que ilustran
esta disputa y que ya hemos analizado en otra ocasión.10 [Figura
1 y Figura 2]

Pero el antagonismo entre Smith y la institución del arte


se proyecta más allá de la figura de Ciccarelli; tiene alcances
políticos y se verifica en la autonomía con la que procedió al
abrir un taller independiente, vender allí su obra y no pretender
–al menos no hay registros de ello- integrarse a la Academia
como profesor luego de su regreso de Europa. De hecho,
podemos encontrar en la figura de Antonio Smith los que deben
ser los primeros indicios de un mercado del arte especializado
en pintura en el contexto chileno, puesto que él mismo actuó
como improvisado marchant de obras propias y de otros autores
que trajo desde Italia. Sabemos por ejemplo, que fue él quien
importó las pinturas de los hermanos florentinos Carlo y Andrea
Marko y del pintor alemán George Saal, exhibidas con gran
Figura 1 - Antonio Smi- suceso en la Exposición de 1872 en Santiago. Esta práctica interviene también en las
th: Un artista ‘comme il dinámicas del taller, puesto que es en aquel lugar
faut’ (autorretrato) n. 1.
El Correo literario. San-
donde se encuentra el artista con sus potenciales
tiago, 1858. Fuente: www. compradores. Si bien no contamos con catálogos
memoriachilena.cl/ de ventas (ni hay indicios que algo así existiese)
podemos reconstruir a partir de algunas fuentes
que Smith no cedía a solicitudes o encargos,
dando pie para la elaboración del mito del artista
miserable pero autónomo:
Mas tarde algunos opulentos llegaron a golpear
a las puertas de su taller. Ellos saben que a pesar
de su pobreza Smith los obligó a hacer antesala.11
Figura 2 - Antonio Smith,
Caricatura de Alessandro Esta dinámica nos pone también en posición
Ciccarelli n. 8. El Correo
literario. Santiago, 1858. de observar el proceso de formación del gusto
Fuente: www.memoria- burgués en un contexto distante pero muy atento
chilena.cl/ a las modas y hábitos parisinos. La obra de arte,
y muy particularmente el paisaje, se revela como un bien preciado de consumo y
distinción, lo que convierte al taller en una extensión de galerías y vitrinas de almacenes

10 Sobre la relación entre Smith y Ciccarelli, ver VALDÉS, Catalina. Comienzo y deriva del paisaje de un paisaje. PE-
LIOWSKI, Amarí y VALDÉS, Catalina (Orgs). Una geografía imaginada. Diez ensayos sobre arte y naturaleza.
Santiago: Metales Pesados, 2014, pp. 83-113.
11 GREZ. op. cit. (1882), 75.

72
donde era posible adquirir piezas de arte decorativo y de lujo que comenzaban a
abrirse en Santiago y Valparaíso por esos años.

Según vemos en los varios comentarios de prensa y de la incipiente crítica de arte en


revistas especializadas, para la Exposición del Mercado de 1872, la contraposición
entre la institución oficial de enseñanza artística y el taller de Smith se identifica
como una condición constitutiva del campo artístico local junto con la evidencia que
la pintura del entorno de artista era mayoritaria y superaba en calidad a la realizada
en el contexto académico, incluso cuando se trataba de los mismos pintores.12 Así lo
expresaba Vicente Grez: “Por mucho tiempo los jóvenes que penetraban los umbrales
de la academia chilena de bellas artes podían haber leído las palabras terribles que el
Dante coloca en las puertas de su infierno: ‘Abandonad toda esperanza vosotros los
que entráis aquí’”.13

¿Cuáles fueron las condiciones particulares que hicieron del taller de Smith un espacio
de productiva innovación artística?

El interior del taller


El historiador del arte francés Philippe Grunchec investigó las condiciones de
producción de obra al interior de la École de Beaux Arts de París, sentando un
precedente para pensar los potenciales efectos que un factor tan mundano como la
iluminación del aula, por ejemplo, tenía sobre el arte y su aprendizaje. Alain Bonnet
por su parte, ha reflexionado en torno a la inscripción de la figura del artista asociada
a la representación de su espacio de trabajo.14 Siguiendo estos dos puntos, quisimos
preguntarnos por el tipo de iluminación, la distribución de los espacios de trabajo,
los materiales disponibles, en fin, la forma de trabajo en el taller de Smith y a partir
de esto, verificar si es posible reconocer una inscripción grupal de los pintores que
allí acudían.

Sabemos que para el periodo que nos ocupa, en Santiago la iluminación artificial se
realizaba por medio de un precario suministro de alumbrado a gas15. Por las memorias
de Carmen Smith, la hija de nuestro pintor, sabemos además que el taller de su padre
se ubicaba en la propia casa familiar:

12 Hace falta delimitar con mayor precisión el perfil de los jóvenes que asistía exclusivamente a la Academia,
cuáles los que participaron en ambos lugares y quiénes frecuentaban solo el taller de Smith; pero en una pri-
mera mirada, se desprende que el grupo era heterogéneo y reunía artistas que irían más tarde a posicionarse
en bandos opuestos del campo del arte local. Josefina de la Maza ha abordado las posiciones ideológicas y
políticas de varios de los artistas chilenos, estudiando las agrupaciones y órganos editoriales que de esto se
desprenden y la incidencia de sus dinámicas al interior del campo artístico durante la segunda mitad del
siglo XIX en DE LA MAZA, Josefina. De obras maestras y mamarrachos. Santiago: Metales Pesados, 2014.
13 GREZ, Vicente. Antonio Smith. Revista de Santiago. Santiago: Tomo III, 1872, 666.
14 GRUNCHEC, Philippe. Les Concours des Prix de Rome. París: ENSBA, 1996. BONNET, Alain, Artistes en groupe.
La représentation de la communauté des artistes dans la peinture du XIXe siècle. Rennes : Presses Universitaires
de Rennes, 2007 y junto a JAGOT, Hélène, L’artiste en représentation - Images des artistes dans l’art du XIXe siècle.
Lyon: Fage, 2012. También DENEER, Eveline, Compte-rendu du colloque ‘Apprendre à peindre!’ Les ateliers privés
à Paris de la fin du XVIIIe siècle à 1863, Coloquio internacional (16 y 17 junio 2011), Université François-Rabelais,
Tours, organizado por France Nerlich y Alain Bonnet. Disponible en http://blog.apahau.org/ (25-5-2015).
15 TORNERO, Recaredo Santos. Chile ilustrado. Guía descriptivo del territorio de Chile, de las capitales de las
provincias, de los puertos principales. Valparaíso: Libr. i agencias del Mercurio, 1872, p. 21.

73
[…] el taller de mi padre pudo instalarse también en ella, en la pieza más grande, con
salida al jardín. Todos los artistas de la época frecuentaban este taller y se reunían allí
a charlar y a pintar, pues cada uno tenía preparado su caballete. A través de la ventana
veíase el jardín arreglado por las propias manos de mi madre y en el cual plantó ella sus
flores predilectas…16

Se aprovechaba, por tanto, la luz natural y se mezclaba el ambiente familiar con el de


camaradería, algo que probablemente ocurría menos en la Academia. La imagen de
un taller lleno de caballetes nos lleva a pensar en el tipo de pintura que se practicaba
en este lugar. Se trataría probablemente de telas de formato pequeño y mediano,
algo que se corrobora con las obras producidas y expuestas por estos artistas en la
época. En cuanto a las técnicas, no hay indicios de ejercicio de dibujo lineal ni de
figuras humanas, así como tampoco de medios “sueltos” como el boceto, el croquis o
la acuarela; por otro lado, no se mencionan ni conocemos pinturas de proporciones
murales. Los caballetes, las telas medianas, la luz natural y el ambiente familiar son
entonces los elementos que podemos agregar a nuestro taller imaginario. El tipo de
materiales lo podemos deducir de las obras mismas: salvo contadas excepciones que
revisaremos después, los paisajes de esta época son realizados al óleo sobre tela y
presumiblemente no muy apegados a un dibujo previo. Tal como relata Grez: “Smith
se sentaba frente de su caballete, tomaba sus pinceles i formaba sus colores; luego se
reconcentraba un instante y aparecían vagamente las formas de sus montañas, sus
aguas trasparentes i sus cielos brillantes”.17

Probablemente, Smith trabajaba con los tubos metálicos de óleo ya preparados, que
aparecieron en Inglaterra en los años 40, siendo rápidamente difundidos por toda
Europa. Es muy posible que él haya adoptado su uso durante su estadía en Florencia a
comienzos de la década de 1860, en el tiempo que pasó junto a Carlo Marko.18

En suma, había – esto es algo que señalan todas las voces- una suerte de relajo en el
taller. Tomemos, por ejemplo, el comienzo de la memoria escrita por Vicente Grez:
Pocas historias más simpáticas para ese pequeño mundo de literatos, de artistas i
de bohemios santiaguinos que la de Antonio Smith: vivió tanto tiempo entre ellos,
consagrado mas a los trabajos de su arte, a la charla fecunda i amena de los talleres […]
que es imposible que no se recuerde por mucho tiempo a ese espíritu poético y melancólico
vaciado en un molde mefistofélico.19

La práctica del género de paisaje surge en Chile asociada a esta actitud menos exigente
y desvinculada de una institución, lo que contrasta con la permanente demanda y
consecuente queja en relación a la pintura de historia que no encuentra un cultivo
adecuado en la Academia. Como sabemos, la jerarquía de los géneros establecida desde
16 SMITH, Carmen. Mis Memorias. Santiago: Impr. El imparcial, s/f, p. 22.
17 GREZ, Vicente. op. cit., p. 71.
18 Ver Catalina Valdés, Un pintor chileno en el Café Michelangelo. Vínculo entre la Escuela de Staggia y la pintura
de paisaje chilena. En: GUZMÁN, Fernando y MARTÍNEZ, Juan Manuel (Orgs.). Vínculos artísticos entre Italia y
América. Silencio historiográfico. Santiago: Universidad Adolfo Ibáñez, Museo Histórico Nacional, CREA, 2012, pp.
231-244.
19 GREZ, Vicente. Antonio Smith: historia del paisaje en Chile. Santiago: Establecimiento tipográfico de La Época,
1882, 5-6.

74
Félibien se subvierte en múltiples formas en la práctica de la pintura latinoamericana
del siglo XIX. El desarrollo del paisaje en Chile es uno de estos casos y es interesante
atender tanto a su gestación como a su fortuna crítica e inscripción historiográfica.
No solo en términos de género pictórico se ofrecía este taller como un espacio de
relajo de las normas oficiales. Desconocemos si Smith exigía algún tipo de condición
de ingreso o permanencia ni si existía algún programa formal de estudios, pero resulta
interesante señalar que a diferencia de la Academia de Pintura, este era un espacio
abierto para las mujeres: una pintora de la que no tenemos mayores referencias, María
del Tránsito Prieto, es mencionada por la hija del pintor entre los asiduos al taller, y
figura en los registros de las exposiciones de esos años con paisajes propios y copias.

En un ambiente conservador y poco dado al cultivo del ocio como era el Santiago de
esos años, una figura como la de Smith resultaba simpática, excéntrica… cualquier
cosa, menos seria. Así, el espacio del taller no era solo un lugar “alternativo” en términos
de formación artística, sino también de hábitos de sociabilidad. Los recuerdos de
Onofre Jarpa dan pistas de la enérgica dinámica que se experimentaba en el lugar:
Todos trabajábamos a un tiempo sin darnos reposo. Viendo esto Antonio Smith que no
pecaba de activo en sus trabajos, dibujó en un biombo que nos servía para dividir en dos
el gran taller, una caricatura. Representaba a Pedro Lira pintando febrilmente, rodeado
de sus ayudantes y de una multitud de telas de todos los tamaños.20

Antonio Smith estableció una relación de proximidad y camaradería con sus


discípulos; no encarnó la figura de autoridad paterna, a la manera de David, sino
más bien el de cabeza de generación; y el grupo, siguiendo a Bonnet (2007), la de una
cofradía de artistas21.

El taller expandido
Los muros del taller no solo se abrían al jardín de doña Rosaura, sino que se
expandieron hacia la naturaleza. La práctica de pintura al aire libre había sido
desarrollada intensamente por artistas viajeros como Rugendas, Charton o Grashof,
y sería tema de otro trabajo analizar las diferencias entre unos y otro. Como sea, la
práctica fue recibida como una innovación. Así lo recuerda el pintor Onofre Jarpa:
Uno en pos de otro llegaron a pintar, todos los del grupo y como el paisaje nos presentaba
más fácil que la figura para comenzar, por contar con la dirección de Antonio Smith.
Con él, pintábamos Pedro Lira y yo, nuestros primeros ensayos; copiando al principio y
después del natural. Para esto salimos a los alrededores de Lo Contador, Macul y El Salto
[lugares más campestres del Santiago de entonces].22 [Figura 3 y Figura 4].

20 BLANCO, Arturo. Antonio Smith, pintor de paisajes y caricaturista chileno. Santiago: Anales de la Universidad
de Chile, 1954, 167.
21 En relación a esto, el crítico de arte Vicente Grez reconocía las potencialidades del grupo de jóvenes aprendices como
primera escuela nacional, pero no se sentía satisfecho y exigía de Smith mayores muestras de autoridad: “Smith no es ni
debe ser solo el artista caprichoso que hace cuadros para el público; tiene todavía una obligación i una mision mas: es
el maestro, es el jefe de una escuela que debe sostener haciéndola triunfar por medio del estudio unida a la poesía ideal
de su pincel”. GREZ. op. cit. (1872), p. 669.
22 BLANCO, Arturo. Antonio Smith, pintor de paisajes y caricaturista chileno. Santiago: Anales de la Universidad
de Chile, 1954, 166.

75
Figura 3 - Onofre Japa, Una de las fuentes más notables del corpus
Laguna de Aculeo, 1878.
que estamos comentando es el Diccionario
Óleo s. tela. Col. MNBA,
Chile. biográfico de pintores, publicado por Pedro
Lira en 1902 [Figura 5]. Smith es uno de los
Figura 4 - Pedro Lira, cuatro artistas nacionales que figuran con
Cajón del Maipo, s/f. Óleo entrada entre los más de trescientos artistas reseñados. A diferencia de estas, que
s. tela. Banco Central de
Chile.
siguen más o menos el tono “objetivo” propio del género de diccionario biográfico,
el texto dedicado a Smith está atravesado por la proximidad y las anécdotas. En
referencia a la práctica del plein air, Lira recuerda:
[...] fue particularmente en los alrededores de Santiago o en puntos no muy alejados de
la capital donde buscó más constantemente los temas de sus cuadros verdaderamente
originales, pues muchos de ellos eran simples imitaciones de grabados europeos que él
coloreaba a su fantasía y según sus recuerdos de viaje.23

Hemos pensado que al mencionar los “recuerdos


de viaje” de Smith, más allá de un ejercicio mental
podría referirse de manera implícita a algún
cuaderno de bocetos o bitácora de viaje, sin que
hayamos dado con material que confirme esta
interpretación. Los únicos dibujos que nos han
quedado de este artista, fuera de las caricaturas,
son, al menos en nuestro conocimiento, dos paisajes
sobre papel (una aguada y una tinta) realizados
en el periodo de mayor productividad del taller.
Los nombres indican lugares de las proximidades
de Santiago, por lo que podríamos atribuirles el
Figura 5 - Pedro Lira, haber sido hechos al aire libre [Figura 6]. Por otro
Portada del Diccionario
lado, es posible reconocer en los pequeños cuerpos
biográfico de pintores.
Santiago: Litr. Esmeralda, que Smith incluye en algunos de sus paisajes
1902. a la figura del pintor en plein air, vestido sin
23 LIRA, Pedro. Diccionario biográfico de pintores. Santiago: Imprenta Esmeralda, 1902, 371.

76
formalidades, a la manera de Courbet
en su famoso autorretrato [Figura 7].

Atendiendo a las críticas que sus pro-


pios contemporáneos le hacían, y a co-
mienzos del Puede ser que el propio
Smith no fuera un pintor completa-
mente original y radicalmente inno-
vador, ni siquiera un gran paisajista,
pero una cosa es cierta: el grupo de ar-
tistas que se formó en torno a su taller
persistió en la pintura de paisaje hasta
el punto de convertirla en una suerte
de “género nacional”.24

La contraposición del taller de Smith


y la Academia oficial dio la primera
señal de autonomía dentro del campo
del arte en el contexto chileno del siglo XIX. La articulación de un grupo de artistas Figura 6 - Antonio
Smith, Peñalolén, 1874,
en torno a una figura inspiradora, el privilegio del paisaje y de la práctica del plein tinta sobre papel, 22,5 x
air, sumado a la proximidad de os artistas con actores de otros campos de la cultura 28,5 cm. MHN, Chile.
y el estímulo de una literatura artística como la aquí citada, son signos que los
propios contemporáneos reconocieron como partes de un proceso de conformación
espontánea de un arte nacional. Se trata de un proceso que atinge a un área bien
acotada del ámbito artístico de la época y no de uno que emerge como consecuencia
de políticas públicas o inversiones privadas con intereses políticos y alcance nacional.
En este sentido, el ejercicio de reconstrucción del taller de Antonio Smith, entendido
como episodio y como lugar, tensiona la historiografía convencional de la historia del
arte chilena, que tendió a ver en el paisaje y, específicamente, en las obras de estos
pintores, una producción acorde a las dinámicas fundacionales de una imagen de

Figura 7 - Antonio
Smith, Santiago desde
Peñalolén, c. 1875. Colec-
ción particular.

24 VALDES, Catalina. Por un paisaje nacional: la montaña como imagen de Chile en la pintura del siglo XIX. BORS-
DORF, Axel et al. (Orgs.) Los riesgos traen oportunidades. Transformaciones globales en los Andes sudamerica-
nos. Santiago, Instituto de Geografía-PUC, Instituto interdisciplinario para estudios de la montaña (IGF)-Academia de
Ciencias Austriaca, Instituto de Geografía-Universidad de Innsbruck, Universidad de La Frontera, 2014.

77
nación en los primeros decenios de la república. Es así como la recepción posterior,
inscrita en términos de un relato histórico basado en la noción de continuidad, así
como la fortuna crítica de las pinturas, el gusto y el éxito comercial del género del
paisaje en el ámbito local, han pulido la condición alternativa y espontánea que
caracterizó a esta producción en sus inicios. La solidificación de tal relato ha hecho
del paisaje decimonónico la expresión más “auténtica” de la pintura chilena. Así,
aquello que se inició como una iniciativa picante, poética, imprevista pasó a la historia
como una voluntad oficial.

78
“Mon Atelier de Catumbi”
e “Debret em seu Ateliê”:
interpretações e invenções acerca
da vida do artista do Brasil

Elaine Dias 1

Conhecemos o lugar de espaço de criação de Jean-Baptiste Debret, sobretudo,


através da aquarela enviada a Paris ao irmão François Debret, em 1816 [ver Figura
2 da Apresentação]. Não incluída no álbum Voyage Pittoresque et Historique au
Brésil,2 ela pertenceu ao irmão até sua compra por colecionadores de Paris, passando
finalmente às mãos de Raymundo Castro Maya, em cuja coleção ela permanece
até hoje. Uma outra tela, de autoria duvidosa a Jean-Pallière mas possivelmente
uma “fabricação” do marchand Heymann,3 também foi considerada como um
dos espaços de criação de Debret no Brasil. Menos conhecida do público, ela
contribuiu para uma certa ilusão em torno das referências do artista, compostas
por elementos bastantes distintos daqueles presentes na aquarela de 1816.

Em Mon atelier de Catumbi, ao qual me debruçarei mais longamente - temos a reunião


de objetos e algumas telas reveladoras de suas referencias artísticas – onde notamos
naturezas-mortas e uma Madonna de Rafael, entre outros - livros, a paleta do artista,
a grande tela que permanece improvisadamente em uma cadeira substituindo um
cavalete, e segura por finas cordas, reproduzindo a indumentária que veste o manequim
à direita, futuro retrato de alguém ainda não revelado, mas passível de interpretação.
1 Professora Adjunta do Departamento de História da Arte da UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo, São
Paulo, Brasil.
2  DEBRET, Jean-Baptiste. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil ou Séjour d’un artiste français au
Brésil. Paris: Firmin Didot Frères, 1834-1839, 3v.
3  BANDEIRA, Júlio, LAGO, Pedro Correa do. Debret e o Brasil. Obra Completa (1816-1831). Rio de Ja-
neiro: Capivara, p.681.

79
O artista não se autorretrata, e a intenção parece mostrar ao irmão François o seu
lugar no Rio de Janeiro, o seu espaço de criação repleto de suas referências, e de
sua atuação como pintor, já com uma encomenda em curso. Embora Debret não se
autorretrate, a paleta deixada sobre uma cadeira e o retrato inacabado sobre outra,
demonstram a interrupção da pintura e, portanto, a “presença” do artista, que deixa
claro a sua condição de trabalho bem sucedida. O atelier aqui ganha também o
estatuto de sucesso profissional, justamente pela presença marcante do retrato. Este,
disposto no centro da tela, relaciona-se às possíveis encomendas que Debret parece
conseguir já em maio de 1816, momento em que presencia a cena do envio das tropas
portuguesas a Montevideu, realizando algumas pequenas telas sobre o evento. Em
carta destinada ao seu amigo La Fontaine em Paris, datada de novembro de 1816,
Debret menciona que o evento ocorrido na Praia Grande lhe rendeu algumas telas:
Ici la scène se rembrunit le soleil éclaire ce jour funeste où j’eu l’honneur de faire des
croquis d’après nature de la famille Royale pendant une revue qui se fit à Praya Grande,
deux heures après on apprit à Rio de Janeiro qu’un artiste français qui était à la revue
avec M. Lebreton avait fait en quelques minutes les portraits en pieds de leur majesté.4

Segundo Debret, o fato teria provocado a ira de Nicolas-Antoine Taunay, ressentido


na sua tentativa constante de tornar-se artista da corte de d. João. Debret parecia estar
ocupando este lugar.

No catalogue raisonné de Jean-Baptiste Debret, os autores mencionam também esta


carta, e que o retrato na tela deveria ser de d. Pedro I em trajes militares:
Era seu primeiro trabalho no Brasil e a pequena pintura serve para mostrar ao irmão seu
rápido sucesso, pois estava prestes a acabar um retrato de corpo inteiro do ainda príncipe
real d. Pedro. Ele se refere aos ‘esboços d’après nature da família real’ que fez na Praia
Grande (Niterói) durante uma revista das tropas numa carta de novembro de 1816.5

A figura se aproxima de outra feita por Debret em aquarela, mas, até onde pesquisamos,
não temos indícios da realização da tela em tamanho natural. Invenção do artista
para indicar ao irmão algo que seria realizado futuramente, de uma encomenda já
certa? Tela inacabada ou perdida? É certo que Debret realiza alguns retratos de d.
João neste momento, mas quase todos em meio corpo, com exceção do posterior
retrato majestático não realizado em tamanho natural, pintado em tamanho menor e
destinado à gravação de Charles Simon Pradier.

Mon atelier de Catumbi mostra, no entanto, uma certa frieza e vazio no espaço do
pintor e parece distanciar-se dos momentos vividos por Debret no ateliê de seu mestre
Jacques-Louis David. O artista havia viajado com Jacques-Louis David a Roma,
ajudando-o em seu ateliê, e podia certamente conviver com os outros artistas em
Paris, os quais eram bastante presentes no atelier do mestre. Em Roma, Debret, com
apenas 14 anos, teria auxiliado David quando executava o Juramento dos Horácios,
tornando-se testemunho dos principais eventos do nascimento e exposição da tela na
Itália, informações que podemos acessar na publicação de Alexandre Peron, Éxamen
4  JOUVE, Claudine Lebrun. Nicolas-Antoine Taunay. 1755-1830. Paris: Arthena, 2003, p. 400.
5  BANDEIRA, Julio; LAGO, Pedro Correa do. Op. cit..p. 119.

80
du tableau des Horaces, redigidos a partir dos relatos dados pelo próprio Debret
naquele convívio:

M. Debret, peintre d’histoire, parent et élève de David, qui n’avait alors que quatorze
ans, aux souvenirs et à bienveillance duquel je dois les principaux traits de cette notice.
[...] Voici le renseignement tel qui m’a été donné par M. Debret, témoin oculaire et
auriculaire, et tel que je le rapporte.6

Já em Paris, segundo Severine Sofio, David contava com 4 ateliês no período do


Império, sempre descritos como atelier-École, sendo “une pour travailler seul, une
pour travailler avec ses élèves les plus confirmés, une pour recevoir ses élèves les
plus jeunes et (pendant un temps) une pour recevoir ses élèves femmes.”7 Como nos
destaca Philippe Bordes, o ateliê de David era um lugar onde havia um sentimento
de “reciprocidade”, “fraternidade”, “emulação” e “troca,”8 ainda que “competitiva.”9
Trazia a marca do “aprendizado artístico”, da “construção pessoal” e da “maturidade
individual,”10 características estas que conhecemos mais a fundo especialmente pelos
relatos de seu aluno Delecluze.11 O espaço do ateliê ganhava, assim, configurações
diversas, mas se confirmava, efetivamente, como um lugar didático, revolucionário e
de prestígio.

Estas noções foram certamente apreendidas por Debret tanto em Roma quanto em
Paris. O atelier do artista no Brasil, guardadas as devidas proporções e distantes do
atelier-École, trazia os instrumentos de sua projeção, criação e formação artística,
imprescindíveis para a construção de suas representações: cópias das principais
escolas artísticas, a paleta e o tento, a marcante presença do manequim. Faltava,
evidentemente, alguma pista em torno do modelo vivo ou do estudo do nu, centrais
à sua atuação, mas as condições locais talvez não permitissem a Debret ousar na
incorporação do modelo. Por outro lado, a ausência de cópias de estátuas antigas em
gesso é notável, elemento sempre marcante nas representações de ateliês.

Debret, que chegara ao Rio de Janeiro como futuro professor de uma Escola de
Ciências, Artes e Ofícios, talvez esperasse transformar seu atelier em algo semelhante
ao que tivera na França, um convívio constante entre mestre e aluno, mas a aquarela,
realizada no mês de agosto de 1816, seis meses depois de seu desembarque, mostrava
apenas o local de trabalho solitário em frente ao manequim vestido com trajes
militares. Poucos meses depois de sua chegada e vivendo em um contexto bastante
distinto, Debret está ainda longe do tal ambiente de troca e reciprocidade. Distancia-
se ainda da descontração e cultura mostrado por algumas cenas de ateliê, onde o
artista ora se representa em seu trabalho, como vemos na tela em que Labille Guiard

6  PERON, Alexandre. Examen du tableau des Horaces. Paris: Imprimerie des Ducessois, 1839, pp. 32-33
7  SOFIO, Severine. La vocation comme subversion. Artistes Femmes et anti-académisme dans la France révolution-
naire. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. Paris, 3, no. 168, 2007, p. 9
8  BORDES, Philippe. Jacques-Louis David et ses élèves: les strategies de l’atélier. Perspective. La Revue de l’INHA,
Paris, 1, 2014, p. 4
9  Ver LAFONT, Anne. Éditorial. Perspective. La Revue de l’INHA, Paris, 1, 2014; BORDES, Philippe. Op. cit., p 5
10  JOBERT, Bathélémy Jobert. Thomas Crow, L’Atelier de David : émulation et revolution. Revue de l’art, 126, 1999, p.
92; BORDES, Philippe. Op. cit, p. 5
11  DELECLUZE, M.E.J. Louis David, son école et son temps: souvenirs. Paris: Imprimerie Chez Bonaventure, 1855.

81
ou Madame Vincent pinta Vien12 em um descontraído ambiente, ou mesmo o atelier
de Jean-Baptiste Isabey, espécie de retrato coletivo intitulado Reunion d’artiste dans
l’atelier d’Isabey, pintado por Louis Léopold Boilly, onde os artistas se divertem
admirando a pintura, prática mais comum da década de 1790.13 Por outro lado, estas
cenas também valorizam outros gêneros artísticos frente à pintura de história, caso,
sobretudo de Boilly, de Isabey e de Taunay, presentes na tela. Nesse ponto, Debret se
coloca. Ainda que não represente o ambiente descontraído ou o chamado Atelier-
École, uma vez que a Escola que integrava sequer havia sido fundada, ele centraliza o
gênero do retrato e sua função de propaganda e afirmação do poder no Reino recém
instalado de Portugal, Brasil e Algarves, destacando a figura do militar, ainda que
inacabada.

Em seu ateliê, um dos acessórios chama especial atenção. O monumental manequim


tem presença marcante. Ele é um instrumento importante no processo de criação
a partir da observação. Ao lado das etapas comuns para a representação do corpo,
entre as quais se destacam o modelo vivo e o estudo da estatuária, o manequim era
um acessório bastante presente nos ateliers dos artistas, substituindo não apenas o
modelo mas os retratados, evitando poses demasiadamente longas.

Jane Munro, curadora de uma exposição no Musée Bourdelle, em Paris, intitulada


Mannequin d’Artiste, Mannequin Fétiche - , realizada no primeiro semestre de 2015
- é a principal autora do catálogo que nos fornece informações preciosas sobre esta
prática aqui mencionadas. Ela destaca que o manequim, “companheiro silencioso do
artista”, não era comumente mostrado nas representações de ateliers: “en trahissant
le dur labeur qui entre dans l’exécution d’un tableau, il affaiblit au contraire l’image
de l’artiste en génie inspire.”14 No decorrer do século XIX, entretanto, vemos um caso
extraordinariamente explícito, como o Retrato d’Henry Michel Levy, pintado por Edgas
Degas, dotado de conotações múltiplas, espécie de corpo jogado ao chão, manipulado
pelo artista Michel-Levy em pé e firme na tela.

Acessório importante ao estudo das vestimentas no corpo, do seu caimento e busca


da naturalidade próxima às proporções humanas, o manequim esteve no atelier do
artista ao menos desde o século XV. Giorgio Vasari relata na Vida de Fra Bartolomeo,
que o artista usava um manequim em madeira articulado:
Aveva opinione fra’Bartolomeo quando lavorava tenere le cose vive innanzi, e per poter
ritrar panni et arme et altre simil cose fece fare un modello di legno grande quanto il
vivo che si snodava nelle congenture, e quello vestiva con panni naturali dove egli fece di
bellissime cose, potendo egli a beneplacito suo tenerle ferme fino che egli avesse condotto
l’opera sua a perfezzione, il quale modello, così intarlato e guasto come è, è apresso di noi
per memoria sua.15

Outros artistas europeus, como Durer, usava manequins para o estudo das proporções e
12  Ver também SOFFIO, Severine. Op. cit..
13  BORDES, Philippe. Op. Cit., p.7.
14  MUNRO, Jane. Mannequin d’Artiste. Mannequin Fétiche. Paris: Paris Musées, 2015, p. 2
15  VASARI, Giorgio. Le Vite dei più eccellenti pittori, scultori e architetti. Roma: Grandi Tascabili Economici New-
ton, 1997, pp. 594-595.

82
mecânica do movimento, descritos em seu tratado sobre o tema, o Die Proportionslehre
(1523), maneira incorporada por outros artistas alemães16. Estes modelos, muitas
vezes esculpidos em terracota, cera ou papel, associados a observações de modelo
vivo, auxiliavam os artistas em seus estudos de vestimentas, de luz e de sombra, como
também foi o caso de Nicolas Poussin, conforme nos conta Bellori, relatado por
Munro em seu catálogo:
Selon Bellori, les petits modèles de cire avaient une hauteur d’’un demi-palme’ (environ 11
cm), et Poussin les disposait en fonction de la scène qu’il projetait de peindre. Il fabriquait
ensuite des figures plus grandes, les habillait de morceaux de fine toile ou de batiste,
afin de déterminer les zones d’ombre et de lumière, et de parvenir ainsi à un équilibre
chromatique. Complétée par des études sur modèle vivant, cette méthode permettait
à l’artiste d’arrêter ses compositions. Bien que sommaires, les dessins préparatoires
contenaient tous les éléments contribuant au mouvement comme à l’expression de l’oeuvre
finale.17

Sua função dentro do atelier tornou-se imprescindível para estes estudos, integrando
manuais de desenho, como aquele de Crispijn Van den Passe, Van’t Licht der Teken en
Schilder Konst, publicado em Amsterdã entre 1643 e 1645, que:
contient un certain nombre de planches représentant un ‘homme faict de bois’, qui pouvait
être ‘courbé, plié, couché’ comme un être humain, et figé dans telle ou telle position à
l’aide d’une clé en fer introduite à l’intérieur des marques figurant sur le haut du torse du
‘manekin’.18

Este era também utilizado pelos artistas holandeses, como vemos em L’Homme au
Mannequin”, tela de Van den Valckert, [datada de 1624], onde o objeto aparece muito
bem feito e articulado.19

O acessório, que ganhará cada vez mais precisões mecânicas, aparece, entre outros,
em um tratado intitulado Sur le Mannequin, de E.-J.-J. Barillet, de 1809, onde autor
retoma sua utilização já presente nos escritos de autores como Roger de Piles e Charles
Du Fresnoy,20 e no verbete “Desenho” na Encyclopédie, de Claude-Henri Watelet,
que discorre sobre seu modo de utilização e seus materiais,21 criticando também
o instrumento, ressaltando a “ameaça do equilíbrio da tela” em razão da “formas
ridículas”, “incorretas” e frias do acessório22. Essa conotação negativa aparece também
em uma crítica de Diderot a uma tela de Alexandre Roslin, Un père arrivant dans
sa terre, em 1765, pela falta de expressão da figura “mannequinée”: “S’il ne faut pas
16  MUNRO, Jane. Op. Cit., p.15.
17  “Quando voleva fare i suoi componimenti, poiché aveva conceptia l’invenzione, ne segnava uno schizzo quanto gli
bastava per interderla; dopo formava modeletti di cera ti tutte le figure nelle loro attitudini in bozzette di mezzo palmo,
e ne componeva l’istoria o la favola di relievo, per vedere gli effeti naturali del lume dell’ombre de’corpi. Successivamente
formava altri modelli più grandi e li vestiva, per vedere a parte le acconciature e pieghe de’panni su l’ignudo, et a questo
effeto si serviva di tela fina o cambraia bagnata, bastandogli alcuni pezzetti di drappi per la varietà de’colori.” BELLORI,
Giovanni Pietro. Le Vite de pittori, scultori e architetti moderni. Turin: Giulio Einaudi, 1976 (1672), pp. 452-453.
Apud MUNRO, Jane. Op. Cit., pp. 17-18.
18  Idem, p. 35.
19  Idem, ibidem.
20  Idem, p.4 8
21  Idem, p. 43.
22  Idem, p. 76

83
habiller une personne comme un mannequin, il ne faut pas habiller un mannequin
comme une personne.”23 Por outro lado, o acessório torna-se cada vez mais prático e
próximo do corpo humano, como o “manequim neoclássico” da Academia de Carrara,
fundada em 1796,24 ou mesmo neste modelo feito em madeira com revestimento de
algodão, embora diverso e mesmo oposto ao anterior, produzido por Paul Huot em
Paris, um dos mais renomados fabricantes de manequins para artistas do século XIX.
Outros artistas, como o inglês Gainsbourough, tinha manequins em latão e palha
usados muitas vezes para a composição de seus retratos, recebendo duras críticas a
esse respeito do crítico Roger Shanhagen, conforme nos relata Munro: “suas pinturas
nunca nos dão a ilusão de estarmos em presença de pessoas de carne e osso” ou que
suas figuras “pertencem certamente a uma outra raça de criaturas.”25

Debret parece ter empregado esta mesma dureza e artificialidade em suas obras no
Brasil, conforme vemos, por exemplo, na tela da Coroação de D. Pedro, características
ampliadas pela escassez de modelos vivos no Brasil. Neste retrato inacabado no
ateliê, não há como julgarmos, restando, possivelmente, esta aquarela, onde vemos o
jovem Pedro com trajes militares. O certo é que o manequim está vestido da mesma
forma, e Debret pôde certamente observar com calma e precisão todas as medalhas
e detalhes da faixa e do uniforme dispostos no corpo artificial, não dependendo da
pose prolongada e talvez pouco acessível de D. Pedro. O mesmo acontecera no atelier
de David. Um manequim foi vestido com “as roupas do general, a espada, as botas e
o chapéu” quando o artista retratou Bonaparte atravessando os Alpes segundo nos
conta Delecluze26. Apesar das visitas de Bonaparte ao pintor, era preciso observar
demoradamente os detalhes de seu uniforme. Assim, como David, Debret mantinha,
de certa maneira, a perfeição e o realismo dos acessórios também comuns ao artista
neoclássico.

Como já ressaltamos acima, o estudo das vestimentas a partir do manequim era


considerado básico na formação dos artistas, seguindo regras específicas para a
colocação das roupas, formação das pregas e caimento o mais natural possível,
tentando repetir as dobras que seriam normalmente feitas no nosso corpo. Havia,
assim, um risco ao artista, que poderia cair no detalhismo excessivo e não prezar pela
naturalidade do próprio corpo, conferindo realismo às vestimentas e imperfeição
ao movimento e à anatomia, sobretudo na falta de instrumentos importantes para a
representação, como o estudo do modelo vivo.27 A aquarela de Debret não deixa de
demonstrar o caminho mais direto ao pintor de corte, poucos meses depois de sua
chegada, onde a retratística e a ajuda do manequim se colocam como preponderantes
e forma mais rápida à sua própria colocação como artista.

Neste caso, a suposta figura de D. Pedro I seria central na representação de Debret


como artista da corte. E parece bastante curioso que nesta pintura, atribuída antes

23  DIDEROT, Denis. Oeuvres Complètes. Salon de 1765. Paris, p. 316. Ver tb. MUNRO, Jane, op. cit., p. 76
24  MUNRO, Jane. Op. Cit., p. 46.
25  Idem, p. 21.
26  DELECLUZE, M.E. J.. op. cit., p. 236-237.
27  MUNRO, Jane. Op. cit., p. 28.

84
a Julien Pallière, mas descoberta como uma “fabricação” do marchand Heymann,
represente Debret em seu ateliê, autorretratado e mostrando ao espectador o retrato
de Leopoldina, esposa de D. Pedro.

Evidentemente, trata-se de uma construção mal feita do retrato do artista, posado


de frente. A figura nos rememora as críticas de Diderot a Roslin e de Shanagen a
Gainsborough. A figura tem uma dureza extrema, a pose é forçada, está sentado
estranhamente diante de um cavalete igualmente mal posicionado no espaço, o rosto
não tem expressão e parece mesmo tratar-se de um manequim vestido, com o olhar
perdido, a paleta à mão esquerda e o pincel caído na direita.

Rafael e as demais obras, presentes no atelier do Catumbi, dão lugar aos indígenas,
posteriormente gravados em seu álbum iconográfico. Aqui, o artista se autolegitima
com suas obras, em estreita correspondência com as representações que fizera no
Brasil, associadas não só à Independência – aqui centralizada pela Imperatriz
austríaca - , mas pelas figuras dos indígenas, com o intuito de tornar-se nacionalistas.
Elas aparecem acima do busto em gesso, numa tentativa um tanto forçada de uma
relação clássica entre os diversos bustos e a pintura em perfil da Imperatriz.

Estudiosos já revelaram que não se trata de Debret e tampouco o autor é Pallière. O


catalogo Pallière e o Brasil traz a informação:
O quadro é uma das mais engenhosas ‘fabricações’ realizadas pelo marchand franco-
brasileiro Heymann nas décadas de 1930 a 1950 em Paris. Trata-se, em sua base, de um
óleo sobre tela francês do início do século XIX, mas sua autoria inicial é ainda sujeita a
discussão, pois só uma radiografia poderá acrescentar detalhes que ajudam a esclarecer
sua origem. Heymann quis que este quadro passasse por uma colaboração entre Pallière
e Debret e, segundo sua versão, ambos teriam assinado a tela com suas iniciais. Em sua
carta a Newton Carneiro, Heymann oferece a tela ao grande colecionador paranaense
como ‘lote principal de minha coleção’. Tratar-se-ia, segundo Heymann, de um retrato de
Debret no Brasil por Pallière, sobre o qual o próprio Debret teria adicionado suas imagens
de índios, pregadas na parede, e o retrato de d. Leopoldina, no cavalete [...].28

Debret em seu ateliê e Mon atelier de Catumbi revelam facetas interessantes,


respectivamente, da construção e afirmação do próprio artista, espécie de autorretrato,
e da invenção posterior de sua atuação no Brasil. Verdadeiros ou falsos, entre retratos
e manequins, a representação no ateliê se torna um precioso instrumento para
múltiplas interpretações do imaginário do pintor no Brasil.

28  LAGO, Pedro Correa do; BANDEIRA, Júlio; PESSOA, Ana. Pallière e o Brasil. Obra Completa. Rio de Janeiro:
Capivara, 2011, p. 190.

85
86
“Sutis dimensões de um
Ateliê Paulistano”:
as narrativas e representações de
Christiano Stockler das Neves
sobre o trabalho de um arquiteto

Fernando Atique 1

A historiografia da Arquitetura tem se atido pouco ao espaço de formação dos


arquitetos. Embora até seja possível encontrar estudos sobre escolas, sobre professores
e sobre profissionais que relatam seus tempos como estudantes, a verdade é que o
espaço formativo, quer em sua concepção teórica, quer mesmo em sua dimensão
física, não aparece como uma reflexão privilegiada dentre nossos autores. Esta
minha constatação é ainda maior se formos abordar os arquitetos que se formaram e
trabalharam durante os anos finais dos Oitocentos e as primeiras décadas do século
XX. Este período, perversa e redutoramente chamado de “ecletismo”, foi obliterado
em nossa reflexão histórica, e relegou a planos secundários o estudo e a compreensão
de conflitos, técnicas, procedimentos e atores sociais típicos da Modernidade.

Desta maneira, este breve estudo, calcado na biografia do arquiteto Christiano


Stockler das Neves procura alinhavar pistas, rastros, índices, como preconizados pelo
historiador Carlo Ginzburg, em seu paradigma indiciário, de maneira a auxiliar na
compreensão daquilo que ainda está num plano que denominei de “sutis dimensões
do trabalho do arquiteto” em São Paulo.

Enfocando algumas dessas dimensões em Christiano Stockler das Neves, que


perpassam seus anos de formação, sua prática arquitetônica na prancheta e no ensino,
procuro construir um mosaico que será pautado – sempre que possível – pelo espaço

1 Fernando Atique, Professor Adjunto III de História, Espaço e Patrimônio Edificado do Departamento de História da
Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo, campus Guarulhos, SP, Brasil.

87
do ateliê. Procuro entender, desse modo “o que faz de um arquiteto,
um arquiteto”. Esta preocupação, central, para Stockler das Neves,
abre sendas curiosas para o estudo das representações sobre este
profissional. [Figura 1].

Principio, então, apresentando-o. Christiano Stockler das Neves


nasceu em Casa Branca, interior de São Paulo, em 1889. Ele era filho
do engenheiro agrônomo Samuel das Neves, formado em Agronomia
pela Imperial Escola Agrícola da Bahia, de São Bento das Lages, em
1882. Este engenheiro iniciou a carreira profissional na construção de
estradas de ferro, naquele estado, e no projeto de engenhos de açúcar
para uma empresa de nome Bahia Sugar Factories. Após este período,
saiu trabalhando como agrimensor, a partir do norte de Minas até
penetrar terras paulistas, em meados da década de 1880 [Figura 2].

Foi por causa desses serviços que Christiano das Neves nasceu em
Casa Branca, cidade onde seu pai havia se fixado a serviço. A mãe de
Christiano, Elisa Augusta Stockler das Neves, com quem seu pai havia
casado anos antes pertencia à família mineira da região de Passos.

A peregrinação profissional de Samuel das Neves, já casado e pai


de família, trouxe-o à capital paulista. Ali, na década de 1890 abriu
Figura 1 - Autor não
uma firma especializada em projetos de demarcação de terras, mas também em
identificado, Caricatu-
ra de Christiano Stokler construções, muitas delas, em concreto armado.
das Neves, 1933. Téc- Pouco a pouco, Neves começou a riscar projetos para
nica mista (aquarela e
a alta burguesia paulista valendo-se de profissionais
nanquim). Fonte: NE-
VES NETO, Christiano estrangeiros, recém-chegados à capital.2
Stokler das. O Arquite-
to Concreto. São Paulo: Nos primeiros anos do século XX, o maior
Dialeto, 2008, p. 22. concorrente do escritório de Samuel das Neves era
o Escritório Técnico Francisco de Paula Ramos de
Azevedo que, ao contrário do de Neves, que não
possuía em seus quadros nenhum arquiteto fixo, era
repleto de profissionais diplomados na Europa e nos
Figura 2 - Autor não Estados Unidos.3 Embora a profissão de arquiteto e
identificado, Caricatu- de engenheiro ainda não fossem regulamentadas,
ra de Samuel Augusto
das Neves, 1933. Téc- naquela época, no Brasil, o que garantia a Samuel das
nica mista (aquarela e Neves o direito de projetar arquitetura, a concorrência
nanquim). Fonte: NE- era ferrenha, e os profissionais empregados por
VES NETO, Christiano
Stokler das. O Arquite- Ramos de Azevedo, muitas vezes, roubavam a cena e
to Concreto. São Paulo: os projetos de Samuel das Neves, que se via, então,
Dialeto, 2008, p.22. forçado a desenvolver detalhamentos e construir para
2  PEREIRA, Gustavo. Christiano Stockler das Neves e a formação do curso de arquitetura no Mackenzie Colle-
ge: um estudo sobre as École de Beaux-Arts e as Fine Arts Schools norte-americanas. (Dissertação de mestrado).
São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (orientação: Candido Malta
Campos Neto), 2005, p. 239.
3  LEMOS, Carlos Alberto Cerqueira. Ramos de Azevedo e seu escritório. São Paulo: Pini / Lix da Cunha, 1993.

88
outros engenheiros e arquitetos, dentre eles George Krug, que também colaborava
com Ramos de Azevedo.

Da Escola Politécnica para a Fine Arts School


Como aponta o arquiteto Gustavo Pereira, na dissertação de mestrado Christiano
Stockler das Neves e a formação do Curso de Arquitetura no Mackenzie College, de
2005,
Tentando suprir essa carência, em 1907, Christiano submeteu-se a exames de admissão na
Escola Politécnica [de São Paulo], onde obteve aprovação no curso, que tinha a duração de
seis anos: três anos do curso fundamental e, três, com matérias específicas de arquitetura.
No ano seguinte, após cursar algumas semanas, descontente com a metodologia de ensino
e o conteúdo do curso, transferiu-se para os E.U.A.4

Uma pesquisa realizada no jornal Correio Paulistano nos forneceu a convocação de


Christiano Stockler das Neves para a realização de provas visando sua admissão na
Escola Politécnica de São Paulo, em 1907.5 Segundo aponta Maria Teresa de Stockler
e Breia Szolnoki, Christiano das Neves estudou parte do ensino de segundo grau no
Colégio São Bento e, parte, no Instituto Macedo Soares, na Avenida São Luiz, em
São Paulo, onde aprendeu inglês e francês.6 O proprietário deste instituto era ex-
embaixador brasileiro nos Estados Unidos e povoou a mente de Neves de histórias e
referências aos Estados Unidos, plantando-lhe o desejo de graduar-se na “Terra do
Tio Sam”.

De fato, embora nunca tenhamos encontrado o prontuário de Christiano das


Neves na Escola Politécnica, sabemos que ele chegou a cursar 1 ano do curso de
engenheiros-arquitetos mantido por aquela instituição. Desistindo da formação no
Brasil, embarcou, conforme nota encontrada no Correio Paulistano, em 26 de abril
de 1909, para os Estados Unidos, para frequentar aulas na Crownwell Universit, de
Nova York. A referida universidade, era, de fato, a Cornell University, localizada em
Ithaca, no estado de Nova York. A partida de Neves para os “States” se deu em 29 de
abril daquele ano.7

Szolnoki afirma que Christiano das Neves rumou para cidade de Syracuse,
hospedando-se na casa de uma família americano-brasileira, a qual, contudo, não
foi identificada pela autora. A proximidade desta cidade com a Cornell University,
tradicional no ensino de arquitetura, e com fortes vínculos brasileiros, leva a supor,
embora a autora não faça tal relação, que das Neves intentava matricular-se no curso
de arquitetura daquela universidade.8 Registros da passagem de Neves pela Cornell

4 PEREIRA, op. cit, p.239.


5 CORREIO PAULISTANO, edição 14.898, 1907.
6 SZOLNOKI, Teresa de Stockler e Breia. O ensino de arquitetura e Christiano Stockler das Neves. (Dissertação
de mestrado). São Paulo: Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (orientação:
Paulo Julio Valentino Bruna), 1995, p. 132.
7 CORREIO PAULISTANO, edição 16.420, 9, p. 8.
8 SZOLNOKI, op. cit, p. 133.

89
University, cujos alunos foram estudados por Atique,9 Bernardini10 e por Freitas11 não
foram localizados.

Em todo o caso, sabemos que em 23 de setembro de 1909 Christiano das Neves se


matriculou oficialmente na University of Pennsylvania. Esta escola, fundada em
1740, mas que no século XIX alcançou fama e notoriedade,12 possuía uma estratégia
de ensino que talvez tenha seduzido Stockler das Neves: a existência de um curso de
curta duração, denominado Special Course on Architecture, de apenas dois anos.13

Segundo sua ficha do aluno, ele foi admitido após exames de proficiência em Desenho
à Mão Livre e de História da Arquitetura, ocorridos, ambos, em 01 de abril de 1910,
um semestre após sua matrícula oficial, na Penn. O que causa estranheza é o fato
de ele não ter apresentado certificação que o dispensasse de disciplinas cursadas na
Politécnica, já que, pelos autores citados acima, ele a frequentou por cerca de um ano.
Possivelmente, esses exames de proficiência foram aplicados em lugar do recebimento
de seu histórico escolar da Politécnica, conforme costume da Penn.14

Na Penn, Christiano das Neves vivenciou o período de modificações nas aulas de


design implementadas pelo arquiteto francês Paul Philippe Cret (1876-1945), que
procurou adequar a formação tradicional da École de Beaux-Arts aos sistemas
norte-americanos de educação e diplomação, sobretudo o que expedia certificados
de proficiência na carreira, a cada dois anos, ao invés dos longos anos de estudo
despendidos numa instituição francesa. Embora mais rápido e mais barato do que
o curso de quatro anos, as horas necessárias para o cumprimento ideal desse curso
eram muitas. Como a School of Architecture frisava em seu catálogo de disciplinas, “o
estudo de desenho é então enfatizado, exigindo um dispêndio significativo de tempo
ao longo do curso em seus temas preparatórios e adicionais”.15

As disciplinas cursadas por Christiano Stockler das Neves foram, no primeiro ano:
Elements of Architecture; Elements of Design – Grade I; Shades and Shadows; Perspective;
Design – Grade II e III; Freehand Drawing; Architectural History (Ancient and
Medieval); Historical Ornament; Water Color Drawing; Carpentry and Construction;
Masonry and Iron and Physical Education, perfazendo um total de 24 unidades
de crédito. No segundo ano foram oferecidas as disciplinas de Design – Grade III;
Architectural History (Renassaince and Modern); Design – Grades IV e V; Free Handing
9 ATIQUE, Fernando. Arquitetando a “Boa Vizinhança”: a sociedade urbana do Brasil e a recepção do mundo nor-
te-americano, (1876-1945). (Tese de Doutorado). São Paulo: Universidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, (orientação: Maria Lucia Caira Gitahy), 2007.
10 BERNARDINI, Sidney Piochi. Construindo Infraestruturas, Planejando Territórios: a Secretaria de Agricultura,
Comércio e Obras Públicas do Governo Estadual Paulista (1892-1926). (Tese de Doutorado). São Paulo: Universidade
de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, (orientação: Maria Lucia Caira Gitahy), 2008.
11 FREITAS, Marcos Vinícius de. Contradições da Modernidade: o jornal Aurora Brasileira (1873-1875). 1. ed. Cam-
pinas, SP: Editora da UNICAMP, 2012.
12 ATIQUE, Fernando. Os elos entre a  University  of  Pennsylvania  e a arquitetura do Brasil, através da trajetória
profissional de George Henry Krug. 19&20, Rio de Janeiro, v. IV, n. 1, jan. 2009. Disponível em: <http://www.dezeno-
vevinte.net/arte%20decorativa/atique_krug.htm. Acessado em: 27 agosto 2015.
13 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. The Record of the Class of 1911. Philadelphia: The Senior Class of the Col-
lege, 1911.
14 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. University Archives, folder C.S. Das Neves.
15 UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. Catalogue, 1910-1911. Philadelphia: University Press, p.147.

90
Drawing; Graphic Statics; Masonry & Iron Construction; Capentry; Hygiene, Heat and
Ventilation; Plumbing and Draining; Water Color Rendering; History of Sculpture;
Professional Practice; Special Lectures e Physical Education, o que perfazia, também,
um total de 24 unidades de crédito.16

Analisando o material alusivo à Escola de Arquitetura, foi possível verificar que Paul
Philippe Cret havia instaurado a prática de ateliê como condição basilar de ensino.
Arquiteto diplomado pela École Nationale de Beaux-Arts de Lyon, na França, em 1901,
e premiado com o Grand-Prix de Paris naquele mesmo ano, Cret permitiu ao curso
da Universidade da Pensilvânia seguir a tendência estadunidense de afrancesamento
de suas graduações em Arquitetura, processada desde meados da década de 1890.17 A
chegada de Cret, em 1903, estava inscrita numa tendência de sofisticação dos métodos
de ensino das academias norte-americanas de arte e arquitetura que saíram em busca
de alunos egressos de escolas seguidoras do modelo Beaux-Arts, na França. Por força
do prestígio que Paul Cret impingiu à formação Beaux-Arts, e, em igual medida, à
sua própria pessoa como docente, seus alunos e colegas o ”reverenciavam por seus
talentos” e acatavam suas instruções com “entusiasmo”, conforme a dedicatória do
livro de formandos de 1911.18

Tal reverência acontecia no Ateliê: o locus do nascimento da arquitetura. Elizabeth


Grossman, analisando a carreira de Paul Cret, traçou um paralelismo entre Jean-
Louis Pascal (1837-1920), “patron” de Cret em Paris, e os métodos de ensino deste, na
Penn. Segundo esta autora, Paul Cret fazia o mesmo que seu mestre francês: aceitava
o projeto gerado pelo aluno e o fazia nele trabalhar até alcançar o ideal de harmonia
e escala.19

Com a chegada de Cret, o ensino assumiu uma postura mais próxima dos dogmas das
Écoles francesas, mas não seguiu totalmente o método de ensino nelas empregado. Por
força do pragmatismo norte-americano, a formação artística foi simplificada e aliada
ao caráter técnico que dominava as formações em engenharia praticadas nas escolas
norte-americanas, e de onde, não coincidentemente, a graduação da Penn havia saído
há pouco.20 Esta postura, por outro lado, colocava o patron Cret numa espécie de
pedastal, pois corporificava o modelo de arquiteto que deveria ser perseguido por
todos.

Os estudantes do Special Course, como Christiano das Neves, sentiam ainda mais o
peso desta estratégia de ensino. O Ateliê era a oportunidade de aprender os conteúdos
que nem sempre apareciam ancorados em livros.

Analisando uma das fotografias tomadas de um dos ateliês de ensino do curso de


Arquitetura da Penn, em 1915, é possível apreender a importância de Cret. Seu
16 Idem, ibidem.
17 GROSSMAN, Elizabeth Greenwell. The civic architecture of Paul Cret. New York: Cambridge University Press,
1996, p. XV.
18  UNIVERSITY OF PENNSYLVANIA. The Book of the Class of 1911. Philadelphia: University Press.
19  GROSSMAN, op. cit, p. 8.
20  KOYL, George Simpson. In: Architectural Alumni Society. Book of the School. Department of Architecture, Uni-
versity of Pennsylvania, 1874-1934. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1934, p.10.

91
nome está inscrito na parede dos fundos,
encimando uma lista com dois outros nomes
de docentes. Os estudantes, trajando gravatas
e seus aventais de trabalho, são ladeados por
gravuras de edifícios célebres, alguns deles,
da lavra do próprio Cret [Figura 3].

Outra imagem, do arquivo particular de


Christiano das Neves, revela mais dimensões
acerca do trabalho que um arquiteto em
formação deveria experimentar [Figura 4].
A imagem que mostra o seu quarto privativo
de dormir, na Universidade, revela, para
além da genealogia e da força da tradição
familiar, organizada nos retratos, outros
Figura 3 - Autor não índices. Um, é o porta lápis com a insígnia da Penn – a letra P em azul e vermelho –
identificado, The draf-
ting room for the Archi-
denotando o pertencimento que ele ostentaria vida afora. O outro, é uma edição do
tectural Course of Uni- American Vignola, disposto como um “livro santo”, recostado, em lugar de destaque
versity of Pennsylvania, na escrivaninha em que trabalhos deveriam ser feitos nas horas de dedicação
1915. Fotografia. Fonte:
HUTCHINS, Amey
individual. Ainda podemos destacar o quadrinho em que se lê a célebre frase da lavra
A. University of Pen- de Elbert Hubbard (1856 - 1915), influente nos meios Arts and Crafts, e com pendores
nsylvania. Charleston; socialistas: Life is one damn thing after another [a vida é uma coisa maldita atrás da
Chicago, Portsmouth;
San Francisco: Arcadia,
outra]. O trabalho em ateliê não era fácil, e deveria principiar-se antes, no recôndito
2004, p.50. do mundo privado do estudante de arquitetura.

Este “moto” talvez explique porque não foram encontradas informações extra-
aulas durante o período de estudos de
Stokler das Neves, na Penn, como em
muitos outros estudantes investigados
para a pesquisa de doutoramento.21
Aparentemente, ele não se envolveu com
nenhuma atividade extracurricular, como
clubes ou associações musicais, dando
a entender que permaneceu dedicado
aos estudos, talvez para satisfazer às
exigências de seu pai, que, a priori, não
Figura 4 - Autor não
concordava com sua ida aos Estados
identificado, Dormitó-
rio de Christiano Sto- Unidos em busca de diplomação.22
ckler das Neves na Uni-
versity of Pennsylvania, Certificado em Arquitetura no dia 21
1911. Fotografia. Fonte: de junho de 1911 - pois, como Stockler
NEVES NETO, Chris-
das Neves não cursou o bacharelado em
tiano Stokler das. O Ar-
quiteto Concreto. São Arquitetura ele não colou grau -, o jovem
Paulo: Dialeto, 2008,
p.11.
21 ATIQUE, op. cit.
22 SZOLNOKI, op. cit., p.131.

92
brasileiro excursionou pela Europa durante seis meses. Regressou a São Paulo em
1912.

A Volta e as “Revoltas”
De regresso, associou-se ao seu pai, dando origem ao escritório “Samuel A. das Neves
– Engenheiro – e Christiano Stockler das Neves – Architecto.” [figura 5].

A dupla trabalhou junta por mais de 25 anos, edificando


construções públicas e particulares e consolidando um nicho de
mercado, aberto no final dos oitocentos por Samuel das Neves, na
São Paulo que se industrializava. Como mostra Gustavo Pereira, a
chegada Stockler das Neves
ao escritório de Samuel das Neves, em 1912, acarretou uma
alteração profunda em sua estrutura: o escritório assumiu o papel
do moderno escritório de arquitetura e engenharia com mão de obra
especializada de desenhistas e engenheiros que eram contratados
como especialistas conforme a demanda de projetos. Analisando
esse conjunto de desenhos dos escritórios, podemos constatar que, Figura 5 - Anúncio
com [sua] chegada da Pensilvânia, a partir de 1912, a qualidade e a riqueza gráfica dos publicado no Correio
desenhos se aprimorou de forma radical.23 Paulitano, 1916. Clichê,
5cm x 4cm. Fonte: Cor-
O mesmo autor, após analisar detidamente o acervo do escritório, arquivado na FAU- reio Paulistano, 7 de
setembro de 1916, p.8.
USP, conseguiu mapear duas fases, uma que vai da chegada de Stockler das Neves, em
1912, até 1940, na qual, segundo Pereira, o egresso da Penn projetava seguindo o que
ele definiu de estilo [Figura 6]
‘Luís XVI modernizado’, que era uma mistura de citações de elementos neoclássicos de
origem francesa, adaptados e simplificados segundo a ótica pragmática norte-americana.
Como primeiro a difundir tal estilo na construção civil paulistana, Christiano tentava
forjar uma aura de modernidade, sofisticação e inovação, se comparado com as tendências
então predominantes na cidade, ou seja, os estilos italianizantes dos capomastri.24

A segunda fase, para Pereira, ocorreu depois dos anos 1940, e foi marcada pelo
’clássico modernizado’ –
linguagem amplamente
utilizada pelos arquitetos
norte-americanos para Figura 6 - Christia-
projetar seus arranha- no Stokler das Neves,
Nova Sede do Palácio
céus, mantendo as regras do Governo de São Pau-
e proporções clássicas, lo, Palácio Anchieta,
mas com um razoável 1827. Lápis e aquarela
sobre papel. Fonte: NE-
despojamento estilístico. VES NETO, Christiano
Estas duas fases são as Stokler das. O Arquite-
mesmas que se podem to Concreto. São Paulo:
Dialeto, 2008, p.70.
verificar na carreira de Paul
23  PEREIRA, op. cit, p.252.
24  PEREIRA, op. cit, p.252-253.

93
Figura 7 - Paul Philippe Philippe Cret, apenas atentando para o fato
Cret (1876-1945),
de que o professor francês de Stockler das
Biblioteca Central da
University of Texas at
Neves faleceu em 1936, o que o obrigou
Austin, 1835. Fotogra- a antecipar a utilização deste ‘clássico
fia. Fonte: http://www. modernizado’ para o final dos anos 1920. [Figura 7 e Figura 8].
cah.utexas.edu/db/dmr/
image_lg.php?varia- Aliás, percebe-se mediante todo o material publicado por Christiano Stockler das Neves
ble=di_04018 Acessado
em 27 agosto 2015. na imprensa brasileira, sobretudo nas páginas da revista Architectura e Construcções
- revista que se fazia anunciar como inspirada nas congêneres americanas - que Paul
Figura 8 - Paul Philippe
Cret (1876-1945), Ca- Cret era, para ele, uma espécie de messias, alguém de quem gostaria de ser próximo,
tálogo da Exposição de e de alcançar elogios, como uma carta datada de 05 de dezembro de 1923, enviada
Projetos de Paul Cret in- ao Professor Warren P. Laird, seu antigo ‘dean’, demontra, ao pedir que o seu antigo
titulada “Modern Clas-
sics,” exibida no Athe- mestre enviasse uma resenha crítica acerca dos projetos que acabara de executar para
naeum of Philadelphia, duas estações de trem, uma em São Paulo e, outra, no Rio de Janeiro. Nela, Neves
em 2006. Fonte: Repro- pede que Laird intercedesse pedindo a Cret este “favor”. Aliás, algo que comprova a
dução de exemplar de
acervo do autor. maneira como Christiano das Neves via a sua antiga escola é esta carta, cujos trechos,
estão a seguir:

De acordo com o que eu o escrevi tempos atrás, eu recebi uma encomenda do meu Governo
para projetar as duas mais importantes estações de trem deste país, uma nesta cidade, e, a
maior delas, para o Rio de Janeiro. Da estação de São Paulo eu mandei uma fotografia da
elevação frontal e, agora, eu estou enviando um jogo completo de fotos da Grande Estação
Central do Rio de Janeiro. [...] Eu apreciaria muito de ter a sua e a opinião do Professor
Cret sobre este meu trabalho. Agora, eu peço um grande favor: caso o senhor veja que
estes desenhos merecem ser publicados em qualquer importante revista americana de
Arquitetura, eu solicito que interceda junto ao editor, por mim. [...] Como o senhor pode
ver, meu trabalho foi feito seguindo esses maravilhosos planos dos grandes terminais de
seu país, com as necessárias adaptações que me foram dadas. Agora, se os membros da
Junta ferroviária e outros do Governo brasileiro virem meu trabalho publicado numa

94
Figura 9 - Christia-
no Stockler das Neves
(1889-1982), Estação
Central do Brasil no Rio
de Janeiro, 1927. Lápis
e aquarela sobre papel
canson. Fonte: Archi-
tectural Archives, Uni-
versity of Pennsylvania.
Reprodução do autor.
revista estrangeira, eles prestarão mais atenção. [...] Seria muito bom se o Professor Cret
mandasse-me sua crítica escrita em francês. O senhor, por favor, o pediria a ele este favor?
[tradução minha].25 [Figura 9]

Anos depois, descontente com o cancelamento de sua obra para a Estação da Central
do Brasil, no Rio de Janeiro, e de seu afastamento das obras da Estação da Sorocabana,
em São Paulo, Stockler das Neves aproveitou um contato efetuado por Warren Laird
para, em resposta, explicitar seu desejo de ir trabalhar nos Estados Unidos:
Como o senhor vê, é horrivelmente difícil ser um arquiteto aqui neste país, e eu penso
que o mesmo ocorre em toda a América do Sul. [...] Se eu pudesse obter uma boa posição
num escritório de Arquitetura nos “States” eu iria embora. Você pensa que lá [sic]
haveria qualquer oportunidade para mim com algum dos seus amigos? Eu tenho 16 anos
de experiência em importantes trabalhos [...] Eu tenho muita prática em construções
em concreto armado também, e em construções gerais, além de sua superintendência,
e em todo trabalho de escritório. Eu tenho 10 anos de experiência como professor de
Arquitetura. Eu ministrei cursos em “Elements”, em consonância com seus métodos, e
História, Construções e Design [Projeto]. [...] Eu não sou ambicioso. Eu apenas gostaria
de uma posição que me desse um viver decente e, também, que me permitisse dar educação
às minhas três crianças. Eu falo francês, italiano, espanhol, português e inglês, esta última,
não tão bem quanto as outras línguas.26

Como referenciado na carta, Stockler das Neves foi o fundador do curso de arquitetura
do Mackenzie College, em 1917, bem como o primeiro diretor da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie, em 1947, ano em que foi criada. Partidário
das concepções de beleza clássica e de que a “arquitetura não era ciência”, Stockler
impregnou o curso do Mackenzie desses princípios, que eram plenamente aceitos
pela sociedade e por seus pares naquelas décadas do século XX.

Os Ateliês de Christiano: de aluno a professor


Quero aproveitar-me de outro índice presente nesta carta, para mostrar algo muito
importante, concernente à circulação dos métodos de ensino. Christiano das Neves,
ao fundar o curso de Arquitetura do Mackenzie, valeu-se de sua experiência como
estudante nos Estados Unidos. Um de seus antigos alunos, o arquiteto Miguel Forte,
25 UNIVERSITY ARCHIVES, LAIRD PAPERS. Carta de C.S. das Neves a W.P. Laird, 05 dez 1923.
26  UNIVERSITY ARCHIVES, LAIRD PAPERS. Carta de C.S. das Neves a W.P. Laird, 21 jun 1927.

95
descreveu como era a organização do ateliê no ano de 1934, em entrevista concedida
a Mônica Junqueira de Camargo.
Naquela ocasião, o ateliê de arquitetura no Mackenzie era um único espaço, porque havia
poucos alunos em cada ano. Em 1934, em média, nós éramos seis ou sete alunos por ano,
e o curso era de seis anos e nós não podíamos levar o trabalho para casa. O Christiano
das Neves nos obrigava a trabalhar na escola. [...] O Christiano era intransigente, ele
não permitia que você pudesse ter idéias contemporâneas, que você pudesse gostar de
arquitetura contemporânea. [...] Todos os temas que ele passava para os alunos deveriam
ser desenvolvidos segundo suas idéias. E existia um grupo – Jacob Rutchi, Galiano
Cimapaglia, Igor Sresnewsky e outros poucos – que, escondido do Christiano, estudava
por conta própria os movimentos de arquitetura dessa época.27

Uma fotografia de
Christiano ministrando
aulas neste ateliê revela
grande semelhança, mais de
vinte anos depois, com o que
vimos na Penn. [Figura 10].
Estudantes engravatados,
sendo orientados por Neves,
com poucas referências
textuais e projetos, alguns
da lavra do professor nas
paredes.

Com a criação da Faculdade


Figura 10 - Autoria des- de Arquitetura do Mackenzie, em 1947, separada totalmente do curso de Engenharia
conhecida, Ateliê para au-
Civil, o esquema ateliê de Stockler das Neves não se alterou. Carlos Lemos, em seu
las do Curso de Arquitetu-
ra do Mackenzie, c. 1950. livro de memórias, revela:
Fotografia. Fonte: NEVES
NETO, Christiano Stokler Como a nova escola era parca de áreas disponíveis ao ensino, todos os alunos, novos e
das. O Arquiteto Con- velhos ainda ligados à escola de engenharia, tinham suas pranchetas num mesmo salão,
creto. São Paulo: Dialeto, transformado em ateliê coletivo. Logo, logo, todos se irmanaram num só bloco coeso,
2008, p. 28.
defensor da modernidade, afrontando o diretor, ou o “dono” do curso, que, no entanto,
não tinha poder nem autoridade suficiente para impedir que se projetasse dentro da
contemporaneidade arquitetônica. [...] Vivíamos assim, uma situação esdrúxula: nossa
prática nada tinha a ver com a teoria apregoada. Era uma escola ao contrário, não
possuía biblioteca especializada e ali as revistas americanas de arquitetura moderna
eram escondidas e folheadas somente quando Christiano se ausentava. [...] Christiano
escolheu a dedo os professores para completar o quadro docente da nova escola; todos
seus fiéis seguidores na linha de ensino, embora na vida profissional praticassem por
necessidade os estilos da moda.28

A maneira como se deu a fundação do curso de Arquitetura do Mackenzie College foi


assim descrita por Neves, em depoimento recuperado por Szolnoki:
27  Entrevista de Miguel Forte apud CAMARGO, Mônica Junqueira de. Prefácio. In: FORTE, Miguel. Diário de um
jovem arquiteto: minha viagem aos Estados Unidos em 1947. São Paulo: Editora Mackenzie, 2001, p.15.
28 LEMOS, Carlos A. C. Viagem pela carne. São Paulo: EDUSP, 2005, p.137-138.

96
Verificando que a arquitetura em nosso país tinha um grande futuro, praticada então, por
um número limitado de arquitetos, tivemos a ideia de fundar um curso de arquitetura
nos moldes inigualáveis das universidades norte-americanas. [...] Efetivamente, sem
visarmos qualquer interesse pecuniário, ocorreu-nos apresentar nossa ideia ao Mackenzie
College, instituição livre e a única que estava em condições de aceitá-la, por adotar os
mesmos métodos de ensino que fizeram a grandeza da terra do Tio Sam. [...] Fundador
do curso de Arquitetura da Escola de Engenharia Mackenzie College, onde leciono desde
1917, tenho procurado conseguir um programa de estudos, tal que são estes ministrados
na Universidade de Pennsylvania, cuja escola de arquitetura é a melhor organização
que se conhece, incontestavelmente, para o ensino dessa bela arte. [...] Modelada pela
École de Beaux-Arts, de Paris, a Universidade de Pennsylvania oferece a vantagem
de uma melhor organização de ensino, aliado à riqueza de sua biblioteca e museu, o
confortável espaço de suas magníficas salas para classes de desenhos, laboratórios, além
da comodidade que uma rica instituição americana oferece ao estudante. [...] Orientado
pelos seus ensinamentos adapto o mesmo sistema no Mackenzie, graças à benevolência e
alto critério de um outro eminente educador, Dr. A. W. Waddell.29

Pelos depoimentos de seus ex-alunos, pode-se perceber que o impacto do ateliê sobre
a carreira de Christiano das Neves foi imenso. O rigor, a disciplina, e a ascendência do
patron, do professor, eram, a seu ver, características irrefutáveis. Em sua concepção,
apregoada em textos diversos, em órgãos de classe e em entrevistas concedidas,
deixam descortinar que a arquitetura era quase que um sacerdócio, a ser cultivada
num apostolado diário, em cima das pranchetas e com um orientador destacado.

Em 1947, o mesmo ano em que a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie


foi criada, Christiano Stockler das Neves assumiu a Prefeitura de São Paulo por um
curto período de tempo. Longo o suficiente, contudo, para que a Penn fosse informada
e fizesse contatos com o seu egresso, para que remetesse material para uma publicação
nas páginas do Pennsylvania Gazette, que estampou a foto de Neves e os dizeres:
proeminente em sua profissão, ele fundou o departamento de arquitetura do Mackenzie
College, em 1917, e foi seu professor e diretor. Ele recebeu medalhas de ouro em 1927 e
em 1930 nas Exposições Pan-Americanas de Arquitetura, como, também, um prêmio
de honra ao mérito. Ele projetou inúmeros edifícios públicos e privados em sua própria
cidade, como no Rio de Janeiro. Ele foi membro de inúmeras associações de classe e sociais,
e é presidente honorário da Cruz Vermelha Brasileira.30

Christiano Stockler das Neves foi figura singular, que atravessou o século XX lutando
por uma crença que só permitia ser alterada se fosse para continuar a seguir os
ensinamentos obtidos na América do Norte, segundo sua própria declaração.31

Premiado em diversos concursos públicos e em Exposições Pan-Americanas de


Arquitetura, quer diretamente, quer por meio do Mackenzie College, instituição
na qual chegou a ser vice-reitor, construiu uma carreira calcada na franqueza,

29 SZONOLKI, op., cit., p.198.


30 PENNSYLVANIA GAZETTE. Prominent Pennsylvanians – Mayor Christiano S. das Neves. Philadelphia: feb,1948,
p. 21.
31 NEVES, Christiano Stockler das. Editorial. In: Architectura e Construcções. São Paulo: n.13, 1930, p. 4.

97
demonstrada, muitas vezes, nas páginas da imprensa, por onde atacava as posturas
que contradissessem suas crenças.

Christiano Stockler das Neves faleceu em 1982, em São Paulo, deixando, contudo, um
legado arquitetônico muito grande, mas que ainda necessita ser mais bem explorado,
especialmente para que se reveja a conturbada imagem que, inegavelmente, deixou. É
preciso, também, expor as doses certas de sua simpatia pela arquitetura da França e
pelos Estados Unidos, já que, na maioria dos (parcos) estudos a abordar sua fortuna
crítica, a Europa se encontra hiperdimensionada, e, consequentemente, a “Terra de
Tio Sam” desconsiderada.

98
Network artísticos internacionales
en la Roma de fines del Ottocento.
Una lectura crítica a través de
las imágenes de algunos ateliers
de pintores latinoamericanos

Giulia Murace 1

Un día de julio de 1854, Bernardo Celentano parte desde su amada Nápoles dejando
a su maestro de arte y de vida, Domenico Morelli. Con sus recomendaciones llega
a Roma, recibido por los conciudadanos, el pintor Achille Vertunni y el arquitecto
Antonio Cipolla, quienes tienen la tarea de acompañar al joven a un tour para los
estudios de los artistas en Roma. Morelli, al mismo tiempo, escribía al mejicano Juan
Cordero (quien estaba en la Ciudad Eterna becado por su gobierno y ahí recolectando
fama y honores), para que lo llevara a visitar los estudios de August Riedel e Ignazio
Jacometti, pintor uno, escultor el otro, ambos adherentes al purismo de Tommaso
Minardi y Pietro Tenerani.2

Son los atelier de los jóvenes, los cuales vendrán entonces a representar lo nuevo,
lo moderno que se tiene que conocer y asimilar. Roma, hacia mediados del siglo, es
una ciudad que aún no sufre su inferioridad respecto a París, es destino privilegiado
de muchos italianos y extranjeros que allí exploran nuevas tendencias artísticas
y experimentan nuevos lenguajes.3 En 1845, por ejemplo, Sarmiento al viajar por
1 Especializada en Historia del Arte (Università degli Studi di Siena, Italia) - Maestranda en Historia del Arte Argentino
y Latinoamericano (IDAES-UNSAM, Buenos Aires, Argentina)
2 La práctica de la visita a los atelier entraba desde fines del siglo XVIII en el sistema artístico de Roma a todos los efectos,
de hecho con el Ottocento entró a hacer parte de una suerte de canon expositivo. Cfr. sobre el tema SUSINNO, Carlo,
L’Ottocento a Roma artisti, cantieri, atelier tra età napoleonica e Restaurazione. Silvana editoriale, Cinisello Balsamo
(Milano) 2009
3 cfr. BARROERO, Liliana et al. (Orgs.), Maestà di Roma. Universale ed eterna, capitale delle arti, catalogo de la
exposición (Roma, Palazzo del Quirinale y Galleria Nazionale d’Arte Moderna, 7 de marzo – 29 de junio de 2003),
Electa, Milano 2003

99
Europa no puede sustraerse de visitar Roma y los estudios de los más notables artistas
de la época, acompañado, por supuesto, por un romanizado pintor mejicano.4

También Morelli, después de algunos viajes europeos, está cada vez más presente
en la ciudad. Aunque nunca haya tenido un atelier en Roma, su lenguaje de a poco
se va insinuando en el ambiente romano. Su poética, casi regla, de “rappresentar
figure e cose, non viste, ma vere ed immaginate all’un tempo”5 quiebra el imperante
neocinquecentismo estandarte de la pintura académica, con una fuerza que llega a
reformar la enseñanza artística.6 En 1878 Morelli pinta un cuadro destinado a tener
una vastísima difusión, Las tentaciones de san Antonio que en este mismo momento
manda al mercante Goupil, a París. Con esta pintura lleva al extremo la poética del
vero, pero le agrega un plus simbolista que significó la fortuna de la representación.

La fuerza de ésta pintura impacta a los artistas jóvenes y en formación. Antonio


Herrera Toro, pintor ecuatoriano, becado por el Gobierno de Antonio Guzmán Blanco,
en 1875 viaja a París. Allí reencuentra a su primer maestro Martín Tovar y Tovar y
allí permanece, bajo sus enseñanzas, hasta 1878 cuando se transfiere a Roma, donde
se queda hasta 1881,7 viviendo en ese clima de fortuna de la pintura morelliana. El
atelier que él mismo representa en un pequeño óleo, es todavía el del artista bohemio,
melancólico, sólo en su estudio, pensativo y sin muchos haberes. Es en éste atelier
donde se reconoce una copia de las Tentaciones, junto a otros cuadros y bocetos.8

Quince años más tarde llega a Roma otro latinoamericano, Carlos Federico Sáez,
quien a los dieciséis años de edad emprende un viaje de formación costeado por
su familia. La obra de Morelli no pasa desapercibida al joven uruguayo, ya que en
su atelier, entre fotografías, bocetos, dibujos y croquis, existe también una pequeña
reproducción de las Tentaciones – colgada justo en frente al escritorio [Figura 1].
Si bien en Sáez, Morelli no tendrá tanta influencia como en Herrera Toro, esto son
buenos ejemplos de cómo las representaciones de los atelier pueden ser instrumento

4  Del viaje por Italia de Domingo Faustino Sarmiento, da nota su propio diario, Viajes en Europa, Africa i America,
Julio Belin, Santiago de Chile 1849. Un interesante estudio sobre el viaje a Europa y el arte es el de BALDASARRE, María
Isabel, De lo visto y lo escrito. Imágenes del arte europeo en los Viajes de Domingo Faustino Sarmiento en: Poderes de
la imagen, I Congreso Internacional de Teoría e Historia de las Artes del C.A.I.A, Asociación de Amigos del Museo de
Bellas Artes, Buenos Aires 10-13 de octubre de 2001.
5   MORELLI, Domenico, Filippo Palizzi e la scuola napoletana di pittura dopo il 1840. Ricordi in Napoli nobilis-
sima, X, 1901, p. 82
6  D’ACHILLE, Tiziana, DAMIGELLA, Annamaria (Orgs.), Romaccademia. Un secolo d’arte da Sartorio a Scialoja,
catalogo de la exposición (Roma, Museo Centrale del Risorgimento, 20 de octubre – 21 de noviembre de 2010), Gan-
gemi, Roma 2010
7  Antonio Herrera Toro se encuentra en París entre 1875 y 1877, luego se establece en Roma donde había ya viajado
varias veces fascinado por su arte y su cultura. En 1879 vuelve a Venezuela e instala su taller en Caracas, cuando el
obispo le encarga la decoración de la catedral metropolitana. Resuelve entonces de volver a Roma – lugar más apto
para que los referentes culturales que tales pinturas religiosas exigían, eran de inmediato alcance. Vuelve nuevamente
a su país en 1881. BULTON, Alfred, CALZADILLA, Juan (Orgs.), Arte de Venezuela,. Consejo Municipal del Distrito
Federal, Caracas 1977. Lamentablemente el folleto que funge de catálogo de la exposición Antonio Herrera Toro y los
albores de la modernidad, Galería de Arte Nacional, Caracas diciembre 2014 – mayo 2015, no es muy detallado y se
le han relevado algunos errores.
8  Se avanzan, en esta sede, algunas dudas sobre la fecha del cuadro, 1902, que aparece en el catálogo de la exposición
recientemente dedicada al pintor venezolano (v. cita 8). Es, a mi aviso, más plausible retrodatar la ejecución del lienzo
a los años romanos, o inmediatamente sucesivos. Aparece bastante anacronística la fecha del 1902 también para otro
cuadro representante el taller venezolano del pintor – Visita del obispo al taller – visto que eso se refiere al encargo del
obispo de 1879 para la catedral cuyos bocetos Herrera Toro trajo de Roma en 1881 (v. cita 8).

100
para reflexionar sobre la circulación de las
imágenes.

El atelier del pintor uruguayo habla también


de otro ambiente artístico con quien éste se
relaciona durante su vida. El dandy Saez vive,
como Gabriele D’Annunzio, la vida misma
como obra de arte, perfecto flanêur fin de
siècle, su estudio lo cuenta perfectamente.
Se respira estetismo en cada rincón, ecos
del lejano oriente, con máscaras y armas
japonesas, exotismo que traspasa por los
biombos y por las lámparas, sin que falte
el arte italiano del Trecento y Quattrocento.
Como se ve bien en la Figura 1 hay una
especie de altarolo, en alto a la derecha, pero en otras fotografías se ven también un Figura1 - Carlos Federi-
co Sáez en su estudio de
busto y un bajorelieve en estilo Desiderio da Settignano. Estos objetos señalan la Roma, c. 1894, gentile-
cercanía de Sáez directamente al círculo dannunziano y de los “bizantinos romanos” za de Enrique Aguerre,
– como se hacían llamar.9 director del Museo Na-
cional de Artes Visuales,
En el mismo milieu se mueve Pio Collivadino, llegado a la Ciudad Eterna unos años Montevideo, Uruguay.
antes de Sáez. Estando tan lejos de sus patrias, los dos se estrechan en amistad. Unos
pocos meses antes que el uruguayo se vuelva a
Montevideo (1899), Collivadino, inspirado por
ese lugar tan encantador, captura la fascinante
atmosfera del atelier de Sáez en un pequeño
lienzo que algunos años después donará al
Museo de Bellas Artes como homenaje a su
amigo prematuramente fallecido.10 En esta
suerte de instantánea se ve un rincón del
cuarto de via Margutta 32 [Figura 2], con sus
elementos peculiares. La silla varias veces usada
para sus retratos – de los cuales el más famoso Figura 2 - Pio Collivadi-
es probablemente el de Juan Carlos Muñoz no, El taller (Estudio de
Carlos Sáez), 1899, óleo
(1899) – pasando por el biombo pintado por sobre lienzo, 100 x 75
él mismo o el gran afiche de la Gismonda de cm, Museo Nacional de
Artes Visuales, Montevi-
deo, Uruguay.

9  El nombre de “bizantinos” viene del hecho que D’Annunzio fue el director, desde 1895, de la revista La Cronaca
Bizantina. ANDREOLI, Annamaria, PIANTONI, Gianna (Orgs.), Gabriele D’Annunzio: dalla Roma bizantina alla
Roma del ‘nuovo Rinascimento’. Allemandi, Torino 2001. La difusa presencia de arte del Quattrocento florentino,
tiene que ver con el gran mercado de falsos y copias que desde Florencia – con el falsificador Bandini y las manifacturas
de Signa – se irradió por toda Italia gracias a la fuerte demanda de “primitivos” que se generó con la cada vez mayor
presencia de una influente colonia inglesa. D’Annunzio también tenía una importante colección en su casa en Setti-
gnano. BALDINOTTI, Andrea, Desiderio e la Firenze dell’Ottocento: scenografie di un mito. En: BORMAND, Marc
(Org.), Desiderio da Settignano. La scoperta della grazia nella scultura del Rinascimento. 5 Continent Editions,
Milano 2007, pp. 102-109
10  AGUERRE, Enrique (Org.), Saez un mirar habitado. Museo Nacional de Artes Visuales, Montevideo 2015, en
particular pp. 15-27

101
Sardou (cuya première fue en 1894), hasta llegar a las ánforas, linternas, abanicos y
paños orientales.11

Collivadino entrelaza numerosas relaciones durante su estadía romana. Una fotografía,


seguramente de fin del siglo XIX, reproduce un cuadro donde está retratado Juan
Manuel Ferrari en su estudio, esbozando la maqueta de la escultura que realizará de
allí a un tiempo en Montevideo, dedicada al pintor nacional Diógenes Hequet.12 La
fotografía es uno de los miles de documentos pertenecientes al acervo del Archivo
de Pio Collivadino (TAREA-UNSAM).13 Sin embargo, se podría pensar que la obra
fotografiada pertenece al pincel de Hequet – de la cual se tiene noticia pero no dato
visual – ya que mejor se conformaría al estilo de éste y no de Collivadino. De todas
formas, dicha imagen sirve como un registro de los intercambios que intervenían al
interior de un atelier, en este caso presentándose casi como un dúplice homenaje, de
un pintor a un escultor que a su vez está homenajeando a otro pintor.

Ferrari llega a Roma en el mismo año que Collivadino, en 1890, y las ocasiones para
conocerse, entre las aulas del Instituto de Bellas Artes y las reuniones del Circolo, no
faltan. En 1892 los dos, ya amigos, comparten un viaje para pintar al aire libre en los
alrededores de Nápoles – del cual queda una simpática nota dedicatoria en la cubierta
de un álbum de croquis.14 Collivadino mismo es sujeto de representaciones de los
amigos que frecuentan su estudio. Uno de ellos Luigi Branzani, compañero dentro y
fuera las aulas de Instituto, quien le deja una tablita al óleo Al mio amico Pio pintando
en su taller, del 1895.15 Éste no podría ser más que el nuevo atelier de Pio, el de via del
Corso número 12, heredado de Ernesto De la Cárcova - casi presagio a la más grande
herencia que le iba a dejar unos años más tarde (1908) al designarlo como director de
la Academia de Bellas Artes de Buenos Aires. Collivadino al llegar a Roma alquilaba
otro taller, en via Sicilia, del cual conservó en su archivo varios documentos visuales
- una foto [Figura 3], y algunas pinturas.

Esas imágenes son indicadores, una vez más, de los referentes artísticos más
significativos para un joven estudiante de la academia. Se pueden reconocer colgadas
en la pared algunas obras, que hablan de la experimentaciones de Collivadino en
sus primeros años en Roma: puede reconocerse un Autoritratto de Francesco Paolo
11  Collivadino y Sáez, además, como era típico entre los artistas, compartían modelos, como un tal Giggi di Saracines-
co apodado “Er Caino” (como recuerda JANDOLO, Augusto en Studi e modelli di via margutta 1870-1950, Ceschina,
Milano 1953). Un ejemplo elocuente en tal sentido es la cercanía de una cabeza de Un ciociaro pintada por Saez en 1897
(colección MNAV) y el modelo que posa para una fotografía junto con Collivadino en su estudio delante el lienzo Caín
en su primera versión (antes de 1899) perteneciente al Archivo del Museo Pío Collivadino (TAREA-UNSAM) y publi-
cada en MALOSETTI COSTA, Laura, Collivadino. El Ateneo, Buenos Aires 2006, p. 57. Sáez y Collivadino, quien no
desprecia la vida bohemia, participan también en varias mis en scène. Una anécdota cuenta que el uruguayo disfrazado
de Sarah Bernardt y el argentino de Benoît-Constant Coquelin dieron un espectáculo en el salón del Circolo Artistico
dejando el público estupefacto, pese a que fuera un público ya avezado a las iniciativas burlescas tanto de Collivadino
mismo como de muchos de los socios. Cfr. AGUERRE, Enrique (Org.), Saez un mirar habitado, op. cit. p.43 y MALO-
SETTI COSTA, Laura, Collivadino, op. cit. p. 15
12  Se trata de la obra: FERRARI, Juan Manuel, Diógenes Hequet, c. 1900, bronce, 44x29x23 cm, Museo Nacional de
Artes Visuales, Montevideo
13  La fotografía, sin título, se encuentra en el AMPC, inv. 2.7.1/33
14  En la cubierta del álbum está escrito: “Per la storia / Pio Collivadino Juan M Ferrari / Questo ALBUM il giorno 19
Aprile 1892 / se ne andò solo da / Pozzuoli a Torregaveta / dimenticato da me in / un vagone di 2a classe./ Ritornò a
Pozzuoli dopo due ore e mezza / di viaggio gratuito./ (Per le mie memorie d’un giorno)”, AMPC, inv. n. 3.4/9005
15  La obra de Branzani está reproducida en MALOSETTI COSTA, Laura, Collivadino, op. cit. p. 54

102
Michetti, y de él también una figura de
Ciociara, el Vitello con beccaio y Ombre
secolari, pinturas de Lorenzo Delleani que
Pio copia en la Galleria d’Arte Moderna
como diligente alumno. Desde ese primer
ambiente, sencillo y austero, su taller no
se modifica mucho al mudarse al Corso.
Éste, sin embargo, aun no siendo uno de
los grandes estudios in stile, funciona como
lugar de reuniones de muchos de sus amigos.
Además del ya mencionado Branzani, son
asiduos frecuentadores del lugar Siffrido
Panzarasa, Edmondo Abbo della Pina, un tal
Bouland pintor egipcio, todos por supuesto
también animadores del Circolo Artistico de
Figura 3 - Studio in via
Via Margutta. Sicilia, 1891, fotografía
al albumina, 12,4 x 17,9
Cuando, con el principiar del nuevo siglo, llega otro grupo de artistas latinoamericanos, cm. AMPC, TAREA-UN-
se encuentran, estos, con un sistema de interacciones ya perfectamente estructurado y SAM, Buenos Aires, Ar-
gentina.
funcionante, resultado de los nuevos circuitos culturales que en Roma se construyeron
después de 1870. Cesareo Bernaldo de Quirós, Alberto María Rossi y Juan Manuel
Ferrari, alrededor de 1905, posan para el periodista de Caras y Caretas delante
del taller de Quirós en Roma16 para uno de aquellos reportajes sobre los artistas
nacionales. Reportajes gracias a los cuales se conoce también el estudio del escultor
Victor Garino, otro lugar de sociabilidad, que acogía otros compatriotas como Héctor
Nava y Antonio Alice.17

Es así como los networks artísticos se van formando, donde los ateliers de los artistas
más viejos sirven para aprender acerca de los segreti di bottega, los cuales se conjugan
con los atelier de los más jóvenes, más alegres y despreocupados, y por supuesto con los
espacios comunes del Instituto
y del Circolo. Imágenes como la
Figura 4 siguen siendo indicio
directo de las comunidades
que se constituyen, donde no
sólo participan los artistas,
Figura 4 - Quirós y los
sino que también aspirantes artistas latinoamericanos
escritores e intelectuales – en en Roma, c. 1907. Fuen-
te: Archivo General de la
ésta parece reconocer un muy
Nación Dpto. Doc. Foto-
joven Oliverio Girondo, quien gráficos. Buenos Aires.
en estos años empieza sus Argentina.
andanzas en el mundo del arte y

16  Crónicas de antaño. Cesareo Bernaldo de Quirós, en Roma, en los recuerdos de nuestro corresponsal Rafaél Sím-
boli en Caras y Caretas, n. 2067, 14 de mayo de 1938, p. 8. Siendo recuerdos de antaño, seguramente las fotografías se
remontan al comienzo del siglo XX, dado que en 1906 Quirós vuelve de Europa.
17  Caras y Caretas, n. 464, 24 de agosto de 1907, p. 71

103
de la cultura, junto con los argentinos Quirós, Nava y Garino y cuatro paraguayos, dos
de los cuales – Carlos Colombo y Juan Andrés Samudio – son los primeros becados
del gobierno para estudiar en Europa (a partir de 1903).18

En los comienzos del siglo XX, la colonia latinoamericana en Roma se agranda.


Entre los artistas que viven estos años de la Belle Époque, están también Carlos
Ripamonte y Arturo Dresco. Ripamonte, quien es el serio del grupo, del cual se
burlan Rossi y Quirós,19 frecuenta el taller de Giulio Artistide Sartorio, pintor del
círculo dannunziano, que dejará huellas visibles en su lenguaje pictórico, sobre
todo en aquellas representaciones de la Campagna Romana, de sus aguas y de sus
animales que transferirá pronto a la pampa argentina. El escultor Dresco en cambio,
moviéndose entre Roma y Florencia, puede captar estímulos diversos, desde el estilo
verista mezclado al gusto burgués que se respira a esta altura cronológica en el atelier
de un anciano Giulio Monteverde, al refinado simbolismo de un internacional y
moderno Domenico Trentacoste, que se encuenta en el auge del suceso.

En 1907, Collivadino, Dresco, Quirós, Ripamonte, Rossi, constituyen en Buenos Aires


un grupo de vanguardia con el nombre de Nexus, juntos a los pintores Justo Lynch y
Fernando Fader. Es relevante destacar que este grupo bonaerense encuentra el germen
de su formación en aquellos momentos de vida romana.20 Éste podría ser el más claro
ejemplo de la importancia que conllevan los networks artísticos de aquel período en
Roma en el proceso de modernización de los sistemas artísticos latinoamericanos.

Este recorrido empieza con una ruptura con el arte académico a través del vero
morelliano, que a su vez tempranamente se convierte en “academicismo”, tanto que
los artistas recién mencionados, participantes de una cultura moderna en Roma,
sufren las enseñanzas veristas y buscan una vía de fuga en los círculos y en los ateliers
que se convertirán en lugares de sociabilidad y de experimentación.

La individuación de estos procesos de intercambios artísticos descriptos en el


presente trabajo, conlleva al surgimiento de algunas preguntas que buscan ensanchar
la brecha abierta hace ya algunos años por la historia del arte tanto europea como
latinoamericana, que comienza a mirar aquellas otras capitales de la modernidad,
además de París, que se desarrollaron entre los siglos XIX y XX. Beatriz Joyex-
Prunel cuestiona la tradicional jerarquización de las capitales culturales a fines del
siglo XIX, haciendo hincapié en el momento donde París perdería su predominio
convirtiéndose en una ciudad-mercado, y dejando lugar a otras ciudades, hasta aquel
entonces “periféricas”, tales como Bruselas, Praga, Munich, donde se desarrollan
nuevas vanguardias.21 En el esquema propuesto por Joyex-Prunel, Roma entraría
18  ESCOBAR, Ticio, Interpretación de las Artes Visuales en el Paraguay. Servilibro, Asunción del Paraguay 2007,
pp.295-345
19  El escrito inédito de ROSSI, Alberto M., Artistas argentinos en Roma. Una anécdota de antaño (AMPC inv.
3.3.2/9003), recuerda que Ripamonte estaba siempre con la Baedecker en mano, y reta a los dos perditempo Rossi y
Quirós que no se interesan a las bellezas históricas de Roma sino que solo a los lugares de esparcimiento.
20  Cfr. MALOSETTI COSTA, Laura, Collivadino, cit. pp. 69-86
21  JOYEUX-PRUNEL, Béatrice, The use and abuse of peripheries in Art History. Artl@as Bulletin, núm. 3, issue 1,
2014, artículo 1. Disponíble al enlace: http://docs.lib.purdue.edu/artlas/vol3/iss1/ y también de la misma autora “L’art
mobilier”. La circulation de la peinture avant-gardiste et son rôle dans la géopolitique culturelle de l’Europe en CHAR-
LE, Christophe (Org.), Le temps des capitales culturelles. Seyssel, Champs Vallon, 2009, pp. 171-207

104
simplemente como una capital artística intocable hasta 1850, que en la segunda mitad
de dicho siglo cedería todo su poder a las otras ciudades europeas. Sin embargo
aquí existe un nudo crítico abierto, que hace falta resolver, y en este sentido van las
preguntas de este breve escrito.

¿Qué buscaban los artistas anteriormente mencionados al elegir ir a Roma en vez que
a París, siendo ésta última la ciudad reconocida en todo el mundo como la moderna
capital de las artes del siglo XIX, que hospedaba ya una importante y bien organizada
colonia de artistas latinoamericanos? ¿Cuál, o mejor dicho, cuáles modernidades
artísticas ofrecía Roma a fines de siglo?

Se puede comenzar a pensar sobre este asunto a partir de lo propuesto por Gianna
Piantoni y Anna Maria Damigella, unas de las primeras historiadoras del arte que
reflexionaron sobre la modernidad del Ottocento italiano y romano en particular,
en la muestra Aspetti dell’arte a Roma dal 1870 al 1914.22 Como así también en la
exposición realizada entre Roma y París que tenía como título emblemático Italie
1880-1910. Arte alla prova della modernità (curada por Piantoni y Anne Pingeot).23
En la capital de Italia la modernidad llega, según Piantoni, con la crisis del realismo,
y el cuestionarse del ‘vero’ morelliano24. Cuando el debate artístico de fines de siglo
en Italia se moviliza para superar la cultura realística a través de una resignificación
del “vero”, se intentará no realizar ya una representación objetiva de la realidad, sino
una trasformación de ella a través de una interpretación subjetiva del “vero” y de
la realidad. Esta renovación se explicitará antes que todo en la pintura de paisaje.25
Como ya han propuesto algunos historiadores del arte,26 la Ciudad Eterna continuará
teniendo un importante rol como capital mundial de las artes también en la segunda
mitad del siglo XIX, pese a que por parte de la historiografía artística padeció de un
importante abandono, como ha evidenciado recientemente Susane Adine Meyer.27

Cuando se convierte en la capital de la Italia Unita, en 1870, Roma acoge el reto de


la modernidad y desde las cansadas extremidades del que hasta entonces había sido

22  DAMIGELLA, Anna Maria, FRANDINI, Paola, PIANTONI, Gianna (Orgs.), Aspetti dell’arte a Roma dal 1870 al
1914, De Luca Editore, Roma 1972
23  PIANTONI, Gianna y PINGEOT, Anne, Italie 1880-1910. Arte alla prova della modernità, Allemandi, Torino 2001
24  cfr. PIANTONI, Quale modernità? En: Italie 1880-1910 cit. pp. 37-44
25  PIANTONI, Gianna, ‘Modernità’ della pittura di paesaggio a Roma tra ottocento e novecento. En: PIANTONI,
Gianna (Org.), La Poesia del vero. Pittura di paesaggio a Roma tra Ottocento e Novecento da Costa a Parisani, De Luca
editore, Roma 2001 pp. 9-19
26  Entre otros cabe destacar Camila Dazzi que ha trabajado sobre la importancia de Roma para los artistas brasileños
que allí viajaron a fines del Ochocientos. DAZZI, Camila. A Associação Artística Internacional de Roma sodalício de
artistas estrangeiros residentes na Itália em fins do século XIX. En: 19&20, v. IX, p. 15-30, 2014; Meirelles, Zeferino,
Bernardelli e outros mais: a trajetória dos pensionistas da Academia Imperial em Roma. En: Revista de História da
Arte e Arqueologia, v. 10, p. 17-42, 2008; As Relações Brasil-Itália na Arte do Segundo Oitocentos: estudo sobre a
obra de Henrique Bernardelli (1880 a 1900), tesis de maestría, Universidade Estatual de Campinas, defendida el 31 de
mayo de 2006. Hay que evidenciar además las VI Jornadas de Historia del Arte, GUZMÁN, Fernando, MARTÍNEZ,
Juan Manuel, Vínculos artísticos entre Italia y América. Silencio historiográfico, Museo Histórico Nacional, Facul-
tad de Artes Liberales de la Universidad Adolfo Ibáñez, Centro de Rastauración y Estudios Artísticos CREA, Santiago
de Chile, Valparaíso 1-3 de agosto de 2012.
27  MEYER, Susanne Adina, Roma “capitale delle arti”. Fonti per la fortuna di un topos storiografico dell’Ottocento. En:
CAPITELLI, Giovanna, GRANDESSO, Stefano, MAZZARELLI, Carla (Orgs.), Roma fuori di Roma. L’esportazione
dell’arte moderna da Pio VI all’Unità (1775-1870), Campisano Editore, Roma 2013. Este libro nace de un congreso que
se hizo con la intención de llevar a un ámbito internacional el discurso sobre el rol de Roma en el Ottocento, italiano,
europeo y extra-continental.

105
estado pontificio resurgen nuevos anhelos de grandeza, que van fortaleciendo los
dormidos espíritus culturales de la ciudad. Protagonista del momento es Nino Costa,
pintor patriota formado en la escuela napolitana quien a partir de la década de los
Sesenta comienza a poner en acto aquella resignificación del ‘vero’ de la que habla
Gianna Piantoni, volcando todo su empeño en hacer que el arte resucitara en la Roma
laica, al fin de alcanzar una característica identitária que pudiese representar el estilo
oficial de Italia entera.

El mutado escenario después de la Breccia di Porta Pia conlleva nuevas exigencias en


el medio artístico. Una de ellas será la de constituir un centro de agregación cultural
libre. Data de 1870 el nacimiento de la Associazione Artistica Internazionale (también
llamado Circolo Artístico Internazionale), alrededor de la cual se moverán todos los
espíritus bizarros y anticonvencionales que en Roma viven o por Roma pasan, hasta
la mitad del siglo XX. Gracias a la libertad que existe en tales ambientes, ya que la
Asociación no tiene interés en ligarse a órganos oficiales, surgen colaboraciones y
sincretismos que confieren un carácter peculiarmente “romano” a los lenguajes que
se van desarrollando en ese periodo, y de los cuales son explícitos testimonios las
obras producidas por los latinoamericanos que allí viajan. El lenguaje desarrollado
por los artistas latinoamericanos que estén en aquel periodo en Roma no puede ser
estudiado sin considerar los campos de relaciones con que están en contacto. El
ambiente romano se encuentra tan rico de estímulos que los jóvenes que allí lleguen
con estilos inmaduros, se embeben inevitablemente y ávidamente de todo lo que la
ciudad le está proponiendo.

A los pocos años de que el Circolo abriera sus puertas, su protector, el príncipe
Baldassarre Odescalchi, publica una descripción de los atelier de Roma28 con el fin de
“presentare al lettore un quadro sintetico dell’arte moderna in questa città nella nuova
forma che ha rivestito, riflettente le generali tendenze dei tempi al positivismo,”29 en
defensa de la pintura spagnoleggiante de los adeptos de Mariano Fortuny. Esta pintura
de “manera fácil”, que estaba fuertemente criticada por Nino Costa, sin embargo
alcanzó una gran difusión y aceptación en la mayoría de los ámbitos artísticos de
Roma y de Italia de aquel periodo.

Casi todos los artistas latinoamericanos se involucrarán con la colonia española.


Se pueden citar a título de ejemplo: Carlos Federico Sáez que se junta a menudo
con Sanchez Barbudo, y con los hermanos Benlliure, gracias también a la ventaja
de tener su atelier en via Margutta 32;30 Collivadino que asiste a su primer carnaval
artístico con todo los españoles del Circolo;31 el peruano Carlos Baca-Flor que está
28  ODESCALCHI, Baldassarre, Gli studi di Roma. Ricordi artistici. Capaccini, Roma 1875
29  Idem
30  Es la misma calle donde se sitúa la Associazione Artística Internazionale y muchos de los talleres de pintores y
escultores modernos. Sobre la importancia de esta calle, sus habitantes y el micromundo que allí se desarrolló, cfr.
MONCADA DI PATERNÒ, Valentina (Org.) Atelier a via Margutta. Cinque secoli di cultura internazionale a Roma.
Allemandi, Torino 2012.
31  Los carnavales del Circolo eran uno de los mayores momentos de vida mundana de Roma de fin del siglo, pero tam-
bién ocasión imperdible para los artistas, al fin de crear obras de arte escénico que maravillaran el público. Testigo de
ésta experiencia de Collivadino es la fotografía de los F.lli D’ALESSANDRI, A bordo del Terrible, AMPC, inv. 2.7.3/9080,
publicada en MALOSETTI COSTA, Collivadino, op. cit.

106
fotografiado en el estudio de Miquel Blay,32 escultor catalán con quien comparte el
atelier durante algunos años (Bacaflor estaba también muy vinculado a Pradilla). Si
bien estas relaciones con los artistas españoles fueron muy fuertes, cabe subrayar
que ellos serán sólo uno de los muchos referentes de los artistas que frecuentan el
ambiente romano finisecular. De hecho la pintura spagnoleggiante muy pocas veces
resulta tener parte fundante del lenguaje maduro de los artistas de que trata este
escrito.

En la década de los Ochenta del siglo XIX se instala en Roma Antonio Mancini.
Mancini vive plenamente absorbido por los altibajos del mercado, es un frecuentador
del Circolo, especialmente de la escuela de desnudo, y se convierte rápidamente en
otro referente casi obligado para los latinoamericanos.33 En el estudio antes citado
Aspetti dell’arte a Roma dal 1870 al 1915, Antonio Mancini no es aceptado al interior
de un relato histórico-artístico que resalta los principales hitos de la modernidad
romana después de la Unità. Sin embrago en el panorama que aquí se está intentando
plasmar, donde los artistas latinoamericanos tienen un rol protagonista, no se puede
omitir la transcendencia de Mancini, visitado, imitado e incansablemente admirado
por todos ellos, no obstante la reiteración de un lenguaje que, si bien modernizado,
provenía de la tradición napolitana. Muchas biografías de estos artistas, muestran
una verdadera adoración hacia este pintor. Mancini mismo, en su curioso último
autorretrato, realiza una suerte de curriculum vitae a través de los nombres de las
personas importantes en su vida, donde escribe en alto también “Baca Flor pittore/
amico/peruviano.”34

Se entiende que para indagar los vínculos artísticos entre Latinoamérica y Roma a
fines del Ochocientos, Mancini es un nudo importante que todavía espera ser más
profundamente analizado bajo este aspecto, dado que una herramienta fundamental
para hacerlo, su archivo personal, resulta hoy en día prácticamente fuera de la
posibilidad de consulta.35 Se sabe que el pintor abría con placer su estudio de vía
Flaminia a los jóvenes. En una entrevista para “Caras y Caretas” en 1929,36 recuerda
algunos nombres de argentinos que a menudo lo visitaban: Antonio Alice, Carlos
Ripamonte, Cesáreo Bernaldo de Quirós, y naturalmente Pio Collivadino. De éste
último cuenta:
¡Qué gran corazón y qué talento el de este muchachito! Cuando él estudiaba en Roma, me
visitaba con frecuencia. Me quería mucho. Creo que me quiere, pues no me olvida nunca.

32  KUSUNOKI, Ricardo, MAJLUF, Natalia, WUFFARDEN, Luis Eduardo (Orgs.), Carlos Baca-Flor. El último aca-
démico. Gráfica Biblios, Lima 2013
33  Cabe destacar que en la década de los Ochenta, otra figura que tiene un notable peso en la producción pictórica de
los artistas latinoamericanos en Roma es Francesco Paolo Michetti, protegido por el vate D’Annunzio, tiene una fortuna
crítica (y de mercado) muy amplia. Para una biografía exhaustiva, cfr. DI TIZIO, Franco, Francesco Paolo Michetti
nella vita e nell’arte, Ianieri, Pescara 2007
34  Se trata de la obra de Antonio MANCINI, Autoritratto con scritti autobiografici, 1929, óleo sobre lienzo, 80x70
cm, Colección Pesci-Mancini, Roma, publicada en HIESINGER, Urlich W., Antonio Mancini. Nineteenth-Century
Italian Master, Philadelphia Museum of Art - Yale University Press, New Haven, 2007, p. 99
35  El archivo de Mancini se encuentra como donación privada de los herederos del pintor a la Galleria d’Arte Russo de
Roma. Encontrándose en fase de catalogación y archivo, todavía no está disponible a la consultación pública.
36  DE SOIZA REILLY, Juan José, Con el maestro del color, Antonio Mancini. En: Caras y Caretas, n. 1617, 28 de
septiembre de 1939, pp. 6-9

107
De vez en cuando llega una carta de él. ¡Es un “angelo”! Al leer sus cartas me parece
tenerlo por delante con su cara feliz. [...] Collivadino nunca me interrogó acerca de la
composición de mis colores, pero al entrar en mi taller, metía el dedo en mis desperdicios
de pintura, revolvía la pasta, se la acercaba a los ojos para analizarla como bajo la doble
lente de algún microscopio.37

Una vez más, testimonio de la frecuentación entre el joven y el maestro, es la


correspondencia de un dibujo de un Vinaio de Mancini [Figura 5] con uno de
Collivadino [Figura 6], probablemente realizados una misma
tarde delante el mismo modelo en la escuela de desnudo del
Circolo.

En esta reconstrucción d’ensemble de los distintos aspectos del arte


en Roma entre los siglos XIX y XX, que involucran a los artistas de
allende el océano que allí viajan, el pasaje quizás más importante en
el camino hacia la modernidad, se cumple en los años Noventa. En
este momento comienza a difundirse una corriente que alimenta
sus ideales en las búsquedas científicas sobre el color que estaban
irrumpiendo en toda Europa partiendo por Francia, y que en Italia
se declinan hacia exigencias del todo singulares y puntuales con
la formación del Divisionismo italiano. Teóricos de esta tendencia
serán sus “iniciadores” mismos, los pintores Giuseppe Pellizza
da Volpedo, Giovanni Segantini, Gaetano Previati, y Angelo
Morbelli, y Vittore Grubicy de Dragon. Este último, pintor pero
sobretodo crítico de arte, declara
el divisionismo la “segunda vía
de la modernidad”, gracias a
quien esta corriente se abre al
Figura 5 - Antonio Man- panorama internacional.38
cini, Il vinaio. Raccolta
Pallavicini, Torino, Ita-
Del divisionismo existe, empero, una declinación
lia. Fuente: SCHETTINI,
Antonio Mancini, Napoli peculiar en Roma, tanto que se llega a hablar de
1953 p. 159. Divisionismo romano.39 Propulsores de este singular
desenvolvimiento son sin duda Giacomo Balla por
un lado, llegado a la ciudad en 1895, y Pellizza da
Volpedo, con su breve estadía en 1896, por el otro.
El primero de ellos, reúne alrededor de su atelier
un grupo de artistas en ruptura con la oficialidad
Figura 6 - Pio Collivadino,
Il vinaio. AMPC, TAREA-
con un enfoque hacia una pintura que superara
UNSAM, Buenos Aires, el simbolismo característico de los divisionistas
Argentina. “puros”. Para el segundo el divisionismo es una

37  Idem, p. 7.
38  CAGIANELLI, Francesca, MATTEONI, Dario (Orgs.), Il divisionismo. La luce del moderno. Silvana Editoriale,
Cinisello Balsamo (MI) 2012 y también el catálogo de la reciente exposición QUINSAC, Annie-Paule (Org.), Segantini.
Il ritorno a Milano, Skira, Milano 2014
39  BENEDETTI, Maria Teresa, Il divisionismo romano. En: STEFANELLI TOROSSI, Lucia (Org.) Divisionismo
romano. De Luca editore, Roma 1989 pp. 9-22

108
herramienta que le permite reconectar el hombre a la naturaleza, portador de una
utopía: no más arte por el arte sino arte por la humanidad, asentando así las bases
para el desarrollo de una corriente que perdura hasta los años Veinte del Novecientos,
el llamado arte social.

Al arte social se asocia inevitablemente el nombre de Duilio Cambellotti.40 Desde


joven este artista toma el ideal a partir de las artes gráficas, rompiendo con todas
las corrientes del momento que vienen de las ideas prerrafaelitas y simbolistas,
orientándose hacia las Arts and crafts. Tendencia ésta que principia su fortuna italiana
más extensa con la Prima Esposizione di Arti Decorative de Turín en 1902 y la del
Bianco e Nero de Milán en 1906, y que llega a superar las vanguardias históricas
y encontrar en el tercer decenio del Novecientos una posición clave en el grupo
de la “Secessione Romana”. También el circulo balliano, con Umberto Boccioni y
Gino Severini a la cabeza, encaran la temática social haciendo del divisionismo una
herramienta de indagación psicológica de los marginados en la sociedad moderna.

Un ejemplo de la asimilación de estos lenguajes modernos puede ser el de Pio


Collivadino, para quien la representación del paisaje urbano “en devenir” a colori
divisi fue verdaderamente impactante, tanto que es reconocido como el pintor de
la “Buenos Aires en construcción.”41 Él mismo, de la experiencia romana vivida en
este momento de transición, toma conciencia de la eficacia de las artes decorativas,
y de las infinitas posibilidades de aplicación en el ámbito cultural. La constitución
de una cátedra de grabado y escenografía, en la Academia Nacional de Bellas Artes,
instituida por él, ya director, en el momento de su reforma, tiene que ver seguramente
con sus frecuentaciones de los ateliers de los artistas recién nombrados.42

Retomando la pregunta de Beatrice Joyeux-Prunel, “Victoire de l’art modern, victoir


de Paris?,”43 a la luz de lo expuesto hasta ahora, se puede pensar una nueva geografía
artístico-política del arte moderno que no sólo relativice la posición de París teniendo
en cuenta las capitales alemanas, austríacas y belgas, sino que se introduzca en el debate
también a la capital italiana. La tendencia cada vez más difusa de hacer una Global
Art History del siglo XIX, de la cual Joyeux-Prunel es defensora, no puede entonces
dejar de entender la manera en que Roma también siguió teniendo un peso real en la
formación de los estilos nacionales latinoamericanos y en la conceptualización de sus
modernidades artísticas.

40  No es mucho lo que se escribió sobre Cambellotti, pero es importante mencionar el último catálogo sobre su
producción con numerosos ensayos críticos: ANGIULI, Emanuela (Org), Duilio Cambellotti. Le grazie e le virtù
dell’acqua, Silvana Editoriale, Cinisello Balsamo (MI), 2015
41  MALOSETTI COSTA, Laura, Collivadino. Buenos Aires en construcción. Asociación Amigos del Museo de
Bellas Artes, Buenos Aires 2013.
42  MALOSETTI COSTA, Collivadino, op. cit. pp. 133-145
43  JOYEUX-PRUNEL, “L’Art mobilier”, op. cit. p. 184

109
110
Antonio Parreiras:
a floresta como ateliê -
pintura direto da natureza

Isabel Sanson Portella 1

Este trabalho não pretende fazer uma análise da obra completa do pintor Antônio
Parreiras. Enfocará apenas sua última “fase”, mais especificamente, as florestas. Pintor
de vasta produção, Parreiras seguiu uma longa trajetória até alcançar a maturidade.
Foram muitos anos dedicados ao trabalho obstinado, procurando transportar para a
tela o fruto de seu olhar e o sentimento da alma.

Tentar encaixar Parreiras em um só gênero artístico seria cair em grande erro. No


entanto, podemos afirmar que a tônica de sua obra sempre girou em torno da pintura
de paisagem e a identidade com a natureza é fator evidente. Parreiras absorveu a força
das florestas, assimilou a energia das matas brasileiras e, mesmo após encerrar-se nos
ateliês, sua alma permaneceu impregnada dessas imagens.

Ele escreverá mais tarde em seu livro História de um pintor contada por ele mesmo:
“Resolvi então realizar o meu ideal; ser um artista. Vendi uma das casas que meu pai
2
me havia legado e entrei para a Academia de Belas Artes, para a aula de J. Grimm.”

Quando Grimm fora nomeado professor da cadeira de Paisagem, Flores e Animais


na Academia de Belas Artes, as aulas encontravam-se na rotina de copiar estampas,
representando ruínas romanas, ou velhos castelos da Alemanha, muitas vezes
reproduzidas.

1 Coordenadora/Curadora da Galeria do Lago, Museu da República, Rio de Janeiro, Brasil.


2  PARREIRAS, Antonio. História de um pintor contada por ele mesmo. Niterói: Niterói Livros, 1999. p. 16.

111
Antônio Parreiras foi admitido como aluno-amador na Imperial Academia de Belas
Artes, no dia 25 de janeiro de 1883, tornando-se efetivo em paisagem, perspectiva e
aritmética no ano seguinte. Passou a dedicar-se então a uma única e exclusiva ativi-
dade, embora enfrentando enormes dificuldades financeiras e grande resistência em
seguir a rígida orientação da Academia.

No ano de 1883, Parreiras executou seu primeiro estudo a óleo, um trecho de paisa-
gem no antigo Largo da Lapa, numa das primeiras excursões realizadas pelo grupo.
No ano seguinte, abandonou a Escola para seguir com Grimm para Niterói, estabe-
lecendo-se em um “curso livre” com alguns outros alunos saídos, como ele, da Aca-
demia.

Pode ser considerado um autodidata. Ia sozinho para as praias, onde ficava o dia
inteiro pintando as areias, barcos, rochedos até já não ter mais posição possível de
enquadramento.

Incansável, Parreiras, fez inúmeras excursões, sempre procurando novos lugares


para estudar a natureza. Serra da Estrela, Cabo Frio, Friburgo, Teresópolis foram
percorridos com frequência e nessas localidades Parreiras se estabelecia sempre
por algum tempo a fim de observar os ambientes em diferentes horas do dia, sob
diferentes aspectos climáticos.

Paisagem, uma pintura brasileira: Parreiras


...penso que todo paisagista que não sabe traduzir em sentimentos
mediante uma composição de matéria vegetal ou mineral
não é um artista. (Charles Baudelaire)
Imbuído de um espírito tenaz, Antônio Parreiras, discípulo fiel de Grimm, desen-
volveu durante os cinqüenta e quatro anos, a mais importante obra de pintura de
paisagem brasileira. Nenhum outro pintor, dos que seguiram a escola de pintura ao
ar livre, trabalhou e lutou como ele para vencer dificuldades, tanto financeiras como
de preparo artístico.

Obstinado em procurar caminhos autênticos e coerentes para seu trabalho, Parreiras


encontrou segurança e originalidade na síntese amadurecida das convicções natura-
listas. Seus fundamentos são os adquiridos na convivência profunda com os ideais da
pintura ao ar livre.

Para pintar uma paisagem, primeiro fazia diversos estudos, observava, desenhava,
analisava os efeitos da luz em diversas horas do dia. Com o auxílio desses desenhos
é que então compunha a paisagem interpretando o que havia visto. Seus quadros são
interpretações, não cópias. A natureza, apenas inspira e auxilia; quem produz é o ar-
tista. “Desenhando se estuda mais do que pintando; a pintura nada mais é do que um
3
desenho colorido” . Certamente essas noções são ecos de ensinamentos de Grimm
que tantas vezes afirmou o valor do desenho, da linha e da cor.
3  SALGUEIRO, Valéria. Caderno com notas manuscritas em 90 páginas sobre técnica de pintura e opiniões sobre arte.
Antônio Parreiras. Notas e críticas, discursos e contos: coletânea de textos de um pintor paisagista. Niterói: Ed.
UFF, 1998. p. 63.

112
Completava-se a fase de afirmação da pintura de Parreiras na última década do sécu-
lo XIX. Inquieto, sentindo necessidade de isolar-se, voltou-se inteiramente para a na-
tureza, revoltado com o meio ambiente social. Aprofundou-se como nunca nas matas,
encontrando a paz na observação das cores, das árvores. Como resultado conseguiu
uma integração quase absoluta com a natureza selvagem. As formas vegetais adqui-
riram, nos seus estudos, propriedades anímicas. A árvore deixou de ser um conjunto
de tronco, galhos e folhas, para conter em si tudo o que constitui o ambiente em que
se encontra. A observação profunda do espaço está contida na forma das árvores, que
denuncia a idade, a atmosfera que a envolve e sua origem. Com uma árvore, Parreiras
afirma, “pode-se exprimir alegria, dor, velhice, mocidade, saudade e nostalgia”.4

Porém a dificuldade para se conseguir tais propósitos é imensa. Dar sentimentos às


árvores e florestas não é como se faz com a figura. Não há duas árvores iguais e o de-
senho de uma é completamente diferente do da outra.

Simon Schama comenta em Paisagem e Memória:


A árvore deixa de ser um conjunto de tronco, de galhos, de folhas para por si só, con-
ter tudo que constitue o ambiente em que ela está. Ela denuncia o país onde nasceu, o
momento sob cujo aspecto foi vista pelo artista, a estação, a sua idea, sua origem, até
a atmosfera que a envolve. A árvore tem seu esqueleto, seus músculos, a sua anatomia
perfeitamente determinada. Com a árvore, se pode exprimir a alegria e a dor a velhice, a
mocidade, a florescência, a decadência a saudade e a nostalgia.5

Na paisagem tudo varia a cada minuto: a linha geral de um contorno externo não será
amanhã o que é hoje. Para desenhar bem uma árvore, Parreiras parte do esqueleto
formado pelo tronco e os galhos. Este é a base a que corresponderá o volume e o peso
da folhagem. Surgem daí os cipós contorcidos, o tronco e os galhos com movimentos
quase gestuais. Parreiras diz:
O que se obtém por acaso em uma obra de arte não tem valor algum. A originalidade de
uma pintura está no sentimento e não na execução. Cada objeto deverá ter o seu caráter
e isso é conseguido por meio de feituras diferentes para cada um. O tronco não pode ser
feito do mesmo modo que pedras ou folhagens; isso prejudicaria a expressão.6

Parreiras procurava, sobretudo, esta expressão quando pintou Sertanejas (1896). No


quadro, o desenho diluído e as formas construídas da fragmentação da pincelada,
criaram uma atmosfera quase irreal, entre o tenebroso e o fantasmagórico. Parreiras
sintetizou em Sertanejas tudo o que havia observado na floresta, todos os tons da
selva, assim como sua luz. Mas, principalmente, o que sobressai e impressiona a todos
que observam o quadro, é o tom de verde empregado.

A textura da obra pode ser sentida no empastamento das tintas, nas cores vibrantes,
nas luzes e sombras que fazem com que galhos e troncos de árvores se projetem,
extrapolem os limites da tela.

4  Id. Ibd. p. 69.


5  SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 14.
6  SALGUEIRO, op. ci. p. 69.

113
Executado num momento de transição,
quando o Brasil passava de Império
para República, este quadro representa
o gosto revolucionário da época. Foram
anos de trabalho, de observação in loco
nas florestas, sintetizados e registrados
em centenas de esboços e desenhos, que
resultaram numa obra viva, retirada do
seio da imensa floresta tropical. O quadro
é tão absolutamente verdadeiro que se
pode perceber a liberdade das borboletas
sobrevoando um caminho iluminado.
Figura 1 - Antônio A palavra Sertanejas [Figura 1] vem da denominação popular para um tipo de
Parreiras, Sertanejas.
borboletas, grandes e azuis, encontradas em abundância nas regiões florestais
1896. Óleo sobre tela,
273 x 472 cm. FONTE: exploradas pelo pintor Antônio Parreiras. Um bando de borboletas move suas asas
LEVY, Carlos Roberto para manterem-se em equilíbrio no ar, um feixe de luz penetra na floresta banhando
Maciel. Antônio Par-
o chão com uma luminosidade magnífica. O observador é levado a concentrar-se no
reiras: pintor de paisa-
gem, gênero e história. que se passa imediatamente diante de si; as folhas secas no chão, as sertanejas que
Rio de Janeiro: Pinako- voam diante das raízes. A natureza surge como um mundo interior tornado visível.
theke. 1981, p. 42.
No fundo, uma clareira se destaca. A clareira só existe em virtude do diálogo secreto
com a floresta que a circunda.

Sertanejas foi, sem dúvida, a obra-prima de Parreiras e seu enorme sucesso em 1896
inspirou versos de vários poetas, entre eles Olavo Bilac, Guimarães Passos e Valentim
Magalhães.
O verdes, verdes horas passageiras
De amor! Verdes planícies de Ventura!
No vosso encontro, que tão pouco dura,
Sois verdes como as serras brasileiras...
Aqui na glória de viver, Parreiras,
Muitos, – n’este infinito de verdura,
Verão que o próprio coração fulgura,
Verde, ao clarão das ilusões primeiras...
Mas, diante d’essas telas algum dia,
Virão parar, mirando-as tristemente,
Almas defuntas, corações fanados:
E, ali Paysagens da Vida e da Alegria!
Como esse verde de Esperança ardente
Tortura as almas dos desesperados!
(Olavo Bilac)

O crítico João Luso num artigo para o jornal A Noite diz que “Parreiras traz a floresta
7
no sangue, nos nervos, no sentimento” , e considera Sertanejas a obra máxima da
paisagem brasileira.

7  LUSO, João apud LEVY, Carlos Roberto Maciel. Antônio Parreiras: pintor de paisagem, gênero e história. Rio de
Janeiro: Pinakotheke, 1981. p. 75.

114
A floresta virgem, na literatura hispano-americana está associada à grande floresta
devoradora. Num trecho de Vitor Hugo, encontra-se concepção idêntica:
As árvores assemelham-se a mandíbulas que roem
Os elementos, dispersos no ar brando e desperto;
Para elas, tudo tem sabor: a noite a morte…
… e a terra jubilosa
comtempla a floresta descomunal a comer.8

A paisagem romântica nasce do processo associativo, pelo qual os estímulos da natureza


são transformados simbolicamente em imagens da origem da vida. As árvores de uma
floresta tropical se apresentam em todos os estados imagináveis de desenvolvimento
e decomposição, com troncos caídos e galhos curvados. Essas formas fantásticas são
motivo de interesse para os pintores românticos que procuram o inusitado.

Nesse mesmo período, na Europa, o Impressionismo estava se posicionando como


movimento. Em 1886 os impressionistas fizeram a última exposição coletiva e, em 1894,
Monet terminou sua série da catedral de Rouen. A fotografia já era de fato considerada
como uma técnica artística, podendo isentar os pintores do seu papel de retratistas.
Sertanejas, surgiu no período em que Parreiras tinha como concepção ideológica o
romantismo e como técnica artística, seguia as pesquisas dos impressionistas. Este
romântico tardio conseguiu transmitir seu inconsciente traduzido em florestas.

Sob o ponto de vista psicológico, a floresta é vista como região do desconhecido, lugar
impenetrável de todos os medos, que fica após os campos, muito além dos muros da
cidade. O pintor que nela se aprofunda, busca a redenção de seus conflitos; pinta-a
de acordo com sua emoção particular, tornando-a sua, possuindo-a. O essencial é
a relação que estabelece com a natureza, quando não procura imitá-la. Equivale à
desordem e ao profundo, regiões apenas tateadas pela arte do pintor. Uma outra
forma de imaginar as profundezas da floresta é como uma fortaleza natural.

Da mesma forma que escrever, pintar é procurar a floresta interior, a natureza, no seu
aspecto mais íntimo, que existe dentro de cada um. É revolver os medos e expulsá-
los, (ou com eles conviver) usando para tanto todas as forças do corpo. A “selvageria
das florestas”, de que fala Marguerite Duras, está repleta de mistérios que geram ao
mesmo tempo angustia e serenidade, opressão e simpatia.

Para Jung: “Por sua obscuridade e seu enraizamento profundo a floresta simboliza o
inconsciente. Os terrores da floresta, tal como os terrores, pânicos, seriam inspirados,
pelo medo das relações do inconciente”.9

Simon Schama, em seu livro Paisagem e Memória, ressalta uma “tradição pagã, que
via as florestas como o nascedouro das nações; o início da habitação”. Ele também
ressalta que “na tradição judia criar um floresta significava voltar a origem de nosso
10
lugar no mundo, ao berço da nação” . Mais adiante diz: “uma vez implantado, o

8  HUGO, Vitor, apud GHEERBRANT, Alain, CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1999. p. 440.
9  GHEERBRANT, Alain, CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999. p. 440.
10  SCHAMA, Simon. Paisagem e memória. São Paulo : Companhia das Letras, 1996. p. 16.

115
irresistível ciclo da vegetação, onde a morte simplesmente aduba o processo do
renascimento, parecia prometer a verdadeira imortalidade nacional”.11

Em cada país a floresta tem um significado diferente. Na Alemanha, por exemplo, a


floresta primitiva era o lugar de auto-afirmação tribal contra o Império romano. Na
Inglaterra, o bosque verde era local onde o rei ostentava seu poder nas caçadas reais.

A floresta, sempre ocupou um grande espaço no imaginário dos povos. Desde a in-
fância, ouvimos ou lemos fábulas em que a mata é cenário de enredos fantásticos, e
habituamo-nos a percebê-la no plano da fantasia. Para os primitivos, a floresta era
uma inimiga poderosa, dominar a natureza, muitas vezes, era garantir a sobrevivên-
cia da espécie humana. Abrir clareiras era o triunfo da civilização.

A floresta, para Parreiras, é o ambiente hostil ou acolhedor, com o qual se tece sempre
uma relação ativa, semelhante à que liga o indivíduo à sociedade. Para ele, como para
Constable, não existe um espaço universal dado a priori, imutável na sua estrutura.
Seu espaço é composto de coisas – árvores, água, troncos, folhas secas.

Parreiras diz:
Annos passei dentro das florestas, ou a percorrer o litoral e constatei que, quanto mais se
observa essa extraordinaria Natureza brasileira, grandiosa, phantastica, mais dificil se
tornou a sua interpretação.12

O motivo da floresta parece instalar-se na pintura de Parreiras não só com o apareci-


mento do realismo pictórico, da atenção dispensada à natureza, mas também com o
interesse renovado pela cor.
Parreiras foi considerado o revelador da paisagem e da floresta, tendo sabido se libertar
das tradições e das regras, no seu país, onde a multidão não compreendia a natureza
detestando-a, encarando-a com ironia e esnobismo.13

Em 1923, trinta e três anos após pintar Sertanejas, Parreiras executou o trípitico Terra
Natal, retornando à orientação adquirida nas matas de Teresópolis.
O accaso levava-me aquelle abandonado abrigo serrano, como a muitos outros logares,
quando moço me dedicava exclusivamente a pintura de paisagens, a procura dos sitios os
mais agrestes, os mais selvagens.14

Baudelaire, poeta e romântico e também um dos maiores críticos de arte de seu


tempo, defendia a ideia de que o pintor grandioso é aquele que abre novas portas
para a imaginação e o sonho. Um artista que representa não o que sonha, mas o que
vê, que “quer exprimir a natureza, mas não os sentimentos que ela inspira, submete-
se a uma estranha operação que consiste em matar dentro dele o homem pensante
e sensitivo”15. Apaixonado pela natureza de sua terra natal, Parreiras traduz em sua
11  Idem, p.16.
12  SALGUEIRO, Valéria. Antônio Parreiras. Notas e críticas, discursos e contos: coletânea de textos de um pintor
paisagista. Niterói: Ed. UFF, 1999. p. 77.
13  NORMANDY, Georges apud LEVY, op. cit. p. 76.
14  SALGUEIRO, op. cir. p. 175.
15  BAUDELAIRE, Charles. A modernidade de Baudelaire. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 127.

116
obra sentimentos nostálgicos que a saudade aflora. A arte, como a poesia, é uma
catarse espiritual e o verdadeiro artista deve ser capaz de, guiado, pela imaginação,
deixar transparecer, em suas criações, o “eu” interior.
Ah fantástica natureza da minha terra na- Figura 2 - Antô-
tal! nio Parreiras, Ter-
Contemplo-te e bendigo-o, oh! Éden, onde ra Natal I (Trípiti-
passei a minha mocidade. co-1923). Óleo sobre
tela, 103 x 164,5 cm.
Foi no cerrado das tuas matas, nos teus des- FONTE: Fotografia
penhadeiros, nos teus grotões, nas tuas praias do arquivo da Auto-
banhadas de luz que me fiz artista. ra.

Foi na íntima convivência contigo, ainda não


profanada pelo homem, que aprendi a sinte-
tizar-te com teu
caráter selvagem, tua aparente monotonia de verdes; o miste-
rioso das tuas sombras cheias de cor, cor sentida só pelos que
estão habituados ao rápido contraste da luz imensamente for-
te e dura com o macio aveludado das sombras transparentes.

Foi com a constante e apaixonada observação das tuas belezas


que me tornei familiar com as tuas linhas, como me tornara
familiar com a tua cor, com essas erectas colunas dos jequiti-
bás, ou com os troncos tortuosos emaranhados em curva de
serpente que
se vêem nas variadas ondulações dos re- Figura 3 - Antônio
torcidos cajueiros. Parreiras: Terra Natal II
(Trípitico-1923). Óleo
Foi o sol das tuas praias desertas, praias sobre tela, 103,3 x 164
imensas de areia faiscante que me ensinou cm. FONTE: Fotografia
do arquivo da Autora.
a ver, a sentir a tua luz sem igual, luz tão
imensa que produz a nostalgia da som-
bra.16
Figura 4 - Antônio Par-
Parreiras sempre fez questão de des- reiras: Terra Natal III
tacar em seus discursos a fonte na qual se inspirava: “a natureza da sua terra natal. (Trípitico-1923). Óleo
sobre tela, 103,5 x 164,2
Homem foi meu busto colocado, onde outrora começava o areal, por onde peregri-
cm. FONTE: Fotografia
nava, pedindo a soberba natureza da nossa terra natal, os elementos para os meus do arquivo da Autora.
quadros”.17

O tríptico Terra Natal [Figura 2, Figura 3 e Figura 4] representa um momento de


síntese do enfoque filosófico de suas paisagens pintadas antes de 1900 e da linguagem
visual mais elaborada alcançada por sua pintura nos últimos anos.
Tinha que vir à “cidade” expor aos olhos profanos do publico esses pedaços de – Nature-
za – que me haviam fascinado. Tinha que sujeital-os à crítica dos que, dessa Natureza
gigantesca, só conheciam a transplantada arvore, rachitica, atrofiada, pelo ar da cidade

16  PARREIRAS, Antônio. História de um pintor contado por ele mesmo. Nitéroi: Niterói Livros, 1998. p. 165.
17  SALGUEIRO, Valéria. Antônio Parreiras. Notas e críticas, discursos e contos: coletânea de textos de um pintor
paisagista. Niterói: Ed. UFF, 1999. p.1 58.

117
ou deformada pelo recurvo cutello de brutal jardineiro.18

A luz, em diferentes momentos do dia, é a instância central da pintura. As árvores


assumem formas quase humanas; os galhos quebrados e as folhas secas estão
impregnadas do subjetivismo que distingue Parreiras de qualquer outro artista.
A espiritualidade desse artista e o calor do seu temperamento tropical permitem
exprimir com exatidão o colorido das nossas selvas, o verde intenso das florestas. Os
cipós emaranhados e as árvores gigantescas são velhos conhecidos de Parreiras que
com eles conviveu por diversas vezes. É a luz do nosso sol que ele traz para as telas,
enquanto vai pintando o que sente numa visão muito própria.

Quase trezentas e cinqüenta obras foram executadas por Parreiras entre Sertanejas e
Terra Natal. Pintou nus, quadros históricos e de gênero, além de paisagens diversas.
Nunca se afastou, entretanto, da natureza. Poucos são os seus quadros onde não apa-
rece a paisagem. Os conselhos do mestre Grimm não foram esquecidos — “chegarás
a ser um artista se nunca abandonares a natureza”.19

Em 1937, no último ano de sua vida, já doente, mas com admirável força e determi-
nação, partiu Parreiras para a realização da etapa final de sua carreira. Retornou à
pintura ao ar livre produzindo paisagens delicadas e sensíveis. Em O Fogo [Figura
Figura 5 - Antônio Par-
5], uma de suas últimas telas, representa mais uma vez a floresta de cipós, troncos
reiras, O Fogo, 1937. e galhos caídos. Mas a natureza aqui está transformada, consumida pelo fogo que,
Óleo sobre tela, 94,3 rápido e eficiente para abrir clareiras, é também um devastador irracional. A arte
x 117,6 cm. FONTE:
LEVY, Carlos Roberto
de Parreiras é um manifesto solitário contra a destruição. O incêndio, em sua obra,
Maciel. Antônio Par- transmite uma sensação de impotência, de perda irreparável, de desolação. A fumaça
reiras: pintor de paisa- entrando nos pulmões do espectador, o faz perder o fôlego, numa sensação conflitan-
gem, gênero e história.
Rio de Janeiro: Pinako-
te de agonia e êxtase.
theke. 1981, p. 184.
A majestade do tronco das árvores resiste à humilhação das chamas que o destroem.
O fogo pega pouco a pouco, até se tornar vigoroso, para
manifestar a sua onipotência, que é o momento feliz da
mais bela representação do quadro, que tem vida e alma e
rebrilha intenso como se fôra de uma caivara verdadeira.

Tudo toca a visão com intensidade, parecendo até que se


ouve o estrépido dos galhos que ardem e se contorcem na
agonia do aniquilamento.

O eco dessas notas perde-se longe, desvendando no labi-


rinto da floresta o pulso humano que destrói para reali-
zar os seus anseios de grandeza e de progresso.20

Parreiras fez com que a natureza não fosse apenas


uma escolha estética: a floresta é uma opção ética e moral. Pela primeira vez um
artista trabalhou em coautoria com a natureza, com ela desenvolvendo um pacto:
“É porem não esquecer jamais que o que perdura, o que tem valor, o que dignifica o
18  SALGUEIRO,, 1999. p. 78.
19  PARREIRAS, Antonio. História de um pintor contada por ele mesmo. Nitéroi: Niterói Livros, 1998. p.21.
20  FORTES. Alberto. Antônio Parreiras. Anais do Museu Parreiras. Volume I, 1952-1953. p.180.

118
homem é o que elle produs (sic) com o cérebro”.21

Fugindo da cidade e sempre optando pela tranquilidade da floresta, seu refúgio, ele
também a tinha como símbolo de fé e um lugar para reflexão. Uma declaração do
filósofo Sêneca resume um pouco dos sentimentos de Parreiras:
Se você alguma vez encontrou um bosque cheio de árvores antigas que cresceram até um
tamanho fora do comum, tapando a visão do céu como uma cortina de galhos dobrados
e entrelaçados, então a suavidade da floresta, o isolamento do lugar e a sombra ampla e
uniforme no meio do espaço aberto lhe provarão a presença de Deus.22

As árvores sempre exerceram um fascínio sobre a humanidade. Percebe-se que, ao


longo da história, nos períodos de crise pessoal ou diante de dificuldades, o homem
muitas vezes busca refúgio na floresta para testar sua força e recobrar o senso de iden-
tidade com o ambiente ao redor. A árvore é considerada por muitas religiões como
sagrada, talvez pela sua força, sua longevidade e por crescer buscando as alturas, em
direção ao céu.

Árvore morta [Figura 6] traz todo o sentimento e a solidão do interior das florestas.
Assim como o fogo trata da destruição, mantendo a emoção e a individualidade do
artista. A figura de uma árvore morta, quebrada pela tempestade, desenha-se no
primeiro plano do quadro; desperta uma angústia fugaz, pois nosso olhar é atraído
para mais longe onde vemos o resto da floresta também destruída. Parreiras imprimiu,
Figura 6 - Antônio
Parreiras, Árvore
Morta, 1936. Óleo so-
bre tela, 94,3 x 117,6
cm. FONTE: Foto-
grafia do arquivo da
autora.

21  SALGUEIRO, 1999. p.118.


22  SÊNECA apud LEÃO, Regina Machado. A Floresta e o homem. São Paulo: Ed. USP, 2000. p. 70.

119
na tela, a morte, despertando assim o olhar para a finitude humana. Quando, quase
dois séculos antes, Turner apagou o homem da paisagem pictórica, foi em proveito
da sensação de força que a natureza transmite. Como Turner, Parreiras era um artista
fascinado pelo seu poder de destruição e dissolução. Na paisagem apocalíptica, uma
maior quantidade de amarelos e tons terra fazem-se necessários para conferir a
dramaticidade necessária.

Na Europa, durante o século XIX, explode o sentimento do sublime favorecido pelas


condições de obscuridade e presença do poder, da solidão e do silêncio. O sublime
provoca à reverência, o respeito, a admiração. Nas artes, transparecem elementos
dessa estética: a natureza em sua forma mais extrema - árvores curvadas pela força
do vento, mares encapelados, céus escuros e nebulosos - figuras humanas anônimas,
contemplativas, entregues à divagação e alheias ao turbilhão da natureza.

Um dos grandes representantes europeus da estética do sublime foi Caspar David


Friedrich (1774-1840), com grandes paisagens que evocam as meditações do solitário
que ele sempre foi. Como Parreiras, reverenciou, em suas telas, a solidão e o silêncio.
Exaltou e engrandeceu a natureza, tornando-a sublime.

Parreiras tinha na alma a nostalgia secular das matas ancestrais. Em seu cérebro
a determinação, a perseverança, a força da vontade. Não houve obstáculo que o
detivesse, não houve crítica que o abatesse. Lutou e trabalhou perseguindo sempre
uma vontade imperiosa: valorizar a sua terra natal, mostrar ao mundo o quanto ela
lhe ensinou.

Se existiu pintor, cujos méritos transcenderam em numerosos talentos, cuja obra se


distinguiu pelo vulto e significado e, por tudo mais, aproximou-se do grandioso e do
sublime, este brasileiro foi, sem dúvida, Antônio Parreiras.

De acordo com Schelling, filósofo romântico, sempre voltamos aos locais de beleza
natural como aos lugares de uma peregrinação, de um refúgio, e então descobrimos aí
a identidade do eu e do mundo, do espírito e da natureza. Só a arte é capaz de refletir
a identidade da natureza e do homem, permitindo assim, o acesso ao absoluto.

Parreiras não pintou apenas o que viu, mas o que guardava em seu íntimo,
transformando em paisagem pequenos fragmentos da cena real. Suas florestas, obras
da maturidade, são um reflexo da identidade homem/natureza e, talvez por espelharem
seu íntimo, nunca delas se separou. Permaneceram em sua coleção particular e hoje
fazem parte do acervo do Museu Antônio Parreiras, em Niterói.

Parreiras dizia que “um quadro nunca deveria terminar entre as paralelas da moldura.”23
É para além dela que o espectador deve olhar. Para entender uma imagem, é preciso
perceber as maneiras pelas quais ela mostra o que não pode ser visto.

As florestas de Parreiras dizem mais desse homem simples e autêntico do que


quaisquer palavras. Transbordam, pela moldura, os sentimentos de amor à terra
natal, a identificação, a emoção. Parreiras produziu uma pintura progressista e
23  SALGUEIRO, Valéria. op. cit. p. 62.

120
autônoma, contribuindo para o avanço da arte brasileira que culminou com a eclosão
do modernismo.

Por sua postura, aberta e pronta a inovações, pela temática e técnicas desenvolvidas,
Parreiras era moderno em pleno século XIX. Michael Fried, crítico de arte norte
americano, afirmou, em 1965, que a arte moderna assumia cada vez mais a densidade,
a estrutura e a complexidade da experiência moral, isto é da própria vida. “Mas a
vida vivida como poucos têm a inclinação para vivê-la: em um estado permanente de
prontidão intelectual e moral”.24

Ao final de sua vida, talvez tenha ouvido os ecos distantes, impregnados do forte
sotaque alemão de Grimm, a lhe lembrarem: “Chegarás a ser um artista se nunca
abandonares a Natureza.”

24 FRIED, Michael. Three American Painters, p. 9-10, apud HARRISON, Charles. Modernismo e modernidade. A
pintura francesa no século XIX. São Paulo: Cosac Naify, 1998. p. 156.

121
122
O atelier de Presciliano Silva:
espaço de trabalho e convivência

Luiz Alberto Ribeiro Freire 1

Na Rua Boulevard Suíço localizada no bairro de Nazaré, na capital baiana, a residência


e atelier do pintor Presciliano Silva ainda testemunha no canto da rua a existência de
um artista, que ai trabalhou diuturnamente pintando marinhas, paisagens urbanas e
interiores sacros.

As heras que recobrem o muro, o limo e a pátina dos anos nos indicam o tempo
transcorrido, tempo que a filha de Presciliano, Maria Conceição Moniz Silva
experimentou passar na mesma casa e que revigora as cores das lembranças do
cotidiano movimentado pela dinâmica dos pais, sobretudo de seu pai: pintando,
recebendo amigos, vizinhos, clientes e refazendo o mundo que via através dos seus
desenhos e da sua pintura.

Em seu quarto, na presença de um antigo piano de meia cauda e o gato recém adotado,
Maria diz que a casa e o atelier foram construídos em 1932 para o casamento dos pais.
O projeto foi realizado pelo arquiteto carioca Lycerio Schreiner amigo de Presciliano
e diretor à época da Escola Técnica Federal da Bahia.2

Quando foi construída a rua não estava plenamente povoada, ao contrário, a casa
destacava-se em meio a vegetação. Posteriormente esse endereço veio a se constituir
em bairro elegante, com moradores ilustres, profissionais liberais integrantes da
1 Pesquisador CNPq2 - Professor de História da Arte Brasileira da Escola de Belas Artes da UFBA.
2 SIMÕES, Mônica. Fotografia: olhar e memória, gestos, objetos e animais de estimação / Mônica Simões. - 2009.
209f. : il. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Escolade Belas Artes. Salvador, f. 71.

123
Figura 1 - Atelier e re-
sidência de Presciliano
Silva, à Rua Boulevard
Suisso, Nazaré, Salvador,
Bahia. 2015. Fonte: foto
do autor.

burguesia baiana. O arquiteto planejou a residência sob a orientação do pintor, que


Figura 2 - Atelier de Eu- determinou a maior parte do plano.
gène Delacroix estabe-
lecido em 1857, na Rue As obras foram concluídas no ano de 1934, ano em que o pintor se casou com Alice
Furstemberg e onde o Moniz, filha do professor de medicina, Dr. Gonçalo Moniz e de Maria da Purificação.
pintor trabalhou até a Maria nasceria um ano depois.
sua morte em 1863, atu-
al Musée Eugène Dela-
Presciliano viveu aí trinta e um anos dos 82 de sua longa vida, de 1934 a 1965. Quinze
croix, Paris, França. Dis-
ponível em: http://www. dias antes do falecimento ainda pintava no seu atelier.3
musee-delacroix.fr/spip.
php ? p age = d o c u me n - O pintor localizou o atelier em ponto privilegiado e estratégico, no pavimento
t&id_document=529 superior, com pé direito duplo e comunicação com o exterior através de uma escada
independente. Além da posição
elevada, o atelier foi dotado de
duas enormes janelas envidraçadas,
colocadas uma em cada lado do
atelier, uma defronte da outra,
lembrando os ateliês parisienses dos
pintores do século XIX e início do
XX, sobretudo o do pintor romântico
Eugène Delacroix, ou mesmo aqueles
dos pintores impressionistas como
Claude Monet, para os quais a luz
natural abundante tinha importância
crucial.

É quase certo que Presciliano


conhecia bem o atelier de Delacroix,
3  SILVA, Maria Conceição Moniz. Entrevista concedida a Luiz Alberto Ribeiro Freire em Salvador, Bahia, em 03 de
junho de 2015.

124
pois estudou em Paris por dois períodos:
o primeiro de 1905 a 1908 e o segundo
de 1912 a 1913. O atelier de Presciliano
lembra muito o último atelier de
Delacroix, estabelecido em 1857 na Rue
Furstemberg, em Paris, transformado
em Museu Delacroix a partir de 1954.
A posição dos janelões envidraçados, a
escada que dá acesso independente ao
atelier e a posição em relação ao jardim.

A biblioteca foi localizada na porção


superior do pé direito do atelier, com
vista para o mesmo através de um arco,
resguardada por privacidade no acesso
ficando garantida assim o recolhimento
necessário para as sessões de leitura. O acervo era composto especialmente de livros Figura 3 - Interior do
sobre pintores. atelier de Presciliano
Silva à Rua Bouklevard
A ambiência dos ateliês parisienses replicada ou adaptada ao outrora elegante bairro Suisso, Nazaré, Salvador,
soteropolitano de Nazaré, oferecia as condições ideais para o trabalho artístico de Bahia. 2015. Fonte: foto
do autor.
Presciliano, condições conquistadas na fase de consolidação de sua carreira e que só
contribuiu para o bom desenvolvimento de seu ofício.

Passava a maior parte de sua vida no atelier. Saia para dar aulas nas instituições em que
lecionava desenho e pintura, a antiga Escola Técnica Federal da Bahia, atual Instituto
Federal da Bahia e na Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia, onde
foi também diretor.4

Saía também para colher esboços de paisagens e estudar e debuxar os interiores


sacros5 que tanto diferenciaram suas obras da dos seus contemporâneos. Contudo
o seu trabalho meticuloso,
demorado e curtido se dava
no ambiente do atelier, sob
a luz que trespassava os
janelões, controlada por
cortinas. Figura 4 - Interior do
atelier de Eugène De-
O professor da Universidade lacroix de 1857-1863,
Federal da Bahia e genro atual Musée Delacroix.
Paris.Disponível em:
de Presciliano, Ruy Simões
http://woodstock.fr/
declarou que após conquistar good-deals-free-acces-
a confiança do pintor, era s-to-museums-every-
-day-all-year-round/
convidado para assisti-lo

4  SILVA, Maria Conceição Moniz. Entrevista concedida a Luiz Alberto Ribeiro Freire em Salvador, Bahia, em 03 de
junho de 2015.
5  Id.Ibd.

125
trabalhar e, em algumas vezes, não proferia palavra alguma, em outras “falou tudo, quase
o tempo todo: descrevendo, explicando e justificando; mostrando e demonstrando;
até mesmo perguntando,”6 assim narra o que viu no atelier de Presciliano por toda a
década de 1950:
Hoje, vou reportá-lo em dimensões muito menores: exatamente 48 metros quadrados por
6 de altura, as dimensões do seu atelier, no Boulevard Suiço nº 11 – onde convivemos toda
uma década, a de cinquenta: onde o apreciei a desenhar e Pintar, incontadas vezes; numas
apenas vendo; noutras, vendo e ouvindo: em todas elas, apreendendo e aprendendo,
mesmo quando tinha a mera incumbência De entreter quem estivesse posando – Simões
Filho, Clemente Mariani, por Exemplo; ou quando eu mesmo posava, ora vestindo uma
beca: retrato de Gonçalo Moniz; ora apoiando a mão direita num bordão; estudo para o
Evangelista,Cuja cabeça foi a de Manoel Francisco; ora segurando uma caneca, em 1959;
ora mantendo o ante-braço no braço de uma cadeira, com o pulso fletido, a mão para
Baixo, solta, largada – como ele queria que ficasse, para um simples estudo.7

Continua o observador a expor o que reteve na sua memória:


Quem me dera dotá-la de parte do brilho e da limpidez do assoalho taqueado do Atelier
de Presciliano – seu templo – tão zelosamente mantido pela sacerdotisa Alice...

Ungidos, entremos nele – naqueles 48 metros quadrados por 6 de altura – e conheçamos


os objetos utilizados, instrumentalmente, pelo artista:

Lápis de grafite mole e cadernos de croquis.

Coleções de carvão, de pastel e de sanguínea.

Estojos de aquarela e de guache.

Rolos e resmas de papel “Ingres”, borrachas e miolo de pão – não dormido.

Carrinhos (carretéis) de fio-zero, alfinetes e percevejos.

Dúzias de pincéis, com cerdas de camelo “Lefranc”, brochas e trinchas – tudo muito
diversificado em tipo, tamanho, textura.

7. Jogos de bisnagas de tinta, “Lefranc” – também encomenda à “Casa Kavalier”, no Rio


De Janeiro.

8. Caixas de pintura, incluindo banquinhos para sessões externas

9. Vernizes e solventes, em frascos e em latas; álcool e fenol.

10. Paletas de diversos tamanhos e formatos, umas com godet, outras sem.

11. Espátulas e raspadeiras; faquinha e lâminas de filete; esmeril, lixas e pedra-pome.

12. Molduras, grades, caixilhos e cunhas.

13. Telas e esticadores; pinças e alicates.

14. Cola, gelatina, óxido de zinco e secante; gesso; ocre.


6  GOVERNO do Estado da Bahia. Presciliano Silva. Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1984. 216 p. il. p. 105.
7  Id.Ibd. il. p. 106.

126
15. Martelinho, escápulas, pregos e tachas.

16. Cavaletes, cadeiras e bancos

17. Mesas de apoio instrumental, uma maior e mais


alta, a outra menor, mais baixa e móvel.

18. Lente redutora, reticulada.

19. Pedra refletora

Mais de cinquenta diferentes espécies de apetrechos,


cujos fins não acodem logo ao entendimento
leigo – dir-se-iam... “sarçais onde se perde o
verde Henrique”–Por onde Presciliano se ativava,
transitando entre eles, muito lépido – cantarolando,
trauteando, ou, assoviando baixinho, por entre
os dentes. Muito à vontade, feliz nos preparativos
para uma sessão de trabalho. Era de vê-lo! Jovial
disposto, metódico, organizado, ressumando prazer,
prelibando a criação.8

Classificando os preparativos de Presciliano Silva como


quase litúrgicos Ruy Simões define o comportamento
do pintor no trabalho:
Como extensão da técnica, uma inigualável
limpeza: na tela e na paleta; e sobretudo nas mãos, na roupa, no chão – que ao fim da Figura 5 - Interior do
sessão aparentavam ser começo. Da pintura ele poderia sair para qualquer lugar, sempre atelier de Presciliano
Silva da Boulevard Suis-
irrepreensivelmente limpo.
so com um dos cavale-
Ainda irrepreensível a sua postura ao pintar. Que elegância nos gestos e no todo. Sentado tes que utilizava. Salva-
dor, Bahia. 2015. Fonte:
parecendo mais alto do que realmente era – ocupava apenas dois terços da cadeira de foo do autor.
palhinha, mantendo, geralmente, a perna esquerda cruzada sobre a direita. Suas costas:
um fio de prumo. Sua bonita cabeça sempre de queixo erguido.

Minutos, meias horas, horas inteiras – o tempo não comprometia essa elegância, nem
alterava seu compassado modo de trabalhar. Sequer pela idade foi afetado. Aos 77 anos
era a mesma postura, era o mesmo ritmo. Nada o apressava, nem descompassava. Embora
rápidas, ágeis, leves – suas pinceladas, de extrema destreza, eram, principalmente,
precisas, seguras, exatas; tinham direção, decisão e determinação.

disposto, metódico, organizado, ressumando prazer, prelibando a criação.9

O método de trabalho desdobrava-se em várias fases:


Presciliano sempre começava seu trabalho à lápis. O primeiro estágio – literalmente a
mão livre – era a elaboração de croquis: estudando detalhes, num exercício de domínio
da figura até o seu aprisionamento pelo desenho, por assim dizer, ergastulada. Ainda há
no atelier – guardados como relíquias que são – inúmeros cadernos de estudos, além de
8  Id. Ibd. il. p. 106-107.
9  Id. Ibd. il. p. 107.

127
numerosas folhas avulsas, igualmente enriquecidas pelo seu inconfundível traço – todos
de impressionante perfeição. [....]

Nada obstante, os estudos, múltiplos e minudentes, teriam que satisfazê-lo irrestritamente,


para então, num segundo estágio, ainda desenhando – agora a carvão e em papel
“Ingres” – Presciliano começar os esboços, aos quais, dois destinos estavam reservados:
independência ou morte – como ele costumava dizer, arregalando os olhos, levantando e
abaixando o braço direito, bem estendido, como se empunhasse uma espada!

A independência daria ao carvão esboçado plena autonomia, isto é, depois de reavivado,


seria muito bem fixado e até moldura poderia ganhar, com passe-par-tout e duplo vidro.
A morte dispensaria reavivamentos, a fixação seria bem leve ou nem seria executada;
então, o carvão iria esmaecendo, esmaecendo até morrer. Alguns, conheci esmaecidos;
mortos, nunca me foram apresentados.

Num terceiro estágio de desenho, o esboço era transposto para a tela, ainda a carvão.
Concluído, seria levemente aguado e suavemente fixado, para não oferecer contraste à
aposição das tintas – derradeiro e mais complexo estágio, o da pintura propriamente
dita, a óleo, executada em diversas sessões, sucessivas ou alternadas. Antes, porém, deste
esboço, a carvão, sobre a tela, seis operações eram necessárias, das quais ele participava,
diligente:

1ª - determinação das dimensões da tela para a escolha e confecção da grade, com


recíproca verdadeira; a grade, sempre de cedro, era dotada de cunhas em seus quatro
ângulos internos, que manteriam a tela sempre bem esticada (as grades, caixilhos e
cunhas eram produção de Bonfim, marceneiro da Escola Técnica);

2ª - colocação da tela, de linho especial, estrangeiro – sempre que possível, mantidas na


horizontal as tramas do próprio tecido; convenientemente esticada, ela era presa à grade,
num ponto ótimo de tensão (Lalau foi o “expert” dos esticadores);

3ª - tratamento da tela, ou seja, aplicação de cola, gelatina, óxido de zinco e secante –


misturados em proporções por ele mesmo dosadas; a solução líquida, depois de aplicada
com a utilização de uma trincha, dava à tela uma brancura fosca, ligeiramente áspera;
e esta nova textura de superfície, pigmentada, melhorava as condições de absorção e
adesão das tintas, assegurando-lhes permanência;

4ª - quadriculação da tela, a carvão, com risco fino e suave, ora ocupando todo o campo –
para os interiores; ora ocupando apenas o centro do campo – para os retratos e cabeças;
cabeças e retratos, aliás, com consistência e traços fisionômicos aparetando solidez e
relevo – como se fossem em três dimensões – denunciantes do escultor ( que Presciliano
também foi) escondido no pintor;

5ª - armação da tela de fios das perspectivas – aérea e geométrica – com determinação


e distensão dos pontos e das linhas, operação demorada e difícil, de rara competência,
indispensável aos interiores, a mais elaborada de suas pinturas, imortalizadora.

6ª - execução, a carvão, do desenho – já esboçado, vale dizer, em ergástulo.

Daí por diante, tintas na tela.

Presciliano começava a pintar pelas bordas, trabalhando, primeiramente, com os tons

128
claros, até cobrir todo o campo. Depois – são deles as expressões:

É ir puxando, até ficar no ponto!

Isto é:

Esquentando os tons, esquentando, mas, sem deixar queimar...

Nisto poderiam decorrer dias, semanas, meses, num mesmo trabalho; continuando, às
vezes; com mais frequência intercalado por outros.

Enfim, pronta a pintura: o verniz, a moldura.

Salienta-se que, entre o começo da puxada e o fim da esquentada, funcionavam, em


sucessão ou alternância, a lente redutora e a pedra refletora – apetrechos que conheci
apenas no atelier dele e que utilizei, incansavelmente, sempre admirado. [...]

A lente, retangular e côncava, não teria mais que doze centímetros por seis. Ajustada com
a mão, próxima aos olhos e defronte da tela, proporcionava uma visão miniaturizada
da pintura, com enquadramento na retícula. Assim, além de um excelente teste para a
pureza das linhas, testava excelentemente a integridade tonal. Quem já viu a imagem de
um aparelho portátil de televisão, sabe ao que quero referir-me: á concentração das cores,
à nitidez dos contrastes, à distinção dos contornos.

A pedra refletora – este batismo é meu – tal qual a filosofal, nem posso afirmar que seja
mesmo pedra. A certa distância, parecia um pedaço de azulejo negro. Sua espessura,
porém, era de ladrilho; sua constituição: densa, compactada; seu peso; bem acentuado
– induziam que fosse pedra. Era um pouquinho maior que a lente e, como a lente,
igualmente, retangular.

De costas para a tela, com a pedra posta defronte dos olhos, obliquamente, obtinha-se um
reflexo da pintura, como se fora, bem ao sabor platônico, uma simples sombra!

Nesta sombra, a degradação da luz seria denunciada; as asperezas e as harmonias de cores


e de claros-escuras, acentuadas; e cada cor, também cada nuance, ficariam representadas
pela sua hetero ou homogeneidade.

Lente e pedra eram indicadores isentos, absolutamente fiéis, e Presciliano lhes dispensava
absoluta confiança, como se percebesse que a miniatura e a sombra o conduziriam aos
arquétipos de sua pintura – mozarteana, como a qualificou Ruben Navarra.

Com a mesma inicial de Presciliano, de pintura, de perfeição – a paleta, mais que


qualquer outro instrumento, induz, do pintor, preferência e personalidade. Em termos de
Academia de Letras, equivale ao bloco de rascunho – escrito, anotado, emendado.

A paleta de Presciliano – como todos os demais apetrechos por ele usados – era tratada
cuidadosamente e estava sempre em condições de bem serví-lo.

Eis, dela, um símile – emprestado por Newton Silva, seu discípulo dileto, seu sucessor.

Reparem, ao alto, da esquerda (a do pintor) para a direita, a ordenação das treze cores
básicas de Presciliano, seu espectro. (grifos nossos).10

10  Governo do Estado da Bahia. Presciliano Silva. Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1984. 216 p. il. p. 109.

129
Quanto ao preparo das tintas, Ruy Simões continua sua narrativa descritiva apurada:
Seu prisma, a começar pelo preto. Seguem-se-lhe o verde esmeralda, o azul ultramar, o
azul cobalto, o branc-rouge ou rouge de Veneza, o vermelhão, o laca Garence e, situado
além do meio da paleta, no oitavo lugar, o branco de zinco (substituto do branco de
prata); depois dele: o ocre amarelo, o amarelo limão, o amarelo laranja e os terra de Siena
– natural e queimado.

Com estas treze tintas, em combinações personalizadas e em tempo de mistura muito


circunstancial. Presciliano extraía toda a sua riqueza cromática, como ele misturava suas
tintas. Quase sempre duas a duas, e em cruz, fazendo-as encontrarem-se suavemente,
gradativamente, em tempos perfeitamente distintos.
Conduzidas pelo pincel, de cima para baixo e da esquerda
para a direita, no ponto de encontro iria surgir o tom, o
matiz – segundo a teoria das cores ou seguindo o desejo do
pintor – que poderia ser complementado por uma terceira
cor, quente ou fria.

Presciliano costumava promover esses encontros de modo


quase fleugmático, às vezes, parecendo absorto, como se
tivesse outra idéia na cabeça.

Certa manhã – quando o misturar me pareceu voluptuoso,


pedi-lhe explicação. Depois de falar do casamento das
cores e de suas fertilidades! Depois de demonstrar-me que
o encontro, suave e gradativo, no eixo da cruz, oferecia
Figura 6 - Uma das incalculáveis possibilidades cromáticas – assim concluiu:
paletas utilizadas por
Presciliano Silva. Sal- Devagar elas vão-se conhecendo e combinando... Nada de pressa, nem de violência,
vador, 2015. Fonte: foto
senão elas se casam mal!
do autor.
A violência, aliás, ele abominava; ela o horrorizava.

Outro dado, tecnicamente de importância, propiciado pela paleta – além destes da


ordenação das cores e da forma de combiná-las – é o da incidência, da frequência de
utilização: as preferências cromáticas do pintor, cuja mensuração pelo número de bisnagas
consumidas induz a erro. (grifos nossos) 11

Esse estudo calculado, essa artesania meticulosa contrariava os métodos impressionistas


vistos e experimentados na prática da pintura ao ar livre por Presciliano em Paris e na
Bretanha. Combinou a estruturação da obra acadêmica com os efeitos das pinceladas e
da luz natural do modo impressionista, por isso o trabalho de atelier assumia essencial
importância, ao contrário dos impressionistas, não via nos seus esboços realizados in
locu, a obra final, mas anotações que seriam retrabalhadas, racionalizadas e sentidas
no atelier.

Desenhava desde criança, sua formação artística iniciou-se na Escola de Belas Artes
da Bahia em 1896, nos cursos de desenho e escultura e no Liceu de Artes e Ofícios da
Bahia no curso de Desenho. Nesse mesmo ano tornou-se discípulo dileto do mestre

11  GOVERNO do Estado da Bahia. Presciliano Silva. Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1984. 216 p. il. p. 110-111.

130
pintor Manoel Lopes Rodrigues12, filho de um dos fundadores e ele próprio aluno
fundador da Academia de Belas Artes da Bahia, atual Escola de Belas Artes da UFBA.

No ano seguinte passou a auxiliar o mestre Manoel Lopes Rodrigues nas aulas de
desenho do Empório Industrial do Norte e nas aulas de desenho do Liceu e da Escola
de Belas Artes da Bahia. Auxilia na Loja “Armas de Paris”, loja de quadros e artigos
para pintura de propriedade de seu mestre. Continua seus estudos na Escola de Belas
Artes recebendo prêmios da referida escola e do Liceu no período de 1900 a 1903.13

Seguindo os passos de seu mestre e do programa de estudos acadêmicos que


culminava com a viagem de aprimoramento na Europa para os alunos mais talentosos
e dedicados, conquistou bolsa do governo do Estado da Bahia para estudar em Paris,
em 1905, onde matriculou-se na Academie Julian, destino da maioria dos bolsistas
brasileiros que iam para a “Cidade luz”. Nesse mesmo ano surgem os primeiros
sintomas de surdez.14

Na Academie Julian foi aluno de Jules Lefèbvre, Tony Robert Fleury e Adolphe
Dechenaud. Lá fez amizade com os pintores brasileiros, os gêmeos Dario Vilares
Barbosa (1880-1952) e Mario Vilares Barbosa (1880-1917).15

Em 1907 concluiu o primeiro estágio de dois anos na Academie Julian de Paris e


viajou pela Bretanha “estagiando e produzindo telas e estudos de paisagens e tipos
humanos em Concarneau-Finistèrre. Aos 24 anos uma otosclerose bilateral incurável
diminui em mais de 80% sua audição, retornando para Salvador em julho de 1908,
realizando em dezembro do mesmo ano sua primeira exposição individual. No ano
seguinte transfere-se para o Rio de Janeiro, onde realizou exposição, tem sua obra
criticada por Gonzaga Duque e recebe menção honrosa no Salão de Belas Artes com
a tela “Interior Bretão”, adquirida pela Escola de Belas Artes e integrante do acervo do
Museu Nacional de Belas Artes.16

Depois de tentar o retorno à Paris através dos prêmios de viagens dos salões cariocas
e de ver rejeitado seu pleito de bolsa pelo Governo da Bahia, consegue viajar à França
sob o patrocínio do capitalista baiano José de Sá. Lá estagia em Paris, Concarneau
e Bélgica. Participa do Salão Oficial dos Artistas Franceses com a tela Mme. Le
Clinche.17

Volta definitivamente à Bahia em 1913 onde realizou sua terceira exposição com
sucesso de vendas, e fez pinturas decorativas para a Igreja de N. Sra. da Piedade e
do Salão de Música do Palácio da Aclamação, sendo nomeado, por concurso, para
professor da Escola de Aprendizes Artistas (Escola Técnica da Bahia, atual Instituto
Federal da Bahia).18

12  VALLADARES, Clarival do Prado. Presciliano Silva Um estudo biográfico e crítico. Rio de Janeiro: Edição da
Fundação Conquista, 1973. 279 p. il. p. 21.
13  Id.Ibid. il. p. 22.
14  Id.Ibid. il. p. 21.
15  Id.Ibid. il. p. 21.
16  Id.Ibid. il. p. 22.
17  Id.Ibid. il. p. 23.
18  Id.Ibid. il. p. 23.

131
O sucesso obtido depois do seu retorno,
vendendo as pinturas expostas, recebendo
encomendas, o trabalho assalariado
nas escolas públicas lhe capacita
economicamente para construir a casa e
o atelier ideal, tal feito o destacou entre
os colegas pintores e acresceu à Bahia um
modelo de atelier copiado daqueles da
capital dos modos e das modas do mundo
de então.

A comunicação exterior - interior do


atelier de Presciliano não se fazia apenas
no plano do trabalho artístico, repetiu-se
nas relações interpessoais, recebia amigos,
Figura 7 - Reprodu- clientes, vizinhos e raramente alunos. Selecionou aqueles alunos em que percebia
ção de fotografia de
Presciliano Silva pin- talento especial como Emídio Magalhães, Diógenes Rebouças, Humberto Peixoto,
tando em seu atelier Jacyra Oswald, Raimundo Newton da Silva, Carlos Augusto Bandeira, que se tornaram
da Boulevard Suisso. professores da universidade, e ainda Colete Pujol19.
Salvador.
A professora da Escola de Belas Artes da UFBA, Odete Valente lembrou que Presciliano
“convidava os alunos mais pobres para irem ao seu atelier, dava-lhes tintas, pincéis,
telas, tudo isto discretamente. As tintas eram estrangeiras, coisa aliás que exigia de
todos nós. Só sabíamos de sua generosidade pelos próprios beneficiados”.20

Afirma Maria que o atelier de seu pai nunca foi claustro, ou espaço de reclusão, o
acesso do atelier era livre, inclusive para crianças e animais; que seu pai interrompia o
trabalho para que o visitante pudesse ser recepcionado, para que houvesse interação.
Diz que o pai trabalhava muito a noite desenhando a carvão, mas não pintava21.

Todo o cuidado que ti-


nha com os preciosos e
caros materiais importa-
dos era olvidado, quando
os netos adentravam o
atelier, deixava-os livres
para experimentar e con-
Figura 8 - Presciliano sequentemente danifi-
Silva, Paisagem do di- carem pincéis. Dava-os
que (Dique do Tororó- papéis e lápis e estimula-
-Salvador), 1917. Óleo
sobre tela, 48 x 69 cm. vam a expressão pictóri-
do Museu de Arte da ca das crianças.22
Bahia. Salvador, Bahia.
19  SILVA, Maria Conceição Moniz. Entrevista concedida a Luiz Alberto Ribeiro Freire em Salvador, Bahia, em 03 de
junho de 2015.
20  GOVERNO do Estado da Bahia. Presciliano Silva. Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1984. 216 p. il. p. 130.
21  SILVA, Maria Conceição Moniz. Entrevista concedida a Luiz Alberto Ribeiro Freire em Salvador, Bahia, em 03 de
junho de 2015.
22  SILVA, Maria Conceição Moniz. Entrevista concedida a Luiz Alberto Ribeiro Freire em Salvador, Bahia, em 03 de
132
Recorremos novamente às palavras de Ruy Simões para entendermos o processo
criativo de Presciliano, que o caracterizou como uma quase liturgia do pintar de
Presciliano:
Feitos os esboços, fixado o carvão a verniz, chegam as cores, já estudadas, analisadas na
“prochade”, ou mancha, como as chamava. Sentado numa cadeira, diante do cavalete
onde repousava a tela, muito compenetrado, de acordo com seu humor, pouco falava, a
não ser para dar instruções ao modelo; ou falador, explicando tudo o que fazia, tim-tim
por tim-tim, aos seus alunos ou quem quer que o observasse. Ia então preenchendo o
espaço branco com pinceladas rápidas e certeiras, de quem sabe o que faz; trabalho que
não era necessariamente rápido, antes pelo contrário, costumava passar algum tempo em
cada um dos seus quadros; até semanas, talvez meses, quem sabe anos. O retrato de sua
mãe, Dona Clotilde, por exemplo, foi trabalhado e retrabalhado durante muito tempo.
Mesmo assim era pelo pintor considerado inconcluso...23

Os seus interiores sacros mereciam vários croquis à lápis, que transferia para a tela
através dos bastões de carvão. Sempre que achava necessário retornava ao local e
fazia croquis menores. Cansou de retornar aos locais para estudar a luz24. Quando o
desenho à carvão estava pronto, fixava e principiava a pintar por sobre o desenho. As Figura 9 - Presciliano
telas eram tensadas por ele mesmo, encomendava os chassis e preparava a superfície Silva, Sala do capítulo do
das telas com todo o cuidado sempre pelas manhãs e suas tintas eram francesas, Convento de São Fran-
cisco de Salvador. 1923,
compradas na Casa Cavalier, no Rio de Janeiro.25 Óleo sobre tela, 80 x 100
cm. Fundação Museu
Na avaliação de sua única filha, o pintor era um homem jovial, que gostava da vida, Carlos Costa Pinto. Fo-
bem-humorado, brincava com todos; apreciava vermute e cerveja, tinha amor aos tografia de Sérgio Benut-
animais, todos eles: gatos, cachorros, insetos. ti.
Em casa ficava sempre de pijama. Lia todos os
jornais, adorava futebol, torcia pelo Botafogo e
discutia o assunto com os empregados. Proseava
frequentemente com o carteiro.

Lavínia Machado, filha de Otávio Machado foi


uma das maiores colecionadoras de suas pinturas
doando vinte telas para o Museu Nacional
de Belas Artes, há muito tempo mantidas
em Reserva Técnica, fora do conhecimento e
apreciação pública.

junho de 2015.
23  GOVERNO do Estado da Bahia. Presciliano Silva. Salvador, Empresa Gráfica da Bahia, 1984. 216 p. il. p. 96.
24  SILVA, Maria Conceição Moniz. Entrevista concedida a Luiz Alberto Ribeiro Freire em Salvador, Bahia, em 03 de
junho de 2015.
25  SILVA, Maria Conceição Moniz. Entrevista concedida a Luiz Alberto Ribeiro Freire em Salvador, Bahia, em 03 de
junho de 2015.

133
Figura 10 - Interior do
atelier de Presciliano
Silva na Rua Boulevard
Suisso, destacando-se o
espaço da biblioteca na
parte superior, no me-
zanino. 2015. Salvador,
Bahia. Fonte: foto do au-
tor.

134
Pedro Américo de Figueiredo
e Mello: considerações sobre
um ateliê itinerante

Madalena Zaccara 1

Da pequena cidade chamada Areia, perdida nas serras do brejo paraibano, onde
nasceu, até a antiga cidade dos Medici onde morreu, Pedro Américo de Figueiredo e
Mello percorreu um longo caminho nômade. Pouco se sabe sobre os ateliês aonde o
artista trabalhou durante esse percurso em termos de arquitetura ou funcionalidade.
Mas podemos refletir sobre eles, seus múltiplos espaços de criação, enquanto reflexos
de sua vida itinerante e, dessa forma, saber um pouco mais do artista e de sua obra.

Partimos do princípio de que não existem detalhes desprezíveis na construção


do conhecimento e que são os detalhes que nos colocam no caminho da verdade.
Acreditamos que, se não conhecemos por imagens os vários ateliês de Pedro Américo
sempre podemos nos inspirar nas palavras de Jacques Rancière e nos colocar:
Diante da fachada de uma casa cujas aberturas assimétricas, recortes e saliências caóticos
formam um tecido de hieróglifos no qual se pode decifrar a historia da casa – a história
da sociedade da qual ela é testemunha- e o destino dos personagens que nela habitam.2

1 Madalena Zaccara é doutora em História da Arte - Université Toulouse II e pós-doutora, também em História da
Arte, pela Escola de Belas Artes da Universidade de Porto, Portugal, como bolsista Capes. É professora Associada
da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil. Ensina no Programa Associado de Pós Graduação em Artes Visuais
UFPE-UFPB. É membro da Associação Nacional dos Pesquisadores de Artes Plásticas (ANPAP), da FAEB (Federação
dos Arte Educadores Brasileiros) e do Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade I2ADS (Porto, Portugal).
Tem vários livros, capítulos de livros e artigos publicados.
2 RANCIÈRE, Jacques . O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009. p.37.

135
Dentro desse raciocínio, as poucas referências espaciais de que dispomos juntamente
com relatos sobre a vida do artista podem nos possibilitar reconstituições, mesmo que
imaginárias, dos espaços que ele utilizou como ateliê. É o que pretendemos nesse texto:
saber um pouco mais sobre o artista a partir da ideia de um ateliê nômade que ocupou
múltiplos espaços geográficos durante a vida de Pedro Américo.

O ateliê itinerante de Pedro Américo: a casa de seu pai (1843-1852)


Na pequena cidade chamada Areia, perdida nas serras do brejo paraibano, a coisa
mais importante, nos meados do século XIX, era uma árvore. Uma velha, muito
velha árvore, espécie de templo panteísta da cidade. Todos os habitantes a amavam e
choraram a sua morte. Foi em uma cidade que amava uma árvore como a uma pessoa,
que nasceu Pedro Américo de Figueiredo e Mello em 29 de abril de 1843. Segundo o
escritor paraibano Horácio de Almeida:
Há cidades que não têm história, cidades humildes, onde nada acontece digno de menção.
Nascem e vivem como indivíduos que apenas aspiram lugar ao sol. Outras há que tiveram
fastígio e depois agonizam. A este pertence Areia, ao grupo das cidades que se exauriram
num passado de lutas e glórias, sem mais força no presente para deixar tradição ao fu-
turo. 3

Foi nessa cidade, congelada no tempo, que o futuro pintor


do Segundo Reinado teve seu primeiro ateliê: a loja do seu
pai, Daniel Eduardo de Figueiredo, um pequeno comerciante
que gostava de tocar violão para seu lazer. [Figura 1] Seus
primeiros desenhos, sobre as suas paredes, impressionavam
os seus frequentadores. Horácio de Almeida, um de seus bi-
ógrafos, nos fala de como ele “um dia, no pequeno estabele-
cimento do seu pai, desenhou na parede um galo que a todos
causou admiração”.4

Foi nesse arremedo de ateliê que o pequeno artista autodidata


obteve sua primeira encomenda. Em 1850, um frade
capuchinho, frei Serafim, considerado como santo pelos
matutos crédulos da região chegou à cidade. Os devotos lhe
Figura 1 - Casa onde encomendaram mais de uma centena de reproduções do retrato do beato e Américo
nasceu Pedro Américo. iniciou então seu processo de profissionalização.
Areia. Paraíba. 2014.
Fonte: foto do autor. O naturalista francês, Louis Jacques Brunet, chegou a Areia, em 1852, à frente de uma
expedição científica que fazia pesquisas na região para o Museu Nacional. A cidade
mostrou então ao estrangeiro sua principal atração: a criança. Tanto Brunet quanto
o desenhista da expedição (o alemão Bindseil) se entusiasmaram com aquele talento
natural e propuseram levá-lo como membro da equipe.

3 ALMEIDA, Horácio de. Brejo de Areia: memórias de um município. Parahyba: A União Editora.s. d.
4 ALMEIDA, Horácio de. Pedro Américo. Ligeira notícia biográfica do genial pintor paraibano. João Pessoa: A União.
2013, p. 31.

136
O Ateliê itinerante de Pedro Américo: o sertão (1852-1854)
Com o consentimento de seu pai, Américo deixou Areia para uma viagem de explo-
ração que durou aproximadamente vinte meses. Durante esse tempo, ele percorreu
as províncias da Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará. Enfim, quase
todo o Nordeste do Brasil. Embrenhou-se com a expedição no universo dos sertões
nordestinos do qual nos fala Euclides da Cunha fixando no seu texto a paisagem em
volta, a “atormentada” paisagem em volta:
As condições estruturais da terra lá se vincularam à violência máxima dos agentes
exteriores para o desenho de relevos estupendos. O regime torrencial dos climas excessivos,
sobrevindo, de súbito, depois das insolações demoradas, e embatendo naqueles pendores,
expôs há muito, arrebatando-lhes para longe todos os elementos degradados, as séries mais
antigas daqueles últimos rebentos das montanhas: todas as variedades cristalinas, e os
quartzitos ásperos, e as filades e calcários, revezando-se ou entrelaçando-se, repontando
duramente a cada passo, mal cobertos por uma flora tolhiça — dispondo-se em cenários
em que ressalta, predominante, o aspecto atormentado das paisagens.5

Esse foi o segundo ateliê de Pedro Américo.


Onde ele deixou a condição de autodidata e
encontrou seus primeiros mestres: Brunet
e Bindseil. Não temos nenhum registro
das acomodações dos expedicionários
durante os quase dois anos durante os
quais ele participou da expedição. Uma
imagem de uma habitação típica daquele
espaço e daquele tempo pode, entretanto,
nos dar uma ideia do ateliê do nosso artista
durante aquele período. [Figura 2].

Durante a expedição, segundo Horácio de


Figura 2 - Jagunço posa
Almeida, Bindseil adoeceu e coube ao jovem aprendiz a tarefa de registrar a fauna e a para foto junto a uma tí-
flora dos sertões nordestinos. A caatinga e sua paisagem inóspita foram, portanto, seus pica moradia dos segui-
dores de Conselheiro no
modelos; os registros do sertão nordestino do século XIX seus primeiros exercícios
Arraial de Belo Monte.
escolares e as tendas de acampamentos da expedição científica de Brunet ou as casas Fotografia. 1897. Acer-
humildes dos habitantes da região, sua oficina. vo Museu da República.

Naquela época, no Brasil, cabia a um estrangeiro, de preferência de origem europeia,


reconhecer o talento de uma criança ou adolescente particularmente dotado para as
artes. O parecer do estrangeiro tinha o poder de legitimação e era aceito por todos
inclusive pelas autoridades do país. Brunet o recomendou ao presidente da província
da Paraíba Sá e Albuquerque, o que é confirmado pelo seu relatório ao seu sucessor,
Flávio Clementino da Silva Freire, elogiando o talento precoce de uma criança de
parcos recursos materiais: Pedro Américo de Figueiredo e Mello.6
5  CUNHA, Euclides da. Os Sertões. Disponível em: http://media.livroseafins.com/2013/04/baixe-gr%C3%A1tis-os-
sertoes-de-euclides-da-cunha.pdf, p. 13.
6  PINTO FERREIRA, Datas e Notas para a história da Parahyba. Parahyba do Norte: Imprensa oficial da Parahyba
do Norte, 1908, p. 224.

137
O Ateliê itinerante de Pedro Américo: o colégio Pedro II e a Academia
Imperial de Belas Artes (1854-1859)
Pedro Américo chegou ao Rio de Janeiro em dezembro de 1854. Graças à interferên-
cia do ministro Couto Ferraz, foi inscrito como interno no colégio Pedro II [Figura
3], que educava os filhos da elite nacional. Apesar de ser uma escola pública, o Co-
légio Pedro II não era gratuito naquela época e seus alunos:
Pagavam o honorário do ensino prestado, fixado pelo governo imperial.
Os primeiros alunos ingressaram na instituição por meio de um rigoroso
exame de admissão que prezava a idade, o mérito adquirido e o mérito
ingênito, ou seja, pessoas que possuem um dom inato. Ao completar
o curso, os estudantes recebiam o grau e o diploma de Bacharel em
Ciências e Letras, que os habilitava a ingressar no ensino superior sem
prestar exames.7

Baseado provavelmente neste “mérito ingênito” Américo foi


encaminhado para este estabelecimento de ensino. De acordo
com suas próprias palavras, em uma carta endereçada a Brunet
e datada de 7 de abril de 1855,8 ele gostaria de já estar estudan-
do na Academia e afirma ter falado três vezes com o ministro
Pedreira, mas ainda sem nenhum resultado. Foi, certamente, de-
vido a essa tenacidade e ao seu senso de oportunidade que ele
conseguiu concretizar o seu desejo de falar com o imperador.
Pedro II se divertia em sabatinar os alunos dos estabelecimentos
de ensino do império e, numa visita ao colégio, Américo o dese-
nhou lendo.9 O imperador quis conhecer o autor e Pedro Améri-
co obteve dele uma inscrição gratuita na Academia Imperial de
Belas Artes.
Figura 3 - Bertichem,
Colégio Pedro II. Lito- Américo inscreveu-se na Academia Imperial de Belas
grafia, 1860 Artes do Rio de Janeiro em 1855. Durante o período
em que estudou naquela instituição o diretor era
Manuel de Araújo Porto Alegre. Interno no Colégio
Pedro II e cursando a Academia [Figura 4], foi nesses
espaços que ele trabalhou. Eles funcionaram como
seu ateliê e lá ele executou seus exercícios escolares
e algumas encomendas de quadros sobre assuntos
Figura 4 - Marc Ferrez:
religiosos. Seu principal cliente foi monsenhor Félix
Pórtico da Academia
Imperial de Belas Ar- Maria que aparece também em outros momentos
10

tes, Fotografia, 1891. de sua trajetória. Assim, juntamente com os antigos

7  MARQUES DOS SANTOS, Beatriz Boclin. Uma escola para poucos. Revista de Historia.com.br. Disponível em:
http://www.revistadehistoria.com.br/secao/educacao/uma-escola-para-poucos
8  Carta de Pedro Américo à Brunet datada de 7 de abril de 1855.Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba. Dossiê
Pedro Américo.
9  MELLO JUNIOR, Donato. Pedro Américo de Figueiredo e Mello. 1843-1905. Algumas singularidades sobre sua
vida e sobre a sua obra. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1983. p. 16
10  CARDOSO DE OLIVEIRA, J. M. Pedro Américo, sua vida e suas obras. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1943,

138
retratos que ele fez de Frei Serafim, na Areia de sua infância, os seus primeiros
trabalhos profissionais foram essencialmente de temática religiosa. Futuramente, o
artista irá afirmar sua predileção pelos temas bíblicos, mesmo dentro de um contexto
romântico e carregado de erotismo.

Aos 15 anos, Pedro Américo acreditava estar pronto para ir estudar, como era de pra-
xe, na Europa. Para ele a academia brasileira já havia lhe ensinado tudo. Pediu, então,
em carta ao imperador, uma bolsa de estudos para estudar fora do país justificando
que:
Agora, pois que tenho os conhecimentos que para a Pintura poderia receber da dita Aca-
demia, para prosseguir na minha carreira indispensável é uma viagem à Europa, e como
a Academia não me pode facultar os meios necessários para esta viagem, por ter ela
preenchido o número de seus pensionistas, venho confiado na extrema bondade de Vossa
Majestade Imperial solicitar a graça de me mandar particularmente acabar meus estudos
na Europa.11

O imperador lhe concedeu uma bolsa de estudos e ele partiu para Paris em 1859.
Tinha 16 anos de idade. Na bagagem ia uma carta de seu antigo professor, Manuel
de Araújo Porto Alegre, para Victor Meirelles de Lima que, na época, era bolsista da
Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro e estudava em Paris. Na carta
ele apresenta Américo como um jovem e talentoso pensionista do imperador e pede
para que Meirelles o encaminhe a Léon Cogniet 12 que deveria se lembrar dele, Porto
Figura 5 - École Na-
Alegre, em virtude de suas atividades comuns no Instituto Histórico em 1836.13 tionale Supérieure des
Beaux-Arts (ENSBA).
O Ateliê itinerante de Pedro Américo: no ateliê de Cogniet (1859-1864) Paris. Fotografia

Pedro Américo chegou a Paris com uma bolsa


anual de 4.800 francos franceses. Ele se ins-
creveu na École des Beaux Arts [Figura 5]
em 6 de outubro de 1859 e entrou, como era
costume então, em um ateliê, o de Leon Cog-
niet, conforme desejo de seu mestre Manuel
de Araújo Porto Alegre e foi morar junto da
Beaux Arts na Rua Bonaparte n. 1314. Apre-
sentado por Leon Cogniet à Escola de Belas
Artes como de praxe15, Américo foi recebido
como aluno daquela instituição em 1859.

11 Arquivos da ENBA. Dossiê Pedro Américo. Doc. N. 16.


12 Léon Cogniet (nascido em Paris em 29 de agosto de 1794, faleceu também em Paris em 20 de novembro de 1880),
foi um pintor de momentos neoclássicos e românticos, retratista e pintor de história.
13 Carta de Manuel de Araújo Porto Alegre ao pintor Victor Meirelles datada de 11 de março de 1859. Apud MELLO
JUNIOR Donato. Op cit., p. 18.
14 Arquivos privados do Monsenhor Rui Vieira. Areia. Paraíba. Recibo de aluguel dos meses de janeiro, fevereiro e
março de 1860. Atualmente esses documentos fazem parte dos Arquivos do Museu Regional de Areia.
15 Entre as exigências para a matrícula dos alunos na Escola de Belas Artes de Paris o aspirante deveria fornecer um
atestado de um professor conhecido que responderia pela sua boa conduta e que declarava que o futuro aluno estava em
condições de se apresentar nos concursos de admissão. Ler GRUNCHEC, P. La peinture à l`Ècole des Beaux- Arts, Les
concours des Prix de Rome, 1797-1863. Paris: Ecole Nationale Supérieure des Beaux Arts, Tome I, p.19.

139
O jovem pintor estudou com vários mestres na École des Beaux Arts, mas foi no ateliê
de Cogniet, [Figura 6] seu mentor e padrinho em Paris, e no de Sébastien Cornu16
que vemos citado várias vezes nos processos de julgamento de prêmios da Escola de
Belas Artes como seu mestre que ele realmente se exercitou. Cornu o confirma em
carta ao Imperador Pedro II onde se subscreve como professor de pintura, cavaleiro
e administrador do Museu Napoleão III:
Je soussigné declare que Mr. Pedro Américo de Figuei-
redo e Mello mon eleve en peinture a partagé son temps
cette année entre l ´étude de l ´art et des Sciences que s
´y rattachent. Je pense que les trois années qu´il avait
demandée pour ses études en France et son voyage en
Italie son insuffisantes pour leur bon résultat. En consé-
quence, je crois nécessaire que S. M. l ´Empereur daig-
ne encore accorder a Mr. Américo trois autres années d
´études à Paris […] 17

A maioria dos biógrafos de Pedro Américo lhe


dá como mestres, durante seu período de estudos
parisienses, os pintores Ingres, Léon Cogniet,
Hippolyte Flandrin e Horace Vernet. Horace
Vernet não deu aulas na instituição entre outubro
Figura 6 - M. Amelie de 1859 e agosto de 1864, período de estudos do nosso artista, nem aparece em
Cogniet, Un coin de qualquer documento ligado a ele. Em minhas pesquisas em Paris, para a construção
l’atelier de Léon Cogniet da minha tese, nunca encontrei qualquer referência a uma relação professor aluno
en 1831, 1831. Musée
des Beaux Arts, Orléans entre Pedro Américo e Ingres. Ele (Ingres) aparece na lista de professores da Escola
de Belas Artes durante o período em que Américo lá estudou, mas de acordo com
o regulamento interno da instituição, um professor que atingisse a idade de setenta
anos se transformava, automaticamente, em “professor reitor” e estava dispensado
das tarefas cotidianas que eram obrigatoriamente repartidas entre os mais jovens. 18
Jean - Auguste-Dominique Ingres tinha setenta anos em 1959 (ele morreu em 1867,
três anos após a partida de Pedro Américo). Era, consequentemente, um “professor
reitor”. É de se supor que não administrasse aulas como os outros professores. Além
desse fato, Ingres não aparece nas listas anuais de distribuição de tarefas aos membros
do corpo docente. Também não aparece em nenhum processo dos concursos que
Américo participou como seu orientador embora apareça em processos de outros
alunos. É razoável se pensar que um discípulo de um mestre da importância de
Ingres lutasse por tê-lo como orientador oficial nos concursos acadêmicos, fato que
significaria prestígio entre seus pares. Acreditamos, portanto, que Leon Cogniet
e Sébastien Cornu (que nunca é citado nas biografias do artista) foram de fato os
mestres de Américo.

16  Cornu (Sébastien – Melchior). Pintor nascido em Lyon (Rhône) em 6 de janeiro de 1804 e morto em Longpont
(Seine- et- Oise) em 23 de outubro de 1870. BÉNEZIT, É. Dictionnaire des peintres, sculpteurs, dessinateurs et
graveurs. Paris : Grund, vol. 3, p. 178.
17  Museu Imperial de Petrópolis. Arquivos da Casa Imperial. (POB). Maço 131, Doc. 6.418.
18  GRUNCHEC, Philippe. La peinture à l’Ecole des Beaux-Arts. Les concours des Prix de Rome. 1797-1863. Paris:
École Nationale Supérièure des Beaux-Arts.

140
Na falta de registros sobre o ateliê na Rue Bonaparte tomamos como exemplo de espaço
onde o artista estudou e trabalhou durante este período de sua formação francesa o
de seu mestre Leon Cogniet que, segundo Leon Lagrange, era “le miroir de son âme
et de son cerveau”.19 Numerosas representações deste ateliê foram feitas pelo pintor
e por seus próximos: por sua irmã e aluna Marie-Amélie, por sua esposa Caroline
Thévenin e por seus alunos. A imagem desse espaço de trabalho compartilhado pelo
jovem Pedro Américo é um meio de compreender um pouco melhor aquele momento
na vida do artista.

Não devemos esquecer a importância de Cogniet e de seu ateliê em meados do século


XIX. Sobre o fato se manifesta Alfred Busquet em 1857, dois anos antes da chegada de
Américo a Paris e ao seu ateliê sob a recomendação de Porto-Alegre:
L’ atelier Cogniet est une sorte d’école mutuelle dont les moniteurs sont MM. Axelfeld,
Barrias, Girardet, Frère, Hillemacher, Lecomte, Luminais, Richter, Rigo, Vignon, Villain,
Rodakowski. Nous avons compté dans les salles de l’exposition jusqu’à cent neuf élèves de
M. Cogniet, et certainement nous en avons omis plusieurs. […] N’oublions pas cependant
qu’elle se glorifie de M. Meissonier l’enfant sublime de la maison.20

Um ateliê bem sucedido, quase uma empresa, com cerca de cento e nove alunos,
contando com o auxílio de vários monitores e tendo como mascote o festejado
Meissonier, funcionava como escola paralela à Beaux Arts onde o mestre também
ensinava. Foi nesse espaço de trabalho que Pedro Américo recebeu parte da sua
formação parisiense.

Apesar da vontade de Pedro Américo de permanecer em Paris, Pedro II, não prorrogou
seu prazo de estadia na Europa. Ordenou-lhe o retorno ao Brasil. Era necessário que
ele concorresse ao cargo de professor de Desenho Figurado na Academia Imperial de
Belas Artes do Rio de Janeiro. O artista suplicou ao imperador para ficar na França
até o último momento. Em carta datada de 23 de julho de 1864, ele se queixa dos
transtornos que lhe acarretariam esse retorno ao país. Processou-se então toda uma
troca de correspondência, mas, em face do inevitável, ele se submeteu e comunicou a
seu protetor que partiria para o Rio de Janeiro em 25 de agosto de 1864 obedecendo
às ordens imperiais:
Acabo de ser avisado que Vossa Majestade ordenara o meu regresso para o Brasil
imediatamente, para que tome parte no concurso da Cadeira de Desenho Figurado que
deve ter logar muito breve na Academia Imperial de Bellas Artes [...] Com todas as
esperanças que nutria e a firme confiança que me havia inspirado a mui alta e generosa
benevolência de sua Majestade que prolongada seria a minha demora no seio dos meus
trabalhos [...] Quão grande não deve ser a minha dor, deixando tão inesperadamente a
Europa, as Artes. [...] Entretanto. Senhor, ordenam-me que parta e eu me apresso em dar
satisfação a essa ordem.21
19  LAGRANGE, Léon. Horace Vernet. Gazette des Beaux-Arts, 1863, p. 312 apud Michaël Vottero. Le cri de la
conscience : Léon Cogniet et ses ateliers in Territoires contemporains. Disponível em: http://tristan.u-bourgogne.fr/
CGC/publications/image_artiste/Michael_Vottero.html
20  BUSQUET, Alfred. Salon de 1857. Le portefeuille de l’amateur, n°7, 1er novembre 1857, p. 27 apud Michaël Vot-
tero, ibidem.
21  Museu Imperial de Petrópolis. Arquivos da Casa Imperial (POB). Maço 134. Doc n. 6580.

141
O Ateliê itinerante de Pedro Américo: um ateliê na mala de viagem (1865
-1869)
Pedro Américo deixou a França e chegou ao Rio de Janeiro em 1864 para participar
do concurso público da Academia Imperial de Belas Artes. Venceu o concurso,
foi nomeado e, logo em seguida, foi autorizado a retornar à Europa. Américo não
dispunha de qualquer recurso para enfrentar esse novo período europeu: estava sem
bolsa ou salário. Seu espírito romântico, seu gosto pelas aventuras e sua vontade
de terminar seus estudos científicos o motivaram a pintar vários retratos e, com o
dinheiro obtido, tomar o primeiro barco para a França aonde chegou a fins de 1865.22

Chegando a Europa, ele viajou, durante algum tempo, Holanda, Dinamarca,


Baden. Para sua sobrevivência pesquisava por encomenda, fazia ilustrações para
teses, pequenos retratos, retoques em fotografia. Enfim, qualquer trabalho que lhe
proporcionasse algum rendimento financeiro. Com exceção dos pequenos retratos,
desenhos ou exercícios eventuais dos quais nos fala Cardoso de Oliveira, ele executou
apenas alguns quadros de assuntos religiosos; entre eles a pequena tela intitulada São
Jerônimo que se encontra atualmente no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de
Janeiro e que deve ter sido encomendada ou simplesmente adquirida pelo monsenhor
Felix Maria, uma vez que essa tela foi doada pelo religioso à Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro de onde passou posteriormente para o acervo do museu.

Essa temporada foi marcada por vários contratempos de ordem financeira. Em Paris,
ele passou por sérias dificuldades e mesmo a fome não lhe foi estranha. Em uma
carta para o seu amigo de infância Daniel Pedro Ferro Cardoso, alguns anos mais
tarde, Américo lamenta não ter tido tempo de visitá-lo em Paris, na época, e relembra
aqueles tempos duros.23

Suas aventuras continuaram e, segundo Cardoso de Oliveira, ele recebeu e aceitou


convite de um capitão de nome Dubosc para viajar para a Argélia que, na época, era
a Meca dos pintores românticos franceses atraídos por cenários e temas exóticos. Foi
admitido na expedição como desenhista24 e viajou pelo interior do país registrando
cenas, hábitos e fauna. Voltou alguns meses mais tarde para Paris com várias aquarelas
sobre esses temas que conseguiu comercializar.

Sempre dividido entre arte e ciência, Américo foi para Bruxelas com o objetivo de
completar seus estudos. Em 1867, foi admitido no doutorado daquela universidade
Durante esse período de estudos passou pelas mesmas dificuldades financeiras sofridas
em suas andanças. Assim, entre viagens, naufrágios e estudos o artista atravessou esse
período de sua vida e teve sua quota de aventura e romantismo. Defendeu, em 13 de
janeiro de 1869, sua tese intitulada A Ciência e os Sistemas: questões de história e de
Filosofia Natural. O trabalho em questão foi publicado em 1869 em Bruxelas e foi
dedicada a Pedro II, imperador do Brasil.

22 CARDOSO DE OLIVEIRA, J. M., op. cit. P. 54.


23 Arquivos privados do Monsenhor Rui Vieira. Areia. Paraíba. Carta a Daniel Pedro Ferro Cardoso, datada de Floren-
ça, 2 de novembro de 1883. Atualmente esse documento se encontra no Museu Regional de Areia.
24 CARDOSO DE OLIVEIRA, JM., op cit. P. 65.

142
A licença da Academia terminou definitivamente em 6 de novembro de 1868, porem
ele continuou na Europa. Finalmente, em 8 de junho de 1869, o artista comunicou
à academia brasileira que já estava de partida para o Brasil e que havia casado com
Carlota, filha de seu antigo mestre Manuel de Araújo Porto - Alegre, então cônsul do
Brasil em Portugal.25

O Ateliê itinerante de Pedro Américo: a Academia Imperial de Belas Artes


do Rio de Janeiro (1869-1874)
De volta ao Brasil, Pedro Américo era um professor da Academia Imperial de Belas
Artes, selecionado por concurso dois anos antes, mas sem ainda ter exercido as fun-
ções do seu cargo uma vez que logo depois do referido concurso o artista retornou à
Europa em período de licença. Autor de uma pequena produção pictórica executada
principalmente na França ele era, na época, um completo desconhecido do grande
público de seu país e, mesmo, de grande parte do meio mais erudito brasileiro.

O ufanismo provocado pela vitória brasileira na Guerra do Paraguai, a necessidade de


uma logomarca para o Império e o seu senso inato de oportunidade lhe mostraram um
caminho a seguir: registrar aspectos desse momento da história nacional e conseguir,
assim, sua notoriedade. Para tanto, escolheu como tema para sua primeira tela de
história a luta acontecida em Campo Grande, uma das batalhas de uma guerra que
mobilizara todo o país. Oportunamente, usou como assunto central da composição,
o genro de seu mecenas, o conde d´ Eu, em um momento que daria ênfase a uma
imagem heroica e “civilizatória” da monarquia brasileira e recorreu à própria princesa
Isabel para colher dados para a composição. Em 14 de setembro de 1869 a princesa
Isabel do Brasil escreveu a seu sogro, o duque de Nemours, sobre um jovem pintor
brasileiro, talentoso, que havia estudado na Europa e que queria fazer um quadro
representando o Conde d’ Eu na batalha de Campo Grande:
Un jeune peintre brésilien qui a étudié en Europe et qui a du talent, elque temps désire
faire un tableau représentant Gaston à la bataille de Campo Grande ou Nhú- Guassú,
au moment où il veut s ´enlacer au plus fort du danger et où il a son cheval retenu par
Almeida Castro, cependant le tableau n ´ est pas commencé. Le peintre, avec raison,
désire faire quelque chose d ´exact, ne pas inventer. Il est après des renseignements sur la
tenue qui portait alors Gaston, nature du terrain [...].26

Iniciou a tela em 1870 e utilizou como ateliê para a sua confecção o espaço da
Academia Imperial de Belas Artes onde seus amigos e a própria família imperial o
visitou para ver o esboço do trabalho27. Em paralelo, o artista iniciou uma atividade
intensa na imprensa brasileira em uma hábil estratégia para divulgar seu quadro ainda
em projeto. Graças à doação de suas netas Virgínia e Carlota Cardoso de Oliveira,
ao Museu de Petrópolis28 de uma coleção de recortes de jornais sobre o quadro A

25 Museu D. João VI. Arquivos da ENBA. Dossiê Pedro Américo. Doc. N. 67.
26 Museu Imperial de Petrópolis. Coleção Grão Pará. Carta da Princesa Isabel ao duque de Nemours datada de 14 de
setembro de 1869.
27 Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 11 de maio de 1871.
28 Museu Imperial de Petrópolis. Coleção de recortes de jornal com anotações pessoais de Pedro Américo. Esta coleção
tem como titulo: Opinião da imprensa brasileira e outros sobre a Batalha de Campo Grande

143
Batalha de Campo Grande, com anotações pessoais do artista nós pudemos seguir
essa campanha concebida, desenvolvida, executada e bem sucedida através dos
veículos de comunicação da época.

Américo conseguiu vender seu quadro ao governo. De acordo com suas próprias
anotações, o Estado comprou seu trabalho em 27 de janeiro de 1872. O artista recebeu
por ele 13 contos de réis 29 . A tela ainda não havia sido exposta o que só aconteceu
dois meses após sua aquisição na XXII Exposição Geral da Academia Imperial de Belas
Artes do Rio de Janeiro inaugurada em 6 de março de 1872.

A partir de uma pintura executada em um ateliê situado no próprio prédio da Aca-


demia, Pedro Américo conseguiu fama e encomendas. Uma delas foi bem especial.
Em 19 de agosto de 1872 ele foi encarregado de executar uma tela sobre a história
brasileira. Escolheu como tema a Batalha de Avaí que também fez parte da Guerra
do Paraguai. Seguiu-se um período dedicado a pesquisar o tema, durante o qual o
pintor licenciou-se da academia alegando a necessidade de um tratamento de saúde.30
Nessas pesquisas ele utilizou-se da fotografia e do desenho como aide-memoire, ma-
teriais que deveriam ajudá-lo embasando o seu conhecimento sobre as características
topográficas do local a ser registrado, uniformes, objetos e personagens principais.
Depois de proceder com as pesquisas necessárias, partiu para a Europa, onde preten-
dia executar a encomenda.

Figura 7 - Fachada atu-


O Ateliê itinerante de Pedro Américo: a biblioteca do convento Santíssi-
al da Igreja da Santís- ma Anunziatta (1874-1877)
sima Anunciada. Rua
Gino Capponi. Floren- Após um período de pesquisas sobre o tema escolhido e de uma licença remunerada
ça. da Academia Imperial de Belas Artes, Pedro Américo partiu para a Itália em janei-
ro de 1874. Era naquele país que ele deseja-
va morar e escolheu a cidade de Florença se
estabelecendo na Via Antonio Giacommini
n. 9. O seu novo trabalho necessitava de um
grande espaço para servir como ateliê, pois
a tela encomendada seria de grandes dimen-
sões. O local escolhido e obtido foi o espaço
da biblioteca do convento Santíssima Anun-
ziatta. [Figura 7] O fato foi muito comentado
pela imprensa italiana da época31 bem como
na de outros países além de ecoar na brasilei-
ra como vemos no exemplo que se segue:
Não quero concluir estes rabiscos sobre litteratura
e bellas-artes sem dizer alguma cousa do quadro
do Sr. Pedro Américo sobre a Batalha de Avahy.

29  Museu Imperial de Petrópolis. Dossiê Pedro Américo. Anotação pessoal de Pedro Américo na coleção de recortes
de jornais intitulada Opinião da imprensa brasileira e outros sobre a Batalha de Campo Grande. Esta anotação foi
datada de 27 de janeiro de 1872.
30  Museu D. João VI. Escola Nacional de Belas Artes. Dossiê Pedro Américo. Doc. N.91.
31  Entre eles: Monitore dei Teatri, Milão, 26 de janeiro de 1877 e The Daíly News, 16 de março de 1877.

144
O quadro acha-se exposto actualmente, depois de visitado pelo monarcha brasileiro, na
ex-bibliotheca do convento da Annunziata em Florença. A imprensa local tem-lhe tecido
grandes louvores.32

Durante esta temporada em Florença ele, como sempre, fez amigos de prestígio, não
esqueceu o poder da imprensa e seu ateliê foi frequentemente visitado por jornalistas e
intelectuais italianos. Vários artigos sobre o artista e sua obra apareceram na imprensa
florentina e Américo e o seu quadro já eram conhecidos bem antes da exposição
oficial. No jornal Monitori dei Teatri de 26 de janeiro de 1877, por exemplo, Carolina
Invernizio assim se manifesta sobre o artista:
Se gli servono ad inebriare um uomo, niuno poteva correre tal rischio piu di Pedro Amé-
rico. Decorato di varii ordini, carico di onofirenze, festeggiato dal popolo e daí grandi,
aclamato entusiasticamente dal governe e dalla stampa, [...] Um giorno l ´ artista filoso-
fo, sentissi sogere in cuore vivíssimo Il desiderio di visitare l ´ Italia...sogno dorato della
sua giovinezza [...] Il governo brasiliano favori Il progetto del Giovane Américo! Oh!
Come la sua anima portata da ineffabile desiderio, bateva a ´ ali impaziente di lanciarsi
in quella beata regione!

Pedro Américo expôs seu trabalho, A Batalha do Avaí, na Via Gino Capponi, nas
dependências da Santíssima Anunziatta, a partir de primeiro de março de 1877. O
imperador Pedro II assistiu a inauguração juntamente com várias personalidades
da aristocracia europeia bem como toda a Florença artística e o acontecimento, que
durou em torno de 18 dias, foi considerado um sucesso e muito bem divulgado na
Itália e em outros países da Europa.33

Após o encerramento da exposição, a tela foi enviada para o Brasil em 26 de abril


de 1877. A Batalha de Avaí foi exposta inicialmente em uma construção de madeira,
fabricada especialmente para a ocasião situada na Praça Pedro II. Após a mostra
Américo retornou a Florença e se instalou na Via di Mezzo. De lá, em fevereiro de
1878, ele escreveu a todos os presidentes de província do Brasil. Na correspondência,
propunha uma subscrição popular – os presidentes encabeçariam a lista – para recolher
fundos para um novo quadro que deveria homenagear o marquês de Herval, o homem
do momento no cenário político do Brasil. Seria um quadro patriótico, segundo o
pintor. Não foi bem sucedido. Ele só recebeu em resposta ao apelo, 1.505 francos
franceses do presidente da província do Amazonas em 26 de dezembro de 1878.

32  Jornal do Commércio, 4 de abril de 1877, pag.1. Folhetim do Jornal do Commercio LIII - Ver, ouvir e Contar. Autor
desconhecido. Disponível em: www.dezenovevinte.net/artigos_imprensa/jornal_commercio.htm
33  Arquivos privados da senhora Adelina di Figueiredo Montesi. Florença. Alguns artigos da imprensa italiana e in-
ternacional sobre Pedro Américo e sobre a exposição da tela A Batalha de Avaí em Florença: Litterarische Dilettanten
Schul, 1 de março e 1 de abril de 1877; L `Arte, Florença, 1 de março e 1 de maio de 1877; La Gazzetta d `Italia, Flo-
rença- Roma, 2,18,22 e 25 de março de 1877; Gazzetta Del Popolo, Florença 3,17 e 23 de março de 1877; La Nazione ,
Florença, 3,4,5, 16 e 23 de março e 14 de setembro de 1877; L` Opinione Nazionale, Florença, 3, 6, 8 e 17 de março de
1877; Das Museum, 6 de março de 1877; Bromberg Zeitung,7 de março , 4, 11 e 17 de abril ,2,7,11 e 12 de maio e 24
de agosto de 1877; Lê Touriste d` Italie, Florença, 7 de março de 1877; La Perseveranza, Milão, 11 de março de 1877;
Publicistische Blatter, Viena, 11 de março de 1877; The Daily News, 16 de março de 1877; Il Corriere Italiano, Flo-
rença, 17 e 22 de março de 1877; Il Paese, Siena , 31 de março de 1877; Die Segenwart, 1 de abril e 26 de maio de 1877;
Journal Fur Redacteure, Berlin, 22 de abril de 1877; La Rivista Settimanale, Roma-Napoles, 30 de abril de 1877; Neue
Berliner Zageblatt, Berlim, 13 de maio de 1877, The South American Mail, 23 de julho de 1877; El Ferro, 23 de julho
de 1877; O Novo Mundo, Nova York, agosto de 1877; The Anglo Brazilian Times, 8 de outubro de 1877.

145
O Ateliê itinerante de Pedro Américo: Via di Mezzo, n. 4 (1878-1890)
A Via di Mezzo é uma rua situada no centro de Florença com característica
residencial e popular. Foi lá, no número quatro, de acordo com correspondência do
pintor, que ele se instalou nessa volta à Itália. [Figura 8]. E lá funcionou seu ateliê
durante alguns anos. De lá, ele se articulava, com o Brasil e com a Itália: novas
encomendas e a cobrança ao governo brasileiro do pagamento estipulado em contrato
pela confecção da Batalha do Avaí. Também continuou a pedir e obter renovações
de licença da Academia. Uma carta para o conselheiro Capanema datada de 12 de
junho de 1879 nos dá uma ideia de seus sentimentos bem como de suas justificativas
às acusações de plágio que havia recebido
após a exposição da tela, pelos seus pares e
por parte da imprensa brasileira:
Quando pintei a Carioca, ahi escreveram que era
uma italiana das margens do Arno (rio que eu
nunca tinha visto senão nas cartas geográficas).
Quando pintei o Campo Grande, disseram que
o facto não era verdadeiro – contrariamente às
affirmativas dos officiaes do exercito e do próprio
General em Chefe. Agora, pois é necessário negar
o pouco ou nenhum mérito do meu Avahy, já que
é impossível sustentar não ser histórico, e para
esse fim concorre de um lado a malevolência de
uns, de outros a grandessíssima ignorância de
muitos [...]
Figura 8 - Via di Mez- Os espíritos predispostos não consideram, não refletem que em uma composição de 400
zo. Firenze.
figuras é impossível deixar de descobrir semelhanças com outras realizadas antes [...]

Ah, a Europa não me pode desilludir mais do que a minha própria Pátria onde fui recebido
debaixo de chistes, como um charlatão, onde tentou-se incendiar minha tela antes que a
visse o povo e donde atiram-me vitupérios no momento em que sou vitorioso, apesar de
nada valer [...] na Sábia Allemanha.34

Amargurado, Américo esperava pelo resultado da premiação da XXV Exposição Ge-


ral das Belas Artes onde havia exposto posteriormente a sua Batalha de Avaí junto à
Batalha dos Guararapes de Victor Meirelles de Lima. No início de 1880, seu amigo
(e correspondente habitual) Mafra lhe assegura que, enfim, ele iria receber o tão
ambicionado título de barão do Império. Esta recompensa tinha sido pedida pela con-
gregação de professores da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. O
título ambicionado, entretanto, foi recusado e substituído pelo de “Grande Dignitário
da Ordem da Rosa”, o que não estava de acordo com o procedimento habitual do go-
verno que, na época, não interferia nas resoluções internas da Academia.

34 Arquivos privados do Monsenhor Rui Vieira. Areia. Paraíba. Diário do Artista. Junho de 879. Carta de Pedro Amé-
rico ao conselheiro Capanema, escrita em Florença, datada de 12 de junho de 1879. Atualmente estes documentos se
encontram no Museu Regional de Areia.

146
Descontente, pediu pela primeira vez demissão de seu posto de professor.35 Esse
primeiro pedido foi repetido incontáveis vezes sempre justificado pelo prêmio não
recebido ou por sua doença crônica. Sua demissão não foi jamais aceita pelo governo
de Pedro II e suas licenças foram sendo prolongadas de acordo com suas necessidades.

O diário de Américo, porém não nos mostra um doente quase cego e incapaz de
trabalhar. Ao contrário: percebe-se através dele, uma pessoa ativa, alguém que planifica
seus negócios de maneira meticulosa, que se corresponde com personalidades das mais
diversas partes do mundo e que copia, metodologicamente, essa correspondência. O
homem que transparece de suas anotações é alguém extremamente político, orgulhoso
de seu trabalho e ressentido com os seus críticos e com o governo brasileiro. É uma
crônica de cumprimentos às personalidades do dia, manobras para obter o que queria
através de seus amigos influentes, planos para um futuro na política brasileira.

Durante esse período ele pintou bastante. Uma grande quantidade de telas de assunto
variado e alguns retratos. Em paralelo, continuou a anotar todos os acontecimentos
da sua vida cotidiana em seu diário. Os negócios continuavam e, apesar da moléstia
alegada, prosperavam. Em 6 de abril de 1884, escreveu novamente ao Ministro dos
Negócios do Império sobre onze quadros que havia concluído e enviado para o Brasil:
queria expô-los na próxima mostra da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de
Janeiro. Comentou na carta que havia terminado esses trabalhos “durante os intervalos
de seu sofrimento físico”, e que desejava que os quadros fossem expostos “nas mesmas
condições que os trabalhos dos outros concorrentes”. Nesta mesma correspondência
informou a quantidade e o título dos trabalhos enviados: David nos seus últimos dias é
aquecido pela jovem Abisag; Dona Catarina de Athayde; Judith rende graças a Jehovah
por ter conseguido livrar sua pátria dos furores de Holophernes; A Carioca (reprodução
com algumas variantes); A noite acompanhada dos gênios do amor e do estudo; Joanna
d´Arc, ouve pela primeira vez a voz que lhe prediz o seu destino; D. João IV, Duque de
Bragança em 1608; Rabequista Árabe; Retrato de menina em costume espanhol de 1600;
A virgem dolorosa; Estudo de perfil e Moysés e Jocabed. Enviou, também, um quadro
intitulado Contemporâneo de Van Dyck executado por Décio Villares, seu discípulo.36

Em julho de 1884, apesar de todas as declarações de “estar escrevendo de um leito


de doente”, Pedro Américo estava em Paris com a família onde, de acordo com
uma correspondência com seu cunhado, Manoel, ele pretendia se instalar. 37 Os
acontecimentos, porém não foram favoráveis. Acreditamos que isso se deveu ao
aspecto financeiro, como deixa transparecer o artista. Américo decidiu retornar à

35 Arquivos privados do Monsenhor Rui Vieira. Areia. Paraíba. Diário do Artista. Março de 1880. Carta de Pedro
Américo ao Ministro dos Negócios do Império escrita em Florença, datada de 8 de março de 1880. Atualmente estes
documentos se encontram no Museu Regional de Areia.
36 Arquivos privados do Monsenhor Rui Vieira. Areia. Paraíba. Diário do Artista. Abril de 1884. Carta de Pedro
Américo ao Ministro dos Negócios do Império datada de 6 de abril de 1884. Atualmente estes documentos se encontram
no Museu Regional de Areia.
37 Arquivos privados do Monsenhor Rui Vieira. Areia. Paraíba. Carta de Pedro Américo ao seu cunhado Manoel.
Escrita em Paris e datada de 21 de julho de 1884. Atualmente estes documentos se encontram no Museu Regional de
Areia.

147
Florença. Porém, antes de sua volta, ele necessitava ir ao Brasil tentar vender seus
quadros e conseguir encomendas.

O pintor e sua família chegaram ao Brasil no início de 1885. Não havia qualquer
intenção de uma temporada de longa duração, ou de retomar suas aulas na Academia.
Segundo suas próprias palavras, em uma correspondência para seu amigo de infância
Daniel Pedro Ferro Cardoso, algum tempo antes, ele já havia pedido três vezes ao
governo brasileiro sua demissão desta “espécie de necrópole que era a Academia.”38
Logo em seguida ele conseguiu o que pretendia e assinou um contrato, em 14 de
janeiro de 1886, para a execução de uma tela sobre a independência do Brasil a
qual intitulou A proclamação da Independência no Brasil, mas que ficou conhecida
popularmente como O Grito do Ipiranga. Após a conclusão de seus negócios no Brasil,
o artista voltou para Florença com a família. Na bagagem levava uma nova licença
para tratamento de saúde. Em Florença passou a ocupar o mesmo endereço na Via de
Mezzo onde manteve também o seu ateliê.

Américo realizou rapidamente a tela para o Palácio da Independência de São Paulo.


Cardoso de Oliveira afirma que ele a terminou em apenas um ano de trabalho.39
Naturalmente, suas licenças foram renovadas à medida que ele as solicitava. Os dois
primeiros anos dessa nova temporada florentina se escoaram tranquilamente. O
artista recebeu a visita da princesa Isabel e de seu marido, o conde d’ Eu, para admirar
a tela em execução sobre a proclamação da Independência do Brasil en avant première
e, na oportunidade, aproveitou para mostrar ao casal real um esboço para uma tela
sobre a abolição da escravatura.

O Ateliê itinerante de Pedro Américo: o Rio de Janeiro sob a República (1890-1893)

O golpe militar que instituiu a República surpreendeu Pedro Américo em Florença


em vias de iniciar o quadro comemorativo da abolição da escravatura que tinha
sido encomendado pelo governo imperial. Os trabalhos foram, naturalmente,
interrompidos. Américo necessitava, porém, urgentemente, de se libertar de sua
imagem de protegido do imperador exilado e tomar lugar junto ao novo poder: uma
questão de sobrevivência. De Florença, ele redigiu um manifesto, do qual exibimos
a seguir um pequeno trecho, datado de 15 de fevereiro de 1890 no qual, entre
críticas ao antigo regime e exaltação ao novo, propõe representar na nova assembleia
constituinte os artesãos e operários em geral:
Não conheço entre os antigos directores da política da nossa pátria nenhum homem que
comprehenda a importância do artista brasileiro. Acostumados às luctas exclusivamente
partidárias, e aos sophismas da demagogia imperial progenitora da descrença e do
desanimo nacionaes, quase todos se distinguiram pelo desdém voltado aos representantes
da actividade artística, e premiaram com o mais absoluto desprezo a maior parte
daquelles de quem, muitas vezes, dependeram os seus triumphos. [...] A proclamação do
regimem democrático no Brasil deve banir do nosso solo até os últimos vestígios desse
38 Arquivos privados do Monsenhor Rui Vieira. Areia. Paraíba. Carta de Pedro Américo a Daniel Pedro Ferro Cardoso
escrita em Florença e datada de 2 de novembro de 1883. Atualmente estes documentos se encontram no Museu Regio-
nal de Areia.
39 CARDOSO DE OLIVEIRA, J. M.. Op. cit., p. 153.

148
espírito dissolutor e immoral, a que deve o brasileiro o desânimo que o imobilizava, e
esse Estado o seu atrazo, a sua pobreza e a sua absoluta decadência [...] Acostumado às
luctas do pensamento, aos combates e a adversidade, à independência das palavras e das
ações, forte pela segurança de poder viver honestamente em qualquer parte do mundo
sem jamais ser pesado aos cofres do meu paiz, nem carecer embair a opinião pública para
obter a glória que só esperei do meu trabalho, eu tenho pois razão para esperar de Voz a
alta distinção de vos representar no seio da próxima Assembléia Constituinte.40

Américo deixou sua família na Itália e veio ao Brasil logo após o golpe. A capital
brasileira sob a República não lhe agradou mais do que sob a monarquia. Escrevendo
à sua família na Europa ele se queixa veementemente do aspecto feio e sujo da cidade
afirmando que não tinha visto mais do Rio que “o que se vê pelas ruas que continuam
as mesmas, estreitas e cortadas por riachos de água suja etc.” e manifesta esperanças
de resolver seus negócios o mais rápido possível e retornar à Florença.41 Essa carta
também reflete a sua insegurança em relação ao novo regime e às mudanças que
estavam se processando também no meio artístico ou, pelo menos, que estavam
sendo esperadas. Diz ele, no texto: “os allunos da Academia querem que o governo
extinga esta e ponha para fora os lentes e querem mais outras cousas que talvez o
Governo não queira fazer” e que “ no meio de tantas opiniões e de tanta confusão
de ideias temo pronunciar-me”. Mas se pronunciou,
apesar de ser bem mais moderado do que seu irmão
Aurélio de Figueiredo que com seu outro discípulo
Décio Villares (além de Montenegro Cordeiro)
liderava os positivistas autores do Projeto Montenegro
que propunha antes o extermínio da Academia do que
uma reforma na instituição.

Em 15 de fevereiro de 1890, Américo conclamou seus


conterrâneos e pediu seu apoio para obter uma cadeira
na nova Assembleia. Neste mesmo ano ele foi eleito
deputado pela sua província natal: a Parahyba do
Norte. Fez as malas, deixou Florença com a família e se
instalou no Rio de Janeiro, na Rua do Lavradio n. 69,
para exercer suas novas funções. A Rua do Lavradio
[Figura 9] não integrava o núcleo urbano inicial do
Rio de Janeiro. Foi aberta no final do século XVIII,
quase 200 anos depois da fundação da cidade e só na
última metade do século XX deixou de ser periférica,
Figura 9 - Rua do La-
passando a fazer parte do centro. vradio. Rio de Janeiro.
A partir desse espaço enquanto artista e na Assembleia como deputado Pedro Américo
trabalhou para a República como havia trabalhado para a Monarquia. Sua habilidade
política se manifestou mais uma vez nessas circunstâncias e ele, que apesar de ter
se beneficiado sob o império sempre manteve suas ligações com os republicanos,

40 Manifesto de Pedro Américo aos artistas brasileiros.


41 Museu D. João VI. Escola Nacional de Belas Artes. Doc. N. 145. Correspondência datada de 20 de julho de 1896.

149
contava com muitos amigos estabelecidos junto ao novo governo. Nesse período
sua produção se adaptou aos novos tempos republicanos e ao seu mercado. No
Tiradentes Esquartejado ele foge da visão do “belo ideal” fragmentando, violando
o corpo do agora herói nacional. Não podemos atribuir essa inovação a uma nova
postura estilística do artista, mas a circunstancial necessidade política de enfatizar
a violência colonial, portanto monárquica, que o regime queria marcar. Apesar dos
novos ventos republicanos o pintor não escapou de novas críticas. Elas o acusaram
pela crueza da execução do tema ou pelo seu realismo. Porém, apesar das críticas, o
pintor conseguiu vender o seu trabalho para a província de Minas Gerais através da
municipalidade de Juiz de Fora.

Os primeiros tempos republicanos não foram favoráveis às artes de uma maneira geral.
As elites brasileiras estavam ocupadas em consolidar o regime e não existia mais o
mecenato de Pedro II. Por outro lado, a classe média brasileira não era suficientemente
esclarecida para se interessar por artes visuais no sentido de patrociná-las. Pedro
Américo tentou reverter essa realidade. Ele havia pintado, em Florença, uma série
de trabalhos envolvendo uma temática voltada para a execução de animais exóticos,
frutos prováveis de anotações feitas em seus tempos de juventude na Argélia. A partir
desses trabalhos ele montou, talvez, uma das primeiras mostras voltadas para a classe
média brasileira, expondo numa loja, La Glace Elegante, que fez, então, o papel de
galeria de arte. Ninguém comprou qualquer trabalho.

Em 1893, quando Pedro Américo acabou seu mandato de deputado, nada o motivava
mais a permanecer no Brasil. Não queria viver em um lugar que ele não amava e que
não proporcionava maiores possibilidades de um mercado farto para o seu trabalho.
Figura 10 - Busto de Voltou para a Itália definitivamente.
Pedro Américo. Pa-
lazzo Michelozzi. Via O ateliê itinerante de Pedro Américo: um solitário na Via di Maggio
de Maggio. Florença (1893-1905)
A Via Maggio fica após a Piazza Frescolbaldi e vai até a Piazza San
Felice, próxima ao Palazzo Pitti. Nela, encontramos diversos palácios
construídos no século XIV. Entre eles o Palazzo Michelozzi, que não é o
mais bonito e nem o mais importante da rua, mas foi lá onde se instalou
Pedro Américo até a sua morte e onde se encontra uma placa em sua
homenagem. [Figura 10].

Após o fim de seu mandato de deputado, Florença continuou sendo


seu refúgio. Com exceção de algumas viagens para a Alemanha e
França, Pedro Américo não saiu mais daquela cidade. Foi uma época
interessante em relação a sua produção pictórica que foi vasta e especial
em relação à totalidade da sua obra. Durante esse período ele pouco
pintou por encomenda e se dedicou às pinturas religiosas, lembranças
da Argélia e, principalmente, temas do cotidiano. De uma maneira geral
sua técnica é mais espontânea em alguns trabalhos, como os retratos
de familiares. Ele ainda pinta temas célebres, históricos, alegorias, mas
retrata sua empregada doméstica Carolina com um olhar diferente do
150
resto de sua produção, inclusive a de retratos. Os nus de sua temática bíblica são
ousados e eróticos. A sua tela A mulher de Putifar representa bem esse momento na
trajetória do artista.

A partir de 1900 ele voltou aos assuntos religiosos próprios do novo testamento, como
em sua infância. A figura de Cristo pintado repetidas vezes, pode estar ligada a um
momento de interrogações pessoais expressos através dessa iconografia além de fonte
de encomendas particulares. Américo, porém não havia abdicado definitivamente
do mercado estatal. A tela intitulada Paz e Concórdia é um bom exemplo desse fato.
Apesar da inexistência de uma encomenda, ele conseguiu o difícil feito de vendê-la
para a República.

A velhice do artista aconteceu na tranquilidade florentina. Escrevia frequentemente


à sua família, principalmente para sua filha Carlota, seu genro e sua neta, cartas
ilustradas com caricaturas e poemas bem humorados que expõem um lado seu oculto
ao grande público e a serenidade da sua maturidade. Era um avô terno, atencioso e
sem nenhuma intenção de deixar Florença. Naquele momento, não tencionava voltar
a expor no Brasil. Recusava convites. A Escola de Belas Artes lhe pediu trabalhos
para expor e ele rejeitou sob o pretexto de não ter nada importante a mostrar como
afirma em 20 de julho de 1896, a Rodolfo Amoedo, então vice-diretor da Escola de
Belas Artes:
Voltando da Allemanha, recebi hoje a circular que VS a. foi servido me mandar convi-
dando-me a concorrer a 3a expposição geral, que se realizará nessa Escola no mês de
setembro próximo. Agradeço a VSa se ter lembrado de mim e sinto não possuir nenhum
trabalho digno dessa exposição que creio será brilhante como as que a precederam.42

Durante seus últimos anos de vida o pintor pareceu interessado em uma proposta
do Pará. A municipalidade de Belém era regida então por Antonio Lemos que sig-
nificava, em sua época, uma alternativa de mecenato. Com seu aval foi proposta a
criação de uma escola de pintura que seria intitulada “Instituto Pedro Américo” e que
significaria o início de uma futura Escola de Belas Artes no Pará. Com o apoio de
Antonio Lemos, Pedro Américo seria o futuro diretor desta escola. Foi longo o diálo-
go do artista com Virgílio Cardoso de Oliveira. Discute-se sobre a administração do
hipotético estabelecimento e propõe-se, mesmo, levar para o Brasil alguns quadros
que serviriam de modelo para os futuros alunos da instituição.43

A perspectiva talvez fosse apenas uma fantasia para Pedro Américo, entretanto,
até 1905, ano de sua morte, uma correspondência se manteve sobre o fato. Não
acreditamos que o artista queria morar no norte do Brasil ou em qualquer outra
parte do país. Porém, ser querido, ser importante, era uma alternativa que parecia
interessante naquele momento de esquecimento. Por carta ele justificou que: “era
o desejo de servir aos amigos e sonhar com um Brasil politicamente renovado que
objetivava sua perspectiva paraense.”44 O fato é que ele considerou essa possibilidade

42 Museu D. João VI. Escola Nacional de Belas Artes. Doc. N. 145. Correspondência datada de 20 de julho de 1896.
43 CARDOSO DE OLIVEIRA, Virginio. O Solitário de Florença. Sem data ou editora. P.33.
44 Carta de Pedro Américo citada por V. C. de Oliveira. Op. cit. P.34.

151
até o seu fim: em 15 de março de 1905, seis meses antes de sua morte, ele ainda
matinha Belém em banho-maria, se justificando e prometendo um futuro possível.
Em espírito, pelo menos, ele continuava nômade. Seus espaços de trabalhos, seus
incontáveis ateliês refletem essa sua vida de andarilho. Uma existência de alguém
que quis sempre descobrir mais.

Pedro Américo morreu em Florença em 7 de outubro de 1905. O governo brasileiro


se encarregou do transporte de seu corpo até a capital do país. O Brasil da época não
prestava muita atenção a quem quer que fosse envolvido com cultura. O corpo do
artista voltou ao Brasil como frete. O artista foi enterrado na capital da Província da
Parahyba em 29 de abril de 1906. A cidade de Areia, porém não esqueceu seu garoto
prodígio. Seu corpo foi exumado e o fizeram retornar à terra que o viu nascer. Ho-
menagem póstuma. Ele havia revisto Areia duas vezes: uma para caçar passarinhos,
outra vez morto.

152
Georgina de Albuquerque:
imagens de uma artista
enquanto mãe

Manuela Henrique Nogueira 1

As imagens de ateliês de artistas são recorrentes dentro do mundo das artes, tanto
fotografias quanto pinturas exploram o universo do espaço de produção artística.
Nessas imagens enfatiza-se o processo criativo e a sociabilidade ali presentes. O
objetivo dessas representações, no mais das vezes, é valorizar a imagem do artista
documentando seu processo de produção e mostrando seus atributos.

A partir dessa premissa visa-se com esse estudo reconstituir os possíveis sentidos
das imagens da pintora Georgina de Albuquerque (1885-1962) em seus ateliês, onde
muitas vezes a ênfase recaiu sobre o fato de Georgina ser mãe e esposa em detrimento
de sua profissão enquanto artista. As fontes serão fotografias e pinturas feitas dela
durante as décadas iniciais do século XX, período este que corresponde a Primeira
República no Brasil.

A primeira fotografia [Figura 1] a ser analisada capta parte do ateliê do casal de


pintores, Georgina e Lucilio de Albuquerque (1887-1939) em Paris, onde residiram de
1906 a 1911 devido ao recebimento do prêmio de viagem da Escola Nacional de Belas
Artes por Lucilio. Segundo a autobiografa2 de Georgina fixaram residência no bairro
parisiense de Montparnasse considerado reduto artístico e boêmio. Na foto o casal
posa junto a sua primeira filha, Beatriz, que nasce durante a estadia deles na capital

1 Mestranda pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo e bolsista Fapesp.
2 Segundo documento intitulado “Autobiografia” escrito por Georgina de Albuquerque no Rio de Janeiro em 18/01/1958
consultado na pasta da artista na biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes

153
francesa, a criança aparece no colo de
Georgina que segura-a cuidadosamente
e ambos olham-na ternamente como
que encantados. O espaço de produção
artística do casal é composto por uma
estante de livros do lado esquerdo,
demonstrando a erudição dos pintores,
modelos em gesso pendurados nas
paredes que revelam a relação com a
tradição artística, além de estudos e
pinturas de Lucilio expostos nas paredes,
destacando assim a produção que ali se
dá.

Ainda nessa imagem do ateliê destaco


a presença da tela pendurada em um
Figura 1 - Georgina e cavalete, ao lado direito na fotografia, o que nos chama a atenção nessa pintura é
Lucilio de Albuquerque
em seu ateliê em Paris,
que ao representar uma mãe segurando seu bebê, por meio de gestos delicadamente
início do séc. XX orquestrados, a pintura dialoga diretamente com a pose do casal na foto, demonstrando
como arte e vida podem estar consonância.

Na segunda fotografia [Figura 2] que compõe um álbum de fotos de artistas nacionais


e internacionais o casal Albuquerque novamente posa em seu ateliê, agora com os
dois filhos do casal no colo de Georgina, ela vestida de negro encara diretamente
as lentes do fotografo. Aqui novamente há um espelhamento da pose da artista com
uma pintura que está atrás do casal, à pintura representando uma mulher com uma
criança no colo remete diretamente a pose de Georgina na fotografia. A partir de
pesquisa iconográfica chegou-
se a conclusão que trata-se da
tela intitulada Minha família
de Lucilio de Albuquerque que
data do ano de 1910, segundo o
periódico Gazeta de Notícias.3

Nota-se ainda que tanto


Georgina quanto o marido e
os filhos vestem-se com roupas
Figura 2 - Álbum de sociais indicando assim a
fotografias de artistas premeditação da fotografia que
brasileiros e estrangei- foi posada e não flagrada.
ros. Fonte: Álbum de
fotografias de artistas Na terceira imagem [Figura 3]
brasileiros e estrangei-
ros de Nogueira Silva. temos somente Georgina com
Biblioteca Nacional/ os dois filhos do casal, todos
Iconografia vestindo roupas brancas o

3  Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, ago. 1911.

154
que torna a foto uma composição harmônica. A pintora posa
sentada e segura no colo o seu filho mais novo, ao seu lado
esquerdo em pé em uma cadeira, temos a filha mais velha que
se apoia nos ombros da mãe. Ao fundo temos uma pintura, mas
não foi possível identificar à temática e a autoria.

Nesse álbum que contem diversas fotografias de artistas muitos


deles escolhem posar em seus ateliês. Há no álbum a presença
de poucas mulheres são elas, a escultora Nicolina Vaz de Assis
(1874-1941), a pintora Angelina Agostini (1888-1973) e Izolina
Fanzeres que é a única a ser fotografada pintando no ateliê. Ao
comparar as fotos dessas artistas as de Georgina presentes no
álbum nota-se que a única a ser representada enquanto mãe
é Georgina. Vale notar que Lucilio é também o único homem
artista retratado enquanto pai o que era também bastante
incomum.

Temos ainda uma quarta foto [Figura 4] que, em oposição às


demais aqui tratadas, Georgina é retratada sentada sozinha no
ateliê que manteve com o marido Lucilio durante a estadia do
casal em Paris como já mencionado. Na imagem a artista está
concentrada em seu trabalho, pois segura uma paleta em suas
mãos e está em frente a um cavalete com uma tela. Também podemos notar que há Figura 3 - Georgina
atrás da pintora um espelho que reflete os estudos e obras penduradas pelas paredes com os filhos do casal,
RJ, 1920. Fonte: Álbum
do ateliê, mostrando os atributos que compõe o espaço de produção artística. de fotografias de artis-
tas brasileiros e estran-
O que as fotografias, enquanto fontes, do ateliê do casal Albuquerque podem geiros de Nogueira Sil-
evidenciar acerca da imagem e identidade da pintora Georgina de Albuquerque? va. Biblioteca Nacional/
Iconografia
As fotografias de Georgina em seu ateliê nos
permitem refletir mais amplamente sobre o
status social da mulher artista no início do
século XX, ou seja, período que corresponde
à primeira República.

Para Susan Besse:

Considerações políticas, sociais e culturais exigiam


que o emprego feminino não possibilitasse às
mulheres deixar de lado seus papéis familiares
nem destruísse os estereótipos que vinculavam a
feminilidade à delicadeza, à virtude e ao altruísmo.4 Figura 4 - Georgina de
Albuquerque em seu
Apesar das inúmeras dificuldades enfrentadas ateliê, início do séc. XX.
Museu Histórico Nacio-
pelas mulheres de elite5 algumas conseguiam nal, início do séc.XX
4 BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil 1914- 1940. São
Paulo: EDUSP, 1999.
5 Pontuamos que são mulheres das classes mais abastadas, pois as mulheres das classes populares sempre trabalharam.

155
exercer com certo êxito sua profissão enquanto
artistas, porém não poderiam negligenciar as
funções sociais esperadas pelo Estado e pela
sociedade.

Segundo Ana Paula Simioni,

Georgina encarnou o protótipo da mulher


competente nos moldes republicanos, o que incluía
uma formação intelectual, e mesmo profissional,
que não obliterasse as atividades de mãe e esposa,
ás quais se dedicou infatigavelmente.6

As fotos da artista, seu marido e filhos no


espaço de produção artística de ambos - o ateliê
– reitera a discussão posta por Besse e Simioni,
pois Georgina posa em seu espaço de criação
reforçando o papel de artista, porém somente
em uma das fotografias ela está pintando
ou executando alguma obra, na maioria das
imagens ela está posando juntamente com sua
família, ao contrário da maioria dos registros
feitos de artistas nesse momento em que
aparecem posando durante o fazer artístico.

O ateliê do casal Albuquerque indica ainda


que há uma sobreposição de práticas sociais
naquele espaço, pois, ao mesmo tempo em que
se trata de um espaço de trabalho e criação
artística, também se mostra como espaço de
domesticidade em que práticas do cotidiano
Figura 5 - Lucílio de
Albuquerque (1887- familiar são produzidas e reproduzidas.
1939), Retrato de Ge-
orgina de Albuquerque, O ateliê, em geral, funcionava dentro da residência dos artistas, assim, a separação
1920. Óleo sobre tela, entre o espaço doméstico e o espaço de trabalho não eram fixas, mas permeáveis.
146.0 x 97.0 cm. Mu-
seu do Ingá, Niterói/RJ Além das fotografias também foram levantadas pinturas que retratam Georgina de
ambas as maneiras, enquanto mãe e também como artista, um exemplo é o quadro
feito pelo seu marido [Figura 5]. Na tela em questão a pintora aparece sentada em
uma cadeira em frente a um quadro seu, intitulado Árvore de Natal de 1916, premiado
no salão desse mesmo ano com a grande medalha de prata. Nessa obra a indicação do
fazer artístico é feita de forma indireta pelo pintor.

Já em outro trabalho de Lucilio [Figura 6], a artista é representada em seu momento


de criação, em uma das mãos segura sua paleta e na outra o pincel sobre a tela em
que pinta, ao fundo uma grande janela aberta mostra que a pintora não está sozinha
6  SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Entre convenções e discretas ousadias: Georgina de Albuquerque e a pintura histó-
rica feminina no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, vol. 17, nº 50, 2002.

156
no ambiente em que trabalha, uma menina está na
varanda, provavelmente a filha do casal.

Assim, compreendemos que de fato o cotidiano de


Georgina como artista também tivesse que comportar
suas atividades como mãe, ao menos dentro de sua
casa, onde ela também pintava.

Georgina contou com amparo familiar e do marido


para se formar e desenvolver-se enquanto pintora
de renome durante os anos iniciais do século XX.
Georgina e Lucílio formavam um casal parceiro na
vida e nas artes, ou seja, sua relação era vista como
harmônica e desprovida de competição, tanto no
âmbito profissional, como artistas, assim como na
vida pessoal. Tal perspectiva estava em sintonia com
o ideal de seu tempo, bem representado no livro de
Angyone Costa, A Inquietação das Abelhas. Destaco
aqui um trecho:
A casa de D. Georgina e de Lucilio de Albuquerque
é um sereno recanto onde se vive da arte e para a
arte. Aquele casal realiza bem o ideal de perfeição,
dificilmente atingido, e vai dando a vida a mais
graciosa impressão de encanto, possível num lar de
artistas Poucas vezes duas índoles, dois temperamentos Figura 6 - Lucilio de Al-
buquerque (1887-1939),
combinam tão bem.7 Georgina pintando, óleo
sobre tela colada em
Nas fotos que circularam da artista mais tardiamente, Georgina é fotografada cartão, 30,5 x 22 cm,
enquanto artista profissional, um exemplo são as fotos publicadas no periódico séc. XX
Vida Doméstica [Figura 7, Figura 8 e Figura
9].8 Na imagem da matéria intitulada A
mulher brasileira nas artes plásticas de 1935
Georgina aparece pintando ao ar livre. Nesse
período a pintora já era consagrada no
meio acadêmico, pois além das recorrentes
exposições e premiações também já havia
se tornado professora da Escola Nacional de
Belas Artes.

A mesma revista faz outra matéria com a


artista, mas agora em finais da década de
1950, cujo título é A artista é, antes de tudo, Figura 7 - Vida do-
mulher amorosa do seu lar, aqui a pintora méstica, Rio de Janeiro,
1935. Fonte: Hemeroteca
aparece já bem mais madura, nas fotografias Digital, Biblioteca Na-
que ilustram a reportagem ela posa em seu cional

7 COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello & Cia, 1927.
8 Vida Doméstica, Rio de Janeiro, out.1935 e mar.1958.

157
Figura 8 - Vida do-
méstica, Rio de Janeiro,
1935. Fonte: Hemero-
teca Digital, Biblioteca
Nacional

apartamento-ateliê. Em uma delas ela está folheando um caderno de desenhos e ao seu


redor estão dispostos diversos modelos em gesso. Já em outra imagem Georgina posa
pintando um retrato de mulher. Durante a década de 1950 Georgina foi a primeira
mulher a dirigir a Escola Nacional de Belas Artes, entre 1952-1955.
Figura 9 - Vida do-
méstica, Rio de Janeiro, No caso específico dessa publicação devemos considerar que ela é voltada,
1935. Fonte: Hemero-
teca Digital, Biblioteca principalmente, para o público feminino, sendo assim, a ênfase é em como uma
Nacional mulher pode ser além de dona de casa uma artista importante.

Em uma pintura da própria Georgina feita mais tardiamente [Figura


10] a artista representa uma moça que posa para uma artista mulher,
podendo ser a própria Georgina ali a se autorretratar. Embora, não se
tenha conhecimento de nenhum autorretrato feito pela artista em seu
ateliê, porém essa pintura pode ser identificada como uma tela de ateliê,
devido aos elementos que a compõe.

Como Georgina desejava ser vista?

Nota-se que no correr do século XX as imagens feitas de Georgina foram


se modificando, se antes a ênfase recaia no seu papel como mãe-esposa a
partir de 1920 as imagens valorizavam mais o seu lado artista.

Uma das hipóteses a respeito dessa gama diversa de imagens de Georgina


é que ela soube agencia-las a seu favor, ou seja, o fato de inicialmente
optar por posar mais como mãe e esposa, enfatizando sua postura

158
Figura 10 - Georgina de
Albuquerque, Pose, c.
1945, óleo sobre madei-
ra, 28x32. Fonte: Evandro
Carneiro Leiloeiro

enquanto mulher que seguia as convenções sociais do período demonstra que ela não
quis mostrar-se como transgressora das normas, embora fosse artista. Já com o passar
das décadas afirmar também o seu lado de pintora profissional serviu como estratégia
para a construção de sua identidade enquanto artista de reconhecimento naquele
momento, em que as condições sociais e institucionais ainda dificultavam o acesso às
mulheres, que até poucas décadas antes eram ainda taxadas como amadoras9.

A respeito da trajetória de Georgina de Albuquerque vale ressaltar alguns aspectos


significativos que atestam sua inserção no ambiente artístico durante a primeira
metade do século XX. Conforme estudo realizado por Ana Paula Simioni (2002)10 ela
foi a primeira mulher a realizar uma pintura de história, a tela Sessão do Conselho
de Estado11 foi realizada como encomenda para o Centenário da Independência em
1922.

A pintora expôs recorrentemente dentro e fora do país, como em 1924 quando


participou de uma exposição em Nova York na National Association of Women
9 Ana Paula Cavalcanti Simioni, em sua tese de doutorado, aborda a questão da “condição de amadoras”, as quais as
artistas mulheres foram submetidas, ao longo do século XIX pelos críticos. Segundo ela, a essa expressão não podemos
atribuir uma neutralidade, pelo contrário, trata-se de um rótulo pejorativo e classificatório atribuído a todos aqueles
que não eram considerados pelos críticos de arte, do período, como profissionais. Dessa forma, como afirma Simioni,
esse fenômeno de longa duração representava um modo de entender, enquadrar e julgar, desigualmente, as obras apre-
sentadas por artistas mulheres.
10 SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Profissão Artista: pintoras e escultoras acadêmicas brasileiras. São Paulo: EDUSP,
2008.
11 Georgina de Albuquerque, Sessão do Conselho de Estado, óleo sobre tela, 192 x 260 cm., 1922. Museu Histórico
Nacional, Rio de Janeiro.

159
Painters and Sculptures e em 1937 quando de sua premiação no 27º Salón Nacional
de Bellas Artes de Buenos Aires.12 Foi professora de pintura na Escola Nacional de
Belas Artes, fundou após a morte do marido Lucilio o Museu Lucilio de Albuquerque
e foi a primeira mulher a assumir a direção da ENBA entre 1952-1955.

Como afirma Simioni: “Georgina soube como poucas artistas manipular a seu favor os
mitos em torno de um casamento feliz, em uma época de valorização da mulher culta
como boa mãe republicana.”13Assim, Georgina de Albuquerque soube negociar sua
permanência no campo artístico brasileiro, conciliando as funções sociais esperadas
para uma mulher republicana, ou seja, os papéis de mãe e esposa, mas também pode
profissionalmente destacar-se como artista de prestígio durante início e meados do
século XX como atesta sua trajetória.

12  Segundo documento intitulado “Autobiografia” escrito por Georgina de Albuquerque no Rio de Janeiro em
18/01/1958 consultado na pasta da artista na biblioteca do Museu Nacional de Belas Artes ela foi premiada em 1937 no
Salão de Belas Artes de Buenos Aires com o 1º prêmio de Sessão do Brasil.
13  A esse respeito ver SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Op. cit. p.153.

160
Entre poses: a relação entre artista
e modelo em ateliês do século XIX
Marcelo Gonczarowska Jorge 1

A perene popularidade da tela O descanso do modelo (1882), de José Ferraz de


Almeida Júnior, executada em Paris, atesta a inventividade e a capacidade técnica
de seu autor. A pintura mostra um momento de intervalo no trabalho de um
artista e sua modelo. Durante essa pausa, a mulher senta-se ao piano e toca uma
melodia, que o pintor acompanha marcando o ritmo com palmas ou, dependendo da
interpretação, simplesmente aplaudindo a performance da moça. Esse quadro pode
suscitar diferentes abordagens de estudo, sendo uma delas a que trata de uma espécie
de história social dos artistas e dos personagens envolvidos no mundo da arte do
século XIX. Buscaremos, então, a partir dessa obra, compreender aspectos da vida dos
pintores nos Oitocentos [Figura 1].

A análise desse trabalho, desde uma perspectiva da história do quotidiano dos


artistas no século XIX, pode influenciar não apenas nossa interpretação das relações
estabelecidas entre os personagens representados, mas também nossa interpretação
sobre a intenção do autor. Efetivamente, ao retratar essa cena aparentemente trivial,
Almeida Júnior pode ter buscado provocar reações no público oitocentista que
passariam despercebidas à sensibilidade do público contemporâneo.

Esta pesquisa baseou-se, tanto quanto possível, na leitura e na análise de fontes


primárias, ou de sua transcrição ou reprodução em textos de outros pesquisadores,
no intuito de alcançar os testemunhos daqueles que estavam efetivamente envolvidos
1 Mestrando em Teoria e História da Arte pelo PPG-Arte do IdA/Universidade de Brasília.

161
Figura 1 - José Ferraz de
Almeida Junior (1850-
1899), Descanso da mo-
delo, 1882. Óleo sobre
tela, 98 x 131 cm. Rio de
Janeiro, Museu Nacional
de Belas Artes. Fonte:
http://warburg.chaa-
-unicamp.com.br/img/
obras/descanso_da_mo-
delo.jpg

no quotidiano dos artistas, particularmente, dos próprios pintores e de seus modelos.


Por isso mesmo, muitas das citações e das referências usadas neste artigo provêm dos
escritos de pintores de retratos ou de seus clientes, já que os relatos das relações entre
artistas e modelos comuns, ou profissionais, são raros, ao menos no que se refere à
convivência cotidiana entre esses dois personagens. Ainda que alguns desses modelos
se tenham tornado célebres, como Elizabeth Siddal, que se casou com o pintor
Dante Gabriel Rossetti, a escassez de informações sobre como modelos e artistas se
relacionavam nos intervalos dessas longas poses do século XIX2 é extraordinária.

O cenário: o ateliê do artista


Para a sensibilidade contemporânea, o ateliê representado por Almeida Júnior tem
um aspecto familiar de “casa da vovó”, tamanha a quantidade de bibelôs e de objetos
de decoração a preencher um espaço já sobrecarregado de estampas e padronagens.
Antes de qualquer coisa, é importante avaliar que esse espaço está de acordo com
o estilo de decoração então vigente, na Europa.3 O gosto vitoriano apreciava o
2  Para fazer um retrato de busto, Sargent costumava solicitar, em geral, seis sessões de pose de, pelo menos, duas ho-
ras cada (KILMURRAY, Elaine; ORMOND, Richard. John Singer Sargent: the later portraits. New Haven, London:
Yale, 2003. p. 158), mas cada sessão podia chegar, até mesmo, a cinco horas (p. 113). O tempo total de pose poderia
variar consideravelmente de acordo com o artista, o gênero e as circunstâncias do trabalho. Podia ser desde apenas 45
minutos – o tempo que Fernando VII a Espanha concedia aos pintores da Corte (WRIGHT, Patricia. Goya. São Paulo:
Manole, 1994, p. 40) -, passando por um par de horas, como em alguns sketches de de Lázslo, até inacreditáveis oitenta
e três sessões de pose, segundo o relato de Marie-Louise Pailleron (apud KILMURRAY, Elaine; ORMOND, Richard.
John Singer Sargent: the early portraits. New Haven, London: Yale, 1998, pp. 51-52).
3  Sobre o tema da casa burguesa e a voga pela acumulação de objetos de decoração no século XIX, consultar PERROT,
Michelle (Org.). História da vida privada, 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das
Letras, 1991, principalmente pp. 305 - 412 . Michelle Perrot chega a diagnosticar a obsessão oitocentista pela acumula-
ção de bugigangas como “doentia” (p.323).

162
acúmulo de objetos de decoração, particularmente os exóticos, representados no
espaço pictórico pela lança, por exemplo. Na França, principalmente após o advento
do Segundo Império (1851-1871), foi favorecida uma decoração pesada, com cores
fortes – muitas vezes escuras - e com sobreposição de texturas, havendo abundância
de cetins e veludos.4

O ateliê mostrado está de acordo com a organização dos estúdios de artistas na segunda
metade do século XIX. O Smithsonian Institution, de Washington, possui, em seus
arquivos, uma série de 46 fotos de ateliês de artistas importantes que trabalhavam em
Paris no final do século XIX, muitas delas possivelmente tiradas na mesma década
em que O descanso da modelo foi pintada5. Nesses estúdios, vemos o mesmo acúmulo
de objetos e de texturas que encontramos na pintura de Almeida Júnior. A coleção e
a apresentação dessa miríade de objetos, especialmente daqueles caros ou exóticos,
é, também, uma maneira de esses profissionais demonstrarem o sucesso alcançado,
uma prova do status de burguês. Além disso, muitos desses objetos eram utilizados
em pinturas.

É relevante notar que, em algumas dessas fotografias, há a presença de um piano no


ateliê6. Efetivamente, alguns artistas eram exímios pianistas. Sargent, por exemplo,
nos intervalos das poses, frequentemente encantava seus modelos com “interlúdios
de mágica no piano”7 [Figura 2]. Caso observemos atentamente, veremos que, em
O descanso da modelo, há, na tampa levantada
do teclado, o reflexo da luz de uma claraboia, o
que demonstra que o piano foi provavelmente
pintando em um ateliê de artista.8

Os personagens: o artista e a modelo


O pintor, na tela, não é um autorretrato de
Almeida Júnior. A obra, terminada em 1882,
representa um homem aparentemente mais velho
do que os 32 anos de idade que o artista teria na
época. Além disso, nesse mesmo ano, Almeida
Júnior enviou, de Paris, uma foto sua a Silvino
Egydio de Souza Aranha, em que aparece apenas
com um bigode.9
Figura 2 - Anônimo,
4  Essa decoração “carregada” pode ser encontrada, até os dias de hoje, nos apartamentos de Napoleão III preservados Mihaly Munkacsy pintan-
no Museu do Louvre, em Paris. Esse excesso de elementos decorre, em especial, da paixão da Imperatriz Eugênia pelo do em seu ateliê, c. 1885.
exagero na decoração e em tudo aquilo que estivesse relacionado às artes aplicadas; não à toa, a crinolina entraria em Impressão fotográfica,
moda durante seu “reinado”. Eugênia emulava, confessadamente, Maria Antonieta e as artes do século XVIII. 21 x 28 cm. Washington,
5  Essas imagens estão disponíveis no site dos Archives of American Art, ligados à Smithsonian Institution: http://
Archives of American
www.aaa.si.edu/collections/images/detail/charles-jacques-painting-his-studio-3839.
6  No caso de Carolus Duran, há, mesmo, um órgão. Sargent também tinha um órgão em seu atelier na década de 1880,
Art, Smithsonian Institu-
em Paris (KILMURRAY; ORMOND, 1998, op. cit. p. 51). tion. Fonte: http://www.
7  RILEY, James Whitcomb apud KILMURRAY; ORMOND, 2003, op. cit., p. 113. aaa.si.edu/collections/
8  No entanto, não parece ter sido incomum – ou impensável – a presença de um piano no ateliê de artistas relativa- viewer/mihaly-munka-
mente jovens ou pobres. George du Maurier, no romance Trilby (Nova York e Londres: Harper and Brothers, 1901. p. csy-his-studio-pain-
16), coloca um piano no ateliê dividido por três estudantes de arte britânicos em Paris. ting-3845
9  Essa foto pode ser encontrada na página 2 do catálogo da exposição Almeida Júnior: um criador de imaginários, da
Pinacoteca do Estado de São Paulo (LOURENÇO, Maria Cecília França; NASCIMENTO, Ana Paula. Almeida Júnior:

163
Efetivamente, Almeida Júnior parece ter buscado representar um tipo de pintor
mais maduro, fazendo, provavelmente, referência a uma imagem mais comumente
associada ao imaginário de “artista” no período, ou seja, à dos mestres acadêmicos
consagrados na França, em particular, Bouguereau, Meissonier, Yvon e Cabanel. No
caso deste último, há mesmo um autorretrato, encomendado pela Academia de Belas
Artes de Anvers e entregue em 1885, em que aparece com um cigarro na mão, tal qual
o pintor de Almeida Júnior. [Figura 3].

Quanto ao cigarro, o hábito de fumar parece ter


estado difundido no meio artístico tanto quanto o
estava no resto da sociedade em geral, no século
XIX. Esse é um período em que seus malefícios
ainda não haviam sido denunciados cientificamente,
e essa ainda não era uma prática mal vista, inclusive
no ambiente de trabalho. Consuelo Balsan, Duquesa
de Marlborough, recorda que, durante as sessões de
pose para o retrato de sua família, Sargent “estava
sempre agitado e fumava inúmeros cigarros.”10

Em relação à modelo, Almeida Júnior apresenta uma


mulher jovem e morena. Os cabelos escuros e a pele
clara, mas não excessivamente pálida, podem indicar
que a moça seja italiana, como alguns dos modelos
favoritos de artistas do período, como Léopold
Robert e Ernest Hébert.11 A atitude bem-humorada
da modelo de Almeida Júnior remete à das modelos
italianas citadas por Lemaistre12, segundo o qual,
“independente do tempo que faz lá fora, quando
Figura 3 - Alexandre uma bela moça de lá, como eles dizem, entra no ateliê, sorridente, [...] parece que um
Cabanel (18236-1889),
Autorretrato, 1885. Óleo pouco da luz de sua terra natal a segue e brilha em torno dela.”
sobre tela, 935 x 123
cm. Antuérpia, Museu Um aspecto interessante, no que concerne à caracterização da modelo, é o tecido
de Belas Artes. Fonte: enrolado em torno de seu quadril. Ora, se podemos deduzir que o artista já a vira
http://artrenewal.org/ inteiramente nua, por que essa manifestação de pudor? Na realidade, apesar de posar
artwork/005/5/42874/
Alexandre%20Caba- despida para o pintor, a jovem, nesse momento de descanso, não está na função de
nel-Self%20Portrait- modelo, o que a leva a reorientar sua forma de interação com o espaço e com o homem
-1870-large.jpg ali presente. Amaury-Duval13 faz um longo e esclarecedor discurso sobre a virtude

um criador de imaginários. São Paulo: Pinacoteca do Estado, 2007. Catálogo da exposição realizada na Pinacoteca do
Estado de São Paulo, 25 jan. – 15 abr. 2007).
10 Apud KILMURRAY; ORMOND, 2003, op. cit., p. 146.
11 LEMAISTRE, Alexis. L’École des beaux-arts (dessinée et racontée par un élève). Paris: Firmin-Didot, 1889, p. 303.
Segundo Lemaistre, Robert preferia modelos bronzeados e Hébert aqueles de olhar aveludado, suave.
12 Op. cit., p. 304.
13 AMAURY-DUVAL. L’atelier d’Ingres. Paris: G. Crès et cie, 1924.

164
das modelos14 – detentoras, segundo ele, de “uma probidade inatacável”15–, do qual
selecionamos alguns trechos: “[...] nossas modelos, no exercício de seu ofício, podem
deixar de nos ver como homens, para ver apenas o artista trabalhando”16,
Efetivamente, para nós, a visão de uma moça nua, sobre a plataforma do modelo, em
pleno dia, é tão desprovida de qualquer impressão sensual, que a modelo compreende,
imediatamente, que ela está lidando com um pintor, e não com um homem; e eu poderia
juntar, como prova, a dificuldade que havia em convencê-las a posar na presença do que
elas chamavam de ‘burguês’, se é que conseguíamos fazê-lo”.17

e conta que
[Uma vez,] Uma adolescente de 16 anos, encantadora, posava no ateliê [dos alunos de
Ingres]. Nós éramos em torno de trinta a trabalhar a partir dela. [...]

De repente, nós ouvimos um grito [da modelo]; vimos a jovem jogar-se sob a plataforma
[...][e] pegar todas as suas vestimentas, sob as quais se escondeu, rapidamente, como
pôde; mas nós só entendemos o motivo dessa reação, quando ela nos mostrou, apontando
o dedo para a janela, um homem, um operário que estava reparando o imóvel, apoiando-
se para ver o interior. Enquanto ele esteve lá, ninguém conseguiu convencê-la a subir na
plataforma. Foi necessário encarregar o porteiro de dispensar esse indiscreto, que não se
movia do lugar, apesar de nossos apelos. Durante todo o resto da sessão de pose, ela não
cessou de virar os olhos, com inquietude, para a direção da janela.18

Sociabilidade: empatia ou antipatia


Na pintura de Almeida Júnior, artista e modelo divertem-se durante um momento de
pausa na pose. Há, claramente, empatia entre os dois personagens. No entanto, dentro
do âmbito da nossa investigação, que busca comparar a cena imaginada por Almeida
Júnior aos relatos sobre o trabalho dos artistas no século XIX, é interessante averiguar
até que ponto esse intercâmbio era efetivamente harmonioso. Os documentos da
época permitem inferir que, de maneira geral, reinava a concórdia no trabalho
com modelos profissionais, mas que essa relação, quando eram clientes a posar, era
bastante mais desafiadora.

Será na carreira dos retratistas que encontraremos as melhores evidências de que, por
vezes, a discórdia podia surgir entre artistas e modelos. A divergência entre Jacques-
Louis David e Madame Récamier seria emblemática desses conflitos nos Oitocentos.
Em sua biografia do pintor francês, Simon Lee19 relata que a jovem socialite era uma
cliente “voluntariosa, mimada e habitualmente atrasada para as sessões de pose,” o que
testou seriamente a paciência de David. Mesmo assim, o trabalho no retrato atingiu
estado avançado de execução; o que, no entanto, não significou muito, já que a imagem
14 Evidentemente, seria ingênuo acreditar que todas as modelos eram exemplos de “virtude” segundo os critérios do
século XIX. Bouguereau, por exemplo, teve um caso com uma modelo durante ao menos dez anos antes de decidir
casar com ela, tempo suficiente para terem tido três filhos juntos (BARTOLI, Damien; ROSS, Frederick. William Bou-
guereau: his life and works. Nova York: Antique Collector´s Club, 2010, p. 125-126).
15 AMAURY-DUVAL, op. cit, p. 50.
16 Ibidem, p. 52, grifo nosso.
17 Ibidem, p. 51.
18 Ibidem, p. 52.
19 LEE, Simon. David. Londres: Phaidon, 1999, p. 235-238.

165
projetada, no retrato, de uma mulher
frágil e vulnerável não correspondia
à imagem sofisticada que Récamier
tinha de si mesma. As divergências
entre os dois chegaram a tal ponto
que o pintor desistiu de concluir a
encomenda: “Madame, senhoras têm
seus caprichos, mas artistas também
têm os seus. Permita-me satisfazer o
meu: ficarei com seu retrato no estado
em que está”20 [Figura 4].

Sargent, por ter sido o retratista


mais importante da sociedade anglo-
americana na transição entre os séculos
XIX e XX, foi objeto de memórias e de
Figura 4 - Jacques-Louis
David, Mme Récamier, correspondências entre diversas figuras importantes, o que nos permite espiar melhor
1800. Óleo sobre tela, 174 as desavenças entre artistas e clientes a partir da década de 1880. Em 1881, o pintor
x 244 cm. Paris, Museu enfrentou atritos com Marie-Louise Pailleron, uma menina de onze anos de idade que
do Louvre. Fonte: http://
upload.wikimedia.org/ estava posando para um retrato com o irmão. Segundo Elaine Kilmurray e Richard
wikipedia/commons/c/ Ormond21, “[...] logo surgiu um estado de beligerância entre ela e o artista. Ela não
c8/Jacques-Louis_Da- fazia nenhum esforço para posar corretamente e insistia em mover-se, conversar e
vid_016.jpg
desobedecer ordens”. Em outra ocasião, a falta de tato de uma cliente provou que a
relação podia ser, eventualmente, bastante difícil: “Durante as sessões de pose, a Sra.
Huntington disse para o artista: ‘Você é um bom retratista, mas você não sabe pintar
mãos muito bem. Eu tenho belas (mãos),
então aí está sua oportunidade’”22 [Figura
5].

Dito isso, deve-se reconhecer que grande


parte dos testemunhos sobre a relação
Figura 5 - John Singer
entre modelos e artistas no século XIX
Sargent, As crianças Pail- aponta, efetivamente, para um estado de
leron, 1881. Óleo sobre concórdia e, mesmo, de afetividade. Em
tela, 154,2 x 175,3 cm.
Des Moines, Des Moines
diversas ocasiões, os clientes descrevem o
Art Center. Fonte: http:// tempo passado com Sargent como muito
www.jssgallery.org/Pain- agradável23, regado a muitas risadas24.
tings/Portrait_of_Edou-
ard_and_Marie-Loise_
20  Apud ibidem, p. 238.
Pailleron.jpg 21  1998, op. cit, p. 51-52.
22  KILMURRAY, Elaine; ORMOND, Richard. John Singer Sargent: portraits of the 1890s. New Haven, London:
Yale, 2002, p. 148. O catálogo raisonné de retratos pintados de Sargent contém uma miríade de histórias de rusgas entre
o pintor e seus modelos. Nesse sentido, é particularmente interessante consultar o último volume do catálogo para
conhecer alguns desses casos (KILMURRAY; ORMOND, op. cit., 2003), em especial, p. 46 (retrato da família Stiwell,
n. 392), p. 76 (retrato de Lord Ribblesdale, n. 421), p. 97 (retrato do presidente T. Roosevelt, n. 439) e p. 149 (retrato
da Sra. Sackville-West, n. 491). Não por acaso, Sargent abdicou de sua bem-sucedida carreira de retratista em 1907.
23  William Caleb Loring, por exemplo, reconhece que, durante as poses, Sargent “[...] conversava o tempo todo, e de
maneira muito agradável e divertida” (KILMURRAY; ORMOND, 2003, p. 108).
24  KILMURRAY; ORMOND, 2003, op. cit., p. 113.

166
Philip de Lázslo mantinha excelentes relações com
seus retratados25. A convivência com o pintor era tão
aprazível que alguns de seus clientes chegavam às raias da
indiscrição26. A rainha Vitória Eugênia da Espanha, por
exemplo, confessou que considerava sua sogra - a rainha-
mãe Maria Cristina - “uma mexeriqueira”, e pensava que
seu marido não passava de um “bebê” e de um “idiota”. Este
- o rei Alfonso XIII -, por sua vez, declarou que já estava
cansado de reinar, e que, se o povo espanhol quisesse uma
república, ele estava “mais do que pronto para dar o fora”27
[Figura 6].

No que se refere a modelos contratados, é evidente que a


relação cliente/prestador de serviços sofria uma inversão,
o impedia esses personagens de agir caprichosamente
durante as sessões, o que, por si só, já indica que atritos
não deviam ser comuns nessas ocasiões. Lemaistre28 afirma
que, dos modelos profissionais, “Pode-se, mesmo, esperar
bons conselhos eventualmente”. Isso, porque os modelos,
segundo ele, “já que frequentaram pessoas cuja grande
preocupação é a arte, vêm complementando tão bem aquilo
que receberam de [bom] gosto natural, que exprimem – em
geral, muito bem – conselhos às vezes preciosos”29. Mas,
nem por isso, abusando da liberdade que a companhia do
artista pudesse sugerir, atreviam-se a opinar ou a prosear
sem que este tomasse a iniciativa: “Eles sabem qual é seu
lugar, e respeitam a meditação daquele que os emprega; mas, desde que [os artistas] Figura 6 - Philip de
László, Rei Alfonso XIII
estejam de bom humor, com o cigarro na boca, e dispostos a conversar enquanto com uniforme de hus-
pintam ou modelam, eles [os modelos] não deixam de dar a réplica”.30 sardo, 1927. Óleo so-
bre tela, 160 x 100 cm.
A ação: modelo tocando piano? Madrid, Museu Reina
Sofia. Fonte: http://com-
Na pesquisa, foram encontrados alguns registros de intervenções musicais durante mons.w i k ime di a.org/
descansos de pose. Fora as menções a Sargent tocando o piano31, há relato da esposa wiki/File:Alfonso_XIII_
con_uniforme_de_h%-
de de Lázslo tocando o violino enquanto seu marido pintava o retrato de Theodore C3%BAsar_(Museo_Na-
Roosevelt32. Lady Speyer também tocou o violino para Sargent33. Em Trilby, a cional_Centro_de_Arte_
Reina_Sof%C3%ADa).
jpg
25  Lázslo (1869-1937) era um retratista húngaro que pintou o jet-set internacional nas três primeiras décadas do sécu-
lo XX. Apesar de sua origem humilde, ele era um diplomata natural e uma pessoa de fácil convivência. Entre as relações
de amizade que manteve durante toda a vida, estavam a família real da Grécia e o Duque de Gramont.
26  HART-DAVIS, Duff. Philip de Lászlo: his life and art. New Haven, London: Yale, 2010, p. 123-124.
27  Alfonso XIII fez esse comentário em 1910. Em 1931, ele abdicaria do trono, o que daria início à II República Es-
panhola.
28  Op. cit, p. 305.
29  Idem.
30  Idem.
31  Por exemplo, para Riley (KILMURRAY; ORMOND, 2003, p. 113).
32  HART-DAVIS, op. cit., p. 110.
33  KILMURRAY; ORMOND, 2003, op. cit., p. 185-187 e p. 193.

167
protagonista homônima de George du Maurier canta no ateliê34. No entanto, nesta
pesquisa, não foram encontradas menções a modelos profissionais que soubessem
tocar piano – ou qualquer outro instrumento musical –, ou que o tenham feito em
um estúdio de artista. Isso ocorria, provavelmente, porque esses trabalhadores eram
egressos de classes sociais em que a educação musical formal ou não era prioridade,
ou não era acessível35 [Figura 7].

Alain Corbin, no capítulo Bastidores do volume IV da


História da vida privada, declara que “[...] Tocar bem
piano [...] demonstra publicamente uma esmerada
educação”36. Efetivamente, no século XIX, uma
“educação esmerada” exigia grandes investimentos,
os quais uma família humilde, como a de um modelo
profissional tradicional, dificilmente teria condições
de fazer.

Amaury-Duval37 e Lemaistre38 concordam em declarar


que as modelos profissionais começavam a posar
muito jovens39. Se uma família precisa colocar uma
criança para trabalhar, é razoável suspeitar que seus
pais sejam proletários, ou seja, que não dispõem de
meios para poupá-la do trabalho infantil nem para
investir em uma “educação esmerada”. Lemaistre40
afirma, inclusive, que muitas dessas jovens vinham de
famílias em que os pais também posavam, assim como
grande parte das pessoas a seu redor. Para se ter ideia
do grau de humildade em que as famílias de baixa
renda viviam nessa época, basta conferir a descrição
de uma habitação popular francesa típica do pré-1914:
[...] conforme o relatório dos pesquisadores de La Réforme
Sociale [...], nas habitações operárias havia] Poucos móveis,
poucos objetos: cobertas, utensílios de cozinha, uma mesa,
Figura 7 - John Singer
algumas cadeiras; raramente, uma cômoda familiar41 [...] . Entretanto, estes sumários
Sargent, Lady Speyer,
1907. Óleo sobre tela, alojamentos às vezes apresentam tênues marcas da busca de um prazer ou [de] uma
147 x 96 cm. S. l., coleção intimidade: gaiola de passarinho, [...] cortinas nas janelas [...] ; na parede, algumas
privada. Fonte: http:// imagens coloridas recortadas de um semanário ilustrado, fotos de família, cujo uso
upload.wikimedia.org/
começa a se difundir entre o povo após 1900.42
wikipedia/commons/a/
a8/L ady_Sp e yer_by_
John_Singer_Sargent.jpg
34  DU MAURIER, George. Trilby. Nova York e Londres: Harper and Brothers, 1901, p. 23.
35 Lady Speyer e Lucy de Lázslo, além de não serem modelos profissionais, pertenciam a importantes famílias britâ-
nicas.
36 In: PERROT, op. cit., p. 488.
37 Op. cit., p. 52.
38 Op. cit., p. 304.
39 Lemaistre afirma, na realidade, que muitas delas começavam a posar ainda bebês de colo, nos braços das mães.
40 Idem.
41 Quanto mais um piano.
42 Perrot, op. cit, p. 318.

168
Poder-se-ia argumentar, por outro lado, que essa moça não era uma modelo profissional
ou que era uma modelo que ingressou no ofício depois de adulta – ou seja, que sabia
tocar piano. Nesse sentido, argumenta favoravelmente Amaury-Duval, segundo o
qual algumas mulheres começavam a posar relativamente tarde, “frequentemente
pressionadas pela miséria.”43

Uma interpretação possível: ou quando o observador é a chave da narrativa


Considerando o perfil tradicional de uma modelo, a interação da moça com o piano
parece curioso, senão inconsistente, especialmente se observarmos que Almeida
Júnior reproduziu outros elementos da cena de maneira coerente com um ateliê
ordinário de artista no século XIX44. Se a decoração do estúdio está de acordo com o
padrão parisiense, se o tipo de artista está condizente com a “imagem” oitocentista de
pintor e se a interação entre os personagens está verossímil, por que, então, colocar a
jovem no piano?

A questão pode soar irrelevante, ou, inclusive, de resolução simples. Pode-se supor,
que a razão tenha sido, simplesmente, composicional, já que um piano geraria um
efeito mais pitoresco do que um trombone ou uma viola da gamba, por exemplo.
Por outro lado, pode-se mesmo dizer que talvez a moça não saiba tocar o piano;
ela estaria ali apenas gracejando, fazendo ruídos, e o artista teria embarcado na
brincadeira, aplaudindo gentilmente a performance da neófita. Enfim, não sabemos
exatamente em que Almeida Júnior estava pensando ao elaborar o quadro. Há, no
entanto, uma hipótese que torna a modelo e o piano elementos não apenas coerentes,
mas necessários.

Ao que tudo indica, Almeida Júnior buscou fazer um jogo com o nu. Segundo José
Américo Motta Pessanha,45
A tentativa de moralizar a nudez, estetizando-a, leva à concepção do nu artístico. Esse
nu resultaria de um tipo especial de olhar: o olhar assexuado do artista que, ao contrário
do olhar comum, vê qualquer objeto – mesmo um corpo nu de um homem ou mulher
– apenas enquanto referencial ou modelo para a obra de arte. Esse olhar supostamente
sem malícia [...] é aquele que o artista lança, ou deveria lançar, sobre o corpo de quem
posa para o nu artístico. O mesmo tipo de olhar que se espera daquele que contempla o
nu pintado ou esculpido: olhar destituído de conotação erótica, mobilizado tão-somente
pela ‘sensibilidade estética’. Sincera ou hipócrita, não importa, o fato é que essa pretensa
deserotização do olhar é um pressuposto da distinção entre olhar artístico e olhar vulgar,
expressando-se nos diversos quadros que focalizam cenas de ateliê e a relação pintor/
modelo.

43 Op. cit., p. 51.


44  Durante sua palestra no IV Colóquio Nacional de Estudos sobre Arte Brasileira do Século XIX, a pesquisadora dra.
Fernanda Pitta apresentou uma pintura de Louis Galliac que representa uma modelo tocando o piano no ateliê de um
artista, temática muito semelhante à de Almeida Júnior. Apesar de a obra não estar datada, ela sugere que a ideia da cena
não era estranha à sensibilidade dos pintores no final dos 1800/ começo dos 1900.
45  Despir os nus. In: PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO. O desejo na Academia (1847 – 1916). São Pau-
lo: PW, 1991. Catálogo da exposição realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, 14 dez. 1991 – 15 mar. 1992, p. 48.

169
Almeida Júnior, no entanto, ao atribuir à modelo uma habilidade que, em geral, essas
profissionais não tinham, insere um elemento que permite desconfigurar a situação
tradicional de “modelo e artista no ateliê”, ou seja, insere um elemento estranho
na cena, desconstruindo o quadro esperado de “normalidade”. Se a narrativa não
apresenta uma situação tradicional – ou real – de nu artístico, então ela abre uma
pequena fissura nessa camada de “assexualidade” que deveria recobrir uma obra desse
tipo. O nu, deixando de ser artístico, pode, então, tornar-se erótico. No entanto, para
tornar essa interpretação viável, não basta, apenas, introduzir algo de incomum no
espaço pictórico; o piano, e o papel que exercia no imaginário masculino da sociedade
oitocentista, é fundamental para essa inflexão.

Alain Corbin46 explica que, na Europa, “A grande moda do instrumento inicia-se


em 1815; o pudonor trabalha a seu favor, depois que a harpa, o violoncelo e o violão
começaram a parecer indecentes.” Após a Monarquia de Julho, o piano democratiza-
se entre as camadas burguesas a tal ponto que “Começa, inclusive, a tornar-se um
pouco vulgar a partir de 1870”. Conforme citado anteriormente, tocar (bem) o piano
era símbolo de uma educação esmerada. Ressalte-se que era uma atividade para
as mulheres solteiras – “Saber tocar piano só faz aumentar as chances no mercado
matrimonial.” Corbin brinca, inclusive, com a imagem do piano mudo, a assombrar a
casa dos pais de jovens recém-casadas.

Dessa maneira, percebe-se que o piano, e a moça ao piano, é um elemento importante


no jogo de sedução das classes médias e altas do século XIX. Sua qualidade erótica está
implícita, mas é familiar aos círculos sociais em que Almeida Júnior – e o público de
arte do século XIX – circulava. Corbin explicita o potencial lúbrico do instrumento:
[...] todas as cenas47 que atestam a importância do instrumento na vida íntima referem-se,
antes de mais nada, ao imaginário masculino da mulher ao piano48. A cabeleira desfeita,
o rosto incendiado pelas velas iluminando a partitura, os olhos perdidos no vazio, ela
parece já a presa sonhadora oferecida aos desejos do homem.49 [Figura 8]

De acordo com a hipótese que levantamos, outros


elementos da pintura ganham significação especial,
dentro de uma dinâmica em que se sobrepõem
elementos de erotização e de disfarce dessa
erotização, gerando um sistema contínuo de tensão.
Figura 8 - Carl Vilhelm
Holsøe: Mulher tocando Por exemplo, a caracterização do artista na tela,
piano, séc. XIX-XX. Óleo como afirmado anteriormente, evoca a imagem
sobre tela, 73 x 78 cm. S. l., daqueles grandes e respeitáveis pintores acadêmicos
coleção particular. Fonte:
https://www.artrenewal. da Paris de finais do século XIX. Contudo, apesar
org/pages/artwork.php?ar- da barba espessa, ele não é, ainda, um velho. Ou
tworkid=6155. seja, a tensão sexual, disfarçada pela respeitabilidade
46  In: PERROT, op. cit., p. 487-489.
47  “Danièle Pistone levantou na literatura romanesca do período 2 mil cenas nas quais ele [o piano] intervém. Metade
delas diz respeito a moças [...]” (Ibidem, p. 487).
48  Corbin (Ibidem, p. 488-489) descreve o imaginário masculino da mulher ao piano como girando em torno de
alguns perfis básicos: a jovem apaixonada, a mulher consumida pela paixão e a mulher ociosa à espera de seu homem.
49  Idem.

170
conferida pela barba, ainda existe potencialmente.50 Mais ainda do que a barba, o
tecido com que a modelo se cobre simboliza essa relação. Ora, mesmo que o pano lhe
cubra o ventre, ainda deixa os seios à mostra.

Dessa maneira, Almeida Júnior parece compreender o observador como elemento


essencial para que seu quadro realize todo seu potencial expressivo. Em princípio,
a pintura apresenta um semi-nu, discreto, que, conforme a explicação de Pessanha,
deve ser lido como um nu artístico, a-erótico. No entanto, seu autor trabalha com
elementos da cultura e, até mesmo, do inconsciente do observador, para construir
uma leitura da cena carregada de erotismo.

O descanso da modelo: à guisa de conclusão


Ao analisar a tela O descanso da modelo, de Almeida Júnior, verificamos que o artista
faz uma representação que corresponde essencialmente ao que conhecemos dos
ateliês parisienses no século XIX. O espaço recorda os estúdios dos grandes pintores
burgueses, com inúmeras quinquilharias e com profusão de cores, estampas e texturas.
A imagem dos artistas mais importantes do período, como Bouguereau e Cabanel, é
evocada por meio da grande barba da figura masculina e, até mesmo, pelo cigarro
na mão. Já a modelo, de costas para o espectador, encaixar-se no perfil das modelos
disponíveis na época: jovem, bela, morena e, muitas vezes, italiana. O único traço
incongruente com o que seria comum nesse período é a modelo a tocar o piano.

Efetivamente, no século XIX, uma modelo que soubesse tocar piano era
particularmente incomum. No entanto, segundo nossa tese, a perfeita verossimilhança,
nesse caso, não é importante para Almeida Júnior. Na realidade, para ele, não
interessa retratar uma situação real; mas, sim, uma situação que pareça real, ou
crível, para o observador oitocentista. Os recursos cenográficos de que lançou mão
servem para dar um aspecto de respeitabilidade à interação entre uma moça nua
e um homem vestido51. Ou seja, o autor cria uma cena aceitável para a moral da
época, uma cena decente, ao travesti-la de elementos que remetem ao nu artístico,
respeitável, assexuado. No entanto, insere, discretamente, elementos que provocam
associações menos neutras, permitindo uma erotização que é tanto mais incômoda,
porque difícil de identificar objetivamente. Em O descanso da modelo, Almeida
Júnior transfere, da sala de estar burguesa, donzela e pretendente para o ambiente
libertário do ateliê do artista, criando uma dinâmicaem que o proibido e o permitido
se entrelaçam, para criar uma pintura que é tanto ambígua quanto intrigante.

50  A relação direta barba/seriedade parece estar presente no inconsciente da sociedade ocidental , ao menos, a Grécia
Antiga. R. R. R. Smith, em seu tratado sobre a escultura helenística (SMITH, R. R. R. Hellenistic sculpture. 1a reimp.
Londres: Thames & Hudson, 2005), explicita o papel que a barba exercia na transmissão de uma imagem de maturida-
de e temperança. Segundo ele, Alexandre, o Grande, lançou a moda entre as gerações posteriores de reis gregos de ser
representado na escultura não apenas com um aspecto jovem, mas com o rosto sem barba. Segundo o autor, os retratos
de Alexandre e dos reis helenísticos típicos compartilhavam algumas características essenciais: “rosto perfeitamente
barbeado, dinamismo, cabeleira ‘real’ cheia” (p. 21). O uso da barba e do himation [...] tornaram-se símbolos básicos
de um habitante da polis tradicional, e não de um membro da realeza ou da corte. Enquanto alguns gregos adotaram
a nova moda de barbear-se, outros, como os filósofos e a maioria dos políticos citadinos, enfaticamente não o fizeram.
Nesse imaginário coletivo, havia uma distinção básica entre o homem de puro intelecto e o homem de ação” (, p. 33).
51  Para compreendermos o quando essa relação é sensível para a mentalidade da época, basta lembrarmos do escân-
dalo provocado pelo Almoço na relva (1863), de Édouard Manet.

171
172
Retratos de atelier entre
Europa y América

María Isabel Baldasarre 1

Hacia mediados del siglo XIX, la posibilidad de multiplicar la fotografía a partir de


las impresiones en papel transformó de modo radical el contacto con la apariencia de
personajes famosos. Si antes los hombres y mujeres célebres eran solo limitadamente
conocidos en sus fisonomías y corporalidad distintivas, la reproducción y posibilidad
de la circulación de la fotografía contribuyó a la accesibilidad de estos repertorios y
a la construcción de una “cultura de la celebridad” sobre todo entre los emergentes
sectores medios urbanos.2 Muchos fotógrafos se dedicaron a producir cartes de visite
de políticos, nobles, cantantes de ópera, actores, periodistas en la búsqueda de satisfa-
cer una nueva y masiva demanda orientada a la posesión –y la eventual colección– de
estos rostros notables. Muchas de estas imágenes circularon individualmente y otras
formaron parte de galerías, concebidas por los propios fotógrafos o por editores o
escritores que sumaban registros biográficos de los personajes.

Dentro de este proceso se idearon emprendimientos con el propósito de satisfacer


consumos más específicos y que a la vez eran testimonio de un sistema artístico que
se profesionalizaba cada día más. Concretamente nos referimos a aquellos proyectos
desarrollados por fotógrafos que, en las últimas décadas del siglo XIX, se dedicaron a
retratar a los artistas en sus ateliers. Las dificultades técnicas que hacían tan compleja

1  CONICET-Universidad Nacional de San Martín, Buenos Aires, Argentina.


2  HARGREAVES, Roger. Putting Faces to the Names: Social and Celebrity Portrait Photography. HAMILTON, Peter
& HARGREAVES, Roger. The Beautiful and the Damned. The creation of identity in the Nineteenth Century Pho-
tography. London: Lund Humphries-National Portrait Gallery, 2001, pp. 17-55.

173
la realización de fotografías en interiores fueron disipándose en la década de 1860, y
en 1870 ésta se generalizó. Si los retratos in-situ fueron favorecidos por la posibili-
dad de sacar los equipos de los estudios para trasladarlos a las residencias, hubo otro
componente previo que tuvo que ver específicamente con el “mundo del arte”. Nos
referimos a la sacralización del atelier como un “lugar de culto”, asociado indisolu-
blemente a los procesos creativos de quien lo ocupaba tal como comenzó a suceder
a partir del Romanticismo.3 Así, el taller se volvió un objeto de deseo para la pintura,
para la fotografía y también para la literatura contemporánea: un lugar misterioso en
el que el visitante podía detenerse no sólo en la figura del artista, sino en los inconta-
bles mundos que se abrían a partir de los objetos, naturales y artificiales, allí reunidos.

Como sostiene Rachel Esner, la figura del artista y su entorno de trabajo fueron ob-
jetos de atracción desde tiempos inmemoriales, pero fue a partir de las posibilidades
técnicas de la prensa ilustrada que se logró volver visual y hacer accesibles estos suje-
tos y sus recintos “íntimos”.4 Ya hacia 1850, se desarrollaron en Francia los llamados
“reportajes de atelier”, suerte de “subgénero” periodístico inaugurado por la célebre
L’Illustration y continuado en las décadas siguientes por L’Artiste y Le Monde illustré
y hacia 1880 por la Revue illustrée.5 Las imágenes que acompañaban estos artículos
respondían a esa avidez por conocer cómo vivían y trabajan los artistas, y en ellas se
corporizaron muchos de los tópicos que los propios protagonistas tenían respecto de
lo que debía ser un personaje abocado por entero a la práctica del arte. Estos reporta-
jes ilustrados se autonomizarán al punto de volverse emprendimientos en sí mismos,
como los que llevaron adelante, casi simultáneamente, en Inglaterra y en Francia,
Joseph Parkin Mayall y Edmond Benard, respectivamente.

En 1883, el fotógrafo proveniente de Brighton Joseph Mayall (1839-1906), ya ha esta-


blecido su estudio en Oxford Street, Londres. Al año siguiente publicó Artists at home,
una colección de grabados realizados a partir de fotografías de talleres de veinticuatro
artistas pertenecientes a la Royal Academy acompañados por una breve descripción
biográfica.6 Tal como sostienen varios autores que se ocuparon de analizar la pro-
ducción de este género de imágenes en Francia, el emprendimiento de Mayall fue
responsable de fijar una tipología sobre las escenas de atelier que sería replicada por
proyectos posteriores. En este corpus, los artistas aparecen serios, reconcentrados y es
significativa la ausencia de la vestimenta de trabajo incluso en labores que se suponen
sucias como la escultura. [Figura 1] Los retratos están, en su gran mayoría, vestidos
con ropa mundana que apunta a señalar tanto el estatus social alcanzado como el ca-
rácter “liberal” de la producción realizada. Es también la indumentaria la que afirma
el diálogo de pares que se establece con el cliente que se presenta en el estudio para
hacerse pintar su retrato o ver la obra que el artista tiene allí exhibida. Es en este senti-

3 JUNOD, Philippe. L’atelier comme autoportrait. GRIENER, Pascal Griener & SCHNEEMANN, Peter J. Kunstler-
bilder. Images de l’artiste. Bern: Peter Lang, 1998.
4 ESNER, Rachel. Nos artistes chez eux. L’image des artistes dans la presse illustrée. BONNET, Alain & JAGOT, Hélène
(dir.) L’artiste en représentation: Images des artistes dans l’art du XIXe siècle. Lyon: Fage Éditions, 2013.
5 Sobre los primeros reportajes de artistas producidos en L’Illustration, cf. ESNER, Rachel. In the Artist’s Studio with
L’Illustration. RIHA Journal, 0069, 18 March 2013.
6 Para un análisis descriptivo sobre este proyecto, cf. MILK, Joanna. Artists at home. Artifice and Presence https://www.
courtauld.ac.uk/researchforum/projects/collecting-collections/documents/ArtistsatHome.pdf Acceso Junio de 2015

174
do que podemos interpretar estas fotografías como elementos
de promoción con miras a conseguir más encargos. En ellas,
sus protagonistas emulan el gesto de pintar u hojear un libro o
simplemente posan para la cámara rodeados de sus obras, de
sus modelos y de sus materiales de trabajo explícitamente dis-
puestos para lograr un efecto de visibilidad “total”. El escultor
se muestra con sus ropas impecables, el pintor en la acción de
retocar un imposible óleo ya enmarcado. El carácter de mise
en scène de estas imágenes fue ya registrado en las primeras
reseñas críticas, que las culpaban, precisamente, de su artifi-
ciosidad.7

Muchos de estos rasgos ya observados para Mayall reaparecen


en la serie más extensa de casi doscientos artistas atribuida a
Edmond Bénard (1838-1907) , denominada Artistes chez eux
y datada entre mediados de la década de 1880 y comienzos
de la siguiente. Este proyecto editorial ha sido origen de un
estudio reciente, en que –como bien sostienen los autores– el
atelier se ha transformado claramente en un lugar de artificio.8
[Figura 2] La selección de Bénard también se orientaba a artistas reputados por ser Figura 1 - Joseph
expositores frecuentes en el Salón y sus fotografías develan claramente su cualidad Parkin Mayall Jo-
seph Parkin Mayall
de constructo. Nuevamente, los espacios que aparecen fotografiados sobresalen más (1839-1906): William
que como un lugar de encuentro y camaradería entre pares como sitios o: de trabajo Calder Marshall R.
del artista en solitario –de reflexión y de realización de la propia obra– o de reunión A. Fonte: Artists at
Home, 1884, fotogra-
con clientes y comitentes. Y en este sentido, que no debemos olvidar el estatus híbrido bado, 215 cm x 166
que tuvo el atelier en la Europa de fin del siglo como un sitio que se abre al público cm, London, National
para comercializar las obras. Es decir, el atelier no es representado en tanto ámbito de Portrait Gallery.
distracción o vida de bohemia sino como lugar específico de producción. Un universo
en dónde se muestran, general-
mente con el criterio de horror
vacui tan habitual en la visuali-
dad decimonónica, los objetos
de la gran enciclopedia que da Figura 2 - Edmond
origen al trabajo “arqueológico” Bénard (1838-1907):
Atelier de Charles La-
del artista, fundamental si pen- croix. Fonte: Ateliers
samos que muchos de ellos son d’artiste, 1880-1910,
pintores de historia u orienta- fotografía, 27 x 35 cm,
Paris, Bibliothèque
listas; y también como “museos de l'Institut National
particulares” que exhiben un re- d'Histoire de l'Art,
pertorio de los resultados alcan- collections Jacques
Doucet.
zados. Sin embargo, aparecen
7  Joanna Milk reseña las críticas de The Art Journal, dónde se destaca que no mostraban los artistas “realmente” en
sus casas.
8  WAT, Peter & DELANTOUR, Jéròme. Portrait d’atelier. Un album de photographies fin de siècle. Grenoble:
INHA-Université Stendhal, 2013. Una compilación anterior de gran parte de las fotografías de Mayall y las de Bénard
(atribuidas a Giraudon) es: HABOLDT & CO. Portrait de l’artiste. Images des peintres 1600-1890. Paris, 1991-1992.

175
aquí otros tópicos: los llamados coin de atelier o retratos in abstencia,9 aquellos en que
el artista interactúa con otras personas (modelos, clientes, amigos, alumnos) incluso
transformando al taller en un sitio de enseñanza, un pequeño porcentaje de retratos
de artista mujeres y otros dónde el rol de artista convive con el de pater familas, como
afirmando la compatibilidad de ambas funciones, asociación que observaremos de
modo recurrente en el caso de los retratos de sudamericanos.

Estas imágenes apuntaban a ser comercializadas en álbumes, aunque su circulaci-


ón más amplia fue a través de la lujosa publicación bimensual Revue illustrée acom-
pañando una serie de artículos de visitas a talleres que se continuaron unos a otros
hacia fines de la década de 1880.

Deberemos esperar hasta los últimos años del siglo para asistir a un emprendimiento
que intentó comunicar mayor naturalidad en las poses y actitudes de los retratados.
Nos referimos a la galería de personajes Nos contemporains chez eux llevada adelante
por el fotógrafo Dornac (Paul Marsan) (1858-1941) entre los últimos decenios del
siglo XIX y los primeros del XX.10 Al igual que el proyecto de Bénard, la principal
circulación de estas imágenes fue a través de la prensa ilustrada.11 La serie no estuvo
abocada exclusivamente a los artistas plásti-
cos, incluyendo políticos, escritores, científi-
cos, periodistas y actores, aunque pintores y
escultores fueron una presencia muy significa-
tiva en ella.12 Aquí, a partir del recurso del clo-
se-up el fotógrafo buscó transmitir una mayor
intimidad y organicidad entre el fotografiado
y su obra, resignando a ese efecto panorámico
o total que lograban las fotografías de Mayall
o Bénard. Lo que se acentúa es el vínculo vital
del artista con su obra, la que por otra parte
muchas veces aparece sólo visible en fragmen-
tos. [Figura 3] Y si algunas imágenes todavía
conservan algo de artificiosidad en el modo en
Figura 3 - Dornac que se ostentan las herramientas (cf. la fotografía de Léon Lhermitte) o en que se
(1858-1941):Augus-
te Renoir. Fotografía, posa como un dandy (como por ejemplo del ilustrador y litógrafo Jules Chéret), otras
19,5 cm. Fonte: Nos privilegian un efecto de verosimilitud, cómo si el fotógrafo hubiera irrumpido en el
contemporains chez taller sin aviso, en medio de la labor o descanso del artista. Así aparece el escultor
eux, 1887, Paris, Bi-
bliothèque nationale Emmanuel Fremiet sosteniendo un pequeño boceto, Renoir en un momento de me-
de France, départe- ditación o reposo o Albert Benard con su delantal manchado de pintura y un trapo
ment Estampes et
photographie. http:// 9 Llamados también “atelier sans maître” fueron un género recurrente en la pintura del siglo XIX, vinculados con la
gallica.bnf.fr/ práctica de la pintura de naturalezas muertas aunque ampliando este género, cf. LESEC, Cédric. Le coin d’atelier ou le
portrait absent. La revue du Musée d’Orsay. Paris, nº 51, printemps 2011, pp. 44-53.
10 El trabajo más extenso que hemos hallado al respecto es la tesis de MALLARD, Marie. Etude de la série de Dornac
“Nos contemporaines chez eux”1887-1917. Personnalités et espaces de représentation. Paris: Université de Paris
IV, Sorbonne, 1999. La autora profundiza respecto las condiciones materiales y contextuales del trabajo de Dornac y la
identificación de los protagonistas de las imágenes.
11 Las imágenes aparecieron en Le Monde illustré, La Revue Encyclopédique y L’illustration, tanto acompañando artícu-
los como en solitario con un mero epígrafe.
12 De acuerdo a Mallard, los artistas y hombres de letras representan 2/3 de la selección total de retratados.

176
tirado sobre una escalera, elementos impensados en las cuidadas composiciones que
observamos sólo unas décadas antes. Precisamente, lo que hay aquí es un énfasis en la
materialidad de la pintura y una reivindicación del carácter corporal y del gesto como
signos de validez del arte moderno.

América Latina: los casos de Argentina y México


En ambientes artísticos menos formalizados como el argentino, las imágenes del ate-
lier fueron funcionales a propósitos diferentes a los que un sistema artístico conso-
lidado, como el parisino o londinense, podían habilitar. Es otras palabras, no existía
en la Argentina una tradición de autorretratos o retratos de artistas comparable con
el extenso repertorio de panteones pictóricos con que contaba Francia ya para me-
diados del siglo XIX. La profesión de artista era una ocupación más nueva y menos
conocida, sin embargo, si bien no pudimos identificar series o galerías de pintores y
escultores como las que analizamos para el caso europeo, la recurrencia de los retra-
tos de artistas en la prensa ilustrada que proliferó entre fines del siglo XIX y comien-
zos del siglo XX también remite a esta atracción por conocer a los creadores y a sus
lugares de trabajo.13 Figura 4 - L. Garri-
do: Nuestros pintores.
Por ejemplo, observemos cómo el pintor Ernesto de la Cárcova (1867-1927) fue re- Ernesto de la Cárcova,
tratado por la revista ilustrada Buenos Aires en 1895.14 [Figura 4] Sentado, vistiendo Buenos Aires. Revista
Semanal Ilustrada, 8
su delantal de trabajo, con las piernas cruzadas, los pinceles en la mano, la cabeza la-
de diciembre de1895,
deada y una sonrisa en los labios, el artista posaba delante de Sin pan y sin trabajo, el Buenos Aires, Foto:
cuadro más celebrado por la crítica en la segunda Exposición del Ateneo organizada Verónica Tell.
el año anterior y aquel que definitivamente
había sellado su carrera de artista.15 De la
Cárcova aparecía retratado con los atributos
directamente asociados a su condición de
pintor. Sin embargo, no se lo mostraba invo-
lucrado en la realización del cuadro, sucio o
cansado por el trabajo, sino que aparecía en
su faz contemplativa, como aquel que detie-
ne su labor para reflexionar y que por ende
dedicar igual tiempo a cultivar las tareas del
espíritu que las del oficio y la técnica. La
imagen coincide por otra parte con el modo
en que los colegas referirían a De la Cárcova
como “el más distinguido de todos los artis-

13  Hemos avanzado en el análisis de la imagen de los artistas argentinos que circuló en la prensa en los siguientes ar-
tículos: BALDASARRE, María Isabel. La imagen del artista. La construcción del artista profesional a través de la prensa
ilustrada. MALOSETTI COSTA, Laura & GENÉ, Marcela (comp.) Impresiones porteñas. Imagen y palabra en la
historia cultural de Buenos Aires. Buenos Aires: Edhasa, 2009, pp. 47-80 y BALDASARRE, María Isabel. Mujer/artista:
trayectorias y representaciones en la Argentina de comienzos del siglo XX. Separata. Rosario, a. XI, n° 16, octubre de
2011, pp. 21-32.
14  Nuestros pintores. Ernesto de la Cárcova. Buenos Aires. Revista semanal ilustrada. Buenos Aires, 8 de diciembre
de 1895 p. 5.
15 Cf. MALOSETTI COSTA, Laura. Los primeros modernos. Arte y sociedad en Buenos Aires a fines del siglo XIX.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2001, pp. 302-312.

177
tas de su generación, el más aristócrata y el menos bohemio”.16

También el retrato de otro de los artistas de su generación, Pío Collivadino (1869-


1945), aparecido en La Ilustración Sud-Americana de 1899 establecía una relación
directa entre obra y artista.17 Pío, entonces becario del gobierno,18 se encontraba en
su estudio de Roma acompañado por el corresponsal de El Diario, uno de los prin-
cipales periódicos políticos publicados entonces en la Argentina. Sentado de perfil,
mirando a su visitante, el artista llevaba su delantal de trabajo. Sostenía un pincel en
la mano derecha y la paleta y un manojo de pinceles en la izquierda. A diferencia de
De la Cárcova, Pío había elegido representarse en acción. Sin embargo, el artificio
de la pose era aquí incluso más evidente. El cuadro –Via Appia– estaba visiblemente
terminado y con marco, pero Collivadino fingía estar próximo a dar una pincelada
mientras asume la tarea docente de explicar a su visitante, su nexo con Buenos Aires,
el derrotero de la obra que acaba de terminar.19 Retratos como éste que mostraban a
los artistas en sus estadías europeas, apuntaban también a legitimar ante el público
y el Estado argentino la productividad de aquello que habían ido a realizar al viejo
mundo. En el archivo Collivadino existen muchas de estas fotos, y también varias
otras en las que el artista se retratado disfrazado, posando divertido con sus amigos,
en las fiestas y mascaradas por las que fue famoso entre sus colegas sudamericanos e
italianos. Sin embargo, estas imágenes tuvieron menos lugar en la prensa contempo-
ránea y cuándo circularon, (por ejemplo en un artículo de Rafael Simbóli publicado
por Caras y Caretas hacia fines de 1913) la carrera del artista ya estaba totalmente
afianzada a partir de su actuación como Director de la Academia de Bellas Artes. De
modo similar, en La Ilustración Sud-Americana de 1894 el dibujante Carlos Clerice
también se encuentra sentado, observando una revista en actitud meditativa, dentro
de un cuarto que, tal como permite observar el estratégico espejo ubicado sobre la
chimenea, está enteramente cubierto por fotografías, dibujos, yesos y pequeñas telas,
como para ratificar visualmente aquello que sostiene la crónica: que tanto él como su
hermano músico “no perdieron sus noches en estúpidas parrandas y conversaciones
de café, sino que se las pasaron en vela trabajando”.20

Si en los casos europeos sabemos que estos ciclos de imágenes fueron concebidas por
fotógrafos que buscaron vender sus series, tenemos menos certeza sobre la autoría
de las imágenes que se publicaron en la prensa de Buenos Aires. Cómo sucede habi-
tualmente con la utilización de clichés fotográficos en este período, éstos no tienen
marcas de autoría. Sabemos que publicaciones como el semanario ilustrado de cir-
culación masiva Caras y Caretas tenía un equipo de fotógrafos que eran enviados a
las locaciones para cubrir reportajes de actualidad. Sin embargo, creemos que en el
caso de las imágenes de los artistas en sus talleres europeos eran ellos mismos los que

16  Idem, p. 319.


17  El pintor Collivadino. La Ilustración Sud-Americana. Buenos Aires, a. 7, n. 159, 1 de agosto de 1899, p. 253.
18  Para el derrotero europeo de Collivadino, cf. la exhaustiva reconstrucción de MALOSETTI COSTA, Laura. Colliva-
dino. Buenos Aires: El Ateneo, 2006, pp. 47-67, la fotografía aquí analizada es reproducida en la p. 58.
19  Años después una imagen similar con el artista frente a su pintura Caín, ahora en compañía de su modelo, fue
reproducida por Caras y Caretas. Buenos Aires, a. 6, n. 228, 14 de febrero de 1903.
20  MARTEL, Julián. Justino y Carlos Clerice. La Ilustración Sud-Americana. Buenos Aires, a. 2, n. 41, 1 de septiembre
de 1894, pp. 390-391.

178
hacían retratar con un fotógrafo local para publicitarse en Buenos Aires. Podemos
sostener este mecanismo con certeza para el caso de Martín Malharro (1865-1911),
quien envía una imagen a su amigo el periodista Francisco Grandmontagne desde
París, a manera de un recuerdo afectuoso pero también para hacer patente la labor
realizada en el viejo mundo.21 [Figura 5] Si bien Malharro había viajado sin finan-
ciación estatal, también recurre a la estrategia de representarse en su taller parisino
repleto no sólo de yesos y bocetos sino de cuadros terminados. Frecuente colaborador
de Caras y Caretas, fue seguro Grandmontagne quien cedió la foto a la revista apare-
ciendo en sus páginas al mes siguiente
de haber sido enviada. Sobre el costado
derecho de la escena se muestra una tela
en plena realización, mientras se reser-
va un lugar de privilegio para su pintu-
ra El Corsario La Argentina, expuesta y
recibida elogiosamente por la crítica en
la Exposición del Ateneo de 1894, como
aquella que había catapultado su fama
de artista.22 Malharro aparece con de-
lantal, detrás de un atril, mirando fija y
seriamente a la cámara. Sobresalen sus
tupidos bigotes, que se convertirán en
una de sus marcas distintivas, mientras
su gesto trasmite una fuerza algo adus-
ta, opuesta a la delicadeza de la pose elegida por De la Cárcova. De hecho, el epígrafe Figura 5 - Martín Ma-
de la foto destacaba que: “Malharro emigró de Buenos Aires, librado a su propio es- lharro, París, Julio 1º de
1899, fotografía. Buenos
fuerzo, sin subvenciones de ningún género, ni otra fuerza monetaria propia que los Aires, Departamento de
francos justos para vivir el primer día”. Documentos Fotográfi-
cos, Archivo General de
Otra faceta que es frecuente encontrar en las fotografías de artistas de este período es la Nación.
la de maestros. En 1902, se publica en La Ilustración Sud-Americana un extenso artí-
culo titulado “El arte en Buenos Aires” acompañado por vistas de talleres de artistas.23
En ellas se observa a figuras entonces centrales en el campo artístico de Buenos Aires,
Eduardo Sívori (1847-1918), Ángel Della Valle (1852-1903) y el italiano Francesco
Parisi, ejerciendo la labor docente, en los tres casos para un público exclusivamente
femenino. Mientras Parisi aparece mezclado entre sus alumnas que dibujan a una
modelo vestida, en los casos de Sívori y Della Valle se acentúa su posición en tanto
autoridades artísticas. De hecho, las alumnas de Della Valle se encontraban realizando
una copia de un fragmento (Indio con cruz) del cuadro más famoso del pintor: La

21  La foto perteneciente al Departamento de Documentos Fotográficos del Archivo General de la Nación está dedica-
da: “A Francisco Grandmontagne: Admirador de tu labor y de tu talento te dedica este recuerdo. Martín A. Malharro.
París, Julio 1º de 1899” en el reverso lleva el sello “Archivo Caras y Caretas”.
22  Los artistas argentinos en Europa. Martín A. Malharro en su estudio en París. Caras y Caretas. Buenos Aires, a. 2,
n. 47, 26 de agosto de 1899. Para la recepción de la obra en el marco del Ateneo, cf. SCHIAFFINO, Eduardo. La pintura
y la escultura en la Argentina. Buenos Aires: Edición del autor, 1933, p. 377.
23  EXELSIOR. El arte en Buenos Aires. La Ilustración Sud-Americana. Buenos Aires, a. 10, n. 240, 30 de diciembre
de 1902, pp. 380-381.

179
vuelta del malón.24 Nuevamente era la obra canónica de Della Valle, expuesta en varias
oportunidades con éxito de crítica y público,25 la que era aludida aquí gracias a su
utilidad como modelo para la educación artística. El artista, de traje, aparece sentado
delante del trabajo de una de las estudiantes y simula una corrección con su dedo en
alto. Sívori parece asumir una labor aún más activa, interviniendo directamente con
el lápiz en el dibujo de su alumna. Se presenta con la silueta característica de sus úl-
timos tiempos: larga barba blanca, pequeños anteojos redondos, traje con un lazo al
cuello, a lo que se agrega aquí un gorro sobre su cabeza. Este tipo de sombrero, gene-
ralmente reservado a la vida íntima, resultaba aquí un elemento vistoso o excéntrico,
habilitado a la vida pública en tanto el que lo portaba era un artista.

Si los artistas debieron negociar cuidadosamente su identidad y el modo en que eran


mostrados por sus retratos de atelier, este proceso fue aún más complejo en el caso
de las artistas mujeres. Para entonces, era muy infrecuente la catalogación de las mu-
jeres como artistas profesionales a pesar de que fueran muchas las practicantes de
dibujo y pintura en la Sociedad Estímulo de Bellas Artes y en las academias privadas
comandadas por hombres. Y, en este contexto, el retrato en el taller fue eficaz para
poner en acto la concordancia o no de sus roles de artista con las expectativas pues-
tas en su género. Para aquellas que se dedicaron a la pintura, su apariencia alternará
entre la dama de sociedad tradicional y la mujer-artista a la que se le permite otro
tipo de licencias en el vestir, en la pose, y en la relación con los objetos que la rode-
an. Por ejemplo, los artículos sobre Ana de Carrié y la joven discípula de Francesco
Parisi Ana Limendoux aparecidos en La Ilustración Sud-Americana, en 1905 y 1906
respectivamente, sobresalen por su divergencia. La “futura artista” Limendoux está en
acción, sentada pintando, porta un delantal hasta los tobillos e incluso su pie desnudo
sostiene una paleta apoyada en el suelo.26 Por el contrario, Carrié ratifica su condición
de señora de sociedad, estaba casada con el entonces cónsul argentino en Holanda y
se exhibe en su taller parada frente a sus retratos pero conserva todas las reglas del
decoro que se esperan de una matrona finisecular.27

Lola Mora (1867-1936), sin duda la artista más célebre en los albores del siglo XX
–y además escultora– presenta un caso paradigmático en tanto se propuso y logró
con éxito un objetivo nada frecuente para este momento: vivir de la escultura.28 Así,
en todas sus fotografías que se hizo tomar hacia comienzos del siglo, Lola parece ser
consciente de la necesidad de negociar una identidad, de algún modo haciéndose
cargo de los estereotipos sociales que su figura ponía en cuestión. En los retratos re-
alizados en Roma, ciudad en la que vivió en forma alternada con Buenos Aires entre
1897 y 1914, Lola aparece de forma casi idéntica con dos atuendos bien diferentes
que aludían a su doble cariz de artista-escultura y de dama refinada.29 La repetición
24  Cf. DE URGELL, Guiomar. Ángel Della Valle. Buenos Aires: FIAAR, 1990, n. 109 del catálogo razonado.
25  Cf. MALOSETTI COSTA. Los primeros modernos. op. cit, pp. 264-276.
26  Una futura pintora argentina. La señorita Ana Limendoux. La Ilustración Sud-Americana. Buenos Aires, a. 13, n.
290, 30 de enero de 1905, pp. 29-30.
27  Los cuadros de la Sra. Ana de Carrié. La Ilustración Sud-Americana. Buenos Aires, a. 14, n. 330, 30 de septiembre
de 1906, p. 295.
28  Cf. CORSANI, Patricia. Ser escultora en Buenos Aires a comienzos del siglo XX. El caso de Lola Mora. Avances.
Córdoba, nº 7, 2003-2004, pp. 53-67.
29  Ambas fotografías fueron realizadas por F. Felicetti y se encuentran en el Departamento de Documentos Fotográ-

180
de la pose, el peinado y la mirada, algo más risueña en su imagen con el delantal y el
birrete, parecían querer paliar el conflicto entre las nociones de feminidad y las expec-
tativas profesionales que seguramente aquejaron a Lola como a muchas de sus con-
temporáneas que entonces se formaban en Europa.30 Es decir, la escultora debió lidiar
permanentemente con los comentarios que decían que la suya no era una ocupación
propiamente femenina, pero también acallar la maledicencia que afirmaba que no era
ella quién realizaba las esculturas. Así, pocos años más tarde, cuándo era la autoría de
su obra más famosa la que debía enfatizarse, la Fuen-
te de las Nereidas, la solución elegida fue posar públi-
camente en el obrador con su vestimenta de trabajo,
“actuando” la tarea de dar toques de cincel a la pie-
za para otorgarle su fini particular. 31[Figura 6] Lola
había apuntado a triunfar como artista profesional
dentro un gran género, la escultura monumental, no
asociado entonces con “las artes femeninas”. Si bien
las enormes piezas en mármol estaban basadas en
piezas de menor tamaño en arcilla y el trabajo grueso
de devastado era realizado por artesanos calificados,
Lola reafirmaba su concreto involucramiento en la
ejecución a través de este gesto. Y en una especie de
círculo vicioso, estas fotos que reivindicaban su labor
fueron observadas como una especie de fenómeno o
constituyeron el fermento para burlarse nuevamente
de su escasa feminidad.32

En Argentina, la presencia de reportajes de atelier y


visitas a casas de los artistas continuará en las prime-
ras décadas del siglo XX, teniendo como uno de sus
foros principales la lujosa revista Plus Ultra, publica-
ción que poseía una sección más o menos estable que
apuntaba a hacer una presentación en sociedad de
un escultor o pintor argentino. La selección de per-
sonajes que se configura a partir de estas crónicas
Figura 6 - Lola Mora en
responde, en gran parte, a quienes entonces poseían cierto renombre por la venta de el taller (sobre caballo
sus obras o los artistas tradicionales que gozaban de fama ya asentada en el siglo XIX. de la Fuente de las Ne-
Por ejemplo, el perfil tradicional de De la Cárcova asociado a su rol fundamental reidas), 1903, fotografía.
Buenos Aires, Departa-
como el más refinado de los “precursores” en la formación de un arte argentino está mento de Documentos
denotado por el retrato de su rostro casi a página entera que lo muestra meditativo y Fotográficos, Archivo
muy elegante. Esta idea termina de completarse con otras dos fotografías: una donde General de la Nación
se lo ve con el mismo traje impecable pero ahora posando cerca de un caballete con

ficos del Archivo General de la Nación. Si bien no están datadas, por la apariencia de Lola suponemos fueron tomadas
hacia 1900.
30  Cf. BORZELLO, Frances. Seing ourselves. Women’s self-portraits. New York: Harry N. Abrams, 1998, p. 114.
31  Lola Mora en el taller (sobre caballo de la Fuente de las Nereidas), 1903, Departamento de Documentos Fotográfi-
cos del Archivo General de la Nación.
32  Cf. las burlas de Caras y Caretas y la caricatura de Cao de 1903, citadas por CORSANI. op. cit., p. 60.

181
su paleta y pincel en mano mirando a su modelo que aparece de espaldas en primer
plano, y otra que muestra el hall de su estudio vacío de personas pero lleno de todas
las comodidades y lujos de cualquier interior opulento de la época. Las imágenes ra-
tifican este lugar del artista hacia el fin del siglo, aquel que se ha alejado de la pintura
de denuncia social para cultivar la práctica del retrato de mujeres refinadas; el taller
es entonces el ámbito ideal y adecuado para recibirlas.
Figura 7 - Víctor An- “Estamos en uno de los pabellones de Palermo, próximo al Rosedal, donde Quirós
drés: Nuestros pinto-
res. Cesáreo Bernaldo ha instalado últimamente su taller de pintura”, comienza otro artículo de 1918, para
de Quirós. Plus Ultra. continuar “El ambiente que nos rodea, es excepcionalmente agradable: muebles de lí-
Buenos Aires, a. 3, n.
nea severa, sillones tapizados, antigüedades, pequeños objetos artísticos que denotan
27, julio de 1918. Foto:
María Isabel Baldasar- selección y buen gusto.”33 No se trata de una crónica de una casa de la elite, de esas
re. que abundaban en las páginas de la misma revista, pero se le parece mucho. El esmero
y lujo con el que el pintor, Cesáreo Bernaldo de Quirós, (1879-1968)
ha dispuesto el mobiliario y la decoración han transformado com-
pletamente el aspecto “industrial” del Pabellón Argentino siendo
exitosa su homologación con un interior suntuoso. [Figura 7] Es
evidente la reputación de la que goza el artista y cómo este lustre se
resume en los objetos, como el candelabro y el gran sahumador de
plata, que se destacan en primer término en la fotografía que lo re-
presenta pintado a su modelo. Desnuda de espaldas, con un mantón
español cubriéndola parcialmente, es una de las pocas, sino la úni-
ca, imagen de una modelo que aparece sin ropas en las fotografías
de la prensa de entonces. Quizás era una forma velada de aludir a
la fama de seductor del artista. Con un último resabio de juventud
en su rostro, aplomado, seguro de sí mismo, así lo muestra el retrato
que corona el artículo. La elegancia de su traje es impactante. La
camisa perfecta deja adivinar los gemelos y las manos se juntan
en un ademán refinado que es realzado por un gran anillo. Es, sin
duda, el prototipo del artista burgués
que practica una vida lujosa y opu-
lenta y que gusta vestir con esmero.
Heredero de cierta distinción deci-
monónica, pero a tono con los nue-
vos tiempos que corren, Quirós está
atento a la ubicación comercial de su
obra. Y todo este éxito económico es
comunicado de modo patente por el
boato de su atelier.

Hasta dónde hemos investigado, el


caso mexicano presenta muchos pun-
tos en común con lo señalado para la

33 ANDRÉS, Víctor. Nuestros pintores. Cesáreo Bernaldo de Quirós. Plus Ultra. Buenos Aires, a. 3, n. 27, julio de 1918,
s/p.

182
Argentina y queda aún pendiente un relevamiento mayor para comprobar hasta qué
punto y con qué características la práctica de los retratos de atelier se continuó a lo
largo del siglo XX. Por ejemplo, la publicación ilustrada Arte y Letras (1904-1914)
revista editada en los primeros años del siglo XX y que emula de cerca el modelo pro-
puesto por L’Illustration francesa, seguido a su vez por La Ilustración Sud-Americana,
presenta en sus fotografías muchos punto de encuentro con las tomas europeas de la
década de 1880 en el modo en que retrata
a los creadores en su taller y cómo se aso-
cia su personalidad artística con los ob-
jetos que lo rodean. Por ejemplo, un pro-
fuso reportaje al pintor catalán Antonio
Fabrés (1854 -1936) en 1905, quien había
llegado a México unos años antes con el
propósito de renovar las clases de dibujo
y pintura en la Academia,34 [Figura 8] se
convierte en el correlato visual de la tarea
que el pintor ejercía desde sus claustros
de San Carlos. Si como señala Fausto Ra-
mírez, Fabrés asignaba una importancia
capital en “su método de enseñanza a los
trajes de época [...] muy dentro de la lí-
nea nostálgica y exotista, a la manera de
Meissonier y de Fortuny”, es todo este
Figura 8 - Los salones del
universo de objetos remotos en el tiempo y el espacio el que se vuelve visible en las
taller de Antonio Fabrés,
fotografías del “taller-museo”, al punto de convertirse en continuum de la obra. 35 Sin Arte y Letras, a. 1, nº 12,
duda la excepcionalidad de estos objetos –armas antiguas, espadas góticas, adornos julio de 1905, México.
Foto: María Isabel Balda-
japoneses, hasta un pórtico morisco– en un medio como el mexicano contribuían a
sarre.
exaltar las virtudes del atelier –ubicado en el propio edificio de la Academia–36 que
era abierto una vez al mes por la esposa e hijas del artista otorgándole ese estatu-
to semi-público que tenían muchas colecciones privadas entre fines del siglo XIX y
comienzos del XX, aquí con el plus de poder proveer a todo el repertorio visual del
artista.

En esta línea, otro de los docentes de pintura de la Academia, el mexicano Germán


Gedovius (1867-1937) aparece retratado por la misma publicación habitando el mun-
do abarrotado y exótico de su atelier, homologable con los aires simbolistas y el gusto
por el colonialismo que se observaba en su pintura.37 Las fotografías buscan presentar
34 HIJAR Y HARO, Alfredo. Los salones del taller del Sr. Antonio Fabrés. Arte y Letras. México, a. 1, nº 12, julio de
1905.
35 RAMÍREZ, Fausto. Tradición y modernidad en la Escuela Nacional de Bellas Artes. 1903-1912. Las Academias de
Arte. VII Coloquio Internacional en Guanajuato. México: UNAM, 1985. Ramírez retoma algunas de estas ideas en su
artículo más extenso publicado en: Modernización y modernismo en el arte mexicano. México: IIE-UNAM, 2008,
pp. 197-235.
36 Fausto Ramírez en el artículo citado ut supra consigna una serie de artículos publicados en varios medios contem-
poráneos que reafirman el interés particular que había por el estudio del artista.
37 En el estudio de Germán Gedovius. Arte y Letras. México, a. VI, nº 170, 25 de junio de 1910. Para un estudio sobre
el pintor cf. RAMÍREZ, Fausto. Germán Gedovius: Una reconsideración. Modernización y modernismo, op. cit., pp.
291-325.

183
la diversidad de las colecciones del artista com-
puesta por objetos virreinales, indígenas y copias
del Renacimiento. En medio de ella, Gedovius posa
con el traje de calle similar a la vestimenta que se
observa en las fotografías de burgueses contempo-
ráneos. De hecho, si el taller exhibe “en todas partes
[...] lienzos recién empezados” que son huellas de la
inspiración del maestro, la crónica no tiene medias
tintas para afirmar que quién habita este ambiente
de ensueño no se aleja de la norma masculina espe-
rable en su clase: Gedovius es un hombre “de trato
sencillo, de aspecto serio y mirada grave, de buena
estatura, de frente despejada, natural en el vestir,
sin aliños que afeminan ni alardes de artista, que
tan mal le sientan al que mucho vale”.

También en el caso de las mujeres artistas son los


cánones atribuidos al género los que se reafirman
a partir de la descripción del atelier. Así, la reseña
sobre la joven pintora Elena Mix (1889-1939) se
adecúa a todos los estereotipos del “arte femenino”
al ubicarla en “el cuarto luminoso y pequeñito que
le sirve de atelier”.38 [Figura 9] A diferencia de los
Figura 9 - El alma de
amplios y repletos talleres de sus pares hombres, Elena se conforma con un espacio
las flores. (Hablando
con Elena Mix), Arte “diminuto” en el que se siente “la influencia del espíritu femenino” y que evita “el de-
y Letras, a. VII, nº 210, sarreglo y abandono peculiares de los cuartos del pintor”. En esta pequeña habitación
2 de abril de 1911,
ordenada, factible de pasar desapercibida como un ambiente más de la casa, la mu-
México. Foto: María
Isabel Baldasarre. chacha “pinta como otra bordaría ó se haría la ‘toilette’ frente al espejo”. Finalmente,
la ecuación equipara la dimensión del taller con su confinamiento a la práctica de
géneros menores que se homologan a su vez a las labores de embellecimiento que se
esperan de las jóvenes de su tipo, profesionalización a la que sin embargo Elena no
rehusó ya que participó en varias exposiciones organizadas por instituciones artísti-
cas.

Para concluir, sorprende cómo las ideas que se construyen en estas imágenes de ate-
lier se replican en Europa y América. El artista como hombre de mundo, vestido como
un burgués de buen pasar y dueño de un taller lujoso y elegante, el pintor o escultor
como un creador intelectual alejado de la “sucia” práctica del arte, el maestro que
orienta con su presencia y su palabra a las generaciones más jóvenes, la artista mujer
que debe adecuar permanentemente la profesión a las expectativas de su género, el
artista díscolo que no termina de asimilarse al ser burgués y todavía ostenta algunos
resabios de bohemia, aunque mayormente “domesticada”, todos estos tópicos se cor-
porizan de un modo muy palpable en las fotografías de los talleres que, cómo hemos
visto en este encuentro, se multiplicaron entre nuevo y viejo mundo.

38  GONZÁLEZ PEÑA, Carlos. El alma de las flores. Arte y Letras. México, a. VII, nº 210, 2 de abril de 1911.

184
Quizás no debería sorprendernos, los trabajos de muchos investigadores que parti-
cipan de este Coloquio, junto a muchos otros, nos han mostrado de qué modo en el
siglo XIX se estableció una intensa circulación de imágenes entre Europa y América
y cómo los artistas de América Latina estaban ávidos por conocer y hacer propios los
recursos del arte moderno. Además, el lenguaje fotográfico y las técnicas de reproduc-
ción de imágenes conocieron una rápida difusión en el continente conformando una
cultura impresa que experimentaba –casi en paralelo– los logros técnicos obtenidos
en Europa. Quisiera concluir proponiendo entonces cómo la recurrencia de puntos de
vista, de las formas de posar, de vincularse con los útiles de trabajo y con los cuadros
y esculturas, en síntesis la presencia de iconografías semejantes en estas fotografías de
atelier de Europa y América contribuyen a esta idea de una cultura visual compartida
y a la configuración de una “modernidad” global de la que América Latina no quiso
ser ajena.

185
186
Considerações sobre os ateliês
de Henri Lehmann
e Théodore Chassériau

Martinho Alves da Costa Junior 1

Este trabalho visa a apresentação de alguns discursos acerca dos ateliês dos artistas
Henri Lehmann e Théodore Chassériau - ambos, colegas do mesmo ateliê de Jean-
Auguste Dominique Ingres. Este ponto é fulcral para compreender-se este artigo: se
por um lado existe uma grande proliferação documental desses locais de trabalhos
inatacavelmente mais aclamados, como de Ingres ou David – cujos espaços foram
inclusive documentados e trabalhados por ilustres alunos (no primeiro caso, Amaury-
Duval que foi responsável pela descrição contemporânea mais completa do local de
trabalho de Ingres, e Étienne-Jean Delécluze cujo trabalho sobre o ateliê de David é
fundamental para se conhecer o mestre) –, o mesmo não se aplica quando pensamos
em ateliês de artistas que, de alguma forma, estavam relacionados a eles. O mundo
particular e recluso do ateliê é apagado, são poucas as indicações com as quais temos
acesso para descortinar como trabalhavam ou mesmo a frequentação daqueles lugares.
Às vezes, não temos senão uma fotografia indicativa do que poderia ser ou alguns
esparsos depoimentos da vida no ateliê. Neste aspecto, os casos de Henri Lehmann e
Théodore Chassériau são marcantes.

Lehmann não foi inteiramente descoberto, os estudos sobre o artista são escassos e
as informações disponíveis sobre seu ateliê o são ainda mais. Contudo, deste local,
sob a tutela do artista, saíram figuras como Georges Seurat e Alphonse Osbert. As

1 Doutor em História da Arte. Professor de História da Arte na Universidade Federal de Juiz de Fora, Minas Gerais/
Brasil.

187
descrições do ateliê de Lehmann se concentram nos depoimentos de
alunos que vislumbram de algum modo o estilo livre de trabalho do
professor.

Théodore Chassériau, por sua vez, possui um lugar de destaque


entre estes artistas. Certamente é o mais conhecido e mais estudado
aluno de Ingres. Embora não haja imagens relacionadas a seu ateliê, a
documentação relacionada a ele é mais sedimentada. Recentemente, a
associação dos Amis de Chassériau publicou uma série de cartas que
se imaginava perdida. Nelas encontra-se a gênese da criação de seu
ateliê, as diversas investidas de seu irmão sobre este ponto. Alguns
trechos de tais cartas são descrições importantes para a concepção
do que foi o ateliê de Chassériau, como o famoso relato de Théophile
Gautier, L’atelier de feu de Chassériau. Desta forma, este texto procura
Figura 1 - Henri contribuir para a compreensão dessas lacunas, desses espaços de importância capital
Lehmann (1814-1882), na cultura e praticamente inexplorados pelos pesquisadores que se debruçaram sobre
Autoportrait, c. 1877. tais artistas.
Óleo sobre tela, 38 x 46
cm. Hamburgo, Ham- O ateliê de Henri Lehmann na École des Beaux-Arts vem tardiamente. É inaugurado
burger Kunsthalle.
no dia 16 de outubro de 1875,2 portanto apenas sete anos antes de sua morte. Dura
relativamente pouco, seu pedido de demissão ocorre em 1881, alegando problemas
de saúde. De seu legado como professor, de
fato, sabemos quase nada. Entre seus alunos,
o espanhol naturalizado brasileiro, Modesto
Brocos, merece destaque. Provavelmente, Brocos
ingressa no ateliê de Henri Lehmann em 1877,
recebe instruções do mestre por pouco tempo.
Contudo, é suficiente para que o artista realize
uma gravura com o retrato de Henri Lehmann
[Figura 1 e Figura 2].

É possível que esta obra tenha sido feita a partir


Figura 2 - Modesto
Brocos (1852-1936), do autorretrato de Henri Lehmann.3 As duas
Henri Lehmann, c. obras recebem a data de 1877 circa. Acerca do
1877. Gravura, 25 x óleo de Lehmann, sabemos pela documentação
20,5 cm. San Francis-
co, Fine Arts Museum da École Nationale des Beaux-Arts que foi o
of San Francisco. próprio artista quem doou a tela em 1881 por
testamento, sendo aceita pela instituição em
1885. Trata-se de uma das raras obras não assinadas por Lehmann e faz parte de um
número considerável de autorretratos. A água-forte de Modesto Brocos, entretanto,
apresenta um mestre diferente daquele do autorretrato. Com o semblante mais
tranquilo, a idade e o cansaço estão mais presentes. Se na tela o olhar se mantém

2 AUBRUN, Marie-Madeleine. Henri Lehmann: 1814-1882. Portraits et décors parisiens. Paris : Musée Carnavalet,
1983, p.38.
3 É possível que a obra tenha sido realizada em 1875, mas as informações são conflitantes. Não seria, todavia, impossível
pensar em uma conjectura diferente, na qual Lehmann realiza o autorretrato a partir da água-forte de Modesto Brocos.

188
confiante e a força é inquebrantável, Brocos apresenta um mestre sem energias, frágil
e pouco seguro. Este registro é importante, sobretudo por um artista com relações tão
estreitas com o Brasil, apresentar o retrato do mestre no momento em que era parte
integrante de seu ateliê.

Certamente, o fator preponderante para o nome de Henri Lehmann circular entre os


compêndios de arte não são seus modos ou seu estilo como professor, mas a presença
de Georges Seurat como aluno. Se
Lehmann, junto com tantos outros,
entra para quase um anonimato
na história da arte, seu aluno, ao
contrário, ganha notoriedade entre
os modernos. O único registro
conhecido do círculo do ateliê de
Henri Lehmann é uma fotografia
justamente na qual Georges Seurat
aparece. [Figura 3].

Seurat ingressa um ano após Brocos.


O registro fotográfico era de posse
de Yolande Osbert, filha de Alphonse
Osbert, outro aluno já citado de
Lehmann, cujo sucesso é maior do que o mestre – interessante notar a pluralidade Figura 3 - Autor des-
conhecido, Estudan-
de paletas tão diversas que saíram deste estúdio. Na referida fotografia, podemos ver tes do ateliê de Henri
um muro da École, os alunos posando para a foto, mas muito pouco sobre o local de Lehmann. Fotografia.
trabalho. Georges Seurat é o sexto, em pé da esquerda para direita. Pretensamente
o próprio Lehmann estaria na fotografia, o segundo sentado à esquerda. Este
personagem assemelha-se à caricatura de Lehmann feita por Félix Tournachon,
Nadar. Mas, como podemos constatar em seu autorretrato ou na retrato de Modesto
Brocos, neste momento Lehmann trazia no rosto a marca indelével da experiência
dos anos como mestre.

Há, ao menos, um relato importante do modo de ensino e das aulas em geral do ateliê
de Henri Lehmann. Keynon Cox, artista, crítico e escritor americano passa alguns
de seus anos de formação em Paris. Primeiramente estuda com Carolus-Duran, mas
Cox fica pouco tempo em seu estúdio, o estilo e caráter do artista vão de encontro
com aquilo que o aluno imaginava uma correta postura para um professor de pintura.
Deste modo, em 1878 ele se matricula na École des Beaux-Arts e frequenta os ateliês
de Jean-Léon Gérôme, Alexandre Cabanel e Henri Lehmann. Destes anos em terras
francesas ele deixou uma quantidade expressiva de cartas, trocadas, sobretudo com
sua mãe, Helen Finney.4 Esta etapa é claramente importante na formação do artista.
A presença de Lehmann faz-se visível especialmente nas apresentações dos corpos.

4  O arquivo Keynon Cox está conservado no Archive of American Art da Smithsonian, em Washington, D.C. Entre-
tanto, algumas das cartas trocadas com seus familiares, sobretudo no que nos importa neste artigo, foram agrupadas no
livro: MORGAN, H. Wayne. An American Art Student in Paris: The Letters of Keynon Cox, 1877-1882. Kent: The
Kent State University Press, 1986.

189
Obras como An Eclogue, de 1890, ou a alegoria Echo, de 1892, e
o nu feminino, A blonde, de 1891, atestam, de certo modo, uma
maneira na qual o corpo etéreo e polido lembra Calipso, de 1869
ou as mulheres, quase desossadas dos lamentos incansáveis de La
fille de Jepthé, 1835, do mestre franco-germânico.

Em uma dessas cartas para sua mãe, Cox nos fala de certo arranjo
da escola naquele momento, indicando o ateliê de Lehmann:
[...] Existem várias grandes salas com gessos da antiguidade e de
escultores renascentistas e nestas salas os alunos mais novos de todos os
mestres trabalham juntos, os mestres apareciam duas vezes por semana
para criticar. Na parte superior existem três ateliês geridos por Gérôme,
Cabanel e Lehmann.5

Contudo, uma outra passagem, escrita para seu pai, revela uma
altercada entre alunos e Henri Lehmann:
Figura 4 - Théodore A escola ficou fechada por um mês em consequência de um motim quando os alunos
Chassériau (1819-1856), insultaram Lehmann. Eu acho que Lehmann tinha agido de modo muito mesquinho, e eu
Portrait de l'artiste, 1835.
simpatizo um pouco com os alunos. Ao mesmo tempo pensei ser ao menos insensato por
Óleo sobre tela, 99 x 82
cm. Paris, Musée du Lou- parte deles fazer a bagunça que eles fizeram.6
vre
Ele ainda comenta a necessidade de continuar trabalhando neste período no qual
a escola se mantém fechada, o que o faz ir a Academia Julian para não perder o
mês. Embora essas marcações e imagens sejam escassas, elas são importantes para
compreendermos, mesmo de modo fractal, o período no qual o pintor manteve seu
ateliê na École des Beaux-Arts.

Se por um lado as informações acerca de Henri Lehmann são verdadeiramente


insuficientes, no que se refere a Théodore
Chassériau - provavelmente o aluno
melhor sucedido de Ingres e sobretudo o
mais pesquisado -, temos outros elementos
de seu ateliê privado em Paris. Certamente,
as imagens referentes aos ateliês que
Chassériau teve durante seus trinta e sete
anos são praticamente inexistentes, mas
um conjunto expressivo de cartas pode nos
dar pistas, não apenas de quem frequentava
estes espaços, mas sobretudo de seu arranjo.
Figura 5 - Théodore Antes, contudo, é importante a discussão
Chassériau (1819-1856), de duas imagens. [Figura 4 e Figura 5].
Portrait de l'artiste tenant
une palette, 1838. Óleo Mesmo não retratado em seu ateliê, o
sobre tela, 73 x 59 cm. artista, em seus famosos autorretratos, deixa
Paris, Musée du Louvre. transparecer indicativos do que poderia ter
5  Idem, p. 154.
6  Idem, p. 191.
190
sido seu espaço Figura 6 - Henri
de trabalho, Lehmann (1814-1882),
e também de Franz Liszt, 1839. Óleo
sobre tela, 140 x 87 cm.
flerte e de Paris, Musée Carnava-
amizades. let.

A primeira
obra, realizada
aos 16 anos de Figura 7 - Antoine
idade, mostra o Joseph Wiertz (1806-
artista elegante, 1865), Autoportrait,
c. 1840-1845. Óleo
envelopado sobre tela, 84,5 x 61,5
em seu casaco cm. Bruxelas, Musées
negro. O olhar Royaux des Beaux-
-Arts de Bélgique.
que mira o
observador é calmo e melancólico – os sombreamentos abaixo das sobrancelhas
corroboram para o peso interior, mas não são tormentos que atrapalham a postura ereta
e a confiança. Sua mão direita segura o caderno de anotações, enquanto podemos ver à
esquerda da composição a paleta pendurada na parede, exibindo as cores utilizadas no
quadro. A composição rigorosa do artista com os contrastes dos verdes e negros e a linha
vertical do lado direito da obra é poderosa. O modo como o autorretrato se ramifica na
cultura é particularmente importante e nos faz duvidar um pouco da ausência de uma
“escola” Chassériau.7

Essa obra de 1835, poderia, certamente, figurar ao lado – por filiação formal – de
retratos como Retrato de um jovem, de c. 1535-1540, Retrato de um homem segurando
uma estatueta, c. 1545-1555, e Lorenzo Lenzi, de 1532, todas de Agnolo, Il Bronzino.
Estas relações, presentes nas primeiras obras
relevantes de Chassériau, foram remarcadas pela
historiografia, muito mais interessada em colocá-
lo ao lado da pintura flamenga do que a florentina
propriamente dita. Uma verdadeira série de retratos
pode ser colocada ao lado do modo chasseriesco.

Os autorretratos de Delacroix, de 1837 pertencentes


ao Louvre e, especialmente aquele dos Uffizi, de
1840 parecem ecoar de certa forma aquele de
Chassériau.8 Todavia, se quisermos uma filiação Figura 8 - Federico de
Madrazo (1815-1894),
da posição do retratado e de seu enquadramento Segismundo Moret,
não poderíamos deixar de citar no mínimo três 1855. Óleo sobre tela,
obras [Figura 6, Figura 7 e Figura 8], nas quais 118 x 90 cm. Madri,
Museo del Prado.

7  Cf. sobretudo. SANDOZ, Marc. Théodore Chassériau: 1819-1856. Catalogue raisonné des peintures et estampes.
1ed. Paris: Arts et Métiers Graphiques, 1974.
8  Seria um desafio extremamente saboroso a indicação da presença da obra de Chassériau na produção de Delacroix.
Toda uma história foi cravada a partir dos desentendimentos de Théodore com seu mestre Ingres, e da aproximação
pela admiração que Chassériau nutria sobre Delacroix. Entretanto, a outra via de aproximação não aparece - ou com
certeza apenas raramente - na historiografia destes artistas.

191
a presença do mestre se faz notória e suficiente para atestar a importância do
autorretrato como uma verdadeira “escola” Chassériau.

No caso da primeira, o retrato de Franz Lizst, realizado por Lehmann apenas quatro
anos após o autorretrato de Chassériau, possui toda a gramática deste último.9 O
enquadramento, a solução cromática e o rigor da pose do retratado parecem oriundos
da paleta de Chassériau. Em graus diversos, tanto Wiertz quanto Federico de Madrazo
parecem igualmente se reportar ao jovem artista. Tratando apenas deste autorretrato,
poderíamos afirmar a importância de um “modo Chassériau” de representação. O
mesmo poderia ser pensado por meio de outras obras do artista, porém, fugiríamos
de nosso propósito neste momento.

A ausência de retratos de Chassériau, de sua intimidade e de seu trabalho no ateliê,


resvala em uma questão delicada de sua biografia. Chassériau, sempre foi considerado
um homem feio, essencialmente galanteador, mas com traços físicos que suas obras
tendem a esmaecer.10 Bouvenne, em suas lembranças do ateliê do artista nos fala de um
Chassériau “alto, um pouco calvo. Tinha muita barba e que era negra e admiravelmente
cuidada.” Outra indicação é no livro de Chevillard, o primeiro biógrafo do pintor:
[...] ele era muito feio, com olhos que se
enchiam de luz com a mínima impressão.
Com um espírito muito original, ele
adorava contar friamente as coisas mais
presunçosas, mas esta impassibilidade
que ele observava no mundo não era a
sua natureza, no fundo impressionável e
violenta.

Seja como for, é impressionante quando


colocamos os autorretratos realizados por
Figura 9 - Alphon- Chassériau ao lado dos retratos realizados
se-Charles Masson
(1824-1898),Portrait por artistas próximos a ele, como Gustave
de Théodore Chassé- Moreau, Alphonse-Charles Masson, ou
riau, 1887. Publicado mesmo Félix Tournachon. Os traços
por Aglaus Bouvenne
em L’Artiste, setembro crioulos são apagados no desenho de
de 1887. Moreau. Com nariz e extremidades afilados
9  Henri Lehmann e Théodore Chassériau foram amigos de ateliê de Ingres. Empreendem uma viagem juntos, em
1840 pela Itália com o intuito de procurar o mestre que era então diretor da Villa Médici, em Roma. A viagem está
documentada por meio de cartas que Lehmann enviava a Marie d’Agout. O retrato do padre Lacordaire realizado por
Chassériau durante a viagem é o motivo do rompimento entre os dois alunos. Entretanto, Lehmann indica o tamanho
de sua admiração pelo amigo nas primeiras cartas enviadas a Marie d’Agout. Cf. Sobretudo, a tese de doutorado: ALVES
DA COSTA JR, Martinho. A figura feminina na obra de Théodore Chassériau. (Tese de doutorado orientada pelo
Prof. Dr. Jorge Coli). Campinas, 2013. Para o retrato de Lacordaire e a relação com Henri Lehmann: ALVES DA COS-
TA JR, Martinho. O retrato do Padre Lacordaire por Chassériau. IX EHA – Encontro de História da Arte. Campinas,
vol. 1, 2013. pp. 268-272. Para as cartas entre Henri Lehmann e Chassériau: JOUBERT, Solange. Une correspondance
romantique : Madame d’Agoult, Liszt, Henri Lehmann. Paris: Flammarion, 1947.
10 Provavelmente, o único a encarar esta questão com rigor acadêmico tenha sido Bruno Chenique em texto apresen-
tado no colóquio sobre o artista no momento da grande retrospectiva em 2002. CHENIQUE, Bruno. Chassériau: la
haine des femmes. Chassériau (1819-1856): Un autre romantisme. Actes du colloque. Paris, RMN, 2002. pp. 101-134.
Ver também as altercadas do pintor com Victor Hugo que partilhava o amor de Alice Ozy. Cf. ALVES DA COSTA JR,
Martinho, op. cit.

192
e olhos muitos alongados, o retratado parece fazer jus às descrições contemporâneas
apenas pela aparente calvície e a barba por fazer. No desenho de Félix Nadar, por sua
vez, o artista aparece como um andarilho, no qual os traços do rosto são diversos do
anterior, nariz protuberante e cabelos e barba encaracolados. Estas características são
ainda mais salientadas no desenho de Alphonse-Charles Masson [Figura 9], em que
o artista aparece plenamente com estes atributos.

Talvez o autorretrato de Chassériau de 1838 [Figura 5], de modo muito esvanecido,


apresente algumas destas particularidades. Esta obra certamente é importante para
nossa discussão. Empunhando pinceis, a paleta e um repose-main em seu ateliê, o
artista encara o observador, ou antes, sua própria imagem. Vemos ladeando o artista
duas imagens. A da direita, uma obra não identificada e possivelmente um estudo a
partir dos moldes em gesso que ele possuía no local de trabalho. A da esquerda, nos
confirma a datação da obra: trata-se de La Vierge, que foi recusada pelo júri do salão
em 1838.

Entretanto, a partir da publicação das cartas do pintor, estabelecidas pela sociedade


de Les Amis de Chassériau,11 é possível perceber e confirmar a forte presença de
seu irmão mais velho na elaboração da gênese do ateliê. O artista viaja em 1836,
passando uma temporada com seu primo em Marseille. Como em todas suas viagens,
Chassériau escreve abundantemente para seus familiares, que respondem com a
mesma frequência: “[...] nós ainda estamos realizando a mudança, você encontrará
um quarto bem instalado. Os quadros foram todos envelopados.”12 Neste momento,
seu irmão, Frédéric almeja que seu protegido trabalhe em casa. Esta perspectiva se
altera aos poucos, e a necessidade do artista ter o seu lugar, independente do círculo
familiar se consolida. “[...] nós mudaremos no fim da primeira quinzena de agosto. Seu
quarto estará ótimo quando retornar. Seria necessário procurar um ateliê? Eu acredito
que sim.”13 Certamente, Frédéric estava preocupado com a inserção de Théodore no
meio artístico, sendo respeitado e criando visibilidade de uma identidade como um
verdadeiro artista.

Chassériau sempre teve o apoio incondicional da família para seguir sua carreira. Seu
irmão ou seu pai nunca duvidaram que os esforços seriam recompensados. Théodore,
por sua vez, mostra-se constantemente ansioso para que seu novo espaço seja de
seu agrado: “[...] terminei meus estudos e o esboço de meu retrato. Espero que meu
novo ateliê seja bom e grande.”14 Em seu último ateliê, o artista, que tinha conseguido
realizar seus caprichos, mantinha uma pequena porta nos fundos, estratégica para
suas amantes poderem sair rapidamente do local, sem serem percebidas.15
11 A maioria das cartas de Chassériau era de posse de seu primo, o Baron Arthur Chassériau. Muitas delas haviam
sido utilizadas por Léonce Benedicte em seu livro (que hoje continua como a publicação mais relevante sobre o pintor)
e Valbert Chevillart, seu primeiro biógrafo. Entretanto, tal documentação era apenas uma pequena parte, sendo que
sua maioria havia sido depositada na Cour de Comptes em Paris, posteriormente consumida pelas chamas junto com
o prédio incendiado pela Comuna de 1871. Recentemente, uma publicação encontrou o conjunto de cartas utilizadas
em 1933/1934 por Benedicte. Cf. NOUVION, Jean-Baptiste. Chassériau: Correspondance oubliée. Paris: Les amis de
Chassériau, 2014.
12 NOUVION, Jean-Baptise. Op. cit.. p.47.
13 Idem, p. 50.
14 Idem, p. 78.
15 Esta anedota é contada por Aglaus Bouvenne que se encontra com Chassériau em seu ateliê. O artista teria explicado

193
Embora estas cartas assimilem bem a ideia da procura
por um local certo, Chassériau passou por diversos
ateliês na cidade, um na Rue Saint-Augustin, outro
na Rue Saint Georges, até firmar-se definitivamente
na Avenue Frochot [Figura 10]. Local emblemático
na geografia dos ateliês na cidade de Paris, que
serviu também como escolha para Gustave Moreau,16
Charles Hoguet (cujo ateliê precedeu imediatamente
o de Chassériau), Toulouse-Lautrec, Paul Merwart,
além de Jean Renoir. Deste local, dois importantes
relatos foram deixados no momento em que o
artista falece em 1856: os de Théophile Gautier e
Aglaus Bouvenne. Provavelmente as personalidades
mais próximas e que, indubitavelmente, apoiaram a
carreira do artista desde o primeiro momento em que
entraram em contato com Chassériau.

O primeiro entra em sintonia com Chassériau em


1839, momento em que apresenta no Salão Vênus
Marine e Suzanne et les veillards. Gautier faz uma
crítica elogiosa das obras e cria uma amizade que
durará por toda a vida de Chassériau. Em 1857,
Figura 10 - Vista da pouco tempo depois da morte do amigo, Gautier deixa para L’Artiste seu precioso
Avenue Frochot. Foto- testemunho do ateliê do amigo: L’atelier de feu de Théodore Chassériau.17
grafia do autor, 2010
Escrito no calor dos acontecimentos, o texto de Gautier tem um tom fortemente
emocional. Sentindo a falta do companheiro, o ateliê visitado por Gautier parece
fantasmal em todo o vazio da ausência. Chassériau o encontra, e ele se comporta
como um forte conhecedor de todos aqueles objetos que logo estariam em leilão:
[...] no pequeno sofá em que se repousava algumas vezes, os iatagãs, os kindjalls, os
punhais persas, as armas circassianas, os fuzis árabes, as velhas lâminas de Damasco
nigeladas com versos do Corão, as armas de fogo embelezadas com prata e com coral,
todo este charmoso luxo bárbaro, amor do pintor, se agrupava ainda como troféu ao longo
dos muros; de modo negligentes colocados as roupas bordadas de prata e ouro, davam aos
olhos essa festa de cores pelas quais o artista tentava esquecer as tintas neutras de nossas

o uso daquela portinhola no fundo do ateliê e camuflada com outras telas: “Eu fortemente intrigado pedia ao pintor
alguma explicação. Sorrindo finamente, ele introduziu a chave na fechadura, e a janela, que não tinha 40 centímetros
acima do solo, transformou-se em uma porta que dá acesso a parte exterior’. Cf. BOUVENNE, Aglaus. Théodore
Chassériau: Souvenirs et Indiscrétions. Préface de Carmen Miranda-Levy et avertissement de Jean-Baptiste Nouvion.
Paris : Amis de Théodore Chassériau, 2011, fac-símile do original de 1884.
16 Moreau, que tinha absoluta admiração pelo artista, decide instalar seu ateliê próximo ao amigo, que no início de
sua carreira era um verdadeiro tutor. Anos mais tarde seus parentes compram a casa que se tornará emblemática como
ateliê e depois o Musée National Gustave Moreau, na rua Rochefoucauld. Cf. ALVES DA COSTA JR., Martinho. A pre-
sença de Chassériau em Moreau. Campinas, Revista de História da Arte e Arqueologia, vol. 1. N. 14. 2013. pp 5-20.
17  GAUTIER, Théophile. L’Atelier de feu de Théodore Chassériau. L’Artiste: journal de la littérature et des beaux-
arts. Paris. 15 mar. 1857.

194
roupas tristes e parecia reter entre suas dobras amassadas e espelhadas os raios do sol da
África.18

Toda a inflexão do testemunho leva à compreensão do ateliê de Chassériau como este


lugar essencialmente orientalista, cheio de vida e dos percursos de suas viagens.

Entretanto, o relato de Aglaus Bouvenne diferencia-se um pouco e talvez complete


a imagem do local: “Diante de si, o olho do visitante encontrava na sequência uma
modelagem, grande como o original da Vênus de Milos. Perto da entrada, à esquerda,
tinha uma porta que dava acesso a uma pequena peça que servia de gabinete ao
artista.” Desta forma o ateliê se mescla, torna-se mais complexo, o emaranhado de
alhures orientais indicado por Gautier se avizinha com os interesses de Chassériau
pela cultura clássica. Admirável para um artista que por muito tempo foi considerado
no entremeio de Delacroix e Ingres – ou mesmo a ponte que une tais escolas –, entre
composições febris e um mundo calmo e domado pelas linhas. Suas obras, assim como
seu estúdio, atestam a importância que estas duas figuras tiveram em sua formação.

O ateliê de Théodore Chassériau, assim como o de Henri Lehmann, certamente


nos diz sobre as produções desses artistas, e também de suas preferências pessoais,
seus segredos: dos artistas em seu local de intimidade, aos quais forçosamente e, aos
poucos, pedimos licença para entrar.

18  Idem, p. 209.

195
196
Casa-jardim-Ateliê:
O espaço para a criação de Visconti

Mirian N. Seraphim 1

O período mais conhecido da carreira de Eliseu d’Angelo Visconti (Giffoni Valle


Piana, Salerno, Itália, 1866 – Rio de Janeiro, 1944) é aquele passado em Paris
(1893-1900), como pensionista da recém-criada República Brasileira, quando
pintou algumas de suas obras-primas. Seu ateliê desse período, e também os de
outras ocasiões em que viveu em Paris, constituem o tema abordado por Ana M.
T. Cavalcanti, nesta publicação. Visconti, porém, nunca restringiu seu trabalho às
quatro paredes reservadas à criação de suas obras. Sendo assim, quando na França,
pintou magníficas paisagens e cenas de gênero nos jardins parisienses e no entorno
da propriedade da família de sua esposa, em Saint Hubert, nos arredores de Paris. No
presente texto, contudo, vamos nos ater aos espaços de criação de Visconti no Brasil.

Desde que era aluno da Academia Imperial das Belas Artes (AIBA), na qual ingressou
em 1885, Eliseu Visconti já demonstrava sua inclinação para as paisagens domésticas:
casas, quintais, jardins. A sua mais antiga pintura a óleo, que se tem notícia, é um
recanto do Morro de São Bento (1887),2 que já apresenta essas características. Nascido
na Itália, Eliseu veio para o Brasil com sua irmã Marianella, por influência da baronesa
de Guararema, instalando-se inicialmente na Fazenda São Luiz, de propriedade dos
barões, em São José de Além Paraíba, MG. Um pouco mais tarde mudou-se para o

1 Comitê Brasileiro de História da Arte – CBHA; Projeto Eliseu Visconti, Rio de Janeiro.
2 Todas as pinturas citadas que não estão reproduzidas aqui podem ser encontradas no site oficial do pintor: http://
http://www.eliseuvisconti.com.br, em “Catálogo de obras.”

197
Rio de Janeiro a fim de estudar música, a qual logo deixou para se dedicar à pintura,
matriculando-se primeiramente no Liceu de Artes e Ofícios, em 1882.

Quando já frequentava a Academia, pintou o Antigo palácio da Marquesa de Santos


(c.1888), que pertencia, à época, aos barões de Guararema, mas o fez a partir de um
ângulo em que vemos muito mais o seu jardim do que o edifício, em si. Também datam
desta época suas primeiras obras representando plantas tropicais, como o Mamoeiro
(1889); e de pouco depois, o início da série com o tema das roupas estendidas no varal
(Dia de sol, Andaraí Grande, 1891), na qual Visconti trabalhará até os últimos anos
de sua vida.

A pintura realizada com o cavalete ao ar livre foi uma das reivindicações da reforma
pretendida pelos “insidiosos” professores e “insubordinados” alunos da AIBA, em
1890.3 Dentre os alunos que frequentaram o Ateliê Livre, enquanto aguardavam as
reformas solicitadas ao governo, Visconti foi destaque na exposição de encerramento
daquele ateliê, com paisagens que chamaram a atenção pela tonalidade do verde.4
Após a instituição da Escola Nacional de Belas Artes (ENBA), ressurgem os salões
anuais, outra das reivindicações dos alunos e professores da antiga Academia. Na
primeira Exposição Geral de Belas Artes (EGBA) da era republicana, em 1894, ao lado
dos nus enviados por Visconti de Paris, onde o pintor já se encontrava no gozo do seu
prêmio de viagem, foram expostas paisagens que ele realizou ainda no Rio de Janeiro,
antes de viajar, dentre as quais As lavadeiras (1891). Assim se referiu a algumas delas,
um cronista da exposição: “N’estas tres télas o que eu noto como dominante é uma
grande belleza de colorido, uma cuidada execução das folhas e mesmo das arvores,
uma esplendida escolha do verde, que é caso raro na exposição, o verde d’aqui, o
verde verdadeiro, considerada a luz como exacta.”5

Esse depoimento chama a atenção pelo diferencial que representavam em relação às


demais paisagens expostas, demonstrando desde cedo o amor de Visconti pela luz e
cores tropicais, observados ao natural. Essa prática o acompanhou durante toda a sua
carreira, e embora nunca tivesse deixado sua produção nos ateliês, onde executava
em especial os retratos e as composições decorativas por encomenda pública, seguiu
pintando cada vez mais ao ar livre, notadamente nos arredores de suas residências.

A especial relação entre o ateliê e a casa do pintor se evidencia na própria construção


do edifício da Avenida Mem de Sá, n° 60. Durante sua segunda estada em Paris,
quando Visconti para lá retornou para estar perto de sua companheira, a francesa
Louise Palombe, e da filha de ambos – Yvonne – que nascera em 1901, o pintor realizou
uma de suas obras primas, o Retrato da escultora Nicolina Vaz de Assis (1905). Já de
volta ao Rio de Janeiro, para instalar suas primeiras decorações do Teatro Municipal,
no edifício que estava ainda em construção, Visconti compareceu a um cartório

3  Cf. SERAPHIM, Mirian N. 1890 – o primeiro ano da república agita o meio artístico brasileiro e marca a carreira de
Eliseu Visconti. In: DAZZI, Camila; VALLE, Arthur; CAVALCANI, Ana (Org.). Oitocentos: Arte Brasileira do Impé-
rio à Primeira República. Rio de Janeiro: EBA-UFRJ/DezenoveVinte, 2008, p. 257-272.
4  J. R. Sete dias. O Paiz. Rio de Janeiro, 14 dez. 1890, p. 1.
5  J. B. A Exposição de Bellas Artes. A Noticia, Rio de Janeiro, 1º e 2 out 1894, p. 1.

198
com Nicolina, no dia 7 de dezembro
de 1907, para lavrarem a escritura do
terreno que ela lhe vendera, à Avenida
Mem de Sá.

Em fevereiro de 1908, a construção já


havia se iniciado, de acordo com uma
carta que Louise enviou da França,
“surpresa em saber que Visconti já
providenciava, no mesmo prédio
que abrigaria o ateliê do artista, uma
moradia para a família.”6 O objetivo
de Visconti era justamente viabilizar
todas as condições de trazer para junto
de si a filha e a companheira, sendo que
esta ainda relutava em vir para o Brasil, um país desconhecido e distante, deixando a Figura 1 - Foto da Av.
mãe preocupada e também abalada por sua recente viuvez. “O ateliê seria instalado Mem de Sá, com o ate-
liê de Visconti (prédio
no segundo andar, acima do apartamento destinado ao casal, e de duas lojas no
mais alto no centro da
térreo, cujos aluguéis garantiriam uma renda extra.”7 A construção ficou pronta em foto), 1908. Rio de Ja-
agosto daquele mesmo ano e o prédio, que se destacava dos vizinhos por sua altura, neiro, Álbum dos ar-
quivos da família Vis-
pode ser visto ao centro de uma fotografia da época, com os Arcos da Lapa ao fundo
conti. Fonte: Tobias S.
e o próprio pintor na sacada do ateliê [Figura 1]. Notem-se as mudas de árvores Visconti, 2009.
recentemente plantadas, tanto ao longo da calçada quanto no meio da avenida. Uma
dedicatória datada de 25 de agosto de 1908 nos informa que, imediatamente, Visconti
enviou uma foto do interior do seu ateliê para Louise,8 na qual ele aparece posando
ao lado do grande retrato de um clérigo, até hoje não localizado.

Visconti só conseguiu embarcar para Paris em novembro, após o término do ano


letivo da ENBA, onde havia assumido como professor, em março, sua cadeira de
Pintura. Na França, Eliseu casa-se com Louise em 14 de janeiro de 1909, e finalmente
consegue trazer a família para viver com ele no Rio de Janeiro. O pintor trata,
então, de apresentar esposa e filha à sociedade carioca, através do lindo quadro hoje
conhecido como A rosa, mas que foi inicialmente intitulado Minha família (1909), e
assim registrado na 16ª EGBA, naquele ano. Inicia-se para Visconti um período de
estabilidade e tranquila produtividade, reunindo em um só lugar tudo o que daria
significado à sua vida, como ele mesmo testemunhou: “A família, primeiro; a arte,
depois. Uma não é incompatível com a outra, como muitos pensam. Ao contrário: as
duas se completam.”9

6  VISCONTI, Tobias Stourdzé. Uma trajetória pioneira. In: VISCONTI, Tobias Stourdzé (Org.) Eliseu Visconti: a arte
em movimento. Rio de Janeiro: Hólos, 2012, p. 30.
7  Idem, ibidem.
8  A ampla maioria das fotografias citadas que não estão reproduzidas aqui podem ser vistas no site oficial do pintor:
http://www.eliseuvisconti.com.br, em “Cronologia/Vida artística;” ou no livro Eliseu Visconti: a arte em movimento.
9  GOMES, Tapajós. Os Nomes Gloriosos da Pintura Brasileira: Elyseu Visconti. Correio da Manhã, (Suplemento de
Literatura e Artes) Rio de Janeiro, 15 dez. 1935, p. 2.

199
Outra bela fotografia do interior do ateliê sugere a conclusão da pintura Minha
família, que aparece ao fundo, pois Louise e Yvonne usam as mesmas roupas com
as quais estão vestidas no retrato. A foto testemunha desses primeiros tempos da
família instalada no Brasil e do ambiente de trabalho de Visconti, sendo que grandes
telas encostadas à parede com o verso à mostra instigam nossa curiosidade. Ainda da
mesma época, outra fotografia do interior do ateliê, que registra o painel decorativo
O progresso, encomendado quando o edifício da Biblioteca Nacional ainda estava em
construção, mostra a menina Yvonne sentada de perfil em primeiro plano, e atrás
da sua cabeça, um pequeno quadro representando o pintor em ação, observado por
Louise e Yvonne, que foi intitulado Pintando com a família (c.1909).

No ateliê da Mem de Sá, Visconti recebia críticos, jornalistas, fotógrafos, colegas, e


escritores que o entrevistavam, como: Angyone Costa (1926); Tapajós Gomes (1935);
Fléxa Ribeiro (1938) e Frederico Barata (1942). O primeiro realizou uma série de
entrevistas com o título “Na intimidade dos nossos artistas,” publicadas inicialmente
em edições diversas de O Jornal e depois reunidas no livro A inquietação das abelhas
(1927). Dois aspectos do ateliê de Visconti foram reproduzidos nesse jornal carioca,
junto à sua entrevista por Angyone Costa, publicada em 11 de julho de 1926. Uma
das fotografias mostra Visconti sentado diante de sua escrivaninha, com papéis
espalhados sobre ela, e outros também afixados
na parede, ao lado de recortes de jornal e
pequenas pinturas.

Na planta baixa do segundo andar do prédio


da Mem de Sá [Figura 2], podemos observar
o imenso salão com uma grande claraboia
quase ao centro, e um pequeno depósito ao
fundo e à esquerda. Notam-se também as duas
sacadas no ateliê – uma na fachada e outra
que se abre na parede dos fundos, das quais o
pintor tinha vistas privilegiadas de frente para
dois morros cariocas. Na entrevista concedida
a Angyone Costa, ao ser perguntado sobre
as fases de sua carreira, Visconti fala sobre o
novo, a criação: “O espirito quer renovação e
é a natureza que nos impelle a esse movimento
Figura 2 - Planta baixa do esthetico universal.” E para ilustrar seu argumento, demonstra o quanto o seu ateliê
10

2º andar do prédio da Av. o inspirava:


Mem de Sá, 1908. Rio de
Janeiro, Álbum dos arqui- E virando-se, risonho e com a physionomia clareada por um vivo lampejo de inteligência,
vos da família Visconti. diz, mostrando atravez do vidro a paysagem:
Fonte: Tobias S. Visconti,
2010. − Veja se é possível parar, retrogradar, deante de semelhante quadro...

O “atelier” está situado entre dois morros. De um lado, estende-se o casario, num
desdobramento harmonioso, pela encosta de Santa Thereza. Do outro, o morro de Santo

10 COSTA, Angyone. A inquietação das abelhas. Rio de Janeiro: Pimenta de Mello, 1927, p. 81.

200
Antonio, já muito gasto, muito mutilado, mas em todo o caso com belleza bastante para
inspirar o amor á vida e ao movimento, que são a eterna fonte do sentimento.

Como ficar “passadista”?

Na impossibilidade de uma directriz “futurista”, sejamos, ao menos, “presentista”, que é


o que procuro, obscuramente, ser.11

Muitas das lindas paisagens de Visconti, ainda que a partir da observação direta da
natureza, foram, na verdade, realizadas do conforto de seu ateliê. Como talvez, o
Recanto do morro de Santo Antonio, cujo
tema é mais uma vez o da lavadeira e suas
roupas secando no varal, e certamente, a
Paisagem de Santa Teresa [Figura 3], em que
se pode ver, no alto, a torre de uma igreja.
Uma foto do Rio antigo, na qual aparece
parte dos arcos em primeiro plano, no canto
inferior esquerdo, registra provavelmente a
mesma vista que Visconti teria da sacada da
frente do seu ateliê, sendo apenas, o ângulo
do pintor, tomado mais de baixo. A Igreja de
Santa Teresa foi também por diversas vezes
o tema central de pinturas de Visconti, que
a registrou em diferentes horários do dia,12
captando assim a luz do sol quando insidia
na fachada ou na parede lateral da torre.
Figura 3 - Eliseu d’An-
A planta baixa do ateliê revela também a proporção da claraboia em relação ao gelo Visconti (1866-
tamanho do salão, indicando a preocupação de Visconti com a entrada da luz solar, 1944), Paisagem de
para tornar o seu trabalho o mais natural possível. O tamanho dessa claraboia Santa Teresa, 1910.
Óleo sobre tela, 43,5 x
acabou gerando um calor excessivo, perceptível também no andar de baixo, onde 52,5 cm. Salvador, co-
ficava o apartamento, que acabou servindo de residência para a família Visconti por leção particular. Foto:
pouco tempo. Não habituadas ao calor tropical, as francesas Louise e Yvonne não se Galeria Paulo Darzé,
2009.
adaptaram ao apartamento, levando Visconti a providenciar outra habitação já no
ano seguinte.

No entanto, apesar do desconforto com o calor intenso, Visconti seguiu trabalhando


nesse ateliê até o final de sua vida. Várias fotografias do seu interior, arquivadas pela
família, auxiliam no estudo da obra de Visconti. Algumas delas testemunham sobre o
processo criativo do mestre, que sempre estudava cuidadosamente antes da realização
das grandes composições, em especial de painéis decorativos encomendados. No álbum
do artista guardado pela família há duas fotografias de políticos contemporâneos,
que claramente foram realizadas para evitar longas sessões em pose imóvel. Elas
serviram de modelo para a grande composição Alegoria à Lei Orçamentária (1913),

11  Idem, p. 81, 82.


12  Uma do acervo do MNBA, c.1927, e outra de coleção particular, 1928, ambas com o título Igreja de Santa Teresa.

201
que, segundo a legenda que acompanha a pintura em sua exposição permanente no
Museu Histórico da Cidade do Rio de Janeiro, foi encomendada a Visconti como
Homenagem dos funcionários da prefeitura ao então prefeito Bento Ribeiro (1910-1914),
em 29 de agosto de 1913, data da assinatura da Lei Orçamentária que dava aumento aos
funcionários. Figuras retratadas: Mal. Hermes da Fonseca – Presidente da República;
General Bento Ribeiro – Prefeito do Distrito Federal; Dr. Osório de Almeida – Pres. do
Conselho Municipal.

Nas fotos, o Marechal Hermes da Fonseca e o General Bento Ribeiro, posando no


atelier de Visconti, estão com os mesmos trajes e na exata posição em que foram
retratados na pintura, apenas em ângulos ligeiramente diferentes. Na fotografia de
Bento Ribeiro, nota-se ao fundo, na parede do ateliê, uma cabeça pintada, cujo original
até bem pouco tempo não era localizado. Essa foto permitiu a autenticação da pintura,
pela correspondência das imagens, quando sua proprietária entrou em contato com
o Projeto Eliseu Visconti. A partir do título registrado em plaqueta metálica afixada
em sua moldura, pudemos identifica-la como uma das pinturas listadas no catálogo
da 20ª EGBA, de 1913, que ainda não era conhecida. Trata-se daquela registrada sob o
nº 211, Cabeça de Mártir (c.1912) e pode-se comprovar esse reconhecimento através
da descrição publicada por Laudelino Freire, em seus comentários sobre a exposição,
assinando com suas iniciais:
A figura desde logo revela ter sido feita por mão habituada ao genero. Representa uma
cabeça de mulher exageradamente magra, e intitula-se Cabeça de martyr. Na pequena
parte do collo, que póde ser observada, ha muita belleza; o collorido é agradavel, e os
cabellos estão pintados com maestria admiraveis.13

A outra fotografia reproduzida junto à entrevista de Angyone Costa foi realizada num
canto do grande ateliê, onde Visconti posa, de pé, ao lado de uma pintura, intitulada em
seu atual acervo A família do artista (c.1918), que a retrata agora completa, acrescida
dos dois meninos, Tobias e Afonso, nascidos em 1910 e 1915, respectivamente. Em
volta da grande tela aparecem diversas pequenas pinturas ainda não localizadas e mais
uma grande e bela cena com roupas no varal, que pode ser vista, em parte, no alto à
esquerda. A partir desta foto, também foi possível corrigir a datação aproximada da
pintura Revoada de pombos, que por sua fatura moderna foi contada entre as últimas
obras de Visconti, portanto, de 1944.14 Como esta pintura pode ser vista em parte,
mas perfeitamente reconhecível, logo atrás de Visconti, nesta fotografia de 1926, não
resta dúvida de que ela foi criada quase vinte anos antes do que se imaginava.

Esta paisagem faz parte de uma série de pinturas pequenas e médias, registrando
aspectos do Morro de Santo Antonio, vistos a partir da sacada dos fundos do atelier
de Visconti. Cinco pinturas menores, com base em madeira, registram detalhes da
encosta e do alto do morro, recortados contra o céu. Uma das telas de tamanho
médio (80 x 60 cm) – Morro de Santo Antonio – tem como elementos principais duas
construções e dois pinheiros logo no primeiro plano, e apresenta, como as paisagens
13 L. F. Salão de 1913 – III. O Paiz (Artes e Artistas), Rio de Janeiro, 10 set. 1913, p. 3.
14 SERAPHIM, Mirian N. A carreira artística. In: VISCONTI, Tobias Stourdzé (Org.) Eliseu Visconti: a arte em movi-
mento. Rio de Janeiro: Hólos, 2012, p. 64-66.

202
menores, um tom predominantemente azulado e os contornos
suavizados pelos efeitos da atmosfera. Revoada de pombos tem
sua composição centralizada num edifício branco, ladeado à
direita por dois pinheiros e à esquerda por um arbusto florido.
Logo abaixo, é cortada horizontalmente por um telhado em
primeiro plano, sobre o qual se encontra um pequeno grupo
de pombos.

A maior de todas as paisagens conhecidas da mesma vista –


Pombos do meu ateliê, de 1927 [Figura 4] – repete, embora
em médio plano, os mesmos trechos representados nas duas
pinturas anteriores, que têm os dois pinheiros como elemento
comum. Abaixo, em primeiríssimo plano na pintura maior,
aparece parte da grade da sacada dos fundos do atelier de
Visconti; acima e através dela vemos uma revoada de pombos,
enquanto outro grupo das mesmas aves descansa no beiral do
edifício mais próximo. É curioso observar também, que os
contornos do morro, com as silhuetas de duas altas palmeiras
e de outra árvore mais baixa destacadas contra o céu claro,
registrados em uma das pinturas menores, aparecem também
Figura 4 - Eliseu d’Ange-
claramente na composição maior. Nesta pintura pequena – Morro de Santo Antonio lo Visconti (1866-1944),
com palmeiras – vemos, ainda, o telhado da construção central de Pombos do meu Pombos do meu ateliê,
ateliê, assim como os dois pinheiros observados nas três pinturas maiores. Não se 1927. Óleo sobre tela,
100 x 74 cm. Rio de Ja-
pode afirmar que todas as pinturas pequenas e médias representando trechos do neiro, Coleção Bradesco
Morro de Santo Antonio, tenham sido criadas visando aquela de maiores proporções, de Arte Brasileira. Foto:
mas certamente acabaram funcionando como estudos preparatórios, e todas foram Photo Sintese Fotografia,
2011.
realizadas a partir da sacada dos fundos do ateliê da Mem de Sá. Assim, não só
Visconti se utilizava muito dos jardins e entornos de suas casas como ateliê, mas
também usava o próprio ateliê para criar paisagens a partir da observação direta da
natureza.

O grande Augusto Malta (1864-1957) fotografou Visconti em seu ateliê, registrando o


pintor ao lado de cartões preparatórios para os painéis decorativos do foyer do Teatro
Municipal do Rio de Janeiro.
Outra foto da mesma autoria é
bastante reveladora, pois mostra
o pintor de pé, diante do seu
cavalete, com a paleta e pincel nas
mãos, a uma distância que nos
permite visualizar grande parte Figura 5 - Augusto Mal-
do interior do ateliê da Mem de ta (1864-1957), Foto do
ateliê da Av. Mem de Sá,
Sá, com as paredes repletas de com Visconti ao cavalete,
obras [Figura 5]. Esta fotografia c. 1930. Rio de Janeiro,
tem sua data aproximada pelas Álbum dos arquivos da
família Visconti. Fonte:
diversas pinturas conhecidas Tobias S. Visconti, 2010.

203
que se espalham pelas paredes, em grande parte, da década de 1920. Porém, duas
das pinturas que conseguimos identificar indicam o ano de 1930: o Retrato de
um Comendador, que tem essa data registrada sobre a tela, e uma pintura que foi
reproduzida no Suplemento do Correio da Manhã, de 10 de agosto de 1930. Esta
participou da 37ª EGBA, naquele ano, e apesar do título registrado naquele evento –
A casa –, trata-se de mais um retrato em grupo de Louise e os três filhos do casal. O
mais curioso sobre este retrato, é que em algum momento, antes de 1949, por motivo
ignorado, a tela foi dividida em três;15 uma delas com o retrato da mãe e do filho
caçula, Afonso; outra com o retrato de Yvonne e outra representando Tobias. Embora
as duas pinturas de 1930 só possam ser vistas pela metade – A casa, na margem
esquerda da fotografia e o Retrato de um comendador, atrás daquela – não resta a
menor dúvida na identificação de ambas.

Ao lado das obras conhecidas presentes


nesta foto estão várias pequenas pinturas
não identificadas e alguns retratos
de tamanho médio que não foram
ainda localizados. Mas a pintura mais
importante, também nesta condição, é
uma grande paisagem representando
os Arcos da Lapa, com o bondinho que
desliza sobre os trilhos no alto do antigo
aqueduto, os telhados do casario abaixo
e três esguias palmeiras imperiais que se
sobressaem a eles. Desta bela composição
conhecemos no original apenas um
pequeno estudo bastante semelhante
[Figura 6], mas de proporções bem
Figura 6 - Eliseu d’Ange- reduzidas em relação à composição final, que se encontrava no ateliê, e tem suas
lo Visconti (1866-1944), medidas – 80 x 130 cm – conhecidas pelo seu registro no catálogo da grande Exposição
Arcos da Lapa, c. 1925.
Óleo sobre tela, 38 x 54 Retrospectiva de Eliseu Visconti, realizada em novembro de 1949, no Museu Nacional
cm. São Paulo, coleção de Belas Artes (MNBA), com o título Os arcos e a data de 1925. Pela pequena angulação
particular. Foto: Sergio da linha do topo do aqueduto em relação à margem horizontal da tela, concluímos
Guerini, 2011.
que esta composição foi realizada a partir da sacada dos fundos do ateliê, estando o
pintor voltado para a lateral do edifício. Como na sacada o espaço devia ser bastante
reduzido, Visconti, provavelmente, teria feito o estudo menor com a vista diante de si,
para depois ampliar a composição em uma tela maior, pintada dentro do ateliê.

Em 1935, Tapajós Gomes também publicava uma série de entrevistas, esta intitulada
“Os nomes gloriosos da pintura Brasileira”.,no Correio da Manhã. A entrevista de
Visconti realizada por ele tinha um objetivo especial, e nos oferece um vislumbre do
ambiente de trabalho do pintor:

15 Na Exposição Retrospectiva de 1949, no MNBA, dois desses fragmentos foram expostos como pinturas indepen-
dentes.

204
Também eu quiz ver o trabalho monumental que mestre Visconti está acabando em seu
atelier da Avenida Mem de Sá. Dentro de muito poucos dias, será elle colocado ao regalo
do publico, pois trata-se do frizo decorativo que vae ser collocado no alto do arco da bocca
de scena do Theatro Municipal, em substituição do que lá existiu […], e que foi destruido
com as obras de ampliação e modernisação do theatro. […]

O atelier de Elyseu Visconti é talvez o maior que conheço. Mede 12m por 10m. E, apezar
disso, foi pequeno para conter a enorme tela em que o frizo decorativo ia ser pintado.
Houve necessidade de estical-a em curva em duas paredes. E desde então, ha cerca de dois
annos, vem o mestre trabalhando nessa obra monumental, que a pintura brasileira póde,
desde já, inscrever como uma das que mais a impõem e glorificam.16

De acordo com os documentos guardados pela família Visconti, o terreno que o


pintor adquiriu de Nicolina Vaz de Assis, tinha 154 m2 de área, e ali foi construído o
edifício, no qual cada andar tinha 139,50 m2. Em 1910, Visconti adquiriu de Maria
Ignacia de Lima outro terreno aos fundos do ateliê, com mais 149 m2, que foi anexado
ao adquirido em 1907. Todas as dimensões informadas na carta de aforamento, que
dava a posse do imóvel a Louise Visconti após a morte de Eliseu, estão anotadas numa
planta baixa esboçada, que mostra os dois terrenos contíguos, cada um em formato
de trapézio irregular. Mas não se tem notícia de que Visconti tenha construído mais
nada no novo terreno. Talvez sentisse falta de quintal, tantas vezes representado com
ternura por ele. Duas pinturas suas, sendo a menor – Fundo de quintal (c.1922) –
provável estudo para a maior – Estendendo roupa (c.1922) –, pelo ângulo acentuado
de cima para baixo, possivelmente retratem a vista que Visconti tinha desse terreno
ao fundo, a partir da sacada do ateliê.

Comemorando o cinquentenário da primeira premiação de viagem à Europa da era


republicana, conquistada por Visconti, O Jornal de 8 de novembro de 1942 reproduziu,
junto a um capítulo inédito da biografia que Frederico Barata estava escrevendo,17
uma foto do pintor em seu ateliê retocando uma pintura realizada quando ele
ainda era aluno da AIBA, Trecho de São Cristóvão (c.1888). A fotografia registra,
assim, um hábito de Visconti que nunca seria abandonado, devido ao seu constante
perfeccionismo. As pinturas que ficavam em seu ateliê podiam receber retoques anos
mais tarde, e assim, serem assinadas mais de uma vez, como uma Figura feminina,
sem data, mas com uma assinatura no canto superior direito e outra no canto inferior
esquerdo. Tobias, o filho de Visconti, contando sobre o temperamento de seu pai,
revela também sua relação com o ateliê:
Apesar de sua emotividade e sensibilidade à flor da pele, não lhe faltava coragem física,
que chegava às vezes até a temeridade. Dificilmente acreditava na possibilidade de um
perigo real. [...]

Por ocasião da Revolta da Armada no Rio, em novembro de 1910 (eu tinha então 4
meses), os revoltosos bombardearam a cidade. Minha mãe contava que, nesse dia, não

16 GOMES, Tapajós. Opus cit., p. 1.


17 BARATA, Frederico. Eliseu Visconti e seu tempo. Rio de Janeiro: Zelio Valverde, 1944, 222 p.

205
houve ninguém que o fizesse sair do seu ateliê na Avenida Mem de Sá n° 60, o qual sendo
mais alto que os prédios da vizinhança, oferecia um alvo fácil.18

Neste seu ateliê, Visconti pesquisou, sonhou, estudou, criou, esboçou e pintou
incessantemente, realizando tudo aquilo que dava sentido à sua existência. Até mesmo
os acontecimentos relacionados à sua morte estão intimamente ligados ao ambiente
de trabalho planejado e construído por ele com tanto carinho, e são contados em
detalhes pelo seu neto:
Em julho de 1944, o artista sofre um assalto em seu ateliê da Avenida Mem de Sá. Foi
encontrado desacordado, ferido na cabeça e sem os pertences – relógio, documentos
de identidade e dinheiro. Quando pôde falar, Visconti afirmou ter sido procurado por
dois homens que lhe teriam oferecido frutas e com os quais teria conversado por algum
tempo. Depois disso, não recordava de nada, presumindo-se que tenha sido atacado pelas
costas. Durante dois meses permaneceu Eliseu Visconti em agonia, dos quais quinze dias
inconsciente, encerrado em uma câmara de respiração artificial.
Figura 7 – Foto da fa-
mília Visconti diante do Surpreendentemente, ergueu-se de novo por cerca de três semanas. Em entrevista ao
portão da casa em Co-
jornal O Globo, confirmou a agressão e prometeu empenho para elucidar o crime. Lúcido,
pacabana, c. 1940. Rio
de Janeiro, Álbum dos cheio de ideias e planos, inquieto e, com certeza, ávido por novas experiências, repetia a
arquivos da família Vis- todo instante a seus familiares: “Nasci de novo! Agora é que vou começar a pintar, vocês
conti. Fonte: Tobias S. vão ver!”
Visconti, 2009.
Agia como se toda a obra que produziu ainda não o tivesse satisfeito.
Dirigiu-se novamente ao seu ateliê, subindo sozinho as escadas e lá,
segundo o testemunho de Frederico Barata, que o acompanhou nesta
última viagem ao seu templo, “parecia que se transmudara por efeito
de um milagre. Só para aquele mundo lhe valia realmente a vida”. A
ressurreição no entanto durou pouco. Após recaída, falece o artista
em 15 de outubro de 1944, aos 78 anos de idade.19

Infelizmente, esse edifício onde só o salão do ateliê tinha mais


de 100 m2, descontando-se a área do depósito, e sete metros de
pé direito, foi demolido para o alargamento da Rua dos Arcos,
num processo de desapropriação que se iniciou em 1968, tendo
a família recebido a indenização apenas em 1976. A demolição
alcançou até o n° 62, pois o edifício de n° 64 e os dois seguintes
ainda estão de pé e conservados com suas fachadas originais,
como se pode observar comparando-os com a foto de 1908
[Figura 1].

Como a claraboia do ateliê fornecia um calor excessivo até


ao apartamento no andar abaixo, Visconti teve logo que
providenciar uma nova morada para a família, adquirindo

18 VISCONTI, Tobias d’Angelo. Personalidade. In: VISCONTI, Tobias Stourdzé (Org.) Eliseu Visconti: a arte em
movimento. Rio de Janeiro: Hólos, 2012, p. 58.
19  VISCONTI, Tobias Stourdzé. Opus cit., p. 53, 54.

206
um terreno em Copacabana, na então Ladeira do Barroso, hoje dos Tabajaras. Seu
neto relata, em livro sobre o pintor recém-publicado:
Tobias, o segundo filho de Visconti e Louise, nasce em 30 de julho de 1910, ainda no
apartamento da Avenida Mem de Sá. Talvez emocionado com a coincidência do
nascimento do filho no dia do seu próprio aniversário, Visconti marca a data, plantando
uma mangueira no jardim da casa ainda em construção em Copacabana, para onde se
mudaria com a família em dezembro daquele ano.20

Nesta casa o pintor viveu até seus últimos dias, e podemos ver a família reunida diante
da sua entrada, numa foto dos anos 1940 [Figura 7], em torno do portão art déco, que
aparece em algumas pinturas. Diversas obras revelam o amor especial de Visconti por
seu jardim e a vista a partir do portão de entrada. No muro do terreno em frente havia
uma bica d’água que é destaque em duas pinturas: Ladeira dos Tabajaras (c.1928),
uma paisagem na qual diminutos vultos descem a ladeira, enquanto os postes de
iluminação elétrica se agigantam; e Garotos da Ladeira (c.1928), o encontro da Figura 8 - Eliseu d’An-
gelo Visconti (1866-
criançada da vizinhança, com suas redes de caçar borboletas, em que a menina e sua 1944), A visita, 1928.
boneca se sentam na beirada da bica. Nesta pintura, o bananal atrás do muro destaca- Óleo sobre tela, 79 x 64
se num colorido rico, valorizando o aspecto tropical que o bairro ainda guardava; em cm. Rio de Janeiro, co-
leção particular. Foto:
contraste com o tom azulado que estas plantas assumem em Ladeira dos Tabajaras, Photo Sintese Fotogra-
assim como toda a vegetação que se observa até o horizonte nesta paisagem, um efeito fia, 2011
bastante usado por Visconti para representar a
atmosfera carioca, muito úmida e enevoada de
então.

Em A visita [Figura 8], a moça que chega com


a menina são pretexto para Visconti mostrar
em primeiro plano o belo portão da sua casa,
através do qual se avista o muro em frente. Além
do bananal e dos telhados das casas ao longo
da ladeira, Visconti destaca a linha do mar no
horizonte, que ainda era possível vislumbrar
dali, apesar dos poucos edifícios que começavam
a se interpor. Em seus últimos dias de vida,
entrevistado durante sua curta recuperação,
Visconti lamentaria a perda dessa vista: “Quando
para aqui vim com minha família, isto aqui era
uma beleza. Eu via o mar e os navios que partiam
para o resto do mundo. Hoje só arranha-céus!
Duvido que o senhor veja o mar, daqui. Tiraram-
me o mar!”21

Num texto escrito em 1992, o filho de Visconti,


Tobias, relembra: “O nosso jardim vivia cheio
20  Idem, p. 33.
21 Quer a punição do autor ou autores do atentado: Fala o pintor Eliseu Visconti pela primeira vez, sobre o misterioso
crime de que teria sido vítima. O Globo. Rio de Janeiro, 5 out. 1944.

207
de crianças da vizinhança, que vinham brincar conosco. Era também alegrado
por gatos e cachorros, que meus pais sempre tiveram.”22 A pintura A caminho da
escola (1928), além de fixar um desses momentos, com a presença inclusive de um
simpático cachorrinho, revela o aspecto da entrada da casa, com as duas esculturas
que ladeavam o portão, e o número 29 fixado no muro. Após a visita ao ateliê da Mem
de Sá, Tapajós Gomes continuou sua entrevista na casa do pintor em Copacabana, a
convite do próprio Visconti, e descreve a impressão recebida em 1935:
Collocada em meio á ladeira, a morada de Visconti é como um grande ninho occulto entre
folhagens. Arvores copadas rodeiam a casa, e entre ellas algumas enormes mangueiras
plantadas pelas proprias mãos do artista. Dentro o seu grande salão de estar acolhe,
fidalgamente, o visitante e offerece-lhe o espectaculo sempre encantador de uma galeria
de arte.23

O escritor se referia à sala de estar da casa em Copacabana, a qual, segundo os


netos do pintor, tinha em anexo um salão menor, que Visconti utilizava como ateliê,
quando não ida à Mem de Sá. A casa tinha também uma comprida varanda que dava
acesso ao frondoso jardim, diversas vezes retratado pelo pintor. Em Lição no meu
jardim (c.1930), mais uma vez a presença das crianças e de outro tema recorrente em
Visconti: a leitura, que aqui se faz à sombra de árvores e arbustos floridos, e aos pés
de uma escultura representando uma figura alada. Na pintura Para o banho (c.1940),
Yvonne, em seu comportado traje de praia, está de pé no jardim ao lado de sua mãe,
que carrega uma toalha e apoia uma das mãos no corrimão da escada que dava acesso
Figura 9 - Foto com
Henrique Cavalleiro, à varanda, a qual tinha a proteção de uma cerca de treliça. Esta cerca também aparece
Yvonne, Louise e Afonso ao fundo de duas fotos que registram Visconti orientando Louise, enquanto ela pinta
Visconti, em frente à casa
sua aquarela, em meio às folhagens do jardim.
de Teresópolis, c. 1949.
Rio de Janeiro, Álbum
No início da entrevista de 1926, Angyone Costa comenta não ter encontrado Visconti
dos arquivos da família
Visconti. Fonte: Tobias S. uma semana antes, e o pintor informa que estava em Teresópolis com seus filhos,
Visconti, 2012. “aquella terra admiravel, que o carioca desconhece.” Revela, então, todo seu amor
pela cidade onde terá sua segunda morada, o
refúgio da sua maturidade:
− Antigamente eu affirmava que Copacabana
era o começo do Paraizo de Dante. Hoje alargo
a comparação e estendo-a a Therezopolis, que é
um encanto, uma grande fascinação. Não ha nada
que se lhe compare. […] Therezopolis tem alguma
coisa que é seu, côr local, pittoresco, luminosidade
propria. É uma terra que ainda tem viçor, conserva
a virgindade...24

No ano seguinte, Visconti iniciaria a


construção da sua casa de veraneio na serra,
à Av. Delfim Moreira, em Teresópolis, que
22  VISCONTI, Tobias d’Angelo. Opus cit., p. 62.
23  GOMES, Tapajós. Opus cit., p. 1.
24 COSTA, Angyone. Opus cit., p. 78.

208
ficaria pronta em 1928 [Figura 9]. Ali se repete a fusão do conforto e aconchego do lar
com o trabalho incessante do pintor, neste novo paraíso, com ainda mais intensidade
e poesia. Mário Pedrosa, em texto publicado no primeiro dia do ano de 1950, escrito
sob o impacto da retrospectiva de Visconti, em novembro do ano anterior no MNBA,
descreve a relação íntima entre vida pessoal, natureza e produção artística, a partir da
volta definitiva do mestre ao Brasil, em 1920:
Pintor até a raiz dos cabelos, êle compreende
que o destino de sua arte está na vitória sobre
aquêles elementos. Os matos cariocas, a serra
de Teresópolis, travam com êle um diálogo
misterioso. É, afinal, a comunicação indispensável
do artista com a natureza que se faz. Êle recolhe-
se ao seu meio íntimo. Acabaram-se as viagens,
a convivência mundana e cosmopolita. O artista
está livre dos temas sofisticados do exterior, [...] e
pode enfim dedicar-se por inteiro às questões que
mais de perto o tocam, os problemas finais de sua
criação. A pintura para êle não mais se distingue
de sua vida externa; é a suprema expressão do seu
próprio eu. Êle concentra-se, no seu atelier, no seu
recanto, no seu quintal. Não perde mais o contato
com a natureza, cujos segredos – naquilo que lhe
diz à sensibilidade de pintor – devassa. [...] E em
meio ao turbilhão, à revolução dita moderna, tão
injusta para com êle, não se perturba, nem perde
a serenidade. É que já está seguro não só de seus
meios artísticos, mas sobretudo do seu destino, de
sua missão como artista. Raros são os que podem
alcançar essa atitude. Principalmente no Brasil.25
Figura 10 - Eliseu d’An-
Assim como em Copacabana, o jardim da casa de Teresópolis será inúmeras vezes
gelo Visconti (1866-
o tema das pinturas de Visconti, que o registrará desde sua formação, nas telas 1944), Manhã de Tere-
Minha casa da campo (c.1929) e Manhã de Teresópolis [Figura 10], onde as plantas sópolis, c. 1930. Óleo
sobre tela, 60 x 50 cm.
ainda estão começando a crescer. Os dois portões azuis de madeira – para a entrada
São Paulo, coleção par-
de carros (Minha casa, 1932 e Descanso em meu jardim, c.1938) e de pessoas a pé ticular. Foto: Alexandre
(Raios de sol, c.1935) – foram imortalizados em diversas pinturas nas quais podemos dos Santos Silva, 2011.
acompanhar o desenvolvimento do jardim, tanto no seu crescimento orgânico quanto
em importância na composição de Visconti. O jardim com suas flores vermelhas e o
morro em frente à residência vão se agigantando, enquanto a casa e as figuras humanas
cedem espaço, como em Evocação de Louise (c.1940), na qual paira sobre o jardim
apenas a cabeça surreal da esposa. Até que, em Efeito matinal (c.1943), o portãozinho
azul se torna apenas um ponto de referência em meio à exuberante vegetação.

Na pintura Na alameda (c.1931), toda a família, com os meninos já crescidos e o


pintor entre eles, se encontra reunida em meio aos arbustos e flores do jardim, com a
25 PEDROSA, Mário. Visconti diante das modernas gerações. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 1º jan. 1950, p. 6.

209
casa entre as árvores em segundo plano, e a serra azulada contra um céu cinzento no
último, com os efeitos atmosféricos tão caros a Visconti arrematando a composição.
O quintal nos fundos da casa de Teresópolis também será inspiração para várias
pinturas, nas quais reaparecem as roupas ao sol e as lavadeiras em ação (Roupa
estendida, c.1940 e 1943), tendo como cenário o barranco de terra vermelha, que
pode ser visto em fotos dos arquivos da família. Com um clima mais intimista, a
grande tela Quaresmas (1942), além desses elementos e das árvores que lhe concedem
o título, mostra ainda Louise sentada em sua cadeira, rodeada de crianças que por ali
brincam.

A garotada da vizinhança animou sempre a vida e as telas de Visconti e está presente


nas cenas do entorno de todas as residências do pintor, inclusive em Saint Hubert,
nos arredores de Paris (Sob a folhagem, c.1913; Tarde em Saint Hubert, c.1917; Ronda
de crianças, c.1918; etc.). Os pequenos ganham maior destaque e são colocados em
primeiro plano em pinturas ambientadas também nos jardins de Teresópolis, como
em O batismo da boneca (c.1933), onde a presença do varal de roupas é bastante forte
e divide a composição horizontalmente; ou Três meninas no jardim (1935), na qual
o pico da montanha quase some em meio à vegetação, assim como as meninas se
confundem com as flores. Na pintura Um ninho (1940-41), aparecem aconchegados
pela vegetação, sua filha Yvonne e os dois netos que ela lhe deu, coroados pelo
esplendor da Serra dos Órgãos; e em Passeio no parque (c.1940), uma impressionante
explosão de cores e de luz envolve o grupo de crianças que caminha com a babá,
beijados pelo sol que se infiltra entre a folhagem.

Antes de ser demolida em 2010, a casa de campo de Visconti foi fotografada, com
os dois portões azuis que substituíram os originais, assim como uma sala separada,
nos fundos, que o pintor usava como ateliê, nos longos períodos que passava em
Teresópolis. A explosão demográfica em Copacabana acabou por requerer também a
demolição da casa de Visconti na Ladeira dos Tabajaras, para dar lugar a um edifício
residencial, que levou o nome do pintor, apenas duas décadas após o seu falecimento.
Aqueles que talvez sejam o primeiro (c.1890) e o último (1943) autorretratos de
Visconti são, dentre os muitos conhecidos, os únicos representados em meio à
natureza – os matos cariocas e a exuberante vegetação do quintal de Visconti na serra,
respectivamente. Expressam com muita propriedade a preferência de Visconti pela
pintura ao ar livre, desde o início até o final de sua carreira, e a harmoniosa relação
que ele conseguiu entre o seu trabalho e sua família, elegendo assim, como espaço
para a sua magnífica criação, a casa, o jardim e o ateliê.

210
Os ateliers cariocas do início do
século XIX: comércio e discrição

Patricia Delayti Telles 1

A investigação sobre a pintura do retrato em Portugal e no Brasil nas primeiras três


décadas do século XIX, empreendida durante o meu doutorado, levantou algumas
questões quanto ao impacto nas artes das limitações da produção da pintura no Brasil
colonial, sobretudo no período anterior ao funcionamento efetivo da Academia
Imperial de Belas Artes, em meados da década de 1820. Uma dessas limitações, a
ambigüidade do estatuto social dos pintores no mundo luso, reflete-se diretamente
nos espaços de trabalho artístico.

Desde o século XVII, em Portugal, os pintores já se destacavam dos meros artesãos;


reivindicavam um estatuto mais perto da fidalguia e mais longe dos chamados
“ofícios mecânicos.”2 No entanto, de um modo geral, continuavam associados a
estes, até na mentalidade dos seus próprios clientes. Fora exceções, como os famosos
Pedro Alexandrino de Carvalho (1729-1810) e Domingos António Sequeira (1768-
1837) – os pintores eram pouco valorizados social e financeiramente. Encontramos
reflexos desta falta de prestígio social não apenas na escassa produção de retratos
de artistas, mas no fato que, durante o período em questão, são ainda mais raros os
pintores portugueses ou brasileiros que se auto-representam (ou se fazem representar

1 Doutora em História da Arte, bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, investigadora do Centro de História da Arte
e Investigação Artística da Universidade de Évora (CHAIA/UE), em Portugal.
2 Sobre o assunto, ver CAETANO, Joaquim Oliveira. A maldição de Séneca – reivindicação e estatuto da arte da pintura
no período barroco. In: Joanni V Magnifico. A pintura em Portugal ao tempo de D. João V (1706-1750). Lisboa:
Instituto Português do Património Arquitectorico e Arqueológico, 1994, pp. 119-131

211
por colegas) segurando os instrumentos de seu oficio, nomeadamente a paleta
e os pinceis. A maioria dos retratos de pintores levantados entre 1804 e 1834 não
possui de fato nenhuma referência visual à pintura: os modelos preferem mostrar-
se com lapiseiras e papeis - referências visuais à mais “nobre” arte do desenho – e,
aproveitando recortes em busto, serem representados em poses pensativas, com a
mão levada à testa, enfatizando o processo mental de criação artística.3

Esse distanciamento do lado material da pintura se reflete naturalmente na quase


inexistência de imagens dos seus ateliers, e nas poucas referências que sobraram sobre
estes. Não apenas sobre aqueles pertencentes a brasileiros e portugueses, mas também
sobre os espaços de trabalho de muitos estrangeiros que passaram por Portugal e pelo
Brasil. Na confusão política de uma época em que primeiro os exércitos franceses,
depois o Congresso de Viena, redesenharam o mapa da Europa pelo menos duas vezes
em uma única geração, encontramos centenas de artistas em circulação em busca
de uma situação mais estável. Alguns aportaram em Lisboa ou no Rio de Janeiro,
outros nunca encontraram um porto seguro; muitos simplesmente desapareceram
da história da arte. A maioria das informações sobre eles e sobre os seus espaços de
trabalho (a palavra “atelier” não consta nos dicionários coevos4), provém da imprensa
periódica.

A documentação levantada aponta para que, como veremos, os pintores no início do


século XIX, embora trabalhassem e vendessem suas obras preferencialmente em suas
próprias casas, na verdade trabalhavam e vendiam onde fosse preciso.

Encontramos por exemplo, um certo Lavedon instalado provisoriamente numa “casa


de pasto” em Lisboa, em 1802, após um longo périplo pela Europa:
Na casa de Pasto da Boa-Vista se acha Mr. Lavedon, pintor-retratista, o qual,
tendo vindo d’Inglaterra de passagem por Madrid, faz gosto de expor à vista dos
Curiosos mais de 100 paineis seus, assim de retratos, como de fantasia, a fim de
que se possao servir dos seus talentos, ou comprar algumas das suas pinturas, se
lhes agradarem.5

“Casas de pasto” serviam então como restaurantes, e albergues. E este anúncio de um


pintor sem obra conhecida, expondo e trabalhando num quarto de hotel, demonstra
a precariedade da situação de muitos artistas no início do século XIX.

Podemos pensar que esses pintores cujos nomes a história da arte não reteve seriam
os mais fracos, mas o levantamento de algumas obras suas parece desmentir essa
teoria. Fatores políticos, geográficos ou mesmo a pura sorte podem ter marcado o

3 Sobre retratos de pintores nas primeiras décadas do século XIX, ver TELLES, Patricia Delayti. Retrato entre baionetas:
prestígio, política e saudades na pintura do retrato em Portugal e no Brasil entre 1804 e 1834. Tese (doutorado)
História da Arte, Departamento de História, Universidade de Évora, 2015.
4 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico ... Coimbra: Collegio
das Artes da Companhia de Jesu, 1712 - 1728. 8 v.; [SILVA, Antonio Moraes]. Diccionario da lingua portugueza -
recompilado dos vocabularios impressos ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado,
por Antonio de Moraes Silva. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.[PINTO, Luiz Maria da Silva]. Diccionario da
Lingua Brasileira por Luiz Maria da Silva Pinto, natural da Provincia de Goyaz. Ouro Preto: Na Typographia de Silva,
1832.
5 Segundo Suplemento à Gazeta de Lisboa, Lisboa, 27 de Março de 1802, n/p.

212
seu destino. Tal é o caso, por exemplo, do miniaturista suíço Jean Philippe Goulu
(1786-1853), ativo no Rio de Janeiro entre 1817 e 1824 – contemporâneo, portanto,
dos artistas da Missão Francesa. Retratista de alta qualidade pictórica, desconhecido
no Brasil, Goulu alcançaria fama na Argentina, para onde se mudou após essa data.6

Sobre o seu atelier carioca, sabemos apenas o que ele mesmo informa em dois anúncios
publicados na Gazeta do Rio de Janeiro, em 1818:
Goulu, Retratista Francez,7 tão bem conhecido pela exacta similhança e fim precioso das
suas obras, que teve a honra de tirar o Retrato de S. A. R. o Principe Real, e os das
Serenissimas Senhoras Infantas, dos quaes deu infinidade de copias; faz saber ao publico
e aos amadores de arte que mudou o seu domicilio para a rua da Ajuda, largo do Bispo,
N. 68.8

O mencionado retrato do Príncipe Real, futuro D. Pedro I, seria provavelmente a


miniatura assinada e datada de 1817, atualmente nas reservas do Palácio Nacional de
Queluz, em Portugal (inv. 00489 TC/ PNQ 231A1/1); uma das “infinidades de cópias”
anunciadas, pintadas pelo próprio artista, se encontra hoje no acervo da Fundação
Maria Luísa e Oscar Americano, em São Paulo. Quanto ao atelier, o anúncio revela
apenas que Goulu trabalhava em casa (pois anuncia a sua mudança de domicilio aos
“amadores de arte”) – e que esta encontrava-se localizada próxima à moradia de Jean
Baptiste Debret (1768-1848), que em 1825 morava na mesma rua da Ajuda.9

Dez anos antes, em 1816, Debret, recém-chegado ao Brasil, havia enviado a seu irmão,
em Paris, uma pequena aquarela retratando o interior do seu atelier, instalado no
Catumbi [ver Figura 2 da Apresentação]. Preservava assim uma das únicas imagens
que hoje conhecemos do quotidiano de um pintor no Rio de Janeiro dessa época. A
falta de uma iconografia complementar é tão dramática, que resulta tentador para
o historiador ver nessa imagem um exemplo do quotidiano de todos os pintores
cariocas – mas cabe lembrar que se trata não apenas de um estrangeiro, mas de um
recém-chegado, e que por isso talvez não devamos tomá-la como regra, apenas como
um exemplo pontual de uma situação específica. Isso não a torna menos importante.

Neste espaço de trabalho, ainda um pouco improvisado, conforme indica a tela


apoiada numa cadeira e não sobre um cavalete, encontramos a maioria dos objetos
que supriam então as necessidades do ofício de um pintor. Contudo a aparência
burguesa e o grande número de quadros pelas paredes parece indicar que Debret
pretendia que este fosse também um espaço de convívio, de acolhimento, para uma
clientela acostumada a ambientes sofisticados.

6 RIBERA, Adolfo Luis de. El retrato en Buenos Aires 1580-1870, Buenos Aires: Universidad de Buenos Aires, 1984,
p. 127
7 A Suíça foi dominada pelos franceses a partir de 1798, e diversos cantões chegaram a ser anexados ao Império
Napoleônico nos anos seguintes. Apenas em 1815 voltaria a criar-se um estado suíço, de modo que não espanta que
diversos suíços nascidos em meados da década de 1780 (como Charles Simon Pradier (1783-1847), também natural de
Genebra) se apresentassem no início do século XIX como sendo franceses.
8 Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 19 e 23 de Dezembro de 1818, n/p
9 GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. Rio de Janeiro: Lacerda Ed., 2000, p. 95 e 97

213
No Norte da Europa, sobretudo na Inglaterra, a visita ao atelier de um artista de
prestígio – como, por exemplo o do inglês Sir Joshua Reynolds (1723-1792) - era
um divertimento da nobreza e da alta burguesia desde meados do século XVIII. A
historiadora Márcia Pointon chega a equiparar a pintura de um retrato na Inglaterra
do século XVIII a uma “performance,” pois o modelo era pintado em público, diante
dos amigos10 – como podemos ver em diversas representações de ateliers franceses,
como por exemplo no quadro que retrata o atelier da pintora Madame Labille-Guiard
(1749-1803),11 pintado de memória em 1808 por sua aluna Marie Gabrielle Capet
(1761-1818), hoje na Neue Pinakothek, em Munique.

Mas a situação no Brasil recém alçado do estatuto de colônia ao de Reino Unido – em


um Rio de Janeiro onde, segundo o próprio Debret, as mulheres dificilmente saiam à
rua a não ser para ir para a igreja -, parece ter sido bem mais prosaica.

Os estudos recentes sobre as casas nobres portuguesas e brasileiras confirmam que


os interiores das casas dessa clientela mais rica eram muito mais simples do que os
seus equivalentes europeus. Uma simplicidade retratada nas aquarelas do próprio
Debret, sobretudo em dois interiores datados de 1827, hoje nos Museus Castro Maya,
conhecidos como “Jantar brasileiro” e “Interior doméstico,” nos quais o mobiliário é
escasso e frugal, e quase não figuram quadros nas paredes.

Se as fontes não parecem confirmar as expectativas de Debret quanto a recepcionar


regularmente uma clientela sofisticada num espaço que se configura, no Brasil, pelo
menos até a década de 1830, sobretudo como local de trabalho, justificam contudo
a sua esperança de expor e vender os quadros no atelier, pelo menos pontualmente.
Pois era nos ateliers que ocorriam, não apenas o comércio da pintura, como – muito
raramente – algumas exposições para ajudar nas vendas.

A primeira notícia de uma exposição de pintura no Brasil encontrada fora do contexto


áulico ou religioso – e nada impede que haja outras por descobrir – deu-se justamente
num atelier, na casa de um pintor português recentemente chegado ao Rio, António
da Silva Lopes (c. 1780- após 1824) que em maio de 1811 anunciava:
António da Silva Lopes, 1o substituto da Academia Portugueza do Nu, participa, que em
22 do corrente publica a abertura da sua grande collecção de Pintura dos maiores Mestres
em quasi todos os ramos. Os dias públicos são as Quartas, e Sextas feiras de tarde, das
3 horas em diante nas casas onde reside no Beco dos Cachorros, n. 23, e alem destes,
extraordinariamente a Professores e pessoas intelligentes.12

António da Silva Lopes não deixa claro nem que é pintor, nem que as pinturas seriam
provavelmente de sua autoria, mas especifica que expõe nos cômodos da sua própria
casa ou seja, em linguagem da época: “nas casas onde reside.” A exposição não parece
ter tido qualquer repercussão ou sucesso. Talvez decepcionado, o artista seguiu para

10 Ver POINTON, Márcia. Hanging the head, portraiture and social formation in Eighteenth Century England,
Paul Mellon Centre for Studies in British Art e Yale University Press, 1993, pp. 41-43
11 Adelaide Labille-Guiard conheceu Joaquim Lebreton, que retratou em 1795; a tela pertence hoje ao Museu Nelson
Atkins, em Kansas City, nos Estados Unidos.
12 Gazeta do Rio de Janeiro, op. cit., 18 de Maio de 1811, n/p.

214
Salvador, onde, protegido pelo governador, D. Marcos Noronha de Brito,13 tornou-se
professor de uma “Aula de Dezenho e Figura,” criada por Carta Régia de 8 de Agosto
de 1812.14 No documento, afirmava novamente ter sido “primeiro substituto da
Academia do Nu em Lisboa”, o que repetem Manoel Querino e Carlos Ott.15 Contudo,
embora o pintor Cirilo Volkmar Machado deveras tentasse estabelecer, em Lisboa,
uma Academia do Nu, por volta de 1780, esta não fora adiante.16 Em princípios do
século XIX não havia nenhuma instituição com esse nome em funcionamento em
Lisboa, apenas outra Aula Régia, regida pelo professor Eleutério Manuel de Barros
(c.1760- ap. 1823) - e a única referência que encontramos a um artista chamado
António da Silva Lopes no contexto português é uma denúncia ao Tribunal do Santo
Ofício, datada de 21 de Maio de 1798, feita por ele contra outro pintor, seu colega,
José de Almeida Furtado (1778-1831).

Nessa denúncia, Lopes, identifica-se como lisboeta, “filho de Victória Joaquina da


Conceição” (sem menção a quem teria sido seu pai), morador da “rua dos Ourives
da Prata,” na Baixa de Lisboa. Afirma ter “dezoito para dezenove annos,” o que nos
permite determinar a sua data de nascimento, e ser aluno de Eleutério Manuel de
Barros.17 Ora, é possível que essa denúncia à Inquisição de um outro pintor que ele
chama de “amigo” tenha prejudicado a ele tanto quanto a Almeida Furtado, pelo
menos no meio artístico, levando-o a tentar a sorte no Brasil.

Não encontramos nenhuma obra de sua autoria, mas a Aula Régia por ele regida
funcionou em Salvador por cerca de dez anos - pelo menos entre 20 de Maio de
181318 e Dezembro de 1819.19 Lopes parece ter abandonado o seu cargo, e a cidade,
depois da Independência, sendo substituído por Antonio Joaquim Franco Velasco
(1780-1833).20 A documentação existente no Museu D. João VI no Rio de Janeiro
revela que, a 6 de Março de 1824, Silva Lopes encontrava-se novamente na capital
carioca, desempregado e aparentemente sem muitos recursos, pois pediu à Academia
Imperial “continuidade de seus honorários de professor e diretor da cadeira de
Desenho e Arquitetura civil, da província da Bahia, aqui na Corte, enquanto não está

13 A 27 de Maio de 1812, D. Marcos Noronha de Brito, Conde dos Arcos, pede a António de Araújo de Azevedo, futuro
Conde da Barca, que “[...] protega o negocio de Antonio da Silva Lopes que o [ilegível] recomenda como mto bom lente
p.a uma Aula de Dezenho de q tanto se neccessita aqui, e que pedi a S.A.R. [...]” Arquivo Distrital de Braga, B-5 (32,1),
Braga, Portugal.
14 Arquivo Público do Estado da Bahia, Secção Colonial, Cartas-Régias, v. 114, doc. 197, apud CAMPOS, Maria de
Fátima Hanaque. A pintura religiosa na Bahia (1790-1850), tese (doutorado), Universidade do Porto, Faculdade de
Letras, Departamento de Ciências e Técnicas do Património, Porto, 2003, vol. II, p. 7.
15 Poucos estudos mencionam este artista, e quase todos baseiam-se nas informações fornecidas por Manuel Querino.
Ver QUERINO, Manoel Raymundo. Artistas Bahianos (indicações biographicas), Bahia: Officinas da empresa A
Bahia, 1911 e OTT, Carlos. A escola bahiana de pintura 1764-1850, [Salvador]: Editor Emanoel Araújo e MWM, 1982.
16 MACHADO, Cirilo Volkmar. Collecção de Memórias. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1922.
17 “Denuncia contra José de Almeida Furtado” Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Processo 13504. Arqui-
vo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa.
18 MORALES DE LOS RIOS FILHO, Adolpho. O ensino artístico. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, n. 239, Abril-Junho, Rio de Janeiro: IHGB, p. 114.
19 Carta de Thomaz António Vilanova Portugal ao conde da Palma de 15 de Dezembro de 1819, APEB, Cartas-Régias,
v. 120, doc. 373, apud CAMPOS, op. cit.,p. 9.
20  Especulava-se que teria morrido ou voltado para Portugal em 1823, pois “após o movimento de Fevereiro de 1821,
ninguém mais falou do mestre”. QUERINO, op. cit, p. 69.

215
empregado.”21 Desapareceu, a seguir, quase por completo da história da arte no Brasil,
sem que saibamos sequer a data do seu falecimento.22

O exagerado anúncio que colocou em 1811, atribuindo a si mesmo um estatuto


de “acadêmico” que não possuía e afirmando expor pinturas “dos maiores Mestres
em quasi todos os ramos” na sua casa revela a sua ânsia de se apresentar no Rio de
Janeiro com um certo prestígio e abrir ao público o seu atelier. Mas neste estado da
pesquisa, parece ser o único anúncio na imprensa carioca do início do XIX em que
um artista promove uma venda nesses termos, mais próxima de um vernissage atual.
Normalmente, a maioria dos anúncios de jornal parece demonstrar, pelo contrário,
uma total falta de glamour.

Ora, por mais que os pintores se esforçassem por provar que a pintura era uma “arte
mental,” afiliada ao desenho, uma ocupação que – ao contrário dos ofícios mecânicos
– não sujava as mãos, a pintura de cavalete era um ofício sujo. E por mais arrumado
que fosse, o seu espaço de trabalho seria o testemunho inegável desse trabalho
duro. O tubo de tinta só seria inventado por volta de 1830, e comercializado na
década seguinte.23 Antes disso, as dificuldades eram enormes: era preciso comprar e
preparar cada pigmento, às vezes raspá-lo ou batê-lo, misturá-lo com um aglutinante,
geralmente o óleo – mas também gema de ovo, no caso da têmpera - preparar até
as telas, pregando e esticando o pano cru, de linho ou de brim, sobre um chassis de
madeira. Existem algumas receitas de cores, usadas desde o século XVIII. O vermelho
carmim, era, por exemplo, uma:
[...] tinta artificial, composta de pao Brazil, moída em almofariz cõ paens de ouro,
tudo lançado de molho em vinagre branco, & depois de ferver, se poem a escuma
a secar, esta he o carmim. Tambem se faz por outro modo cõ cochonilha, e pedra
hume de Roma, tirante a vermelho.24

Essa verdadeira “cozinha” por trás da arte da pintura explica a provável desarrumação
dos espaços de trabalho, e a importância do uso de assistentes, que podiam ser
aprendizes e, no Brasil, muitas vezes escravos.

Isso não quer dizer que de vez em quando não se comercializasse algum material de
pintura pronto, sobretudo tintas básicas, como preto, branco e vermelho. No Rio,
encontramos um senhor que além de pintor decorativo, vidraceiro e moldureiro,
vendia tintas prontas para pintura de cavalete, em 1826:
Alexis Blanc, pintor de decorações, Letras, e Carruagens, Vidraceiro, e grude [sic] os
papeis em Sallas. Tem Armazém assortido de Vidros para vidraças, e Vidros proprios para
Carruagens. O Publico achará igualmente na mesma Loja Tintas preparadas para pintar

21 A documentação, no Museu D. João VI, do Rio de Janeiro, encontra-se disponível on-line: http://www.museu.eba.
ufrj.br/web-inf/src/listaArquivos.asp (visto a 10 de Abril de 2012).
22 Marieta Alves sequer o menciona em seu dicionário, atribuindo a Franco Velasco a criação da Aula Pública. ALVES,
Marieta. Dicionário de Artistas e Artífices na Bahia. Salvador: Universidade Federal da Bahia, Centro Editorial e
Didático, Núcleo de Publicações, 1976.
23 WHITE, Harrison C. e Cynthia. La Carrière des peintres au XIXème siècle. Paris: Flammarion, 1991, p. 92.
24 BLUTEAU, op. cit., 1728.

216
Retratos, como para Casas, etc. Tambem põe quadros em Estampas. Rua dos Barbonios,
n. 42, ao lado do Consulado de França.25

Encontramos também um anuncio de venda de telas já esticadas sobre os seus chassis,


em Lisboa, em 1824. Mesmo se tratando de um caso isolado (resultado, talvez, da
morte ou da mudança de algum pintor), a notícia é importante, pois no resto da
Europa esse tipo de material só seria comercializado por volta de 1841, quase duas
décadas mais tarde: “Na rua do Amparo n.º 18, defronte da Praça da Figueira, se
vendem pannos aparelhados para pinturas a oleo, e grades de differentes dimensões
com pannos pregados.”26 O uso desse tipo de material semi-pronto economizaria
muito tempo e trabalho no atelier, tornando-o cada vez mais limpo no decorrer do
século.

Mas mesmo com as dificuldades e a sujeira que resultavam do preparo das tintas, na
falta de galerias e lojas especializadas, era no atelier, muitas vezes instalado dentro
de casa, que os artistas brasileiros do início do século XIX recebiam os seus clientes.
Nada muito diferente do que acontecia em Lisboa, por exemplo, em cuja Gazeta
encontramos dois anúncios, um de julho de 1813 e um de julho de 1820, de dois
pintores diferentes, oferecendo aulas, pintura de retratos e venda em suas próprias
casas:
Fabio Fabroni, Pintor de Miniatura, e Professor de desenho, faz saber aos conhecedores, e
amadores de bellas Artes, que elle tem para vender huma Colleção de diversas miniaturas,
feitas por elle, desenhos do melhor gosto das Academias Italianas, e quadros a óleo. Quem
quizer comprar alguns dos referidos quadros, tomar lições de desenho, ou quizer o seu
retrato em miniatura, o pode procurar em sua casa das 4 e meia às 6 horas da tarde na
travessa da Victoria n.3, terceiro andar, junto à rua dos Ourives do Ouro.27

O anuncio seguinte é ainda mais explícito: “João Anastácio Franco, pintor retratista,
faz sciente a quem precisar do seu préstimo, que a casa da sua residência he ao Salitre
n. 147, segundo andar.”28

No Rio de Janeiro, ocorria o mesmo. No início do século, os ateliers localizavam-se


principalmente nas casas dos pintores, acima do térreo, geralmente no 2o andar - e
eram usados para trabalho, ou seja tanto para pintar quanto para dar aulas e vender
quadros. Por causa dessa tripla função, era importante manter o público a par de
eventuais mudanças de endereço, o que nos permite saber alguma coisa sobre onde
moravam e trabalhavam esses artistas.

Simplício Rodrigues de Sá, por exemplo, anuncia na Gazeta em 1812: “Simplicio João
Rodrigues de Sá, pintor retratista, que morava no largo de Santa Rita, mudou-se para
o Beco dos Cachorros, n. 26, caza, n. 26, segundo andar.”29 Ou seja o pintor português
morava muito próximo ao local em que, no ano anterior, residia António da Silva
Lopes, e mudou-se para a mesma rua.
25 Spectador Brazileiro, Rio de Janeiro, 20 de Dezembro de 1826, n/p.
26 Gazeta de Lisboa, Lisboa, 11 de Junho de 1824, n/p.
27 Gazeta de Lisboa, op. cit., 20 de Julho de 1813, n/p.
28 Gazeta de Lisboa, op. cit., 24 de Agosto de 1820, n/p.
29 Gazeta do Rio de Janeiro, op. cit., 2 de Dezembro de 1812, n/p.

217
O Beco dos Cachorros localizava-se por trás do mosteiro de São Bento, onde antigamente
terminava a chácara do mosteiro, que era guardada por cães,30 numa pequena rua que
depois se chamou travessa de Santa Rita e hoje rua Alcântara Machado.

Em 1815, Simplício viajou para Buenos Aires; lá se encontrava em Fevereiro daquele


ano. Não sabemos quando voltou para o Rio de Janeiro, nem onde se instalou ao chegar,
apenas que em novembro de 1820 ingressou na Real Academia de Desenho, Pintura,
Escultura e Arquitetura Civil (futura Academia Imperial). Talvez morasse então na
rua dos Ourives, pois em Agosto de 1822, informa nova mudança de endereço:
Simplício Rodrigues de Sá, Pintor Retratista, aviza ao rezpeitavel Publico, que se mudou
da casa da rua dos Ourives para a casa em que actualmente mora na rua do Fogo canto da
rua detras do Hospicio N. 23 onde continua a prestar-se com a sua prenda de Retratista:
e igualmente se propõe a encinar em sua mencionada casa as pessoas que quizerem a
prender tão estimável e precioza Arte.31

É curioso constatar, que mesmo dispondo de um rendimento de 300$000 como


“substituto de Desenho e Pintura” da Academia, Simplício continuava a dar aulas
em casa. Necessidade ou ambição? Não sabemos. Mas conseguiu aos poucos ganhar
dinheiro suficiente para se mudar para um espaço mais confortável, pois em 1828,
quando já se tornara pintor da corte de D. Pedro I, outro anuncio indica que morava
numa chácara em São Cristovão, mais próximo à residência do Imperador, longe
do burburinho da cidade. A julgar pelo anuncio que publica, não mais um aviso de
mudança de endereço, mas um pedido de informações para recuperar uma escrava
fugida, desfrutava agora de uma situação econômica confortável e, além da nova casa,
mantinha provavelmente um atelier na rua do Fogo:
Fugio no dia 10 do corrente da chácara do Snr. Simplício, Retratista, em S. Christovão,
huma escrava por nome Roza, de Nação Moçambique, de idade de 16 annos, pouco mais
ou menos, cara redonda, cheia de corpo, beiço furado, he bem feita; quem da mesma
tiver noticia, queira dar parte na rua do Fogo N. 8, que será bem recompensado do seu
trabalho.32

O fato de trabalharem sobretudo em casa, não implica que os pintores abdicassem de


certos requisitos. O cômodo onde instalavam o atelier precisava dispor de algumas
qualidades específicas. Outro anuncio carioca, de 1828, mais de dez anos após a
chegada da Missão Francesa, revela algumas delas:
Preciza-se de huma salla decente, ou na falta dessa hum sotão que sirva para hum homem
solteiro, da arte de Retratista, e de muito boa conducta: o qual não duvidará pagar o
aluger alguns mezes adiantados: adverte-se que a entrada e sahida deve ser independente,
e que qualquer dos ditos commodos tenha huma boa luz; roga-se a quem isto tiver, sendo
da Valla para baixo, queira dar parte na rua do Sabão N. 118, que lá achará com quem
tratar.33

30 GERSON, op. cit., p. 194-195.


31 Diario do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 29 de Agosto de 1822, n/p.
32 Diário do Rio de Janeiro, op. cit., 16 de Fevereiro de 1828, n/p.
33 Diario do Rio de Janeiro, op. cit., 26 de Junho de 1828, n/p.

218
A luz era sem dúvida essencial: quanto mais, melhor. Em excesso, poderia ser
controlada através de cortinas e vedações, mas era difícil gerá-la. A entrada
independente mostra uma certa vontade de privacidade, para clientes mas também
para que o próprio pintor pudesse entrar e sair quando quisesse, já que neste caso
trata-se de um espaço alugado fora de casa. Sob a influência dos franceses, os artistas
começavam a ser um pouco mais bem vistos socialmente, contudo uma clientela
exigente, hierarquicamente superior, dificilmente iria visitar um sótão – mesmo na
rua da Valla, atual rua Uruguaiana.

O uso do manequim, tanto no Rio por Debret como em Lisboa pelo pintor italiano
Domenico Pellegrini (1759-1840), que o empregou para finalizar um retrato do futuro
Conde da Barca34 - mostra que nem todos os modelos se dignavam a comparecer ao
atelier, ou a sujeitar-se a longas sessões de pose.

A caixa de pintura, retratada com certo destaque pelo francês, perto da paleta e
do cavalete improvisado, permitia que o pintor se deslocasse até a casa do modelo.
Encontramos uma menção a um objeto semelhante, à venda no Rio em 1828,
juntamente com uma escrava: “Quem quizer comprar huma preta Moçambique, [...]
dirija-se a rua da Conceição N. 7, onde tãobem se vende huma bonita caixa portátil,
que serve para algum Snr. Pintor, que tenha que fazer alguns retratos fóra de sua
casa.”35

Assim, no início do século XIX, sobretudo no ambiente fechado do Rio de Janeiro


colonial, o atelier era também portátil. O pintor dispunha-se a sair do próprio espaço a
serviço de uma sociedade que, por mais que aos poucos o aceitasse, ainda o confundia
com outros “oficiais mecânicos” e se julgava, por isso, socialmente superior.

Em 1813, mesmo um professor régio como Manuel Dias de Oliveira, que dirigia desde
1800 a primeira escolha de arte do Rio de Janeiro, a Real Escola do Nu, se propunha a
ir dar aulas em casa particulares:
Manoel Dias de Oliveira, Professor publico de Desenho e Figura nesta Corte, tendo
adquirido os seus estudos na Corte de Roma, mandado pelo Principe Regente Nosso
Senhor, propõe-se a ser útil com o ensino da sua Arte por Cazas particulares, nas horas
vagas da sua Aula, a todas as Pessoas, Nacionaes, ou Estrangeiras, que tiverem genio
para esta aplicação, tão propria parar ornamento das Pessoas bem educadas, fazendo elle
de propria mão os exemplares para os seus Discipulos, e satisfazendo a todos elles com a
recíproca harmonia na moderada recompensa do seu merecimento. Na rua do Rozario,
defronte do Hospicio, n. 44, espera o sobredito Professor os Senhores, a quem se dedica.36

Note-se, para aferir a importância de Manoel Dias de Oliveira, tão denegrido pelos
membros da Missão Francesa, que em 1817, ele é o único pintor que aparece, ao lado

34 [ABRANTES, Duchesse (Laure Junot)] Mémoires de Madame la Duchesse d’Abrantès ou Souvenirs Historiques
sur Napoléon, la Révolution, le Directoire, le Consulat, l’Empire et la Restauration, 1837, Bruxelles: Société Belge
de Librairie, vol. 2, p. 151.
35 Diário do Rio de Janeiro, op. cit., 19 de Fevereiro de 1828, n/p.
36 Gazeta do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 30 Janeiro de 1813, n/p.

219
de engenheiros e médicos, listado independentemente de qualquer instituição, como
“professor de desenho e pintura” no Almanack do Rio de Janeiro.37

A vinda dos franceses será para ele desastrosa, por tirar-lhe uma clientela duramente
conquistada. Ainda anuncia no Rio de Janeiro em 1828, já aposentado; não residia
mais na rua do Rosário, mas na do Alecrim. Terminaria por se mudar para Campos,
onde faleceu, quase esquecido.
Manoel Dias de Oliveira, Professor Jubilado na Cadeira de Dezenho desta Corte, participa
a todos os Snrs. amantes da Pintura, que elle educado nella em Portugal, e na Roma [sic];
está nas circunstancias de servir ao Publico, em retratos grandes, e pequenos, e quadros
Historicos, sacros, e profanos, e em todos os mais ramos da Arte; quem se quizer servir do
seu préstimo, dirija se a rua do Alecrim defronte da Sachristia do Sacramento N. 270.38

Infelizmente, a maioria dos pintores, por mais que forneça o endereço de casa,
raramente anuncia o próprio nome, a não ser que seja um estrangeiro de passagem.
Essa discrição – talvez um certo decoro – que hoje tanto prejudica a investigação,
parece ter sido, na época, importante.

Cabe a outros pesquisadores relevar o desafio de mapear os endereços dos artistas


cariocas do princípio do século XIX, e de cruzar essa informação com anúncios e
outros documentos. Estimo que em alguns casos, a indicação do endereço em
diferentes anúncios baste para identificar o pintor, e que um melhor conhecimento
desses locais seria importante para o estudo da pintura no Brasil.

À medida que a Academia Imperial se organizava, sob a égide do Estado, a situação


não tardaria a evoluir, mas ainda temos muito mais que descobrir sobre o modesto
começo dessa ascensão social que irá resultar nos grandes ateliers do final do século.

37 ALMANAK, 1817 apud Revista do IHGB, Rio de Janeiro, 1966, vol. 270, p. 364.
38 Diário do Rio de Janeiro, op. cit., 24 de Maio de 1828, n/p.

220
Os ateliês de Pedro Weingärtner

Paulo César Ribeiro Gomes 1

Quand j’ai ouvert mon atelier [...] je peignais enfin comme tout le monde.2

Ter um ateliê, muito mais do que uma necessidade, sempre caracterizou um índice
de profissionalização e o pintor Pedro Weingärtner (1853–1929) não escapou a isso.
São numerosos, ao longo de sua carreira, os registros gráficos e pictóricos dos seus
lugares de trabalho, sejam esses coletivos ou individuais; são raros, entretanto, os
registros textuais. Iniciemos esse artigo com uma notável exceção, que devemos a
Carl von Koseritz (1830-1890) , que escreveu
O atelier (que é alugado e pertence a um lente de academia na Alemanha) representa
uma casa da campagna di Roma, com todo o romântico exterior d’essas casinhas.

Penetrando, porém, pela baixa porta no interior, acha-se o visitante, como por encanto,
em região inteiramente diversa.

É o ambiente da arte que alli o cerca: Antigas drapéries de pezados estofos, trophéos
d’armas, estatuetas em bronze, bustos de mármore, festons de louro secco, mil bibelots e
objectos d’arte, - enfim, um microcosmo de gosto artístico e a tudo isto uma excellente
luz, que em ondas desce do telhado de Chrystal e um grande numero de quadros em via
de execução, de estudos, debuxos etc.

1 Professor Adjunto no Departamento de Artes Visuais (Instituto de Artes/UFRGS). Coordenador da Pinacoteca Barão
de Santo Ângelo (Instituto de Artes – UFRGS).
2 SPURLING, H. Matisse, 1869-1908, 2001, p. 104. Apud Martin-Fugier, Anne. La vie d’artiste au XIXe siècle. Paris,
Hachette, 2007, p. 87.

221
O artista que nos recebe no solar, é o mesmo moço modesto e sympathico que Porto Alegre
conheceu há 8 annos como simples desenhador auxiliar d’uma litographia.

O bigode cresceu um pouco, os hombros tornaram-se mais largos, mas pelo rosto é o
artista, cujos quadros começam a ter grande nomeada, o mesmo simples e modesto rapaz
dos outros tempos, muito criterioso e pouco dado a extravagâncias artísticas.3

A detalhada descrição do local conforma-se perfeitamente com a idéia que se faz de


um ateliê de artista no século XIX, isto é, aquilo que Souriau nomeia de “Le mythe
littéraire et social de l’atelier d’artiste:”
Vers l’époque romantique, le bric-à-brac pittoresque des accessoires groupés dans um
atelier d’artiste (armures, draperies, vases..), le contraste des personnages qu’on y voit
reunis (présente du modèle nu mêlé aux familiers du lieu, des ‘rapins’ au travail, nobles
visiteurs...), la liberté des moeurs qu’on y remarque (ou qu’on suppose), jointe à une
certaine atmosphère de révolte sociale et d’enthousiasme pour le beau ont attiré l’attention
de bien des littérateurs [...].4

A considerar-se a data da publicação da crônica, 1887, Koseritz visitou Weingärtner no


seu primeiro ateliê romano, na Villa Strohl-Fern, local até os dias de hoje importante
para a história da arte européia e americana, objeto de uma exposição que a descreve
como um lugar
Rodeado por vegetação, na fronteira da Villa Borghese, a Villa recebeu o nome do patrono
e artista alsaciano Alfred Wilhelm Strohl-Fern, que a adquiriu em 1879, criando um
extraordinário jardim onde, além de seu palácio, ele construiu uns estúdios com clarabóias
para hospedar artistas. Sua idéia era de criar uma espécie de comunidade utópica, na
qual os artistas de todo o mundo poderiam viver e trabalhar livremente, pagando um
modesto aluguel. A partir do final de 1882, eles começaram a chegar: pintores, escultores,
escritores, fotógrafos, poetas, dançarinos e músicos, que se alternaram no local até após
a morte de Strohl-Fern, que ocorreu em 1927, quando a vila, por legado, tornou-se
propriedade do Estado francês.5

Weingärtner não deixou, aparentemente, qualquer registro desse local. As referências


sobre sua temporada na Villa Strohl-Fern são escassas e resumem-se ao registro como
os efetuados por Camila Dazzi que indica sua permanência no local entre 1887 e
1891.6 Mas Weingärtner deixou inúmeros outros registros dos seus ateliês ao longo
3  KOSERITZ, Carlos von. Impressões d’Italia. Porto Alegre: Estabelecimento Typographico de Gundlach & Cia, 1887,
p. 358-362.
4  SOURIAU, Éttiene. Vocabulaire d’Esthétique. Paris: PUF, p. 183.
5  “Immersa nel verde, al confine di Villa Borghese, la Villa prende il nome dal mecenate e artista alsaziano Alfred
Wilhelm Strohl-Fern, che la acquista nel 1879, creandovi uno straordinario giardino dove, oltre al suo palazzo, edifica
studi a lucernario per ospitarvi artisti. L’idea del mecenate era di creare una sorta di comunità utopica in cui artisti
provenienti da tutto il mondo potessero vivere e lavorare in piena libertà, pagando un modestissimo affitto. Fin dal
1882, iniziarono a giungere pittori, scultori, scrittori, fotografi, poeti, danzatori e musicisti che si alternarono negli
studi anche dopo la morte di Strohl-Fern, avvenuta nel 1927, quando la Villa divenne proprietà dello Stato francese per
lascito testamentario.” Transcrição livre em português do “Comunicado a Imprensa”, publicado por ocasião da abertura
da mostra Artisti a Villa Strohl-Fern luogo d’arte e di incontri a Roma tra il 1880 e Il 1956, realizada em Roma, no Musei
di Villa Torlonia (Casino dei Principi, Via Nomentana 70), de 21 de março a 17 de julho de 2012. Disponível em: http://
www.museivillatorlonia.it/mostre_ed_eventi/mostre/artisti_a_villa_strohl_fern. Acessado em 23/08/2015.
6  DAZZI, Camila. Os Professores da Escola Nacional de Belas Artes e a arte italiana oitocentista: concepção e imple-
mentação da Reforma de 1890. in: Revista Arte&Ensaios, p. 79. Disponível em: http://www.ppgav.eba.ufrj.br/wp-con-
tent/uploads/2014/05/artigos-camila.pdf. Acessado em 02/09/2015. Outro registro encontra-se em DAZZI, Camila.

222
de sua carreira: não somente desenhos de ateliês e colegas, mas também trabalhos em
pintura e mesmo uma preciosa coleção de imagens fotográficas, todas produzidas ao
longo de mais de quarenta anos, material sobre o qual nos debruçaremos a partir de
agora.

O mais antigo desses trabalhos é o


curioso registro do próprio artista
com um grupo de amigos [Figura
1]. O desenho, sem título, não
tem data, mas provavelmente foi
executado entre 1878-1880. Vemos
nesse desenho um grupo de cinco
pessoas, provavelmente amigos,
visto que estão nomeados: Scholz,
Schomotbon (o nome é ilegível
e não sabemos se ele se refere ao
homem que esta na cadeira de
rodas ou a aquele que o empurra),
Enghelbert e o pequenino Pedro,
todos de costas. À direita da
imagem, um quadro com quatro
figuras, e uma delas assemelha-se a alguém com uma paleta na mão frente a uma Figura 1 - Pedro Wein-
gärtner, Sem título, sem
pintura. Há um descompasso entre os amigos que caminham e a pintura, com se fosse data. Grafite, 14,5 x 21
dois momentos desenhados em separado... cm. Assinada no can-
to inf. Dir. PW. Cole-
Do mesmo período7 são o desenho8 (1879) e a foto de ateliê9 (sem data), que nos ção particular, Porto
Alegre. Fonte: Pedro
mostram uma mesma personagem: em um praticável estão a modelo nua e um rapaz,
Weingärtner - Obra
este com uma paleta na mão esquerda. Informação não documentada afirma que Gráfica. Porto Alegre:
se trata do sobrinho do pintor, cujo nome ignoramos. Mas talvez seja somente um FUMPROARTE, 2008,
p. 118.
colega de ateliê, o que nos leva a considerar que esta foto foi feita no início da estadia
do artista na Europa. Em 1879, Weingärtner acabara de chegar à Alemanha e estava
matriculado na Escola de Artes Grã-ducado de Baden, em Karlsruhe, na turma
Theodor Poeckh. A foto indica claramente tratar-se de um ateliê, com o praticável,
os panos para fechar o fundo, a confusão e o descuido generalizado, a prateleira
com obras no alto e mesmo uma caricatura entre as pinturas. O relógio marca 03h15
minutos...

Em 1882 Weingärtner, depois de um período de dificuldades e privações na Alemanha,


muda-se para Paris. Matricula-se na Académie Julien, onde estuda sob a orientação

A  Associazione  Artistica Internazionale di Roma  - sodalício de artistas estrangeiros residentes na Itália em fins do
século XIX. in: Revista 19&20. Disponível em: http://www.dezenovevinte.net/ensino_artistico/aairoma.htm Acessado
em 02/09/2015.
7  Algumas obras aqui referenciadas não serão reproduzidas. Para sua localização informo as publicações nas quais elas
poderão ser examinadas.
8  Pedro Weingärtner. Sem título. Desenho, 25,2 x 17,1 cm. Assinado e datado à esq. PW, 2/79 (1879). Fonte: Registro
Pedro Weingärtner - Obra Gráfica (Porto Alegre: FUMPROARTE, 2008, p. 132).
9 Autor desconhecido. Sem título, sem data. Medidas ignoradas. Coleção Percy Becker, Porto Alegre (RS). Fonte: Ar-
quivo digital do autor.

223
de Tony Robert-Fleury (1837–1911)
e de William-Adolphe Bouguereau
(1825–1905), com quem apura o
gosto por temas clássicos. A pintura
Ateliê ou Academie Julian, é uma obra
sem data [Figura 2], mas certamente
retrata um momento da permanência
do pintor em Paris no período entre
1882 e 1883. A célebre Académie
Julien... Lugar de eleição de tantos
estudantes brasileiros e que faz parte
do imaginário dos estudiosos da arte
do século XIX/ XX. Weingärtner não
foi pensionista da Academia Imperial
de Belas Artes e sua permanência em
Paris foi feita as suas próprias expensas,
razão pela qual seu nome não aparece
Figura 2 - Pedro Wein- nos principais estudos sobre a famosa Académie e seus alunos brasileiros.10 Mas a
gärtner, Ateliê ou Aca- inegável importância da Académie Julien para os artistas brasileiros finisseculares
demie Julian, sem data.
Óleo sobre tela, 61,2 rendeu trabalhos importantes, como os lembrados por Arthur Valle, que escreveu:
x 78,2 cm. Coleção
MARGS – Museu de Pour l’étude de la peinture brésilienne, l’Académie Julian revêt une importance toute
Arte do Rio Grande do particulière dès lors qu’elle a été, sans aucun doute, le plus important point de confluence
Sul Ado Malagoli. Fon- de nos artistes en Europe durant la période délimitée ici. Des auteurs tels que Jorge Coli,
te: Arquivo digital do
Caleb Farias Alves e José Luis Nunes avaient déjà souligné l’importance de l’institution,
autor.
et plus récemment, Ana Paula Cavalcanti Simioni lui a consacré une bonne partie d’un
article, dans lequel elle a divulgué d’importantes données obtenues directement des
sources primaires françaises.11

A pintura nos apresenta uma sala acanhada, apertada e semi-obscura. À direita


de quem olha para a tela, há uma plataforma elevada, com uma cortina de fundo,
serventia para os modelos posarem, e, sobre ela, uma caixa com tecidos. Frente a esta
plataforma estão cuidadosamente alinhados os bancos para os estudantes, com seus
necessários anteparos para repouso dos pés. Sobre o último banquinho em direção ao
fundo, uma prancheta com uma folha presa com grampos: nela esta desenhada uma
academia feminina. À esquerda, bem no primeiro plano, um banco com uma caixa de
pintura aberta, deixando ver os pincéis, as tintas e o trapo de limpeza. Indo em direção
ao fundo vê-se dois estudantes de costas, concentrados e trabalhando. O primeiro usa
um casaco escuro e o segundo veste um casaco ou bata branca e tem a cabeça coberta
com uma touca, ou gorro. Não vemos o que fazem, mas a tela do último recebe uma
10  SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. A viagem a Paris de artistas brasileiros no final do século XIX. Tempo So-
cial, revista de sociologia da USP, v. 17, n. 1 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi-
d=S0103-20702005000100015. Nesse artigo Simioni transcreve a lista de brasileiros que estudaram na Académie Julian,
obtida junto aos Archives Nationales de Paris, na qual aparece o nome de Weingarter e o período, mas não indica seus
professores.
11  VALLE, Arthur. Pensionnaires de l’École National des Beaux-Arts á l’Académie Julian (Paris) durant la 1ère Ré-
publique (1890-1930). 19&20, Rio de Janeiro, v. I, n. 3, nov. 2006. Disponível em  : http://www.dezenovevinte.net/
ensino_artistico/academia_julian_fr.htm.

224
generosa luminosidade advinda da iluminação zenital que vem da clarabóia. Essa
clarabóia, mais do que distribuir a generosa luz, tem desenhos e pinturas decorando-a:
são caricaturas e retratos, trabalhos horríveis, provavelmente eleitos dentre os piores
ali produzidos, para ficarem como um alerta aos recém-chegados: eis para onde
vocês irão se não for bom o bastante... O fundo da sala guarda muitas surpresas: no
canto esquerdo, a frente dos estudantes trabalhando, vemos um teleiro com inúmeros
trabalhos empilhados. No fundo, indistinto, imaginamos dois móveis: um grande
balcão com coisas sobre ele, uma prateleira à sua direita, com objetos e, na frente dele
outra prateleira com inúmeras peças de gessos, provavelmente modelos para serem
copiados. Na parte inferior pequenas cabeças de expressões, talvez. Na parte alta um
torso reclinado, cópia de algo antigo, clássico e venerável; uma figura sentada de
difícil nitidez e, mais ao fundo uma grande figura de pé - talvez o escravo acorrentado,
de Michelangelo, visto de costas? Bem a frente disso tudo, antes da plataforma para
os modelos, o fogão a carvão, para minimizar os efeitos do frio. Ao final temos que
nos render: é um retrato, a um só tempo, fascinante e emocionante de um lugar de
trabalho. Lugar que corresponde às aspirações de um jovem americano do sul, vindo
de seu distante país, depois de passar por experiências difíceis na Alemanha e, agora,
em Paris, em busca do seu sonho. Um lugarzinho obscuro, romântico, tão idealizado
quanto um ateliê cenográfico para as Cenas da Vida Boêmia, de Henri Murger, ou
para a melodramática ópera La Boheme, de Giacomo Puccini.

Anne Martin-Fugier nos relata que, em 1868, Rodolphe Julian (1839–1907),


considerando que Paris carecia de ateliês livres, abre sua primeira academia na
Passage des Panoramas, 29. A academia funciona diariamente, menos aos domingos,
das 8 horas da manha até a noite e a inscrição anual era de 700 francos, para oito
horas diárias de curso, ou 400, para a meia jornada. Para os cursos diários podia-se
pagar por sessão, adquirindo um carnê de 40 francos, com direito a dez sessões de
quatro horas cada. O empreendimento faz enorme sucesso e Julian abre uma nova
sede no 48, rue du Faubourg-Saint Denis (1880), e outras no 5, rue de Fromentin,
além da sede no 3, rue de Berri, reservado as mulheres (1888). Por volta de 1890 a
academia contava com cerca de 600 alunos, divididos entre os diversos ateliês. Os
alunos trabalhavam sobre a direção de artistas de renome, contratados por Julian no
intuito de atrair a clientela estrangeira: Jules Lefebvre (1834–1914), Tony Robert-
Fleury, William Adolphe Bouguereau, Jean-Paul Laurens (1838–1921), Gabriel Ferrier
(1847–1914), Jean-Joseph Benjamin Constant (1845–1902), Gustave Boulanger
(1824–1888), Léopold Flameng (1831–1911) Albert-Ernest Carrier-Belleuse (1824–
1887) e atuavam por períodos de um mês, em alternância, como William Bouguereau,
com quem Weingärtner trabalhou, que dirigia um dos ateliês em alternância com
Tony-Robert Fleury.12

Quatro desenhos de Pedro Weingärtner, do mesmo período, apresentam artistas


trabalhando em ateliês. Pela datação provavelmente todos tiveram a Académie

12  MARTIN-FUGIER, Anne. La vie d’artiste au XIXeme siècle. Paris: Éditions Louis Audibert/Hachette,
2007. Os dados informados foram transcritos, de maneira simplificada, a partir das informações disponí-
veis nas páginas 58 a 60 da obra.

225
Julian como cenário. O primeiro deles,13 datado de 1882, nos mostra uma curiosa
cena com três alunos trabalhando conjuntamente. A notar-se a composição arrojada
com as três figuras em perspectiva, com destaque para a do primeiro plano, a mais
próximo do artista. O segundo,14 também do mesmo ano, mostra um pintor com sua
bata de trabalho, a calça provavelmente xadrez, sem chapéu, frente ao cavalete com
sua paleta na mão esquerda e com a mão direita aplicando tinta sobre uma tela postada
no cavalete. O primeiro impulso é o de considerá-lo um autorretrato. Certamente
que o modelo parece-se com Weingärtner, no auge dos seus 29 ou 30 anos. Mas não
podemos ter certeza, apesar de que se parece, mais abatido e menos formal, com
o mesmo homem do desenho datado de 1883,15 trajado normalmente. Um colega
de ateliê? Um amador que copia algo? O que ele segura na mão esquerda e observa
tão atentamente? Não é uma paleta, certamente, pois ele
não voltaria um olhar tão atento para algo que ele tem sobre
absoluto domínio. Talvez um espelho redondo no qual se
olha, uma fotografia, uma gravura que copia? Evidentemente
que copia, pois sua mão direita segura algo na posição exata
de quem desenha ou pinta. Mas por que esta de paletó e
de chapéu, com se estivesse ali de passagem? Faz frio na
Académie Julian? Um esboço rápido, ágil, domínio pleno
do desenho de observação, pegando o modelo no calor da
ação, sem titubeios, sem dúvidas: precisão e presteza. O
último desenho dessa série parisiense16 traz a indicação
do nome “Oestringer”, infelizmente parcialmente ilegível.
Possivelmente um colega em trabalho, com pincel e paleta
frente ao cavalete, com um banco ao lado sobre o qual
vemos uma régua ou haste de madeira de uso indefinido.
Datada de quatro de abril de 1883 é a carta de recomendação
de William-Adolpho Bouguereau, certificando o bom
desempenho do artista17, que Weingärtner recebe e enviará
à Legação Imperial do Brasil e ao imperador D. Pedro II,
solicitando auxílio para prosseguir com seus estudos na
Figura 3 - Pedro Wein- 13  Pedro Weingärtner. Sem título [No atelier], 1882. Desenho, 9 x 15 cm. Assinado canto inferior dir. P.Weingärtner,
gärtner, No atelier, Paris, 1882. Coleção Particular, Porto Alegre, RS. Fonte: Pedro Weingärtner - Obra Gráfica. Porto Alegre: FUM-
1884. Óleo sobre ma- PROARTE, 2008, p. 75.
deira, 54 x 38 cm. Col. 14  Pedro Weingärtner. Sem título, 1882. Grafite, medidas ignoradas. Assinado canto inferior dir. P.Weingärtner, Paris,
Sérgio e Ecilda Fadel. 1882. Coleção Particular, Porto Alegre, RS. Arquivo digital do autor.
Fonte: O Brasil do sé- 15  Pedro Weingärtner. Sem título, 1883. Grafite, 21 x 15 cm. Assinado canto inferior dir. P.Weingärtner, Paris, 1883.
culo XIX na Coleção Coleção particular, Porto Alegre, RS. Fonte: Arquivo digital do autor.
Fadel, p. 209. 16  Pedro Weingärtner. Sem título, 1884. Desenho, 16 x 10 cm. Assinado e datado canto inf. dir. P.Weingärtner, Paris,
1884. Coleção particular, Porto Alegre (RS). Fonte: Pedro Weingärtner - Obra Gráfica (Porto Alegre: FUMPROARTE,
2008, p. 79).
17  Como não temos testemunhos do relacionamento de Weingärtner com Bouguereau, consideramos que este últi-
mo deveria tê-lo em alta consideração, visto que este lhe forneceu a famosa carta de recomendação. Um documento
esclarecedor das relações estabelecidas pelo famoso artista e seus alunos é o que Anne Marie-Fugier transcreve (op.
cit. p. 60-61): “Alfred Nettement, qui étudiait dans l’atelier de la rue Dragon, se rappelait le sérieux et la mansuetude
de Bouguereau: ‘le mercredi et le samedi, Bouguereau arrivait souvent avant les élèves, et s’enfermait avec son ami
M. Julian, pour l’interroger sur le travail des élèves, sur leur zèle, leurs efforts, les progrès accomplis, les conseils et les
encouragements à leur donner. Puis on passait à la correction. Bougereau s’arrêtait devant chaque chevalet, critiquait
le dessin, modifiait la palette et ne finissait jamais sans um encouragement: Mon bom ami, nous verrons cela samedi’.”

226
Europa. No final desse mesmo ano ele passa privações em Paris. A concessão da
bolsa virá em janeiro de 1884 e em julho do mesmo ano estabelece-se em Mayerhofer
(Tirol).

Datada desse ano é a pintura intitulada No atelier [Figura 3]. A pintura mostra um
canto de ateliê, iluminado e luminoso, com a grande janela à esquerda, aberta para os
tetos da cidade, parcialmente vedada pela cortina, um banco que recobre a platibanda
da janela na qual a modelo esta sentada, acima dela vemos a gaiola com o pássaro
amarelo. Os objetos: o mascarão de gesso, o relevo de gesso, ambos pendurados na
janela à direita da modelo, as plantas que proliferam, a sombrinha oriental aberta e
presa ao teto, a mesa parcialmente coberta com um tecido rosa e, sobre ela o vaso
com flores, o cavalete com a tela, o tecido para limpeza, a caixa de pintura, a pasta de
desenhos, os desenhos, gravuras e folhetos abertos espalhando-se pelo chão, dentre
eles um anúncio ou catálogo do Salon, no canto esquerdo da pintura a tela voltada
para a parede e, nela, assinado o nome do artista. Quem é a mulher com pincel e
paleta? Uma pintora amadora em seu ateliê ou, mais provavelmente, uma modelo
posando de artista, talvez pela sua pose tão característica...

Alexei Bueno escreve,18 em trxtointitulado “O lugar do artista,” que


Exemplo característico do gênero (pintura de ateliês), na coleção Fadel, é No atelier, de
Pedro Weingärtner, pintado provavelmente em Paris, pela arquitetura dos telhados que se
vêem através da grande vidraça. É uma pintora quem segura a palheta, entre uma gaiola
de pássaros e a caixa de tintas, e a nota exótica da decoração é dada pela sombrinha
oriental aberta no alto, ao fundo.

Na legenda da obra, reproduzida na página 209, ele informa, como uma espécie
de legenda da imagem, que é “uma cena parisiense por um rapin brasileiro.” Não
concordamos inteiramente sobre essa atribuição, pois sobre essa expressão – rapin –
é importante considerar que ela geralmente era aplicada aqueles iniciantes de ateliê
e não nos parece adequada quando aplicada a Weingärtner. Martin-Fugier19 explica
que
Les élèves nouveaux venus (comme dans les ateliers privés et les académies) s’appelaient
rapins. Ce terme est d’origine obscure: le Grand Dictionnaire universel de Pierre Larousse
suggère qu’il est peut-être mis pour raspin, râpeur ou broyeur de couleurs, ou qu’il vient
du nom rapine – em 1824, um rapin est um “petit marauder”. Il désignait les élèves qui
n’en étaient qu’à copier des dessins ou qui dessinaient “d’après le relief.”

E complementa, em nota a essa afirmação, que Le rapin était um "peu domestique


jusqu’à ce qu’un autre novice le relaie,"20 se apoiando em Delécluze, que escreveu
que, no início do século XIX o rapin “était une espèce de vassal, d’esclave même,”
designando, por fim que o termo se aplicava a uma espécie de artista fracassado.

18  O Brasil do Século XIX na Coleção Fadel. Rio de Janeiro: Instituto Cultural Sérgio Fadel, 2004, p. 212-213.
19  MARTIN-FUGIER, Anne. Op. cot., p. 27.
20  Conforme Étienne-Jean Delécluze, in Louis-David, son école et son temps (Paris, Macula, 1983, p. 86), citado em
MARTIN-FUGIER, Anne, p. 27, nota 2.

227
Pensando alto sobre a possível localização dessa tela – Paris, Munique ou Mayerhofer
– é importante considerar que a cronologia de Weingärtner é incerta em muitos
momentos: antes de julho de 1884 ele estava ainda em Paris, se dirigindo a Alemanha,
mais precisamente a Mayerhofer, no mês em questão. Registro consistente de sua
presença em Munique só ocorrerá em 1885, quando estava estudando na academia
local, onde trabalhou e recebeu, segundo seus biógrafos, forte influência do realismo
de Carl Theodor von Piloty (1826–1886) .

Pintada na Alemanha é a tela intitulada Recanto de ateliê, München,21 datada de 1884,


sobre a qual já indicamos uma importante aproximação com a pintura de Adolph von
Menzel (1815–1905), especialmente aquela intitulada Das Balkonzimmer (1845).22
Outra tela, da qual não temos notícia, é aquela que Leandro Telles23 registra como Der
Figura 4 - Pedro Wein- besuch in atelier, informando que foi exposta na Moderne Gallerie. Provavelmente é
gärtner, Ateliê de Pedro a mesma que Angelo Guido24 conhecia e que descreve longamente:
Weingärtner em Roma
[título atribuído], 1890. A mais importante dentre essas primeiras obras é um quadro de gênero que representa uma
Óleo sobre tela, 35 x 54 cena de atelier, pintada com tal minucioso cuidado que alcança a exatidão fotográfica.
cm. Coleção Geneviève
Aliás, desse quadro só conhecemos a fotografia, pela qual se pode constatar como nesse
e Jean Boghici, Rio de
Janeiro, RJ. Fonte: Pedro período a forma rigorosamente realista era tratada pelo pintor. Nesse sentido, o desenho
Weingärtner 1853-1929 é irrepreensível e, se não fosse a assinatura no alto, à direita, ficaríamos duvidando de
| Um artista entre o Ve- se tratar de obra de pintura e não de fotografia, tal a objetiva realidade e a exatidão dos
lho e o Novo Mundo. São
detalhes com que aparecem a janela ao fundo, o cavalete com um quadro, os móveis, o
Paulo: Pinacoteca do Es-
tado de São Paulo, 2009, biombo, o tapete, as cadeiras torneadas, a pequena mesa ao centro, os vasos com folhas
p. 63. no peitoril da janela e as quatro figuras que anima a cena: o pintor, provavelmente uma
senhora sentada de chapéu, com um tipo bem
germânico, que esta olhando para um álbum
que abriu à altura dos olhos; e uma dama
de branco, de pé, cuja toilette está recebendo
retoques de outra dama sentada e igualmente
de chapéu. Uma cena, como se vê, da vida
real, onde é notável a naturalidade dos gestos
das figuras e onde o ambiente de intimidade
é muito bem conseguido. Esse quadro,
segundo informação de Carlos Von Koseritz,
foi vendido em Hamburgo por 1.000 francos.

Registro importante na produção


do artista é a pintura Ateliê de Pedro
Weingärtner em Roma [Figura 4]. O
21  Pedro Weingärtner. Recanto de ateliê München, 1884. Óleo sobre madeira, 38 x 29 cm. Coleção Carlos Eduardo Cus-
tódio, Porto Alegre, RS. Fonte: Pedro Weingärtner 1853-1929 | Um artista entre o Velho e o Novo Mundo (São Paulo:
Pinacoteca do estado de São Paulo, 2009, p. 42).
22  Ver GOMES, Paulo. Pedro Weingärtner Sein Werdegang und Werk im 19. Martius-Staden-Jahrbuch, 2012, Nr. 59,
p. 187-209 e também em GOMES, Paulo. Pedro Weingärtner e o Naturalismo: aproximações e correspondências. Anais
do 23ª Encontro Nacional da ANPAP, p. 284. Disponível em: http://www.anpap.org.br/anais/2014/ANAIS/ANAIS.
html#. Acessado em 23/08/2015.
23  TELLES, Leandro. O Príncipe dos pintores rio-grandenses – Pedro Weingärtner. Correio do Povo, Caderno de
Sábado, volume VI – ano III, nº 48, Porto Alegre, 03.10.1970, p. 3-7.
24  GUIDO, Angelo. Pedro Weingärtner. Porto Alegre: Divisão de Cultura – Diretoria de Artes da Secretaria de Edu-
cação e Cultura do Rio Grande do Sul, 1957, p. 37.

228
primeiro impulso seria reconhecer aqui o ateliê descrito por Koseritz, mas as datas
não correspondem. Mais certo é considerar que essa pintura representa o ateliê
romano da Villa Marguta, onde o artista estava desde 1889. Ruth Sprung Tarasantchi25
descreve cuidadosamente o prédio na Via Margutta 53-B, onde ficava o ateliê e, no
mesmo texto, ela analisa a pintura:
Era no segundo andar deste edifício que ficava o ateliê de
Pedro Weingärtner, como podemos confirmar pelos papéis
de cartas que ele mandava ao amigo Joaquim Nabuco, onde
constava este endereço. Não cheguei a subir até o ateliê. [...] No
entanto Weingärtner nos deixou um precioso registro do que
eram esses espaços de artista na Roma do final do século XIX,
provavelmente retratando o seu próprio ateliê na Via Margutta.
Em uma tela interessante, ele coloca um pintor – talvez um
auto-retrato? – em seu ateliê preparando as tintas, enquanto
a modelo se veste para posar em trajes Greco-romanos. A tela
é de 1890 e o artista não tinha ainda completado 40 anos. Ali
vemos um homem jovem de vasta cabeleira e bigodinho. Veste
terno escuro e tem uma gravatinha borboleta. Como olha para baixo, não se vêem seus Figura 5 - Fotógrafo
desconhecido, Sem títu-
olhos. Lindos olhos azuis, que denunciariam sua origem “tudesca”, (como era chamado
lo. Fotografia sobre pa-
o alemão no dialeto de Roma), se este fosse de fato um auto-retrato. O que pode ser pel, 10 x 20 cm (aprox.).
desmentido – ou disfarçado – pelos cabelos escuros da figura que vemos na tela. No Coleção Percy Becker,
entanto, inúmeros outros quadros, alguns objetos de decoração e as paredes provavelmente Porto Alegre (RS). Fon-
te: Pedro Weingärtner
revestidas em tecido de brocado parecem ser uma indicação de que fosse mesmo o próprio
1853-1929 | Um artista
ateliê do artista o que ele retratara em sua tela de temática greco-romana. Mais um traço entre o Velho e o Novo
deixado pelo passado, a nos restituir, ainda que na imaginação, o ambiente de trabalho Mundo. São Paulo: Pi-
do artista, levando-nos a nos aproximarmos dele... nacoteca do Estado de
São Paulo, 2009, p. 208
Outros trabalhos, datados dos anos seguintes, trazem
preciosas informações para essa aproximação ao
ambiente e ao trabalho do artista. Destacamos a
preciosa coleção de fotografias de ateliê, pertencentes
aos seus herdeiros, que descrevem não somente o
local, mas também retratam os modelos e, dado
especialmente notável, apresentam obras em trabalho
ou acabadas. Dentre essas destacamos a fotografia
[Figura 5] que mostra a modelo sentada e uma ampla
visão de um canto do ateliê, onde podemos observar Figura 6 - Fotógrafo
a caixa de borboletas, que vai ser protagonista da desconhecido, Sem títu-
lo, sem data. Fotografia
tela As borboletas,26 e também a desordem do local, sobre papel, 10 x 20 cm
coberto de pinturas e esboços, de móveis e de objetos. (aprox.). Coleção Percy
Becker, Porto Alegre
Outra imagem [Figura 6] que nos permite uma (RS). Fonte: Arquivo
identificação e certificação precisa de uma obra é digital do autor.

25  TARASANTCHI, Ruth Sprung. O Pintor Pedro Weingärtner. In Pedro Weingärtner 1853-1929 | Um artista entre
o Velho e o Novo Mundo. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2009, p. 61.
26 Pedro Weingärtner. As borboletas, 1910. Óleo sobre tela, 47 x 69 cm. Coleção APLUB, Porto Alegre, RS. Registro:
PESP, 209, p. 61.

229
Figura 7 - Fotógrafo
desconhecido, Sem títu-
lo, sem data. Fotografia
sobre papel, medidas
ignoradas. Coleção
Vera Chaves Barcelos,
Viamão, RS. Fontes:
Arquivo digital do au-
tor e Pedro Weingärt-
ner 1853-1929 | Um
artista entre o Velho
e o Novo Mundo. São
Paulo: Pinacoteca do
Estado de São Paulo,
2009, p. 211

Figura 8 - Pedro Wein-


gärtner, Sem título, 1917.
Desenho, 2,5 x 22 cm.
Coleção Vera Chaves
Barcellos, Viamão, RS.
Fonte: Arquivo digital
do autor.

Figura 9 - Pedro Wein-


gärtner, Pintor no Cam-
po, 1925. Água-tinta e
água-forte, 12 x 23,5 cm.
Matriz sem assinatura e talvez a mais importante das fotografias da coleção Percy Becker (1930), na qual,
sem data. Coleção Fer- além dos modelos, podemos observar algumas pinturas nas paredes e a imagem do
nando Renner Torelly,
próprio artista, no canto direito, atrás do grupo de modelos. Acima dos modelos está
Porto Alegre, RS. Fon-
te: Pedro Weingärtner a Académie Julian (MARGS) e uma tela cujo paradeiro é desconhecido, mas da qual
- Obra Gráfica. Porto temos o registro em um desenho preparatório.27
Alegre: FUMPROARTE,
2008, p. 99. As três imagens apresentadas na sequência [Figura 7, Figura 8 e Figura 9] trazem um
importante contributo para o conhecimento dos procedimentos artísticos de Pedro
Weingärtner. A foto, o desenho e a gravura registram um momento dos últimos anos
da vida do artista, entre 1917 e 1925. Mesmo não sendo representações de ateliê, mas
antes de modo de atuar, as três imagens nos instruem sobre o modo de operar de
Weingärtner, principalmente no que diz respeito ao uso da fotografia.28

Na foto de Weingärtner em seu ateliê romano [Figura 10], temos um registro de


vários níveis: Weingärtner na pose padrão de um artista bem sucedido, o local de

27 Pedro Weingärtner. Sem título, sem data. Desenho, 12,5 x 17 cm, assinado canto inf. dir. P.Weingärtner. Coleção
particular, Porto Alegre, RS. Fonte: Pedro Weingärtner - Obra Gráfica (Porto Alegre: FUMPROARTE, 2008, p. 128.
28 Ver GOMES, Paulo. Pedro Weingärtner e a fotografia. Boletim_4 - Grupo de Estudos Arte&Fotografia. São Paulo:
CAP-ECA-USP, 2012, p. 33-40), ensaio no qual analiso as relações e os usos da fotografia por Pedro Weingärtner.

230
trabalho e um grande número de obras em destaque,
algumas delas emolduradas: no primeiro plano, à
esquerda do observador, apoiado no chão, está Ceifa;29
ao fundo, emoldurada, A cigarra e a formiga;30 sobre
essa, sem moldura, as Pastoras com cabras (Santa
Marta, Portugal);31 e, no cavalete, uma pintura da fase
greco-romana não identificada. A fotografia data,
provavelmente, do final de 1909 ou começo de 1910.
Essa afirmação se deve ao fato de que o ano de 1910
ele passa quase todo no Brasil: inicialmente em Porto
Alegre, quando contrai casamento com Elisabeth
Schmitt, depois em outubro ele expõe no Rio de Janeiro
e, finalmente, em São Paulo em dezembro, para a
exposição no Palacete Martinico.32 O ano de 1911 ele
está, aparentemente, em Porto Alegre, pois só teremos
registro de seu retorno à Itália em 1912.

São muitos os trabalhos e fotografias que têm como


tema Pedro Weingärtner e seu ateliê. Nessa pequena
amostragem procuramos trazer aquelas que são mais
representativas para compreender algumas questões
sobre a importância do artista e sua auto-representação,
seja em retratos ou dos ateliês, os locais de sua atuação.

A questão da auto-imagem caracteriza-se como um


sintoma de sua época, quando os artistas precisavam se
firmar como profissionais, afastando de si a imagem romântica do dândi ou boêmio. Figura 10 - Fotógra-
Era um modo de reforçar sua identidade enquanto membro da boa sociedade, integrado fo desconhecido, Sem
título [Pedro Wein-
e integrador, ao mesmo tempo artesão e intelectual. Outro aspecto importante a ser gärtner em seu ateliê
destacado através dessas imagens – desenhos, pinturas e fotografias – é seu aspecto romano], sem data.
enquanto documentos para o conhecimento da vida e da obra do artista. É uma Fotografia, medidas
ignoradas. Coleção
oportunidade de adentrar no mundo quase secreto e praticamente desconhecido da particular, Porto Ale-
vida dos artistas dos séculos XIX e XX. Essas imagens, relativas a Pedro Weingärtner, gre, RS. Fonte: Arqui-
nos fazem imergir num universo rico de investigações e possibilidades e, por que não, vo digital do autor e
Pedro Weingärtner
fértil de fantasias. 1853-1929 | Um ar-
tista entre o Velho e
o Novo Mundo. São
Paulo: Pinacoteca do
29 Pedro Weingärtner. Ceifa, 1907. Óleo sobre tela, 47 x 98 cm. Coleção particular, São Paulo. Fonte: Pedro Weingärtner
1853-1929 | Um artista entre o Velho e o Novo Mundo. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2009, p. 46.
Estado de São Paulo,
30  Pedro Weingärtner. A Cigarra e a formiga, 1909. Óleo sobre tela, 25 x 37 cm. Coleção particular, SP. Fonte: Pedro 2009, p. 194.
Weingärtner 1853-1929 | Um artista entre o Velho e o Novo Mundo. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo,
2009, p. 71.
31 Pedro Weingärtner. Pastoras com cabras (Santa Marta, Portugal), 1909. Óleo sobre tela, 35 x 49 cm. Coleção Simão
Mendel Guss, São Paulo. Fonte: Pedro Weingärtner 1853-1929 | Um artista entre o Velho e o Novo Mundo. São
Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, 2009, p. 79.
32  ROSSI, Miriam Silva. Circulação e mediação da obra de arte na Belle Époque paulistana. Anais do Museu Paulista,
volume 6/7, nº 007, São Paulo, 2003, p. 113. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/anaismp/v6-7n1/05.pdf. Cita a
autora: “Entre as exposições realizadas em edifícios localizados no Largo do Rosário, contam-se a Exposição de Belas
Artes e Artes Industriais, em julho de 1902, a de Pedro Weingartner, em dezembro de 1910, e a dos irmãos Salinas, em
janeiro de 1911, estas duas últimas realizadas nas salas do Palacete Martinico.”
231
232
Delacroix, Michelangelo e
o atelier do artista

Renato Menezes Ramos 1

Charles de Tolnay foi um dos maiores estudiosos de Michelangelo do século XX.


Contemporâneo de outros ilustres intelectuais, tais como Paola Barocchi, Enzo Noè
Girardi, Alessandro Parronchi e Paolo Portoghesi, ele daria contribuições fundamentais
para a compreensão da vida, da obra e da fortuna crítica do mestre florentino. Em 1962,
pouco tempo depois de publicar seu último volume da monumental coletânea sobre o
artista, a Gazette des Beaux-Arts apresentaria um ensaio de Tolnay a respeito de uma
obra sobre a qual muito pouco havia sido refletido. No ano anterior às recordações
do centenário da morte de Delacroix, o pequeno e quase esquecido quadro intitulado
Michel-Ange dans son atelier [Figura 1] era iluminado pelas ideias do historiador
húngaro.2

Como erudito que era, Tolnay iria dispor de um amplo instrumental teórico para
analisar o complexo fenômeno que reinventou sensivelmente a figura de Michelangelo
na França ao longo do século XIX e, especialmente, o lugar que o artista italiano
ocupava na concepção artística de Delacroix. Renunciando à exaustiva iconologia
de Panofsky, o historiador já havia apontado para uma postura literária flexível
orientada pela imagem e sempre preparada para satisfazer as exigências filosóficas e

1 Doutorando em História da Arte pela École d’Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França. Uma versão
ampliada e, portanto, mais desenvolvida, do presente texto será publicada no numero 12 da Revista Caiana com o titulo
“Michelangelo em seu atelier, de Delacroix”.
2 TOLNAY, Charles. Michel-Ange dans son atelier, par Delacroix. GBA. Paris, 1962, pp. 43-53.

233
artísticas na interpretação.3 Depois de examinar as possíveis
coordenadas do pintor francês para a composição da obra, o
historiador evoca uma das versões para Rafael e a Fornarina,
de Ingres, na qual um homem de longa barba aparece ao
fundo da composição, portando nas mãos alguns materiais
de arquitetura [Figura 2]. Reconhecendo Ingres como
autêntico antípoda de Delacroix, assim como Rafael estava
para Michelangelo, tema de suas respectivas obras, Tolnay
não hesita em identificar aquele homem sombrio como o
próprio Michelangelo, invejoso, observando a plenitude
amorosa de seu “rival,” reforçando ainda mais a oposição
entre a graça rafaelesca e a misteriosa solidão michelangiana.
Se assim fosse, Ingres teria formulado uma imagem de
Michelangelo que inverte radicalmente toda a sua fortuna
crítica oitocentista, que o entende invariavelmente como
vítima da inveja4 e não o invejoso, como nesse momento
conclui o especialista. Tolnay também abstrai o fato de que,
para Ingres, representar o velho mestre como quer que fosse,
constituía na quebra do mais absoluto rechaço que, durante
toda a sua vida, julgou merecer Michelangelo. Outras versões
Figura 1 – E. Dela-
para a obra seriam realizadas, o sujeito misterioso ao fundo do cenário chegaria a
croix, Michelangelo
em seu ateliê. 1849-50. desaparecer, mas outros exemplares nos
Óleo sobre tela. 40 x 32 asseguraram que sua figura retornaria em
cm. Montpellier, Mu-
diversos experimentos sobre o tema.
seu Fabre.
Evidentemente, Tolnay, mesmo tendo visto
pessoalmente a obra, fato que consolida
a sua crença e estabiliza a ausência de
documentos para sustentar tal hipótese,
estava gravemente equivocado, pois
se tratava de Giulio Romano, aluno e
herdeiro de Rafael, cuja atividade como
arquiteto é bem conhecida.5 Ao menos
Figura 2 - J. A. D. In- desde Henri Delaborde,6 seria identificada
gres, Rafael e a Forna- na personagem a imagem de Romano, e a
rina. 1813-1840. Óleo
sobre tela. Nova York, coerência de Ingres, em verdade, jamais
Coleção privada. teria sido sacrificada. O equívoco de Tolnay

3 BELTING, Hans. O fim da historia da arte: uma revisão dez anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006, pp. 221.
4 O topos da superioridade de Michelangelo ativadora da inveja de quem assim o reconhecia é moto para alguns
episódios entre os quais destacam-se a agressão de Michelangelo por Torrigiano, que lhe fraturou o nariz ainda na
adolescência e, mais tarde, conforme suas narrativas biográficas, as artimanhas movidas por Bramante para favorecer
seu favorito Rafael tornar-se-iam grande demonstração desta questão.
5 Cf. HASKELL, Francis. Les maîtres anciens au XIXe siècle. In:______. De l’art et du goût: Jadis et naguèrre. Paris:
Gallimard, 1989, pp. 211, nota 1. Haskell já havia detectado o erro, embora não explicite o texto de Tolnay e tampouco
avance nos problemas teórico-conceituais decorrentes do engano.
6 DELABORDE, Henri. Ingres, sa vie, ses travaux, sa doctrine; d’après les notes manuscrites et les lettres du maître.
Paris: Henri Plon, 1870, pp. 279-280.

234
parece resultar da convergência de dois fatores: por um lado ele, intuitivamente, recorria Figura 3 - É. Carjat,
Retrato de M. Arnaul-
à fórmula do “maldito espião” surpreendido no fundo do ateliê, semelhante ao que det, 1861. Fotografia.
ocorre no retrato de Arnauldet por Carjat, em que Baudelaire aparece parcialmente Paris, Musée D’Orsay
revelado ao fundo [Figura 3] e, por outro lado, ele seria apenas mais uma vítima
Figura 4 - Autor des-
de uma confusão que data do século XVI e, portanto, constitui um problema mais conhecido, Retrato de
complexo, como se pode depreender do Retrato de Michelangelo e Giulio Romano, Michelangelo e Giulio
do Harvard Museum [Figura 4]. No tocante a fisionomia de Michelangelo, naquele Romano. Segunda me-
tade do séc. XVI. Mas-
mesmo ano, em 1962, Tolnay deslizava novamente ao detectar na face de um fauno no sachusets, Harvard
Parnaso, de Rafael, afresco executado entre 1509 e 1511, as feições rugosas do mestre Museum.
florentino, usando anacronicamente
como modelo o busto do artista realizado
por Danielle da Volterra, supostamente a
partir de sua máscara mortuária.7

O ensaio de Tolnay sobre a obra de


Delacroix garantia também a sobrevivência
da chave interpretativa lançada por
Théophille Silvestre no primeiro catálogo
comentado da coleção Bruyas,8 para quem
Figura 5 - E. Dela-
a pintura corresponderia a uma espécie de croix, A morte de Sar-
autorrepresentação espiritual de Delacroix danapalus (detalhe),
em Michelangelo, sugestão à qual 1827. Óleo sobre tela.
392 x 496 cm. Paris,
diversos teóricos também posteriormente Museu do Louvre.
retornariam.9 Espiritual, no sentido de
7  TOLNAY, Charles. Un ritratto sconosciuto di Michelangelo dipinto da Raffaelo. Festschrift Friedrich Gerke. Baden-
Baden, Holle Verlag, 1962, pp. 167
8  Galerie Bruyas. Musée Fabre, Montpellier, 1876, pp. 296-306.
9  Entre os quais se destacam: GOTLIEB, Marc. Creation and death in the romantic studio. Inventions of the studio,
Renaissance to Romanticism. Edited by Michel Cole and Mary Pardo. North Carolina: University North Carolina
Press, 2005, pp. 147-183; Mélancolie, genie et folie en Occident (2005). Direction de Jean Claire. Paris: Gallimard,

235
que nada na face do mestre recordaria qualquer
traço no rosto austero do pintor francês.
Algumas forçosas tentativas de interpretação
também identificariam o retorno do anti-herói
Sardanapalus [Figura 5], que se rende prostrado
à loucura e ao desespero que invade seu reino
em chamas, segundo a obra de Byron. A única
voz dissonante viria de Lee Johnson, um dos
mais importantes estudiosos de Delacroix, que
reconheceria na imagem a derivação de um
modelo constituído por Robert Fleury10 [Figura
6]. Embora a hipótese de Johnson não seja de
todo descartável, é preciso estar previamente
consciente de que tanto Fleury quanto Delacroix
inseriam-se na longa iconografia que identifica
em Michelangelo uma profunda expressão da
melancolia e uma constante abnegação de seu
trabalho, traços frequentes na representação do
mestre entre os artistas franceses ao longo do
século XIX.

Desde muito cedo, Delacroix manifesta seu


interesse por Michelangelo e, em 1822, Dante e
Figura 6 - A. Mouille-
ron, a partir de pintura Virgílio no Inferno, sua primeira grande obra, daria provas de tamanha admiração.
desaparecida de Robert Em 1824 o pintor francês já sabe exatamente que o mestre florentino não exerce
Fleury, Michelangelo. sobre si a função de um repertório de figuras extasiantes, como um longo inventário
Gravura. Século XIX.
Fonte: The paintings de formas corpulentas e carnes vibrantes, de estiramentos musculares em completa
of Eugène Delacroix: lição de anatomia, ainda que fossem estes os aspectos pelos quais Delacroix sentira-
A critical catalogue, se esmagado diante da cópia do Juízo Final que ele nunca pôde ver in situ. Isto ele
1832-1863. Volume III.
Text Lee Johnson. Ox- declarou no ensaio publicado em 1837, na Revue des Deux Mondes,11 quando Xavier
ford: Clarendon Press, Sigalon enviara a Paris a obra que até hoje é conservada na capela da École de Beaux-
1986. Arts. Talvez o seu alvo em Michelangelo estivesse mais expressamente marcado já
na biografia que Delacroix escreveu do mestre pouquíssimo tempo antes de pintar a
tão conhecida Liberdade guiando o povo, em 1830.12 O pintor francês demonstra sua
admiração por um artista que serviu a sua pátria, mas era também permanentemente
atacado por uma dúvida que afetava diretamente o destino de suas obras13. O que
parecia interessá-lo em Michelangelo era justamente a sua capacidade de transpor

2014, pp. 359. Catálogo da exposição.


10  Apud The paintings of Eugène Delacroix: A critical catalogue, 1832-1863. Volume III. Text Lee Johnson. Oxford:
Clarendon Press, 1986, pp. 126-128.
11 Cf. DELACROIX, Eugène. Sur le Jugement Dernier. Revue des Deux Mondes. Paris. Tome XI. Numéro juillet/août.
1837, pp. 337-344.
12  A célebre carta em que Delacroix comunica a seu irmão a criação de um “tema moderno” referindo-se a Liberdade
guiando o povo data de 12 de outubro de 1830.
13 DELACROIX, Eugène. Michel-Ange. Revue de Paris. Tome XV. Juillet. 1830, pp. 41-58 ; Tome XVI Août. 1830, pp.
164-178.

236
toda a fúria demiúrgica dispensada no contato febril com a matéria por uma constante
melancolia e pela certeza desoladora da brevidade da vida.

“Procure a solidão. Se tua vida é regrada, tua saúde não sofrerá nada por tua retirada.”14
Estas foram as palavras do jovem Delacroix que antecediam uma livre tradução em
prosa do soneto Giunto è già ‘l corso della vita mia,15 acreditando que estivessem
nestas palavras a síntese do memento mori michelangiano expresso ao fim da vida. O
soneto, originalmente anexado em carta a Vasari nos anos de 1550, seria retomado
por Delacroix na biografia do mestre e, no mesmo ano, novamente traduzido por
Sainte-Beuve,16 poeta constantemente lido pelo pintor. De todo modo, claro estava
que Delacroix atraía-se por Michelangelo menos por suas escolhas estéticas e mais
como modelo de conduta.

Afirma-nos Condivi (1553), repetido posteriormente por Vasari (1568), que


Michelangelo, por tão grande o juízo, jamais se contentava com o que quer que
fizesse.17 Por sua constante negação em liderar um ateliê comercial, sua recusa em
aceitar seguidores, suas obras tantas vezes abandonadas incompletas, seu conhecido
mau gênio e seu gosto pela solidão, quis compreender a geração romântica que haveria
no mestre um dom mágico de se comunicar com Deus e não com os homens.18 Já
Delacroix morreria no fatídico ano de 1863 como artista pertencente a um passado
que, aparentemente, nada lhe devia: ele, analogamente, não havia deixado grandes
discípulos e sua arte já não mais podia acompanhar o que a revolução da pintura
irrompida por Courbet e Manet requeria.

No necrológio de Delacroix, Alexandre Dumas encerra-o lamentando tê-lo visto


expirar submerso em dívidas e em absoluta solidão, depois de convulsionar febril
nos braços de sua fiel governanta, narrando assim o fim trágico de um autêntico
artista romântico.19 Decerto, Dumas contribui para a criação do mito Delacroix como
artista frustrado, espreitado pelo fracasso e seduzido pela autodestruição. É assim
que, curiosamente, ele tenta resolver o problema da amargura que acompanhou
Delacroix até os últimos dias de sua existência por não ter conhecido a Itália e não
ter, portanto, estudado exaustivamente os grandes mestres e os remanescentes da
Antiguidade Clássica. Dumas localiza-o entre os artistas sem mestre, ou mestres
apenas de si mesmo.20

Delacroix conhecia a Itália através de Stendhal, cuja Histoire de la Peinture en Italie


(1817) e Promenade dans Rome (1829) ele leu atentamente e deixou registradas notas
nas quais ele voltaria até o fim da vida. Certamente, foi a sua distância da Itália
e sua capacidade de abstração do passado que lhe permitia um profundo sentido
de liberdade histórica e lhe assegurava a certeza de que fazer arte e fazer história

14 DELACROIX, Eugène. Journal. Tome I. 1822 – 1852. Paris: Librairie Plon, 1893, pp. 51.
15 Soneto 285, segundo Girardi (1960).
16  SAINTE-BEUVE, Charles Augustin. Les consolations (1830). Bruxelles: Hauman Cattoir, 1837, pp 93.
17  VASARI, Giorgio. Vida de Michelangelo Buonarroti (1568). São Paulo, Campinas: Editora da Unicamp. 2011, pp.
147.
18  ARGAN, G. C. O Michelangelismo (1966). Clássico Anticlássico. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, pp. 336.
19  Cf. DUMAS, Alexandre. Delacroix (1864). Paris : Merure de France, 1996.
20  Idem.,pp. 51.

237
ligavam-se pela possibilidade de imaginação. O Michelangelo em seu ateliê é um
elogio à invenção histórica. No mesmo espaço, o artista reúne duas obras que em
tempo algum estiveram juntas: o Moisés, realizado em Roma, provavelmente entre
1508 e 1512 para o Sepulcro de Julio II, e a Madona Medici, executada em Florença,
entre 1524 e 1533, para a Sacristia Nova. Ambas as obras conectam-se, contudo, de
modo relativamente coerente: o sepulcro ocupou quarenta dos quase noventa anos de
Michelangelo, que não pôde vê-lo realizado conforme seus anseios, constantemente
interrompidos. A Madona, por sua parte, é figura inacabada e mal ajustada dentro
do bloco marmóreo que a comprime. As fragilidades da erudição de Delacroix o
permitiriam construir um discurso regular em torno de sua ideia sobre Michelangelo,
que versava unicamente sobre o desejo agoniado de dar forma à ideia e sobre o
sentimento de fracasso do artista para consigo mesmo.

Em 1849, quando é feita a primeira menção à realização da obra em seu Journal,


Delacroix é breve, e nada se refere sobre suas orientações para a nova composição.21
Entre setembro daquele ano e maio do ano seguinte, sucedem-se mais duas notas,22
apagadas pela esperança inútil de que algum comentário mais elaborado nos revele
detalhes de sua concepção. Os dois únicos desenhos preparatórios para a obra que
se conhecem conservam-se no Fitzwilliam Museum, da Universidade de Cambridge.
Em um deles, aparentemente a composição inicial, a inscrição Le penseroso nos indica
a ideia central de Delacroix, que jamais seria abandonada. As figuras do fundo, entre
as quais se reconhece o Escravo Rebelde do Louvre, ratificam aquilo que Delacroix
complementa no rascunho: “os mármores gigantescos – a figura de Michelangelo
relativamente pequena.”23 Delacroix figura, ambiguamente, o momento em que o
mestre florentino é atacado furiosamente por um golpe de inspiração, ao mesmo
tempo em que apreende o mergulho no angustiante sonho de pedra de um artista
que acreditou conviver com colossos poéticos que lhe aguardavam aprisionados no
mármore. Já no segundo desenho, mais adiantado, o Escravo Rebelde permanece, mas
o velho mestre florentino já abandonou seu cinzel, tal como na obra final, e seu gesto
melancólico já se consolidara.

Tolnay atribui o ato de lançar o cinzel ao chão, enfatizado por Delacroix, a uma
passagem literária de Sainte-Beuve, de 1830.24 Sua hipótese não é de todo inverossímil,
mas é preciso recordar que para Stendhal, de quem Delacroix foi atento leitor, como
mencionado anteriormente, Michelangelo, durante o conturbado retorno a Florença,
havia ficado cerca de nove anos “sem nada fazer,” segundo suas próprias palavras.25
Assim sendo, esta pintura passaria a corresponder, doravante, a uma resposta de
Delacroix a seu tão admirado escritor. Nestes anos de suposto abandono absoluto
21  Op. cit. DELACROIX, 1950, pp. 384 – Primeira menção em 16 de setembro de 1849.
22  Idem, pp. 444; 446 – 18 e 23 de maio de 1850, respectivamente.
23  As imagens citadas, devido à qualidade de digitalização e clareza do grafite, estão disponíveis em: http://webapps.
fitzmuseum.cam.ac.uk/explorer/index.php?qu=michelangelo%20delacroix&oid=6308 Consultado em 14 mai. 2015, às
18:40h.
24 Op. Cit. TOLNAY, 1962, pp. 48. Sobre Sainte-Beuve, cf. nota 14. Tolnay se refere aos versos do poema que segue sua
tradução para o soneto: “É Michelangelo cego e lançando o cinzel” (Tradução nossa).
25 STENDHAL. Histoire de la peinture en Italie. Autour de Michel-Ange (1817). Paris: Le Seuil, 1994, pp 230-233.
Sobre isso, o mais próximo do dito por Vasari seria “[...] retornara a Florença, onde perdia tempo em afazeres diversos
[...]”. In: Op. Cit. VASARI, 2011, pp. 111.

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das atividades mecanicae, Michelangelo, para o pintor francês, teria se voltado
exclusivamente às atividades do intelecto.26 Nada, portanto, nesta pathosformel do
melancólico resgatada em Michelangelo por Delacroix, iria se diferir da situação
reflexiva e perturbada de seu Tasso na prisão dos loucos.27 Basta pensar que toda a
desordem de materiais e instrumentos que Delacroix esboça no primeiro estudo
para a obra é excluída em benefício do estudo atento do torno28 sobre a qual repousa
um livro e onde um dos braços de Michelangelo se apoia dissolvendo-se em fluidas
pinceladas.

Recordemos que em 1850 o pintor apresenta a primeira de suas sete candidaturas


consecutivas ao Institut de France, e, portanto, não espantaria que ele passasse a
transitar de maneira ainda mais explícita pelo terreno da história e das teorias da
arte, do qual nunca esteve efetivamente distante. Em 1857, pouco tempo antes de
finalmente conquistar sua vaga no Institut, Delacroix daria inicio ao seu grande
projeto do Dictionnaire de Beaux-Arts, cujo fim sua morte não o permitiria concluí-
lo. Este projeto coroava as suas pretensões enquanto um pintor-intelectual, artista-
teórico, ou mesmo uomo universalis que nunca alcançou seu termo.

A virada do século XV para o XVI, como é bem sabido, marca um período


sensibilíssimo no tocante à redefinição do estatuto do artista, no qual as relações
sociais entre mestre, aprendiz e mecenato marcaram-se como fator fundamental para
tal fenômeno. Contrariamente a este movimento, a solidão de Michelangelo seria
providencial para a cristalização, em longa duração, da ideia de que “a reclusão é uma
condição indispensável para a realização de obras grandiosas.”29 O século XIX, por sua
parte, operaria de modo a entender a exceção como regra, e casos excepcionais, como
o de Michelangelo, corresponderiam a oportunidades infalíveis para a construção do
discurso segundo o qual a incompreensão do artista garante a certeza de sua vitória
moral, que não lhe permite submeter-se à bêtisse burguesa. O trabalho solitário
torna-se, não apenas um componente de seu caráter excêntrico, como assegura
a sua superioridade como um criador,30 mas é também, a um só tempo, resultado
inevitável de seu fracasso. O silêncio angustiado de Michelangelo é, para Delacroix,
o reconhecimento da possibilidade artística de se erguer em um universo edificado
em insatisfações.

Ao discurso da insatisfação e à declaração da potência poética da solidão, acrescenta-


se a experiência da cor. Tudo na pequena obra é composto por massas cromáticas
26 É preciso lembrar que Delacroix era grande admirador das Rime de Michelangelo.
27 A loucura patológica de Torquato Tasso, por outro lado, aproxima-se do modo como Michelangelo manifestou
diversas vezes entender a sua própria melancolia (pazzia), cuja demonstração mais célebre esteja talvez na carta de
maio de 1525, na qual ele diz: “[...] abandonei um pouco a minha melancolia – ou, melhor dito, a minha loucura.” Cf.
BUONARROTI, Michelangelo. Cartas Escolhidas. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009, pp. 63.
28 Delacroix insere, curiosamente, um torno apropriado para trabalhos cerâmicos, embora Michelangelo, até onde se
sabe, jamais utilizou tal utensílio em seu trabalho. Isto não apenas corrobora na ideia já levantada, de que se trata de
um elogio à invenção histórica em pintura, como também, de maneira mais codificada, corresponde a uma espécie de
atributo convencional de representação alegórica do escultor e da escultura.
29  BERBARA, Maria. “Io non fu’ mai pictore né scultore come chi ne fa boctega.” Michelangelo e a tradição do ateliê
italiano nos séculos XV e XVI. In: Renascimento Italiano: ensaios e traduções. Maria Berbara (Org.). Rio de Janeiro:
Trarepa, 2010, pp. 129.
30  KRIS & KURZ. Lenda, mito e magia na imagem do artista: uma experiência histórica (1979). Lisboa: Editorial
Presença, 1988, pp. 90.

239
vibrantes, todos os limites se
dissolvem e tudo se excita em
agonia paralisante, naquele
vazio acalorado e preenchido
por grandes volumes de
pedra, no meio dos quais
Michelangelo se ajeita.
Delacroix, debruçado na
imagem de um grande mestre,
exercerá sobre a geração
imediatamente posterior
uma lição para sempre tácita.
É possível chegar à cor
sobrepondo tons e não apenas
misturando-os previamente.
A razão pela qual Delacroix
seria rapidamente colocado
de lado está também clara
nesta obra. A observação da
natureza poderia ser, para ele,
facilmente sacrificada para
Figura 8 - L’Atelier favorecer a imaginação, movida pelas agitações do espírito. É por isso que tudo o que
d’Eugène Delacroix rue resta de linhas na obra, se esvai em cor e se desfaz como desenho de memória.
Notre-Dame-de-Lo-
rette. L’Illustration, 25 Baudelaire nos revela que ainda muito jovem pôde conhecer o ateliê de Delacroix. “A
septembre 1852.
despeito do rigoroso clima francês” – nota o escritor – “reinava um clima equatorial.”31
A quentura de seu ateliê também levaria Théophile Silvestre32 a compreender nisto
alguma medida de seu espírito ardente. Nada de excessos, nada de objetos inúteis, diria
ainda Baudelaire, que reconheceu ver no ateliê de seu artista protegido algo de seus
métodos de trabalho. O ateliê que Delacroix ainda ocupava na época da execução da
obra em questão33 estendia-se amplamente à entrada direta de luz e lá se acumulavam
tão somente quadros e cavaletes, como na imagem publicada em L’Illustration, em
1852 [Figura 7]. Mas o ateliê ideal de Delacroix não era um espaço de convivência,
como nos sugere a gravura, mas um local de reclusão, de vazio ocupado unicamente
por fontes e resultados de ideias. É nesse vazio onde se constrói, a partir da figura de
Michelangelo, uma alegoria da angústia mobilizadora da criação e, por consequência,
da própria capacidade de estar consciente das limitações e dos paradoxos impostos
pela vida, ou, em uma expressão mais sintética, da capacidade humana de exercer a
sua humanidade.

31  BAUDELAIRE, Charles. Vida e obra de Eugène Delacroix (1864). Escritos sobre arte. São Paulo: Hedra, 2008.
32  Cf. JUNOD, Phillippe. L’atelier comme autoportrait. In: Chemins de traverse: essais sur l’histoire des arts. Paris:
Infolio, 2007, pp. 294-295.
33  Delacroix alugou um ateliê na rue Notre-Dame-de-Lorette de 1845 até 1857, quando ele o abandona para ocupar o
ateliê da residência que adquire naquele ano.

240
O Michelangelo em seu atelier seria vendido em 1852 para um tal Thomas e, em
1853 já constava entre as obras de Alfred Bruyas, de quem, naquele ano, Delacroix
realizaria um expressivo retrato. Em 1876 a obra seria transferida para a coleção do
Musée Fabre, em Montpellier, constituindo o primeiro conjunto de obras de arte
contemporânea da instituição. Este quadro jamais constaria entre as grandes obras
do artista francês, talvez porque, como apenas Tolnay reconheceria, o que o redime
da pena de seu erro, ela corresponderia a uma espécie de epitáfio da relação que
Delacroix construíra idealmente com Michelangelo. Mas este assunto configura outro
problema e sobre isso poderíamos refletir em outra oportunidade.

241
242
O ateliê de pintura de
Honorio Esteves

Ricardo Giannetti 1

A partir do último quartel do século XIX, a história da arte brasileira passa a


registrar um movimento significativo de artistas, naturais de diversas províncias
do país, os quais, após terem cumprido suas formações em centros artísticos mais
desenvolvidos – principalmente na Academia Imperial das Bellas Artes do Rio de
Janeiro e, em muitos casos, complementadas em estágios na Europa –, retornam às
terras de origem, para ali construírem suas trajetórias profissionais. Considerando as
limitações socioculturais e condicionantes pessoais que influíram em cada uma dessas
carreiras artísticas, verificadas nas diferentes regiões do país – assunto que está por
merecer estudo de cunho aprofundado –, podem ser citados os nomes dos pintores:
Honorio Esteves (1860-1933), Hyppolito Caron (1862-1892) e Alberto Delpino (1864-
1942), em relação à Minas Gerais; Almeida Júnior (1850-1899), Benedicto Calixto
(1853-1927) e Pedro Alexandrino (1856-1942), em relação à São Paulo; Manoel Lopes
Rodrigues (1860-1917) e, posteriormente, Presciliano Silva (1883-1965), em relação à
Bahia; Rosalvo Ribeiro (1867-1915), em relação à Alagoas; Jeronymo de Telles Júnior
(1851-1914), em relação à Pernambuco.

Outros artistas, conquanto não tenham voltado a viver de imediato, ou de forma


permanente, nas suas províncias/estados natais, por apresentarem contribuições
fundamentais aos respectivos meios culturais de origem, devem ser mencionados:
Theodoro Braga (1872-1953), em relação ao estado do Pará; e Pedro Weingärtner

1 Pesquisador independente, Minas Gerais, Brasil.

243
(1853-1929), que, após longas estadas em diversas cidades europeias, e constantes
passagens pelo Brasil, retornou definitivamente ao Rio Grande do Sul em 1920. Ainda,
caso a ser destacado em estudo voltado para o tema, será o do pintor norueguês
Alfredo Andersen (1860-1935), que, ao se estabelecer no Brasil, em 1892, dedicou
toda sua vida profissional à pintura, ao ensino e ao desenvolvimento das artes do
Paraná.

Esse reposicionamento, ou retorno às origens, empreendido pelos artistas até aqui


citados como exemplos, não é de fato perceptível quando são examinadas as trajetórias
de representantes das gerações imediatamente anteriores, da mesma forma oriundos
de diferentes províncias brasileiras, nas quais figuram, por exemplo, Manuel de Araújo
Porto-alegre (1806-1879), Victor Meirelles (1832-1903), Pedro Americo (1843-1905),
e, mais tarde, Belmiro de Almeida (1858-1935). Por circunstâncias próprias, nenhum
desses artistas retomou a vida profissional na província natal, tendo, cada um deles,
exercido suas atividades artísticas em ambientes mais propícios e de maior projeção,
no Rio de Janeiro e nos grandes centros da Europa.

Em Minas Gerais, como mencionado, impõem-se como expressões fundamentais da


pintura no período de entresséculos: Honorio Esteves, em Ouro Preto; Hyppolito
Caron, em Juiz de Fora – uma trajetória interrompida pela morte prematura; e Alberto
Delpino, atuante em Barbacena. O falecimento igualmente prematuro do pintor
Antonio de Souza Vianna (1871-1904), natural de Itajubá, – após ter completado os
estudos na Escola Nacional de Bellas Artes do Rio de Janeiro e de ter estagiado em
Munique, na Alemanha, – impede bruscamente outra carreira promissora.

Excetuando o caso de Souza Vianna, cuja formação se deu na Escola Nacional, durante
os primeiros anos da República, quando conquistou o Prêmio de Viagem de 1896, os
demais artistas, Honorio, Caron e Delpino, mantêm o traço comum de terem efetuado
seus estudos de belas artes no correr do último decênio do regime monárquico.
Caron, aluno e participante do grupo do paisagista alemão George Grimm, no Rio de
Janeiro, teve oportunidade de completar seus estudos na Europa. Honorio e Delpino
integraram, mais exatamente, a última geração formada na Academia Imperial, no
período de 1884 a 1889, quando se tornaram colegas nas aulas de Pintura histórica e
de Paisagem, em 1887, ministradas por João Zeferino da Costa.

Algumas outras trajetórias devem ser aqui consideradas: do pintor Antônio Corrêa
e Castro (1848-1929), natural de Vassouras, Rio de Janeiro, aluno do pintor Arsênio
Cintra da Silva, tendo também realizado estudos na Europa, que escolhe viver por
alguns períodos em Juiz de Fora nos anos 1890, transferindo-se para Belo Horizonte
na década seguinte, onde foi professor de Desenho da Escola Normal; e do decorador
e pintor alemão Frederico Steckel (1834-1921), artista que atuou intensamente em
sua especialidade na Corte imperial e, posteriormente, nas obras de edificação de
Belo Horizonte, a partir de 1897.

O ateliê de pintura na construção da imagem do artista


No presente texto, alguns pontos de interesse da carreira profissional de Honorio
Esteves são abordados. Nascido em 1860, no pequeno arraial do Leite, região de
244
Cachoeira do Campo, recebeu as primeiras letras e noções elementares de desenho em
educandários da então capital Ouro Preto, para onde seus pais haviam se transferido
em 1862. Somente aos vinte e três anos de idade, em 1884, na condição de beneficiário
de uma pensão de estudos oferecida pela Província de Minas, ingressou na Academia
Imperial das Bellas Artes do Rio de Janeiro, tendo estudado com os professores Victor
Meirelles, Pedro Americo, João Zeferino da Costa e Rodolpho Amoêdo, responsáveis
mais diretos por sua formação.

A resolução posterior de retornar a Ouro Preto, em 1890, uma vez ultimados os


cursos, influenciará de forma decisiva seu percurso. Por um lado, ao optar por se
estabelecer em certo isolamento geográfico, distante do principal centro artístico do
país, Honorio se depara com a realidade de ver reduzidas as chances de, eventualmente,
conseguir aperfeiçoar seus estudos em academias europeias – meta alcançada por
alguns dos seus colegas, dentre os quais, João Baptista da Costa, Fiuza Guimarães
e Elyseu Visconti. Por outro lado, diante da responsabilidade de ter que construir
o próprio caminho no restrito ambiente artístico provinciano, assume o pintor o
encargo de buscar, de forma obstinada, meios suficientes para delinear uma carreira
profissional expressiva. Por fim, cumpre com êxito sua trajetória e termina por elevar
a arte mineira a um patamar de qualidade ainda não alcançado no século XIX.

A substanciar a assertiva está o fato de o artista ter franqueado ao público, logo no


correr dos primeiros anos que se seguiram ao seu regresso, o ateliê de pintura de
retrato a óleo, localizado à rua do Tiradentes, 28 – um dos principais logradouros da
então capital. A partir desse momento, Honorio consagra suas atenções à execução
de um número significativo de portraits, tendo como modelos algumas proeminentes
figuras da política mineira e pessoas da sociedade ouro-pretana. O ambiente do ateliê
será também adequado para a exibição ocasional, de forma mais íntima, de pequenos
estudos de paisagem realizados ao ar livre – gênero praticado com igual intensidade.
É pertinente estabelecer, portanto, ter o artista consolidado sua carreira, dando-
lhe um cunho decididamente profissional, a partir da instalação do ateliê da rua do
Tiradentes.

Primeiro período em Ouro Preto (1880-1883)


Para melhor compreensão do conjunto da obra pictórica de Honorio Esteves, que
neste breve estudo se esboça, será útil adotar a divisão da sua produção em quatro
períodos, cronologicamente ordenados:

1º – Primeiro período em Ouro Preto (1880-1883)

2º – Período de formação na Academia Imperial das Bellas Artes (1884-1889)

3º – O ateliê de pintura em Ouro Preto e a trajetória profissional (1890-1917)

4º – Maturidade em Belo Horizonte (1918-1933)

Ficam assim delineados os dois primeiros períodos que abrangem os anos de


formação do pintor, compreendidos no correr do último decênio do Império,

245
inicialmente ainda na Província, e, posteriormente, quando já estabelecido na Corte;
o terceiro período, que corresponde ao início da carreira profissional em Ouro Preto,
prosseguindo durante as duas primeiras décadas do século XX; e, finalmente, os anos
da maturidade, que se desenrolarão em Belo Horizonte, quando Honorio assume a
cadeira de professor de Desenho na Escola Normal Modelo.

Nos dias atuais, tem-se conhecimento de um número bastante reduzido de pinturas de


Honorio, realizadas no período que antecede à sua formação na Academia Imperial.
Contudo, ainda que muito raras, as obras que se conservaram em condições nos
permitem intuir qual o âmbito da atuação do artista naquela quadra. São trabalhos
que exemplificam as experiências primevas de um jovem que, ainda isolado em
Minas, acalentava no íntimo o sonho de alcançar uma promissora carreira artística.

Aos 19 anos de idade, Honorio publicava na imprensa local, com certo destaque,
anúncio no qual se encontram enumerados alguns serviços que então se mostrava
apto a oferecer:
ATTENÇÃO – O abaixo assignado presta-se aos trabalhos seguintes: Põe epitaphios
em catacumbas, conforme a perfeição exigida, mediante os preços de 8 a 20$. Olêa
mostradores de relógios de parede e de mesa, e colloca novos caracteres mediante os preços
de 5 a 8$000. Concerta machinas de costura por preço commodo. Quem precisar pode
dirigir-se Á Fonte d’Agoa Limpa, n. 7. Honorio Esteves do Sacramento.2

O anúncio, veiculado no jornal A Actualidade, em 15 de maio de 1879, expõe a


maneira determinada com a qual Honorio abria seu próprio caminho e buscava
conquistar a confiança da sociedade ouro-pretana, que demandava a cada dia seus
serviços. Naquela altura, seu mais importante trabalho foi o de promover a limpeza
(reforma e pintura) do Palácio, por convite do vice-presidente da Província, então
em exercício, conselheiro cônego Joaquim José de Sant’Anna. A obra teve o propósito
de adequar do prédio setecentista, então sede do governo provincial, para receber a
família imperial em Ouro Preto, em abril de 1881.

Já inseridos no âmbito de uma produção que se situa além da mera manufatura, são
exemplos importantes da sua atuação artística: 1) O quadro Retrato do Padre Affonso
Henriques de Lemos, datado de 29 de março de 1880, óleo sobre tela, composição
bem elaborada na qual se percebe o esforço do pintor na busca da perfeição; desejo
contido, todavia, pela limitação de recursos técnicos; 2) A pintura executada no forro
do nártex da Igreja Matriz de Santo Antonio do Leite, em 1881, tendo por tema o
Batismo de Jesus (obra atribuída), sabendo-se que a pintura do forro da nave principal,
de maiores dimensões e, com certeza, mais significativa, desapareceu em posterior
reforma da casa. Do pequeno trecho que restou preservado, pode-se apreciar uma
pintura executada claramente nos moldes de obras dos antigos oficiais-pintores
mineiros da época colonial, constantes em inúmeros templos religiosos da região,
de pleno conhecimento e do convívio diário do jovem Honorio; 3) Ainda, merece
menção a execução da pintura do cenário da peça teatral O Paraiso Perdido ou O
Diluvio Universal, levada à cena no Theatro Ouropretano, tendo à frente o artista
2  Attenção. A Actualidade, Ouro Preto, maio 1879. p. 4, 15

246
Fernal, em janeiro de 1881, trabalho de cunho efêmero, que, por sua qualidade,
recebeu destaque no texto dos anúncios veiculados na imprensa.3

As duas obras de conhecimento visual, aqui mencionadas, realizadas no período


inicial da sua formação autodidata, já demonstram a intenção do jovem de se dedicar
profissionalmente ao ofício da arte da pintura. Ao lado de outras atuações de relevo,
tais trabalhos, certamente, tornaram seu nome conhecido no meio social em que
vivia e foram úteis, mais tarde, para instruir e justificar o pedido de uma pensão
de estudos que irá submeter à Assembleia Mineira, em 1882. Uma vez aprovado o
pedido, nos termos da Lei nº 2.892, de 6 de novembro de 1882, sendo o benefício
concedido, a seguir, pelo presidente Antonio Gonçalves Chaves, Honorio Esteves se
torna o primeiro e único artista a receber pensão de estudos da província de Minas
Gerais.4

Período de formação na Academia Imperial das Bellas Artes (1884-1889)


Em agosto de 1883, Honorio Esteves partia rumo ao Rio de Janeiro para estudos
preliminares, ainda na condição de aluno amador. Em fevereiro de 1884, ao efetivar
sua matricula na Academia Imperial das Bellas Artes, teve início, finalmente, a
mais importante etapa da sua formação. O valor mensal da pensão que receberia da
Província fora estabelecido em 60$000, por quatro anos, o que permitiu ao estudante
viver na Corte, muito modestamente instalado, de início, em uma pensão situada à
rua do Riachuelo, 60.

Em junho de 1886, Honorio encaminha à Assembleia Provincial um pedido no


qual buscava obter a elevação do valor da subvenção mensal. De forma hábil e bem
pensada, visando objetivamente o convencimento dos membros da Comissão de
fazenda que iriam considerar a matéria, organizou prontamente em uma das salas
da própria Assembleia, uma exibição de trabalhos realizados ao tempo dos cursos da
Academia Imperial, franqueando assim sua produção à apreciação direta de todos.
Desta maneira, ao deixar demonstrado seu aproveitamento nas aulas que até então
vinha frequentando na Corte, alcançou parecer favorável, sendo elevada a subvenção
para 70$000 mensais.

Durante o tempo em que cursou regularmente na Academia, Honorio teve


oportunidade de passar algumas temporadas ao lado da família, em Ouro Preto. Essas
breves estadas, possíveis no período de férias escolares, foram comumente noticiadas
na imprensa local por meio de notas que deixam logo transparecer a grande expectativa
que se criara, no seio da sociedade ouro-pretana, em torno da sua formação artística
na Academia:
Artista-estudante. – Em goso de ferias, acha-se na Capital o Sr. Honorio Esteves do
Sacramento, jovem e esperançoso mineiro á quem a Provincia dá assistencia para estudar
na Academia Imperial de Bellas Artes da côrte, cujas aulas theoricas frequenta há deseseis

3  Theatro Ouropretano. A Actualidade, Ouro Preto, p. 6, 22 jan. 1881.


4  Em anotações autobiográficas, Honorio Esteves registra que no mesmo ano em que obteve aprovação do pedido de
pensão para estudar na Academia Imperial, também Joaquim Cândido da Costa Senna recebeu o benefício para cursos
de engenharia na Escola de Minas de Ouro Preto.

247
mezes. E que frequenta-as com aproveitamento notavel, justificando assim o merecido
favor que obteve dos poderes provinciaes, nos assegura o resultado dos recentes exames
feitos n’aquella academia, em os quaes o nosso jovem patricio obteve notas lisonjeiras,
sendo approvado plenamente em mathematicas applicadas e com distincção em desenho
geometrico, pelo que felicitamos, á seu estimável pai e digna família.

É bem conhecida entre nós a vocação artistica do Sr. Honorio do Sacramento, e si elle,
como esperamos, continuar a estudar e trabalhar com esforço, no futuro poderá tornar-se
um pintor distincto, um êmulo talvez de Pedro Americo e de Victor Meirelles, hoje seus
mestres laureados.5
*

Bellas-artes – Achão-se expostos na vitrina da loja Viuva Rocha & Comp. dois retratos
a óleo, tirados pelo alumno mineiro Honorio Esteves do Sacramento.Dizem-nos ser um
trabalho digno de ser visto.6

Um dos trabalhos de Honorio que significou bastante para a cidade neste tempo foi
a elaboração do desenho do tapa-vento destinado à Matriz de N. S. da Conceição de
Antonio Dias, projeto executado pelo hábil marceneiro Miguel Tregellas, em 1885.

Ainda, concernente ao período de formação na Academia Imperial encontra-se uma


produção significativa de quadros. Sobressaem, principalmente, os retratos a óleo,
trabalhos nos quais, ao lado do aprimoramento técnico adquirido, fica demonstrada
a forte tendência do artista para a prática do gênero. Dentre as obras, destacam-se:
Cabeça de estudo (c.1886), óleo sobre tela, estudo bem executado, deixado inconcluso,
todavia; o quadro Poeta pensador em repouso numa almofada (1886),7 óleo sobre tela,
expressivo retrato de um jovem, que tem sido ultimamente intitulado autorretrato;8
Retrato de senhora (1886), óleo sobre tela, no qual se vê elaborada a figura de uma
jovem senhora ouro-pretana; Um triste pensativo (1886), óleo sobre tela, composição
sincera da figura de um homem; A decotada (1887), óleo sobre tela, trabalho de
correta fatura, no qual se comprova a evolução técnica de seus estudos na Academia;
O pastor egípcio (1887),9 óleo sobre tela, trabalho devido à aula de Pintura histórica,
ministrada pelo professor João Zeferino da Costa.

O ateliê de pintura em Ouro Preto e a trajetória profissional (1890-1917)


Em março de 1890, logo após, portanto, à instalação do regime republicano, Honorio
Esteves voltou a residir em Ouro Preto, junto aos familiares, onde passará a maior
parte da vida. Em 28 de fevereiro do ano seguinte, foi nomeado professor de Desenho

5 Artista-estudante. Provincia de Minas, Ouro Preto, p. 1, 8 jan. 1885.


6 Bellas-Artes. Provincia de Minas, Ouro Preto, p. 1, 12 fev. 1885.
7 Integra a Coleção Arquivo Público Mineiro/Museu Mineiro, Belo Horizonte.
8 Na documentação estudada até o momento, não foi localizada nenhuma informação que se refira a algum trabalho do
pintor que, na época, tenha sido intitulado autorretrato. Parece adequado conferir a essa obra o título sugestivo Poeta
pensador em repouso numa almofada, constante da “Relação de quadros do pintor Honorio Esteves”, datada de 6 de
agosto de 1952, na qual estão listadas obras que teriam sido cedidas pela viúva do pintor, senhora Leopoldina de Lima
Horta Esteves, para compor a exposição realizada na Feira Permanente de Amostras, que comemorou o cinquentenário
da cidade Belo Horizonte, em 1947, documento pertencente ao acervo documental do Arquivo Público Mineiro.
9 Coleção Arquivo Público Mineiro/Museu Mineiro, Belo Horizonte.

248
elementar e Caligrafia na Escola Normal, sob a direção de Thomaz da Silva Brandão.
Em 16 de julho de 1892, casa-se com a jovem ouro-pretana Leopoldina de Lima Horta.

Dedicado à execução de pintura Figura 1 - Retratos a


de cavalete, a década que se inicia oleo – Honorio Este-
será de grande produção para ves. O Estado de Mi-
nas, Ouro Preto, p. 4,
Honorio Esteves. Por essa época, 30 jun. 1894.
exatamente, instala seu ateliê
de pintura de retratos à rua do
Tiradentes, 28 e passa a publicar
anúncios desta atividade no jornal
O Estado de Minas, anúncios
mantidos com certa regularidade ao longo de 1894 e 1895 [Figura 1]. Importa observar
que o funcionamento do ateliê da rua do Tiradentes se encontra confirmado por
meio, basicamente, desta sequência de anúncios veiculados na imprensa. Do espaço
de trabalho não se conhece, até o momento, nenhum registro visual, seja fotográfico
ou em tela e, da mesma forma, não se tem determinada, com exatidão, a data em que
foi franqueado ao público com a finalidade de execução de retratos.

A rua do Tiradentes [Figura 2] foi aberta nos primeiros tempos da povoação de Villa
Rica. Seu traçado encontra-se, ainda hoje, exemplarmente conservado: uma rua de
extensão não muito longa, estreita e plana. Obedece ao movimento natural da curva
de nível, rasgada em uma encosta, tendo a cavaleiro o outeiro da capela de São José.
Ladeira abaixo, nos terrenos que prosseguem no dorso do morro, está o vale dos
Contos, onde se estabeleceu primitivamente o Horto botânico de Villa Rica.

Ao final do século XIX, a rua do Tiradentes tinha inicio na altura do prédio da Casa
dos Contos e findava no Largo da Alegria. O trecho seguinte, deste largo até o largo Figura 2 - Rua do Ti-
radentes, Ouro Preto.
do Rosário, conservou, por uma época, ao final do século XIX, o nome São José.10 Fotografia, s/d.

O logradouro caracterizou-se por


manter preservado, ao longo do tempo,
um casario característico de uso misto,
residencial e comercial. Em meados
do século XIX, mais precisamente em
1867, ainda mantido o nome São José,
assim a descreveu o viajante inglês
Richard Burton, ao conhecer a cidade:
Nosso primeiro passeio foi pela
Rua São José, logradouro que se
dirige para oeste e noroeste, através
de muitos altos e baixos. O lugar é
clássico. Perto de onde estávamos,
10 A alternância de nomes de ruas da cidade motiva, de modo geral, grande confusão. A rua de São José teve seu nome
alterado para rua do Tiradentes, e, mais tarde, retornou ao nome São José (atual). O trecho seguinte da rua (hoje rua
Getúlio Vargas), além do Largo da Alegria, permaneceu com o nome rua de São José, ao tempo em que o trecho inicial
ostentava o nome Tiradentes.

249
fica a pequena casa de três janelas onde morou o infortunado alferes de cavalaria Joaquim
José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes. [...]

A Rua São José [...] tem um bom e moderno macadame; contrasta com o resto da cidade,
onde os cruéis pedregulhos são semelhantes aos nossos calçamentos com as pedras de
carvão; [...]. Esta artéria principal da parte ocidental, o Bairro de Ouro Preto, apresenta
os habituais estilos de casas, lojas e armazéns. [...] Os letreiros existem, as tabuletas são
raras e canhestras, e as lojas ainda conservam as despretenciosas vitrininhas que são
penduradas durante o dia e retiradas à noite. Como todas as casas comerciais ficam
ao rés do chão, os alfaiates, sapateiros e demais artesãos trabalham sentados à porta
ou junto das janelas, tão baixas que se parecem portas, e empregam metade do tempo
conversando com algum amigo que passa. São comuns as lojas de ingleses e há, como é
hábito nessas cidades abastecedoras, um pequeno comércio retalhista que vende tudo que
é necessário ao tropeiro ou ao sertanejo.11

Conservando-se, durante os anos seguintes, sem alterações representativas, foi esta


a fisionomia da rua de São José, como a terá conhecido o jovem Honorio, nos anos
da infância e juventude. Já no início da década de 1890, quando o pintor inicia as
atividades do seu ateliê no local, a rua contava com alguns dos mais importantes
estabelecimentos de comércio, associações e escritórios da capital.

Neste tempo, melhorias estruturais significativas foram introduzidas na cidade. Desde


meados de 1889, Ouro Preto já podia contar, finalmente, com benefícios advindos da
conclusão das obras do ramal férreo que interligava a estação da cidade à linha tronco
central da Estrada de Ferro Pedro II, que partia do Rio de Janeiro, trecho inaugurado
pessoalmente pelo imperador, em sua segunda visita a cidade. Fato determinante para
a frutificação de muitas iniciativas, a capital mineira passa a receber crescente impulso
em seu comércio, bem como nas atividades da pequena indústria, nas especializações
do setor de serviços, e em novas propostas de atividades culturais e de lazer.

Merece comentário e, sem dúvida, um olhar de


curiosidade, a atuação da Sociedade de Bellas
Artes de Londres, que, em 1892, se estabelece
temporariamente em Ouro Preto [Figura 3].
Pouco se conhece, hoje, sobre as atividades dessa
Sociedade. Com base em informações extraídas
dos próprios anúncios, veiculados com destaque
na imprensa, tem-se a impressão de que se tratava
de uma firma comercial de certo vulto, voltada
Figura 3 - Annuncios.
Minas Geraes, Ouro para a prestação de serviços artísticos e que se empenhava, naquele momento, na
Preto, p. 8, 20 maio ampliação da sua atuação em cidades importantes do país. O serviço estava revestido
1892 de uma completa impessoalidade, sendo os artistas executores dos trabalhos referidos,
simplesmente, como os “mais distinctos do ramo”. A questão era produzir retratos de
qualidade, ao que tudo indica, em escala quase industrial. Pode ter sido um negócio

11 BURTON, Richard F. Viagem do Rio de Janeiro a Morro Velho. Tradução de David Jardim. Belo Horizonte/São
Paulo: Itatiaia/Universidade de São Paulo, p. 290 e 294.

250
rentável. E, com certeza, representou esta Sociedade de Londres uma concorrente
considerável aos ateliês individuais dos pintores de retrato pelo Brasil afora.12

Dentre os fotógrafos que trabalharam e se estabeleceram em Ouro Preto, pode-se


destacar o nome de Valerio Vieira.13 Encontrando-se a fotografia em um momento
especial de conquistas técnicas e de difusão na sociedade, Vieira manteve ateliê de
retrato na cidade, sendo significativa sua contribuição.

Emilio Rouède é outro artista a ser mencionado. O envolvimento do pintor francês


com a cidade de Ouro Preto foi, dentre todos aqueles que visitaram a capital neste
período, o que mais intensamente se manifestou. Movido por circunstâncias casuais,
fugitivo das perseguições políticas deflagradas pelo governo de Floriano Peixoto no
Rio de Janeiro, Ouro Preto representou para ele, além de um porto seguro, o cenário
ideal, motivador de um número significativo de quadros. Durante o período em que
residiu na cidade, entre os meses finais de 1893 e o ano 1894, Rouède manteve ateliê
de pintura situado à rua do Caminho Novo. Logo nos primeiros dias de janeiro de
1894 o artista já colecionava cerca de quinze quadros de paisagem, nos quais retratava
aspectos da cidade.

Desde abril de 1893, também o pintor Francisco Aurelio de Figueiredo já se tornara


mais um visitante ilustre a se aproximar de Ouro Preto. Na companhia de Alfredo
Camarate, Coelho Netto e de outros companheiros, Aurelio presenciou, naquele ano,
as solenidades comemorativas da Inconfidência Mineira, em 21 de abril. Em artigo
redigido para o Jornal do Commercio e transcrito, na íntegra, pelo Minas Geraes,
argumentando conhecer quase todas as capitais do
país, “desde Manaos até S. Paulo,” o pintor comenta
nunca ter imaginado ver o que então presenciava
em Ouro Preto, segundo suas palavras, “uma cidade
situada à margem de uma grande via ferrea, illuminada
a luz electrica, e guardando o aspecto inalteravel do
principio do seculo XVIII, em que foi fundada!”14

Ao retornar à capital mineira em 1894, para uma


permanência de algumas semanas, Aurelio de
Figueiredo se dedicou, especialmente, à pintura de
retratos, tendo publicado uma sequência de anúncios Figura 4 - Retratos a
no jornal O Estado de Minas [Figura 4]. Quanto à oleo – Aurelio de Fi-
gueiredo. O Estado de
pintura ao ar livre, produziu, diante da paisagem e da
Minas, Ouro Preto, p.
arquitetura colonial de Ouro Preto, quadros nos quais 3, 10 jun. 1894.

12 Em abril de 1893, a Sociedade de Bellas Artes de Londres, estabeleceu, por meio do mesmo representante comercial
que estivera em Ouro Preto, sr. João Hamilton Parfitt, uma agência na cidade de Petrópolis. Desta feita, propagava seus
serviços na qualidade de detentora dos “melhores elementos para a execução de todas as classes e stylos de augmentar
retratos e que podem garantir a producção de trabalhos de arte verdadeiramente artisticos, em execução sem rival
em qualquer parte da Republica, dos pinceis de alguns dos melhores artistas neste ramo da profissão.” Gazeta de
Petropolis, Petropolis, p. 3, 22 abr. 1893.
13 Ver Figura 3.
14 FIGUEIREDO, Aurelio de. Ouro Preto. Minas Geraes, Ouro Preto, p. 4, 16 maio 1893. O artigo fora publicado
originalmente no Jornal do Commercio sob o título “Impressões de Viagem”.

251
estão demonstradas sua sensibilidade e sua capacidade técnica para o gênero. Dentre
os trabalhos: Ponte de Antonio Dias; Casa de Marilia de Dirceu; Casa dos Contos, a
prisão de Claudio Manoel; Igreja de São Francisco de Assis; Casa dos Inconfidentes, na
encosta do morro do Cruzeiro.

Ao tempo da estada do pintor Aurélio de Figueiredo em Ouro Preto, Honorio Esteves


publicava, como mencionado anteriormente, no mesmo jornal O Estado de Minas,
anúncios do seu ateliê de pintura, com destaque para a execução de retratos. Por seu
trabalho constante, Honorio conquista notoriedade e, dentre os quadros que produz
no período, estão os retratos do Marechal Floriano Peixoto (1894) e dos primeiros
presidentes republicanos de Minas Gerais, José Cesario de Faria Alvim Filho, Affonso
Augusto Moreira Penna, Chrispim Jacques Bias Fortes – obras que passam a compor
o acervo do Palácio.

O pintor dedica-se a retratar, também, em número significativo, políticos e pessoas


da sociedade ouro-pretana: Retrato do coronel Felippe de Mello, comandante geral da
Brigada Policial do Estado; Retrato do comendador Mattos Gonçalves (1892); Retrato
de Henrique Diniz (1893), deputado e secretario de governo; Retrato de Silviano
Brandão (1893); Retrato do coronel Amaro Francisco de Moura (1894); retratos das
irmãs Violeta de Mello Franco (1896) e Dália de Mello Franco (1896); Retrato de
Ritinha Soares; Retrato de Yaya Magalhães.
Figura 5 - Honorio Es-
teves (1860-1933), Pa-
Além de retratista, Honorio se torna, a partir dos anos 1890, um reconhecido pintor
norama de Antonio Dias,
Ouro Preto, 1893. Re- de paisagem, elegendo como principais motivos a arquitetura da cidade de Ouro
produção estampada no Preto, seus arrabaldes e outras regiões mineiras. Neste gênero, merece destaque a
Jornal do Commercio,
grande vista da cidade, Panorama da freguezia de Antonio Dias (1893), óleo sobre
Juiz de Fora, p. 1, 8 abr.
1897. tela, obra na qual Honorio mantém proximidade com trabalhos do gênero, da lavra
do seu professor Victor Meirelles; sabendo-
se que, o período inicial de sua estada como
estudante no Rio de Janeiro, 1885, coincide com
a época da execução por Meirelles dos quadros
preparatórios que resultariam no imenso
panorama circular da cidade do Rio de Janeiro.
O quadro Panorama da freguezia de Antonio Dias
esteve exposto em Ouro Preto, em Juiz de Fora
e no Rio de Janeiro, tendo pertencido à coleção
do conselheiro Francisco de Paula Mayrink.15
Em 1897, uma reprodução fotográfica do quadro
foi estampada na primeira página do Jornal do
Commercio, de Juiz de Fora. [Figura 5].

Igualmente relevantes, podem ser mencionados os quadros, datados de janeiro e


fevereiro de 1894, nos quais Honorio pintou aspectos do arraial de Bello Horizonte,
15 Francisco de Paula Mayrink (1839-1907) foi um importante financista, empreendedor atuante em variados segmentos
de negócios, conselheiro do Império e político. Em 1889, tornou-se proprietário da residência que pertenceu à família
do barão de Nova Friburgo. Adquirida pelo Governo Federal, em 1896, ali se instalou o Palácio do Catete, hoje Museu
da República.

252
verdadeiros documentos iconográficos do local que em breve tempo iria desaparecer
para implantação da nova capital: “Panorama de Bello Horizonte; Vista do arraial de
Bello Horizonte, mostrando a famosa serra da Piedade, a rua do Sabará e a antiga
Igreja Matriz; Panorama de Bello Horizonte – antigo Curral d’El-Rey, antes da
construcção da cidade actual.”16

Na época em que Honorio se dirigiu ao arraial de Bello Horizonte, em janeiro de


1894, com o propósito que realizar esses registros pictóricos, houve comentário
na imprensa de que o pintor faria estudos e colheria material suficiente para a
composição futura de um panorama circular, o que de fato terminou não realizando.
Além dos mencionados quadros, hoje no acervo do Museu Histórico Abilio Barreto,
existe uma série de pequenos estudos e manchas, tomados do natural, nos quais fixou
o cenário original do arraial: Residencia do Snr. José Vaz no Largo do Rosário; Capella
de N. Senhora do Rosario no Bello Horizonte; Morro do Cruzeiro, ponto de observação
para o grande planalto escolhido para a construção da Capital de Minas; Matriz e rua
Deodoro, ao fundo a serra do Curral; Rua Deodoro e residencia de um antigo Vigario,
Bello Horizonte, Minas. Pintados em pequenas tábuas de madeira, alguns desses
estudos foram ampliados em versões definitivas, em telas de maiores dimensões.
Apesar de servirem a esse propósito, com a praticidade de serem transportados para
o campo acomodados dentro de caixas de material, todos os quadrinhos mereceram
do pintor cuidados minuciosos de composição e acabamento. A prática habitual de
fazer anotações nos versos dos quadros tem o mérito de sempre documentar a exata
localização do motivo retratado.

Em abril de 1895, Honorio empreende uma pequena excursão à região do arraial


do Leite, sua terra natal, e à Cachoeira do Campo, locais onde se detém para pintar
a paisagem. Desta ocasião, estão datados: Casa velha no arraial do Leite (1895),
representando a casa rústica que pertencera a seus avós paternos; e uma série de cinco
pequenos quadrinhos, nos quais registra o início das obras de adaptação e ampliação
que então se promoviam no prédio setecentista do antigo Quartel de Cachoeira do
Campo, transferido recentemente pelo governo mineiro aos padres salesianos para a
instalação do Colégio Dom Bosco.

Naqueles anos, Honorio também trabalhou intensamente diante da paisagem urbana


de Ouro Preto e de outras localidades próximas. Além do já mencionado Panorama
da freguesia de Antonio Dias, destacam-se os pequenos quadrinhos: Alto da Figueira
(s/d.); Alto da Cruz (1894); Ponte do Xavier (1895); Jazida de argila de tinta (1899);
Fazenda do Manso (1899); Saramenha (1899); Capella de São José vista da ponte do
Rosário (1899), Residencia de José Pedro Xavier da Veiga (c.1899).

Em janeiro de 1900, o quadro do pintor Leopoldino de Faria, Resposta de Joaquim


José da Silva Xavier (Tiradentes), ao Desembargador Rocha, no ato da comutação de
pena aos seus companheiros, depois da missa,17 de propriedade da extinta província de
Minas e mais tarde do governo estadual, que estivera exposto no antigo Palácio da ex-

16 As três obras pertencem ao acervo do Museu Histórico Abílio Barreto, Belo Horizonte.
17 Acervo da Câmara Municipal de Ouro Preto, Minas Gerais.

253
capital, foi cedido para a Câmara Municipal de Ouro Preto. A obra fora adquirida ao
pintor Leopoldino de Faria, em dezembro de 1881, pela importância de 14:000$000.
Coube a Honorio Esteves, por ocasião da transferência, a incumbência de executar a
restauração da tela.

Esse é um período em que Honorio Esteves mantém regularidade em sua produção,


a qual, em seu conjunto, atinge um alto patamar de correção e qualidade. Nas duas
décadas finais do século XIX e durante as duas iniciais que abrem o século XX, sua
obra consolida-se como a mais significativa expressão da pintura moderna em Minas
Gerais.

O ateliê como espaço de criação: formas de expor e de comercializar


Em atividade permanente no ateliê, o pintor lançou mão das mais diversas formas
de expor e comercializar os quadros que produzia. Os retratos de encomenda eram
realizados em sessões no ateliê, diante do modelo, ou tirados de fotografia. Para
a comercialização dos retratos ditos oficiais, destinados aos recintos do Palácio,
Honorio utilizava a forma de subscrição pública, como a que pôs em curso, com
sucesso, em 1894, no caso do Retrato do presidente Affonso Penna, com o qual foi
agraciado o ilustre retratado.

Em 1893, interessado na realização de um trabalho de pintura histórica, obra de


maior vulto, Honorio tomou a iniciativa de encaminhar à Comissão de requerimentos
do Congresso Mineiro um pedido, no qual propunha a execução da pintura de
um quadro de grandes dimensões, representando o ato solene da Promulgação da
Constituição Mineira, mediante o pagamento de 33:000$000, valor dividido em
três parcelas. Todavia, não obteve o pintor qualquer êxito nesse encaminhamento.
O pedido foi sumariamente rejeitado e mandado arquivar, conforme parecer do
relator da comissão de requerimentos, sr. Silva Fortes, sob o inabalável e contundente
argumento de “ser innoportuno o pedido e ter o Congresso outras questões mais
importantes a tratar”.18 Atitudes como esta, vindas do Poder Público, indicam o difícil
percurso a ser cumprido pelo profissional da arte, que necessitava exercer seu ofício
em um ambiente cultural estreito e provinciano como o de Minas Geraes.

Da mesma forma, em 1894, os três quadros principais da sua lavra que retratam o
arraial de Bello Horizonte, pintados antes do início das obras da futura capital, tiveram
suas aquisições, pelo valor de cinco contos de réis, negadas pelo Congresso. No
mesmo ano, pedido semelhante do pintor Emílio Rouède para aquisição do quadro 21
de abril, no qual se vê retratada a cerimônia de inauguração da estátua de Tiradentes,
será rejeitado. Em 1896, também receberam pareceres negativos: uma proposta do
pintor Aurelio de Figueiredo, para retratar a Promulgação da Constituição Mineira
e, mais uma vez, novo pedido de Honorio Esteves para a realização de dois retratos
do Marechal Floriano Peixoto, semelhantes ao que já se encontrava exposto no salão
de honra do Palácio do Governo, sendo um destinado à sala de sessões da Câmara e
outro à sala de sessões do Senado.

18 Minas Geraes, Ouro Preto, p. 2, 30 maio 1893.

254
Não contando a cidade de Ouro Preto com espaço físico adequado para exposição de
pintura, tornou-se prática comum fazer uso das vitrines de lojas para exibir, com visibilidade
privilegiada, alguns trabalhos mais significativos. As casas comerciais Ferreira Real &
Comp. e Fonseca, Cesar & Comp., situadas à rua do Tiradentes, tornaram-se, por esse
tempo, locais tradicionais de exibição de quadros em suas vitrines.

Para Honorio, bastava, portanto, transportar seus quadros do ateliê, ali mesmo
localizado, para um lado ou outro da rua. Assim expostos, com maior destaque, os
quadros chamavam logo atenção, sendo vistos por um bom número de pessoas que
circulavam diariamente pela cidade. Essas lojas, cada uma voltada para se setor de
negócio específico, comercializavam também, além de outras promoções, bilhetes
para teatro e espetáculos, prestando, em resumo, certos serviços ao público. Desta
forma, mantinham seus nomes em permanente evidência, vinculados às atividades
de interesse do público.

Foi o que se deu, por exemplo, por ocasião da exposição do quadro Panorama da
freguezia de Antônio Dias, exibido na vitrine casa comercial Fonseca, Cesar & Comp.,
em julho de 1893, tendo realizado o jornal Minas Geraes a cobertura jornalística do
acontecimento, conforme comentário do resenhista que, com antecedência, visitara
o ateliê do artista:
Por delicado convite do nosso estimavel e distincto conterraneo sr. Honorio Esteves, fomos
hontem a seu atelier de pintura onde nos foi mostrada uma bella e numerosa collecção de
pequenos quadros a oleo, representando, em sua maior parte, pontos de vista, edificios e
paizagens ouro pretanas. [...]

Dentre os trabalhos que vimos, destaca-se uma vista panoramica da freguezia de Antonio
Dias, muito agradavel no seu conjuncto e de optimo effeito, na qual vê-se representada
uma grande parte da cidade com escrupulosa exactidão e fidelidade.

Sabemos que o sr. Honorio Esteves vai hoje expor este quadro na casa commercial dos
srs. Fonseca, Cesar & Compª. Ahi poderá ser elle convenientemente apreciado, e estamos
convencidos de que não faltarão ao conhecido e intelligente artista ouro-pretano os elogios
dos entendidos na bella arte a que se dedica com tanta aptidão e que, tudo leva-nos a crer,
ha de no futuro trazer-lhe ainda maiores triunphos.19

Por muitos anos, Honorio manteve a prática de expor em vitrines de lojas do comércio
em Ouro Preto e, em muitas ocasiões, realizou mostras desta natureza também no
Rio de Janeiro, em Belo Horizonte e em Juiz de Fora. Nesta cidade, especialmente, o
artista pôde encontrar melhores condições e espaços expositivos mais favoráveis para
a realização de mostras de pintura de maior vulto, como as que se deram em 1893 e
em 1907, as mais significativas exposições que o pintor logrou organizar no período.

Assim, naquele ano de 1893, em seguida à mencionada exibição do Panorama em


Ouro Preto, foi levada a efeito uma bem sucedida exposição em Juiz de Fora, entre
16 a 22 de julho. Realizada na sala principal da redação do jornal O Pharol, contou a
exposição com vinte e nove quadros, quase todos representando trechos de paisagens
19 Artista Mineiro. Minas Geraes, Ouro Preto, p. 7, 8 jul. 1893.

255
de Ouro Preto, sendo o principal destaque, exatamente, a tela Panorama. No correr
dos dias, o evento adquiriu ainda maior destaque na imprensa local devido à intensa
frequentação da exposição e ao sucesso alcançado, tendo sido registrado a venda
de um número significativo de quadros. Encerrado o período expositivo, Honorio
Esteves retornou a Ouro Preto.

Por coincidência, outro acontecimento artístico importante se deu em Juiz de Fora,


ainda no dia 27 de julho: nesta data chegava à cidade o pintor Pedro Americo, para
cuidar da exposição do quadro Tiradentes suppliciado, no salão da Câmara Municipal,
obra que seria adquirida, posteriormente, pela Municipalidade.20 Pedro Americo
permaneceu em Juiz de Fora até 31 de julho.

Ainda, no último trimestre deste mesmo ano, Juiz de Fora contaria com uma exposição
de quadros do pintor Francisco Aurélio de Figueiredo, irmão de Pedro Americo.
Esses acontecimentos artísticos, compreendidos no curso do ano 1893, demonstram
a intensa atividade cultural da cidade de Juiz de Fora e sua melhor estrutura para
receber e apreciar tais eventos, de forma mais expressiva, sem dúvida, do que se
obtinha na capital Ouro Preto.

Em 31 de março de 1894 Honorio expôs, novamente na casa comercial Fonseca,


César & Comp., a tela A Instituição do Eucharistia. A venda deste quadro foi efetuada
por meio de rifa, tendo sido o sorteio levado a efeito por meio da extração da
Loteria Nacional, em 19 de julho. Trata-se de um trabalho de grandes proporções,
reproduzindo a obra do pintor italiano Paolo Veronese, então conhecida no Brasil
somente por meio de litografias em pequeno formato.

Os primeiros anos do século XX


A produção de Honorio Esteves, empreendida no final do século XIX e nos primeiros
anos do XX, demonstra, cada vez mais, o seu interesse na realização de registros de
paisagens e aspectos da cultura de Minas Gerais. Ao lado das exposições individuais
que promove regularmente, tem-se também a participação do artista em algumas
exposições coletivas importantes, no âmbito nacional e internacional.

A primeira delas, a exposição de arte realizada no Palacete Steckel, em Belo Horizonte,


em 1901, a primeira mostra coletiva realizada na nova capital, organizada por
iniciativa do pintor e decorador Frederico Steckel. Notada por Arthur Azevedo em
sua visita à cidade, resumiu assim o escritor suas impressões:
Naquelle dia rematei as minhas excursões visitando uma curiosa exposição de pintura,
desenho e gravura, organizada pelo velho artista Steckel no palacete a que deu seu proprio
nome – Palacete Steckel – salon obrigado de todos os bailes, concertos e conferencias
litterarias. [...]

Entre os expositores figurava Honorio Esteves, pintor mineiro, residente em Ouro Preto,
e muito conhecido em todo o Estado. Aqui no Rio ninguem o conhece. Pois é, afianço
lhes, um paizagista que tem o sentimento da natureza. Não sei porque não tem mandado

20 A obra de Pedro Americo integra o acervo do Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora.

256
alguma cousa ás exposições annuaes da Figura 6 - Honorio
nossa Escola de Bellas Artes.21 Esteves (1860-1933),
Retrato de José Pedro
Algumas obras do período são: Xavier da Veiga, 1903.
Pastel sobre tecido,
Retrato do doutor Campos Salles 56,5 x 41 cm. Coleção
(1900), pastel, trabalho exposto Arquivo Público Mi-
no Rio de Janeiro; duas pequenas neiro/Museu Mineiro,
SUMAV/SEC, Belo Ho-
aquarelas Vistas do Itacolomy (1901); rizonte.
Villa Rica ou Amanhecer em Ouro
Preto (1903), óleo sobre madeira,
trabalho que pertenceu à Coleção
Djalma da Fonseca Hermes; Retrato de
doutor Peter Wilhelm Lund (1903),22
pastel sobre cartão, obra enviada à
Exposição Universal de Saint Louis,
em 1904; Retrato de José Pedro Xavier
da Veiga (1903),23 pastel sobre cartão,
retrato póstumo [Figura 6]; Uma
pagina interessante (1904), carvão
sobre papel, ilustração publicada
na revista Kósmos (anno I, n. 8, 1904); Cozinha da roça, Minas (1905), aquarela de
refinada realização.

Nos anos 1904 e 1906, participa das Exposições Gerais de Belas Artes do Rio de Janeiro.
Expõe pinturas de paisagem e retrato, sobressaindo Estrada de Jurujuba, mencionada
por Gonzaga Duque na crônica “Salão de 1904”, revista Kósmos, anno I, n. 9, 1904.
Ainda em 1904, ao lado dos pintores Alberto Delpino e Frederico Steckel, Honorio
integra como expositor a representação de Minas Gerais na Exposição Universal de
Saint Louis de 1904, nos Estados Unidos, tendo feito o envio de quarenta e seis obras
– sem dúvida, um dos momentos de afirmação da arte mineira.

Em janeiro de 1907, ao retornar de uma estada no Rio de Janeiro, onde residira


temporariamente, Honorio se estabelece por alguns meses em Juiz de Fora. Dedica-
se a produzir pinturas que retratam aspectos da cidade e realiza, mais tarde, uma
significativa exposição. É um período especialmente fecundo de criação do pintor.
Como principal atração da exposição constava a tela Panorama de Juiz de Fora, vista
tomada detras do Collegio Grambrery, apanhando o morro do Imperador e os principaes
edifícios da cidade, obra que seria adquirida pela municipalidade, em 1912, sendo
então instalada na sala de sessões da Câmara. Também mereceram destaques: Retrato
de Cesario Alvim; Chacara Frederico Daibert; Praia da Boa Viagem (Niteroi), em 14
de julho de 1905; duas aquarelas retratando a praia de Jurujuba; Baia da Guanabara;
Praia do Icarahy ao pôr do sol; Paineira detrás da Academia do Commercio; Nas três
pontes; Palacete Teixeira Leite; Olaria de Marianno Procopio. Encerrada a temporada

21  AZEVEDO, Arthur. Um passeio a Minas. Minas Geraes, Bello Horizonte, p. 2, 14 dez. 1901.
22  Coleção Arquivo Público Mineiro/Museu Mineiro, Belo Horizonte.
23  Coleção Arquivo Público Mineiro/Museu Mineiro, Belo Horizonte.

257
de exposição, o pintor retornou
a Ouro Preto.

Em 1908, após as exposições


preliminares realizadas em
Ouro Preto, em agosto, e Belo
Horizonte, em setembro,
Honorio Esteves integra a
representação do estado de
Minas Gerais na Exposição
Nacional de 1908, no Rio de
Janeiro, para a qual envia os
trabalhos, entre outros: Casa
de reunião dos Inconfidentes
(quadro pintado com tintas de
Ouro Preto); Panorama de Ouro
Preto, vista tomada do adro
Figura 7 - Honorio Es- de S. Francisco de Paula, das 3 ás 5 da tarde, representando os principaes edifícios
teves (1860-1933), Pa- históricos da Inconfidencia Mineira e a Serra do Itacolomy ao fundo (1908) [Figura
norama de Ouro Preto,
vista tomada do adro da 7]; Panorama de Juiz de Fora, vista tomada detras do Collegio Grambrery, apanhando
igreja de S. Francisco de o morro do Imperador e os principaes edifícios da cidade; Vista da rua da Estação e da
Paula, 1908. Óleo so- Casa da Inconfidencia, tomada das escadas do Adro de S. Francisco de Paula (pequeno
bre tela, 81,5 x 116 cm.
Museu Histórico Abilio estudo, pertenceu ao escritor Coelho Netto); Cortume de couro de João Vidal (Itabira
Barreto, Belo Horizon- do Campo), quadro ofertado aos reis da Bélgica, em visita ao Brasil, em 1920; Serra
te. do Curral de Bello Horizonte.

Em 1911, como parte dos eventos que celebram o bicentenário de Ouro Preto, Honorio
prepara gravuras em água-forte, impressas em cartões comemorativos, retratando o
monumento de Tiradentes, a figura do inconfidente Thomas Gonzaga e o brasão de
Ouro Preto.

Boa repercussão alcançou o pintor ao organizar uma exposição em Belo Horizonte,


em janeiro de 1913, no Atelier Belém. Dentre os quadros apresentados figurava a tela
Panorama de Ouro Preto. Outras seguintes obras fizeram parte da exposição: Casa do
Conselheiro Affonso Penna em Santa Bárbara; Lavras do Veloso; Retrato de Floriano
Peixoto (pastel); Um tipo de camponesa (pastel d’aprés nature);24 O celebre chafariz
do largo do Liceu. Algumas dessas obras constaram na Exposição Universal de Saint
Louis, em 1904.

Em 1917, por iniciativa e organização do pintor Anibal Mattos, que passara a residir
em Belo Horizonte, realizou-se a 1ª Exposição Geral de Belas Artes de Minas Gerais,
nos moldes aproximados dos eventos do Rio de Janeiro. A Exposição esteve instalada
no Palácio do Conselho Deliberativo, onde foram dispostas as divisões dos setores
de Pintura, Arquitetura e Escultura. Honorio Esteves expôs as obras Typo Nacional

24 Trata-se, provavelmente, da obra Camponesa de Minas.

258
(pastel) e Trecho de Estrada de Ferro, ambas pertencentes à coleção de Raymundo
Felicissimo.

Em junho de 1919, aconteceu, no mesmo local da Exposição anterior, a Segunda


Exposição Geral de Belas Artes, promovida pela Sociedade Mineira de Belas Artes,
entidade da qual Honorio Esteves fora um dos fundadores, em 1918, ao lado de Aníbal
Mattos, Francisco de Paula Rocha, José Jacinto das Neves, Olindo Belém e de outros
artistas. Honorio compareceu nesta oportunidade com onze quadros, tendo destaque
Curtume de João Vidal em 1907; Alto da rua Alagoas; Cachoeira do Tombadouro;
Boeiro da rua Tomé de Souza, Belo Horizonte (fusin), Camponesa (pastel).25 Nesta
época, o artista já residia em Belo Horizonte e era professor de Desenho na Escola
Normal Modelo. Dedicava muito do seu tempo ao ensino, à fabricação de inventos e,
um pouco menos, à pintura.

Em junho de 1928, realizou-se a IV Exposição Geral de Belas Artes de Minas Gerais.


Dentre obras de muitos jovens artistas que a integraram, Honorio Esteves apresentou
alguns quadros antigos, tendo sido acolhido com especial reverência pela imprensa
que cobriu o evento.

Presença de Honorio Esteves


Ao retornar a Ouro Preto, em março de 1890, Honorio Esteves passa a integrar uma
sociedade na qual as lideranças republicanas, recentemente alçadas ao poder, se
esmeravam em promover, a partir da capital mineira, uma nova pauta de conceitos
políticos, sociais e culturais. Contudo, para uma boa parte da população da velha
cidade, será aquele um momento de impasse e contradição; de confronto entre os
ideais de progresso e o sentimento arraigado da tradição; um tempo, enfim, no qual
a realidade se apresenta de forma ainda mais aguda diante da iminente perda da
condição de sede do governo proposta pela classe dirigente – o que se concretizará,
efetivamente, em 12 de dezembro de 1897, quando é inaugurada a capital Belo
Horizonte.

Sem que tenha se engajado em qualquer tendência específica, Honorio Esteves assumiu,
em processo natural e contínuo, posição de destaque na comunidade ouro-pretana,
por meio das suas atuações efetivas como artista, educador, professor de desenho,
inventor e, por anos seguidos, como o principal defensor do patrimônio artístico
e histórico da cidade colonial. Por meio de ações pioneiras no âmbito do Estado, o
artista, então recém-formado pela Academia Imperial, movido pela consciência do
real significado das artes na história de Minas, conhecimento alicerçado com clareza
por meio dos estudos artísticos que empreendera, propalou a urgência da prática
sistemática de conservação do patrimônio artístico setecentista e de uma postura
cidadã de respeito ao bem comum.

Nos anos iniciais do período republicano, juntamente com a supressão do


simbolismo que revestia o título “Imperial Cidade do Ouro Preto,” mantido desde
1823, foram também desaparecendo, inevitavelmente, pouco a pouco, algumas
25  Novamente, a mesma Camponesa de Minas.

259
figuras fundamentais do pensamento e da cultura do velho regime, como o foram,
por exemplo, o escritor Bernardo Guimarães, falecido em 1884; o influente político e
religioso, conselheiro cônego Joaquim José de Sant’Anna, falecido em abril de 1890;
o professor Claude-Henri Gorceix, fundador e diretor da Escola de Minas, criada
em 1876, da qual se afasta definitivamente em outubro de 1891. Nos dias que se
inauguram, abrem-se os caminhos para aqueles que irão conduzir a história de Minas
rumo ao novo século. Neste feito, ao lado do pintor Honorio Esteves, dentre outros
que despontam, estão os historiadores Diogo de Vasconcellos e José Pedro Xavier da
Veiga; o escritor Affonso Arinos; os professores Joaquim Candido da Costa Senna e
Thomaz da Silva Brandão; o poeta Alphonsus de Guimaraens.

Honorio Esteves se dedicou à pintura, de forma contínua, de 1880 a 1933, observando-


se épocas em que foi praticada com maior ou menor intensidade. Sua obra mostra-
se exemplarmente marcada por sua personalidade, voltada de forma integral para
a interpretação e difusão da cultura de Minas, sem encobrir, contudo – no que diz
respeito, em uma primeira fase, à concepção e ao resultado alcançado em algumas
delas –, uma estreita identidade com a produção de seus professores da Academia
Imperial. Com o passar dos anos, sua produção pictórica se ajusta àquela de pintores
seus contemporâneos, alguns dos quais do seu convívio desde as classes da Academia,
como Elyseu Visconti, Rosalvo Ribeiro e João Baptista da Costa.

Em seus trabalhos de cavalete, o pintor utilizou como suporte a tela, a madeira e o


cartão, com predominância para quadros de pequenas dimensões, quase miniaturas,
sendo esta uma das características dos estudos de paisagem feitos do natural.
Apreciava numerá-los, um a um, segundo algum critério próprio, formando séries
de quadrinhos. Somente um ou outro trabalho mereciam versões em suportes de
maiores dimensões. Estando em Ouro Preto, preparava, algumas vezes, ele próprio,
tintas extraídas de jazidas de argilas situadas nos arrabaldes da cidade, conhecedor
que era daqueles terrenos.

Quanto à pintura de retrato, deve-se destacar a qualidade da sua fatura. Desenho


íntegro, estudo da luz bem realizado, emprego equilibrado das cores, correta
compreensão psicológica e uma meticulosa análise da figura – componentes que
favorecem, de imediato, a sensação de inteira sinceridade que emana da sua obra.
Com vistas no conjunto dos trabalhos do artista, detendo a atenção nos diversos
gêneros que abordou, pode-se afirmar que reside exatamente na pintura de retrato
um dos pontos altos da sua realização artística.

Ao lado dos gêneros de pintura mencionados, o artista exercitou continuamente o


desenho a grafite ou carvão sobre papel, seja de cunho ilustrativo, ligeiro ou mais
detalhado, trabalhos nos quais colhia situações e momentos do cotidiano que julgava
de interesse. Em 1888, publicou, no Rio de Janeiro, dois números d’O Itacolomy,
revista caricata e litteraria, periódico no qual foram veiculados alguns trabalhos
ilustrativos. Tornou-se também fotógrafo e editou séries de cartões postais. Praticou
ocasionalmente a gravura em metal e, de forma frequente, a aquarela. Elaborou
desenhos de inúmeros projetos para peças utilitárias e para seus inúmeros inventos,

260
muitas vezes construídos em sua própria oficina, tendo-se como melhor exemplo a
peça Alphabeto Chromatico, prêmio Medalha de Bronze na Exposição Universal de
Saint Louis, em 1904.

Por todos esses aspectos, considerando a dimensão cultural que alcançou a obra de
Honorio Esteves, é justo atribuir-lhe uma importância fundadora no desenvolvimento
das artes de Minas Gerais.

261
262
O ateliê moderno de Ramos de
Azevedo: o Escritório Técnico
e a construção do Theatro
Municipal de São Paulo

Richard Santiago Costa 1

A construção do Teatro Municipal de São Paulo, no raiar do século XX, coroa


uma notável transformação na capital do estado àquela época, transformação esta
que finca suas raízes ainda em meados do século anterior, quando os palacetes das
elites pertencentes ao complexo cafeeiro espalham-se pelos bairros requintados
dos Campos Elíseos e Higienópolis: a crescente demanda por uma arquitetura
moderna e alinhada com os progressos técnicos e materiais que ditavam os rumos
da construção civil em solo europeu e norte-americano. É ponto pacífico, dentro
da historiografia do período, que o engenheiro-arquiteto Ramos de Azevedo fora a
principal personagem deste processo, o homem visionário que unira a boa tradição
arquitetônica com os novíssimos materiais de construção que permitiam múltiplas
variações na composição dos mais diversos edifícios, dos particulares aos públicos.
Sua chegada à capital na década de 1880 encontra um cenário adverso para que tais
novidades ganhassem campo por ali: se a presença de imigrantes de origem italiana
é considerável na composição final da população paulistana de então, a importância
dos artífices e operários de mesma procedência no ramo da construção é ainda maior:
estima-se que 90% dessa mão-de-obra era italiana.2 Mas se a presença dos capomastri
e pedreiros evitara, por um lado, que São Paulo permanecesse a construir tão somente

1 Doutorando do Programa de Pós-graduação em História da Arte do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da


Unicamp/São Paulo/Brasil. Pesquisa financiada pela FAPESP.
2 LEMOS, Carlos A. Ramos de Azevedo e seu escritório. São Paulo: Pini, 1993, p. 53.

263
casas singelas de taipa, não fora capaz, por outro,
de introduzir, por si só, as premissas do fazer
moderno em arquitetura. [Figura 1].

É a partir da atuação de Azevedo que este quadro


conhece modificações consideráveis. Durante
a década de 1890, o arquiteto encabeça dois
projetos da maior envergadura para os rumos da
arquitetura paulistana: assume a direção do Liceu
de Artes e Ofícios em 1895 [Figura 2], e concebe
a Escola Politécnica em 1893. Com esta última,
pretendia embasar, com sólidos conhecimentos
técnicos e científicos, as profissões ligadas à
engenharia, como a arquitetura, a agronomia
Figura 1 - Operários e a indústria, retirando do âmbito do empirismo puro e simples a concepção e
que trabalharam na
construção do Teatro erguimento de edifícios, dotando
Municipal de São Pau- os futuros arquitetos não somente
lo, 1911. São Paulo, de conhecimentos ligados à estética
Acervo Museu do Tea-
tro Municipal. e aos tratados de arquitetura
herdados do Renascimento, mas
também dos saberes técnicos
responsáveis pela solidez e
desenvolvimento das construções.
Figura 2 - Oficina dos
Ferreiros Artísticos do De igual importância foram as
Liceu na Rua da Canta- modificações introduzidas no
reira, c. 1910. São Pau-
Liceu, que optava por substituir
lo, Acervo do Liceu de
Artes e Ofícios de São os ensinamentos básicos
Paulo. proferidos pela outrora Sociedade
Propagadora da Instrução Popular, como alfabetização e aritmética, por saberes
efetivamente relacionados com a indústria e o artesanato. Eis que também aqui, a
presença italiana é decisiva: alguns dos principais professores dessas instituições
Figura 3 - Ramos de
Azevedo com seus cola- seriam selecionados a partir dos artífices italianos residentes na cidade, dos quais
boradores no Escritório Ramos tivera a sensibilidade de aproveitar seus conhecimentos práticos de modo a
Técnico, séc. XX. São difundi-los entre os jovens que formariam, em breve, a mão-de-obra apta a concretizar
Paulo, Coleção Família
Domingos Pellicciota. as novas necessidades da construção civil.

Com a fundação do Escritório Técnico Ramos


de Azevedo, em 1896, Ramos dá mais um passo
em direção à excelência construtiva: é nesta
firma que gravitarão os principais profissionais
ligados à construção e ao artesanato, os de origem
estrangeira e os recém-formados pelo Liceu e pela
Politécnica [Figura 3].

Nesse ínterim, já se encontrava em São Paulo


a segunda personagem de nossa narrativa: o
264
arquiteto genovês Domiziano Rossi [Figura 4], que
aqui chegara por volta de 1894.3 No ano seguinte, fora
contratado para o quadro docente do Liceu, como
professor de Desenho Decorativo e Geométrico, e da
Politécnica, onde ministrava aulas de Desenho. Ramos
também contaria com seus serviços em seu escritório
particular: Domiziano ficara como encarregado da
seção de projetos, chegando mesmo a tornar-se sócio
do engenheiro em 1907. Sua presença nessas três
esferas de ensino, das quais Ramos era a própria alma,
denota o renome que o italiano desfrutava por aqui,
principalmente por sua verve classicista assentada
sobre os tratados de Vignola, do qual não somente era
entusiasta, mas profundo conhecedor.
Figura 4 - Ramos
Chegamos, assim, ao terceiro nome que compõe a tríade responsável pela concepção de Azevedo, Claudio
do Municipal, o também italiano Claudio Rossi. Nascido em Carpi, na província de Rossi e Domiziano
Modena, Claudio desembarcara no Brasil em 1871, como cenógrafo da Cia. Ferrari. Rossi, 1911. Fonte: O
Estado de São Pau-
Claudio fizera sua fama como cenógrafo do Alla Scala de Milão, credencial suficiente lo, 12/09/1911, p.3.
para que muitas portas se abrissem para ele por aqui. Ao longo de toda a década de
1880, desenvolveu diversos trabalhos de envergadura no campo da cenografia nos
principais teatros brasileiros, como o São Pedro Alcântara, o São José e o São Carlos,4
além do novo pano de boca do São Pedro e do São Carlos.5 Tem igual importância
para a cena lírica brasileira, quando da formação da renomada Cia. Lírica Paulista,
por volta de 1895, cujos membros haviam sido contratados por ele em Milão, obtendo
sucesso por onde se apresentavam. A polivalência de Claudio levou-o a tornar-se
empresário teatral, quando arrendou o Teatro São José das mãos de Antonio Prado, em
1885.6 Ele fora o responsável pela reforma interna do teatro, pretendendo modernizá-
lo e colocá-lo à altura de sua importância para a capital paulista, haja vista que àquela
época, o São José era a principal casa de espetáculos da cidade.

Nesse momento, entramos no campo das especulações. Se as relações entre Ramos de


Azevedo e Domiziano Rossi aparecem bem fundamentadas muito antes da idealização
do Teatro Municipal, o mesmo não acontece com Claudio Rossi. Este último, que
alguns autores como Carlos Lemos, Anita Salmoni e Emma Debenedetti elegem como
o idealizador do projeto do teatro, parece ter tecido sua rede de relações pessoais com
os principais nomes da elite paulistana a partir de sua atuação na finalização dos
trabalhos de construção do Palacete de Elias Chaves, nos Campos Elíseos, na segunda
metade da década de 1890. Assim, granjeara o reconhecimento de sua competência
entre os membros da poderosa família Prado, de onde sairia o futuro prefeito da
cidade em 1899, e responsável pela construção do teatro, Antonio da Silva Prado.
3 CENNI, Franco. Italianos no Brasil: “andiamo in ‘Mérica...”. São Paulo: EDUSP, 2003, p. 406.
4 Seu trabalho no Teatro São Pedro Alcântara é de 1882 (cf. Gazeta de Notícias, 1/11/1882).
5 Respectivamente em 1884 (cf. Gazeta de Notícias, 15/09/1884) e 1886 (cf. Gazeta de Notícias, 16/12/1886).
6 Claudio Rossi permanece à frente da direção do Teatro São José até 1891, quando os direitos de usufruto do local
passam para Martinho Prado Jr. Cf. AMARAL, Antonio B. do. História dos velhos teatros de São Paulo: da Casa da
Ópera à inauguração do Teatro Municipal. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1979, p. 88.

265
É preciso também que fique claro, de maneira breve, o modo como se constituiu a
comissão construtora do Municipal: burlando a necessidade expressa em lei de uma
concorrência para escolha do melhor projeto, Antonio Prado nomeara a comissão
e a impusera como responsável pelo projeto e sua concretização, dispensando
as formalidades burocráticas por serem profissionais de gabarito, amplamente
conhecidos na capital.

Carlos Lemos, em seu livro Ramos de Azevedo e seu escritório, lança mão de diversos
relatos orais na tentativa de elucidar a teia de relações entre Antonio Prado e os três
arquitetos responsáveis pela obra. Em seguida, utiliza relatos de Victor da Silva Freire
e de Christiano Stockler das Neves, da década de 1970, para reforçar a tese de que a
escolha de Azevedo e os demais devia-se a relações políticas e pessoais. De acordo
com ele, Prado e Claudio Rossi mantinham relações pessoais e profissionais há pelo
menos 30 anos.7 Neves, afirmava, ainda, que eles haviam voltado da Europa em um
mesmo navio e que nessa ocasião, o cenógrafo havia apresentado os desenhos de um
teatro que ele idealizara para a cidade de São Paulo.8 Assim, o prefeito exigia que ele
estivesse na dianteira desse projeto, que seria materializado, a seguir, pela intervenção
de Freire, que teria colocado Ramos em contato com Claudio Rossi.

Isto posto, a única certeza que temos a respeito desse fato é que esses três profissionais
formaram uma espécie de núcleo duro, que assim se mantivera até o fim das obras em
1911. A eles couberam todas as decisões, fossem as de caráter pragmático, fossem as de
caráter estético, de modo que, aqui, interessa-nos muito mais especular a respeito de
como se davam as relações de trabalho entre eles no interior do Escritório Técnico de
Ramos de Azevedo do que atribuir autorias. De imediato, é patente que a direção dos
trabalhos, bem como a palavra final na tomada de decisões cabia a Ramos, que era não
somente o dono do escritório, como o homem que mantinha livre acesso aos círculos
políticos diretamente responsáveis pela viabilização do Municipal. Além disso, ele era
o diretor geral das obras, aquele que acompanhava o dia-a-dia do canteiro, e por isso,
fora o encarregado de elaborar, anualmente, os relatórios que narravam, de maneira
pormenorizada, o andamento dos trabalhos ao prefeito em exercício, que por sua vez,
repassava tais informações aos vereadores da Câmara. Tais relatórios são as principais
fontes de conhecimento a respeito da construção, em si, do teatro, e a partir deles
podemos vislumbrar, ou não, as ações de Domiziano e Claudio Rossi.

Logo após o começo das obras, em agosto de 1903, Claudio partira para a Europa, onde
ficaria a maior parte do tempo, munido das plantas e projetos do teatro, responsável
pela aquisição de materiais e aparelhos cênicos, bem como por supervisionar a
execução dos trabalhos de cunho artístico, como esculturas, mosaicos, luminárias
e vitrais, percorrendo os melhores ateliês em busca dos artistas mais afamados para
o fornecimento dessas peças. Isso ratifica que todo o projeto do teatro, inclusive em
termos decorativos, já estava sacramentado antes de sua partida. São as palavras de

7 Em verdade, o projeto do Palacete Elias Chaves é do alemão Matheus Häussler, e não de Rossi, que apenas conduzira o
fim dos trabalhos a partir da metade da década de 1890, após a morte de Häussler. Cf. SALMONI, Anita, DEBENEDE-
TTI, Emma. Arquitetura italiana em São Paulo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1981, p. 88.
8 LEMOS, op. cit., p. 67.

266
Ramos que narram, por exemplo, as primeiras Figura 5 - Detalhe de
um dos atlantes da
atividades de Claudio no Velho Continente:
fachada principal do
[...] Tendo percorrido as principais capitais e Teatro Municipal de
São Paulo esculpidos
examinado com atenção as instalações dos teatros pelos artistas Fanu-
modernos, organiza o provecto especialista os elementos chi e Ferrara, séc. XX.
de informações que lhe são necessários às aquisições Fonte: Acervo Digital
de que deve incumbir-se. Até o presente tem ele dado da UNESP.
execução às encomendas de atributos da decoração
exterior em material cerâmico e à propaganda junto
aos industriais do ferro para a sua comparticipação
à arrematação que será lançada nesta capital para as
armaduras de coberta e outras.9

Dessa maneira, Rossi acompanhara a execução


dos modelos em gesso dos atlantes da fachada
principal [Figura 5], esculpidos pelos artistas
Fanuchi e Ferrara, do ateliê milanês Casa Giovani
Piazza, aqui executados, posteriormente, em
arenito; os cobres para revestimento da cúpula; a
vidraçaria para as janelas do foyer, provenientes
de Stuttgart; os elementos decorativos da fachada em grés cerâmico; os bronzes
decorativos alemães; a escadaria nobre em mármore [Figura 6]; os aparelhos de
aquecimento e ventilação; os aparelhos de extinção de incêndios; a decoração em alto
relevo do arco do proscênio, de Alfredo Sassi; o mobiliário e decoração da sala do
foyer; e os aparelhos de luz. Figura 6 - Escadaria
Nobre em mármore,
Curiosamente, Ramos de Azevedo, durante os oito anos de obras, nunca fizera menção séc. XX. Foto: Richard
ao trabalho de Domiziano. Não menos importante fora, no entanto, sua participação Santiago, 2013.
em todo esse processo. É provável
que isso estivesse relacionado
à natureza de seu trabalho no
interior da comissão: até então,
o papel do projetista, embora
importante, era secundário,
haja vista que pouco importava
saber quem riscara as feições dos
edifícios, principalmente no caso
do escritório de Ramos, que havia
se tornado uma grife por si só.
Todos sabiam que as definições
mais importantes dos projetos que
levavam a chancela daquela firma
continham as ideias e premissas do

9 Relatório de 1903 apresentado à Camara Municipal de São Paulo pelo prefeito Dr. Antonio da Silva Prado. São
Paulo: Typographia de Vanorden & Co., 1904, Anexo, p. 42. Acervo Arquivo Histórico Municipal Washington Luís.

267
renomado engenheiro. Assim, Domiziano, no caso específico do Municipal, ainda que
tivesse materializado em sua prancha a maior parte das intenções de Claudio e Ramos,
permaneceu, a maior parte do tempo, no anonimato do escritório. A esse respeito,
é o próprio Azevedo quem esclarece a divisão de funções no interior da comissão,
quando, por ocasião de um desconforto gerado por uma possível homenagem a ele
pretendida pela câmara dos vereadores, na qual todos os encômios repousavam sobre
ele, tratando Domiziano e Claudio como meros auxiliares, julgara por bem refutar
qualquer homenagem que não colocasse no mesmo patamar seus colaboradores
diretos, destacando suas respectivas participações:
A edificação do Teatro Municipal foi executada em harmoniosa colaboração com os meus
devotados companheiros os srs. arquitetos Claudio e Domiziano Rossi, comigo signatários
do contrato das obras.

Ao primeiro coube a iniciativa do empreendimento, o esboço do primitivo plano, as


viagens à Europa quase exclusivamente à sua custa, o estudo dos melhoramentos nos
modernos teatros e a sua introdução em S. Paulo.

Ao segundo foi dada a longa e paciente organização dos planos definitivos, dos estudos de
conjunto e de detalhes, e do estudo da multidão de atributos e acessórios que figuram no
edifício, incumbência de que se ocupou com o esmero que caracteriza os seus trabalhos.10

É tão somente à luz dessas linhas que podemos aventar as atividades de Domiziano
e Claudio. À maneira dos grandes mestres da pintura e da escultura ao longo da
história, que transformavam seus ateliês em ambientes não só de produção artística
como também de ensino, Ramos transformara o Escritório Técnico não somente
em uma renomada firma de construção civil, talvez a mais preparada para qualquer
empreendimento dessa natureza até pelo menos os anos 1930, como também em
polo de difusão de conhecimento técnico, ao reunir em torno de si professores e
alunos do Liceu e da Politécnica, atraindo, igualmente, arquitetos de peso na história
da arquitetura brasileira, como o português Ricardo Severo, que também havia se
tornado sócio de Ramos, o francês Victor Dubugras e o alemão Max Hehl. É de
Severo, inclusive, a redação da monografia oficial do Teatro Municipal distribuída na
estreia da casa.

Talvez a grande virtude de Ramos tenha sido dar uma unidade técnica e artística aos
trabalhos projetados e executados por seu escritório. Ao tornar-se autossuficiente do
ponto de vista técnico e decorativo, uma vez que contava com engenheiros e artesãos
de gabarito em seus quadros, além de excelente capacidade financeira oriunda de sua
administração consistente, o Escritório Técnico se permitia alçar voos mais livres do
ponto de vista artístico, desobrigando-se dos entraves anteriores relacionados à pouca
mão-de-obra especializada, haja vista que as primeiras e principais experiências
no estilo Art Nouveau, personificados por Dubugras, ou até mesmo o Neocolonial
de Severo, passando pelo Neogótico de Hehl, tinham como origem comum seu
escritório . Ramos vislumbrara, ainda no século XIX, as condições indispensáveis
para que introduzisse aqui as inovações arquitetônicas – francamente ligadas à

10 Correio Paulistano, 20/11/1910, pp. 4-5. Acervo Hemeroteca Digital Brasileira.

268
evolução do fazer arquitetônico - com
que travara contato durante seus estudos
na Bélgica, de modo que sua atuação no
Liceu de Artes e Ofícios e na Politécnica
demonstram seu entendimento de tal
problemática, pois uma vez solucionada
a deficiência profissional, sua maestria
administrativa burlaria facilmente as
carências materiais, fosse via importação,
fosse abrindo caminhos para a produção
de matéria-prima em território nacional.

O Teatro Municipal [Figura 7] fora a


primeira grande obra do século XX na
cidade de São Paulo, um divisor de águas entre a arquitetura de fortes tradições coloniais Figura 7 - Teatro Muni-
cipal de São Paulo, 1911.
do passado e as sedutoras possibilidades do progresso técnico e científico do presente.
São Paulo, Acervo Esta-
Ramos tomara para si os desafios de uma obra dessa envergadura em uma cidade que dão.
ainda formava e educava seus artífices. Nada disso seria possível, entretanto, não
fosse o conhecimento prático de arquitetos e artistas estrangeiros, como Domiziano e
Claudio Rossi, ou seus patrícios, como o pintor Oscar Pereira da Silva, todos reunidos
em torno de seu escritório, o grande ateliê moderno de arquitetura, no qual o mestre
Ramos cultivaria a arte e a indústria que ergueria a São Paulo fulgurante daqueles
tempos. Nesse sentido, a ousadia da arquitetura empregada naquele teatro, com suas
armações de ferro e alvenaria de tijolos, estruturas importadas da Europa, unidas
ao apuro e requinte das múltiplas formas de arte de artistas e artesãos estrangeiros
e nacionais empregadas em sua decoração, demonstram a primazia do Escritório

Figura 8 - Oscar Pereira


da Silva, Retrato de Ra-
mos de Azevedo, 1929.
Óleo sobre tela, 57 x
80cm. São Paulo, Acervo
Pinacoteca do Estado.

269
Técnico em seu alinhamento com tudo o que havia de mais moderno nos primeiros
anos do século XX. Mais que uma firma de construção civil, um vigoroso ateliê a
cultivar a tradição e o progresso, no qual o absorto engenheiro do retrato de Oscar
Pereira da Silva [Figura 8] definia os traços da arquitetura paulista.

270
O ateliê dos fotógrafos itinerantes
em Minas Gerais no século XIX

Rogério Pereira de Arruda 1

No século XIX, a expansão da fotografia pelo interior do Brasil ocorreu, em grande


medida, por meio da itinerância dos fotógrafos. Geralmente, eles se estabeleciam em
uma capital, uma cidade de maior importância econômica ou cidade portuária de
onde partiam em viagens para ampliar seus negócios. Em Minas Gerais, registra-se
um grande número de fotógrafos que percorriam as montanhas e caminhos sinuosos
da região à busca de novos clientes. Ao se consultar a imprensa do período, é possível
traçar as características desses deslocamentos, permitindo-se conhecer as cidades
visitadas, os serviços fotográficos oferecidos e seus preços. No entanto, as condições
do exercício do ofício propriamente dito não são comumente discutidas.

Neste texto, proponho-me a tratar alguns aspectos do exercício do ofício a partir das
manifestações, na imprensa, de dois fotógrafos: Francisco Manoel da Veiga e José
Gallotti. Em Diamantina (MG), em momentos diferentes, eles se manifestaram sobre
seus ateliês fotográficos, não para fazer propagandas padronizadas, como era comum
no período, mas para tratar de questões artísticas. Francisco Manoel da Veiga, em
1871, ao encontrar um local ideal para estabelecer seu ateliê, define o modo como
o cliente deveria se apresentar para ser fotografado. José Gallotti, em 1889, para
rebater críticas recebidas sobre seu trabalho, discute as características artísticas de

1 Doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Professor Adjunto II da Universidade Fe-
deral dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), Minas Gerais, Brasil.

271
suas fotografias. Ao tratar de tais questões, este texto pretende promover uma melhor
compreensão do funcionamento do ateliê desses artistas.

Os fotógrafos e seus anúncios


Como já discuti em trabalho anterior, a publicação de anúncios nos jornais e
almanaques foi uma das formas de os fotógrafos se inscreverem no espaço público,
uma maneira de afirmação comercial no mercado de consumo capitalista.2 O anúncio
pode ser visto como uma expressão, ou melhor, como um dado material de uma
cultura fotográfica que se constitui no século XIX a partir do entrelaçamento de
interesses comerciais, demanda por imagens e representação social, investimentos
em ciência e tecnologia. A cultura fotográfica “trouxe novos comportamentos: a visita
ao atelier do fotógrafo; a troca de retratos; a fotografia da família, dos formandos; a
disseminação e popularização do ofício e da prática da fotografia.”3 Os anúncios, bem
como as demais produções impressas sobre fotografia e fotógrafos podem ser vistos
como instituídos e instituidores dessa nova cultura. Nesse processo,
Publicar anúncios era uma forma de contato dos fotógrafos com sua potencial clientela,
era uma maneira de afirmação no mercado, mas, basicamente, um dos modos de os
fotógrafos construírem imagens de si. Ao anunciarem seu nome, ou do seu atelier e seus
serviços, os fotógrafos não só buscavam um lugar no mercado de consumo de imagens, mas
definiam, também, um status social específico. Construíam sua identidade profissional
umbilicalmente ligada à sua identidade social.4

Algumas características do imaginário social sobre a fotografia manifestam-se nos


anúncios. Nesse imaginário, valorizavam-se a demonstração de sintonia do fotógrafo
com as novidades europeias, o conhecimento de todos os sistemas fotográficos e a
disponibilidade para atender as demandas da clientela, oferecendo-se, principalmente,
imagens artísticas.

A pesquisa realizada nos jornais e almanaques mineiros publicados no século XIX


demonstrou que os estabelecimentos fotográficos, geralmente, eram denominados
“atelier.”5 Ao se adotar uma nomenclatura tradicional, objetivava-se inscrever
a fotografia no campo das artes. Outras denominações também eram usadas, tais
como gabinete e oficina, mas em menor número. Expressões como “arte do retrato,”
“progressos da arte,” “artistas photographos,” “trabalhos artísticos,” “processos mais
modernos de sua arte” são algumas maneiras de se referir ao trabalho do fotógrafo. Já
“perfeição,” “nitidez”, “esmero,” “brilho” são formas de se remeter às imagens. Verifica-
se nos anúncios que era fundamental indicar a destreza do fotógrafo no uso de todos
2 ARRUDA, Rogério Pereira de. A expansão da fotografia em Minas Gerais, um estudo por meio da imprensa, 1845-
1889. Vária História. Belo Horizonte, v. 30, n. 52, jan./abr. 2014, p. 231-256. Disponível em: http://www.scielo.br
Acesso em: 29 maio 2014.
3 Ibidem, p. 241.
4 Idem.
5 A pesquisa foi iniciada no âmbito do meu doutorado em História na Universidade Federal de Minas Gerais. Após a
defesa da tese, dei continuidade ao trabalho de investigação. Na pesquisa, estudei o processo de expansão da fotografia
em Minas Gerais no século XIX por meio das fontes de imprensa e das fotografias do período. Além do artigo citado
acima, a pesquisa teve um projeto contemplado com o Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia 2012, que viabilizou
a seguinte publicação: ARRUDA, Rogério Pereira de. O ofício da fotografia em Minas Gerais no século XIX, 1845-
1900. Belo Horizonte: Edição do autor, 2013.

272
os sistemas conhecidos, garantindo-se a perfeição dos trabalhos e a modicidade de
preços. Sobre a relação entre ciência e arte, pode-se afirmar que,
[...] junto à insistência sobre o caráter artístico, havia também o destaque de que “os
machinismos e materiaes” usados eram os mais modernos. Portanto, garantia-se um
trabalho artístico, mas em consonância com as transformações tecnológicas pelas quais
passavam os processos fotográficos. Desse modo, há um atrelamento entre um trabalho
fotográfico de arte perfeito e a utilização das descobertas mais modernas: um era
condicionado pelo outro.6

Como afirma Ana Maria Mauad, as menções ao caráter científico dos sistemas
fotográficos demonstram que havia uma concepção de que “A ciência produz a
beleza, através da captação precisa da realidade, uma hiper-realidade, que conta,
para sua criação, com a mão do fotógrafo, controlando a natureza, a própria natureza
responsável pelos puros raios de luz que sensibilizam a chapa.”7 De acordo com a
autora, o fotógrafo, nesse sentido, seria um alquimista moderno que, ao manipular os
humores, ao combinar física e química, criava uma beleza renovada pela técnica. O
fotógrafo seria “um novo tipo de artista para um tempo de tecnificação e massificação
das representações sociais.”8 Sobre o mesmo assunto, Carlos Lemos destaca que a arte
fotográfica no século XIX apresentava duas facetas que satisfaziam a dois interesses
opostos. Segundo o autor, quando prevalecia o interesse pela veracidade, “[...] havia o
aval da máquina imparcial, a garantia da ciência na obtenção do registro verdadeiro;
quando aos clientes fosse bom algum ‘retoque’, alguma eliminação de rugas da face ou
o ‘clareamento’ de alguma tez, o hábil fotógrafo, com seu imaginoso auxiliar pintor,
tratavam de ajudá-los no intento.”9

No século XIX, a demanda social por representações visuais é um dos fatores que
explica a grande expansão e disseminação da fotografia, mesmo que desigual no
tempo e no espaço, por todas as classes sociais. O interesse pela fotografia no Brasil
se relaciona a um fenômeno de ordem mundial. De acordo com Mauad, “Freqüentar
o atelier fotográfico faz parte de um conjunto de códigos de comportamento que
iguala o habitante da Corte do Rio de Janeiro ao morador de Paris e a rua do Ouvidor
ao Boulevard des Italiens, integrando a cidade nos grandes circuitos da civilização
ocidental.”10 Isso é válido também para outras cidades, além da corte. Os fotógrafos
levaram a fotografia ao interior do país, viabilizando o acesso não só das elites ao
novo meio de representação, mas também àqueles que não podiam viajar para a corte
ou para alguma capital europeia.

A presença dos fotógrafos nas cidades do interior de Minas Gerais, por exemplo, era
muito bem-vinda, pois servia para demonstrar a participação da região no processo de
modernização do país. Na imprensa mineira, os fotógrafos publicaram seus anúncios,

6 ARRUDA, op. cit., p. 240.


7 MAUAD, Ana Maria. Entre retratos e paisagens: modos de ver e representar no Brasil oitocentista. Revista Studium.
Campinas, n. 15, 2004, p. 8. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/15/index.html Acesso em: 2 nov. 2010.
8 Idem, p. 8.
9 LEMOS, Carlos A. C. Ambientação ilusória. In: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de (Org.). Retratos quase ino-
centes. São Paulo: Nobel, 1983, p. 55.
10 MAUAD, op. cit, p. 12

273
em muitos casos, destacando seus vínculos com a corte, e com a Europa. Desse modo,
faziam com que os habitantes das cidades visitadas se sentissem participando de um
processo único, que, idealmente, entrelaçava de igual modo os agentes envolvidos.
Em um dos primeiros anúncios publicados na província, em 1856, em Ouro Preto,
o retratista M. F. de Abreu divulgou que tirava “[...] retratos de todos os tamanhos,
desde o de um botão de peito até ao maior conhecido, e pelos preços do Rio de
Janeiro [...].”11 No aviso de M. Caro e H. Meynier, publicado em Juiz de Fora, em 1878,
afirmava-se que eles eram recém-chegados “[...] da Europa e dos Estados-Unidos
onde acabão de estudar os processos mais modernos de sua arte [...].”12 Em 1879,
em Campanha, os irmãos Passig, proprietários da Photographia Allemã, anunciaram
que estavam “[...] prevenidos com as mais superiores machinas e drogas vindas da
Europa [...].”13 Assim, os fotógrafos procuravam demonstrar que estavam atualizados
com as novidades técnicas do ramo na mesma proporção em que se apresentavam
como agentes de um processo civilizatório. A publicação dos anúncios convidando
o “respeitável público” para visitar os ateliês dos fotógrafos era uma chamada para o
ingresso em um mercado de consumo de bens materiais e simbólicos da modernidade
capitalista.

Os ateliês dos fotógrafos


As características físicas dos ateliês dos fotógrafos no século XIX podem ser discutidas
a partir de algumas fontes, tais como os manuais, tratados e guias sobre fotografia,
a imprensa e a correspondência entre fotógrafos. Nessas fontes são encontradas
informações sobre os modos mais adequados para equipar os ateliês, os procedimentos
para obter os melhores resultados técnicos e estéticos nas fotografias, o registro
dos problemas enfrentados no dia a dia de trabalho e as maneiras de resolvê-los.
Suzana Ribeiro destaca que os manuais podem ser vistos como espécies de crônicas
de acontecimentos fotográficos. Neles eram noticiadas as inovações técnicas e as
descobertas científicas, bem como “[...] a divulgação dos salões e principais eventos
na área.”14 A autora acrescenta, ainda, que “O conteúdo não se restringe à divulgação
de fórmulas ou à introdução das novidades disponíveis no mercado, mas há ainda que
se ressaltar a preocupação destinada à discussão teórica no campo da arte, a difusão
de valores e a consagração de padrões estéticos.”15 Assim, conhecer o funcionamento
interno dos ateliês é possível, em alguma medida, a partir de algumas representações
desses espaços, como nas fotografias, nos desenhos, nas plantas baixas, nos esquemas
de iluminação e disposição do mobiliário publicados nos manuais, guias e tratados
fotográficos.

11 O Bom Senso. Ouro Preto, ano 5, n. 393, 31 mar. 1856, p. 4. Arquivo Público Mineiro (APM). Coleção de jornais
mineiros do século XIX.
12 O Pharol. Juiz de Fora, n. 81, 17 out. 1878, p. 4. Arquivo Público Mineiro (APM). Coleção de jornais mineiros do
século XIX.
13 Monitor Sul-Mineiro. Campanha, ano VIII, n. 410, 2 set. 1879, p. 4. Arquivo Público Mineiro (APM). Coleção de
jornais mineiros do século XIX.
14 RIBEIRO, Suzana Barreto. Manual de photographia: caminhos da técnica e da arte, ou a profissionalização possí-
vel? Revista Studium. Campinas, n. 15, 2004, p. 1. Disponível em: http://www.studium.iar.unicamp.br/15/index.html
Acesso em: 1o nov. 2010.
15 Idem.

274
Como a fotografia desde sua invenção dependeu da abundante existência de luz, os
espaços abertos ofereciam as condições mais adequadas para o trabalho do fotógrafo.
Com o passar do tempo, o ateliê foi se afirmando não somente como um espaço que
abriga um equipamento que produz imagem, mas como um local onde se constroem
identidades sociais. A frequência ao ateliê servia, ainda, como forma de obtenção de
status social. Este espaço conheceu suas melhores definições teóricas e orientações
práticas nos tratados e manuais sobre fotografia editados ao longo do século XIX.
Como demonstrou Koutsoukos, o aprendizado da técnica fotográfica ocorreu por
meio das aulas e pela leitura dos manuais de fotografia, que eram escritos pelos
fotógrafos práticos, nos quais
[...] os interessados eram orientados sobre como construir um estúdio (o tamanho,
formato e posição ideais), como montar a oficina, como mobiliá-la; eram orientados
sobre o funcionamento do estúdio, sobre métodos de conservação de clichés, além de,
novamente, assim como acontecia com os periódicos, serem orientados sobre as novas
técnicas, o uso dos equipamentos, como arranjar uma cena, posicionar os modelos nas
diversas situações, posicionar pés e mãos, a direção ideal dos olhares, a iluminação, a
revelação, a apresentação do produto final, etc.16

A título de exemplo podemos citar quatro tratados publicados no século XIX que
consideravam a construção do ateliê como uma temática importante. São eles: Traité
Général de Photographie, publicado em Paris, em 1863, por D. V. Monckhoven;
Dissertations historiques, artistiques et scientifiques sur la photographie, escrito por
Alexandre Ken, publicado em Paris, em 1864; La photographie en Amérique – Traité
complet de photographie pratique, publicado em Paris, em 1878, por A. Liébert; e El
rayo solar. Tratado teórico y práctico de fotografia, de J. Towler, publicado em Nova
York, em 1884. As obras de D. V. Monckhoven, Alexandre Ken e A. Liébert são as
mais completas sobre o assunto. Além de ensinar as várias técnicas fotográficas,
os autores se dedicavam a instruir os leitores como se deveria construir um ateliê
fotográfico, por meio de descrição minuciosa, desenhos e esquemas. De modo geral,
eles indicam que o ateliê deve estar organizado em três partes: a sala de recepção e de
espera; o salão de poses; e o laboratório. Os autores detalham cada uma dessas partes,
em alguns casos sugerindo-se o tamanho ideal, bem como todos os acessórios que
deveriam proporcionar um trabalho eficaz e de qualidade artística.

Para o laboratório era indicada a necessidade de fornecimento de água em abundância


e de um sistema de ventilação, fornecendo, ainda, uma descrição minuciosa dos
equipamentos e produtos químicos necessários. A organização espacial do laboratório
é tratada levando-se em conta o trabalho com a sensibilização das placas de vidro
e dos papéis, bem como a tiragem das fotografias e seu acabamento. Monckhoven
recomenda que
O laboratório deve ser composto de dois ambientes com uma porta que permita a livre
passagem de um espaço ao outro. É recomendável que eles estejam localizados no andar

16  KOUTSOUKOS, Sandra Sofia Machado. O aprendizado da técnica fotográfica por meio dos periódicos e manuais
– segunda metade do século XIX. Fênix. Revista de História e Estudos Culturais, Uberlândia, ano 5, v. 5, n. 3, jul./set.
2008, p. 7. Disponível em: http://www.revistafenix.pro.br/ Acesso em: 3 set. 2009.

275
térreo. [...] Um ambiente será destinado à preparação dos produtos químicos propriamente
ditos, enquanto o outro à cópia de fotografias, à limpeza dos vidros, etc.17 [Tradução
nossa].

Monckhoven destaca a câmara escura como uma estrutura independente, mas


conectada ao laboratório, onde seria feita a sensibilização das placas de vidro e dos
papéis fotográficos.

As salas de recepção e espera são detalhadas por Alexandre Ken. Ele explica que o
espaço deveria ser de acesso livre e ricamente decorado, com lugar para espera dos
clientes, para exposição de trabalhos e uma toillete, principalmente para as senhoras.
É um ambiente que deveria exibir certo luxo, pois, segundo Ken,
Estaríamos redondamente enganados se atribuíssemos toda a busca do luxo a uma
preocupação puramente industrial, ao desejo de deslumbrar o visitante exibindo, aos seus
olhos, toda a aparência de riqueza que acompanha ordinariamente o sucesso. O mesmo
sentimento artístico que faz os pintores acumularem mil curiosidades, objetos de arte,
móveis refinados, muitas vezes fantasias de grande valor na desordem harmoniosa de seu
estúdio, inspira e impõe ao fotógrafo o luxo do seu estabelecimento.18 [Tradução nossa]

Já o salão de poses, como o centro vital de um ateliê, obteve bastante atenção dos
autores dos tratados. Como a tomada da fotografia exigia uma boa quantidade de
luz, o salão de pose envidraçado foi considerado a melhor opção para se alcançar
bons resultados. Segundo Michelon, “as janelas e tetos de vidro foram, portanto, a
melhor opção que os fotógrafos tiveram ao longo do século XIX e início do XX para
conseguir iluminar os seus objetos durante a tomada do registro.”19

A. Liébert descreve em sua obra um salão de pose que deveria reunir as “melhores
condições para obter fotografias artísticas, vigorosas e claras em todos os detalhes.”20
Segundo ele, um gênero de salão que se encontra nos Estados Unidos, onde a fotografia
alcançou um grau de perfeição.

17  “Le laboratoire doit se composer de deux places ayant une porte commune, qui permette de passer facilement de
l’une à l’autre. Il est bon qu’elles soient au rez-de-chaussée. (...) L’une des deux places sera destinée aux préparations
chimiques proprement dites, l’autre au tirage des positives, au nettoyage des glaces, etc.” MONCKHOVEN, D. V. Traité
général de photographie. 4. ed. Paris: Librairie Victor Masson et fils, 1863, p. 83. Disponível em: https://books.google.
com.br/books Acesso em: 23 maio 2015.
18 “On se tromperait grandement, si l’on attribuait toute cette recherche luxuese à une préoccupation purement indus-
trielle, au désir d’éblouir le visiteur en faisant miroiter à ses yeux toutes les apparences de la richesse qui accompagne
ordinairement le succès. Le même sentiment artistique qui fait accumuler aux peintres mille curiosités, des objets d’art,
de riches meubles, souvent des fantaisies d’un grand prix dans le fouillis harmonieux de son atelier, inspire et impose
au photographe de luxe de son établissement.” KEN, Alexandre. Dissertations historiques, artistiques et scienti-
fiques sur la photographie. Paris: Librairie Nouvelle, 1864, p. 206. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/
bpt6k6534746w Acesso em: 15 set. 2015.
19 MICHELON, Francisca Ferreira. Telhados de vidro em templos da fotografia: o retrato no atelier envidraçado. Fê-
nix. Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, ano XI, v. 11, n. 1, jan./jun. 2014, p. 8. Disponível em: www.
revistafenix.pro.br Acesso em: 7 ago. 2015. Neste artigo, Michelon estuda três remanescentes de ateliês envidraçados: o
de Carlos Relva e o dos Vicentes, em Portugal; e o de Josef Seidel, na República Tcheca, todos transformados em Casas
Museu.
20 “[...] meilleures conditions pour obtenir des photographies artistiques, vigoureuses et claires dans tous les détails
[...].” LIÉBERT, A. La photographie en Amérique. Traité complet de photographie pratique. 3. ed. Paris: s.n., 1878,
p. 44. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6383828w Acesso em: 20 maio 2015.

276
Os autores também demonstram como o ateliê deveria ser posicionado em relação aos
pontos cardeais, de modo a aproveitar adequadamente a luz ao longo do dia (a parede
principal de vidro deveria estar direcionada para o norte no hemisfério norte e para
o sul no hemisfério sul); quais paredes deveriam ser envidraçadas, e o tamanho delas,
indicando-se as cores dos vidros e a maneira de limpá-los; e o sistema de cortinas,
que deveria ser montado de modo a proporcionar a confecção dos retratos. Ainda era
enfatizado o posicionamento do prédio do ateliê em relação às construções vizinhas,
que devia estar situado de modo a que a trajetória da luz não fosse interrompida em
nenhuma hora do dia. Portanto, ele deveria estar localizado a certa altura para evitar
perda de luminosidade.

Sobre o interior do salão de poses, Monckhoven recomenda cuidado com a escolha


das cores das tintas e dos papéis de parede, sugerindo os tons de cinza e azul, mas
destacando que a escolha deve se dar em função da tonalidade geral dos vidros do
ateliê. Quanto à decoração, o autor alerta que o tipo de mobília deveria ser escolhido
de acordo com o gosto do fotógrafo, acrescentando:
Lá se encontram, com frequência, um piano, fotografias estereoscópicas, álbuns
fotográficos, entre outros objetos sem relevância. Atualmente, fabrica-se com painéis de
madeira a imitação de toda sorte de objetos, tais como pianos, estantes, colunas, etc.
Estes objetos podem ser comprados a preços baixíssimos, e como são esculpidos em relevo,
provocam efeito de móveis verdadeiros. A ideia é excelente, como se vê, mas a elegância e
o bom gosto de tais objetos costumam deixar a desejar.21 [Tradução nossa]

Ao tratar do ambiente interno do salão de poses e seus acessórios, Alexandre Ken


afirma que
Os acessórios que mobiliam o salão de pose devem ser suficientemente numerosos,
variados e de bom gosto. Telas pintadas em trompe-l’oeil, deslizáveis em um trilho,
demonstram fundos representando caramanchões, jardins, paisagens, galerias, etc. É
necessário escolher e distribuir bem esses acessórios, de tal modo que eles não adquiram
demasiada importância ou até mesmo ofusquem o modelo que eles devem simplesmente
acompanhar e valorizar.22 [Tradução nossa]

Como observou Maria Inez Turazzi, havia uma gama de artefatos para a ambientação
do salão de pose que definia o papel reservado à fotografia “nas sociedades ocidentais
durante o século XIX. Barquinhos, balões, escotilhas de navios, falsas paisagens e
falsas viagens. A ilusão do retrato fotográfico era também uma espécie de passaporte
que podia transportar o indivíduo para um mundo exterior ao seu.”23
21“L’on y trouve le plus souvent un piano, des stéréoscopes, des albums photographiques, etc., tous objets que nous
pouvons passer sous silence. On fabrique aujourd’hui des boiseries imitant toutes sortes d’objets, tels que pianos, bib-
liothèques, colonnades, etc. Ces objets s’achètent à très-bas prix et comme ils sont sculptés en relief, ils font l’effet de
meubles véritables. L’idée est excellente, comme on le voit, mais l’élégance et le bon goùt de ces objets laissent souvent à
désirer.” MONCKHOVEN, op. cit., p. 106.
22  “Les accessoires qui meublent le salon de pose doivent être assez nombreux, variés et de bon goût. Des toiles peintes
en trompe-l’oeil, glissant dans des rainures, forment des fonds divers représentant des berceaux, des jardins, des pa-
ysages, des galeries, etc. Il faut assez bien choisir et disposer ses accessoires pour qu’ils ne puissent pas acquérir trop
d’importance et écraser même dans l’épreuve le modèle qu’ils doivent simplement accompagner et faire valoir.” KEN,
op. cit., p. 209.
23  TURAZZI, Maria Inez. Poses e trejeitos. A fotografia e as exposições universais na era do espetáculo (1839-
1889). Rio de Janeiro: Rocco, Funarte, 1995.

277
Algumas imagens exibidas no Traité général
de photographie, de Monckhoven, ilustram o
espaço interno de um ateliê, como a reproduzida
a Figura 1, onde podemos ver o mobiliário
interno, o sistema de cortinas, o envidraçamento
das paredes, o painel de fundo, o ritual da pose
e o modo de operação do fotógrafo. Um salão de
pose mostrado como exemplar para os leitores-
fotógrafos que exerciam o ofício da fotografia
e precisavam de referências técnicas para a
montagem dos seus estabelecimentos.

Ao se fazer um balanço dos espaços necessários


para o funcionamento de um ateliê no século
Figura 1 - Désiré van XIX, a equipe do Musée Suisse de l’Appareil Photographique24 chegou ao seguinte
Monckhoven (1834-
1882), Interior de um
resultado: salas de recepção e de espera; salão de pose; laboratório de tratamento e
salão de pose envidra- sensibilização das placas de vidro; espaço para estocagem das placas de vidro; ateliê
çado. Fonte: MON- de retoque dos negativos; laboratório de preparo do papel sensível; espaço com
CKHOVEN, D. V.
Traité général de pho-
luz natural para exposição do papel por contato com o negativo; laboratório para
tographie. 4. ed. Paris: tratamento químico das fotografias; ateliê de acabamento.
Librairie Victor Mas-
son et fils, 1863, p. 100. As recomendações dos tratados, manuais e guias são diversas e visavam orientar os
Disponível em: https:// fotógrafos a construir seus ateliês da melhor maneira possível. Os fotógrafos recorriam
books.google.com.br/
books a eles com o intuito de exercerem melhor seu oficio, mas acreditamos que eles tiveram
que adaptar as orientações dadas às condições reais que encontravam no exercício
da atividade. Desse modo, segundo Michelon, “Havia, simultaneamente, palácios de
vidro e modestas casas com aberturas que tentavam iluminar parcos interiores. Nos
palácios era frequente a decoração exaustiva e luxuosa, enquanto que nos estúdios
pobres havia uma ou poucas cadeiras e alguns apetrechos.” Como ainda enfatiza a
autora, “no entanto, para ambos não faltavam clientes e os retratos feitos podem ter
sobrevivido ao tempo, às mudanças e ao esquecimento [...].”25

Quando se consideram as condições do trabalho do fotógrafo em Minas Gerais,


pensando exatamente na estrutura do ateliê, podemos afirmar que, de modo geral,
não foi possível implantar todas as recomendações dos tratados e manuais. É provável
que na capital da província, Ouro Preto, e nas cidades de médio porte e de alguma
importância econômica, como Juiz de Fora e Campanha, os fotógrafos tivessem
conseguido implantar ateliês em maior consonância com as recomendações. A
predominância da itinerância, como forma principal de disseminação do ofício na
província, não oferecia as condições adequadas para que os fotógrafos instalassem ateliês
bem equipados. É provável que eles tenham conseguido ateliês menos improvisados

24 A equipe do Museu realizou a maquete de um ateliê fotográfico do século XIX, caracterizando todos os seus espaços
a partir de uma ampla pesquisa em tratados, manuais, revistas, fotografias, desenhos e bibliografia da área. O projeto
está descrito em MUSÉE SUISSE DE L’APPAREIL PHOTOGRAPHIQUE. L’atelier d’un photographe de la fin du XIXe
siècle en maquette. Vevey, 2013. Disponível em: http://www.cameramuseum.ch/fr/N17542/un-atelier-de-photogra-
phie-de-la-fin-du-xixe-siecle-en-maquette.html Acesso em: 19 set. 2015.
25 MICHELON, op. cit., p. 8.

278
quando se instalavam por mais tempo em Figura 2 - Anúncio
do ateliê Photographia
alguma cidade.
Fluminense (Fotógrafo
João Gomes de Almei-
As representações visuais poderiam ser um
da). Fonte: Monitor
meio de se avaliar as condições dos ateliês Sul-Mineiro. Periodico
em Minas; no entanto, as imagens são de Litteratura, Indus-
tria e Noticias. Cidade
bem raras. Nos anúncios dos fotógrafos e
da Campanha da Prin-
nos textos publicados sobre fotografia não ceza, ano XIII, n. 700,
houve a inserção de imagens dos ateliês dos 8 jul. 1884, p. 4. Acer-
vo Centro de Estudos
fotógrafos. Foram usadas poucas imagens
Campanhense Monse-
para divulgar o exercício do ofício dentro nhor Lefort.
do ateliê. Todavia, há uma ilustração que
acompanhou alguns anúncios e que pode
nos servir de referência [Figura 2]. Ela
exibe, idealmente, o momento da tomada
da imagem. Trata-se de uma imagem concisa, que enfatiza a relação fotógrafo-
posante, mostrando a câmera fotográfica como recurso técnico principal à mão do
fotógrafo e que define a pose como o momento ritual de todo o procedimento. Diante
da dificuldade de inserção de imagens nas publicações e da possível falta de estrutura
dos ateliês era melhor fazer uma propaganda que transmitisse os fundamentos
principais do ato fotográfico.
Figura 3 - Propaganda
Outra imagem de ateliê exibida na imprensa foi a do estúdio de Ehrhard Brand, do Ateliê fotográfico de
fotógrafo atuante em Juiz de Fora [Figura 3]. É possível identificar a câmera em E. Brand & Comp. Fon-
te: Almanak de Juiz de
posição de destaque sobre o tripé, além de outro equipamento fotográfico no canto Fora. Juiz de Fora: Leite
inferior direito; o painel de fundo, tão importante para a encenação fotográfica; álbuns; Ribeiro & Comp, 1891,
fotografias avulsas e em porta-retratos; frascos; lentes; mobiliário, como cadeira e p. 127. Acervo do Mu-
seu Mariano Procópio.
aparador; um livro aberto, provavelmente um tratado de fotografia; alguns apetrechos Reprodução Gil Vello-
de laboratório; e visor para fotografia estereoscópica. É possível ver, ainda, uma so.
palheta com os pincéis, revelando, como já ressaltou Maraliz
Christo, a proximidade entre os afazeres do fotógrafo e do
pintor.26 Não se trata de uma fotografia que exibe o interior do
ateliê pronto para a sessão de poses, mas uma imagem que visa
remeter o leitor ao universo da fotografia, além de procurar
demonstrar que o estúdio estava equipado para proporcionar
um bom trabalho aos clientes. Tudo isso descortinado pelo
pano de boca, recolhido à esquerda da imagem, remetendo a
fotografia ao universo das representações teatrais.

Algumas características dos ateliês dos fotógrafos em Minas


Gerais apareceram descritas nos anúncios publicados na
imprensa, tal como a referência à existência de fundos para os
estúdios, a presença dos diversos sistemas fotográficos, além
de se falar do endereço onde se localizavam, dos horários de
26 CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. A fotografia através de anúncios de jornais. Juiz de Fora (1887-1910). Locus:
Revista de História, Juiz de Fora, v. 6, n. 1, p. 127-146, 2000.

279
trabalho e dos preços. Mas a manifestação de dois fotógrafos sobre o funcionamento
dos seus ateliês é algo raro de se encontrar. Francisco Manoel da Veiga não só
comunica a montagem do novo ateliê, o que era mais comum, como também instrui
sua potencial clientela na produção pessoal adequada à presença diante das câmeras.
José Gallotti se vê obrigado a defender publicamente a qualidade estética do seu
trabalho.

O comunicado de Francisco Manoel da Veiga27


Esse fotógrafo era um típico itinerante. Sua presença nas cidades de Minas Gerais é
registrada a partir do início da década de 1860. Apesar de ter trabalhado em outras
cidades, como São João del Rei e Conceição do Mato Dentro, ele exerceu seu ofício
preferencialmente no trecho entre Ouro Preto e Diamantina. Por meio da imprensa é
possível acompanhar os deslocamentos de Manoel da Veiga entre essas duas cidades.
A escolha por esse itinerário pode ser explicada pelas potencialidades do consumo
em ambas as localidades. Ouro Preto era a capital da Província; desse modo, reunia
uma população com alto poder aquisitivo, formada por políticos e funcionários da
administração pública, além de historicamente possuir uma economia geradora de
muita riqueza. Diamantina, apesar de não estar no auge da produção diamantífera,
possuía uma elite consolidada que se tornava uma clientela em potencial para os
fotógrafos. Ademais, a cidade era um polo da economia regional, sendo uma
referência para todo o norte de Minas. Denomino esse tipo de itinerância como sendo
intraprovincial, pois o fotógrafo se deslocava entre as cidades mineiras, procurando
oferecer seu trabalho em locais onde não havia um ateliê instalado. Já os fotógrafos
que exerciam seu ofício deslocando-se entre as cidades de diferentes províncias
realizavam a itinerância interprovincial, tal como fazia José Gallotti.

A itinerância era uma condição que atingia a maioria dos fotógrafos no século XIX
e parte do século XX. O exercício do ofício em um país como o Brasil não deve ter
sido nada fácil, pois os fotógrafos se deparavam com dificuldades de ordem diversa.
Uma delas eram os meios de transporte, bastante problemáticos devido às condições
precárias das estradas e, principalmente, devido à restrição da malha ferroviária na
província. Outra dificuldade se refere ao mercado consumidor muito restrito em uma
sociedade escravista, o que lhes colocava limites na formação da clientela. A isso se
acrescentam os problemas para adquirir equipamentos e insumos fotográficos, pois
eles eram produzidos fora do Brasil. Geralmente, o fotógrafo estrangeiro, quando
chegava ao país, já trazia seu equipamento, mas era comum realizar viagens periódicas
à Europa para se atualizar. Aqueles que não podiam viajar adquiriam equipamentos
usados, comumente quando aprendiam o ofício junto a um colega mais experiente,
que lhe vendia o material necessário. Outra alternativa seria comprar equipamentos e
insumos nas casas importadoras localizadas na corte. Havia, inclusive, equipamentos
adequados para os fotógrafos que realizavam viagens. Outro desafio enfrentado
pelos fotógrafos diz respeito a seu espaço de trabalho: o ateliê. Em suas viagens, os
fotógrafos itinerantes se instalavam em ambientes que eram adaptados para servir
27 Há um Francisco Manoel da Veiga em Juiz de Fora, atuando como proprietário de um Hotel no final da década de
1850 e início da de 1860. Entretanto, não podemos afirmar que se trate do fotógrafo.

280
provisoriamente às finalidades do ofício, sendo possível afirmar que a maioria não
oferecia as condições ideais preconizadas nos manuais e tratados de fotografia do
período. Era comum escolherem um local central dentro da área urbana das cidades,
inclusive alguns se instalaram em hotéis, o que tornava sua estadia mais confortável.
Sobre esse assunto, o fotógrafo Manoel da Veiga nos apresenta uma situação rara na
imprensa mineira: ele publica um comunicado em que se refere ao espaço do seu
ateliê e aproveita o ensejo para dar recomendações à sua clientela em potencial. Figura 4 - Anúncio
da Nova Photographia
Francisco Manoel da Veiga foi bastante ativo no exercício do seu ofício, o que é (Fotógrafo Francisco
demonstrado pelos seus comunicados de chegada e de retirada das cidades, bem Manoel da Veiga). Fon-
como pelos anúncios publicados na imprensa mineira. A ele coube, por exemplo, a te: O Jequitinhonha.
Diamantina, ano VIII,
introdução do Sistema Crozat em Minas Gerais, que foi um dos principais produtos n. 14, 15 nov. 1868, p.
do seu ateliê.28 A pesquisa deixou evidente que ele era um fotógrafo consciente do 4. Biblioteca Antônio
valor da imprensa para a divulgação do seu negócio [Figura 4]. Torres (Iphan). Acervo
de jornais.
A imprensa lhe possibilitava um canal de interlocução
importante com sua clientela, e é neste sentido que
o comunicado publicado em fevereiro de 1871 pode
ser interpretado. Nesse comunicado, ele informa
que conseguiu uma casa adequada para a instalação
do seu ateliê, a qual permitia a instalação de uma
claraboia. Em um dos trechos ele afirma, ao se
referir à casa: “Hoje felizmente que a encontrei
posso anunciar ao respeitável público d’esta cidade,
que meus trabalhos d’ora avante, serão o duplo em
perfeição e fineza, e não terão inveja, d’esses bons
trabalhos que sahem das primeiras officinas da
corte.”29 Dar garantia de que seus trabalhos eram de
qualidade e que poderiam ser comparados com as
fotografias produzidas nos centros desenvolvidos
era uma das principais preocupações dos fotógrafos
itinerantes. Era necessário fazer tal afirmação, pois as
condições de trabalho não eram as mais adequadas,
e a precariedade de condições não poderia ser associada à falta de qualidade artística
das imagens. A menção à claraboia demonstra que a luminosidade dos edifícios da
cidade era um empecilho com o qual ele vinha se debatendo, desde 1868, quando
inicia suas temporadas em Diamantina. Agora, ele encontrava uma casa que seria
mais adequada ao modo preconizado pela literatura de referência. É provável que
os ateliês envidraçados, como sugeriram os tratados, não tivessem funcionado na
cidade, mas eles foram as referências com os quais os fotógrafos lidaram.

Sobre o novo espaço, o fotógrafo infelizmente não dá maiores informações, mas


aproveitou o comunicado para passar algumas instruções ao público da cidade.

28  Para detalhes sobre o Sistema Crozat, cf. CACCIALANZA, Roberto. Leandro Crozat. Sistema Crozat. Argentina,
Brasil, Chile, Egypt, España, France, Italia, Perú, United Kingdon, Uruguay, 2015.
29  O Jequitinhonha. Diamantina, ano X, n. 68, 19 fev. 1871, p. 4. Biblioteca Antônio Torres (Iphan). Acervo de jornais.

281
Quanto ao tipo de roupa, ele escreve: “Todas as pessoas, que d’ora em diante me
quizerem honrar com sua confiança, deverão vir trajadas de roupas pretas que são
as que melhor se prestão, isto tanto em homens, como em Sr.as ou crianças.”30 Ele
acrescenta que as roupas de lã parda ou cinzenta também eram adequadas, tendo
como objetivo alcançar maior beleza nos retratos. Outro aspecto da mise-en-scène diz
respeito aos penteados:
Também é uzo e costume que geralmente têm todas as pessoas, que se vêm retratar, de
porem oleo ou pomada nos cabellos, é um completo erro e isto só é a origem de um pessimo
resultado na photographia, tornando os cabellos brancos pela acção da luz; por cauza do
grande lustro que forma o estado gorduroso, dando-lhes o aspecto de velho como dizem
muitos, queixando-se — por assim dizer — que é defeito da maquina ou do artista!...31

Para solucionar o problema ele recomenda que as pessoas, antes de ingressarem no


ateliê, lavassem os cabelos com água e sabão, para tirar o excesso de brilho ocasionado
pelos óleos, principalmente as senhoras, com as quais ele insiste para que não
comparecessem com os cabelos empastados ou oleosos. Segundo o fotógrafo, seria
adequado que as senhoras se apresentassem com penteados bonitos, com os cabelos
meio soltos, principalmente em se tratando do sistema colorido (Sistema Crozat).
Apesar de o fotógrafo ter encontrado uma casa adequada para seu ateliê, ele informa
que como não auferia grandes lucros com sua arte não poderia instalar uma “toillete”
em sua casa para que os clientes se penteassem. A ressalva demonstra que o espaço das
instalações era reduzido, não se prestando a muitas subdivisões, como indicado nos
tratados. Um dado importante é que os fotógrafos itinerantes utilizavam os espaços
por períodos determinados, tornando-se assim difícil a estruturação adequada de um
espaço, na medida em que seria utilizado por pouco tempo. Era comum os fotógrafos
chegarem nas cidades e anunciarem que ficariam por pouco tempo. Assim foi feito
pelos irmãos Passig, que, ao ingressarem em Campanha, alertaram no anúncio:
“Previne-se ao respeitavel publico que a demora nesta cidade será pequena, por
circunstancias especiaes.”32 Manoel da Veiga finaliza seu comunicado dizendo que
contava com a “benevolência do público” para obter o resultado que ele tinha em
mente.

Em seu comunicado Francisco Manoel da Veiga tocou nos principais desafios


enfrentados pelos fotógrafos: o espaço de trabalho adequado e o modo como as pessoas
deveriam se apresentar ao fotógrafo. Quanto a este último aspecto ele consolidou
em seu comunicado as orientações que eram dadas àqueles que inicialmente se
apresentavam no ateliê e que provavelmente voltavam em outra ocasião trajados e
penteados de modo mais adequado. As instruções sobre o modo de se vestir e de se
pentear visavam preparar o cliente para a melhor pose, o ponto alto da mise-en-scène
fotográfica oitocentista.33
30 Idem.
31 Idem.
32  Colombo. Campanha, n. 344, 2 ago. 1882, p. 4. Arquivo Público Mineiro (APM). Coleção de jornais mineiros do
século XIX.
33  Cf. MAUAD, Ana Maria. Imagem e auto-imagem do Segundo Reinado. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.).
História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 181-231. (História da Vida Privada, 2)

282
A defesa de José Gallotti
Esse fotógrafo era italiano e visitou Diamantina em 1888 e 1889. Seu ateliê estava
intitulado “Photographia Artística Italo-Brasiliana”. Ele esteve em outras cidades
mineiras próximas a Diamantina, como Serro, Gouveia, Rio Preto, mas também
em Cataguazes, Ouro Preto e Bonfim. Seus anúncios sugerem que ele se dedicava
à itinerância interprovincial, pois em seus comunicados de retirada ele informava
partida para a corte. Sua atuação em Minas foi bastante intensa, comprovada pela
existência de fotografias de sua autoria no acervo do Arquivo Público Mineiro
(APM). Como era de praxe entre os fotógrafos itinerantes, José Gallotti publicou os
devidos comunicados na imprensa da cidade: antes de chegar, fez anunciar sua ida
futura; ao chegar, comunicou sua presença na cidade; ao se instalar, deu ciência do
ocorrido; antes de se retirar, fez o devido alerta sobre sua partida. Em sua estadia em
Diamantina, entre novembro de 1888 e junho de 1889, destacam-se sua participação
na Exposição Municipal e a realização de fotografias das vencedoras de concurso de
beleza realizado na cidade. Ainda durante sua estadia ele protagonizou uma situação
rara na imprensa da época: a qualidade estética de seu trabalho foi discutida devido
às possíveis reclamações de que suas fotografias eram muito escuras. Isso levou o
fotógrafo a reconstruir seu ateliê e a reduzir o preço de suas fotografias.

O breve debate foi divulgado pelo jornal Sete de Setembro. O exemplar traz dois textos.
Um trata das reclamações dos clientes, sem conter assinatura; o outro é um anúncio
do ateliê e traz a assinatura do fotógrafo. No primeiro texto se afirmou: “Ultimamente
muitas pessoas que procuraram o seu atelier para photographarem-se, tem feito
uma apreciação diversa da verdadeira arte e esthetica dos seus productos artísticos
a respeito das photographias claras e escuras.”34 Para confrontar esta opinião, foi
mencionado que a adoção do sombreado era feita sem divergência de opiniões pelos
“profissionaes da bella arte,” pois proporciona elegância e beleza. No Sete de Setembro
era acrescentado, ainda:
Os profissionaes autores da bella arte em todos os seus productos chimicos, tem adoptado
sem menor divergência de opiniões, como relevo da verdadeira elegancia e belleza dos
paineis, o sombreado nos seus trabalhos photographicos, que dá uma vista agradavel e
concentra os raios da luz com uma distribuição geral nos paineis que adoptam o systema
graphico.35

Como forma de argumentação foi feita referência aos “afamados TABLEAUX de


Rembrandt” que possuíam perfeição, nitidez e elegância artística. No que tange aos
manuais de fotografia, foram citados os trabalhos de Robinson e Liébert que, “com
conhecimentos technicos e principios philosophicos[,] discutem as photographias
claras e escuras, e sem a menor hesitação são os amadores dos paineis sombreados.”36

O belga Alphonse Liébert (1827-1914) era um fotógrafo e empresário no ramo


fotográfico conhecido por seus trabalhos fotográficos e suas publicações. Ele passou
34 Sete de Setembro. Diamantina, ano III, n. 42, 14 abr. 1889, p. 4. Biblioteca Antônio Torres (Iphan). Acervo de jor-
nais.
35 Idem.
36 Idem.

283
uma temporada nos Estados Unidos, mas sua principal e mais longa atuação foi em
Paris. Acredito que o seu tratado La photographie en Amérique seja a obra citada na
defesa do trabalho de Gallotti. Este texto, já citado acima, proporcionou aos fotógrafos
bastante segurança, pois era um manual bem amplo que abordava vários aspectos do
ofício da fotografia, com a vantagem de trazer ilustrações bastante esclarecedoras.
Assim, ao citar Liébert, procurava-se demonstrar que Gallotti estava embasado em
uma das principais referências no campo da fotografia.

Ao citar Robinson, o texto do jornal está se referindo a Henry Peach Robinson (1830-
1901), pintor, fotógrafo e teórico da arte inglês. Em 1869, ele publicou, em Londres,
seu livro Pictorial Effect in photography: being hints on composition and chiaroscuro
for photographers.37 Como o próprio título sinaliza, o autor está centrado na discussão
sobre o efeito pictórico na fotografia. No século XIX, Robinson se tornou uma
das principais referências na discussão sobre o caráter artístico da fotografia. Ele
discute aspectos formais da composição da imagem, interessando-lhe a linguagem
fotográfica no que ela pode assimilar da pintura, de modo que as fotografias
estivessem em conformidade com padrões acadêmicos pictóricos.38 Para produzir
uma cena, Robinson usou a combinação composta (combinação de vários negativos)
como um dos principais métodos
fotográficos, fazendo grande sucesso
nas exposições. Ao chiaroscuro,
mencionado no artigo do Sete de
Setembro, o autor dedica sete dos
41 capítulos de seu livro. Discute-
se tanto a paisagem como o retrato,
ilustrando com desenhos, esquemas
e algumas fotografias.

A menção aos dois teóricos-


fotógrafos era uma maneira de
legitimar o trabalho de Gallotti,
Figura 5 - Photogra- comprovando que ele estava atualizado com as discussões sobre o caráter artístico da
phies demi-brillantes
fotografia. Cita-se, inclusive, que no manual de Liébert encontram-se 14 painéis que
au charbon, tirées à
2.500 exemplaires, dans ilustram os trabalhos sombreados. Na edição com a qual trabalho não há esse número
les ateliers et d’après de “painéis”; todavia, há exemplos do tipo de referência com a qual trabalhava Gallotti.
des clichés de M A.
A ilustração fornecia ao fotógrafo um parâmetro visual a ser buscado. Cada conjunto
Liébert, especimens
d’éclairages. Fonte: LI- de imagens é acompanhado de um texto explicativo e do esquema a ser montado no
ÉBERT, A. La photo- estúdio para a obtenção do resultado. [Figura 5 e Figura 6].
graphie en Amérique.
Traité complet de pho- No segundo texto sobre o assunto, publicado no Sete de Setembro, que é o anúncio do
tographie pratique.
ateliê com a assinatura de José Gallotti, este afirma que,
Paris: s.n., 1878. Dispo-
nível em: http://gallica.
bnf.fr/ark:/12148/bp- 37 Foram publicadas quatro edições em versões inglesa e americana, tendo sido traduzido para o francês e o alemão. O
autor ainda publicou nove livros e cento e cinquenta artigos sobre fotografia em jornais ingleses e americanos. COLE-
t6k6383828w
MAN, David Lawrence. Pleasant fictions: Henry Peach Robison’s composition photography (Tese de doutorado em
Filosofia). Faculty of the Graduate School of the University of Texas at Austin (Michael J. Charlesworth, Supervisor),
Austin, Texas, dez. 2005.
38 Idem.

284
Figura 6 - Disposition
général de l’atelier, des
rideaux, des écrans et
des réflecteurs, des fonds
et de la chambre noire
pour l’éclairage des por-
traits. Nos 4, 5, 6. Fonte:
LIÉBERT, A. La pho-
tographie en Améri-
que. Traité complet de
photographie pratique.
Paris: s.n., 1878. Dispo-
nível em: http://gallica.
bnf.fr/ark:/12148/bp-
t6k6383828w

[...] em vista de algum RECLAME pelos retratos sahidos do meu atelier um pouco
sombreados, e parecendo à alguem a verdadeira arte defeito, resolvi reconstruir o atelier,
podendo garantir de hoje em diante estar habilitado a satisfazer essa exigência fazendo
assim retratos muito clarinhos e sem sombra, não deixando porem de fazer retratos
artisticamente sombreados para os apreciadores das bellas artes.39

Na perspectiva de Gallotti, aqueles que questionaram seu trabalho demonstravam


não estar em dia com os padrões estéticos da época, pois um verdadeiro apreciador
das belas-artes saberia admirar os retratos sombreados, que eram verdadeiramente
artísticos. O fotógrafo previne aos possíveis arrependidos que encomendassem
fotografias clarinhas que “Sendo estes retratos feitos a pedido não admitte-se
reclamação uma vez que o retrato estiver bem parecido com o modelo.”40

Ou seja, o recurso ao sombreamento era uma técnica fotográfica que permitia escapar
do registro puramente documental/descritivo e óbvio, tornando-se um recurso para
conferir valor artístico ao trabalho. Esta polêmica em torno do tipo de imagem
produzida pelo fotógrafo não era comum na imprensa do período. No geral, as
apreciações sobre os trabalhos dos fotógrafos e os próprios anúncios enfatizavam
que eles exibiam perfeição e nitidez. Neste sentido, esta controvérsia em Diamantina
se reveste de grande importância. Tratava-se de um debate em torno da linguagem
fotográfica e sua íntima relação com a pintura, de modo a conferir-lhe um estatuto
de arte.

Conclusão
As manifestações desses dois fotógrafos apresentam desafios profissionais que
rondaram o cotidiano não somente dos itinerantes, mas de todos os fotógrafos:

39 Sete de Setembro. Diamantina, ano III, n. 42, 14 abr. 1889, p. 4. Biblioteca Antônio Torres (Iphan). Acervo de
jornais.
40 Idem.

285
demonstra que eles tiveram que adaptar seus ateliês às condições reais dos locais em
que trabalhavam; que ensinaram aos clientes como deveriam se apresentar para a mise-
en-scène no estúdio; e, além disso, que desenvolveram estratégias para demonstrar à
sua clientela o que poderia tornar a fotografia artística.

O ateliê do fotógrafo no século XIX – aquele bem estruturado, em conformidade


com os tratados, ou aquele adaptado conforme a disponibilidade de equipamentos e
espaço físico – foi um espaço de produção de identidades, um local cuja frequentação
proporcionava a sensação de participação no processo de modernização do país. Os
fotógrafos viajaram por Minas Gerais oferecendo, de certo modo, oportunidades a seus
clientes de partilharem das conquistas da modernidade, e de possuírem fotografias
que foram trocadas entre familiares, amigos e enamorados, encartadas nos álbuns da
família, enviadas para lugares distantes de onde muitos tinham partido e sonhavam
com o retorno.

Os ateliês como palácios de vidro ou como casas modestas iluminadas com claraboias
fazem parte de um passado, um tempo em que o ofício da fotografia exigiu de
fotógrafos e clientes um comportamento que foi sendo deixado de lado à medida que
avançava a industrialização e a universalização da prática da fotografia. Na cultura
fotográfica do século XIX, a visita ao ateliê do fotógrafo proporcionou a produção
de fotografias que expressam os valores sociais, as visões de mundo, a idealização
das identidades, imagens inscritas numa teia que, de algum modo, nos conecta com
expectativas dos sujeitos do nosso passado.

286
O espaço do criador em um
espaço de criação: a imprensa
ilustrada oitocentista e o
artista na América Latina

Rosangela de Jesus Silva 1


Pela mesma razão, nada direi acerca da Francesca de Rimini de Aurelio de Figueiredo e
de todos os quadros que ornam o seu atelier e mostram quanto esse joven artista se dedica
de corpo e alma á pintura.

Senti-me satisfeito entretanto de achar-me n’um atelier, rodeado de trabalhos de arte,


retratos, paysagens, quadros de genero, historicos, e outros objectos artísticos. (Revista
Illustrada,1884, ano IX, n. 374, p.6 , Bellas Artes)
[...] o Sr. De Wilde construio ultimamente um salão para exposição de quadros e um atelier
com todas as condições necessarias e luz apropriada, para se poder vêr convenientemente
os trabalhos artisticos que lá estiverem expostos. (Revista Illustrada,1885, ano X,
n.400, p.7, Exposição pernamente)
Rodolpho Bernardelli procurou um meio propicio para desenvolver as suas possantes
faculdades, dirigindo-se a Roma e passando ahi meia duzia de annos, na frequencia dos
grandes artistas e nos trabalhos de atelie. (Revista Illustrada, 1885, ano X, n.420, p.2,
Rodolpho Bernardelli)
Ha mezes, quando eu fui pela primeira vez ao seu atelier na esperança de ver apenas
a Fundação da cidade do Rio de Janeiro, fui agradavelmente surprezo por uma galeria
completa. É que para limpar os pinceis, depois do trabalho, elle suja adoravelmente uma

1 Professora adjunta no Instituto Latino-americano de Arte, Cultura e História - ILACCH da Universidade Federal da
Integração Latino-americana - UNILA (Foz do Iguaçu, Paraná, Brasil)

287
tela d’alguna paisagem que lhe trota no cerebro... Anda sempre apressado. Outro dia eram
tres horas da tarde elle voava para S. Domingos, onde foi esconder o seu atelier. (Revista
Illustrada,1888, ano XIII, n. 504, p. 2. Firmino Monteiro)

Nas citações acima publicadas na Revista Illustrada, a qual teve sua sede no Rio de
Janeiro entre 1876 e 1898, observamos algumas ideias acerca do ateliê do artista. Este
é apresentado como local de trabalho e aprendizagem do artista, onde seus esforços
se evidenciam; também como um lugar que reúne referencial e objetos artísticos,
além da indicação das condições necessárias para o bom funcionamento deste espaço
como a iluminação adequada. Os trechos acima são apenas um exemplo de como este
tema esteve presente na imprensa oitocentista. Há ainda uma quantidade considerável
de imagens que permitem avançarmos em algumas direções a fim de discutirmos
representações acerca do lugar de criação e do próprio artista naquele momento.

O interesse pelo trabalho do artista foi uma constante em várias publicações do


período, especialmente naquelas ilustradas, objeto deste trabalho e, onde a imagem
ocupava espaço considerável. A produção destas foi por muito tempo privilégio de
artistas, logo vários desenhistas que trabalhavam neste tipo de publicação vinham
de uma formação nas belas artes. No entanto, a imprensa apresenta particularidades,
desde escolhas formais expressas na diagramação das páginas, passando pela seleção
de conteúdos e maneiras de difundir informações. Assim, com textos e imagens
constroem exemplos e contraexemplos, os quais sugerem objetivos pedagógicos de
formação de públicos leitores.

Embora se fale de uma “imprensa ilustrada” no singular, este é um conceito amplo


e complexo, sobre o qual vários pesquisadores já se debruçaram. Só para ficar na
América Latina, o trabalho de Sandra Szir na Argentina e o de Rafael Cardoso no
Brasil, apontam a complexidade e dificuldades de definição, ao mesmo tempo em
que chamam a atenção para como essas revistas ocuparam um espaço importante
de formação e informação visual no período. Para este trabalho buscou-se exemplos
em publicações da segunda metade do século XIX, onde a técnica litográfica foi o
principal meio de produção das imagens. Outro critério da escolha está no papel
do ilustrador, apresentado como protagonista das publicações. Logo, este texto dará
ênfase, aos momentos em que as revistas fizerem referência, direta ou indiretamente,
ao tema do ateliê e ao trabalho do artista.

Entre as revistas escolhidas no Brasil estão Revista Ilustrada2 (1876-1898) e O


Besouro3 (1878-1879); e na Argentina: El Mosquito (1863-1893) e Don Quijote (1883-
1903). Cada um desses periódicos apresenta características peculiares, desde suas
orientações ideológicas – todas assumiram posicionamentos políticos críticos -, até
a diagramação e ilustração de suas páginas. Nas apresentações dos programas das
revistas, publicados em seus primeiros números, o “compromisso com a verdade”,

2  A coleção completa da Revista Illustrada pode ser consultada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do
Rio de Janeiro no seguinte endereço: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=332747&pasta=ano%20
188&pesq=
3  A coleção completa d’O Besouro pode ser consultada na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional do Rio de Ja-
neiro no seguinte endereço: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=749915&pasta=ano%20187&pesq=

288
a vigilância e alerta da população para os “desmandos” da política são alguns dos
aspectos em maior destaque. A Revista Illustrada afirmava “Falar a verdade, sempre
a verdade, ainda que por isso me caia algum dente” (N.1, Jan, 1876); O Besouro em
versos afirma que tem “uma legião de inimigos: os vícios e uma só arma: a gargalhada;”
El Mosquito denominado “Periódico satírico Burlesco con caricatura,” se apresenta
como um inseto que vai se “colare donde pueda” e afirma que “clavaré mi lanceta
en la nación o en la província.” (N.1, 24/maio/1863). Por sua vez Don Quijote tinha
lemas como “Ese periódio se compra pero no se vende” ou, ainda, “Vengan cien mil
suscriciones y fuera las subvenciones.”

Observamos que todos se apresentavam com propósitos de serviço à sociedade


através de um posicionamento crítico diante das instituições de poder governamental,
portanto seu foco principal não estava nas artes e na cultura, embora as revistas
brasileiras citadas tiveram, com alguma regularidade, colunas dedicadas às belas
artes, ao teatro e a música. Teria então um papel para os artistas nestas publicações?
A resposta é sim, uma prova está justamente no espaço e destaque oferecido aos
ilustradores das revistas e que serão apresentados ao longo deste trabalho.

María Isabel Baldasarre, em artigo no qual analisa a construção da imagem do artista


profissional na imprensa ilustrada através da fotografia, chama atenção para como
esta foi uma plataforma importante para dar visibilidade ao artista e seu trabalho.
A autora afirma que “A esto contribuyeron los atributos (caballetes, pinceles, paleta,
cuadros, modelo) y también las características del escenario (taller, exposición, etc)...
la pose del retratado [...].”4. Defendemos aqui que mesmo antes do uso da fotografia e
para além de espaços como “galerias” de personagens ilustres onde apareciam retratos
dos artistas, ou de publicações mais especializadas5 que traziam notícias e imagens de
exposições e obras, houve atenção ao trabalho do artista e a utilização de estratégias
para valorização do mesmo. O espaço de construção da imagem do artista começa
na valorização do próprio ilustrador das revistas ilustradas, o qual em diversos
momentos foi representado acompanhado de seu instrumento de trabalho, tanto o
lápis litográfico quanto a palheta e o pincel, bem como no seu ateliê. Temos que
considerar o fato das revistas terem metade de suas páginas cobertas com imagens, as
quais eram criadas por artistas, pois a maior parte destes, sobretudo em meados do
século XIX, vinha de uma formação nas ou próxima das belas artes. Mesmo quando o
humor e a crítica política ocupavam o primeiro plano, o uso das metáforas artísticas,
parecem indicar além da familiaridade dos desenhistas com este universo, também a
valorização tanto do artista quanto do espaço das artes.

Os estudos acerca do ateliê do artista contribuem para muitas reflexões. Segundo Maria
Lúcia Bueno, “O Ateliê é um lugar estratégico para trabalharmos as transformações

4  BALDASARRE, María Isabel. La imagen del artista. La construcción del artista professional a través de la prensa
ilustrada. In: MALOSETTI COSTA, Laura; GENÉ, Marcela (compiladoras). Impresiones porteñas: Imagen y palabra
en la historia cultural de Buenos Aires. Buenos Aires: Edhasa, 2009. p 48
5  Há trabalhos como o de ALONSO CABEZAS, María Victoria. La imagen del artista en la prensa periódica del siglo
XIX: El Artista y Semanario Pintoresco Español. Boletín de Arte, n.º 35, Departamento de Historia del Arte, Universi-
dad de Málaga, 2014, pp. 101-11, onde a pesquisadora discute as representações do artista em periódicos especializados.

289
Janeiro.
da condição de artista.”6 Olhando para o grupo de imagens presentes nas revistas
ilustradas, diríamos que mostra a condição de trabalho do artista. Marisa Florido
Cesar escreve que ao entrar no ateliê “espera-se penetrar o espaço sagrado da criação
artística, testemunhar o momento intrigante da epifania da obra, flagrar o artista
em sua secreta intimidade.”7 Os caricaturistas deliberadamente nos apresentam seus
espaços de trabalho. Florido afirma ainda que o ateliê é “um intervalo e um trânsito
entre o sagrado e o mundo, o íntimo e o público, o centro e a periferia. O ateliê é
uma moldura habitável.”8 Na representação deste na imprensa ilustrada nos parece
que é construída uma janela que convida ao leitor para se aproximar, observar e
compartilhar da importância não apenas da “moldura habitável,” mas, sobretudo de
quem a habita.

Na seleção aqui proposta pretendemos discutir como a construção de discursos acerca


do local de trabalho do artista e do próprio artista foi enfocada a partir de distintos
pontos de vista. Para isso discutiremos alguns grupos de imagens que ajudam a
Figura 1 - Angelo Agos- entender alguns percursos comuns estabelecidos pelas publicações, embora tratem
tini (1843-1910), Re- de contextos e situações distintas. Nosso interesse se dará na forma de utilização e
vista Illustrada, n. 212,
19/06/1880, p. 1, Rio de construção da imagem do artista e do seu espaço de criação, chamando a atenção
de que estas publicações devem ser entendidas como espaços
ativos de criação e configuração de discursos e visualidades.

O trabalho do artista no ateliê


De acordo com Tereza Azevedo, por muitas vezes o ateliê “é
evocado como o substituto físico da mente do artista, cujo
acesso é uma oportunidade privilegiada de contatar, em
primeira mão, com as suas intenções, inspirações e processo
de trabalho.”9 A autora trabalhará no seu texto uma visão
mais ampliada do ateliê e afirma que esta é uma imagem
romantizada e mítica do mesmo, embora acredite que ainda
hoje essa visão possa se manter. Não vamos aqui entrar no
mérito desta discussão, mas propor outra questão. Admitindo
que o ateliê nos permitisse esta porta de entrada no universo
do artista, como entrar por esta mesma porta, quando o acesso
a este espaço criativo se dá por meio de uma representação
do mesmo, criada pelo próprio artista, nas páginas de um
periódico?

A capa do número 212 da Revista Illustrada de 1880 [Figura


1] apresenta para o leitor o ilustrador da revista mergulhado
na sua atividade criativa. A cena está concentrada neste
personagem que ajoelhado em um banco está debruçado
6  BUENO, Maria Lúcia. As transformações da condição de artista plástico na modernidade. Uma perspectiva de aná-
lise a partir do espaço do ateliê do Artista. Proj. História. São Paulo (24), jun, 2002. p.225..
7  FLORIDO, Marisa. O Ateliê do Artista. Arte e Ensaio (UFRJ). Rio de Janeiro, vol. 1, p.16-29, 2002. p.17.
8  FLORIDO, op cit. p.18.
9  AZEVEDO, Teresa. Entre a criação e a exposição: o museu como ateliê do artista. Breve introdução ao tema. Midas,
3, mai, 2014. P.2. Disponível em: http://midas.revues.org/ Acesso em 22/05/15.
290
sobre a enorme pedra litográfica, desenhando com o lápis gorduroso. Não temos
muitas informações espaciais acerca do lugar, mas percebemos uma mesa que apoia
a pedra, a qual tem ao seu lado uma pasta com esboços, provavelmente de modelos
ou desenhos anteriores. Ao redor dessa mesa estão vários pequenos repórteres
com diversos objetos que auxiliam o trabalho do artista. Vemos desde vários lápis
litográficos, até um menino que segura algo que lembra uma fotografia enquanto
outro lê uma serie de informações que serão transformadas em imagens. O cartaz que
está sendo pendurado ao fundo por outros pequenos repórteres avisa aos leitores de
que tão logo o desenhista consiga finalizar o laborioso desenho, cheio de minúcias da
festa em comemoração ao 3º centenário de Camões no Rio de Janeiro, os assinantes
da revista o receberiam.

Tanto as informações visuais quanto aquelas escritas enfatizam as minúcias e


preciosismo do fazer artístico, que se mostra através de um trabalho cuidadoso e
paciente evidenciado na postura assumida pelo corpo do desenhista. Para executar
com perfeição sua atividade este recorre a informações escritas e visuais, além de
Figura 2 - Pereira Net-
demonstrar persistência. Há aí um discurso acerca da complexidade, abrangência to (18?-1907), Revista
e dificuldades do trabalho do artista, ao mesmo tempo em que são valorizadas Illustrada, n. 518,
13/10/1888, p. 5, Rio
características pessoais do mesmo.
de Janeiro.
Tal estratégia voltaria a ser utilizada pelo periódico em
1888, em um número quase inteiramente dedicado ao
proprietário e ilustrador da revista, por ocasião de sua
partida para a Europa. A capa do número 518 oferece
ao leitor um retrato de Angelo Agostini (1842/3-1910),
assinado por Pereira Netto (18?-1907)10 que seria seu
substituto no periódico. Agostini está representado em
três quartos, com chapéu e segurando um cigarro na mão
direita. Na sua frente, apoiada sobre flores e um lápis
litográfico há uma encadernação da Revista Illustrada,
aberta justamente nas páginas que contém ilustrações. Nas
páginas centrais da revista em oito quadros, uma sequência
de imagens narram cenas que contam desde o peso que a
ausência de Agostini deixaria aos que ficaram responsáveis
pela revista, passando pela atuação deste ao longo dos 25
anos na imprensa ilustrada, até o dia festivo de seu futuro
regresso, que não ocorreu. Há neste grupo de imagens, duas
que merecem nossa atenção porque se voltam justamente
para a atuação do artista [Figura 2]. Uma delas representa
Agostini desenhando sobre a pedra litográfica de maneira
muito parecida a primeira imagem, porém, aqui aparece

10  O desenhista assumiu a ilustração da revista em 1888 e aí permaneceu até o encerramento da mesma. De acordo
com Luciano Magno, Antônio Bernardes Pereira Neto teria começado sua atuação na imprensa ilustrada no periódico
O Figaro em 1877, tendo colaborado em vários outros antes de chegar à Revista Ilustrada, onde teria publicado “algu-
mas de suas melhores obras, em especial entre os anos 1888 e 1893, quando foi decisivo para manter o periódico em
plena atividade.” MAGNO, Luciano. História da caricatura brasileira. Rio de Janeiro: Gala Edições, 2012. p. 354.

291
sozinho sentado com seu lápis litográfico na mão. Está em um espaço simples no
qual identificamos a mesa que apoia a pedra, um banquinho onde está sentado e no
chão há cinco encadernações com nomes dos periódicos pelos quais o desenhista
passou antes da Revista Illustrada. A composição enfatiza o artista no processo de
criação, ou seja, sua mente, suas mãos e os instrumentos de trabalho. A outra imagem
Figura 3 - Revista
Illustrada, n. 688, ju-
mostra o desenhista realizando uma atividade recomendada a todo artista que
nho de 1895, p. 3, Rio buscava formação e almejasse reconhecimento: ver o exemplo dos “grandes mestres”
de Janeiro da arte. Logo, visitar exposições e tomar notas para suas futuras criações era requisito
esperado dos artistas no século XIX, sobretudo em suas
viagens a Europa, já que na América Latina as possibilidades
eram escassas. Enquanto a imagem mostra Agostini, com
um caderno tomando notas, ao lado de uma escultura e
observando atentamente uma parede cheia de telas, a legenda
afirma que “Angelo parte para a Europa, afim de retemperar
as suas forças e extasiar-se na contemplação dos grandes
mestres.” Nessas duas imagens a revista não apenas afirma
a importância das criações de Angelo Agostini obtidas com
dedicação ao longo de muitos anos, mas também aponta para
um futuro ainda mais brilhante e atualizado, regado pelas
referências e citações dos melhores artistas na Europa.11

Em 1895, a Revista Illustrada novamente apresenta seu


desenhista, com nome e sobrenome, e o localiza dentro de
seu ateliê [Figura 3]. A imagem lembra uma fotografia, onde
as informações
acerca do espaço
são reduzidas pela
própria escolha do ângulo, a qual privilegia
o artista. Percebemos a boa iluminação pela
enorme janela, a pedra litográfica sobre a
mesa, algumas tintas, o espaldar da cadeira
na qual Pereira Netto está sentado, além
de uma prateleira ao fundo cujos objetos
não estão nítidos. É um espaço simples,
pequeno, cuja ênfase, novamente, recai sobre
o processo criativo.
Figura 4 - Rafael Bor- N’O Besouro [Figura 4], embora não haja
dalo Pinheiro (1846-
uma imagem do local de trabalho do
1905), O Besouro,
02/03/1878, Rio de ilustrador da revista, já no primeiro número,
Janeiro o próprio Bordalo Pinheiro (1846-1905),
11  Na comunicação denominada “Imagens entre o Brasil e a Argentina: Citações e apropriações da tradição artística na
imprensa ilustrada oitocentista,” apresentada no II Workshop Argetnino-Brasileño de História Comparada, promovido
pelo GEHBP da Universidad de Buenos Aires em 2013, discuto a importância das referências artísticas utilizadas
pelos caricaturistas nas revistas ilustradas. Localizei vários exemplos de citações diretas de obras de arte que são
livremente adaptadas pelos desenhistas. Independente de trazerem ou não referência ao autor da obra, os caricaturistas
demonstram um claro diálogo com a história da arte evocada a partir da iconografia artística utilizada.

292
ilustrador e proprietário da revista,
aparece segurando uma faixa onde
apresenta as condições de assinatura do
periódico. Em outra página o desenhista
- agora não mais um autorretrato de
Bordalo - aparece no centro de uma das
composições, em pé sobre um besouro
e segurando orgulhosamente o lápis
litográfico. Na página de apresentação
dos nomes dos colaboradores, Bordalo
aparece novamente equilibrando-
se sobre o lápis litográfico no canto
esquerdo da página. A imagem do
ilustrador da revista é insistentemente
apresentada como afirmação da
importância deste na publicação, bem
como o lápis litográfico, que chama a
Figura 5 - El Mosqui-
atenção para a ilustração. to, N.193, 27/01/1867,
p. 3, Buenos Aires.
El Mosquito também apresentou seu desenhista no seu espaço de criação, mas em uma
situação adversa [Figura 5]. Embora o personagem se encontre confortavelmente
sentado na frente de sua mesa, tanto sua pena quanto o seu lápis litográfico estão
amordaçados. Na composição do espaço, observamos algumas prateleiras com livros,
alguns desenhos colados na parede, uma cesta de lixo com muito papel, prováveis
esboços descartados. Aos pés da
cadeira na qual o desenhista/escritor
está sentado, há uma pasta, parecida
com a que aparece no desenho da
Revista Illustrada. Masnesta não há
pistas sobre o seu conteúdo, aparece
o nome do periódico e é possível
que contenha desenhos feitos para a
publicação. O tom da imagem é de
crítica: na legenda aparece o temor da
revista com relação ao governo e, além
disso, há dois personagens que entram
através da porta para olhar o que está
ocorrendo. Estes apresentam um ar de
satisfação ao ver que o lápis e a pena
estão amordaçados. No entanto, sobre a
mesa, o leitor pode identificar a coluna
“Picotones,” totalmente escrita. Esta
era a coluna mais crítica do periódico, Figura 6 - El Mosqui-
to, n. 372, Ano VIII,
onde as polêmicas e “ferroadas” da 06/03/1870, p. 14,
revista eram publicadas. Buenos Aires.

293
A importância do desenhista e do trabalho deste foi inúmeras vezes destacados em El
Mosquito. O cabeçalho da revista, o qual passou por diversas reformulações, apresentou
em alguns momentos o desenhista com lápis litográfico na mão produzindo ou ainda
pendurado no letreiro desenhando. O desenhista também ganhou espaço em uma
página inteira da revista, ao ser representado sentado, no canto superior esquerdo da
página, totalmente compenetrado e desenhando o “álbum do El Mosquito,” enquanto
no restante da página podemos ver várias de suas produções, folhas soltas com as
mais diversas cenas e movimentos [Figura 6].

A importância do fazer artístico, estivesse este vinculado ou não a um espaço físico,


é construído de forma a destacar o papel do ilustrador do periódico, inclusive,
em alguns momentos, o nome do desenhista vinha em destaque no cabeçalho dos
periódicos. Nas imagens onde aparece o espaço físico, a importância das referências
tanto visuais quanto textuais também é evidenciada, assim como as condições de
trabalho do artista. Há todo um cuidado na forma de apresentar este desenhista, bem
como o local onde ele aparece: primeiras páginas ou páginas inteiras. O desenhista
escolhe o quê, como e onde mostrar-se ao leitor, podendo ser, portanto mais assertivo
e efetivo na imagem que quer construir.

A fim de auto afirmar-se alguns desses artistas da imprensa não hesitaram em se


apresentar comparativamente com seus rivais, destacando sua habilidade na produção
de desenhos, apresentando-se de forma superior ao seu rival. Um exemplo é o de
Eduardo Sojo (1849-1908), desenhista e proprietário de Don Quijote, que representou
o personagem que dava nome ao periódico, com palheta e pincel nas mãos desenhando
com maior desenvoltura e, consequentemente, com melhor resultado do que Enrique
Stein (1843-1919), ilustrador do concorrente El Mosquito [Figura 7]. Embora a imagem
apareça no canto inferior direito da publicação, em meio a muitas outras imagens,
traz alguns elementos interessantes para pensarmos. Don quixote segura habilmente
um pincel, enquanto na outra mão, juntamente com a palheta segura outros pincéis
de várias espessuras. Estes lhe assegurariam maior qualidade na representação dos
detalhes necessários para exaltar as qualidades do produto oferecido. O desenhista
observa satisfeito o anúncio de chapéus no qual dá os últimos retoques. No centro
da imagem vemos seu companheiro Sancho Pancha, rindo e apontado para Stein
que, embora também segure uma palheta, a mesma está sobrecarregada de tinta
que escorre em direção ao chão. Para pintar tem uma vassoura na mão, a qual é
Figura 7 - Don qui-
jote, N. 35, Ano III,
17/04/1887, Buenos Ai-
res [detalhe].

294
empunhada sem qualquer habilidade. O resultado
é desastroso, pois depois de várias tentativas
nas quais os chapéus aparecem finos demais,
pequenos demais, amassados ou ainda borrados.
O próprio Stein não parece contente com o que
vê e tenta arrumar sem sucesso. Na construção
de sua imagem, Sojo emprega um discurso não
apenas acerca da habilidade que o artista possui,
mas também sobre o conhecimento que este deve
ter dos instrumentos e da utilização dos mesmos
para um bom resultado final. Ao representar-se
ao lado do concorrente realizando um mesmo
desenho, se afirma não apenas por seu “talento”,
mas pelo conhecimento técnico da profissão.

O modelo no ateliê do artista


O modelo e sua relação com o artista também
foram temas tratados nessas publicações. Para
analisar esta questão, foram selecionadas duas
imagens, uma d’O Besouro e outra do Don Quijote,
ambas construídas com humor e crítica, e nas
quais é possível identificar discussões acerca dos
desafios enfrentados pelo artista e do papel desde
no resultado final da obra.
Figura 8 - Rafael Bor-
Em 31 de agosto de 1878, O Besouro publicou seis quadros sob o título: “Manifesto dalo Pinheiro (1846-
político de Ferreiras Viannas (No ateliêr de um artista; Ego, pintor de retratos)”[Figura 1905, O Besouro,
31/08/1878, p. 173.
8]. As cenas mostram um artista diante da tela no cavalete, enfrentando a difícil missão Rio de Janeiro.
de retocar um retrato a cada vez que seu modelo decide por um novo rosto, mudado
pela utilização de uma máscara. Em todas as cenas aparece um amigo/mecenas do
pintor que observa tudo. O artista acaba chegando a tal ponto de desespero que no
último quadro lança a palheta e os pinceis ao solo, derruba sua caixa de tintas e começa
a arrancar os cabelos. As legendas vão informando os diversos rostos que o retratado
assume a cada dia e, estes fazem menção a políticos do período. O retratado também
é, provavelmente, o político, jornalista e posteriormente ministro do Império, o
Conselheiro Antônio Ferreira Viana (1832-1904), o qual, após concluir um mandato
de deputado estava se postulando a outro pelo Partido Conservador. O caricaturista
brinca com as diferentes faces que o político poderia assumir, transportando a
metáfora para o âmbito das artes plásticas. Na legenda da última cena, em um diálogo
entre o pintor e o amigo/mecenas, há uma síntese do ocorrido:
Artista Ego (furioso): Já não tenho cores na minha palheta para pintar a cara do
benemérito! Todos os dias me apparece de cor diferente; esgotei a palheta de Veronese e
a de Ticiano, o auctor da celebre batalha de Lepanto. Vae ficar-me um borrão a caro do
Benemerito à força de sobrepor cores disparatadas.

295
Mecenas (amigo): - Se soubesse lêr, saberias que o político é o homem-peixe; têm varias
cores conforme a luz mais ou menos doirada que se lhe aplica.

Se soubéssemos lêr, diríamos que este, que sabe lêr, tresleu.12

De acordo com o artista, nem uma das palhetas de cores mais completa da história da
arte como a de Ticiano e Veronese, conseguiriam dar conta de representar tal político.
Além disso, tantas adaptações na representação estavam criando combinações de
cores arbitrárias, ou seja, estragando o quadro já que o resultado contradizia todos os
preceitos da pintura. Essa referência ao plano artístico é uma metáfora para tratar do
plano político, pois a cada quadro apareciam referências políticas distintas, algumas
inclusive contraditórias. Um dos exemplos é a representação de José Maria da Silva
Paranhos, o Visconde do Rio Branco (1819-1880), o qual chefiou um gabinete
conservador no Segundo Reinado entre 1871-1875. Durante sua gestão ocorreu a
polêmica “Questão Religiosa,”13 a qual envolveu uma disputa entre a maçonaria e
setores da igreja católica. O governo imperial teve uma atuação incisiva na solução do
conflito, que acabou com a prisão de dois bispos envolvidos.

Enquanto na primeira cena o retratado coloca a máscara de Rio Branco, na seguinte


é a máscara de João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe (1815-1889), maçom,
membro do partido conservador e grande defensor do trabalho escravo, a solicitada.
Em outro quadro, o retratado coloca a máscara do periódico católico O Apóstolo (1866-
1901), importante plataforma da Igreja na defesa do ultramontanismo - ou seja, das
ordens de Roma, em clara contradição com o Padroado.14 O jornal, representado por
um padre obeso, esteve muito ativo na defesa dos bispos no período e, portanto, teria
enfrentado as determinações do governo. Ferreira Vianna defendeu com veemência,
como advogado, um dos bispos envolvidos - D. Antônio de Macedo Costa - quando
este foi julgado em 1874 e, mesmo tendo perdido esteve ao lado da causa religiosa. O
desfecho final da cena, com o retratado que aparece com o corpo metamorfoseado em
peixe, acompanhado pela legenda citada acima, completa a narrativa. O caricaturista
e, anti-clerical Bordalo Pinheiro, reúne seus conhecimentos artísticos e políticos para
fazer referência a essa tentativa de Ferreira Viana de conciliar distintas forças políticas
como a maçonaria e a Igreja.

Enquanto n’O Besouro o artista era desafiado por seu modelo mutante, no Don Quijote,
as qualidades transformadoras do artista é que foram destacas. Na cena, que ocupa
a parte superior das duas páginas centrais da revista, vemos uma modelo posando
para o pintor que trabalha em uma grande tela [Figura 9]. Até aí nenhuma novidade

12  O Besouro, 31/08/1878, p.173. Rio de Janeiro.


13  A “Questão Religiosa” no Brasil foi um episódio de enfrentamento entre representantes da Igreja, chamados ul-
tramontanos, e a Maçonaria. Foi o ponto culminante de um histórico conflitivo entre católicos ultramontanos, libe-
rais e o padroado. O episódio envolveu os bispos de Olinda e do Pará: Dom Vital (1844-1878) e Dom Macedo Cos-
ta(1830-1891), respectivamente, os quais atenderam ordens do Vaticano de não reconhecer irmandades compostas por
maçons e, se recusaram a voltar atrás em sua decisão conforme exigência do Império. Como, pelo padroado, o Impera-
dor tinha a última palavra, algo garantido pela constituição, os bispos foram condenados por desobediência civil e pre-
sos. Algum tempo depois foram anistiados, no entanto o episódio expôs tensões já existentes e que se intensificaram até
o final do Império. Ver: AZZI, Riolando. O Altar unido ao trono: Um projeto conservador. São Paulo: Paulinas, 1992.
14  A constituição de 1824 definia a união entre Estado e Igreja, sendo esta regulamentada pelo Estado. Também defi-
nia que qualquer ordem eclesiástica do Vaticano só poderia entrar em vigor no Brasil após o beneplácito do Imperador.

296
Figura 9 - Don Qui-
jote, n. 17, Ano IV, 11
de dezembro de 1887,
Buenos Aires.

para uma cena de ateliê, porém quando observamos cada um dos componentes vai se
explicitando a intenção satírica do desenhista. Não há na imagem nenhuma referência
acerca do espaço: a ênfase está na modelo, na tela e no pintor. A modelo aparece
vestida com trapos velhos, está descabelada, cabisbaixa, tem o corpo muito magro,
com aspecto doentio. Essas características são evidenciadas em seu rosto envelhecido
e marcado, nas mãos ossudas, no parco seio esquerdo aparente entre os farrapos do
vestido e nos pés descalços e deformados pela magreza. Para completar a triste cena,
a modelo segura um grande cilindro do qual pulam sapos e cobras. Já na tela o que
vemos representado em nada se assemelha ao modelo. Ali está uma mulher nua,
cujo corpo emana as belezas e saúde da juventude, representados na proporção das
formas, na delicadeza dos gestos, das mãos, dos pés e da pose. Os cabelos presos e o
rosto suavemente inclinado a esquerda ajudam a compor a figura de bela jovem. Esta
ainda segura em suas mãos, de maneira a cobrir seu sexo, uma cornucópia, símbolo
da riqueza, fertilidade e abundância, da qual saem moedas e pequenos papéis. Além
disso, a jovem aparece representada em meio a uma vegetação pitoresca, na qual
parece estar totalmente integrada. O pintor, que está dando suas últimas pinceladas, e
que ainda ostenta sua palheta, usa um chapéu que lembra uma coroa estilizada, assim
como um manto real. Trata-se do então presidente da República Argentina Miguel
Ángel Juaréz Celman (1844-1909), membro do Partido Nacional Autonomista e que
comandou o país entre 1886 e 1890. Don Quijote sempre se mostrou bastante hostil
às políticas de Celman, tendo este recebido inúmeras críticas e caricaturas na revista
desde o momento em que se postulou candidato até a conclusão de seu mandado.
Para completar a cena descrita a seguinte legenda: “Burlada triste y en ruinas asi la
has puesto á la PATRIA y el retrato que le hace Celemin, pintura falsa, á ella se parece
tanto, como un huevo á una castanha por mas que inspire Pacheco com su fluido.”

Wenceslau Pacheco (1838-1899), citado na legenda e que aparece na imagem lançando


raios sobre Celman, era naquele momento o ministro da Fazenda, cargo que já ocupava
na administração anterior de Julio Argentino Roca (1843-1914). Entre suas políticas
enquanto esteve a frente da pasta estiveram privatizações, empréstimos no exterior
e autorização para emissões de moeda em quantidades enormes. Enquanto crítico
do governo e de suas políticas econômicas, o desenhista do Don Quijote utilizou a
297
imagem da cornucópia, com vários títulos caindo da mesma, provavelmente, como
uma referência a política de emissões de moeda do governo.

Eduardo Sojo fez uso abundante da figura feminina em sua publicação, trabalhando
em muitos momentos aspectos de sensualidade das figuras alegóricas. Nesta imagem,
cria duas visões antagônicas da pátria: uma que corresponde a visão da revista,
apontada como a mais próxima da realidade, e a outra que estaria sendo “falseada”
pelo governo para enganar a população. O desenhista atribui ao artista/político a
capacidade de transformação de uma realidade em algo completamente distinto e
brinca com a capacidade criativa que a arte teria de embelezamento, aproximando-a
das possibilidades discursivas da política em fantasiar acerca do “real.”

Palavras finais
São inúmeras as referências ao universo das belas artes nestas publicações ilustradas e,
consequentemente, há também uma ênfase na importância do artista que as constrói.
A imagem criada acerca das possibilidades “civilizadoras” que as artes comportariam,
sobretudo em países que se estruturavam enquanto Estados/Nações, passam por um
processo de releitura e adaptação ao formato e a linguagem das revistas ilustradas,
inclusive naquelas em que o humor e caricatura davam a tônica da publicação.

Em todas as revistas aqui citadas, a imagem e/ou o nome do ilustrador da revista,


são elementos fundamentais na estruturação do mesmo, sendo que em muitos
momentos, estes compuseram o cabeçalho da publicação. Além disso, não apenas
metáforas ligadas ao universo artístico, mas a citação direta ou indireta de obras de
arte, bem como a publicação de retratos e biografias de artistas, ajudaram a promover
a importância deste criador.

Quando pensamos nas estratégias visuais utilizadas pelos artistas para construir
sua imagem durante o século XIX, pelo menos, duas ações parecem se destacar: seu
retrato ou auto-retrato acompanhado ou não de seus instrumentos de trabalho e a
representação do seu espaço criativo nas pinturas e/ou fotografias de ateliê/studio.
Ora, quando pensamos nos desenhistas das publicações ilustradas, além das ações
aqui inumeradas, e que como vimos foram utilizadas, estes artistas, por seu contato
semanal com o público e pelo espaço que ocupam nas revistas, podem potencializar
e reafirmar constantemente sua representação. A construção do artista passa desde
o destaque de sua própria imagem, assim como reafirma o seu papel em contextos
marcados pelas construções de nacionalidades. As estratégias criativas dos artistas
do lápis podem inclusive brincar através de metáforas que ultrapassam o mundo
das artes, assim como recriar constantemente seu espaço e a forma de ocupação do
mesmo.

298
O ateliê como espaço de ensino e
construção de práticas artísticas

Sonia Gomes Pereira 1


O objetivo desta comunicação é analisar o papel do ateliê como espaço de ensino


e construção de práticas artísticas, examinando o caso da Academia de Belas Artes
do Rio de Janeiro, criada em 1816, transformada em Escola Nacional de Belas Artes
(ENBA) em 1890 e, a partir de 1965, denominada Escola de Belas Artes (EBA), já
incorporada à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na trajetória de quase
200 anos desta instituição é possível verificar a longa duração do sistema acadêmico
e a maneira como os valores posteriores das artes moderna e contemporânea foram
incorporados ao ensino, na relação entre currículos, disciplinas teóricas e prática de
ateliê.

Apesar de já bastante conhecido, acredito que seja importante começar situando o papel
dos ateliês no sistema acadêmico de ensino. As oficinas tiveram uma longa duração
na arte ocidental, sempre ligadas à questão da formação do artista. Na Idade Média,
organizavam-se em torno da relação entre mestres e aprendizes, dentro da categoria
das artes mecânicas. Mas, a partir do século XVI, quando surgem as academias,
aquela relação se modifica. As academias tiveram um papel muito importante na luta
do Renascimento pela liberalização das artes plásticas. Propunham-se à discussão
dos preceitos teóricos, assim como ao ensino do desenho, enfatizando o conteúdo
racional da criação artística. Mas não pretendiam substituir as antigas oficinas, pois
era nestes espaços que os artistas continuavam aprendendo a parte prática. Assim,

1 Sonia Gomes Pereira é museóloga, historiadora da arte e professora titular da Escola de Belas Artes da UFRJ.

299
as academias européias sempre atuaram em conjunto com os ateliês, numa relação
complementar de teoria e prática na formação dos artistas.

No universo acadêmico, tanto os ateliês pessoais – em que jovens artistas participavam


da equipe de assistentes de grandes mestres - quanto os ateliês didáticos - típicos do
século XIX -, foram espaços destacados de ensino, sendo responsáveis pela construção
de um saber prático. Ao contrário dos tratados, que se destinavam, sobretudo, às
discussões estéticas e doutrinárias, era na lida cotidiana do ateliê que foram se discutia
as questões práticas da arte: problemas técnicos, soluções de composição, emprego de
iconografia – tudo, enfim, que fazia parte das escolhas do artista na construção de
sua obra. Esta prática, longe do que se possa pensar, não é desprovida de teoria; ao
contrário, ela está não apenas impregnada pelas discussões estéticas, mas também
se estende para o campo específico dos problemas artísticos, construindo um saber,
extremamente potente, embora nem sempre explicitado.2

Embora os modelos europeus já fossem divulgados fora da Europa através da


colonização, é sobretudo no século XIX que a sua divulgação se torna praticamente
globalizada, com a internacionalização do sistema acadêmico de ensino, passando
a constituir um padrão renovado de civilização.3 A expansão do sistema acadêmico
de ensino tem, então, função dupla: do ponto de vista da Europa, reforça a ação
imperialista de fixação da hegemonia dos novos países industrializados; do ponto de
vista dos países periféricos, representa libertação dos cânones do passado colonial,
atualização e incorporação ao mundo civilizado. É neste horizonte ideológico que se
insere a Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro.

Fundada como um projeto de futuro, ela se colocava na contramão de uma sociedade


mais afeita à literatura e à música, marcada pela escravidão e pelo desprestígio do
trabalho manual – precisando, ainda, construir para as artes plásticas a passagem de
mecânica para liberal. Assim, apesar das enormes dificuldades e das críticas constantes,
a atuação da Academia pode ser considerada um sucesso. Participou ativamente do
projeto político de construção da nação após a independência. Iniciou a construção
do campo artístico carioca através da realização das Exposições Gerais. Incentivou
o colecionismo, empenhando-se na formação dos acervos da Academia. E, do ponto
de vista da formação do artista, conseguiu apresentar resultados muito positivos
relativamente pouco tempo depois de sua criação em 1816 e de sua abertura efetiva
em 1826. Já a partir da década de 1850, é responsável pela formação de artistas como
Vitor Meireles e Pedro Américo, que atingiram grau de qualidade compatível com os
modelos europeus de sua mesma categoria. Um pouco mais tarde, na passagem do XIX
para o XX, conseguiu formar uma geração notável de artistas, bastante heterogêneos

2  Este foi o grande mérito da obra de Albert Boime, que destacou e evidenciou o saber prático criado e desenvolvido
dentro dos ateliês franceses do século XIX, mostrando, inclusive, a sua importância para os impressionistas. BOIME,
Albert. The Academy and French painting in the nineteenth century. New Haven: Yale University Press, 1986.
3  A documentação da École des Beaux-Arts de Paris, que se encontra nos Archives nationales, é prova disto. São
muito numerosos os alunos estrangeiros, tanto de outros países da Europa, quanto de outros continentes. Há uma
grande quantidade de norte-americanos, muitos latino-americanos, assim como asiáticos. Na correspondência da École
aparece com freqüência a importância de acolher estrangeiros, como forma de preservar a importância da cultura
francesa mundo afora.

300
- como Almeida Júnior, Visconti, Amoedo, Belmiro de Almeida entre outros -, que
experimentaram diferentes vertentes da renovação da pintura européia da época.

A atuação da Academia e de seus artistas até o início do século XX tem sido bem
estudada numa historiografia mais recente.4 Mas sabemos que o sistema acadêmico
teve longa duração na Academia carioca, já transformada em Escola Nacional de Belas
Artes a partir de 1890. Boa parte da historiografia da arte brasileira do século XX
aponta o confronto entre o conservadorismo da ENBA e os esforços de modernização
sempre colocados do lado de fora da Escola. O problema desta polarização é que
ela oculta algumas nuances, que seria interessante explorar em estudos futuros. Do
lado da ENBA, a percepção do grande conflito interno entre o peso da tradição e
do continuísmo e os esforços, tanto de alguns professores quanto de alunos, pela
atualização. Por outro lado, o entendimento que a arte brasileira que se faz fora da
Escola, apesar de se auto-denominar moderna, corresponde a uma forma moderada
de modernismo, apegada à narração, à figuração e mesmo a códigos de composição
tradicional. Assim, peso da tradição parece ser um problema ou uma opção para
esta geração de artistas dentro ou fora da ENBA, vivido em graus diferenciados de
intensidade.

Olhando desta perspectiva, é possível notar na história da ENBA e de sua sucessora,


a EBA, um fato interessante: ao lado da longa adesão ao sistema acadêmico, há uma
lenta impregnação dos valores modernos, que se passa em clima de grande confronto,
dentro e fora da Escola, ao longo do quase todo o século XX. Mas, de certa maneira
surpreendente, ao contrário do que se deu com o modernismo, no final do XX e
sobretudo agora no início do XXI, a arte contemporânea penetra nos ambientes da
Escola, sem tantos conflitos ou, pelo menos, numa aparente repartição respeitosa
de territórios. Tentar entender este processo pode ter um alcance maior do que
simplesmente acompanhar a trajetória de uma instituição específica de ensino; ele
pode ser significativo de como a arte brasileira pode lidar com as mudanças nos
sucessivos modelos de arte ocidental.

Thierry de Duve, em artigo de 1994,5 examina a situação das escolas de arte, balizando
a discussão em torno dos modelos definidores para o ensino, que ele resume em três
tríades: modelo acadêmico, apoiado em talento / métier / imitação; modelo modernista,
fundado em criatividade / meio / invenção; e modelo contemporâneo, voltado para
atitude / prática / desconstrução. Além disso, de Duve observa que só uma minoria
muito restrita das escolas de arte, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, seguiu
rigidamente um único modelo. A grande maioria, a partir de uma base acadêmica,
incorporou mudanças de currículos – novas disciplinas, novos departamentos, novos

4  Nas últimas décadas, os estudos sobre a arte brasileira do XIX e início do XX têm tido muita vitalidade, que pode ser
evidenciada pelo grande número de publicações e encontros acadêmicos, entre os quais, se destacam estes Colóquios
organizados pela 19&20.
5  DUVE, Thierry de. When form has become attitude – and beyond. In: FOSTER, Stephen, and VILLE,
Nicholas de (Editors). The Artist and the Academy – issues in Fine Art Education and the Wider Cultur-
al Context. Southampton: John Hansard Gallery, University of Southampton, 1994. Traduzido e publicado
na Revista Arte & Ensaio, PPGAV / EBA / UFRJ, n. 10, 2003. p. 92-105.

301
ateliês – convivendo com as práticas mais tradicionais, resultando em conjuntos
híbridos, mais ou menos conscientes. É este, também, o caso da nossa Escola carioca.

Em relação ao modelo acadêmico, de Duve destaca que a prática artística é fundada


na observação da natureza e na imitação da arte do passado. Exige longo aprendizado,
para a aquisição de habilidades, entre elas, o desenho de modelo vivo, motivado
pela centralidade do conteúdo humanístico deste tipo de arte. Embora a habilidade
tenha um papel de destaque, a arte não se reduzia simplesmente a ela; o talento é o
grande diferenciador entre um artesão e o verdadeiro artista, pois habilidade pode ser
adquirida e talento não. Assim, o papel da academia era justamente de desenvolver o
talento nato dos estudantes, encaminhando-os para se alinharem na grande tradição
artística ocidental.

No caso da nossa Escola, é possível reconhecer todo este processo acadêmico no


patrimônio que a instituição se preocupou em guardar até bem mais ou menos os
anos 1950. Hoje, o grande acervo da antiga Academia, depois ENBA, está dividido
entre o Museu Nacional de Belas Artes e o Museu D. João VI da EBA/UFRJ.
Especialmente neste último, estão guardadas as obras de caráter mais didático, em
que predominam os exercícios de modelo vivo, as cópias, as moldagens de gesso –
enfim, tudo o que constituía o universo imprescindível para a formação de um artista
tradicional. Ao lado disso, é possível reconhecer nos cursos da Escola, ainda nos dias
de hoje, a permanência de disciplinas, como o desenho de modelo vivo, o cuidado
com a permanência das técnicas tradicionais, como pintura e gravura entre outras.
A tradição, portanto, ainda vive tanto no museu, quanto em muitas salas de aula e
ateliês.

No modelo moderno, de Duve observa a substituição do talento pela criatividade, o


métier pelo meio e a imitação pela invenção. No que interessa mais diretamente aqui,
há a mudança do humanismo anterior – o homem como medida universal de todas as
coisas da natureza – para um princípio subjetivo, surgida da psicologia, que credita a
todos os homens a criatividade, entendida como a combinação das faculdades inatas
da percepção e de imaginação. Assim, a função da educação seria permitir o seu
desenvolvimento e, quanto mais próximo estivesse do talento bruto, maior seria
esse potencial. Por outro lado, há o entendimento de que os meios têm uma sintaxe
imanente; a excelência em arte deveria ser medida pela adesão e honestidade do
artista em lidar com os materiais. A pintura, por exemplo, passou a ser vista como
uma essência, capaz, em sua pureza, de estabelecer suas próprias regras. Em meio
à hegemonia do ensino acadêmico na ENBA, é possível detectar alguns sinais das idéias
acima apontadas, que se vão insinuando, de forma lenta.

Desde finais do XIX, aparece um dos primeiros sintomas: a recorrência da palavra


“sinceridade” no discurso da geração que empreende a reforma que transforma a
antiga Academia na ENBA. Alguns pesquisadores já fizeram esta observação.
Camila Dazzi, em sua tese de doutorado, analisa a importância de conceitos como
individualismo, temperamento e originalidade nos escritos de arte de finais do século
XIX e na geração responsável pela reforma de ensino que cria a ENBA em 1890: os

302
adjetivos sincero e original aparecem com grande freqüência e se opõem a falso e
convencional. 6

Também José Augusto Fialho Rodrigues7 destaca a importância da subjetividade e


do temperamento no discurso, em sua análise do discurso de dois críticos influentes
no Rio de Janeiro no início do século XX: Adalberto Mattos e Carlos Fléxa Ribeiro.
Novamente aqui, expressões como sinceridade e honestidade aparecem com
freqüência, indicando a ênfase que é conferida à subjetividade e ao individualismo.
Embora a natureza continue sendo referencial para o artista, é na postura básica de
sinceridade frente ao modelo, que se exprime a originalidade da obra, refletindo a
personalidade única, singular do artista. Aqui, também, a base destas idéias encontra-
se na psicologia. Entre os teóricos freqüentemente citados pelos nossos críticos, Jean-
Marie Guyau (1854-1888) vê nos elementos comunicativos e associativos, presentes
em todos os processos do mundo, a simpatia que une tudo o que existe numa sociedade
universal. Também Eugène Veron (1825-1889) propõe-se a incorporar as conquistas
contemporâneas na área da fisiologia e da psicologia associacionista, na análise das
sensações e de suas repercussões no campo emocional. Para Guyau e Véron, assim
como para Hippolyte Taine (1828-1893), o artista é fruto do seu meio - biológico,
geográfico e histórico - e deve refletir a realidade através de sua sensibilidade, através
de uma vibração emocional interior que o coloca em comunicação simpática com a
natureza e espelhando na sua obra uma reação pessoal e única. Quanto mais sincera e
intensa for esta expressão, maior valor é atribuído à obra. Assim, o valor da arte repousa
em sua sinceridade, em sua autenticidade em captar a alma do artista, impressionada
e colocada em vibração pelos estímulos do mundo exteior.8 É, portanto, a natureza
vista através do temperamento, como aparece de forma recorrente no discurso da
época.

Outro ponto interessante nesta lenta assimilação de novas idéias no ambiente artístico
do Rio de Janeiro é a citação constante de Charles Blanc (1813-1888) por artistas
da passagem do XIX para o XX, como em Modesto Brocos, mas até tardiamente,
de meados do XX, como Edson Motta e Marques Júnior.9 Charles Blanc foi bastante
influente no ambiente artístico francês. Entre 1848 e 1852, foi chefe do Bureau des Beaux-
Arts e, de novo, de 1870 a 1873. Em 1868, foi eleito para a Academia de Belas Artes e em
1876 para a Academia Francesa. Foi professor de Estética e História da Arte no Colégio de
França de 1878 a 1882. Trabalhou como primeiro editor da Gazette des Beaux-Arts, criada
em 1859. Escreveu inúmeras obras, como a História dos pintores de todas as escolas, em 14
volumes, cujo primeiro volume apareceu em 1861. Mas a sua obra mais importante foi a
Grammaire des Arts du Dessin em 1867 – recorrentemente citada por artistas, em diversos
países, incluindo Van Gogh. No primeiro capítulo, Princípios, Blanc trata do desenho e da
6 DAZZI, Camila. Por em prática a reforma da antiga Academia: a concepção e a implementação da reforma que
instituiu a Escola Nacional de Belas Artes em 1890. Rio de Janeiro: PPGAV / EBA / UFRJ, 2011, p. 52-62. Tese de
Doutorado.
7  RODRIGUES, José Augusto Fialho. Natureza e temperamento: Adalberto Mattos e Fléxa Ribeiro – concepções
de moderno no Rio de Janeiro na década de 1920. Rio de Janeiro: PPGAV / EBA / UFRJ, 2015. Tese de Doutorado.
8  Ibidem, p. 75-76.
9  QUEIROZ, Monique. O pensamento plástico no ensino acadêmico: um estudo da construção pictó-
rica a partir de obras do Museu D. João VI. Rio de Janeiro: PPGAV / EBA / UFRJ, 2015. Dissertação de
Mestrado.

303
cor no item V. Novamente no Livro III, dedicado à pintura, volta a tratar da cor: “Sendo o
colorido o que distingue mais particularmente a pintura das outras artes, é indispensável
ao pintor conhecer as leis da cor naquilo que ela tem de essencial e absoluto.” Divide o
seu estudo da cor nos seguintes tópicos: lei das cores complementares, o branco e o preto,
a mistura ótica, a vibração das cores e a cor da luz.10 A novidade da abordagem de Blanc
parece estar na incorporação de noções científicas recentes a uma concepção que se tornará
primordial no modernismo: a compreensão de que os meios artísticos, no caso a pintura,
possuem uma essência absoluta.

Em meados do século XX, uma outra referência é notada nos ambientes artísticos
do Rio de Janeiro: a de André Lothe (1885-1962). Lhote é bastante conhecido como
pintor que aderiu ao Cubismo, numa vertente menos radical e ligada ao movimento
de retorno à ordem que vigorou em alguns países da Europa no período entre guerras.
Em relação ao Brasil, recebeu vários jovens artistas em seu ateliê em Paris e, em 1952,
ofereceu um curso de três meses no ateliê de Manoel Santiago no bairro de Laranjeiras
no Rio de Janeiro. Mas sua influência se deve, também, aos livros que escreveu, tais
como Traité du Paysage, Traité du Paysage et de la Figure, La Peinture Libérée, Les
Invariants Plastiques - que são referência freqüente em muitos brasileiros, como em
Edson Motta, companheiro de Manoel Santiago no Núcleo Bernardelli e professor
da ENBA. Em muitos artistas desta geração, encontra-se a mesma preocupação de
Lhote com a estruturação geométrica da composição.11 Mas, em seus livros, Lhote
vai mais além: propõe a conciliação do Cubismo com a tradição artística, que ele
entende como “aquilo que resiste a todas as épocas e aos trejeitos, maneirismos e
afetações de todos os tipos, são os valores que eu nomeio, por falta de melhor termo,
invariantes plásticas, de que um certo coeficiente é necessário à vida da obra.”12
Novamente aqui reencontramos a convicção de que os meios artísticos possuem uma
essência imanente, independente de outros fatores condicionantes, como a história
ou a geografia.

É importante observar que todos os indícios de interesse pelos valores modernos


apontados até aqui ocorrem nos espaços mais livres dos ateliês dentro e fora da
Escola, no convívio entre artistas, pois nos regimentos ou currículos oficiais da ENBA
a base do ensino continua fortemente estruturada pela importância do desenho, pela
centralidade da representação da figura humana e pela ligação com a função narrativa
e, até mesmo, pelo ideário do belo e da imitação da natureza.

A historiografia da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro sempre assinala


a sua progressiva perda de prestígio ao longo do século XX. Em 1937, há a criação do
Museu Nacional de Belas Artes e a divisão do acervo formado pela antiga Academia
e pela ENBA. Em relação aos salões, após o episódio do Salão de 1931 ou Salão
Revolucionário, mudanças mais efetivas na sua estrutura surgem em 1933, antes
dominados por professores da ENBA, que agora passam a ter participação mais efetiva

10  BLANC, Charles. Grammaire des Arts du Dessin. Paris: 1880. 2 vols.
11  BTESCHE, Rafael. A obra mural de Bandeira de Mello: um estudo sobre a relação entre forma e conteúdo. Rio
de Janeiro: PPGAV / EBA / UFRJ, 2015. Dissertação de Mestrado.
12  LHOTE, André. Les Invariants Plastiques. Paris: Hermann, 1967.

304
do Governo, até chegar em 1940, quando se separam as tendências - Divisão Geral
e Divisão Moderna - e a responsabilidade para a sua realização passa para o MNBA.
Finalmente, em 1945, acontece a saída do curso de arquitetura, com a criação da
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo.

É exatamente em função destas perdas sucessivas, que desmontam o seu arcabouço


tradicional, que se torna interessante observar o novo Regimento de 1948, que
cria novos cursos e abre caminho para outras frentes de atuação, como o campo
do Design, que serão consolidadas na década de 1970.13 Estudos futuros vão poder
esclarecer melhor, mas parece ser na movimentação interna da Escola nestas décadas
– com novos regimentos, novos cursos, novos currículos e novos departamentos –
que houve uma incorporação mais franca do ideário modernista, pelo menos no
que diz respeito à organização dos currículos em torno dos elementos fundamentais
da sintaxe visual – tais como forma e cor –, assim como a divulgação da Teoria da
Gestalt. O resultado desta mistura é bem próximo ao descrito por de Duve em relação
às escolas européias e norte-americanas:
[O modelo da Bauhaus] nunca foi apresentado de forma tão radical como aqui descrita,
nem mesmo na própria Bauhaus, que morreu pela pressão de suas próprias contradições,
tanto quanto pela mão dos nazistas. Mas o modelo da Bauhaus, mais ou menos emendado,
estabeleceu uma série de pressupostos a respeito do ensino de arte, sobre os quais dúzias
de escolas de arte e arquitetura ao redor do mundo foram construídas, e que, mesmo hoje,
permanece subjacente, mesmo subliminar, quase inconsciente, na maioria dos currículos
[...] Além disso, esse parece ser o único modelo que permanece coerente contra o antigo
modelo acadêmico, uma vez que aquele também sobrevive, igualmente emendado e
muitas vezes degenerado [...] nas poucas Escolas de Belas Artes que continuam a defendê-
lo [...] mas também na imensa maioria de escolas de arte e academias pelo mundo que
procuram encontrar um equilíbrio entre o tradicionalismo e o modernismo.14

Chego, finalmente, ao modelo contemporâneo, que, como foi visto antes, é definido
por de Duve pela tríade atitude / prática / desconstrução. Em torno dos anos 1960, o
modernismo entra em crise e o contemporâneo surge num clima de desencantamento
niilista. No novo paradigma, em lugar de talento e criatividade, surge a atitude, no
sentido de atitude crítica – desenhada por um novo discurso extremamente politizado
sobre a relação entre arte e sociedade, alimentado por teorias vindas das Ciências
Sociais. Toda esta teoria, em geral francesa, invade as escolas de arte e consegue
deslocar e às vezes substituir a prática do ateliê tradicional, ao mesmo tempo em que
renova o vocabulário crítico. Ao lado disso, tanto o métier como o meio são postos

13 No Regimento de 1948, os cursos oferecidos são: Pintura, Escultura, Gravura, Arte Decorativa e Licen-
ciatura em Desenho. Na verdade, vários cursos são oferecidos como especializações de Arte Decorativa:
pintura decorativa, escultura decorativa, cerâmica, cenografia, arte da publicidade e do livro, mobiliária,
tapeçaria, tecidos e papel pintado, artes do metal, artes do vitral e do vidro, e indumentária. Em 1957, novo
Regimento da ENBA redefine os cursos: Pintura, Escultura, Gravura, Arte Decorativa e Licenciatura em
Desenho. São oferecidas nove especializações: Cerâmica, Arte da Publicidade e do Livro, Gravura de talho
doce, água forte e xilografia, Indumentária histórica, Cenografia, Pintura a fresco, Mosaico, Escultura em
madeira, pedras e metais, e Composição de Interior. VIANA, Marcele Linhares. Arte Decorativa na Escola
Nacional de Belas Artes - Inserção, Conquista de Espaço e Ocupação (1930 - 1950). Rio de Janeiro: PP-
GAV / EBA / UFRJ, 2015. Tese de Doutorado.
14  DUVE, op. cit., p. 96.

305
em questão, uma vez que o interesse predominante se volta para uma arte situada no
conceito, abrindo espaço para a denominação prática artística – mais coerente com a
adesão à interdisciplinaridade. Sendo uma época radicalmente relativista, a palavra
arte em si veio a ser considerada tabu, desqualificando qualquer fé na essência da arte,
isto é, a existência de algum denominador comum transhistórico ou transcultural
associado a qualquer prática artística. E, em lugar da imitação e da invenção, o que
caracteriza a cena contemporânea é a desconstrução, alimentada, mais uma vez, pelas
teorias vindas das Ciências Humanas e mais diretamente pela obra de vários filósofos
franceses, como Foucault, Deleuze, Derrida:
[...] já não é mais suficiente dizer que a imitação repete e que a invenção faz a diferença.
Os conceitos de repetição e diferença precisavam ser pensados novamente [...] Próximo
ao final da década de 1960 [...] Jacques Derrida, mas também Gilles Deleuze e outros
começaram a pensar sobre diferença e repetição conjuntamente [...] eles mostraram o
elo, desmantelando suas esperadas oposições [...] Assim, os conceitos tradicionais tinham
de ser descontruídos [...] O sucesso da descontrução não é facilmente explicável pela
qualidade do trabalho filosófico realizado sob esse nome [...] Se não houvesse ressonado
num momento muito preciso da crise da modernidade, não teria alcançado sucesso
algum. Mas, como todos sabemos, alcançou, a ponto de o desconstrucionismo [...] ter-
se tornado a bandeira sob a qual se desenvolveu um movimento arquitetônico, após ter
invadido a crítica de arte e, mais recentemente, o próprio ensino da arte. Ainda que mal
compreendida e assimilada, a desconstrução se tornou aparentemente nos anos 80 um
método para produzir e ensinar arte.15

Hoje, muito deste discurso crítico dos anos 60, 70 e 80 já está institucionalizado.
Mas o que mais me interessa aqui é apontar que a primazia do conceito, a
interdisciplinaridade, a proximidade com as Ciências Humanas – tudo isto operou
uma mudança até certo ponto inesperada: o acolhimento da arte contemporânea nos
ambientes universitários – fato observável em muitos países, pelo menos no mundo
ocidental.

Na realidade brasileira, até bem pouco tempo atrás, a presença dos cursos de arte na
universidade era questionada tanto pelos artistas quanto por boa parte da comunidade
acadêmica. Do lado dos artistas, o mito de que o artista se faz sozinho e que o ensino
pode inclusive atrapalhar o desenvolvimento de sua criatividade inata. Do lado da
universidade, era recorrente, mesmo entre os colegas das Ciências Sociais, a opinião
que a formação do artista deveria ser feita em conservatórios e não em faculdades.

Embora este discurso não tenha desaparecido de todo, é notório que hoje muitas
universidades e mesmo agências de fomento à pesquisa reconhecem a área de
artes como produtora de um conhecimento específico, diferente do científico, mas
igualmente relevante. Por outro lado, entre os artistas, a ameaça do controle quase
global do mercado torna atrativos os espaços universitários, em que aquelas pressões
têm um impacto menor e o artista pode ter a liberdade de desenvolver projetos mais
autônomos.16

15  Ibidem. 104.


16  ANDRADE, Marina Pereira de Menezes. O artista e sua formação desde 1980: o ambiente contemporâneo e o

306
É exatamente este processo que se pode observar na Escola de Belas Artes nos últimos
anos. Ao contrário da lenta e conflituada adesão ao modernismo, a arte contemporânea
entrou com maior facilidade. Apesar da desaprovação de alguns departamentos, não
houve confrontos e lutas tão acirradas como no passado e é notória uma convivência
– não de todo pacífica, mas pelo menos com consentimento mútuo.

Lygia Pape fez concurso para a Escola de Belas Artes em 1982 e desde então era
professora dos cursos de graduação no Departamento de Análise e Representação da
Forma, onde parece ter permanecido muito isolada. Mas, nos anos 1990, ela juntou-
se a Carlos Zílio, quando este propôs a criação das Linguagens Visuais no programa
de pós-graduação da Escola. Este tem sido um núcleo muito influente de arte
contemporânea, tanto internamente, quanto no ambiente cultural do Rio de Janeiro
e mesmo do Brasil. É uma proposta teórica-prática, que se realiza integralmente no
espaço do seu ateliê, conhecido como Galpão.

Fecho, assim, o meu argumento. As escolas de arte - como é o caso da nossa Escola
- têm funcionado misturando modelos de ensino, consciente ou inconscientemente.
Mas, apesar dos currículos e programas dos cursos parecerem, muitas vezes, colagens
incompreensíveis, é nos ateliês que as discussões e experiências entre professores
e estudantes tratam dos problemas da arte e definem linhas de atuação dos jovens
artistas. Portanto, o ateliê foi e continua sendo o espaço privilegiado do artista, tanto
em termos de ensino quanto de construção das práticas artísticas.

Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: PPGAV / EBA / UFRJ, 2013. Tese de Doutorado.

307
308
No último ateliê de Victor
Meirelles: um acervo privado
para estudo de sua biografia

Teresinha Sueli Franz 1

As buscas inúteis para encontrar fotografias, pinturas ou desenhos de Victor


Meirelles de Lima (1832-1903) em seu ateliê reforçam o que os biógrafos do artista
sempre disseram: Victor era discreto. Tanto mistério em torno dele, sustentado pelo
mito romântico do gênio, ajudou a criar estereótipos em torno de sua biografia, como
a falsa história “de que ele era um menino pobre de Desterro.” Passados mais de
cem anos do seu falecimento, ainda são consideráveis os problemas existentes nos
escritos que contam sua vida. Entre os anos de 2009 e 2013, realizei longa pesquisa
histórica com o objetivo de tentar preencher algumas lacunas e corrigir equívocos
nas biografias conhecidas do artista. Como resultado daquela investigação, caiu por
terra o mito do “menino pobre de Desterro.” Ela foi realizada em arquivos históricos,
eclesiásticos, cartoriais, em sites de genealogia, na Hemeroteca Digital Brasileira da
Fundação Biblioteca Nacional (BNDigital),2 no arquivo digital do Museu D. João VI,
em bibliotecas e coleções de arte de museus do Brasil, Argentina e Portugal, sempre
dialogando com as biografias existentes sobre esse artista. Hoje, uma considerável
quantidade de novas informações sobre a vida de Victor Meirelles e seu tempo está à
disposição dos pesquisadores. Dados genealógicos de seus familiares e características
socioculturais deles foram levantados.

1  Doutora em Belas Artes pela Universidade de Barcelona, Espanha. Docente Associada (aposentada) da Universidade
do Estado de Santa Catarina – Udesc.
2  Biblioteca Digital: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/ Acesso em datas diversas.

309
Durante a investigação citada, constatei que há um problema de pesquisa importante
relacionado ao seu último local de trabalho. Victor deixou uma boa quantidade de
evidências materiais do conjunto de sua obra (estudos, croquis, pinturas, desenhos,
aquarelas, esboços, entre outros) em seu último ateliê, ao falecer, em 22 de fevereiro de
1903. Na ocasião, o artista estava casado com Rozália Cândido Fraga, natural da Ilha
das Flores, Portugal. Era ela a viúva do Conselheiro Cornélio Ferreira França, com
quem teve um filho, o médico Eduardo Ferreira França (1863-1929). Em 1899, Victor
fez testamento, instituindo a esposa como única herdeira dos bens que porventura
viesse a possuir na ocasião de sua morte, dando-lhe poderes “para deliberar em seu
nome, em juízo e fora dele.”3 Mas, fatalmente, Rozália veio a falecer em novembro
daquele mesmo ano, apenas nove meses depois de Victor, aos 66 anos, deixando
muitas perguntas no ar. Até o endereço do último ateliê de Victor Meirelles perdeu-se
no tempo; contudo, na pesquisa para este artigo (entre junho de 2015 e dezembro de
2016), consegui resgatá-lo.

Carlos Rubens4 entrevistou um parente de Victor Meirelles, da família Moreira Costa


Lima, para a biografia que escreveu sobre o artista na quarta década do século passado,
mas ele nada mencionou sobre o último espaço físico de produção de Victor. O artista
também teve um empregado, Duarte Homem de Mattos, que trabalhou com ele desde
o primeiro panorama e esteve ao lado do artista até o final. Foi um dos amigos que
carregaram a alça do caixão até o cemitério de Catumbi. Certamente conhecia bem o
último ateliê de Victor e o que nele deixou. Mas nenhuma notícia divulgou sobre esse
espaço. Li nos jornais da época, pela BNDigital, que esse amigo e empregado de Victor,
por duas vezes, tentou expor os panoramas após a morte do artista, no Rio de Janeiro:
na Exposição Nacional, em 1908, e depois, em 1910, quando solicitou ao Governo
permissão para expor em local conveniente, pelo prazo de cinco anos, os panoramas
de Victor Meirelles. Os dois pedidos foram indeferidos. Lembro que Victor e Rozália
fizeram doação dos três panoramas à União. Segundo o jornal A Notícia do Rio de
Janeiro, de 26 de junho de 1902, os panoramas foram transportados para o edifício
do Museu Nacional naquela data. Portanto, essas obras não estavam mais no seu
ateliê desde então. Tendo participado da construção delas, Duarte Homem de Mattos
estava atento ao estado em que se encontravam. No entanto, é sabido hoje que por
descuido dos responsáveis pela guarda e preservação, as preciosas telas perderam-se
para sempre.

Além de não ter descendência, na data de seu falecimento, Victor não tinha mais
parentes próximos. Até seu irmão Virgílio, 19 anos mais moço que ele, falecera seis
anos antes, em 1897. Quem cuidaria, após sua morte, dos objetos, livros, obras,
cavaletes, fotografias, arquivos, caixas de tintas, entre outros, que Victor deixara em
seu último ateliê?

Reconstruir seu passado, hoje, é uma tarefa árdua e sujeita a falhas. Ainda assim, é
possível saber algo sobre os lugares onde ele produziu algumas de suas obras, mesmo

3  FRANZ, Teresinha Sueli. Victor Meirelles: biografia e legado artístico. Florianópolis: Caminho de Dentro Edições,
p. 164-165.
4  RUBENS, Carlos. Victor Meirelles: sua vida e sua obra. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1945.

310
que seja apenas um endereço ou outro vestígio de sua trajetória e operosidade.
Quando Victor faleceu, aos 70 anos de idade, na mesma cidade onde dedicou a vida
à produção e ao ensino das artes visuais, a imprensa comentou, em tons de denúncia,
a pobreza do artista na ocasião do falecimento. “O extinto deixou viúva na mais
extrema pobreza, mas deixou um grande legado artístico para seu país,” diz o jornal O
Pharol, em de 24 de fevereiro de 1903. Parte desse legado, estava em seu último ateliê.
Pelo jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, lemos: “quando morreu, deixou
pastas repletas de estudos a lápis, a aquarela, algumas vezes a bico de pena, até a giz,
desenhos acumulados na larga trajetória da vida, pois continuou a estudar até o fim,
como deu testemunho pessoal Araújo Viana [...] que esteve na casa de Victor, na hora
triste, para constar o abandono em que o mundo oficial deixara aqueles fragmentos.”5

Na BNDigital, em 30 de setembro de 1903 ainda no Correio da Manhã lemos que dona


“Rozalia Meirelles de Lima, viúva do professor da Academia de Belas Artes, Victor
Meirelles de Lima, dirigiu à Câmara dos Deputados um requerimento seu, propondo-
se a vender ao Governo grande quantidade de quadros e trabalhos executados pelo
seu finado marido”. Mas ela faleceu semanas após esse anúncio, sem saber o resultado
de sua proposta de venda. Pela BNDigital, a coluna do Tribunal Civil e Criminal do
Jornal do Brasil, de dezembro de 1904, lemos que o inventário de Victor e Rozália foi
feito no mesmo processo, após o falecimento dela. E que foi inventariante o enteado
Eduardo Ferreira França (1863-1929), médico e industrial, famoso também na história
da propaganda. Fiz uma busca desse processo de inventário nos arquivos do Tribunal
Superior de Justiça, no Arquivo Nacional e em cartórios do Rio de Janeiro, mas nada
foi encontrado até o momento. Pretendia saber, entre outras coisas, se a comentada
pobreza do artista na época da morte era real, ou apenas outro mito.

Vemos no jornal A Notícia que, em 24 de outubro de 1903, do Rio de Janeiro, citou as


seguintes obras do legado deixado por Victor em seu ateliê:

1. Barranco - paisagem não concluída


2. Sete estudos para o Panorama do Rio de Janeiro
3. Casamento da Princesa Isabel (esboceto a óleo)
4. Esboceto a óleo para o quadro relativo à questão Christie
5. Dois estudos de mulheres italianas
6. Três estudos para o Panorama da Entrada da Esquadra
7. Três estudos para o Panorama da Descoberta do Brasil
8. Quinze estudos diversos
9. Esboceto da batalha dos Guararapes
10. Cabeça do General Holandês para o mesmo fim
11. Nove pastas com aquarelas e desenhos diversos

Lemos ainda, pela imprensa da época, que um requerimento da dona Rozália Meirellles
de Lima foi enviado pelo Sr. Dr. J. J. Seabra à Câmara dos Deputados, acompanhado
de parecer da comissão da Escola Nacional de Belas Artes nomeada especialmente
para avaliar as obras e seu destino. Era composta por João Zeferino da Costa, Rodolfo

5 GUIMARÃES, Argeu. A auréola de Victor Meirelles. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1977. p. 33.

311
Amoedo e Daniel Berard. Segundo parecer dessa comissão, o governo deveria fazer
a aquisição dos mesmos quadros para as galerias da Escola Nacional de Belas Artes
(ENBA/RJ), pela quantia de 50.000$000, (cinquenta mil réis) “não só pelo alto valor
artístico das obras, como por uma última homenagem àquele professor.” O parecer
seguiu com a mesma lista de obras que consta no jornal citado anteriormente. Lá
vemos, por exemplo, no item oito, “quinze estudos diversos.” Daí podemos entender
que, entre o acervo de Victor encaminhado como “estudos,” bem poderiam constar
retratos que cito neste texto, e que estão em museus até hoje como “estudos.” Nos
Arquivos Digitalizados -“Documentos avulsos” do Museu D. João VI/EBA/RJ, há um
manuscrito de 26 de junho de 1920, assinado pela mesma comissão nomeada em 1903,
que contém um parecer quanto ao valor e ao estado de conservação das obras sobre
os Estudos e as Pinturas depositados na Escola Nacional de Belas Artes, pertencentes
ao espólio do falecido pintor brasileiro Victor Meirelles de Lima. Essa comissão
mantém o valor de cinquenta mil réis e comunica que o estado de conservação das
obras requer cuidado para que não se percam completamente, depois de 17 anos de
abandono. Segundo Argeu Guimarães,6 essas pastas que Victor deixara no seu ateliê
foram guardadas em lugar impróprio na Escola de Belas Artes, em gavetões úmidos
e de difícil acesso, e já mais tarde, século XX à dentro, retiradas, sendo os trabalhos
restaurados e cuidados por Donato Mello Junior. Ultrapassavam o número de 300
recuperados e inventariados finalmente, com algumas perdas.

Este estudo parte da ideia de que, no acervo particular do artista, estavam também
obras de caráter biográfico que hoje podem ajudar a reconstrução de sua história, obras
estas que a viúva, dona Rozália, tentou vender para o Estado, entre o conjunto total
que ficou no ateliê do artista. Quase duas décadas depois de deixadas na ENBA/RJ,
sem os devidos cuidados, finalmente foram adquiridas pelo Estado para constarem na
Pinacoteca daquela escola como patrimônio público. Em 1936, foram transferidas para
o Museu Nacional de Belas Artes (MNBA/RJ), inclusive algumas de caráter biográfico
que constam neste texto, como vemos nos créditos da procedência dessas obras. Do
MNBA/RJ, algumas foram enviadas ao Museu Victor Meirelles, em Florianópolis/
SC, criado em 1952 na casa natal do artista. O problema é que elas seguem até hoje
com títulos vagos, como “estudos,” sem data nem identificação correta. Ou seja, tudo
indica que Victor mantinha, em seu acervo particular, pinturas de sua autoria, que
foram feitas para si e para os seus, obras estas que para ele não necessitavam de
data nem de identificação, assim como guardamos hoje em dia fotografias de lugares
e de pessoas queridas. Lembro que Argeu Guimarães7 menciona o retrato Cabeça
deMulher, que está no MNBA/RJ, pintura a óleo, como sendo um possível retrato da
mãe do artista [Figura 8]. Na década de setenta do século XX, Guimarães entrevistou
parentes de Victor, que mencionaram um primeiro esboço desse retrato, traçado a
lápis, de propriedade da prima do pintor, a senhora Lucilia Caetano, que ele chegou
a ver. O esboço foi feito na adolescência do artista,“quando ao fim do primeiro ano
letivo na Academia passou as férias em Santa Catarina.” Segundo conta, “a assinatura
Victor, na orla oval, identifica autoria. Seria pessoa da família, parenta, provavelmente
6  GUIMARÃES, Argeu. A auréola de Victor Meirelles. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1977.
7  Id. Ibd. p. 47.

312
não identificada. A progenitora, quem sabe, Maria da Conceição dos Prazeres.” No
meu entender, trata-se mesmo do retrato da mãe do artista, concluído possivelmente
em Paris, durante a viagem de estudos do artista, em torno de 1856.

A partir de nossa pesquisa publicada,8 pela primeira vez, temos os nomes, características
culturais, biográficas, assim como datas de nascimento e morte de alguns familiares
e outras pessoas próximas do artista. Assim foi possível identificar e datar um retrato
que pode ser da mãe, Maria da Conceição (1817-1889), e outro do único irmão de
Victor, Virgílio Meirelles de Lima (1852- 1897), que, suponho, ele teria deixado em
seu ateliê, quando faleceu, entre as obras do espólio. Na longa pesquisa publicada,
é possível entender porque foi o próprio autor o último guardião de retratos e de
vistas urbanas, que no passado podem ter sido feitas por ele para seus entes queridos.
Uma vez que faleceram antes dele, entendo que essas pinturas de caráter biográfico
estavam misturadas ao volume de estudos, croquis, esboços e desenhos referentes às
grandes obras históricas que ele fez para o Estado ao longo da vida, e que constavam
no espólio de sua esposa Rozália no último ateliê.

Trago também algumas informações sobre outros espaços de produção do artista,


ainda que seja só um ou outro endereço, lembrando que, ao longo da sua vida, Victor
trabalhou em diferentes lugares: na Cidade de Desterro, no Rio de Janeiro, na Itália,
em Paris, em plena guerra do Paraguai (a bordo de um navio) e na Bélgica. Começo
com a sua primeira moradia, a casa natal, cujo prédio ainda existe na rua que leva o
nome dele em Florianópolis, Santa Catarina. Um pequeno sobrado colonial [Figura
1],tombado pelo IPHAN e transformado, em meados do século XX, no Museu Victor
Meirelles. Sobrado este que sempre pensávamos ser o único bem da família de Victor
em Desterro, mas na verdade era o imóvel de menor valor, que consta, entre outros,
no processo do inventário do seu pai, o português Antonio Meirelles de Lima, falecido
em Desterro em 1853.9

Nos primórdios da vida do artista na Cidade de Desterro


O primeiro ateliê de Victor pode ter sido na sua cidade natal: Desterro, Santa Catarina.
Dizem que ele desenhava desde menino. Hoje sabemos também que, a partir dos 10
anos, teve sua primeira formação artística com D. Mariano Moreno (Chuquisaca,
1805-Buenos Aires, 1876). Militar, professor, topógrafo, engenheiro, consta também
como artista em bibliografia na Argentina, visto que teve formação nessa área no
seu país. Exilado político no governo Rosas, permaneceu na ilha de Santa Catarina
entre 1838 e 1852. Ele é filho do ilustrado D. Mariano Moreno (Buenos Aires, 1778-
Costa de Santa Catarina 1810), que teve uma participação importante nos feitos que
conduziram seu país à Independência. A formação que Victor recebeu dele na Escola
de Desenho que Moreno criou em Desterro pode ter ido muito além do “desenho
geométrico,” como pensaram os biógrafos que me antecederam. Em março de 1847,
aos 14 anos, foi levado pelo pai para cursar a Academia Imperial de Belas Artes (AIBA)
na Corte, com a ajuda de autoridades da Província de Santa Catarina; o senador

8  FRANZ, Teresinha Sueli. Op. cit. 2014.


9 Id.Ibd.

313
José da Silva Mafra e o deputado
Jerônymo Francisco Coelho.
Visitou sua cidade natal nas férias
escolares de 1849, 1850 e 1851.
Geralmente chegava na segunda
semana de dezembro e voltava ao
Rio de Janeiro nos primeiros dias
de março do ano seguinte. Nessas
ocasiões, aproveitava para produzir
as paisagens de sua terra natal que
conhecemos. Em janeiro de 1853,
foi despedir-se da família antes da
longa viagem de estudos na Itália
e depois na França, de onde voltou
Figura 1: Casa natal somente em agosto de 1861. Seu pai faleceu na Cidade de Desterro em setembro de
de Victor Meirelles. Es-
1853, aos 67 anos de idade.
quina das antigas ruas
da Conceição (hoje
Saldanha Marinho) e
Victor Meirelles de Lima [Figura 2] nasceu em 18 de agosto de 1832, na morada que
Rua da Pedreira (atual pertencera aos seus avós maternos, e que pode ter sido dote de Maria da Conceição
Rua Victor Meirelles) pelo casamento com Antonio Meirelles, em outubro de 1831. Quando o pai faleceu,
adquirida pelo Ser-
viço do Patrimônio
Victor e Virgílio receberam-na, entre outros imóveis da família, como herança. Na
Histórico e Artístico imagem acima, ao lado do sobrado, vemos uma outra casa (térrea). Ela também
Nacional em 1946. pertenceu à familia do artista. Ambos podem ter sido locais onde Victor produziu
Fonte: Reprodução de
fotos do Arquivo No-
suas primeiras obras. Mas não é possível ter certeza de onde ficava seu primeiro ateliê,
ronha Santos, IPHAN/ uma vez que a família do artista possuía outros imóveis.
Daniela Cristina Silva.
Citado em: FRANZ, Victor é filho de um bem sucedido negociante, homem de prestígio, que chegou a
Teresinha Sueli. Victor ser o primeiro vice-cônsul de Portugal na cidade de Desterro, entre 1835 e 1839.
Meirelles: biografia e
legado artístico. Flo-
Entre os familiares do lado materno, havia pessoas cultas, ligadas à literatura, ao
rianópolis: Caminho ensino e à administração do Estado, como o primo de Victor, o poeta Oscar Rosas
de Dentro Edições, (Desterro, 1864-RJ, 1925), filho do irmão da mãe do artista, João José da Rosa Ribeiro
2014, p. 19.
de Almeida (Desterro 1832-RJ 1889), que foi
também professor em Desterro, tendo entre
seus alunos o poeta simbolista Cruz e Souza
(Desterro 1860-Minas Gerais, 1898). O pai de
Victor, Antonio Meirelles de Lima, que nasceu
na cidade do Porto em Portugal, veio de uma
família de grandes negociantes, tidos como
cultos e de fortuna, alguns estabelecidos no Rio
Figura 2 – Retrato de
de Janeiro, no entorno do Imperador. Lê-se o
Victor Meirelles Jovem. nome dele em notícias marítimas do jornal da
Doação de Aldo Beck Corte, Império do Brasil – Diário Fluminense, e
ao Museu Victor Mei-
relles em 1996. Fon-
30 de setembro de 1828, entre as “entradas” de
te: Arquivo do Museu Santa Catarina, vindo com a Barca Nacional e
Victor Meirelles/Ibran/ Imperial São Francisco de Paula com uma carga
MinC.

314
de madeira para o Arsenal da Marinha
no Rio. Três anos mais tarde, ele se casou
com Maria da Conceição (Desterro 1817
– RJ 1889) na Cidade de Desterro. Em 15
de agosto de 1822, nas notícias marítimas
da Gazeta do Rio de Janeiro, lê-se que
José Moreira da Costa Lima, um primo
nascido no Porto, rico negociante, vinha
como piloto naval, e mais tarde, em seu
próprio navio, atravessando o Atlântico,
em comércio de todo o tipo. Um dos filhos
dele era cirurgião de D. Pedro II. Entre os
familiares que ficaram em Portugal havia
um pintor histórico, Caetano Moreira da
Costa Lima (Porto 1835-Porto 1898), primo de Antonio Meirelles de Lima. Tudo Figura 3 - Fotografia
da entrada da Rua Au-
indica que Victor contou com a hospedagem de parentes assim que chegou ao Rio de gusta (atual Rua João
Janeiro. Alguns moravam na Freguesia do Sacramento. O primeiro ateliê de Victor no Pinto em Florianópo-
Rio de Janeiro só podia estar ligado aos parentes do pai. Imagino que, nas férias em lis/SC) c. 1880. A casa
de sobrado da esquer-
Desterro, Victor desenhava, fazia estudos, croquis, e esboços, mas, esmerado como da pertenceu à família
era, concluía as vistas da cidade natal no seu ateliê no Rio de Janeiro. Hoje sabemos de Antonio Meirelles
que a última moradia da família de Victor Meirelles em Desterro ficava na esquina da de Lima. Fonte: GER-
LACH, Gilberto. Des-
então Rua Augusta, hoje João Pinto, com o Largo do Palácio, atual Praça XV, conforme terro: Ilha de Santa
podemos ver na Figura 3. Catarina, Tomo II.
Florianópolis: Cinema
Em 1851, Victor pintou uma vista da sua rua [Figura 4]. É uma das pinturas que foi Nossa Senhora do Des-
transferida da ENBA para o MNBA em 1936. Porque uma obra tão biográfica foi parar terro, 2010, p. 565.
na Pinacoteca da ENBA? Não foi uma encomenda do Estado. Nem me parece que a
viúva Rozália tivesse doado alguma obra de Victor ao Estado na situação de miséria
que dizem ter ficado na ocasião da morte do marido. Tudo indica ser esta uma das
pinturas que estavam entre o espólio no último ateliê do artista. Ao que me consta, a Figura 4 - Victor Mei-
única doação que o casal fez à União foi dos três panoramas, em julho de 1902, como relles de Lima (1832-
1903), Uma Rua do Rio
disse antes. E isso a de Janeiro, depois, Uma
imprensa comentou Rua de Desterro, tam-
largamente. bém conhecida como
Antiga Rua Augusta,
O fato de que a Florianópolis/SC, 1851.
Óleo s/cartão, 33,9 x
pintura da constava 49,2 cm. Procedência:
no acervo da ENBA, Transferência da ENBA
depois do MNBA, em 1937 para o acervo
do MNBA/IBRAN/
sem uma identicação MinC – Rio de Janeiro.
correta, é mais um Citado em: FRANZ,
sinal de que ela não Teresinha Sueli. Victor
Meirelles: biografia e
foi doada pelo autor legado artístico. Flo-
ou por sua esposa. rianópolis: Caminho
Uma obra doada de Dentro Edições,
2014, p. 53.

315
pelo casal não seria por eles identificada? Assinada e datada,não tinha título, ou
alguma explicação sobre o lugar representado, o que um possível doador, creio que o
faria. Somente a partir de um anúncio de jornais de Desterro de 1851,10 vi que o pai de
Victor, o negociante Antonio Meirelles de Lima, anunciava a venda de uma escrava,
em endereço que não era a casa natal do artista. Entendi, assim, pela primeira vez, que
a família Meirelles não morou somente no sobradinho que foi transformado no museu
que leva o nome do artista, dado este que confirmei depois, quando foi localizado, no
Arquivo do Judiciário Catarinense, o processo de inventário de Antonio Meirelles de
Lima, falecido, como já disse, em setembro de 1853. Naquela data, Victor estava na
Europa, em viagem de estudos, como bolsista da Academia Imperial de Belas Artes.
De lá só retornou em agosto de 1861, depois de expor sua Primeira Missa no Brasil
(1860), no Salão de Paris. Em livro de Proença Rosa e Peixoto,11 lemos que, quando
de sua estada na capital da França, Victor obteve mais uma prorrogação da bolsa, de
dois anos, a fim de fazer uma grande composição original. Tratava-se de sua Primeira
Missa no Brasil. Dizem os autores citados:
Figura 5 - Joaquim
Insley Pacheco (1830-
A prorrogação foi concedida por mais dois anos (de 18.12.1858 a 18.12.1860), bem como
1912), Retrato de Vic-
tor Meirelles de Lima, o auxílio de 4.000 francos solicitado, conforme orçamento apresentado pelo artista, sendo:
1860. Fonte: https:// aluguel de ateliê - 750 francos por ano; modelos vivos - 360 sessões a 3 francos para os do
en.wikipedia.org/wiki/
sexo masculino e 5 francos para os do sexo feminino; aluguel de manequins e costumes -
Victor_Meirelles, aces-
so em janeiro de 2015.. 360 francos; despesas já feitas 307, a serem realizadas 753 francos.

Sabemos, assim, algo sobre o ateliê onde foi produzida a


pintura que levou o primeiro artista brasileiro a participar
do Salão de Paris. E pelo que vimos na citação acima,12 foi
um lugar movimentado. Mesmo assim, não temos, até os
dias de hoje, conhecimento de qualquer evidência visual
do lugar onde a obra mais famosa de Victor Meirelles
foi produzida. Não é no minimo curioso isso? E não foi
por falta de fotógrafo. Até janeiro de 2015, o retrato da
Figura 5 a seguir não era conhecido; está desde então
em domínio público. Foi uma boa surpresa encontrar
esse novo retrato de Victor, então com 28 anos. Podemos
pensar que o fotógrafo foi especialmente para a capital da
França com o objetivo de fotografar o autor da pintura
Primeira Missa no Brasil, a primeira a figurar no Salão de
Paris? Em 1860, quando Victor estava em Paris, o autor
do retrato, Joaquim Insley Pacheco, era fotógrafo da
Corte no Rio de Janeiro. Vemos que é um retrato formal,
muito parecido com os outros que conhecemos. São todos
assim, de meio corpo e sempre mostrando uma discreta

10 FRANZ, Teresinha Sueli. Op. cit. 2014. 


11  PROENÇA ROSA, Angelo; PEIXOTO, Elza Ramos. Biografia. In: PROENÇA ROSA. Angelo et al. Victor Meirelles
de Lima 1832-1903. Rio de Janeiro:Pinakotheke, 1982. p. 30-33.
12  Id. Ibd. p. 27-50.

316
maneira de posar e de vestir. Não conheço fotografias dele ou com outros artistas, em
ambientes de ensino ou de trabalho em seu ateliê.

Endereços de Victor Meirelles no Rio de Janeiro

De volta ao Rio de Janeiro, após sua longa viagem de estudos, vamos a outro ateliê
citado.13 Agora se trata de um espaço para a produção de duas grandes telas a óleo:
Passagem de Humaitá (1868-1872) e Combate Naval de Riachuelo (1868-1872). Victor
Meirelles ajustara por 16:000$000 os valores dos dois quadros com o Ministro da
Marinha, Afonso Celso de Assis Figueiredo. Depois de fazer estudos no local da
guerra, onde permaneceu por dois meses embarcado no navio Capitânea, com a
comissão do Governo Imperial, voltou ao Rio de Janeiro, tendo em mãos preciosos
croquis e estudos dos mais variados. Devidamente documentado, com apontamentos,
desenhos preparatórios e o imaginário da guerra na retina, “deu mãos à obra nos dois
grandes painéis [...] pintados no ateliê improvisado em uma sala do Convento de
Santo Antônio, no Largo da Carioca no Rio de Janeiro, espaço alugado pelo Governo
Imperial.” Durante a produção dos dois grandes quadros, Victor recebeu, no ateliê do
convento, a visita de D. Pedro II, pois, como é sabido, o Imperador de tudo queria se
inteirar e dar palpites.

Em outro ateliê, o soberano agiu do mesmo modo. E dessa vez acompanhado de sua
augusta família. Quem conta é Elza Ramos Peixoto:14 diz a autora que o próprio Victor
Meirellles deixou registrado nos preciosos folhetos explicativos sobre o Panorama do
Rio de Janeiro, que iniciou os estudos para eles, em 1885, e queterminados os croquis,
estes foram vistos pelo Imperador D. Pedro II e sua família, além de outras pessoas de
distinção, em seu antigo ateliê na Rua do Sacramento.

Esses estudos, depois de vistos por ilustres pessoas da Corte, foram levados para a
Bélgica, na cidade de Ostende, para onde Victor partiu no final de 1886, acompanhado
de sua esposa Rozália Meirelles de Lima, com quem acabara de contrair matrimônio.
Em Ostende havia espaço/ateliê adequado e os materiais para a execução da grande
obra, além do colaborador Henri Languerock, que era então membro correspondente
da Academia Imperial de Belas Artes.

No registro de casamento de Victor com Rozália, em 23 de dezembro de 1886, consta o


endereço dos noivos, sendo o dele na Freguezia do Sacramento. Ali, como disse antes,
viviam parentes paternos, como o primo João Moreira da Costa Lima, que anunciava
diferentes eventos religiosos de seus familiares na Igreja do Santíssimo Sacramento,
o que leva a crer que moravam no entorno. Li anúncios de batismos, casamentos,
missas de sétimo dia, entre outros. Por isso, pode ser que esse ateliê fosse até mais
antigo, quem sabe anterior à sua viagem como bolsista da Academia Imperial.

Lemos no Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, na relação


dos professores da Imperial Academia de Belas Artes, diferentes endereços de Victor
13  MELLO JUNIOR, Donato. Temas Históricos. In: PROENÇA ROSA, Angelo et al.Victor Meirelles de Lima 1832-
1903. Rio de Janeiro: Pinakotheke,1982. p. 55-102.
14  PEIXOTO, Elza Ramos. Panoramas. In: PROENÇA ROSA, Angelo et al. Victor Meirelles de Lima1832-1903. Rio
de Janeiro: Pinakotheke, 1982,p. 103-116.

317
Meirelles ao longo de sua vida na capital, como a Rua do Costa, 2º andar, em 1863,
Botafogo; em 1874, Rua do Matoso; em 1875, Rua do Lavradio; em 1881, Travessa das
Bellas Artes, n.º 1 - 3.º andar. Entre 1865 e 1867, ele cita também como seu endereço
o Largo de São Joaquim, 148. Nessa mesma rua, no número 66, o artista lecionava
Desenho de Figura, à noite, no Liceu de Artes e Ofícios. O Almanack Laemmert do
ano de 1879, cita três endereços do pintor Victor Meirelles de Lima: Morro da Viúva,
Praia do Flamengo, 80, e Rua da Guarda Velha, 3. Será que isso quer dizer que ele
retratou alguém, ou fez algum estudo de paisagem nesses três endereços? Sabe-se por
Brasil Gerson que Victor Meirelles teve um ateliê na Rua São Januário, na Freguesia
de São Cristóvão. Ou, como diz o autor acima, na Cristóvão Imperial. Nos anos de
1870, 1871, 1872 e 1873, segundo o Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do
Rio de Janeiro, esse era o endereço do ateliê de Victor. O nome de Victor Meirelles de
Lima consta numa lista de votantes no Diário de Notícias do Rio de Janeiro de 18 de
janeiro de1877, indicando como seu endereço a Praia de São Cristóvão, n.º 10. Seria
esse o endereço da mãe e do irmão de Victor? Tanto Maria da Conceição, quanto
seu irmão, tio de Victor, João José da Ribeiro de Almeida (Desterro 1832–RJ 1889),
faleceram naquela Freguesia, ambos em 1889. E foram sepultados no cemitério de São
Francisco Xavier, o Caju. A rua da Praia de São Cristóvão, segundo Brasil Gerson,15
mesmo depois de afastada da praia pelos aterros, seguia sendo chamada de Praia de
São Cristóvão. Ela “foi-se transformando num dos bairros mais populosos do Rio, a
crescer por todos os lados,”16 disse o autor citado.

Outro ateliê de que se tem notícia é o barracão construído em terreno do exército, no


Campo da Aclamação, entre a Casa da Moeda e o Senado.17 Ali, munido de centenas
de estudos (desenhados a tinta, lápis, carvão e giz, a óleo) da complexa composição
feita em Pernambuco, no local onde ocorreu o episódio, pintou sua Primeira Batalha
dos Guararapes (1879). Iniciou essa pintura em 1874 e assinou, dando por concluída
no início de 1879.

Em Paris, Victor volta a alugar um ateliê no Boulevar Vaugisard nos anos de 1882-
1883,18 para produzir a réplica do Combate Naval do Riachuelo (1868-1872), pois o
original foi totalmente deteriorado no retorno de uma viagem de navio da Filadélfia
em 1877, onde participara de uma exposição. Os inúmeros estudos e croquis que
havia feito para a primeira pintura asseguraram-lhe a repetição do cenário da guerra.

Sabemos que muitos artistas dos oitocentos tinham um ateliê na própria residência. E
há outros endereços citados no Almanak Mercantil e Industrial. Mas um deles chamou
mais minha atenção, por uma questão que meu livro recente revela.19 No ano de 1880,
sob o título de “Pintores de Paisagens e Retratistas” do Rio de Janeiro, o nome de Victor
Meirelles vem acompanhado de duas indicações de endereço: Rua da Guarda Velha,
3, e Rua do Riachuelo, 168. O último endereço está relacionado a um acontecimento
importante na vida de Victor. Em março de 1880, faleceu Flávia Minervina Mendes
15  GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Brasiliana, 1965, p. 227.
16  Ibid., p. 215.
17  MELLO JUNIOR, Donato. Op. cit., 1982.
18 Ibid.
19  FRANZ, 2014.

318
de Oliveira, o grande amor da Figura 6 - Victor Mei-
relles de Lima (1832-
vida dele. Segundo o atestado 1903), A Morta, 1880.
de óbito de Flávia, obtido para o Óleo sobre tela, 50,4
livro citado, ela era moradora da x 61,2 cm. Museu
Victor Meirelles.
Rua do Riachuelo, 168, na data Fonte: FRANZ, Te-
em que faleceu de tuberculose. resinha Sueli. Victor
Se Victor deu esse endereço Meirelles: biografia e
legado artístico. Flo-
para os clientes que desejavam rianópolis: Caminho
fazer uma encomenda de retrato de Dentro Edições,
ou paisagem, pode significar 2014., p. 136-145.
que estava morando com sua
amada, ou cuidando dela, e que,
improvisado ou não, ali teve
um ateliê. Ela faleceu naquele
endereço em 15 de março daquele ano.

Na Rua do Riachuelo, 168, pode ter feito alguns retratos conhecidos nossos. Um deles
é a pintura A Morta (1880) [Figura 6], que se encontra entre as coleções do Museu
Victor Meirelles em Florianópolis, obra que, assim como já disse Argeu Guimarães e Figura 7- Victor Mei-
sugeriu Carlos Rubens,20 representa Flávia no leito de morte. Essa obra vem chamando relles de Lima (1832-
1903), Cabeça de Mu-
a atenção de diversos pesquisadores, muitos sobre ela escreveram. Depois da pesquisa lher, s/d. Óleo sobre
por nós publicada, a obra tem data e e seu modelo atestado de óbito, endereço onde tela, 54,6 x 45,5 cm.
viveu seus últimos dias, além de outras quatro obras a ela relacionadas. Museu Victor Meirel-
les. Fonte: FRANZ,
Nesse endereço, além de A Morta, Victor pode ter produzido também os retratos do Teresinha Sueli. Vic-
tor Meirelles: biogra-
médico que cuidou de Flávia, assim como da esposa dele. São obras que fazem parte fia e legado artístico.
das coleções do MNBA/RJ.21 A importância de Flávia na vida do artista aumenta Florianópolis: Cami-
quando descobrimos que ele comprou um carneiro perpétuo para ela no Cemitério nho de Dentro Edi-
ções, 2014., p. 143.
do Catumbi/RJ. Para onde seu corpo foi transladado em 1885,
depois de passados cinco anos, sepultada em carneiro arrendado
no mesmo cemitério da Ordem dos Mínimos. Na data da compra,
Victor deixou registrada sua vontade de que ali também ele fosse
sepultado. E assim o foi em fevereiro de 1903. Sua esposa Rozália,
que faleceu no mesmo ano, foi levada ao Cemitério São João
Batista.

Encontramos um retrato no acervo do Museu Victor Meirelles


que parece ter sido produzido algum tempo antes de 1880 [Figura
7]. Apesar de nunca ter visto essa pintura ser relacionada com
a personagem da pintura A Morta, vejo que se trata da mesma
mulher, ainda jovem e principalmente sem os traços da terrível
doença que a levou à morte. Essa pintura com o título vago de
Cabeça de mulher, sem data, parece ser Flávia retratada pelo seu
amado pintor. O modo de posar com uma roupa transparente,
20  RUBENS, Carlos .Vítor Meireles, Sua vida e sua obra. Imprensa Nacional, 1945.
21  FRANZ, Op.cit. p.146-147.

319
que lhe cai sobre um ombro, deixando
Figura 8 - Victor Meirel-
les de Lima (1832-1903),
entrever um seio por entre as dobras da
Cabeça de Mulher, c.
1856. Óleo sobre papel, vestimenta, não sugere uma cena íntima?
55,4 x 41 cm. Museu Comparando esse retrato com outros que
Nacional de Belas Artes.
Victor fez de mulheres da época, como
Fonte: Victor Meirel-
les: biografia e legado o da esposa do médico que cuidou de
Flávia quando esteve doente, fica claro
artístico. Florianópolis:
Caminho de Dentro Edi-
que este não é apenas mais um retrato de
ções, 2014, p. 125.
uma dama rica do seu tempo. E porque se
intitula apenas Cabeça de mulher? Porque
não tem uma data? Tudo leva a crer que,
após a morte de sua amada, essa pintura,
assim como A Morta, estava no acervo
privado do artista e no final de sua vida
Figura 9 - Victor Mei- constavam no espólio.
relles de Lima (1832-
1903), Cabeça de ho- Durante a longa pesquisa publicada, como
mem, c. 1856. Óleo s/ disse antes, identifiquei um retrato que
tela, 59,7 x 49,7 cm.
Museu Nacional de Be-
pode ser de Maria da Conceição (Vila de
las Artes. Fonte: Victor Desterro, 1817-RJ, 1889), mãe de Victor Meirelles [Figura 8]. Era ela filha de João José
Meirelles: biografia e da Rosa, que veio de Lisboa, e Arminha Constança de Jesus, neta do soldado Felipe de
legado artístico. Flo-
rianópolis: Caminho
Souza Fernandez e de Maria Eugênia Rosa, bisneta materna de Manoel Ramos Nunes
de Dentro Edições, e Perpétua Rosa, descendentes das ilhas dos Açores. Maria da Conceição foi para o Rio
2014., p. 155 . de Janeiro na década de sessenta dos oitocentos, onde morou até a sua morte em 1889.
Segundo pesquisas realizadas pelo historiador Carlos
Humberto Corrêa, as mulheres casadas de Desterro
do tempo de Maria da Conceição usavam esse tipo de
vestimenta. Roupas escuras, discretas. Não vejo outro
modo de explicar esse retrato de Victor Meirelles.
Quando ela se casou com Antonio Meirelles de Lima,
tinha acabado de completar 14 anos, e o noivo, 43
anos. No ano seguinte, nasceu seu primogênito Victor.
Como sugere Guimarães,22 este esboçou o retrato
antes de sua ida para a Europa, em 1853, e completou
a pintura já naquele continente. Essa é mais uma das
obras que, penso, constavam no seu acervo particular,
e que ficaram em meio ao espólio do artista, no seu
último ateliê.

Há um retrato masculino no acervo do Museu Nacional


de Belas Artes/RJque parece ser de Virgílio Meirelles
de Lima (Desterro, 1851-RJ, 1897) [Figura 9], o único
irmão de Victor, que ainda menino foi morar com a
mãe no Rio de Janeiro após o falecimento do pai, em

22 Op.cit.

320
Desterro. Foi Estacionário dos Telégrafos na década de setenta dos oitocentos, na
Estação Central do Rio de Janeiro (1873-1879) e Estação de Pelotas e Rio Grande/RS
(1875). Podemos datar a pintura cerca de 1876, quando volta do Rio Grande do Sul,
com características culturais da vestimenta dos gaúchos. O único irmão de Victor
faleceu aos 46 anos no RJ.

No último endereço residencial de Victor Meirelles, um surprendente achado: o


último ateliê do artista

O último endereço residencial de Victor Meirelles de Lima e sua esposa, dona Rozália,
foi a casa geminada (com mesma fachada) da Rua Benjamim Constant, números 30 Figura 10 - Fachada da
e 32, [Figura 10] sendo sua moradia a residência n.º 30. Erroneamente, eu entendia casa (geminada) de nú-
que a última moradia do pintor, que esteve abandonada até há pouco tempo, fosse meros 30 e 32 da Rua
Benjamim Constant no
hoje tombada pelo IPHAN. No entanto, depois de realizar pesquisa mais apurada nas Bairro da Glória/RJ. Ali
diferentes instâncias daquele Instituto (nacional e estadual), vi que lá nada consta residiu o pintor Victor
sobre essa casa. Com a ajuda de um funcionário do Instituto Rio Patrimônio da Meirelles de Lima e sua
esposa Rozália desde os
Humanidade (IRPH), órgão ligado à Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, constatei últimos anos do século
que o imóvel situado na Rua Benjamin Constant n.º 30 e 32, no bairro da Glória, é XIX até sua morte em
um bem “Preservado.” A regulamentação dessa condição deu-se pelos Decretos n. 1903. Disponível em:
www.riodejaneiroaqui.
25.693, de 23 de agosto de 2005, e n. 28.222, de 26 de julho de 2007.23 Disse-me uma com
funcionária do IRPH que a diferença principal
entre essas duas categorias ocorre porque o
tombamento é individual, e a preservação pela
área onde o imóvel está localizado, sendo o status
o mesmo. A residência em questão faz parte do
Rio Antigo, encontrando-se próximo a três bens
tombados: a Igreja do Sagrado Coração de Jesus, a
Igreja Positivista do Brasil e o Palácio São Joaquim,
assim como no entorno de outros imóveis e
áreas públicas igualmente preservadas. Lendo os
decretos acima citados, é possível entender melhor
a questão. Neles, vemos que entre os imóveis de
número par da rua Benjamim Constant constam
os de número 30 e 32. Ambos correspondem à
casa geminada onde morou Victor com sua esposa
Rozália, na última década dos oitocentos até sua
morte, em 1903.

No Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro


(AGCRJ), na Subgerência de Documentação
Escrita, foram localizados dois documentos que
ajudam a elucidar a relação de Victor Meirelles
com a morada de número 30 da Rua Benjamin
Constant, no antigo Bairro da Glória. Na fachada
23  Links para os decretos citados: http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/pastas/legislacao/catete_dec25693_apac_cate-
te.pdf e http://www0.rio.rj.gov.br/patrimonio/pastas/legislacao/catete_dec28222_07_apac_catete.pdf.

321
da casa (30 e 32), vemos que há duas grandes portas
de entrada, uma em cada extremo. Cada qual levava
a uma residência. Os documentos encontrados no
arquivo citado acima deixam mais clara a questão.
No primeiro deles, sob o códice de licença para obras
209, página 179, 1895, sob a referência de José da
Silva Cardoso, lê-se o seguinte texto:

José da Silva Cardoso querendo concluir o prédio nº 30 – B


da Rua Benjamim Constant da Freguesia da Glória, obra
esta que tive de passar por ter seu proprietário falecido,
o Sr. Guezio Machado e hoje pertence a viúva do mesmo
Machado e como o que tinha de fazer só consiste em acertar
algumas portas e rebocos e forro na entrada e pintura,
assim vem pedir que se digne ordenar que lhe seja passada
a referida licença. 24 de abril de 1895.

Sabemos assim que, em 1895, a numeração das


residências era 30 A e 30 B, sendo essa última de
outro proprietário. Vamos ao segundo documento
da mesma Superintendência e do mesmo arquivo
- do catálogo de plantas - referente ao endereço da
Rua Benjamim Constant 30 A, em que encontramos
a planta de um ateliê de pintura [Figura 11]. No
centro da folha e acima do desenho está escrito:
Figura 11 - Planta do “ATELIER DE PINTURA – A construir nos fundos do prédio de n.º 30 A, da Rua
Ateliê à Rua Benjamin
Constant. Fonte: Ar- Benjamim Constant – Capital.” À direita na mesma folha, vemos a planta da fachada
quivo Geral da Cidade do ateliê, e à esquerda, “Corte sobre CD.” Abaixo, no meio da folha, temos o desenho
do Rio de Janeiro. da “escala da planta,” em que lemos que o ateliê teria quatro metros de frente e oito de
fundos. Vemos o desenho de uma escadaria na frente e outra nos fundos. Três selos
à esquerda, subscritos como “Aprovado” - Rio, 30-7-97, e uma assinatura que parece
ser de Araújo Gondin. Há outra inscrição próximo a planta do ateliê: L. Berna, Julho
de 1897. A edificação tem um pouco mais que oito metros de altura e está dividida
em: térreo 2,20 m de altura; espaço para depósito de telas, tintas e escadas 2,00 m -
lembrando que Victor usava escadas em suas obras de grandes dimensões); espaço
para o ateliê 4,00 m, e mais ou menos 1,00 m para o telhado. A parte frontal da planta
apresenta duas janelas e uma porta de entrada para o segundo piso. Possivelmente,
havia uma escada interna que levava ao espaço do ateliê, no segundo piso Ou seria
apenas a escada de trás do prédio levava ao ateliê do artista? Segundo a funcionária
que me atendeu no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, quando havia uma
edificação nos fundos de outra, como é o caso do ateliê de Victor, geralmente ela era
numerada depois de pronta com o mesmo número da residência da frente, acrescido
da letra F (de fundos). Pode ser, então, que o ateliê de Victor recebesse na época o
número 30 F. Chama especialmente a atenção o projeto do telhado.

322
Uma vez que sabemos que
os pintores do tempo de
Victor Meirelles necessitavam
de luz natural no espaço
de produção, entendemos
que, na cúpula do ateliê, o
desenho sugere a presença de
uma claraboia. Há também a
representação de uma série de
janelas pequenas próximas ao
telhado. Figura 11a e 11b -
Detalhes do forro do
Entre 2001 e 2004, tudo foi vendido pela Companhia Editora Nacional para a atual último ateliê de Victor
proprietária, a senhora Déborah Colker, que mantém ali o Centro de Movimento Meirelles, restaura-
Deborah Colker (CMDC). Lemos no site da companhia de dança,24 que o CMDC do e adaptado para a
CMDC. Daí podemos
ocupa três casarões, sendo um deles a antiga residência do pintor Victor Meirelles. ver que havia uma cla-
Diz ainda que o local foi completamente restaurado para a CMDC, preservando a raboia no teto e que o
fachada típica do Segundo Reinado. Na porta, mantém-se uma placa como referência ateliê de Victor Mei-
relles foi projetado
ao artista e alusão ao histórico do espaço, cuja construção data de 1893. para receber luz na-
tural. Fonte: Disponí-
A restauração e adequação do espaço foi levada a cabo pelo escritório carioca Archi 5, vel em: www.archi 5.
para abrigar a sede da companhia de dança. No referido site, lemos que “a construção com.br
que no passado foi residência do pintor Victor Meirelles é uma agradável surpresa
em meio ao desordenado entorno. Sua fachada, de pouco mais de oito metros de
largura, delimita um amplo terreno, em forma de L, que se abre para uma vila aos
fundos.”25 Do sobrado oitocentista, mantiveram-se apenas as paredes externas e a
divisória central, com suas paredes de tijolos maciços sobre uma base de pedras:
“As peças do telhado, os caixilhos frontais, e até as lajes dos pavimentos superiores
foram completamente refeitos.” No entanto, informam os arquitetos, que a identidade
do imóvel foi preservada, e a linguagem dos interiores foi recriada e adaptada às
demandas da companhia de dança em questão.

Sobre o dito “casarão” nos fundos da residência de número 30, dizem os arquitetos no
mesmo site que, “com linguagem de galpão, a construção nos fundos do lote abriga
o espaço de ensaio da companhia de dança. Ele é caracterizado pelo elevado pé-
direito - da ordem de oito metros - e pela cobertura metálica com sheds transversais”
[Figura 11a e 11b].

A restauração e adaptação para a companhia de dança ocorreu entre 2003 e 2005.


O total da área do terreno é de 582,70 metros quadrados e da área construída é de
1.167 metros quadrados. Mas a surpresa que minha última pesquisa revela é sobre a
edificação (que chamam de casarão) que fica atrás da residência do artista, de número
30. Na única vez que consegui trocar por telefone algumas palavras com um dos
sócios da CMDC, ele contou-me que participou da compra dos “três casarões,” sendo

24  Site do Centro de Movimento Deborah Colker (CMDC): www.cmdc.art.br


25  Site do Archi 5: www.archi5.com.br

323
um deles o que consta aos fundos da residência 30. Seriam os outros dois as duas
moradas geminadas, com a única parede frontal? Informei, então, que o casarão dos
fundos é o último ateliê de Victor Meirelles. E que, como estava escrevendo um artigo
sobre esse espaço e o que constava nele quando o artista faleceu, necessitava que a
CMDC enviasse fotos, de preferência anteriores à reforma, para que os pesquisadores
de arte sobre o século XIX tivessem uma ideia de como era o ateliê. Depois de insistir
quase dois meses sem ser atendida, decidi adiar essa questão. Somente em dezembro
de 2016, conforme vemos nas últimas imagens desse texto [Figura 12a e 12b], uma
amiga que mora no Rio de Janeiro enviou-me fotos atuais do ateliê, que publico nesse
artigo. Elas confirmam a existência atual do ateliê, com a claraboia.

Em todo o caso, esse achado é surpreendente! Passados tantos anos do seu falecimento,
encontramos um legítimo ateliê de um artista da segunda geração de alunos da
Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. Mas porque o último ateliê do
autor da mais popular tela de pintura histórica brasileira, a Primeira Missa no Brasil
(1860), ficou todo esse tempo no anonimato? Conservar como patrimônio histórico
seu último ateliê me parece importante demais! E sequer é tombado? Temos a planta
do ateliê, como o artista a concebeu, e imagens atuais de partes do forro, que indicam
existir ali uma claraboia, e também outros elementos para iluminação natural, detalhe
importante de um legítimo ateliê de pintura do século XIX. E no final do ano de
2016, conseguimos fotos que comprovam que ele ainda existe, e hoje pertence a uma
companhia de dança nacional.

Se, em 1897, o artista construiu esse ateliê nos fundos de sua residência, há muitas
perguntas que ficam no ar. Na nossa investigação publicada, vemos que Victor e seu
irmão Virgílio venderam por procuração o sobrado onde nasceu o artista. Dois anos
antes, a cidade natal de Victor, Desterro, mudara de nome, para Florianópolis, em
homenagem ao republicano Floriano Peixoto. Esse foi o último imóvel da família
na capital de Santa Catarina a ser vendido, em 1896, por procuração em nome do
Comendador Victor Meirelles de Lima e sua esposa Rozália, e do irmão Virgilio.
Podemos entender que até a decisão de construir esse seu último ateliê na Rua

FIGURA 12a e 12b -


Duas imagem do úl-
timo ateliê de Victor
Meirelles, 2016. Fotos:
Sue Wolter Vianna.

324
Benjamin Constant 30 (fundos), na Glória, Rio de Janeiro, Victor e Virgílio guardavam
o sobrado onde nasceu o artista em 1832 para um possível museu em seu nome? Nesse
caso, depois da construção de seu último ateliê, já não fazia sentido mantê-lo? Afinal,
que planos tinha o artista para a construção de seu último ateliê, além de seguir
produzindo após o jubilamento da ENBA? Teria pensado em deixar esse espaço com
seu precioso acervo particular exposto para a posterioridade? Se ele fez esse tipo de
plano, pode ser que apenas sua esposa Rozália o conhecesse bem. E essa pode ser a
justificativa para o testamento que fez em julho de 1899, instituindo-a sua única e
universal herdeira dos bens que porventura possuísse na ocasião do seu falecimento,
“dando por abonada, tanto em juízo como fora dele.”26 O pintor, que não teve filhos
legítimos, não tinha outros herdeiros. Como disse antes, seu único irmão falecera
apenas um ano após a venda do sobrado que ambos herdaram do avô materno na Ilha
de Santa Catarina.

Pelas datas, podemos saber que nesse ateliê Victor trabalhou na produção da pintura
Invocação a Nossa Senhora do Carmo (1989). Pode ter produzido também ali os
estudos para o seu último Panorama do Descobrimento do Brasil (1900) no quarto
centenário daquele evento, trabalho que lhe deu desgostos e dívidas: como tantos
disseram, depois dele a sua vida mudou para pior. E quem sabe a partir dali os planos
em relação ao seu ateliê também. Não tendo mais nenhum parente próximo na data de
seu falecimento e como sua esposa faleceu nove meses mais tarde, começo a entender
porque seu último ateliê ficou no esquecimento, junto com os planos que o casal
possivelmente teve ao construí-lo. Aqueles eram os primeiros anos da República, que,
para afirmar-se, negou tudo o que vinha da Monarquia. Desde 1847, quando Victor
passou a ser estudante de Belas Artes da AIBA, e depois com suas grandes obras
históricas como artista da Corte, ou quando foi professor da mesma AIBA e do Liceu
de Artes e Ofícios, onde criou e aplicou métodos de desenho que ajudaram a formar
outros ilustres artistas e artífices do seu tempo, viveu profundamente o período
monárquico. Comprometido e laborioso, contribuiu para a construção do projeto de
construção da identidade nacional ao lado de intelectuais da Corte, com os grandes
de seu tempo. Um tempo que, tal qual o presente, há de ser visto de forma crítica, mas
nunca desconsiderado. O esquecimento da existência do último lugar de produção
da obra de Victor Meirelles é lamentável, porque o ateliê do artista constitui-se um
espaço privilegiado para compreensão dos processos de produção da arte do Brasil
do século XIX.

Tantos anos após a morte do artista, ainda cabem as palavras de Béthencourt da Silva
(1831-1911), arquiteto, professor e educador brasileiro, que conviveu com Victor
Meirelles na Academia Imperial de Belas Artes desde 1847 e depois no Liceu de Artes
e Ofícios, de quem recebeu o título de “o senhor de desenho.” Para ele “a Victor
Meirelles cabe, sobre todos, uma grande honra, um triunfo imorredouro: ninguém
nas belas artes, entre nós, ainda fez mais, nem tanto.”27 E não é esse, por si só, um bom
motivo para que seu último ateliê saia do anonimato?
26  FRANZ,2014, p. 164-166.
27  BIELINSKI, Alba Carneiro. “O ‘senhor do desenho’ no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro. In: TURAZZI,
Maria Inez (org). Victor Meirelles: novas leituras. São Paulo: Studio Nobel, 2009. p.79-93.

325
Na tentativa de compreender hoje porque Victor Meirelles chegou ao final da vida
tão desolado a ponto de ter o que foi o último espaço de trabalho esquecido, recorro
a outro grande pintor brasileiro um pouco mais jovem que Victor, Antonio Diogo
da Silva Parreiras (Niterói, 20 de janeiro de 1860–Niterói, 17 de outubro de 1937).
Ele que nasceu no ano em que a Primeira Missa no Brasil, de Victor Meirelles, foi
finalizada em Paris, portanto, 28 anos após o pintor catarinense, deixou-nos um raro
registro de quem conheceu Victor pessoalmente. Parreiras, em História de um Pintor
- contada por ele mesmo,28 comenta que aos domingos Victor o visitava em seu ateliê.
E desses encontros ele faz relatos que nos esclarecem um pouco sobre a discreta vida
daquele artista. Em 1932, Parreiras fez um pronunciamento na Academia Fluminense
de Letras, no centenário de nascimento do falecido amigo. Transcrevo a seguir uma
parte da fala dele, que me parece alucidativa para compreendermos melhor o ser
humano, além do artista:

No físico, quando pela primeira vez o vi, era um moço bonito, de cabelos anelados, de
fisionomia expressiva, de olhos claros e de estatura pequena. Quando o vi pela última
vez ele já se ia...Os cabelos muito brancos, emaranhados, longos, contornavam-lhe a
fisionomia pálida e desfeita. Os olhos conservavam a mesma expressão meiga e bondosa.
As mãos já frias que carinhosamente entre as minhas mantinha, tinham o mesmo esmerado
trato. No moral era uma simples criatura, de ingenuidade infantil. Altruísta, como jamais
encontrei, pois até da glória, esse tesouro inestimável, desprendia-se facilmente, para
repartir com outros, ensinando-lhes sem reservas, os meios de alcançá-la. [...] mestre de
competência rara, julgava-se sempre um discípulo.29

Contam os poucos amigos que o visitaram no últimos anos de vida, entre eles Eduardo
de Sá e Antonio Parreiras, na Rua Bemjamin Constant, número 30, que as paredes
de sua casa estavam repletas de alto a baixo de óleos, aquarelas, desenhos e esboços,
pendurados em desordem, provas de anos e anos de trabalho. Infelizmente não foi
feito um inventário dos bens móveis que ficaram nessa casa após a morte de Meirelles.
Do que Victor deixou, segundo Argeu Guimarães,30 da coleção doméstica constavam:

O tocador de sanfona, a Degolação de São João, uma Rua do Rio de Janeiro, que Donato
Mello provou ser, de fato, uma Rua do Desterro [...] incluem-se ainda uma paisagem,
e Morta a óleo, e aquarelas. Estudos de Cabeça, do Tiradentes, de Felipe Camarão, de
Moema. Esboços do Panorama do Descobrimento, da cidade do Rio de Janeiro, uma
centena de estudos de trajes, aquarelas com estudos de nuvens, e muitas outras não
arroladas, barrancos do Paraguai, esboços de retratos, apontamentos de paisagens restos
díspares e isolados de um pincel incansável.

Depois de expor à indiferença pública aquele precioso legado, segue Guimarães dizendo
que Henrique Bernardelli mandou recolhê-lo a um verdadeiro esconderijo. Somente
meio século depois cessaria o que ele chamou de terrível sequestro. E como disse,
foi Donato Mello Junior que salvou essas relíquias da perda total. Alguns decênios
depois da morte de Victor, o próprio Argeu Guimarães testemunhou que o precioso
28  PARREIRAS, Antonio. História de um pintor: contada por ele mesmo. 3ª edição. Niterói: Niterói Livros, 1999.
29  Id.Ibid.p. 185-209
30  GUIMARÃES, Op.cit. p. 146

326
legado artístico que Victor deixou no seu último endereço estava quase imprestável.
Foi quando Donato tomou para si a restauração desse legado, ultrapassando o número
de trezentas obras recuperadas na ENBA/RJ.

Sobre o mestre, como respeitosamente Parreiras o chamava, conta que nos passeios de
domingo ao seu ateliê, surgia o professor. Victor pedia para ver o que ele havia feito
durante a semana e o orientava sobre como seguir o trabalho, como disse,“com seus
vastíssimos conhecimentos teórico e técnicos.” E que certo dia mostrou ao mestre
uma numerosa coleção de “estudos” de figuras e paisagens, ao que Victor respondera:
“Aí tens fartos e variados elementos para quadros históricos, porque não os pinta?”

[...] Segui seus conselhos e suas lições. O que ele fez comigo, fez com todos os artistas moços
que dele tiveram a felicidade de se aproximar. Mas desgraçadamente entre eles, houve
muitos de remarcável ingratidão. Quando puderam caminhar sozinhos esqueceram-se
de tudo. Apredrejaram-no. Abandonaram-o. Por ter os cabelos brancos, afastaram-no do
ensino artístico oficial, esquecendo que uma das melhores obras de Ticiano executou-a
ele quando tinha noventa e três anos de idade [...] começou então para Victor Meirelles
essa luta que surge invariavelmente sem discrepância no fim da vida de um artista, sob a
pressão esmagadora das exigências materiais.31

Desse modo, podemos compreender um pouco melhor a tão falada fragilidade


em que o artista catarinense se encontrava ao final da vida. Entendemos melhor o
abandono em que ficou seu último ateliê. Sabemos que o autor da Primeira Missa
estava empobrecido e doente. Havia gasto somas altíssimas com os panoramas e pouco
retorno financeiro obteve. Lembrando que no século XIX todo material artístico era
importado. Os panoramas exigiram a compra de metros e metros de telas apropriadas,
vindas da Europa, assim como enorme quantidade de tintas e aluguéis de espaço para
a produção. O sistema artístico (crítica, museus, galerias, instituições de ensino da
arte, mercado de arte) também era frágil. Tudo estava sendo construído no século
XIX. Victor foi também vítima daquele contexto.

Passado o período monárquico, com as mudanças no ensino artístico da academia,


que se queria moderno, Victor foi cruelmente criticado por algumas pessoas da
imprensa, convencidas de que o ensino artístico estava sendo prejudicado pelos
velhos professores da academia.

O frágil sistema artístico nacional não tinha consciência da importância de manter


os antigos artistas ao lado dos novos. Em 1861, Victor Meirelles foi o primeiro artista
brasileiro a trazer uma “obra-prima” para as galerias da Academia Imperial de Belas
Artes, a qual, depois de ser consagrada no salão em Paris, serviu de inspiração para os
artistas que ajudou a formar. Entre eles muitos dos grandes do seu tempo.

Victor seguiu as regras do ensino artístico que então se exigia. “Da qual não se podia
afastar o mestre sob pena de sair de sua época.” É isso que afirmo e que também
segundo Parreiras sempre foi tão dificil compreender. E segue:

31  PARREIRAS, Op.cit.p. 190-191

327
Abatido pelo sofrimento físico e moral, lutas, desgostos, privações, meu mestre de dia para
dia se foi definhando. Ficava cada vez mais pequeno. A cabeça era um fofo punhado de
neve. Sentindo-se morrer ofereceu à Patria os seus dois Panoramas, calvário pedregoso
por ele galgado com imenso esforço. Aceitaram-nos. Era de graça! Prometeram instalá-
los na Quinta da Boa Vista. Para lá foram conduzidos. Havia um brejal. Sobre a terra
encharcada colocaram-os enrolados como estavam. Puseram em cima dos rolos pedaços
velhos de zinco. Lá ficaram. E lá se fizeram em pedaços. E no pantanal sumiram. Em
lenta agonia, o meu mestre serenamente começou a extinguir-se. Até que afinal num dia
ruidoso de festa carnavalesca [...] ele se foi.32

Se o livro de Parreiras ajuda a compreender o triste final da vida de Victor no início


do século passado, é dificil aceitar o fato de que em pleno século XXI o seu último
ateliê permanece no anonimato: o ateliê do autor da Primeira Missa no Brasil, uma
das mais importantes obras-primas da pintura nacional. Entendo que obras-primas,
assim como também sustenta Parsons,33 condensam as sensibilidades de uma época
e exprimem plenamente suas tendências e seus ideais. Ao mesmo tempo em que
encarnam os valores de uma comunidade, são inconcebíveis sem essa comunidade.
Nela o artista fez mais do que qualquer pessoa isolada poderia fazer: serviu-se das
intuições e das realizações dos outros, conjugando-os de uma nova forma, o que lhe
permitiu falar em nome de toda uma geração.

Não é esse mais um bom motivo para que seu último ateliê saia do anonimato e
finalmente seja tombado como tal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional – IPHAN – e seu acesso permitido aos pesquisadores, estudantes e demais
interessados?

32  Id. Ibd. p. 208.


33  PARSONS, Michel. Compreender arte. Lisboa: Presença, 1992.

328
Ateliês transitórios:
artistas em trânsito

Vera Beatriz Siqueira 1

Peço licença para começar este artigo mencionando uma referência circunstancial
recente sobre o tema dos ateliês, que espero vir a fazer sentido na reflexão sobre
os ateliês em trânsito, que pretendo desenvolver. Trata-se de uma publicação que
andou circulando pelo Facebook, no qual muito da mitologia específica do ateliê
é sintetizada.2 O tal post tinha como título “Na intimidade dos ateliês dos grandes
artistas” e reunia uma série de imagens, acompanhadas pelo texto em espanhol,
originalmente publicado no jornal online chileno El Ciudadano, de 16/03/2015, com
o título 29 Fotografías de estúdios de los grandes artistas:
O ateliê de um artista é o refúgio dos embates do mundo cotidiano. Dentro dessas quatro
paredes, com claraboia, com ou sem janelas, com sacadas, ventilação, ar estancado, com
uma ordem perfeita ou adequada desordem, o artista vive, respira, transpira e sangra.
Imagine por um momento que esteja fechado em um quarto onde viverá até que sua
mente e sua alma te permitam expressar aquilo que oprime suas veias e seus nervos.
Deverá chegar até o limite de suas capacidades físicas e mentais, terá que namorar a
loucura e à morte negar o beijo. Deverá sobreviver a si mesmo e àqueles que te instigam

1  Professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.
2 O post, que me chegou através de compartilhamento no Facebook, foi originalmente publicado no jornal online
chileno El Ciudadano, de 16/03/2015, com o título 29 Fotografías de estúdios de los grandes artistas. Disponível
no link: http://www.elciudadano.cl/2015/03/16/152799/29-fotografias-de-estudios-de-los-grandes-artistas/ Acesso em
28/05/2015.

329
a desistir. Só tem a luz do dia que entra por qualquer canto, a água que apenas lembra de
beber e um bocado de comida que cruza o seu caminho.3

A partir daí, o texto dedica-se a anotar as incríveis diferenças dos ateliês que aparecem
nas fotografias, como a desordem infernal no caso de Francis Bacon ou a austeridade
no estúdio de Hans Hartung. Em ambas as situações, o importante é perceber que
cada artista “possuía hábitos criativos e ferramentas que ajudam a chegar à obra que
sua mente e coração buscam.”

Reunidos aí estão alguns dos mais enraizados lugares-comuns sobre os ateliês, que
parecem fornecer o material necessário para construção de uma mitologia sem riscos.
Mesmo na contemporaneidade, com todas as discussões sobre autoria e atuação dos
artistas fora dos espaços institucionais tradicionais, a imagem mítica do ateliê persiste
como valor cultural. Vejamos brevemente alguns desses clichês:

1. é refúgio, portanto distante do tal mundo cotidiano, abrigando uma atividade especial,
diferente das ações comuns do homem;

2. seja qual for a sua configuração, espelha a ordem (ou a desordem) necessária para a
realização dessa atividade especial;

3. lá o artista vive com mais intensidade: respira, transpira, sangra, chega ao limite de suas
capacidades, namora a loucura e a morte, mal se alimenta, sobrevive a si mesmo apenas
para se dedicar a essa tarefa superior;

4. ali não pode contar com nada nem ninguém, além de si próprio e de suas dúvidas
e hesitações, o que indica que a visão expressiva da arte (também parte do clichê
contemporâneo) encontrou seu lugar no mundo.

É certo que os ateliês acadêmicos possuíam um sentido muitas vezes didáticos, local
de aprendizado artístico. Mas isso não os isentava de participar dessa mitologia.
Ao contrário, na novela de Balzac publicada originalmente em 1831, A obra prima
ignorada, que fala tanto do período do classicismo francês no qual se passa a história,
quanto do século do escritor, amigo pessoal de Délacroix, o jovem Poussin enfrenta
seus medos e dúvidas para subir a escadaria do ateliê do pintor acadêmico Porbus:
Em fins de 1612, numa fria manhã de dezembro, um rapaz, cujo vestuário era de modesta
aparência, passeava em frente à porta de uma casa situada na rue des Grands Augustiniens,
3 “EN LA INTIMIDAD DE LOS ESTUDIOS DE LOS GRANDES ARTISTAS: El estudio de un artista es el refugio de los
embates del mundo cotidiano. Dentro de esas cuatro paredes, con tragaluz, con o sin ventanas, con balcón, ventila-
ción, aire estancado, con un orden perfecto o el desorden idóneo, el artista vive, respira, transpira y sangra. Imagina por
un momento que estás encerrado en un cuarto donde vivirás hasta que tu mente y alma te permitan expresar aquello que
oprime tus venas y tus nervios. Deberás llegar hasta el límite de tus capacidades físicas y mentales, tendrás que coquetearle
a la locura y negarle el beso a la muerte. Deberás sobrevivirte a ti mismo y a aquellos que te instigan a desistir. Sólo tienes a la
luz del día que entra por cualquier recoveco, el agua que recuerdas debes beber y algún bocado que se cruza en tu camino.
En las siguientes fotografías de los grandes maestros del arte se observan estudios tan radicalmente distintos que sor-
prende a propios y extraños. Sin embargo, es entendible que cada uno de los artistas posea diferentes hábitos creativos
y herramientas que le ayuden a llegar a la obra que su mente y corazón buscan. Quizás el estudio de Francis Bacon con
un aparente desorden parezca un infierno para poder trabajar, pero curiosamente cuenta con una gran iluminación
y seguramente, un orden que va más allá de nuestro entendimiento. Caso distinto el de Hans Hartung, quien en aras
del minimalismo y la austeridad, presume un iluminado y espacioso estudio, donde a pesar de las marcas de batalla
artística, el orden impera.”

330
em Paris. Depois de por muito tempo caminhar por aquela rua com a irresolução de um
amante que não ousa apresentar-se em casa da sua primeira conquista, por mais fácil
que ela tivesse sido, acabou por transpor o umbral daquela porta e perguntou se mestre
Francisco Porbus estava em casa. Ante a resposta afirmativa que lhe foi dada por uma
velha entretida em varrer uma sala baixa, o jovem subiu agilmente os degraus, detendo-
se em cada um deles como um cortesão noviço, inquieto pelo acolhimento que lhe faria
o rei. Quando chegou ao alto da escadaria de caracol, ficou um momento no patamar,
hesitando se usaria ou não a grotesca aldrava que ornamentava a porta da oficina onde
devia trabalhar o pintor de Henrique IV, ao qual Maria de Médicis preferiu Rubens.4

A hesitação do rapaz que pretende se apresentar ao mestre transforma o ateliê em


um lugar entre o mágico, o celestial e o demoníaco. Mais adiante, Balzac descreve o
encanto que esse lugar produz em Poussin, também valendo-se das ideias de refúgio,
isolamento, especialidade:
o neófito permanec[eu] sob o encantamento que devem experimentar os pintores
de vocação ante o aspecto do primeiro ateliê que vêem e onde se lhes revelam alguns
dos processos materiais da arte. Uma clarabóia existente no teto iluminava o ateliê de
Porbus. Concentrada sobre uma tela colocada no cavalete e que não fora ainda tocada
senão por três ou quatros traços brancos, a luz não alcançava as negras profundezas dos
cantos daquela vasta peça; entretanto, alguns reflexos perdidos faziam brilhar naquela
sombra pardacenta uma paleta prateada no ventre de uma couraça de retre suspensa
na parede, listavam com um brusco sulco de luz a cornija esculpida e encerada de um
antigo aparador coberto de louças curiosas ou pontilhavam de pingos brilhantes o tecido
granuloso de alguns velhos reposteiros de brocado dourado, de grandes pregas desfeitas,
atirados ali como modelos. Manequins de gesso, fragmentos e bustos de deusas antigas,
amorosamente polidas pelos beijos dos séculos, enchiam as mesinhas e os consolos.
Numerosos esboços, estudos a lápis, a três cores, sanguíneos ou feitos a pena, cobriam as
paredes até o teto. Caixas de tintas, garrafas de óleo e de essência, escabelos caídos não
deixavam senão um caminho estreito para chegar embaixo da auréola projetada pela
clarabóia, cujos raios caíam em cheio no pálido semblante de Porbus e sobre o crânio de
marfim do homem singular.5

A matéria do jornal online chileno, compartilhada em redes sociais, bem como a


descrição minuciosa de Balzac devem nos servir para entendermos, por contraste,
como se construiu a imagem mítica dos ateliês de artistas viajantes e, ao mesmo
tempo, para compreendermos como esta prática interferiu na mitologia geral do
próprio ateliê. Comecemos, então, pela comparação entre essas imagens poéticas de
ateliê e algumas obras de artistas viajantes que remetem ao estúdios fixos e móveis de
que dispunham para seu trabalho.

Inicio então pela pintura de Johann Moritz Rugendas, Casucha del Rey en medio de
Los Andes, albergue de M. Rugendas en su cruce de la cordillera, 1837, óleo sobre cartão
[Figura 1]. Não se trata, a rigor, de um ateliê, e sim de um abrigo para a comitiva de
Rugendas em sua longa peregrinação pelo continente sul-americano. Não era incomum

4  Honoré de BALZAC, A obra prima ignorada (1831). Disponível em: www.ufrgs.br/proin/versao_2/textos/balzac2.


rtf Acesso em 30/09/2015.
5 Idem.

331
que os chamados artistas viajantes
retratassem a si próprios ou a
seus companheiros de viagem nas
paisagens que buscavam estudar e
representar, geralmente realizando
as ações determinadas pela própria
viagem: coletar espécies, registrar
cenas etc. Poderia portanto ter
escolhido outra imagem, dentro
de um quadro bastante amplo de
possibilidades.

Mas neste caso específico,


Rugendas parece construir uma
narrativa bastante significativa que
gostaria de explorar. O seu albergue
Figura 1 - Johann Mo- precário, isolado entre os picos nevados dos Andes, no lugar de simplesmente apontar
ritz Rugendas, Casu- a ausência dos espaços e meios técnicos para o exercício de seu trabalho artístico,
cha del Rey en medio
leva ao paroxismo a própria mitologia do ateliê. O artista realiza essa travessia com
de Los Andes, albergue
de M. Rugendas en su a indicação de Humboldt que, ao saber do desejo do jovem Rugendas de seguir seus
cruce de la cordillera, passos e se tornar o pintor da América Latina, recomenda: “Vá aonde haja muitas
1837, óleo/cartão
palmeiras, samambaias, cactos, aonde existam montanhas cobertas de neve e vulcões,
vá à Cordilheira dos Andes [...]. Um grande artista como você deve ir em busca do
monumental.”6

E o que vemos nessa prancha é esse


encontro com o monumental, diante do
qual o artista e seu albergue se tornam
presenças ínfimas. Tal contraste fala,
de outra parte, da monumentalidade
da atividade artística empreendida por
Rugendas, que precisa ser realizada sob
circunstâncias adversas e arriscadas.
O risco concreto da travessia e da
realização de seu registro pictórico
aponta, paradoxalmente, para o que
chamei de mitologia sem risco do ateliê.
Pois a dificuldade, o perigo, o cansaço
apenas acentuam o caráter superior e algo
Figura 2 - Jean Bap- sublime do próprio ateliê temporário.
tiste Debret, Debret no Na realidade, Rugendas utiliza-se dessa
albergue, 1816, aqua- figura poética do ateliê – encarnada
rela/papel. Museus
Castro Maya, IBRAM/ na frágil e improvável construção que
MinC. leva ao limite as ideias de isolamento,

6  Apud ADES, Dawn. Arte na América Latina. São Paulo: Cosac Naify, 1997, p. 50.

332
refúgio, especialidade, encantamento – de modo a transferir para a própria atividade
da pintura ao ar livre, característica da arte de viagens, todas as suas características.

Também Jean Baptiste Debret retratou-se no albergue em que vivia, em uma das
primeiras imagens que faz na cidade do Rio para enviar notícias à família na França
(Debret no Albergue, 1816, aquarela/papel, 18 x 13,1 cm) [Figura 2]. Apesar da escala
reduzida da aquarela e do particularismo da cena representada – o artista sentado
cabisbaixo diante de uma mesa no qual repousa uma garrafa –, há no abatimento
de Debret, na interioridade da cena e no contraste de seus trajes com a rusticidade
do ambiente a evocação da imensidão de seu trabalho, das dificuldades que deverá
enfrentar, da necessária concentração e do inevitável isolamento envolvidos em sua
realização.

Essa pequena aquarela se junta a outra, igualmente diminuta e feita no mesmo ano,
na qual o tema do ateliê aparece de forma mais direta: Meu ateliê do Catumbi, Rio de
Janeiro (1816, aquarela/papel, 7,9 x 10 cm) [ver Figura 2, da Apresentação]. Nesta,
toda a gigantesca atividade do ateliê, seus múltiplos objetos, seus equipamentos
técnicos, sua grandiosa artesania, aparece miniaturizada num espaço de pouco mais
de 70 cm quadrados. Novamente, pelo contraste, Debret alcança uma sorte complexa
de monumentalidade, reforçada pelo manequim agigantado do rei ou pela grande tela
Figura 3 - Thomas En-
amarrada, que mal se apoia sobre uma cadeira. der, Uma excursão à
floresta do Corcovado,
Completa essa série outra aquarela do mesmo ano, ainda menor, intitulada Debret pena, lápis, sépia, aqua-
au travail (1816, aquarela/papel, 8,7 x 8,8 cm.). Apesar da pouca nitidez da imagem, relado/papel.
devido à deterioração da obra original, nota-se a
ausência de elementos ambientais circunstanciais,
que pudessem prover a cena de alguma singularidade.
O artista concentra-se na apresentação de si mesmo
sentado sobre uma espécie de almofada listrada,
portando uma capa e um chapéu que parece ser feito
do mesmo papel sobre o qual, apoiado fragilmente
sobre os joelhos dobrados, faz suas anotações gráficas.
Apenas uma lata, possivelmente com água, remete à
esfera mais material ou mundana, seja por referir-se à
técnica da aquarela, seja por lembrar as necessidades
básicas do artista. Tudo aí fala de precariedade,
adversidade e, por oposição, da grandiosidade de sua
missão artística. Nesse momento inicial de contato de
Debret com o Brasil, mostrou-se preciso rapidamente
traçar os contornos heróicos de sua arte e delimitar
física e simbolicamente os espaços de sua atuação.

Thomas Ender também autorretratou-se na tarefa


de registrar a natureza tropical. No desenho Uma
excursão à floresta do Corcovado (1817-18, pena, lápis,
sépia, aquarela/papel, 45,5 x 32,6 cm.) [Figura 3], a

333
imensidão da floresta, quase impenetrável, contrasta com a pequenez da figura do
artista, recolhido em seu trabalho. A posição curvada, a cartola algo dissonante, o
fato de estar apartado de seus companheiros de expedição acentuam o aspecto de
alguém ensimesmado, concentrado. O arco formado pela vegetação e a luz que atinge
tão somente algumas áreas da mata, deixando fortes sombras aparecerem, ecoam a
imagem poética do ateliê como lugar misterioso e mágico.

Não há como não perceber aqui que a visão do artista austríaco da exuberante
Mata Atlântica participa das tradicionais associações poéticas entre floresta
primitiva, templo e catedral gótica, codificadas especialmente por Goethe e Herder.
Complementarmente ao movimento pelo qual a catedral gótica passa a ser comparada
a uma floresta primitiva, sendo suas esguias colunas análogas a árvores, a floresta
converte-se paulatinamente em templo, erguido pelas mãos divinas. Nesse templo, o
homem é capaz de conectar-se com a grandiosidade e a magnificência das criações
naturais.

Von Martius é outro dos viajantes pelo Brasil oitocentista que dedica algumas boas
páginas do seu diário de viagem para lidar com esse tema. O naturalista relata em seu
livro o momento da viagem pela Amazônia em que, junto a seu colega Spix , adentra
as matas para recolher espécies. Mas o que eles encontram nas “selvas primitivas” é
algo que o surpreende terrivelmente:

Em seguida penetramos ainda mais terra adentro a fim de examinarmos as arvores que
oferecemos ao leitor nesta gravura. Mas agora parecia-nos entrar num templo magnífico,
não desses que a mão do homem é capaz de construir, mas um templo que tivesse sido
edificado pelo próprio autor da natureza, como se Deus quisesse que os corações daqueles
que o vissem se comovessem e se enchessem com o sagrado temor da presença divina.
Figura 4 - Benjamin
Mary, As árvores mais Como o espírito costuma ser arrebatado por sentimentos piedosos e por devaneios, e
altas às margens de encontrando-me mergulhado na quietude e solidão da noite, ergui meus olhos para a
Topirambarana, no
insondável vastidão do céu, povoado com a sua multidão incalculável de astros. Mas logo
Amazonas, c.1840-45,
pena e aguada/papel. me senti atingido, neste grandioso templo da floresta, pela presença de três vigorosíssimas
colunas que excediam a todas as
árvores. Eu jamais vira coisa igual.7

A mistura de excitação, admiração


e temor aparece traduzida na
prancha IX de seu famoso álbum
Flora Brasiliense, com a legenda
“As árvores que nasceram antes
de Cristo na floresta às margens
do rio Amazonas.” No desenho de
Benjamin Mary que dá origem à
gravura [Figura 4], vemos um dos
naturalistas, papel no colo tentando
registrar a monumentalidade

7  Carl F. Von Martius. A viagem de Von Martius – Flora Brasiliensis. Rio de Janeiro: Índex, 1996.

334
do jatobá amazônico. Para dar conta da representação desta cena o artista vale-
se de recursos descritivos mais diretos, como a roda de índios diminutos que não
consegue se fechar ao dar a volta pelas raízes da árvore ou a representação apenas
de sua parte mais baixa. Mas também pela ênfase na escuridão da mata, que apenas
destaca os exemplares vegetais gigantes, formando um ambiente meio sem tempo e
sem lugar, uma espécie de lugar original, remoto, sagrado. O próprio Martius fala da
ancestralidade dessas árvores milenares, que teriam testemunhado silenciosamente o
transcorrer da história da humanidade.

Não são apenas as árvores amazônicas que encantam os viajantes. Também os rios
e cachoeiras produzem momentos de encontro do artista com a monumentalidade
que permitem a criação de imagens e descrições eivadas de força poética. Hercule
Florence, membro da expedição Langsdorff pelo interior do país, já muito doente,
relata em seu diário de viagem o deslumbramento produzido pelo Salto Augusto,
no rio Juruena, local em que chegam debaixo de uma forte tormenta tropical, que,
em suas próprias palavras, apenas tornava a paisagem “ainda mais resplandecente.”
Após a chuva, fragilizado pela febre, Florence pega seu material artístico, acomoda-se
em uma das pedras parcialmente secas diante da cachoeira e a registra. Em um dos
desenhos que faz, a presença de duas figuras praticamente cercadas de água por todos
os lados reforça a ideia de fúria natural, alcançada pela fusão de rio e matas, bem
como indica a dificuldade do registro.

Em Florence, porém, a natureza não é apenas fonte de experiências sensíveis e estéticas


ou objeto de conhecimento científico. É antes de mais nada, fonte de aprendizado
artístico. A diversidade fito-geográfica da natureza brasileira apresenta uma série de
experiências concretas, que devem servir para a ampliação do vocabulário pictórico e
para o aprofundamento da vivência sensível. Mesmo no cerrado, com sua monotonia
plana, surgiam árvores e flores de “colorido vivo e ardente;” respiravam-se os “mais
sutis aromas;” a noite trazia o frescor e reflexos cerúleos que convertiam as pequenas
formações rochosas em “Andes suspensos” que abriam ao olhar do espectador “as
profundezas do espaço.” Concluindo essa sucessão de imagens, Florence afirma:
“Um pintor que não tenha contemplado painéis feitos pela mão dos mestres poderia,
parece-me, na composição de seus quadros, aprender com a natureza.” Não só
templo, a natureza também é museu, acervo estético relevante, lugar de contato com
a experiência superior da beleza.

A partir desses exemplos, podemos perceber como vai se formulando um raciocínio


histórico que liga natureza – templo – museu – ateliê, responsável pela construção de
uma mitologia ampliada do ateliê, que transfere para a prática da pintura ao ar livre as
qualidades específicas da atividade artística em estúdio. Esse ateliê sem paredes e sem
teto, precário, efêmero, pelas associações poéticas da natureza ao templo e ao museu
torna-se espaço de recolhimento, de introspecção, de isolamento, de concentração,
de vivência limite e intensa. Talvez falte apenas mencionar, já que não terei tempo
de entrar nesse assunto, um elo importante, que é a própria associação arte/ciência,

335
fundamental no quadro das
viagens oitocentistas.

Certamente este é um dado


relevante nessa mitologia
ampliada, como também havia sido
desde o período do Renascimento,
na configuração dos ateliês, que
se aproximam muito, em termos
físicos e simbólicos, dos gabinetes
de curiosidades. No século XIX,
tomando como objeto as viagens
realizadas pelas Américas, essa
relação permitiu que a pintura ao
ar livre ganhasse o duplo status, de
experiência sensível da natureza
e conhecimento científico,
Figura 5 - Eduard En- naturalista. Tudo isso retorna para a Europa e vem fazer com que as visões sobre o
der, Bonpland e Hum- ateliê passem a incluir novas possibilidades.
boldt na selva amazô-
nica, c. 1850, óleo/tela Por volta de 1850, quando decide pintar Humboldt e Bonplant em um desses
gabinetes improvisados durante a viagem, o sobrinho de Thomas Ender, Eduard
Ender, incorpora elementos das tradicionais imagens de ateliê, agregando a elas
algumas ideias advindas do contexto das viagens científicas e artísticas oitocentistas
[Figura 5]. O contraste entre os pólos opostos da exuberância tropical – sublimidade
e precariedade, confiança e cansaço, amplitude e isolamento – é apresentado por meio
da ênfase na umidade natural, quase palpável na pintura a óleo. A mesma umidade
é fonte de toda variedade natural e de todos os seus perigos. Tanto no que se refere à
própria prática artística e científica – outro viajante por terras brasileiras, Pohl, havia
explicitamente reclamado da umidade que enrugava papéis, não permitia que as tintas
secassem, corrompia as espécies coletadas –, quanto no que tange à própria saúde dos
viajantes (muitos deles adoeceram temporária ou permanentemente ou morreram
de doenças ou acidentes). O que acaba por ajudar a construir essa mitologia, que foi
capaz de incorporar todas essas novidades, tornando-as parte integrante do clichê,
que parece ser ainda válido culturalmente, do ateliê como lugar ideal da realização
artística.

336
“O Importuno” de Almeida
Júnior: estudo iconográfico
Vivian Pereira Viana 1 e Letícia Coelho Squeff 2

Tradicionalmente, a crítica atribuiu a José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899)


o título de pintor da terra e do homem nacional. Era visto pelos modernistas, como
Mário de Andrade, como um dos anunciadores do que viria a ser a arte moderna.
Um pintor que teria ido além da academia e assumido «a cor da terra.”3 Porém, a
produção na qual nos focaremos nesta oportunidade está relacionada a uma temática
diferente da regionalista. Dentre as obras produzidas pelo pintor ituano, trataremos
das que têm por tema o ateliê.

Na tela ​O Ateliê do Artista ​(1886, ​Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand),​
a figura humana está ausente​, em ​contraste com a obra de mesmo tema, ​O Importuno
(1898, Pinacoteca do Estado de São Paulo), ​na qual apresentam-se o pintor e a modelo.
Nos quadros nos quais a personagem humana é pintada, há uma presença marcante
da figura feminina, que realiza ações que vão além do posar, assumindo o ato de
despir-­s e, como em O​ Importuno ​(1898, Pinacoteca do Estado de São Paulo), ​e o de
tocar piano, como em ​D escanso do modelo ​(1882, Museu Nacional de Belas Artes​, RJ).​
Algumas vezes, a figura feminina destaca-se, assumindo um lugar que ultrapassa a
dimensão erótica mais imediata, alcançado tensões próprias do novo papel da mulher
numa sociedade em transformação. Em outras criações, a relação entre a modelo e
o artista é um dos aspectos que surge como referência ao fazer artístico, ou como
metáfora para a própria arte.
1 Graduanda - Universidade Federal de São Paulo.
2 Professora do Departamento de História da Arte, Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
Federal de São Paulo (Guarulhos, Brasil).
3 ANDRADE, Mário de. As artes plásticas no Brasil. Revista da Academia Paulista de Letras São Paulo, ano VII,
nº26, 1944.

337
Levando em consideração, portanto, as diferentes representações do ateliê feitas por​
Almeida Júnior​, temos por objetivo expor as primeiras considerações da pesquisa de
iniciação científica que desenvolvemos, intitulada “O Importuno de Almeida Júnior
(1850-­1899): o desejo na pintura de ateliê,” sendo esta a primeira divulgação da
pesquisa, que foi iniciada em 2015, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP).

Almeida Junior: pintura regionalista e pintura de ateliê


Tomando a pluralidade em sua obra, alguns estudiosos definiram a produção de
Almeida Junior em ​duas fases. A primeira seria composta pelas pinturas de temática
religiosa e de gênero. A segunda seria de obras que tratam do tema do interior e a
personagem do caipira. Esta tese foi recentemente questionada por Rafael Cardoso,
no livro A​ Arte Brasileira em 25 Quadros​. O autor lembra que existem pelo menos
duas obras que escapam a essa periodização: ​O derrubador brasileiro (1879, Museu
Nacional de Belas Artes), que se destaca das produções da suposta primeira fase e O

Importuno ​(1898, Pinacoteca do Estado de São Paulo), que retoma, na segunda fase,
suas produções anteriores.

Na história da arte brasileira, muito se destacou a obra dita regionalista do pintor, algumas
vezes considerando as obras de ateliê como um resultado do sistema de produção artística
acadêmico ou produto de uma influência europeia. ​Porém, como dito por Jorge Coli,
na introdução de seu livro Como estudar a arte brasileira do século XIX?: “[...] diante de
qualquer obra, o olhar que interroga é sempre mais fecundo do que o conceito que define.”4
Tendo em vista a estrutura das suas obras, Jorge Coli produz uma análise do ituano, e
ilumina o entendimento do minucioso trabalho do artista:
A característica mais constante na pintura de Almeida Júnior, que permanece desde as
primeiras pinturas até as telas finais, é o sentido firme e exato da composição. [...] Trata-
se de uma intuição exigente e infalível, uma ossatura rigorosa que encontra não leis de
equilíbrio, mas de estabilidade, sem as quais, para ele, a pintura não pode existir.5

Pode-se lembrar também a observação de Maria Cecilia Lourenço, no texto de


introdução ao catálogo da exposição realizada em 2007 na Pinacoteca do Estado de
São Paulo, ​Almeida Júnior: um criador de imaginário, ​na qual estavam expostos alguns
retratos femininos, alguns estudos de nu e suas obras de ateliê: “O olhar investigador
do pintor determinou a escolha de dois segmentos entrelaçados, um voltado para
a intimidade e os novos papéis femininos, e outro para a própria rotina do ofício
artístico.”6

Já Fernanda Pitta, em sua tese ​“Um povo pacato e bucólico”: costume, história e
imaginário na pintura de Almeida Júnior​, sugere que se leve em consideração as

4 COLI, Jorge. Como estudar a arte brasileira do século XIX? São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2005 ­(Série Livre
Pensar; 17). P. 11.
5 Id.Ibd.. p. 101.
6 LOURENÇO, Maria Cecília França. Almeida Júnior: um criador de imaginário. São Paulo: Ed.: Pancrom Indústria
Gráfica, 2007. p. 55.

338
“escolhas formais (desde a fatura até o formato das obras)” de Almeida Jr. para
compreender suas produções.

Almeida Junior é um artista de múltiplas expressões que possui uma produção de


rica diversidade temática para ser, sem grandes perdas, dividida por aspectos tão
abrangentes. E é neste contexto e paralelamente a produções tão distintas como ​Fuga
para o Egito (1881, Museu Nacional de Belas Artes), ​Caipiras Negaceando (1888,
Museu Nacional de Belas Artes) e P ​ artida da Monção (1897, Museu Paulista ­USP),
que suas pinturas sobre o ateliê foram produzidas.

No decorrer das leituras, descobriu-se que o artista produziu ao longo de sua vida
uma grande diversidade de pinturas sobre o ateliê, e podemos, portanto, afirmar que
este era um tema recorrente em sua obra. Os quadros dialogam entre si, apresentando
elementos que se repetem; e nas obras nas quais a personagem humana é pintada
há uma presença marcante da figura feminina, que geralmente é representada como
modelo em relação com o pintor.​

​Os ateliês de Almeida Júnior


As obras com temática do ateliê realizadas por Almeida Júnior inserem-se num
amplo repertório iconográfico, que na pintura francesa do século XIX tem, entre suas
obras de maior destaque, ​pinturas como L ​ ’Atelier du peintre (1854­1855), ​de Gustave
Courbet; e L
​ ’atelier de Bazille (1870), de Edouard Manet, entre outros.

Os títulos de obras de Almeida Junior com essa temática que encontramos até o
momento da pesquisa são os seguintes: A ​ teliê em Paris [Figura 1]; ​O pintor [Figura
2]; D
​ escanso do Modelo [Figura 3]; O ​ ateliê do artista [Figura 4]; N
​ o atelier [Figura
5]; O
​ modelo [Figura 6]; O ​ Importuno [Figura 7] e O​ ateliê [Figura 8]. Elas expressam,
sob a escolha e ótica do artista, aspectos do cotidiano do estúdio, tratando desde o
fazer artístico à relação do pintor com o modelo. Inicialmente, propomos observá-las
dentro de duas categorias, a primeira composta pelos quadros cuja figura humana está
ausente, e na segunda, portanto, encontram-se representadas algumas personagens.​
Na primeira categoria, as que descrevem o ambiente, estão O ​ ateliê (s.d., coleção
particular) e O ​ ateliê do artista (1886, MASP). ​E entre as que mostram o ateliê sendo
utilizado, estão Ateliê em Paris (1880, coleção particular); O ​ pintor (1880, coleção
particular); ​​D escanso do Modelo (1882, Museu Nacional de Belas Artes); N ​ o atelier (c.
1894, coleção particular); ​O modelo (1897, coleção particular) e O7
​ Importuno (1898,
PESP). ​Entre as telas pintadas ainda em Paris, segundo o que temos conhecimento,
estão A​ teliê em Paris, O pintor e Descanso do Modelo.

Com o desenvolvimento da pesquisa, observamos que dentro desta temática o pintor


produziu quadros que expressam sentidos diferentes e configuram espaços distintos.

7 Esta obra foi apresentada na exposição individual do pintor em 1882 e comentada pelo crítico ​Félix Ferreira. ​Portanto,
sua datação é questionável. “No extremo de uma perede esconde-se, como que com medo, Um cantinho do atelier do
nosso artista, em Paris. Sentado em uma voltaire, junto da mesa de estante, carregada de livros, de costas para fora, o
artista concentra todas as suas atenções para uma graciosa demoiselle [...]”. FERREIRA, Félix. FERREIRA, Félix. II Do
Sr. Almeida Júnior em 1882, in Belas Artes: estudos e apreciações. Introdução e notas de Tadeu Chiarelli. - 2. ed. -
Porto Alegre, RS: Zouk, 2012, p. 131.

339
Assim, pode-se abrir novas categorias de análise: o ateliê como
espaço de ensino coletivo; como tema principal; como sede
para relações comerciais; como lugar de contato entre o artista
e a modelo; e como espaço de promoção da imagem do artista.

Em todas as pinturas citadas existem elementos que se repetem,


tal qual o piano de parede pintado em O ateliê e Descanso do
Modelo, e a cadeira estilo Thonet em O ateliê do Artista e O
Importuno. O artista também nos apresenta reproduções de
suas próprias obras como em O Modelo, na qual encontramos
em destaque o Estudo de nu masculino (PESP) e Louvre (1880,
coleção particular), em O Importuno.

Nas obras nas quais aparece a figura humana, a presença da


figura feminina é marcante, e apresenta­-se de maneira ampla,
assumindo papéis que vão desde de modelo a artista, tal qual
Almeida Junior a coloca pintando em N ​ o atelier. Em O
​ modelo​,
no qual uma mulher mais velha encontra-se no canto esquerdo
Figura 1 - Almeida Ju- do quadro, como que para guardar a honra da dama ao centro. Esta personagem
nior (1850 - 1899), Ate-
liê em Paris, 1880. Óleo
também chamou atenção do crítico Felix Ferreira, que a descreve como mãe da jovem
sobre tela, 53 x 46 cm. moça, dizendo que “o olhar vigilante da velha mãe, que, descansada em uma poltrona,
Coleção particular. sorri afagando sabe-se lá que felizes esperanças.”8 E sobre a jovem disserta:
A figura da moça é muito natural, bem-desenhada e delicadamente colorida; a sua
presença na sala de trabalho do pintor desperta uma lembrança poética, que interessa o
contemplador; a de um segredo revelado talvez na hora da partida, uma doce lembrança
desses dourados sonhos que povoam abundantemente a mocidade dos artistas e poetas,
esses eternos boêmios das floridas regiões do amor e da fantasia.9

A figura feminina é uma personagem inserida múltiplas vezes em suas pinturas, como
dito por Maria Cecília:
O artista mantém uma gama imensa de figuras femininas em suas obras e em todas
as modalidades, sempre revelando clara proximidade afetiva e adesão aos esforços
empreendidos, seja no lazer, no trabalho ou buscando interpretar de forma generosa
o interior espiritual. As representações femininas se localizam em todos os segmentos
organizados para este estudo, abrangendo figuras de crianças e idosas, muitas junto ao
tema da natureza, igualmente no trabalho da roça e nos retratos e, particularmente na
vida moderna, ligada ao ambiente libertário do ateliê, que se procurará evidenciar.10

Em sua tese, Fernanda Pitta dedicou um capítulo sobre a representação do artista em


seu ateliê, denominado Autoimagem do artista, em que a autora desconstrói a ideia
do artista caipira:

8  FERREIRA, Félix. II Do Sr. Almeida Júnior em 1882, in Belas Artes: estudos e apreciações. Introdução e notas de
Tadeu Chiarelli. - 2. ed. - Porto Alegre, RS: Zouk, 2012, p. 131.
9  Idem.
10  LOURENÇO, Maria Cecília. Espaço para a vida moderna. In:­ Almeida Júnior: um criador de imaginário. São
Paulo: Ed.: Pancrom Indústria Gráfica, 2007. P. 183

340
O retrato que dele fez seu amigo Augusto Figura 2 - Almeida Ju-
Rodrigues Duarte nos permite interpretar nior (1850 - 1899), O
pintor, década de 1880.
o quão preocupado estava o pintor Óleo sobre tela, 44 x 36
em inserir-se nos círculos de pintores cm. Coleção Luiz Fer-
“modernos” de seu tempo. [...] Não vemos nando da Costa e Silva,
o caipira, o matuto, o tímido ituano de São Paulo.
suas biografias, nem necessariamente
o “tipo” da “raça paulista” de Ezequiel
Freire. O que se observa é um jovem
artista orgulhoso de sua condição e seu
ofício.11

E continua sua análise, definindo


aproximações com a figura do
boêmio, difundida entre os artistas
da França do século XIX. A autora
destaca que Almeida Junior buscou
inserir-se na vida moderna e trouxe
aspectos de suas vivências parisienses
às pinturas de ateliê, que serviriam
de expressão para essas mudanças de costumes e ideias.

Pode-se perceber que o ambiente artístico, para ele [Almeida Junior], é signo de
sociabilidades mais soltas, arejadas, em que homens e mulheres trabalham e se divertem
juntos, ou trocam ideias, um meio repleto de riqueza cultural e material.12

Pode-se mencionar outras obras oitocentistas que tratam do ateliê do artista em


acervos brasileiros. ​Entre as realizadas por Rodolfo Amoedo, pode-se lembrar aqui de
Auto­Retrato em seu Atelier em Paris ​(s.d., coleção particular); N
​ o Atelier (s.d., coleção
particular); ​Ateliê do Artista em Paris (1883, Museu Nacional de Belas Artes). Há
também N ​ o atelier (1884,
coleção particular), de
Pedro Weingartner,​
Interior de Atelier (1898,
Museu Nacional de Belas
Artes ­RJ) de Rafael
Frederico (1865 - 1934);
eO​ ateliê do artista (1894,
MASP), do português
Figura 3 - Almeida
José Vital Malhoa (1855 Junior (1850 - 1899),
- 1933). Reunidos, esses Descanso do Modelo,
1882. Óleo sobre tela,
quadros compõem um
98 x 131 cm. Museu
conjunto que aponta, pela Nacional de Belas Ar-
recorrência do tema, para tes, Rio de Janeiro.

11 PITTA, Fernanda Mendonça. Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida
Júnior. Tese (doutorado). ECA/USP. São Paulo, 2013. P. 184-185.
12 Idem.

341
a existência de um interesse de toda uma
geração de artistas pela representação
do ateliê e de seus interiores. Com
essas obras, esses pintores representam
o próprio fazer artístico e oferecem
um testemunho do cotidiano em seus
estúdios. Mais do que isso, talvez
se possa sugerir, seguindo-se as
observações de Fernanda Pitta, que as
obras que tinham por tema as cenas
de ateliê articulavam-se a projetos de
atualização da pintura feita no Brasil, a
intenções de modernidade.

O Importuno e Descanso do
modelo
Intenções de modernidade que, de
fato, foram notadas pelos críticos
Figura 4 - Almeida Ju- brasileiros. Em 1882, o crítico Felix Ferreira já comentava, sobre o artista:
nior (1850-1899), O ate-
liê do artista, 1886. Óleo O aparecimento do Sr. Almeida Júnior nos campos da arte, armado cavaleiro e pronto
sobre tela, 46 x 55 cm.
para as lutas mais tenazes e os cometimentos mais audaciosos, é o prenúncio desse
Museu de Arte de São
Paulo Assis Chateau- movimento que julgo necessário à reforma do ensino artístico, base - senão única, pelo
briand, São Paulo. menos principal - do desenvolvimento das artes no Brasil.13

Percebido como alguém que vinha para renovar as


artes, como uma espécie de soldado “necessário à
reforma do ensino artístico,” Almeida Junior foi
bem recebido pelos demais críticos. Sobre a obra
Descanso do modelo, o mesmo crítico destacava
que “O quadro, porém, que mais tem agradado
aos visitantes, e maior soma de aplausos tem
conquistado é o de gênero, intitulado por seu
autor Pendant le repos.”14

Não deixando de citá-la, também, o crítico


Gonzaga Duque:
A pintura não é igual à dos outros quadros, nem
isto seria possível; a tela terá quando muito uns 80 e
Figura 5 - Almeida Ju- tantos centímetros de largura sobre um metro e tanto
nior (1850-1899), No
de comprimento. Mas as duas figuras são tocadas com
atelier, c. 1894. Óleo so-
bre madeira, 38,5 x 23 facilidade, coloridas, com imenso gosto, desenhadas
cm. Coleção particular. com muito capricho e observação. O reflexo da luz que

13 FERREIRA, Félix. II Do Sr. Almeida Júnior em 1882, in Belas Artes: estudos e apreciações. Félix Ferreira; introdu-
ção e notas de Tadeu Chiarelli. - 2. ed. - Porto Alegre, RS: Zouk, 2012. P. 130.
14 Id.Ibd.p. 132.

342
apresenta a tampa do piano é maravilhosamente apanhado, e
foi, talvez, esse belo efeito e o gracioso desenho do “modelo”,
que despertaram a atenção da crítica parisiense quando foi
exposto no “Salon” de 82.15

O quadro O ​ Importuno ​apresenta alguns aspectos semelhantes


ao ​D escanso do Modelo​. ​As semelhanças são notadas em alguns
detalhes presentes nos quadros, como na representação da
paleta, no planejamento, nos objetos distribuídos no quadro e
o cabelo da modelo que em ambos encontra-­s e arrumado em
penteado similares. A paleta que o artista segura apresenta
um formato quadrado específico e distinto da paleta inserida
pelo pintor em outras de suas obras. A maneira como a tinta
nela é depositada e organizada também segue as mesmas
características do primeiro quadro, que definem uma ordem
padrão de cores. ​O planejamento, que é composto pelo tapete
e as cortinas, retoma os tons de dourado, verde e vermelho e
sua estampa listrada, mas agora dispostas na horizontal. E por
fim os objetos que se encontram no alto da porta, as duas armas e a paleta, relembram Figura 6 - Almeida Ju-
a posição das flautas e pandeiro dependurados ao alto do piano, em ​D escanso do nior (1850 - 1899), O
modelo, c. 1882. Óleo
modelo​. sobre tela, 80 x 65 cm.
Coleção particular.
No entanto, percebemos uma mudança
de foco ao compararmos os quadros,
mostrando certa maturidade do
artista n’O Importuno, já que agora
coloca no centro da obra e com maior
luminosidade, o quadro inacabado,
ocultando o pintor, que na primeira
obra é personagem destacada. O
ateliê também sofre alterações, sendo
antes uma sala repleta de objetos e
instrumentos musicais, agora mais limpa
e arejada, apresentando uma redução de
informações. O artista parece querer nos
dizer que enfim as obras devessem ser
aplaudidas por si só, sem a necessidade
de se conhecer seu autor.16 O fazer
Figura 7 - Almeida
artístico torna-­s e seu ponto central. Junior (1850-1899), O
Importuno, 1898. Óleo
O Importuno sobre tela, c.i.e. (145 x
97 cm). Acervo Pina-
Sabe-se até o momento que o quadro O coteca do Estado de
Importuno foi obtido pela Pinacoteca do São Paulo, São Paulo.

15 DUQUE, Gonzaga. III Almeida Junior e Rodolfo Amoedo, in A Arte brasileira. Introdução Tadeu Chiarelli. Cam-
pinas: Mercado de Letras, 1995. P. 180.
16 Apud. CARDOSO, Rafael.­ A Arte Brasileira em 25 Quadros - 1791­-1930. Ed. Record, 2008.

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Estado de São Paulo, em 1947, através de transferência do Museu Paulista, e participou
junto de outras obras do pintor, tal como Saudade (1899, PESP), da 6ª Exposição
Geral de Belas Artes em 1899, no Rio de Janeiro.

Cabe fazer aqui uma breve descrição da obra central: à esquerda vê­-se uma moça
que está semidespida, atrás de um cavalete, suas roupas encontram­-se penduradas
em uma cadeira, que está disposta ao lado do cavalete. Ao fundo, vê­-se o pintor, que
possui em sua mão esquerda paleta e pincéis, puxando, com a mão direita, a cortina
que cobre a porta entreaberta. Ao centro da pintura encontra-­s e uma tela inacabada,
na qual há um esboço de uma mulher nua.

A moça encontra-se à frente de um cavalete ocupado por uma tela, cujo conteúdo
não nos é permitido ver, suas roupas estão penduradas em uma cadeira, abaixo da
qual estão seus sapatos. Suas mãos puxam levemente a barra da saia para cima, o que
permite que suas pernas sejam vistas, mesmo que vestidas pela meia. A modelo tem
o ato de despir-­s e interrompido, por algo que parece atrair a atenção do pintor, que
se posiciona de maneira rígida à porta, como que para impedir a entrada e a visão de
uma terceira pessoa. A ação da modelo de esconder-­s e é ambígua, já que se encontra
à vista do espectador.

Encontram-se, no quadro, duas formas de nu expressas pelo artista, estando a moça


à esquerda representando o nu espontâneo, no qual a intimidade feminina esta
desvelada, e na tela ao centro encontra-se o nu artístico, resultado do posar. No
contexto da pintura acadêmica do século XIX, ao pintar o nu dentro de uma temática
alegórica, histórica e mitológica, buscava-se retirar seu teor erótico, e estabelecer
uma regra ao olhar, que deveria ser desprovido de malícia. Portanto, ao representar,
de uma só vez, a personagem nua, e também semidespida, Almeida Junior coloca em
questão não apenas as categorias tradicionais da arte acadêmica, como também os
valores morais da sociedade de seu tempo.

A obra parece dizer muito sobre o artista e produzir um sentido de manifesto artístico
do pintor. Portanto, parece-­nos importante vê-­la além da representação de uma cena
cotidiana. ​Assim, afirma Rafael Cardoso: “Mais do que um simples quadro de gênero,
narrando um incidente banal de ateliê, ​O importuno se configura como uma reflexão
estudada sobre a própria arte e o significado da pintura.”17

​ pintor trabalha com uma perspectiva pela qual o observador é capaz de ter a visão
O
da sala, como se estivesse posicionado no canto direito, a certa distância do tapete, que
intencionalmente apresenta uma linha de fuga que direciona o olhar à tela inacabada,
ao centro. O que nos insere na cena como observador que vê sem ser percebido. O
espectador é, portanto, também um intruso que testemunha a intimidade do fazer
artístico, o que nos leva a questionar quem seria o verdadeiro importuno.

Ao longo da pesquisa, observamos que as interpretações sobre este aspecto dividem-


se entre o espectador cúmplice e o espectador intruso, o primeiro estaria no estúdio
com o conhecimento do pintor e da modelo, e o segundo, em oposição, não teria a
17 CARDOSO, Rafael.­ Op. cit, p. 118.

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Figura 8 - Almeida Ju-
nior (1850 - 1899), O
ateliê, século XIX. Óleo
sobre tela, 57,5 x 71 cm,
Coleção particular.

concessão para observar. No entanto, em ambas, o observador não deixa de ser um


testemunho, já que testemunhar tem o sentido de ver, ou presenciar. Assim, tomamos
o público como um ser que, ao observar o quadro, presencia e, portanto, se faz
presente na obra. E aqui, pode-se afirmar que o pintor se vale de quatro personagens,
sendo que temos conhecimento de apenas duas: a modelo e o artista. Os outros
dois desconhecidos são inseridos na obra, estando um no interior da sala e outro
no exterior, porém almejando a entrada. O artista dá ao observador uma posição
privilegiada, da qual é possível ter a visão do estúdio.

O próprio artista e sua obra são um importuno, na medida em que transporta o


espectador ao interior de seu ateliê, sem a permissão. Assim, o público passa a ser
refém da própria curiosidade, e vítima de uma aproximação e reconhecimento do
quadro. Joga-se com o fato de que tudo que vê pode ser visto. Os outros visitantes
que caminham pela sala transformam-se em importunos, ao presenciarem a íntima
observação de quem se coloca em frente ao quadro. O ateliê do artista comporta a sala
de exposição, e todos, que ali estão presentes, tornam-se testemunhos. Com isso, o
quadro expõe as formas de ver e de vigiar, trabalhando o privado e o público, o íntimo
e o desvelado.

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