Artigo

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 11

TRANSCRIÇÃO E EDIÇÃO DE UMA CARTA OFICIAL

MANUSCRITA DO SÉCULO XVIII

Rayane Thaynara SANTOS1


Universidade Federal de Mato Grosso
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem – PPGEL
Carolina Akie Ochiai Seixas LIMA2
Universidade Federal de Mato Grosso

RESUMO

O presente trabalho tem o propósito de analisar, a partir do ponto


de vista filológico, uma carta oficial de 3 de julho de 1788, escrita por José
Pinheiro de Lacerda a Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, a
pedido do governador de Moxos, endereçada ao governador da capitania
de Mato Grosso. O motivo de tal carta é para informar sobre o envio de
um saco de cartas. Por meio da ciência da filologia, que estuda o texto,
apresentarei a edição semidiplomática conforme metodologia
convencionada do PHPB, para analisar alterações sofridas na grafia de
algumas palavras. Este trabalho é desenvolvido no âmbito do grupo de
pesquisa FOLIUM – Estudos Interdisciplinares de Linguística, Filologia e
História, coordenado pela Profa. Dra. Carolina A. O. S. Lima, e além de
contribuir para com as pesquisas do projeto PHPB-MT - Para a História
do Português Brasileiro em Mato Grosso.

Palavras-Chave: Filologia, Manuscrito, Edições, Paleografia.

ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze, from the philological point


of view, an official letter of July 3, 1788, written by José
Pinheiro de Lacerda to Luís de Albuquerque de Melo Pereira and Cáceres,
at the request of the Governor of Moxos, addressed to the governor of the
captaincy of Mato Grosso. The reason for such a letter is to inform about
sending a bag of letters. Through the science of philology, which studies

1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem–PPGEL/UFMT, sob
orientação da Profa. Dra. Carolina Akie Ochiai Seixas Lima.
2
Professora de Latim, Filologia Românica e Língua Portuguesa, Departamento de Letras,
Instituto de Linguagens-UFMT, campus Cuiabá e do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagem–PPGEL/UFMT. carolakie@yahoo.com.br
the text, I will present the semidiplomatic edition according to the agreed
methodology of PHPB, to analyze changes in the spelling of some words.
This work is developed within the research group FOLIUM -
Interdisciplinary Studies of Linguistics, Philology and History,
coordinated by Profa. Dr. Carolina A. O. S. Lima, and besides contributing
to the research of the project PHPB-MT - For the History of Brazilian
Portuguese in Mato Grosso.

KEYWORDS: Philology, Manuscript, Editions, Paleography.

1. Introdução

O presente artigo tem como propósito, a partir do ponto de vista da


filologia, analisar a edição fac-similar e semidiplomática e também a
transcrição e análise de uma carta do comandante José Pinheiro de Lacerda
informando o envio de um saco de cartas Governador de Moxos para o
governador da capitania de Mato Grosso, a respeito de um saco de cartas
que estava sendo enviada para a dita capitania, datado de 03 de julho do
ano de 1788.

Quando falamos em filologia, estamos tratando da ciência que


estuda língua por meio de documentos escritos (Melo, 1981). Ou seja, para
estudar uma língua por meio dessa ciência é necessário que se tenha
registros escritos, sendo que tal área de estudo se vale de ciências
complementares como história, paleografia e arqueologia.

Conforme Melo (1981), o pesquisador precisa compreender


diversos aspectos presentes nos manuscritos tais como, as abreviaturas,
que devem ser desfeitas, identificar as possíveis intervenções sofridas no
texto (pequenas inserções de palavras ou marcas, bem como carimbos),
além dos aspectos históricos culturais e políticos que interferem nas escrita
desde a forma de escrever, as escolhas de palavras e as referências
apresentadas.

Moraes (1994) apresenta a filologia, como ciência que

‘’tem como objeto principal o conhecimento


completo e perfeito da civilização de um povo,
numa determinada época de sua vida civil,
através das suas obras de razão, de sentimento
e de fantasia".

Já Coutinho (1976, p.17) apresenta outra definição para a filologia


e que nos mostra as diferenças entre o seu estudo e a ciência da linguística.
Segundo o autor, filologia é “a ciência que estuda a literatura de um povo
ou de uma época e a língua que lhe serviu de instrumento”.

Para este artigo, objetivou-se o uso da filologia para analisar


alterações sofridas na grafia de algumas palavras. E justifica-se pela
importância que os manuscritos têm para a história de Mato Grosso.

2. Abordagem teórico-metodológica

Spina (1994) nos apresenta quatro possibilidades para reproduzir


um texto, são elas: mecânica ou fac-similar; diplomática; semidiplomática
ou diplomático-interpretativa e texto crítico.

Nós estudaremos o manuscrito em edição fac-similar que é a


fotografia do texto, em que se reproduz as características do original e
possui um grau baixo, próximo a zero, de intervenção do editor no texto.
E segundo Santiago -Almeida (2009) esse tipo de documento permite
estudos de diversas áreas como histórico e linguístico.

Em se tratando da edição semidiplomática, Cambraia (2005) diz


que esse método é a reprodução tipográfica do texto, com o desdobramento
das abreviaturas sem, no entanto, alterar os demais aspectos do texto
(como a grafia já não utilizada mais) e, portanto, método mais adequado
para análises linguísticas.

O manuscrito aqui estudado possui um fólio, recto (r), que é do


comandante José Pinheiro de Lacerda informando o envio de um saco de
cartas do governador da província de Moxos ao Governador da Capitania
de Mato Grosso, Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres, datado
de 03 de julho de 1788.

Foi realizada a leitura do documento previamente para depois


realizarmos a edição semidiplomática de acordo com as suas normas
como, contexto em que foi escrito, datação, autoria e critérios de edição.
Para a edição semidiplomática adotamos também os critérios de
transcrição definidos pelo PHPB (projeto nacional ‘’Para a História do
Português Brasileiro). Os critérios de edição semidiplomática
apresentados nessa transcrição seguiram os seguintes itens:

1. As linhas serão enumeradas de cinco em cinco;

2. A pontuação original será mantida;

3. A acentuação original será mantida;

4. As abreviaturas serão desdobradas, indicando-se em itálico as


partes nelas suprimidas;

5. As maiúsculas e minúsculas serão mantidas como no original;

6. A ortografia será mantida como no original, não se efetuando


nenhuma correção;

7. As assinaturas serão indicadas por diples < >.


3. Edição Fac-similar
4. Edição semidiplomática
FICHA CODICOLÓGICA
Identificação ACBM-IPDAC
caixa 22- pasta 80 – nº1900
Assunto Comunicar o envio de um saco de cartas do governador
de Moxos para o Governador da capitania de Mato
Grosso
Local e data 3 DE JULHO DE 1788

Illustríssimo e Excellentíssimo Senhor


O Circunspecto Governador de Moxos,
Aqui enviou o seu manuenses Dom Manoel Delgadi-
lho, com esse saco de cartas, que remeto a Vossa Excelência creyo, que
5 veyo muito bem instruido, para não dar noticias algu-
mas, a demorar-se muito pouco tempo; o que com effeito as-
sim sucedeu, que apennas esperou pella resposta da carta
do dito Governador, e recibo do saco, pelo intervalo pouco ma
is, ou menos de [ilegível] de óra; porem o Porta Estandarte, que
10 que se incarregou de sindágar, em quanto eu respondia a car-
ta, sempre colheu deste a novidade, da prizão em que se
achava o dito cura da Exaltação Pedro Ioze de Vargaz,
a ordem do seu Bispo; por ser acuzado de que tambem perten-
dia retirar-se para estes domínios, e quanto ao primeiro,
15 servira de estranha novidade, e grande sentimento ao
ao dito Governador: igual mente deu noticia deque se acha-
va nomeado o Vosso Commissario, porem não soube dar no-
me; e que em Senhor Pedro se achao promptos para o serviço da
demarcação em, dezoito Boty, e humas grandy aposenta
20 dórias que fetivamente se [ilegível] construindo sobre huma
aterra do de oito palmos; também deu a noticia de [ilegível]
ainda pensa o [ilegível] dito Governador em bem [ilegível]
zao seu sobrinho Doutor Bernardo de Ribeira, pelas estravagan
cias do seu comportamento em Magdalena.
25 Deos guarde a Vossa Excelência muitos annos
Forte do Principe da Beira data
Illustrissimo Excelentissimo Senhor Luiz de Albu-
Querque de Mello Pereira e Caceres
De vossa Excelentissima
30 Muito omilde súbdito, e criado obrigandomo
<Ioze Pinheiro de Lacerda>

5. Filologia

Somente em 1911 entrou em vigor o acordo ortográfico para


uniformizar a grafia. Naquele longo período histórico, a ortografia era uma
prática ao gosto de cada um. Conforme Silva (2016, p. 9), “o cidadão
escolhia o autor de sua simpatia ou conveniência, sem qualquer obrigação
de seguir à risca as normas indicadas pelo escolhido”.

Podemos perceber pela grafia deste documento que se trata do


período pseudoetimológico, que se inicia no século XVI e se estende até
1904, momento em que temos a publicação da Ortografia nacional de
Gonçalves Viana.

Isso se torna relevante para compreendermos os aspectos


extralinguísticos, que interferiam na escrita dos escribas nesta época, e que
poderemos observar se apresentam bem neste documento que analisamos.

A primeira característica de destaque é a presença de consoantes


dobradas, conforme descrição abaixo.
<effeito> (linha 6) <apennas> (linha 7)

<pella> (linha 7) <Mello> (linha 28)

O segundo ponto de destaque são os encontros consonantais ct, pt


apresentados no quadro a seguir.

<promptos> (linha 18)

<circunspecto> (linha 2)

Observa-se nos ditongos e tritongos a semivogal (iode) y. Segundo


Gonçalves (2003, p. 40), é denominado sistema misto, que
‘’se constitui na convergência de vários princípios “como a
etimologia e a pronúncia, podendo verificar-se versões
mais ou menos fortes de etimologia, de grafias históricas,
de adopção de grafias fonéticas, ou de sujeição ao uso, em
que a semivogal do ditongo está representada por y’’

<veyo> (linha 5) <creyo> (linha 4)


<grandy> (linha 19) <boty> (linha 19)

Percebemos, ainda, neste documento o uso de pontuações como a


vírgula, ponto e vírgula, ponto final e hífen. E podemos ver aqui o uso do
til (~) para marcar a nasalidade.

<prizão> (linha 11)

6. Contexto histórico: A Capitania de mato grosso e sua relação com


a província de Moxos

A capitania de Mato grosso foi criada pelo Conselho Ultramarino


que deliberou, por sua criação por meio de um Alvará, em 9 de maio de
1748 (ANZAI, 2008).

Nesse período, o grupo étnico prioritário da região era os indígenas,


seguido de negros que vieram devido às lavras de ouro que tinham sido
descobertas na região (Anzai, 2008).

Por se tratar de uma capitania pertencente a Portugal, e estar situado


em uma região de fronteira, o primeiro capitão dessa capitania foi Antônio
Rolim de Moura que fundou a capital Vila Bela de Santíssima Trindade,
que ficou determinada como capital da capitania, em março de 1752
(ANZAI, 2017).

Como dito, a capitania de Mato Grosso se encontrava em uma área


de fronteira, com as províncias de Moxos e Chiquitos que faziam parte de
uma ocupação castelhana. Essa ocupação foi uma estratégia do governo
espanhol para proteger o território e nela se instalaram missões religiosas.

No entanto, criou-se uma relação pouco adequada entre os


territórios de Moxos e a capitania de Mato Grosso. Em estudos recentes
realizados por Jesus (2017) e outros pesquisadores, em análises de
documentos encontraram-se informes referentes a contrabandos realizados
entre os dois territórios.
Conforme a autora, dentre as mercadorias comercializadas destaca-
se o de cabeças de gado vacum e cavalos, importantes por se tratar de uma
região de fronteira onde a escassez de produtos predominava e o pouco
que se tinha alto custo (JESUS,2017).

Considerações Finais

Neste texto mostramos a relevância do estudo de manuscritos por


meio da filologia para compreender o documento em sua totalidade.
Podendo assim, fazermos as análises linguísticas desejadas.

Ao realizarmos este estudo, contribuímos então para a divulgação


e entendimento do surgimento e relações que nosso estado, uma região de
fronteira e portanto, de contato com outros povos no que tange a cultura e
língua, bem como permitir que outros pesquisadores tenham acesso a esses
documentos e possam realizar estudos mais amplos sobre os temas aqui
abordados.

Por fim, pensando em nossa língua, em sua modalidade escrita, o


presente artigo permite que nós possamos entender mais as alterações
sofridas ao longo do tempo e o que pode ter motivado tais mudanças.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANZAI, Leny Caselli. Missões de Chiquitos e Moxos e a capitania de


Mato Grosso. Revista lusófona de ciência das religiões – ano VII, 2008 /
n. 13/14 – 253-262

CAMBRAIA, C. N. Introdução à crítica textual. São Paulo: Martins


Fontes, 2005.

COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática histórica. Rio de Janeiro: Ao


Livro Técnico, 1976.

FLEXOR, M. H. O. Abreviaturas: manuscritos dos séculos XVI ao XIX.


São Paulo: Secretaria da cultura: Coordenadoria de Atividades Culturais,
Departamento de Artes e Ciências Humanas – Divisão de Arquivo do
Estado (DAE), 1979

GONÇALVES, Maria Filomena. As ideias ortográficas em Portugal e


pronunciar com acerto a Língua Portuguesa – de Madureira Feijó a
Gonçalves Viana (1734 – 1911). Lisboa: Edição Fundação Calouste
Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia, MCES, 2003.

JESUS, Nauk Maria de. O contrabando na fronteira oeste da América


portuguesa no século XVIII. Hist. R., Goiânia, v. 22, n. 3, p. 70–86,
set./dez. 2017.

MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à filologia e à linguística


portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981.

MORAES, Lygia Corrêa Dias de. Filologia e Língua Portuguesa:


histórico. Estudos Avançados 8(22), 1994 p. 415-421.

SANTIAGO-ALMEIDA, M. M.; Os manuscritos e impressos antigos: a


via filologia. In: Beatriz Daruj Gil; Elis de Almeida Cardoso; Váleria Gil
Condé. (Org.) Modelos de Análise Linguística. São Paulo: Contexto, 2009,
v. 1.

SILVA, José Pereira da. Ortografia do português do século XVI a 2016.


Rio de Janeiro: edição do autor, 2016.

SPINA, S. Introdução à Edótica. 1-2 ed. São Paulo: Cultrix, 1977, 1994.

Você também pode gostar