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RELAÇÕES DE ENSINO E DESENVOLVIMENTO

HUMANO: REFLEXÕES SOBRE AS (TRANS)


FORMAÇÕES NA ATIVIDADE DE (ENSINAR A)
LER E ESCREVER1
TEACHING RELATIONSHIPS AND HUMAN DEVELOPMENT:
REFLECTIONS ON (TRANS)FORMATIONS IN THE ACTIVITY
OF (TEACHING) READING AND WRITING

Ana Luiza Bustamante Smolka


Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas
asmolka@unicamp.br

Resumo: Ao refletir sobre qual alfabetização para qual tempo, teço considerações
sobre as práticas de leitura e da escrita e as práticas de ensino da leitura e
escrita nas condições da contemporaneidade. Assumindo uma perspectiva
histórico-cultural, indago sobre os efeitos da produção tecnológica, que
vem transformando tais práticas, e argumento sobre a necessidade de se
aprofundarem os estudos da sociogênese do desenvolvimento humano,
levando-se em conta a complexidade do tempo histórico, a complexidade
da língua em suas múltiplas facetas, a complexidade das relações sociais e
a desigualdade das condições de vida. Num movimento histórico dialético
de interconstituição, as crianças se desenvolvem nas relações com os
professores também em desenvolvimento, participando colaborativamente
das (trans)formações, tanto da atividade de ensinar quanto das atividades
de ler e de escrever.
Palavras-chave: Alfabetização. Relações de ensino. Desenvolvimento
humano. Vivência atribuída de sentido. Perspectiva histórico-cultural.

Abstract: In inquiring about which literacy for which time, I discuss about reading
and writing practices as well as the teaching practices of reading and
writing in contemporary conditions. Assuming a historical-cultural
perspective, I ask about the effects of technological production, which
has been affecting and transforming such practices, and I argue
about the need to deepen the studies of the sociogenesis of human
development, taking into account the complexity of historical time,
the complexity of language in its many facets, the complexity of
social relations and the inequality of living conditions. In a dialectical
historical movement of interconstitution, children develop in relation
to teachers also in development, both collaboratively participating in

1 Texto apresentado no IV Congresso Brasileiro de Alfabetização (CONBAlf), realizado na UFMG, agosto de


2019.

Revista Brasileira de Alfabetização - ABAlf | ISSN: 2446-8584


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Relações de ensino e desenvolvimento humano: reflexões sobre as (trans)formações na atividade de (ensinar a)
ler e escrever

the (trans)formation of reading and writing activities so much as of the


very teaching activity.
Key words: Literacy. Teaching relations. Human development.
Meaningful experience. Historical-cultural perspective.

Introdução

Os convites sempre nos incitam. Temas e títulos, em geral, nos provocam.


As condições – as determinações circunstanciais, conjunturais, históricas –
nos impõem desafios. Falar sobre qual alfabetização para qual tempo – tema
deste IV CONBAlf – demanda pensar em termos da história e da cultura,
dos espaços/tempos de elaboração da forma escrita de linguagem. Esse
convite, mais uma vez, me leva a colocar em perspectiva percursos e projetos,
conquistas e convicções, desejos e indagações, me leva a buscar objetivar o
trabalho realizado e a trabalhar no sentido de projetos (ainda) não realizados.
Inicio então pela leitura de Thiago de Mello (1978), Canção para os fonemas
da alegria. O poema inspira e mobiliza pelo que traz de condensado na História:
O ano, 1964; o lugar de produção, Chile; o golpe militar no Brasil, o exílio da
terra natal. O poeta tece Homenagem a Paulo Freire2, lembrando as 40 horas
de Angicos. Solidário, proclama e declama o trabalho do educador. Ressalta o
acontecimento da aprendizagem da escrita. “Soletrando a canção de rebeldia”,
faz referência ao fonema, e celebra a alegria e a transformação da pessoa que
começa a ler e a escrever.
Nas entrelinhas do poema, os gestos sustentados e compartilhados, os
esforços admitidos e con-sentidos de (aprender a) ler e escrever... E, nesses
gestos, a elaboração da consciência, a possibilidade do (des)envolvimento e
da participação ativa dos sujeitos na escrita da história. Assim, os muitos
sentidos de aprender a ler e a escrever impregnam e fecundam a palavra tijolo:
O tijolo, a terra, o barro. A luta, a labuta, o trabalho. E, no jogo de palavras e
textos, frases e sílabas, sons e letras, fonemas e grafemas, a geração de novos
e múltiplos sentidos.
Sim, porque podem ser muitos os sentidos de ti-jo-lo – como palavra
geradora, como artefato cultural, como produção humana, como produto
concreto e metafórico ao mesmo tempo, fundamento e pretexto na elaboração
da forma escrita de linguagem. Forma escrita de linguagem que foi – ela
mesma – se alfabetizando, isto é, se des-envolvendo na criação do alfabeto; foi
se linearizando, se fonetizando e se convencionalizando no processo mesmo de
sua produção / em meio a arbitrariedades, ambiguidades e não-coincidências
nas múltiplas relações nela implicadas. Forma de linguagem que se encontra,

2 FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 8ª edição, 1978.

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como outras formas, sempre em movimento, em (trans)formação nos seus


usos, na sua prática.
Qual alfabetização para qual tempo? Ao longo das últimas décadas, temos
(e falo aqui de um coletivo de professores e pesquisadores, em vários níveis de
ensino), incansavelmente, reunido esforços que englobam diversas concepções
e muitas nuances metodológicas. Temos levantado e enfrentado debates
acalorados buscando argumentar sobre as muitas facetas da alfabetização.
Temos consensualmente admitido a complexidade do processo. Temos
refletido sobre teorias e princípios epistemológicos. Temos procurado ampliar
o conhecimento e adensar a argumentação trabalhando nas interseções de
campos disciplinares. Temos buscado apurar a escuta do outro, mesmo na
defesa de um ponto de vista. Temos refletido, no curso dos anos, sobre os
muitos sentidos da alfabetização. Temos considerado a alfabetização no tempo
histórico e temos problematizado os tempos singulares da alfabetização das
crianças. Temos compartilhado o cotidiano de tantas professoras e professores
alfabetizadores nos espaços de sala de aula, procurando dar visibilidade ao
trabalho miúdo, incansável, muitas vezes, exaustivo, no chão da escola. Temos
estudado e analisado processos e efeitos das práticas de alfabetização e, na
diversidade de práticas e nos gestos singulares, temos efetivamente alcançado
a alfabetização de muitas e muitas crianças. Não é pouca coisa!
A criação da ABAlf em 2012 emergiu como um potente lócus de articulação
desses esforços, muitas vezes esparsos, desconhecidos e desencontrados,
congregando pessoas e instituições em núcleos de resistência e defesa de
políticas públicas de Estado. No último ano, a luta no campo da alfabetização
no Brasil se acirrou e ganhou novos contornos perante as ações de um governo
que demonstra desconhecimento e desprezo ímpares – pela história do país,
pela história da alfabetização, pela produção acadêmica, pelos projetos e
conquistas, pelas condições de vida e histórias de famílias, adultos e crianças.
O Manifesto da ABAlf em janeiro de 2019 é contundente:

A alfabetização, como campo de pesquisa e como ação pedagógica,


é multifacetada e, portanto, supõe um conjunto articulado de sabe-
res. A disputa entre concepções e métodos não pode obscurecer a
finalidade de alcançarmos, por todos os meios, os sujeitos e grupos
que têm direito de se alfabetizar. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE
ALFABETIZAÇÃO et al, 2019).3

De 1964 a 2019, são mais de 50 anos – meio século! E quantas mudanças!


Os tempos demandam, mais uma vez, uma premente análise das práticas

3 Disponível em: http://abalf.org.br/wp-content/uploads/2019/01/Manifesta%C3%A7%C3%A3o-


-P%C3%BAblica-ABAlf.pdf . Acesso em: 24/06/2019.

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de leitura e escrita, das práticas de ensino da leitura e da escrita, pelas


condições da contemporaneidade e os efeitos da produção tecnológica que
vem transformando tais práticas. Enquanto viabilizam a digitação rápida e
abreviada, muitas vezes, “adivinhando” e antecipando a palavra a ser escrita,
os equipamentos, instrumentos técnicos e semióticos criados pelo homem –
celulares, computadores, tablets etc. – deslocam e dispensam a necessidade de
escrever, possibilitando, ao mesmo tempo, a alternativa do envio de mensagens
oralizadas. Skype, Facetime, WhatsApp, criam possibilidades de contato remoto
face a face, demandando que essas formas de interação sejam estudadas,
redimensionadas, reconceitualizadas diante das novas condições de espaço e
tempo. A escrita, uma das condições que viabilizou essa produção tecnológica,
se inscreve de tal forma nas coisas, nas práticas, que, de tão óbvia, adquire
transparência, chega a se mostrar quase “invisível” como a Carta Roubada de
Edgard Allan Poe.4
Essa obviedade, essa permeabilidade da escrita inscrita nas práticas mostra
como essa forma de linguagem, que emergiu como uma nova formação na
história humana – produto da vida social e da atividade técnica e simbólica
do homem – tornou-se constitutiva dos modos de agir, pensar, falar, lembrar,
operar das pessoas; tornou-se – e funciona como – um potente instrumento
na mediação e constituição da atividade humana em transformação.
Se, na coexistência e na convivência com muitas formas de escrita,5 a
alfabetização se impõe e convém pela flexibilidade e pela riqueza que a
diferenciação e a discretização dos fonemas possibilitam; na dinâmica de
sua produção, a escrita vai se condensando, se abreviando, se ideografando
hoje em novas formas (internetês, emojis) – que são lidas, intuídas, (pres)
sentidas pelas crianças bem pequenas quando estas participam de uma dada
ambiência cultural.
Incorporada de tal forma nas práticas, o que é possível enxergar e saber
da escrita, de suas formas e funções? O que da escrita precisa ser apontado,
destacado, ressaltado, nomeado, ensinado, e como, para as crianças hoje?
Quem aponta? Quem ensina?
Como discutem diversos autores,6 os objetos não dizem por si mesmos. O
mundo de objetos sociais, de normas, de conceitos, instrumentos e técnicas,
não é imediatamente evidente para os sujeitos na cultura, mas implica, requer
mediação: o conhecimento do mundo passa pelo outro, argumentava Vigotski
(1984; 1995). É necessário que alguém acolha a criança que nasce, que
alguém responda ao seu choro (WALLON, 1995), que alguém aponte e nomeie

4 POE, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias. São Paulo: Victor Civita, 1981.
5 Como discutem, por exemplo, em diferentes momentos e de diversas formas, Roland Barthes (1987),
Joaquim Fontes (2000), Roxane Rojo (2009).
6 Leroi-Gouhran (1994); Clot (2006).

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o mundo para ela, que alguém ensine. E o gesto de “ensinar” – in signare:


marcar, assinalar, imprimir signos na mente – traz em suas raízes não só a
possibilidade, mas a condição da significação, isto é, a ação de significar, a
produção de signos e sentidos nos gestos compartilhados, nas relações com
outros (VIGOTSKI, 1995; SMOLKA, 2006, 2010).
A nossa questão é, então, compreender: Como as crianças, hoje, se
apropriam desse produto histórico-cultural? Como participam de sua
produção? Como vão conhecendo e reconhecendo as marcas, as características,
as especificidades da produção escrita? Como vão se envolvendo e se
desenvolvendo com ela, afetivamente, cognitivamente? Que relações vão
estabelecendo entre os muitos componentes e suportes, as múltiplas formas
e funções da escrita? Como as crianças tornam próprios, de si mesmas, os
conhecimentos disponíveis – acessíveis? De que forma? – na cultura? Como
incorporam, de maneiras singulares, esses conhecimentos incorporados nas
práticas? Que sentidos as crianças vão encontrando – e produzindo – nas
relações com a escrita? Que sentidos nós vamos fazendo dos sentidos que as
crianças fazem? Que sentidos vão se produzindo nas relações de ensino?

Das condições e das contradições nas relações de


ensino

As salas de aula em que temos trabalhado nos têm convocado, diariamente,


a reconsiderações e problematizações constantes – pela heterogeneidade das
turmas, pela diversidade das práticas, pela pluralidade de formas de conceber a
escrita e o ensino, pelas políticas de inclusão, pela desigualdade e precariedade
nas condições de vida, pelas profundas contradições que integram as relações
de ensino. (ANJOS, 2013; BUCIANO, 2012; BUSCARIOLO, 2015)
Isso se evidencia, de diversas formas, nas falas de muitas professoras
alfabetizadoras:

M: eu acho que tem algo que é da própria sala de aula que é uma
questão que está ali, eu acho que sempre esteve, que é essa coisa
de dar conta das diferenças entre as crianças. (...) A gente tem
essa característica do trabalho em sala que é algo que é gritante, que
é o desafio o tempo todo de você lidar com tempos diferentes,
com saberes diferentes, temperamentos, personalidades...

S: porque é o que mais nos aflige (...) eu sinto uma espada pendu-
rada na minha cabeça, eu sinto isso, sabe, porque, é uma cobrança
daquilo que as crianças TEM que saber até determinada DATA
marcada... Então transforma a escola em ciclo, acredita que o desen-
volvimento dele, alfabetização, letramento, não se dá em um período

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de um ano, mas te cobra isso. Eu acho que é o que mais nos aflige.
Eu tenho que trabalhar diversificado, eu tenho que pensar nas
necessidades individuais, eu tenho.

I: eu não consigo administrar tudo isso, então não faço, o que


eu tento fazer é respeitar o limite, saber o que aquela criança
consegue, o que ela consegue interagindo com o outro, ou vin-
do até mim precisando, conversando, nesse diálogo, então eu
tento respeitar o limite. Então eu não vou cobrar de uma criança
que ainda está conhecendo o alfabeto, está ainda nas letras, um tex-
to, uma produção de um texto de um filme que a gente assistiu, coisa
que eu posso cobrar de um outro que faça, mas... vou ser sincera, a
atividade diversificada em sala eu ainda não consegui fazer.
(ANJOS, 2013, grifos no original)

De diferentes maneiras, as falas dessas três professoras alfabetizadoras


mencionam e exemplificam dificuldades na organização do trabalho
pedagógico na diversidade e na adversidade da sala de aula. Diversidade
que nos faz considerar as crianças “formatadas” pela produção midiática,
pelos celulares e redes sociais; as crianças cujo acesso restrito ou quase
nulo aos bens materiais e ao conhecimento sistematizado se lhes torna
constitutivo, marcando contraditoriamente sua condição; as condições de
extrema vulnerabilidade e violência em que muitas crianças se encontram; as
crianças cuja condição orgânica demanda atenção e trabalho particularmente
orientado e requer a criação de formas específicas de sustentação da vida; a
formatação curricular no processo de escolarização, as avaliações em larga
escala... E em como isto tudo entra em pauta, afeta as relações de ensino
no interior da escola.
Indagar sobre qual alfabetização para qual tempo nos leva a problematizar
essas tensões, essas contradições, essa dialética da produção humana,
colocando em discussão a complexidade das múltiplas relações das crianças
com a escrita no mundo contemporâneo, em contextos de profunda
desigualdade social.
Já sabemos que a escola faz diferença, principalmente no acolhimento
às crianças que vivem em contexto de maior precariedade (FREITAS, 2002;
2004; 2012; DUBET, 2004; 2012; ROCHEX, 2011). Uma das mais gritantes
contradições é que o acelerado desenvolvimento tecnológico tem aprofundado
a desigualdade, marcando as crianças pela falta, não só de acesso aos bens
materiais, mas de conhecimento. Como, então, criar condições de participação
efetiva dessas crianças nas práticas escolares? E, levando em conta as
condições concretas de vida, como conceber o desenvolvimento das crianças,
de cada criança – entretecida à história humana?

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Uma situação registrada em uma sala de 1º ano, há 30 anos, pode servir


de mote para prosseguirmos em nossas reflexões:

Raimundo, sete anos, oitavo de 13 irmãos, vinha para a escola com


o cabelo desgrenhado, o rosto sujo, o nariz escorrendo, as mangas
enroladas de um casaco enorme que não lhe pertencia. Brincava e
corria com colegas no recreio, era mesmo arteiro. Mas ficava horas
quieto, absorto, difícil de se engajar nas atividades em sala de aula,
que pareciam não fazer sentido algum para ele. Um dia, a professora
se aproxima de sua carteira e lhe diz: “Raimundo, que legal o seu
nome!! Olha só, tem o mundo nele! E também tem um raio!” Mani-
festando surpresa, incrédulo, o menino levanta os olhos claros e fita
longamente a professora. Os olhares se encontram e se sustentam.
“Você quer ver?” Com as letras recortadas em papel, a professora
passa a compor seu nome, separando a palavra “mundo”, deslocando
o “o” para compor “raio”, nomeando as letras, mudando as letras de
lugar, ensaiando leituras de palavras possíveis e palavras inventadas,
lendo com ele as muitas possibilidades de composição... O mundo, o
raio, e Raimundo, super-herói, ganham forma no desenho da criança.
Mundo, raio, super-herói não só nomeiam o desenho, mas entram
como palavras no dicionário que vai sendo organizado na parede
da sala de aula. Ganham visibilidade, tornam-se referência para as
crianças na turma. Podem ser consultadas, copiadas, mobilizadas
em outras narrativas e histórias. (ARQUIVOS GPPL, 1989)

Raimundo pode mostrar para os colegas as palavras que compõem seu


nome, que seu nome comporta. Ele pode apontar, ensinar para os colegas
as palavras aprendidas. A posição de Raimundo muda na sala de aula. Ele
pode ensinar, ele aprende ensinando. Não temos os registros da microgênese
da escrita no desenvolvimento de Raimundo. Mas uma das questões que a
situação registrada nos mostra é a importância do afeto na relação de ensino
– relações interpessoais que impregnam de afeto o objeto de conhecimento,
impregnam de afeto a relação dos sujeitos (professora, crianças) com o
conhecimento.7 Outra questão, dentre tantas possíveis, é como a posição da
criança na rede de relações, o lugar de saber que a criança ocupa na sala,
as imagens que dela se formam, as formas de mediação da professora e de
participação das crianças, mostram-se constitutivos das relações da criança
com o conhecimento.
Assim, em meio às profundas mudanças tecnológicas na sociedade
contemporânea, nos últimos 30 anos, algumas indagações que persistem no
chão da escola, no interior de cada sala de aula, são: Como construir – com
a criança – a vontade: de ler, de escrever, de aprender, de conhecer? Como

7 Leite (2006), Tassoni (2008), Barbosa (2010)

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mobilizar o desejo? Como compartilhar os gestos de ensinar/aprender que


façam sentido para as crianças? Como compreender/aprender os mais diversos
modos pelos quais as crianças fazem sentido da forma escrita de linguagem,
na relação com o que é apontado, indicado, disponível e acessível hoje, na
heterogeneidade da ambiência cultural na qual a criança encontra-se inserida?
Quando falamos em construir a vontade, admitimos que ela não é inata, mas se
configura nas condições concretas e nas relações interpessoais, e envolve uma
(dis)posição dos sujeitos que implica a orientação da atividade com sentido.
Para além, portanto, de um “mero” conteúdo escolar a ser aprendido, para
além de um “simples” objeto de conhecimento a ser ensinado, pensar a forma
escrita de linguagem como uma nova formação, como atividade significativa
que vai continuamente se (trans)formando na história humana e no nível da
ontogênese, faz diferença no gesto de ensinar. Assim concebida, a escrita vai
se constituindo em/como um laborioso trabalho simbólico, coletivamente
compartilhado, e, ao mesmo tempo, singularmente diferenciado.
Mas como temos interpretado e investigado o desenvolvimento humano,
como temos compreendido as condições de desenvolvimento de cada criança
e como temos concebido a própria escrita no processo de alfabetização na
instituição escolar?

Dos modos de se conceber o desenvolvimento humano:


história e complexidade

Num levantamento da nossa produção acadêmica, de projetos e manuais


orientadores do trabalho de professores nas últimas décadas8, encontramos
uma elaborada explicitação dos conhecimentos dos aspectos linguísticos
envolvidos no processo de alfabetização (SOARES, 1985; 2016)9. E se há,
também, referência ao desenvolvimento da criança, tem havido uma redução
do desenvolvimento humano aos aspectos cognitivos, à psicogênese da língua
escrita, com base nas hipóteses pontuadas por Ferreiro e Teberosky (1985).
Admitindo as contribuições desse relevante trabalho investigativo, realizado
também há três décadas, o que conseguimos enxergar por este prisma teórico?
O que escapa deste prisma?
Em uma coletânea de textos publicada há mais de 20 anos, linguistas
como Milton do Nascimento, Luiz Carlos Cagliari, Bernadete Abaurre, Roxane

8 Programas como Ler e Escrever, Pró-Letramento, PNAIC, dentre outros.


9 Exemplar neste aspecto é o trabalho de Magda Soares (1985; 2016, dentre muitos outros), incontestável
autoridade no assunto, que incansavelmente aponta, explicita e reitera as múltiplas facetas ou dimensões
da alfabetização, detalhando as diversas formas de “consciência” (awareness) – fonológica, pragmática,
semântica, fonêmica, silábica, grafofonêmica, morfológica, sintática, lexical, gramatical, metatextual,
metalinguística – implicadas no processo de alfabetização.

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Rojo,10 entre outros, trouxeram para debate vários aspectos da aprendizagem


da escrita pelas crianças. Já então apontavam para a importância de se
considerar uma multiplicidade de relações e hipóteses elaboradas pelas
crianças, que os adultos, pesquisadores alfabetizados, não conseguiam
perceber, entender, significar. Ou seja, se a elaboração histórica do sistema
alfabético viabilizou um fantástico salto qualitativo na experiência humana,
essa foi uma das formas possíveis de representação e organização, mas não a
única, nem a completa, isto é, há inúmeras formas de relações que escapam
do sistema historicamente instituído, que não se “enquadram” nas notações
gráfico-sonoras. E, para se conhecer como as crianças se relacionam, hoje,
com a escrita, como elas compreendem e aprendem tal sistema alfabético,
suas regras, sua lógica, seu modo de funcionamento, há que se alargar os
modos de conceber e há que se colocar em relação tanto as múltiplas formas de
linguagem quanto a complexidade do desenvolvimento humano nas dimensões
histórica e individual.
Ao lidar com tantas questões aqui levantadas, encontramos nas elaborações
de Vigotski instigantes provocações: sobre a natureza social do desenvolvimento
humano, sobre as relações pensamento e linguagem, sobre a forma escrita de
linguagem, sobre as relações de ensino, sobre a atitude investigativa, dentre
outras. Uma das preocupações que marcou seus trabalhos desde o início dizia
respeito aos modos de ensinar, aos modos de estudar as relações de ensino,
e às resultantes ou efeitos dessas relações. O planejamento das situações de
ensino eram também, ao mesmo tempo, lócus de investigação dos modos de
aprender das crianças, isto é, dos modos delas se apropriarem da cultura.
No curso de suas teorizações, Vigotski chamou a atenção para a história
do desenvolvimento cultural do ser humano. Nos seus modos de abordar o
desenvolvimento humano, ele apontava, insistentemente, para a história do
desenvolvimento – história do desenvolvimento do gesto de apontar, história
da atividade humana, história das funções psicológicas superiores, história
da linguagem, história dos signos, história da consciência... (VIGOTSKI, 1995;
1996; 2000; SMOLKA, LEITE, AMORIM, 2015).
Engajado em um projeto de sociedade e comprometido com a educação
para todos e para cada um, aí incluindo as crianças pobres, abandonadas,
em situação de risco, assim como aquelas com necessidades especiais,
surdas, cegas, com deficiência intelectual e/ou múltipla, Vigotski estudava
e defendia as leis gerais do desenvolvimento humano, ao mesmo tempo em
que ensinava e alertava para a importância de se considerar a situação social
de desenvolvimento de cada pessoa. Concebendo o meio, a ambiência social,
cultural, como fonte de desenvolvimento, ele mostrava, em seus estudos, como

10 ROJO, R. (Org.). Alfabetização e Letramento: perspectivas linguísticas. Mercado de Letras, 1998.

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Relações de ensino e desenvolvimento humano: reflexões sobre as (trans)formações na atividade de (ensinar a)
ler e escrever

o ritmo de desenvolvimento na relação do indivíduo com o meio é variável e de


grande complexidade, desde o funcionamento orgânico (fisiológico, neurológico,
endócrino, por exemplo) até os modos de (inter)agir, aprender e apropriar-
se da cultura (VIGOTSKI, 2018), nas relações e condições historicamente
determinadas.
Seu argumento, portanto, é que o desenvolvimento é histórico. Isso
não implica uma teleologia, uma finalidade a priori, mas envolve uma
(trans)formação contínua. O ritmo do desenvolvimento não coincide com a
contagem cronológica do tempo. O tempo desse desenvolvimento não é uma
constante, há períodos de acelerações intensas que se alternam com períodos
de desaceleração. O desenvolvimento infantil não é um mero crescimento
quantitativo de determinadas particularidades, mas há uma reestruturação
das relações entre as partes e funções do organismo e as emergentes funções
psicológicas.
O ritmo de desenvolvimento não está relacionado à idade em si, mas à
produção de novas formas de atividade psíquica, novos interesses e vontades,
novas formações, que se produzem na situação social de desenvolvimento
na qual a criança está inserida. Ou seja, as condições orgânicas na interação
com as condições do meio formam uma unidade dinâmica, sempre em
movimento. Essa reorganização de uma unidade dinâmica envolve a
percepção, a atenção, a memória, a emoção, a imaginação, a significação, a
linguagem, a vontade (atividade voluntária, a regulação do comportamento),
a conceitualização... num complexo sistema funcional. A forma escrita de
linguagem vai integrando esse complexo, vai viabilizando a reestruturação e
se tornando constitutiva de novas relações, vai transformando os modos de
funcionamento mental.
É pelo prisma da sociogênese do desenvolvimento, de inspiração
vigotskiana, que temos buscado trabalhar a alfabetização com as crianças,
levando em conta a complexidade e a plasticidade orgânica, cerebral,
simbólica, nas formas de apropriação das práticas sociais. Deste ponto de
vista, assumimos também que, no processo de apropriação da cultura pela
criança, “a própria cultura reelabora em profundidade a composição natural de
seu comportamento e dá uma orientação completamente nova a todo o curso
do desenvolvimento”. (VIGOTSKI, 1995, p. 305). Ou seja, a ontogênese – o
desenvolvimento das crianças, de cada criança – apresenta-se como um lócus
por excelência de novas formações, de (trans)formações históricas.
Em nossos estudos e práticas, temos buscado observar as mais diversas
ações e movimentos nas crianças no ensino fundamental, procurando levantar
indícios ou indicadores desse trabalho simbólico em constituição: desde a
brincadeira das crianças (de ler e escrever), envolvendo palavras e gestos
indicativos do desejo e interesse de (aprender a) ler e escrever, até aquilo que se

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mostra como recusa ou resistência sistemática em (aprender a) ler e escrever;


passando também pelos conhecimentos ou domínios variados dos suportes
e aspectos da escrita. Levando em conta as particularidades, experiências e
diferentes ritmos de desenvolvimento dessas crianças, buscamos problematizar
aquilo que pode parecer, à primeira vista, como negativo, como dispersão ou
dificuldades, aquilo que nos surpreende pela descontinuidade ou desvio face
às prescrições e expectativas, e que vai evidenciando não só as condições,
mas as rupturas e a não linearidade no processo, bem como outras, novas,
possibilidades de interpretação nas relações das crianças com a forma escrita
de linguagem.
Mais uma vez, as leituras do autor russo nos provocam, na medida
em que apontam para inúmeras não coincidências, tanto no processo
de desenvolvimento quanto nas relações entre pensamento e linguagem
(VIGOTSKI, 2001; SMOLKA, 2006; 2010). Ainda, quando ele afirma, em seus
estudos sobre o desenvolvimento cultural, incluindo o desenvolvimento de
pessoas cegas e surdas, que “[n]ão é obrigatório que a linguagem [escrita]
dependa do aparato fônico, pode encarnar-se em outro sistema de signos, como
a escrita do sistema visual pode transformar-se em um sistema tátil” (1995, p.
311); ou quando argumenta que o problema crucial não é o uso de sons mas o
uso funcional dos signos (VIGOTSKI, 2001). São provocações que nos incitam
a prosseguir investigando enquanto ensinamos, enquanto alfabetizamos.
Quando, por exemplo, WhatsApp, YouTube, Google passam a integrar
o vocabulário das crianças e a fazer parte do rol de palavras escritas,
compondo o dicionário na sala de aula, somos demandados a considerar
não só as palavras, mas os próprios instrumentos técnicos e semióticos (que
condensam uma história de conhecimentos e práticas), viabilizados pelos
celulares, nos nossos estudos; torna-se importante investigar as condições de
acesso e os usos que as crianças fazem de tais instrumentos e como estes se
tornam constitutivos de seus (dos nossos?) modos de falar, pensar, aprender,
memorizar, raciocinar; como afetam e repercutem nas relações de ensino. “Os
processos de desenvolvimento do pensamento infantil se apresentam para
nós como um autêntico drama do desenvolvimento, como um processo vivo
de elaboração da forma histórico-social de comportamento” (VIGOTSKI, 1995,
p. 303). Drama que se intensifica para professoras e crianças no processo de
apropriação, de incorporação da forma escrita de linguagem como um modo de
operar na contemporaneidade, tendo em vista as transformações históricas –
por exemplo, da trabalhosa coordenação motora exigida na caligrafia para o
breve digitar ou o leve touch na tela.
Levar, portanto, em consideração a complexidade do tempo histórico e
da produção humana; a complexidade da língua em suas múltiplas facetas;
a complexidade do desenvolvimento humano e da produção humana na

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ler e escrever

dinâmica das relações sociais e na desigualdade das condições de vida; tem


implicações importantes para as também complexas relações de ensino, no
processo de alfabetização. O conhecimento e a consideração desses aspectos
fazem diferença nos modos de ensinar.

Das (trans)formações na atividade de (ensinar a) ler e


escrever

A relevância dessas indagações e discussões teóricas encontra-se no fato de


que elas nos ajudam a problematizar e a colocar em perspectiva questões que
nos afetam cotidianamente, instigando um olhar investigativo tanto no âmbito
das políticas quanto no das práticas. O conhecimento dos diversos aspectos
e teorizações, assim como a busca de consistência teórica e metodológica no
ensino e na pesquisa, mostram-se urgentes e tornam-se visíveis nos embates
diários, nas arenas de luta.
Em épocas do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC),
implementado há quase 10 anos, já discutíamos o problema da “idade certa”
relacionado ao problema do meio, num país tão heterogêneo e desigual como o
Brasil. Na sua estrutura e nas suas formas diversas de realização, o programa
ainda viabilizou o diálogo dos docentes nas universidades com os professo-
res no chão da escola, envolvendo as secretarias estaduais e municipais de
educação (Cf., por exemplo, CONSTANT, 2018; LINO et al., 2019). Os profes-
sores eram chamados a participar e a discutir teorias e práticas a partir das
diretrizes propostas, do material elaborado e distribuído, incluindo o acesso
e o incentivo à leitura de livros de literatura disponibilizados pelo Programa
Nacional de Biblioteca Escolar, PNBE, desmontado em 2016.
No momento atual – 2019 –, quando o governo federal institui a Conferência
Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências11 (Conabe), referindo-se a
um painel de “especialistas em alfabetização”; invocando “autoridades educa-
cionais” de países como o Reino Unido, EUA e França, mas menosprezando a
diversidade das práticas, os estudos, as análises das condições, as polêmicas
e a extensa produção no país; quando o governo proclama a “literacia” e a
“numeracia” como termos que (supostamente) trazem algo de novo, mas pro-
pondo um retorno à “fônica” como política pública; como podemos argumentar
e mostrar que outras formas de se alfabetizar merecem ser consideradas? Como
“evidenciar” que a vivência atribuída de sentido ancora práticas de alfabetização
significativas, fecundas e bem-sucedidas?
Conhecer a história, conhecer as teorias – do desenvolvimento, da lingua-
gem, da educação, das relações sociais, etc. –, conhecer as políticas, conhecer o

11 MEC INSTITUI CONABE e painel de especialistas em alfabetização. Portal MEC, Brasília, 19 ago. 2019.
Disponível em: http://portal.mec.gov.br/component/content/article?id=79261.

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campo de atuação, vivenciar as condições e as relações de ensino nas escolas,


mostram-se como um importante lócus de resistência e de argumentação. É
deste lugar, da práxis, do lugar da autoridade da vivência e do conhecimento,
que é preciso argumentar.
Ao elaborar sobre o conceito de vivência, Vigotski enfocou, prioritariamente,
o processo de desenvolvimento cultural da criança, buscando mostrar como,
nesse processo, generalizam-se e se reestruturam as experiências vividas pela
criança, formam-se novas relações da criança consigo mesma, enquanto ela
vai (re)conhecendo e refletindo sobre a própria vivência. “Vivência” é então
conceituada como “uma unidade na qual se representa, de modo indivisível,
por um lado, o meio, o que se vivencia [...] e por outro lado, como eu vivencio
isso (como a criança se relaciona com o meio e significa uma situação)”12
(VIGOTSKI, 1996b; 2010; 2018).
Tomando o conceito de vivência como experiência vivida e significada, como
“unidade dinâmica da consciência” (VIGOTSKI, 1996a, 1996b), podemos in-
dagar sobre as relações de ensino no processo de alfabetização. Como temos
vivenciado, significado, o gesto de ensinar a ler e a escrever?
Os muitos estudos e análises de uma práxis coletivamente vivenciada, os
mais diversos relatos de professoras e professores no chão da escola,13 têm
nos ensinado que as crianças aprendem a ler, lendo, e a escrever, escrevendo;
que a vivência da literatura mobiliza e potencializa o desejo de aprender a ler
e a escrever, propiciando muitas formas de apropriação do texto lido/escrito;
que a atividade de escrever leva a elaborações sobre a escrita; que, ao tentar
registrar a fala, as crianças atentam para a dimensão sonora da língua, bus-
cam e elaboram sobre os diversos modos e possibilidades de grafar os sons;
que, ao acompanhar os “tateios experimentais”14 das crianças, podemos vis-
lumbrar aspectos de seus modos de operar e compreender como “uma regra
pode se tornar um desejo”15 ; que escrever não é só desenhar ou grafar a fala,
mas é registrar o pensar; que registrar o pensar é lidar com a complexidade
do funcionamento mental – envolvendo emoção, memória, imaginação, sig-
nificação16... processos vão sendo forjados numa dinâmica interação desde a
mais tenra idade.

12 Perejivanie é o termo em russo, usado no cotidiano e no campo da psicologia, que Vigotski destaca e ela-
bora conceitualmente, atribuindo relevância teórica e significado especial. Termo e conceito encontram-se
hoje como foco em intenso debate. Cf. Delari Jr. (2009); Toassa (2010); Veresov (2016).
13 Goulart e Wilson (2013), Goulart e Souza (2015), Goulart (no prelo) trazem instigantes análises dessas
relações, por uma perspectiva discursiva na alfabetização. Eventos como Fala outra escola mostram-se
como importantes locus de compartilhamento de práticas. https://www.fe.unicamp.br/eventos/agenda-
-de-eventos/ix-fala-outra-escola-co-lecionar-praticas-de-humanizacao-com-e-para-a
14 Freinet (1976).
15 Vigotski (1984, 1995) comenta sobre o brincar da criança, fazendo referência a Espinosa. Expandimos
aqui essa ideia para abarcar, na vivência significativa das crianças com a escrita, a emergência do desejo
de compreender e dominar as regras ortográficas, sintáticas, convencionalizadas.
16 Bakhtin, 1981; Voloshinov, 2017; Smolka, 2004.

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ler e escrever

Lembrando que ensinar e significar encontram-se na mesma raiz comum,


e admitindo que “a significação é função da relação com o outro” (PINO, 2005),
podemos, nessa relação, mobilizar com as crianças a memória do futuro,
ampliando o olhar para acolher o ainda não conhecido. Privilegiar os modos
singulares de falar e de pensar das crianças na apropriação da cultura; apurar
o olhar e a escuta e reconhecer que palavras e gestos das crianças trazem as
marcas de suas histórias e condições de vida; encorajar a vivência da escrita
impregnada de sentidos; viabilizar a elaboração da consciência pela forma
escrita de linguagem: todas essas atitudes integram os gestos de ensinar, o
trabalho de alfabetizar.
É neste trabalho, na vivência desta práxis que apostamos e insistimos,
admitindo que, no processo de constituição histórica do ser humano, as
crianças se (des)envolvem nas relações com os professores também em (des)
envolvimento, participando co-labor-ativamente das (trans)formações, tanto
da atividade de ensinar quanto das atividades de ler e de escrever. Movimen-
to histórico dialético de interconstituição, no qual se realçam as relações de
ensino e se ressaltam as formas de atuação, de co-labor-ação dos envolvidos
na relação. Assim, na vivência das condições históricas, (ensinar a) ler e es-
crever se evidenciam como atividades (trans)formadoras, lócus de elaboração
da consciência. “A consciência é a vivência das vivências; é a experiência vivida
das experiências vividas” (VIGOTSKI, 1996a).
Fazendo ainda ecoar, 50 anos depois, o poema de Thiago de Mello, ao pro-
clamar a alegria do homem que começa a ler, compartilho fragmentos de um
diálogo em sala de aula de um 1º ano, no qual se mostra o entusiasmo da
criança na elaboração de um projeto de futuro:

Cça: Prô! Agora eu já sei como é a vida de um escritor! Eu vou ser


um escritor bem famoso!
Pro: Ah, é?
Cça: Às vezes eu não vou nem fazer a história da Chapeuzinho Verme-
lho! Vou inventar uma! [...] Meu caderno de desenho vai ser um livro!
Pro: Ah! Que legal, boa ideia! Aí você sempre escreve uma história
diferente!
Cça: Toda vez! Toda vez! Aí quando acabar o meu caderno, eu vou
comprar outro!
Pro: Isso! Aí vai ficar um caderno cheio de histórias diferentes!
Cça: É! Aí eu vou ser famoso mesmo! Eu posso até contar... Posso até
ser um professor que lê histórias como você! (DIAS, 2015)

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