O Corpo - Fenomeno e Manifestação

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

INSTITUTO DE ARTES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES VISUAIS

MESTRADO EM ARTES VISUAIS

POÉTICAS VISUAIS

Luciana Paludo

Corpo,

fenômeno e manifestação:

perfomance

Porto Alegre

2006
1

Luciana Paludo

Corpo,

fenômeno e manifestação:

performance

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós Graduação em Artes Visuais
do Instituto de Artes da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, como requisito parcial
para obtenção do grau de Mestre em Artes
Visuais, com Área de Concentração em
Poéticas Visuais.

Orientadora: Profª. Drª.: Romanita Disconzi

Porto Alegre

2006
2

A Comissão Examinadora abaixo assinada, avaliou a


Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em
Artes Visuais do Instituto de Artes da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul

Corpo,

fenômeno e manifestação:

performance
Elaborada por

Luciana Paludo

Como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Artes


Visuais, com Área de Concentração em Poéticas Visuais.

Orientadora: Profª. Drª.: Romanita Disconzi

Comissão Examinadora

Profª Drª: Maria Carolina dos Santos Rocha ________ /Dptº. Filosofia UFRGS.

Profª Drª: Maristela Salvatori ________________________________/ UFRGS.

Profª Drª: Sandra Rey ______________________________________/ UFRGS.

Porto Alegre, 1º de junho de 2006.


3

PARA:

Minha querida família, que, ao longo desses


anos, ajudei a constituir: Laércio, Leonardo,
Carolina e Gabriela, por tornarem possível a
compreensão de conceitos como afeto,
alteridade, resignação; amor.

Aos meus pais, por sempre terem acreditado na


arte como forma de viver, obrigado.
4

AGRADECIMENTOS

- A minha orientadora, pela generosidade da acolhida a esta pesquisa e incentivo


constante.

- Aos membros da banca, pelo interesse que demonstraram por minha pesquisa,
ao aceitarem o convite para esta interlocução.

- Para a professora Mônica Zielinsnky, pelo carinho e amizade.

- Aos queridos amigos artistas, colegas da inesquecível turma 12, pelas longas
horas coletivas de reflexão, criação, diversão e arte.

- Minhas amigas Kátia, Paula, Amélia e Daggi, pela disponibilidade.

- Meus alunos, pela paciência de me esperar terminar este Mestrado, para que
pudesse lhes dar mais atenção.

- Ao CAPES, o qual tornou possível, no último ano deste Mestrado, uma


dedicação maior a esta pesquisa.

- Aos artistas que trabalharam em colaboração em algumas performances.


5

Movimento, tato, visão aplicam-se, a partir de então, ao


outro e a eles próprios, remontam à fonte e, no trabalho
paciente e silencioso do desejo, começa o paradoxo da
expressão.

Ora, essa carne que se vê e se toca não é toda a carne, nem


essa corporeidade maciça, todo o corpo. A reversibilidade que
define a carne existe em outros campos, é mesmo
incomparavelmente mais ágil, e capaz de estabelecer entre os
corpos relações que desta vez, além de alargarem, irão
definitivamente ultrapassar o campo do visível. (...) Esta nova
reversibilidade e a emergência da carne como expressão
constituem o ponto de intersecção do falar e do pensar no
mundo do silêncio.

Maurice Merleau-Ponty, em O Visível e o Invisível; p. 140.


6

RESUMO

Corpo, Fenômeno e Manifestação: Performance é uma pesquisa em Poéticas


Visuais onde convergem questões de um processo artístico de performance,
respaldado por uma prática intensa na dança, experimentações, apresentações,
leituras filosóficas e reflexões. Dessa confluência de fatores originou-se a
produção textual que investiga e traz à tona as questões do corpo enquanto
fenômeno e manifestação na arte da performance.
As performances feitas, no decorrer do processo de pesquisa, bem como a
observação de performances de outros artistas e estudos sobre teorias da arte,
propiciaram o embasamento para a escrita. Puderam ser observados
procedimentos operatórios similares, que me levaram a diferentes configurações,
em distintas circunstâncias. Por exemplo, a toda performance apresentada foi
fundamental o trabalho perceptivo corporal envolvendo todas as articulações de
meu corpo, bem como sua musculatura; nesse sentido podia me assegurar que
um ser sensível e responsivo surgisse para a atuação, que estivesse ali – o ser -,
em pleno domínio de seu estado de presença. A tal procedimento deu-se o nome
de corpo percepcionado.
A preparação do ambiente, onde a ação performática seria realizada, isto é, o
ambiente que receberia o meu corpo, também passou a fazer parte de um
regramento para atuar. A esse procedimento chamei espaço preparado. Ao
espaço preparado se trouxe a luz, elemento que passou a gerar influência sobre
minha poética e sobre a estética que se fazia surgir. O corpo vivo, na
performance, é elemento plástico; sua presença interfere no espaço.
Percebi que a luz intensificava o lugar do espaço e o lugar do corpo que se
pretendia em evidência; era um desencadeador perceptivo. Uma via dupla se
estabelecia, entre a ação do corpo e o olho do receptor, através dos recortes de
luz no espaço e no corpo, durante as ações realizadas. O corpo, no que lhe cabia,
operava o procedimento de reunir as informações colhidas e os elementos
trazidos, a cada performance realizada. Nessa questão se estabeleceu a proposta
de uma dialética entre corpo e espaço; enquanto isso, no corpo, sínteses se
pronunciavam e determinavam a configuração apresentada.
Cheguei à conclusão que é justamente assim – em plena percepção de suas
possibilidades de ação sensorial e motora, e na preparação e apropriação do
ambiente imediato que o circunda - que meu corpo, em sua temporalidade,
assume o espaço e, juntamente com suas memórias – e grande parcela de
intencionalidade – configura uma aparência. Mais do que na aparência, centra-se
o objeto do presente estudo na questão do fenômeno; do que permite o corpo
fenomenal engendrar uma manifestação.

Palavras-chave: percepção, corpo, espaço, ação, configuração, performance.


7

ABSTRACT

Body, Phenomenon and Manifestation: performance is a research in Visual Poetics


in which questions of an artistic process of performance converge, supported by an
intense practice in dance, experimentations, presentations, philosophical readings
and reflections. From this confluence of factors it was originated this textual
production that investigates and raises questions about the body as phenomenon
and manifestation in performance art.
The performances done during the research process, as well as observation of
other artist’s performances and studies of art theory, were the ground in which the
text was based upon. Those activities made possible the observation of similar
operative procedures, which have guided me to different configurations, at different
circumstances. By instance, in each performance that was presented, it was
essential the perceptive effort of the body involving all the articulations of my body,
as well as its muscles; thus it was possible to assure that a sensitive and
responsive being would emerge to the action. This procedure was called
perceptional body.
The preparation of the place where the performance would take place also began
to be part of a regiment to act. This procedure was called prepared space. To the
prepared space light was brought – and light generated shadows; both elements
have determined influence over my poetics and the aesthetics that was taking
place. I perceived that the living body, in performance, is a plastic element; its
presence interferes in space. Light and shadow intensify the place of space and
the place of the body that is intended to be evident; they are perception unleashing
elements. A double way is established, between the body’s action and the receptor
eye. The body operates the procedure of bringing together the collected
information and the brought elements, at each performance. On this matter, it was
established the proposition of a dialectics among body, light and space. The body,
prime material of constitution of a performance, is an element which generates
synthesis; it perceives the other elements in the surrounding and determinates the
configuration to be presented.
Practical and theoretical investigation have lead me to the conclusion that,
precisely at the full perception of its sensorial and motor action, and at the
preparation and appropriation of the immediate surroundings that the body, in its
temporality takes charge of space, and, along with its memories – and a great
amount of intention – figures an appearance. More than the appearance, the object
of the present study is the phenomenon; of what allows the phenomenal body to
engender a manifestation.

Key-words: perception, body, space, action, configuration, performance


8

SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................ 6
ABSTRACT ........................................................................................................... 7
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11

Primeira Parte: Performance – Corpo e História: Contextos .......................... 19

1 PARA REFLETIR SOBRE A PERFORMANCE E O ATO DE PERFORMAR .. 19


1.1 Artistas delineiam um corpo performático.................................................. 26
1.2 Antes da década de 1960.............................................................................. 31
1.3 Nova Iorque e o sonho das vanguardas.......................................................38
1.4 Contextos do Brasil - 1960 ........................................................................... 41
1.5 Corpos e atitudes ...........................................................................................43

2 ESBOÇO DE UMA REFLEXÃO ONTOLÓGICA - O Ser da Performance...... 46


2.1 O corpo desvelado........................................................................................ 49
2.2 Artistas referenciais ..................................................................................... 52
2.3 Pedaços de História Guardados num Corpo ............................................. 60
2.3.1 A Construção do Material Corpo em Questão ........................................ 60

Segunda Parte: A Experiência Própria ............................................................. 63

1 (eu) Vim – RITUAIS PARA UMA INSTÂNCIA EVOCATIVA............................ 64


1.1 Relato/Ensaio de uma Experiência ............................................................. 64
1.2 Impressões do Emissor; Semântica do Receptor ..................................... 69
1.3 Performance e Tempo .................................................................................. 72

2 UM OLHO PARA O PASSADO E OUTRO PARA A IMAGINAÇÃO ............... 76


2.1 Material em Camadas.................................................................................... 80
2.2 Memórias Visíveis, Memórias Invisíveis – Objetos para atuar.................. 81
9

2.3 A Função das Palavras para com as Coisas ............................................. 83

3 ESPAÇO, CORPO E MEMÓRIA....................................................................... 85

3.1 A Ocupação de um Espaço Alternativo Vazio – FUNÇÃO 01 [F¹] ............ 85

3.2 A Performance do Apartamento.................................................................. 87

3.3 Da Possibilidade de Intercambiar Experiências ........................................ 89

4 MEMÓRIA TALHADA NO CORPO .................................................................. 95


4.1 A Série Sulcos na Carne .............................................................................. 95
4.1.1 Você tem duas escápulas ......................................................................... 96
4.1.2 Daquilo que se esvai ................................................................................. 97

5 ANÁLISE DOS RESULTADOS E METODOLOGIA ......................................... 99


5.1 Dos Trabalhos Práticos Realizados ............................................................ 99
5.2 Das Referências Teóricas e Procedimentos .............................................101
5.3 O Conceito Memória e sua Relação com a Aparência ............................ 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................110

REFERÊNCIAS ...................................................................................................112

OBRAS CONSULTADAS .................................................................................. 114

JORNAIS, REVISTAS E CATÁLOGOS ............................................................ 116

REFERÊNCIAS A DOCUMENTOS EM MEIO ELETRÔNICO .......................... 117

REFERÊNCIA A DOCUMENTÁRIO .................................................................. 117


10

LISTA DE ANEXOS

ANEXOS – PRODUÇÕES PRÓPRIAS................................................................118

ANEXO A - Esquizo-soma, 2003-2004 ...............................................................119


ANEXO B - Amanhã, ou depois deixe sua pele ver o pôr-do-sol, 2005 ..............120
ANEXO C - A performance do apartamento, 2005 ..............................................121
ANEXO D - Você tem duas escápulas, 2006 ......................................................122
ANEXO E - Daquilo que se esvai, 2006 ..............................................................123
ANEXO F - Relato da performance (eu) Vim .......................................................124
ANEXO G – Os humores do poeta ..................................................................... 127

ANEXOS – ARTISTAS REFERENCIAIS ........................................................... 128

ANEXO H - Bruce Nauman .................................................................................129


ANEXO I - Bruce Nauman ...................................................................................130
ANEXO J – Marina Abramovic ............................................................................131
ANEXO L – Vito Acconci .....................................................................................132
ANEXO M – Merce Cunningham .........................................................................133
ANEXO N – DVD ................................................................................................ 134
11

INTRODUÇÃO

Entre experimentos e apresentações próprias, observações aos trabalhos


feitos; observações a trabalhos de outros artistas, leituras, reflexões e debates,
surge o registro textual e imagético que almeja legitimar esta pesquisa em
Poéticas Visuais – Performance, no campo das artes visuais. A metodologia desta
pesquisa consistiu em realizar experimentos, apresentações e debates sobre
performance; averiguar os conceitos norteadores dessas produções – no caso,
percepção, memória e síntese; buscar referenciais teóricos para tais conceitos e
verificar possíveis aproximações com outros artistas, em cujas obras, ou conjunto
de obras, fosse possível detectar questões similares ou contíguas a produções
pessoais, deflagradoras do presente estudo.

Na análise do próprio trabalho, dada a natureza efêmera da arte da


performance, uma primeira problemática se pronunciou: teria de confiar no registro
rememorativo – que levava em conta dados de minha percepção e memória, ou,
então, na bidimensionalidade da imagem gravada. Por ser o corpo material
primordial, constituinte de minhas performances, jamais seria possível o real
confrontamento com o trabalho em si. Contudo, foi possível uma aproximação do
ocorrido, seja através de relatos posteriores, seja através de gravações ou, ainda,
de algumas inferências dos espectadores, presentes às apresentações. Portanto,
foram essas as fontes que propiciaram uma análise de minha produção prática, de
modo que pudesse iniciar uma reflexão sobre ela.

Dessa maneira, ao analisar as aparências dos trabalhos, a questão era: o


que determina cada escolha, de modo que tal aparência se pronuncie? Surgiu
então a necessidade de averiguar possíveis respostas e, para tanto, a reflexão
histórico-estética e filosófica foi determinante. As constatações surgidas em tais
reflexões forneceram dados para que fosse possível compreender melhor tanto
fenômeno quanto aparência, que se faziam surgir através das manifestações do
que meu corpo propunha. Depoimentos de artistas, como Marina Abramovic, na
sua relação estreita com o corpo, enquanto meio e suporte de sua obra; e de
12

Bruce Nauman, com suas questões inspiradas em problemas de dança, tais como
resistência e equilíbrio, também foram significativos para a composição da
presente reflexão.

Quanto aos autores que conferem suporte teórico à pesquisa, cito Rosalind
Krauss, Sally Bannes e Jorge Glusberg para as questões específicas da
performance. Maurice Merleau-Ponty para a compreensão dos fenômenos da
percepção. Para os conceitos de memória, foi através de Merleau-Ponty que se
chegou a Henri Bergson, principalmente a seus livros Matéria e Memória e A
evolução criadora. Georges Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha,
respalda esta pesquisa principalmente na fase em que trazia objetos de minhas
gavetas para as performances. Nesse sentido, há uma poética do espaço: dos
cofres, armários e espaços íntimos – que são, também, depositários de memórias.
Gaston Bachelard também é guia, nesse sentido, em A poética do espaço.

Autores como José Gil, em Metamorfoses do Corpo e Michel Serres, com


Variações sobre o corpo e Os cinco sentidos – Filosofia dos corpos misturados,
auxiliam o pensamento quanto ao corpo em si, material-sensorial-primordial das
performances. O pensamento de Michel Foucault no livro As Palavras e as Coisas
indicou maneiras de falar sobre a experiência, de modo que fosse possível
transpô-la em palavras. Martin Heidegger elucidou os conceitos-título desta
pesquisa: fenômeno e manifestação. Nietzsche, por Zaratustra, fez continuar a
busca para a compreensão de minha condição humana. Ensinou, também, que
meu corpo poderia transcender, desafiando, inclusive, a gravidade; às vezes
desafio, por outras, me entrego a ela, no pleno exercício de minha massa
corpórea, no chão. Assim, confirmo o peso desse amontoado de células que me
confere forma e aparência: ser, cheio de vontades e limites.

É relevante que se traga ao texto, neste início, uma elucidação quanto aos
termos fenômeno e manifestação, sendo que são palavras-chave do título desta
pesquisa, irmanadas com o corpo e a performance. De acordo com Heidegger1,
fenômenos nunca são manifestações, toda manifestação é que depende de um

1
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis. Vozes, 2005. p. 59.
13

fenômeno. O fenômeno, então, seria constitutivo de uma manifestação – no


sentido de ser um anúncio que irá se manifestar através da aparência de algo que
se mostra. Há o exemplo, que o próprio Heidegger cita, de alguém aparecer com
o rosto ruborizado: o rosto vermelho seria a aparência de uma manifestação, cujo
fenômeno fez aparecer. O fenômeno poderia ter sido febre, vergonha, temor,
paixão... Em todos os casos o rosto poderia manifestar-se e aparecer ruborizado,
porém por fenômenos distintos2.

O ponto crucial desta pesquisa, no que abrangia observações de


performances próprias, estava se explicando por esses dois conceitos: fenômeno
e manifestação. Os conceitos anteriores (percepção, memória e síntese) foram
abarcados pela seguinte compreensão: os fenômenos seriam em decorrência das
percepções dos dados do presente, que entrariam em diálogo-confronto com
registros de memória - e essa operação geraria sínteses momentâneas. Constatei
que esses fatores, juntos, deflagravam minha ação (manifestação) e a estética
que vigorava nesta ação (aparência). Então, no instante da atuação há fatores
(fenômenos) que determinam o que surge, não como um dado a priori, mas por
um arranjo momentâneo de um estado pleno de presença, que me impele para
determinadas ações.

No caso desta pesquisa, a estrutura das performances estará determinada


previamente por um roteiro de ações ou tarefas esboçadas, que comportam uma
intencionalidade. Há um estudo prévio das ações do corpo; do espaço em que
será apresentada a performance e da relação corpo-espaço. Mas, mesmo que se
estude e execute as tarefas anteriormente, num ensaio, o que torna possível a
manifestação de um corpo numa performance é exatamente sua capacidade de
percepção e síntese dos elementos dispostos para comporem a estrutura da obra.
Sendo assim, existe um roteiro e uma intenção que são passíveis de serem
resolvidos de uma forma inusitada, dada a situação vivida momentaneamente e
aos dados colhidos pelo performer, no instante da atuação.

2
Em paráfrase à idéia apresentada por Heidegger, in Ser e Tempo. Op. cit., p. 59 e 60.
14

A pesquisa se iniciou no ano de 2003 e, oficialmente, no programa de Pós


Graduação em Artes Visuais, em 2004. Porém, foi no decorrer do ano de 2005,
em outros experimentos, e através da apresentação e observação de trabalhos e

reflexões de outros artistas, que surgiram constatações mais claras acerca da


estrutura da performance. Havia um questionamento intermitente: O que lhe era
inerente, o que lhe era essencial? Pela própria ação e experiência, constatei: O
corpo. O corpo era o material primordial; a memória desse corpo e sua percepção
que, juntamente com o espaço, os elementos escolhidos para estarem com o
corpo e o tempo em que tudo isso transcorria, determinavam a estrutura daquela
forma de arte.

Parecia-me um pensamento cíclico; tanto quanto a própria existência


humana, em sua ritmicidade finita e previsível. Todos esses fatores estavam
constituindo um discurso sobre o corpo e sua existência – e isso se estendia à
estética das configurações que propunha, então. Basicamente, eram essas as
questões que me moviam à pesquisa, tanto na parte prática, quanto na
identificação com os autores que conferem o respaldo teórico; e também nas
aproximações de artistas referencias. Corpo e existência, primeiros pressupostos
para que o ser se constitua; pressuposto, também, da realização de uma
performance.

No início do ano de 2006, a pesquisa se encaminhou para uma espécie de


desvelamento mais amplo deste material corpo; foi quando surgiu a série Sulcos
na carne3, onde dois trabalhos foram realizados. Numa espécie de suspensão do
sujeito, passei a olhar o meu corpo como uma superfície cheia de sulcos – e
aqueles sulcos eram, também, dados de memória. O corpo foi percebido como
material vivo e pulsante – articulado, pleno de memórias e vontades.

Os sulcos se manifestavam na aparência do que estava surgindo, repartiam


o corpo, como uma talha na madeira, ou no bronze – repartiam também a luz que
incidia sobre eles, criando sombras... As talhas direcionam o olhar de quem vê

3
No capítulo 4 e 5 do DVD, os dois trabalhos que foram realizados, dessa série, encontram-se na
íntegra.
15

(espectador), se inscrevem no tempo e se anunciam ao espaço. Foi a partir desse


raciocínio – e desse material – que criei as performances Você tem duas
escápulas e Daquilo que se esvai. Michel Serres auxiliou a compreensão dessa
intenção:

A pele historiada traz e mostra a própria história; ou visível: desgastes,


cicatrizes de feridas, placas endurecidas pelo trabalho, rugas e sulcos de
velhas esperanças, manchas, espinhas eczemas, psoríases, desejos, aí se
imprime a memória (...); ou invisível: traços imprecisos de carícias,
lembranças de seda, de lã, veludos, pelúcias, grãos de rocha, cascas
rugosas, superfícies ásperas, cristais de gelo, chamas, timidez do tato sutil,
4
audácias do contato pugnaz.

Matéria transbordante de memórias – sendo que a partir daí é que surgem


fenômenos e manifestações, o corpo é o ser. O ser é ôntico, isto é, possui uma
existência concreta. No sentido desse pensamento foi que se deu início à
averiguação de questões de ordem ontológica. Na mesma medida, buscou-se
estabelecer uma relação entre os preceitos estudados anteriormente e,
principalmente, a arte da performance. Todo esse empenho foi feito para melhor
compreender o objeto em questão, ou seja, através da análise do que surgia,
identificar possíveis fenômenos que engendravam tal aparência.

Nesse conjunto de experiências foi que se delineou, também, um esboço de


reflexão ontológica da performance. O ser da performance compreendido
enquanto o conjunto da configuração surgida. Contudo, ressalta-se que o
performer, em seu estado repleto de presença – na sua própria ontologia – será
determinante para a configuração da aparência em questão.

Esse raciocínio se tornou possível devido a experimentos corporais com


ações performáticas e reflexões de ordem filosófica sobre a questão do corpo
como material constituinte de uma obra de arte. Partes essenciais dessas
constatações se formaram, principalmente, devido à vasta experiência individual
com a dança. A dança, devido ao tempo de vida dedicado a ela, proporcionou a
vivência necessária para compreender e falar a respeito do corpo e suas

4
SERRES, Michel. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001; p. 18.
16

percepções. Foram os exercícios da dança que criaram os sulcos em minha carne


e é através desses sulcos que minha poética se pronuncia e revela.

As aparências de minhas performances deflagraram a reflexão filosófica e a


aproximação com obras de outros artistas, o que auxiliou as respectivas análises
estéticas e delineou algumas respostas ao intuito primeiro deste estudo, de
averiguar possíveis causas que determinavam a aparência do que surgia em
minhas performances. Essa questão se ligou aos preceitos da fenomenologia,
uma vez que o motivo da aparência passou a ser compreendido enquanto
fenômeno. Então, os fenômenos deflagrariam a manifestação e fariam surgir a
aparência. Isso foi uma constatação importante que se elucidou a partir dos
preceitos de Heidegger, em seus escritos sobre o ser e o tempo, que foram
posteriores aos estudos da Fenomenologia da Percepção de Merleau-Ponty e de
Matéria e Memória de Bergson. Esses pensamentos estavam permeando as
experimentações e as constatações.

Ressalto a importância da experiência própria como deflagradora primeira


da reflexão e digo: embora o corpo próprio dê a ancoragem necessária para
abordar o assunto, o mundo em que este corpo está situado (e isso compreende
questões sociológicas, o campo da arte e os referenciais teóricos) é visto como
uma das causas da aparência; o ser-no-mundo, como um dado a priori, e a própria
questão da presença aponta para um dos assuntos a serem discutidos.

Mesmo se me absorvo na experiência de meu corpo e na


solidão das sensações, não chego a suprimir toda a referência de
minha vida a um mundo, a cada instante alguma intenção brota
novamente de mim, mesmo que seja em direção aos objetos que
me circundam e caem sob meus olhos, ou em direção aos
instantes que sobrevêm e impelem para o passado aquilo que
5
acabo de viver.

Em analogia à citação acima, compreendo as performances que realizo


enquanto aparências configuradas pelo meu ser, resultado, sim, de minha
experiência corpórea que dialoga constantemente com o mundo que me circunda.
Observo as intenções que brotam em mim, tanto em direção aos objetos que me

5
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 228.
17

estão próximos, quanto às memórias que se anunciam à experiência do presente


e determinam ações que realizo. Assim, compreendo que há um ser que se realiza
e constitui outros seres.
Cada performance feita é um novo ser; emerge um novo ser, tanto em
minha essência, enquanto performer que sou, quanto em intenção e interação no
campo da arte, onde desenvolvo esta pesquisa. Percebe-se uma ontologia
múltipla, onde vários seres se mostram em aparência; o fenômeno determinante
pode ser o mesmo, em sua essência. Mudam as aparências, mas as causas se
mantêm, na observação e interação do corpo ao mundo; do corpo em seu estado
premente de devir. Este devir, também, é inerente à estrutura da performance,
onde nada é em definitivo; tudo flui, se transforma, se dissolve e se esvai.
A parte metodológica da escrita se apresenta de forma dualista. Mas o
dualismo está distante do pensamento desta pesquisa; prática e teoria se
imbricam e convivem num só ser, num só corpo. O artista deverá estar ciente de
seu momento histórico, e dos momentos históricos anteriores, que dizem respeito
ao seu objeto. Em face dessa afirmação se desenvolve a primeira parte da escrita:
Performance – Corpo e História: Contextos, que se subdivide em dois capítulos,
Para Refletir sobre a Performance e o Ato de Performar e Esboço de uma
Reflexão Ontológica.
A segunda parte, A Experiência Própria, se subdivide em cinco capítulos;
prima por relatos e reflexões de performances feitas. Inicia pela performance (eu)
Vim, a qual me fez perceber a metodologia adotada para criar, em seguida
discutem-se conceitos de corpo, tempo, memória e espaço, a partir de outros
trabalhos realizados.
Dessa maneira, serão citados e discutidos, no decorrer do texto da segunda
parte, seis trabalhos próprios, feitos durante esta pesquisa; cinco desses trabalhos
estão registrados em imagens, nas fotografias anexadas ao final do texto e no
DVD que se encontra no ANEXO N: Esquizo-soma (ANEXO A e capítulo 1 do
DVD); Amanhã, ou depois deixe sua pele ver o pôr-do-sol (ANEXO B e capítulo 2
do DVD); A performance do apartamento (ANEXO C e capítulo 3 do DVD). Da
série sulcos na carne, os trabalhos Você tem duas escápulas e Daquilo que se
18

esvai, se apresentam, respectivamente, nos capítulos 4 e 5 do DVD e nos


ANEXOS D e E. Quanto à performance (eu) Vim, a qual não foi registrada em
imagens (gravada ou fotografada), é anexado o relato do ato, como sugestão
metodológica de registro, no ANEXO F. Nos anexos H, I, J, L e M apresenta-se
algumas imagens de principais artistas referenciais desta pesquisa, dentre eles
Bruce Nauman, Marina Abramovic, Vito Acconci e Merce Cunningham.
O conjunto dessas reflexões levou à constatação de que minha poética se
constitui a partir da percepção de minha espacialidade e temporalidade, inerentes
à minha presença no mundo e no ambiente em que me encontro; tais fatores,
juntamente com os dados da memória, determinam a ação e a qualidade dessa
ação nas performances que realizo, bem como de suas respectivas configurações
estéticas.
19

Primeira Parte: Performance – Corpo e História: Contextos

1 PARA REFLETIR SOBRE A PERFORMANCE E O ATO DE PERFORMAR

Compreender a questão estrutural dos materiais passíveis de serem


utilizados na composição de uma performance e o papel do corpo nesse contexto
foi o mote inicial deste capítulo; delineou-se a partir de observações feitas a
performances realizadas entre os anos de 2003 e 2004. Para compreender a
questão de o que pode ser feito em uma performance? observei seqüências de
ações e movimento que poderiam ser utilizados na estrutura das performances
que realizava. Também, verifiquei a possibilidade de agregar materiais, como
tecidos de diferentes texturas e alguns objetos, para tais composições.

A análise de processos artísticos próprios, onde me disponibilizava


corporalmente para o experimento, fez com que a problemática fosse vivida na
carne. Tal análise se tornou possível devido aos relatos posteriores às
apresentações, gravações e inferências de alguns espectadores. Portanto foram
essas as fontes que propiciaram uma aproximação de minha produção prática, de
modo que pudesse iniciar uma reflexão sobre a arte da performance, primando –
no momento inicial - pela experiência própria como meio concreto de
compreensão.

Posterior a isso, ao ver e analisar trabalhos de outros artistas, a


investigação assumiria um status dialético, devido à razão de estar observando
outros corpos em suas distintas maneiras de estarem presentes, durante a
apresentação de uma performance. As fontes de observação foram feitas em
obras apresentadas ao vivo e registros em vídeo.

De acordo com Maria Beatriz Medeiros6, sobre a reunião de elementos


estéticos da performance, com eixo nas artes visuais, podemos conferir que:

6
Doutora em Artes e Ciência das Artes – Paris I – Sorbone. Professora adjunta do Departamento
de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Artista visual e performática.
20

A linguagem artística performance, por envolver elementos estéticos


novos (o corpo do artista como objeto de arte, a efemeridade da ação, a
participação, não só intelectual e emocional, mas física do público),
modifica o conceito de arte e redimensiona o teatro (citaríamos Trisha
7
Brown e Pina Bausch – dança-teatro).

A performance, em sua razão estrutural, é uma arte que acontece em


tempo e espaço real, carecendo de um corpo humano presente e atuante como
material. A presença do outro, ou dos outros (espectadores) é elemento estético
vital para esta arte. Sua natureza se caracteriza como multidisciplinar. Richard
Schechner define:

As performances marcam identidades, modificam e redimensionam o


tempo, enfeitam e remodelam o corpo, contam histórias, permite que se
jogue com condutas repetidas, que sejam preparadas e ensaiadas,
apresentadas e representadas tais condutas. Depois de tão ampla
generalização, devo dizer que todo gênero de performance e toda instância
particular de um gênero é resumidamente, específica e diferente de todas
8
as demais.

As naturezas abrangentes, no que tange às configurações desta arte,


provocam reflexões e definições de artistas e teóricos de vários segmentos da
arte. De acordo com Maria Beatriz Medeiros9, RoseLee Goldberg trata a
performance como linguagem artística, nascida das artes plásticas, ou melhor,
nascida de encontros de artistas, como poetas, músicos, artistas plásticos,
atores e bailarinos. Sobre a abrangência das colocações de RoseLee Goldberg,
são apontadas características de como a performance pode ser realizada:

- solo ou em grupo;
- com luz, música ou efeitos visuais feitos pelo artista ou em colaboração;
- performadas em galerias, museus ou espaços alternativos;
- raramente seguiria uma narrativa (porém seguiria um script);
- composta de uma série de gestos íntimos ou em teatros de grande

7
MEDEIROS, Maria Beatriz. Bordas Rarefeitas da Linguagem Artística Performance: Suas
Possibilidades em Meios Tecnológicos. 1. ed. BRASILIA: UnB, 2000, p. 32.
8
SCHECHNER, Richard. Performance teoria y prácticas interculturales. Buenos Aires: Libros del
Rojas – Universidade de Buenos Aires, 2000; p. 13. (tradução própria para o português).
9
Em Bordas Rarefeitas da Linguagem Artística Performance: Suas Possibilidades em Meios
Tecnológicos. Op. cit. p. 37.
21

escala visual;
- durar alguns minutos ou muitas horas;
- espontânea e improvisada ou repetida muitas vezes;
- o performer seria o artista. Sua presença seria o elemento
10
diferenciador das outras técnicas artísticas.

O que se pode verificar, em comum nas duas citações, tanto na de


Schechner quanto na de RoseLee Goldberg, é uma gama de possibilidades de
configurações desta arte, no que diz respeito ao tempo de duração, locais onde
pode ser apresentada e elementos que podem ser agregados. Podemos
acolher tais definições como ponto de partida nesta pesquisa; no decorrer do
estudo, outras definições serão agregadas.

Para que seja possível uma reflexão sobre arte – qualquer forma de arte –
é necessário que se tenha um pensamento a respeito da arte. Este
pensamento, porém, de maneira alguma é um pensamento acabado, ou pronto.
Olhar a história, entender o que foi feito e em que contexto emergiu, se torna
uma das maneiras possíveis de melhor compreender o que, hoje, podemos
criar.

Quanto à estrutura, toda e qualquer obra de arte se organiza de forma


similar ou contígua. Toda obra ocupará um lugar no espaço, e/ou terá uma
certa duração de tempo; necessitará de materiais condizentes às escolhas de
cada artista, em acordo à sua respectiva peculiaridade. Para cada reunião de
materiais há procedimentos, mais ou menos arbitrários. Esses procedimentos
estão, em relação positiva ou opositiva, relacionados a um conjunto de normas,
inscritas em um passado, mais ou menos recente, a que denominamos técnica
– específico do campo em questão. Tal pensamento passou a ser construído
através de estudos iniciados nos anos de 2001 e 2002, na Especialização em
Linguagem e Comunicação, a partir dos Escritos sobre Estética e Semiótica da
Arte de Jan Mukarovsky11. O autor ensina:

10
RoseLee Goldberg. Performance art. From futurism to the present. Cingapura: Thames and
Hudson, 1995, p. 96. apud Maria Beatriz de Medeiros. Op. cit. p. 37.
11
Estruturalista russo, do Círculo Lingüístico de Praga.
22

(...) há sempre numa obra artística qualquer coisa que a une ao passado e
qualquer coisa que aponta o futuro. Em geral, as tarefas são partilhadas
entre diversos grupos componentes, dos quais uns conservam a norma e
12
outros a desintegram.

Quanto à estrutura, Pierre Frankastel ensina que As estruturas não são um


dado, elas constituem sistemas que se elaboram através de uma conduta, não
lógica no sentido usual do termo.13 Nesse sentido há a ação do artista na
organização dos elementos. O autor profere, ainda:

As estruturas não constituem uma série de esquemas virtuais que o


artista encontra num dado momento no fundo dele mesmo ou em seu meio
ambiente e que adota para dirigir sua inspiração. (...) não existe um mundo
exterior positivamente construído (...), não existe no domínio dos seres de
razão determinado repertório de esquemas organizadores de atos ou de
nossos pensamentos. (...) o homem possui faculdades e não um
instrumental concebido em função de alguma outra força superior
14
qualquer.

A técnica, bem como as possibilidades de configuração, se reconstroem a


cada dia, em acordo às solicitações de cada trabalho de arte - que se estrutura,
através do ímpeto, da grande motivação interna de cada artista. Tal
procedimento se refere a um modo de instaurar um pensamento no mundo –
um pensamento sígnico. Um pensamento, enfim, que de alguma maneira,
remeterá ao momento histórico e social a que o artista estiver inserido.
Mukarovsky nos diz: Cada uma das gerações de artistas que vivem numa
mesma época representa, pela sua criação, outra estrutura, por vezes muito
diferentes das demais, e estas estruturas influenciam-se reciprocamente15. Para
completar esse raciocínio, Frankastel ensina:

(...) o artista forja em parte seu instrumento todas as vezes que realiza uma
obra. A cada feita, ele inventa os termos e a relação dos elementos
simultaneamente. Essa relação se manifesta no confronto espacial dos

12
MUKAROVSKY, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Estampa, 1997. p. 47.
13
FRANKASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1993; p. 114-115.
14
IDEM, p. 115.
15
Jan Mukarovsky, op. cit., p. 137-138.
23

elementos, mas também nos valores diferenciais da invenção e da


16
abstração, desiguais segundo as partes.

No sentido exposto, percebe-se que alguns conjuntos de formas,


procedimentos ou pensamentos que se identificam uns com ou outros se
agrupam e, em seus respectivos conjuntos de realizações, conferem os
contornos das manifestações de arte de uma determinada época. Isso, talvez,
possa nos sugerir nomes específicos – as categorias. Mas, desde a década de
1960, ao término da Segunda Guerra Mundial, a própria arte, na tensão interna
de seu campo – e instigada por tantas mudanças e desejos de liberdade -, pela
ação diversa dos artistas, repensou normas, procedimentos e especificidades
do que se tinha resguardado e, de certa forma, fixo até então. Rosalind Krauss
explica:

A ampliação do campo que caracteriza este território do pós-


modernismo possui dois aspectos (...). Um deles diz respeito à prática dos
próprios artistas; o outro à questão do meio de expressão. Em ambos, as
ligações das condições do modernismo sofreram uma ruptura logicamente
17
determinada.

A autora ainda ressalta que a demanda modernista de pureza e separação


dos vários meios de expressão (e, portanto a especialização necessária de um
artista dentro de um determinado meio)18 é amplamente questionada e
colocada em xeque. Artistas começaram a trafegar livremente entre esculturas,
performances, dança, música experimental, etc. Podemos citar Bruce Nauman,
Robert Irwin, Yvonne Rainner, John Cage, Merce Cunningham, Robert
Rauchemberg, Vito Acconci, Trisha Bronw, o Grupo Fluxus, Allan Kaprow,
dentre outros.

Todos os artistas citados acima estabeleceram, pelo menos, questões


conceituais e estruturais em comum. Por exemplo, Nauman se inspirava em

16
Pierre Frankastel, op. cit., p. 117.
17
Citação retirada da revista chamada GÁVEA nº 1; p.87, no texto “A escultura no campo
ampliado”, (vide referências bibliográficas) Publicado originalmente em The Anti- Aesthetic –
Essays on PostModern Culture. Washington, Bay Press, 1984. Título Original: Sculpture in the
Expanded Field. – Tradução de Elizabeth Carbone Baez. p. 92.
18
IDEM, IBIDEM.
24

Cunningham, que era da dança; Cage e Cunningham estabeleceriam parcerias


memoráveis em seus trabalhos – na questão filosófica de seus trabalhos;
adeptos do zen Budismo, desconstituíam hierarquias na estrutura de suas
composições. Rauschemberg, na obra Pelicano (sua primeira performance)
chegou a patinar no gelo; nessa performance, Rauschemberg atuou juntamente
com Alex Hay e a bailarina Carolyn Brown, que se apresentou com sapatilhas
de pontas.

Yvonne Rainer, com seus gestos cotidianos repensava o que podia ser
chamado de dança, o que, aliás, Nijinski já havia feito muito antes, em
Sagração da Primavera e A Tarde de um Fauno, onde, num ato de profundo
envolvimento com sua atuação, chega a se masturbar em cena, deixando o
público chocado, irado e estarrecido. Vito Acconci, anos depois adere a essa
prática em uma de suas obras.

A partir da década de 1960 os artistas passaram a se agrupar, também,


pelo pensamento em comum e pelo desejo de mudança e liberdade; relação
direta com o momento histórico. Essa liberdade estava relacionada aos meios
de expressão, materiais e procedimentos utilizados e, inevitavelmente, ao
sonho de liberdade e democracia que guiou essa época. Rosalind Krauss
explica:

Deste modo, o campo proporciona ao artista um conjunto finito mas


ampliado de posições relacionadas que podem ser aplicadas e exploradas,
assim como a organização da obra que não está ditada pelas condições de
um meio específico. Sobre a base da estrutura (...), é óbvio que a lógica do
espaço e a prática pós-moderna já não se organiza em torno da definição
19
de um determinado meio, baseado em um material.

A autora nos fala sobre a escultura, mas essas concepções se estendem


ao momento histórico referido para outras formas de arte, sendo que podemos
perceber uma tendência que se intensificou a partir da data expressa: obras de
diferentes naturezas tinham a possibilidade de apontar para questões similares

19
KRAUSS, Rosalind. La originalidad de la Vanguardia y otros mitos modernos. Madri: Alianza
Editorial, 1996; p. 302. (Tradução própria).
25

– com um pensamento estético similar. Não que isso não acontecesse anterior
à década de 1960, mas, foi a época de tornar, esta, uma questão para o campo
da arte. Uma questão que se repercute aos dias atuais, nas diversas
configurações que podemos criar e na liberdade de escolhas dos meios e
técnicas utilizados para isso.

Em diversas situações, no percurso do Mestrado, em análise e discussão


com os colegas, por exemplo, várias vezes surgiram identificações acerca de
procedimentos e questões que os diferentes trabalhos apresentavam, ou faziam
surgir. Dado relevante é que os materiais eram de diversas ordens, sendo as
formas, as mais distintas possíveis, dentre elas podíamos encontrar
performances, pintura, objetos, fotografia e arte digital.

O processo de criar na arte, além das peculiaridades inerentes a cada


artista, se relaciona à maneira com que esse artista se posta, atento ao que o
cerca - e o que ele pode ver através disso; ver e criar - devolver... Abstrair,
subtrair e tornar algo sensível (que desperte sensações) ao mundo. Uma forma
resultante da atenção máxima daquilo que ele teve a disposição de perceber:
em si, nos meios utilizados para sua criação, nas questões de outros artistas
contemporâneos, no ambiente em que vive e no campo da própria arte, com
suas tensões inerentes, onde estiver situado.

Assim surge a criação na arte, o que transforma o processo descrito acima


num objeto estético. Nesse sentido, a arte pode ter a função de iluminar um
pensamento, instigar um raciocínio e despertar outras percepções de mundo.
Como todas as coisas, possui uma ritmicidade que dialoga com o ambiente e
com o somatório de ritmos corporais dos indivíduos desse ambiente que,
porventura, estiverem em contato com alguma manifestação de arte.

Tomemos isso como uma questão de tempo; ritmo é tempo. Pode-se dizer
que a arte, inicialmente, interfere no ritmo corporal de quem faz a obra e, num
segundo momento, de quem olha um trabalho feito, ou a ser feito, como o caso
das artes que acontecem em tempo-espaço real. A música (quando executada
ao vivo), a dança, a arte da performance e o teatro são exemplos de
26

configurações que requerem a presença do artista e do público para que


aconteçam e se instaurem.

Salienta-se, por fim, que a performance, embora catalogada como


categoria nas artes visuais carrega influências de outras artes, como a dança, o
teatro, da música experimental e da body art, uma vez que surgiu da
confluência dessas formas, num contexto de democracia e liberdade
emergentes. Também agrega preceitos de rituais e cerimônias, retomando
origens primitivas do ser humano, inclusive com mutilações corporais. Contudo,
não se compromete com cânones ou formatos estéticos, o que caracteriza a
sua posição anti-establishment, não convencional e provocativa.

Os fatores de risco, manipulação corporal e uma certa agressividade em


gestos e atos, talvez seja em decorrência de sua oposição à questão da arte
oficializada, sistematizada e mercadológica – pelo menos na razão inicial de
seu surgimento. Com o passar do tempo, porém, até as formas menos
convencionais tendem a virar convenção. Nesse sentido, a questão da
transgressão se minimiza, pelo menos no que tange aos limites do próprio
campo da arte. Mas, deixemos este debate para o subtítulo Nova Iorque e o
sonho das vanguardas na década de 1960, que será trazido ainda neste
capítulo, onde Hal Foster dará respaldo a esse pensamento.

Continuemos a reflexão sobre a arte da performance com alguns artistas e


seus atos precursores. Asseguro que tais conhecimentos foram fundamentais
para fazer surgir novas configurações e elucidar questões desta pesquisa. A
seguir serão elencadas informações sobre a parte histórica, em seguida uma
reflexão filosófica acerca do objeto.

1.1 Artistas delineiam um corpo performático.

A utilização do corpo como meio de expressão artística,


tende hoje a recolocar a pesquisa das artes no caminho
das necessidades humanas básicas, retomando práticas
27

que são anteriores à história da arte, pertencendo à própria


20
origem da arte.

Quanto à história [ou pré-história – como denomina Jorge Glusberg] da


performance, iniciemos com Marcel Duchamp, nome emblemático. Após sua fase
norte-americana, volta à França, em 1919. Dois anos antes, sob o pseudônimo de
Richard Mutt, havia apresentado no Salão de Independentes de Nova Iorque, a
obra Fonte, um mictório invertido. A rejeição da peça pelo júri (do qual o próprio
Duchamp fazia parte), fez com que Duchamp se demitisse do mesmo. Em seu
retorno à França, cortou seu cabelo com uma tesoura em forma de estrela.
Segundo Glusberg, um gesto que pode ser visto como um vislumbre da arte da
performance, ou pelo menos, da body art do final dos anos sessenta.21

Em 1912, dez Dadaístas visitam a Igreja de Saint-Julien-le Pauvre, no


centro de Paris; convidam seus amigos e seus “adversários” para o evento que
tinha como mote principal “desmistificar atitudes”. Para tanto, reproduziram um
passeio de turistas, ou colegiais, dentro da Igreja. Essa performance, na verdade,
era para ter sido uma série de várias outras, em outros pontos da cidade, mas, foi
a única a ser cumprida. Glusberg nos conta detalhes:

Umas cinqüenta pessoas se juntam para a visita, que transcorreu sob


uma forte chuva. Breton e Tzara ficaram provocando o público com
discursos, Ribemont-Dessaignes se fez de guia – diante de cada coluna ou
estátua ele lia um trecho, escolhido ao acaso, do Dicionário Larousse.
Depois de uma hora e meia os espectadores começam a se dispersar.
Recebem então pacotes contendo retratos, ingressos, pedaços de
quadros, figuras obscenas e até notas de cinco francos com símbolos
eróticos. Não será esta excursão de 1912 um típico happening dos anos
22
sessenta?

Em 1924 Breton estabelece os fundamentos de uma nova arte, o


Surrealismo. Com o Manifesto Surrealista, os surrealistas não realizam mais
performances. Mas, segundo Glusberg seus conceitos se aplicam perfeitamente
às performances atuais, principalmente quanto ao abandono do raciocínio lógico,

20
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 55.
21
IDEM, p.18.
22
GLUSBERG, J. op. cit., p. 20.
28

amparando-se o processo criativo no automatismo psíquico – fundamento básico


do movimento recém-definido por Breton.23 Na estréia do balé Relâche, em 1924,
o espetáculo que continha elementos dadaístas – mas mostrava uma sintonia
muito maior com o surrealismo, não contou com a aprovação dos surrealistas.
Picabia era o responsável pelo roteiro e pelo cenário, atuando também junto com
Duchamp, Man Ray e o Ballet Suédois de Rolf de Maré.24

Nesta época, na Alemanha, os departamentos de dança e teatro da


Bauhaus, sob direção de Oscar Schlemmer, propunham uma revitalização dessas
artes. Ressalta-se aqui uma obra de Schlemmer, o Balé Triádico (de 1922), onde
três bailarinos executavam doze coreografias, incluindo o próprio autor no elenco.
A Bauhaus buscava uma fusão entre as artes e o artesanato, em geral, na
tentativa de, também, diminuir a distância entre as artes e a evolução industrial.

O objetivo principal dessas buscas era contribuir para uma melhora na


qualidade de vida do homem. A I Semana Bauhaus, em 1923, teve como
título: “Arte e Tecnologia – Uma Nova Unidade”, antecipando em mais de
quarenta anos a consolidação da chamada arte intermídia e os
25
“Experiments on Art and Tecnology”, EAT, dos Estados Unidos.

Schlemmer tinha o intuito de integrar, numa só linguagem, a música, o


figurino e a dança. Conseguiu bons resultados; estendeu suas pesquisas à pintura
e à escultura, utilizando o espaço. Glusberg26 diz que alguns desses seus
trabalhos, dos anos vinte, como Figuras no Espaço e Dança no Espaço são
seguramente precursores do que vai ser chamado arte da performance. Em 1932,
no Congresso Internacional de Dança, em Paris, o Balé Triádico deslumbrou a
platéia do evento, conferindo reconhecimento internacional às pesquisas de
Schlemmer. Em 1933 Adolf Hitler determina o fechamento da Bauhaus.

Nessa época, o norte-americano John Price conseguiu o financiamento


para a criação de um instituto de educação artística na Carolina do Norte: o Black
Mountain College (BMC). No outono de 1933, o instituto iniciou suas aulas, sob a
23
IDEM.
24
ID. IBIDEM.
25
IDEM, p.21.
26
GLUSBERG, J. A arte da performance. Op. cit., p.21.
29

direção de Josef Albers; contando, também, com outros ex-professores da recém


extinta Bauhaus. Rapidamente o Black Moutain College se torna o ponto de
geração das novas manifestações artísticas, e foco da vanguarda americana e
internacional, mantendo viva, dessa forma, a corrente precursora da arte da
performance.27

Ao BMC agregaram-se nomes expressivos, como o coreógrafo Xanti


Schawinsky (oriundo, como Albers, da Bauhaus) e John Cage, músico norte-
americano. Cage que, desde o final dos anos trinta fazia seus experimentos com
ruídos e sons cotidianos e, também, modificava instrumentos tradicionais; era
grande admirador de Satie. Há uma data para esse ciclo histórico que se torna
importante, os meados de 1952, quando Cage, aos 40 anos, dá início à história
das performances. (...) na verdade, para ser mais preciso, à fase histórica que vai
culminar com a arte de performance – com um espetáculo realizado na escola de
verão do BMC, localizada em Lake Éden, onde o colégio se instalara desde
1940.28

Enquanto Cunningham buscava uma renovação no pensamento e na


estética da dança, Cage se propunha a reunir o teatro, a poesia, a pintura, a
dança e a música. Foi o que fez em Untitled Event (Evento sem título). O intuito
era preservar as peculiaridades de cada linguagem e fazer emergir uma sexta
linguagem dessa junção. Além do próprio Cage e de Merce Cunningham,
participaram do Untitled Event, o pintor Robert Rauchenberg, os poetas Mary
Richards e Charles Olsen e o pianista David Tudor.

Cage teria distribuído uma espécie de partitura para cada um deles, dando-
lhes as indicações dos momentos que deveriam agir, ficar em silêncio, ou
aquietar-se; sem, contudo, dar-lhes instruções do que, ou como fazer. Cage
realizou um “concerto” multimídia entre as artes que se propôs a reunir. A
repercussão desse acontecimento foi tão expressiva que os pressupostos
inaugurados por Untitled Event foram notados não somente nos Estados Unidos,

27
IDEM, p,23.
28
ID. IBIDEM.
30

mas, na Europa e no Japão. Glusberg complementa sobre a repercussão de


Untitled Event:

(...) sua repercussão tornou-se visível de ambos os lados do Atlântico e do


Pacífico, a ponto da maioria dos críticos, teóricos e historiadores dos
movimentos de vanguarda da segunda metade do nosso século, atribuírem
a Cage, com seu evento de 1952, a fonte geradora da incrível produção
29
artística dos anos sessenta e setenta.

A arte se redimensionava através de um estatuto constante de liberdade de


expressão e formas; reflexo da época pós Segunda Grande Guerra Mundial, os
sonhos democráticos se retro-alimentavam. Isso perpassava o terreno das artes e
borrava as fronteiras dos entendimentos que foram construídos até então. Nesse
sentido, compreende-se que os modos de configuração, bem como os objetivos
da arte passam por um redimensionamento de categorias.

A quem podemos atribuir, tendo esse raciocínio por base, o status de


precursores da arte da performance? Glusberg responde: Entre os principais
precursores da arte da performance devem ser considerados os poetas, pintores,
músicos, dançarinos, escultores, cineastas, dramaturgos e pensadores que
buscaram um reestudo dos objetivos da arte30. Nesse sentido, Pollock, com sua
action painting, foi um precursor. O empenho de seu corpo, inteiro, a realizar sua
pintura, conferia a seu movimento e seu modo de se relacionar com o espaço,
uma configuração estética. Seu corpo entrava no espaço de sua pintura, aí que
ela se formava. Imagino que vê-lo pintando deveria ser uma experiência estética
incrível.

Faz-se menção, também, a Kaprow, em suas “colagens de impacto” ou


environment, onde propunha junções de elementos sensoriais, como lâmpadas
que davam efeitos especiais de iluminação, ruídos, sinos, campainhas, etc.
Quanto ao termo environment, pode ser traduzido por envoltório, meio ambiente,
etc. Certo é que envolviam e causavam a sensação proposta por Kaprow.
Segundo ele próprio, os environments eram representações espaciais de uma

29
GLUSBERG, J. Op. cit., p. 26.
30
IDEM, p. 27.
31

atitude plástica multiforme31. Kaprow sugeriu que fosse dada mais


responsabilidade ao espectador, propondo que realizassem tarefas, como apertar
botões, realizar deslocamentos entre os ambientes, mover coisas, até que, assim,
o happening fosse configurado.

Os artistas dos Estados Unidos, desde os meados da década de 1950,


quando Nova Iorque foi proclamada capital da arte de vanguarda, deram efetivas
contribuições para a arte da performance. Os bailarinos Ann Halprin, Steve
Paxton, Simone Forti, Trisha Brown e Yvonne Rainer, os músicos La Monte Young
e Terry Riley são nomes relevantes nesse contexto.

No Japão, o grupo Gutai, de Osaka, desenvolve propostas que devem ser


mencionadas dentre as ações precursoras da performance. Mas, é a Nova Iorque
que se volta um marco fundamental: 1962, no recital apresentado na Judson
Memorial Church de New York, pelos componentes do Dancers Workshop. É o
nascimento do Judson Dance Group. Conforme Glusberg, dois acontecimentos de
suma importância para o futuro da performance32. Digo as mesmas palavras, em
relação à dança contemporânea: dois acontecimentos de suma importância para o
futuro da dança contemporânea. Artistas em colaboração trabalhavam para
romper as fronteiras da dança – mesmo da dança moderna. Nos happenings, a
presença física do artista se torna parte essencial do trabalho. O artista, então, se
transformava na própria obra.

1.2 Antes da Década de 1960

Importante salientar que, muito antes da década de 1960, em outros


contextos, artistas utilizavam o corpo como parte integrante de uma configuração
estética. Desde os Balés de Corte, na França de Luís XIV, onde iniciou o
surgimento da Dança Clássica, numa fusão de dança, música, ópera e cenários,
passando pela reforma estética que sofreu a dança no Romantismo, pelos
preceitos de Beauchamps e Noverre. Nesse tempo, já, havia um pensamento

31
Apud GLUSBERG, J. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 31.
32
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Op. cit.; p. 37.
32

estético para o corpo na arte da dança, principalmente depois de Noverre. No


Romantismo, época em que o indivíduo se torna tema da arte, o balé também vai
se tornar a expressão de sentimentos pessoais, diferente do que havia se
codificado na época anterior, quando surgiu na Corte francesa, onde as temáticas
se desenvolviam para adular e agradar o rei – o qual dava subsídios financeiros
para a arte.

No século XX, à luz das transformações velozes, a arte se modificou


drasticamente em seus preceitos. As percepções seguem as atitudes que os
humanos adotam perante as coisas as quais observam ou criam. Permeada pelas
guerras, pelos inconformismos, e pelas novas teorias que surgiam na sociedade
ocidental burguesa, a condição do artista na sociedade e a estética se renovou em
todas as artes. Os modos de proceder que se anunciavam perante a realidade
que, a um primeiro momento, podia parecer até fantástica, dada a revolução e
velocidade das máquinas, determinariam novas maneiras de existir e de criar. As
concepções e configurações do corpo na arte e na dança não ficaram passivas a
essas circunstâncias. O Neoclassicismo surge com Diaghilev (1872-1929) e seus
Balés Russos; Glusberg comenta sobre esse momento histórico:

Nesse momento entra em cena Serge Diaguilev, que foi acertadamente


definido como “o empresário completo da arte contemporânea”. Homem
refinado, culto e sagaz, cuja paixão pela pintura e pela música – sua
Exposição Internacional de Artes Plásticas em São Petesburgo, no ano de
1899, foi um acontecimento de grande importância – despertou seus
interesses pela dança, que ele vai retirar do academicismo e da
33
subordinação a certas formas de arte em que se encontrava.

Glusberg enfatiza a razão de incluir Diadhilev na pré-história da


performance, afirma que Diaghilev transforma o balé numa síntese de dança,
música e artes visuais (cenografia e figurinos), valorizando cada linguagem
enquanto unidade e enquanto conjunto34. Em Sagração da Primavera, na sua
primeira encenação em 1913, ele reuniria artistas como Nijinski, Fokine e Ana
Pavlova, Stravisnski, Picasso e Erik Satie.

33
GLUSBERG, J. Op. cit., p. 16.
34
GLUSBERG, J. A arte da performance. Op. cit., p. 16.
33

Outro exemplo, no balé Parade, coreografado por Massine, com cenários,


figurinos e adereços de Picasso e partituras de Satie (com sirenes e ruídos de
máquina de escrever), e argumento de Cocteau; pela primeira vez as cenas
cotidianas (ações comuns) eram trazidas a um balé. Isso irritou o público durante
o espetáculo. Uma curiosidade que Glusberg relata também é que, naquela
ocasião, Os artistas só conseguiram fugir da platéia enfurecida graças à
intervenção de Apollinaire, que apareceu vestido com um uniforme de tenente do
exército35. Foi um momento importante para a dança; ao mesmo tempo em que
ganhava sua autonomia, dialogava com outras artes em igual condição; fato que
desencadeou novas configurações estéticas para o balé.

Para a dança, que mais tarde seria considerada Moderna, o final do século
XIX e início do século XX é um marco importante; extensivo este marco para a
arte e o corpo na arte. Época das ações da norte-americana Loie Füller (1862-
1928); atriz e dançarina, em suas performances utilizava luz elétrica e tecidos, o
que gerava efeitos de cores, resultando em uma configuração visual inédita até
então. O efeito de sombras e nuances diferenciadas, dadas pelo uso de adereços
e movimentos de Füller, veio respaldado pelo advento da luz elétrica e pela
liberdade que começava a se delinear para a criação no campo da arte; também
pelas primeiras conquistas significativas para a liberdade de ação das mulheres. A
historiadora Saly Bannes nos conta mais, a respeito de Füller:

Fuller estabeleceu dois pontos de partida para a dança moderna:


liberdade de movimento e a forma solística. Exagerando o tamanho da saia
do dançarino e usando brilhantemente os efeitos de iluminação (os quais
ela inventou e patenteou) para transformar-se e a seus objetos cênicos e
figurinos em esculturas em movimento de luz e cor, Fuller (que também foi
atriz, escritora, produtora e dançarina) operou mudanças radicais na arte
36
da dança.

Essas mudanças não foram bem compreendidas pelos seus


contemporâneos; foram, inclusive, rejeitadas pelos coreógrafos do início do século
XX. Na década de 1960, porém, encontram respaldo e lugar no terreno da dança.

35
IDEM, p. 17.
36
BANES, Sally. Terpsichore in sneakers. Boston: Houghton Mifflin, 1980. p. 2, Introdução.
Tradução própria.
34

Questões que Füller havia abordado em seus trabalhos foram as que deram a
base estrutural para a dança que surgiria da geração pós Segunda Guerra
Mundial. Banes enumera características da arte de Füller que estariam presentes
na dança pós-moderna.

(...) evitou a projeção emocional ou de personalidade individual do


dançarino, assim como o virtuosismo técnico e a apreciação da beleza
física no dançarino. Ao contrário, ela enfocou como ponto central da
performance, a imagem: objeto criado com tecidos, cabos, luzes e
sombras. O movimento requerido para criar o efeito visual desejado era o
movimento correto. Raramente havia narrações nas danças de Fuller: o
37
texto da performance era a criação física da presença objetiva.

Isadora Duncan (1878-1927) e Ruth Sait-Denis (1878?-1968), nos Estados


Unidos; Rudolf von Laban (1879-1958), Mary Wigman (1886-1973) e Kurt Jooss
(1901-1979) na Alemanha, dentre outros, também deram suas contribuições
estéticas para a arte e o corpo na arte. A ruptura que esses artistas propunham
estaria relacionada, também, às consideradas rígidas normas do ballet clássico,
que iam de encontro às necessidades de movimentação dessas pessoas que
buscavam, em suas essências, uma forma mais livre e orgânica de se
movimentar, de modo que pudessem melhor expressar seus pensamentos,
relativos à época que estavam vivendo.

No Brasil, em 1946, chega Nina Verchinina (? - 1995), para dirigir o Corpo


de Baile do Theatro Municipal. Nina havia dançado no lendário “Original Ballet
Russe”; sua personalidade fez com que averiguasse o próprio caminho em direção
à pesquisa de movimentos. Dançou, antes de chegar ao Brasil, a coreografia
“Choreartium”, de Leonid Massine, criada especialmente para ela. Algum tempo
depois, Verchinina abriu sua própria escola, onde desenvolveu seu método de
movimento. Ela prepararia toda uma geração pelos seus movimentos e
pensamento em relação à dança. Teve importância fundamental para o início
desse raciocínio de corpo aqui no Brasil.

Nessas breves informações, que são recortes arbitrários de tempo,


sinalizam-se algumas questões do campo da dança, até para estabelecer
37
IDEM, IBIDEM.
35

analogias com as artes visuais, tanto de época, quanto de manifestações e


pensamento estético. Por exemplo, na dança de Merce Cunningham, nas décadas
de 1950 – 1960, pode-se ver questões similares às obras abstratas de Kandinsky
(1866-1944) e Klee (1879-1940) – um pouco mais tarde, porém. A forma não
narrativa dos balés de Cunningham, na maneira não hierárquica de utilizar o
espaço e dispor os elementos na composição coreográfica, bem como o cuidado
com o figurino, lembram os traços e cores não figurativas nas obras dos pintores
mencionados.

É possível inferir que a postura antiacademicista dos impressionistas, o


cubismo de Picasso e as primeiras obras abstratas de Kandinsky e Klee abriram
caminhos e possibilidades para ações posteriores, de outros artistas; assim como
as atitudes arrojadas de Nijinski podem ter influenciado Picasso, que construiu os
cenários de A sagração da Primavera, em 1913.

Na arquitetura, as técnicas modernas e os novos materiais permitiram a


figuras como Lloyd Wright, Walter Gropius e Le Cobussier, se desvencilharem das
preocupações acerca de estilo, e deram respostas às demandas estéticas de seu
tempo – e a arquitetura interfere nas percepções de tempo e espaço das pessoas
de uma sociedade. Sobre a referida época e a arte abstrata, Frankastel ensina:

O desenvolvimento da arte abstrata não tornou ilegível nem absurda a


arte figurativa antiga. Em ambos os casos, houve modificação da escolha
das células isoláveis da experiência e das modalidades de integração, mas
as estruturas fundamentais que correspondem à disposição do espírito
38
mantiveram-se.

Na literatura escritores como Proust, Kafka e Joyce modificaram a noção de


linguagem narrativa, estabelecendo uma relação estreita entre poesia e literatura;
fronteiras se borram. Na música, seguindo esse mesmo raciocínio, foi a partir de
Richard Wagner que se iniciou uma revolução musical que culminou com
Shönberg, Alban Berg, Stravinski, Debussy, Ravel e Satie; todos eles criadores de
uma nova gramática musical.

38
Pierre Frankastel, op. cit., p. 103.
36

Quanto ao corpo na dança, na transição do século XIX para o século XX,


esse corpo pôde rever seus cânones e experimentar novas maneiras de se
expressar. Nos idos dos anos 50 e 60, as motivações eram de outra ordem.
Outros coreógrafos, por sua vez, [e mais uma vez] revolucionariam os
entendimentos acerca da Dança Moderna. Nos Estados Unidos, por exemplo,
Merce Cunningham (1919) e Alwin Nikolais (1912) desenvolvem concepções,
motivações e linguagens para a dança, com notável diferença da “dança moderna
anterior”. Para eles o movimento não precisava mais ter um significado explícito,
ou expressar a dor e a tragédia de um povo, como o Expressionismo Alemão.
Apontam, então, para a questão do abstrato, do não figurativo na dança. A dança
em seus aspectos formais evidenciados e comentados por ela mesma –
principalmente em Cunningham.

Cunningham centrava sua estética no entrecruzamento das linguagens:


cenários, figurinos e movimentos dialogavam ou se sobrepunham à música
concreta de John Cage – ou sem música. Os movimentos se desenvolviam no
espaço determinado, sem, necessariamente, terem um compromisso com a
narrativa tradicional. Alwin Nikolais, em sentido similar, era considerado um
“mago”, pelos efeitos ilusórios que propunha no uso da iluminação e recursos de
outros elementos cênicos; a distinção de gênero desapareceria nas obras de
Nikolais – e isso é um fator pertinente à época. Enfim, nesses dois exemplos,
percebe-se que um outro corpo surgia para a dança; um corpo predisposto a estar
de inúmeras formas, usando ou não músicas, em teatros, em igrejas ou outros
espaços, até então inusitados.
Cunningham vaticinou: qualquer movimento pode ser dança; todo lugar no
palco tem o mesmo valor – o que retira do centro do palco o marco principal da
referência nas composições – similar ao ponto de fuga na pintura; todo bailarino
pode ser solista – o que revê hierarquias, em analogia à democracia que
despontava – ou, à esperança democrática. Para a performance, a questão do
“qualquer movimento e ação” também é parte de sua estrutura. Lembrando
sempre que esse qualquer pode se constituir de gestos ou ações que, ao serem
37

recortados de seus respectivos contextos, passam a ser elemento estético, dentro


da obra.
Essas mudanças, além dos méritos de Cunningham e dos artistas da
época, se devem às circunstâncias que avalizaram e providenciaram que certas
atitudes surgissem e se estabelecessem na época e local em que surgiram.
Fala-se em pós-modernismo da dança. De acordo com Teixeira Coelho, (...)
não podemos afirmar que essas características desenvolvidas por Cunningham
sejam exatamente pós-modernas sem antes analisarmos a produção posterior ao
marco causado por Cunningham39. Para muitos a performance de Cunningham
refere-se a um momento da pós-modernidade que seria identificado –
esteticamente – como o fim da modernidade. Cunningham é o ponto culminante
da modernidade, cabendo a muitos de seus sucessores o rótulo de algo que
mostra já o outro lado da modernidade40.
Em todas as épocas é possível observar diferenças estéticas e formais na
arte. Dentre as razões citam-se: tensões oriundas do próprio campo, em revisões
de cânones estéticos e formais; influência das modificações sociais – que
redimensionam as concepções de mundo dos indivíduos de uma determinada
época e lugar. É natural que a cada época as manifestações humanas se
modifiquem, afinal, espelham, ou se espelham, (n)os anseios de toda uma
geração, com reflexos, sempre e de alguma maneira, dos traçados anteriores,
mas visando um futuro, uma concepção diferenciada.

A maneira com que determinadas pessoas compreendem o que observam e


vivenciam, refletem diretamente em suas criações - sejam elas de cunho artístico
ou não. Compreender esse aspecto se torna essencial para que melhor se
possam observar todas as formas e todas as manifestações criadas pelas
pessoas a partir de suas compreensões da realidade em que habitam, tanto no
passado quanto no presente. O pensamento histórico e crítico deverá ser
desenvolvido para que se possam analisar as próprias produções, no caso de uma
pesquisa se realizar em Poéticas Visuais, como é o caso.

39
NETO, J. Teixeira Coelho. Moderno Pós Moderno.São Paulo: Iluminuras, 2001; p. 83.
40
IDEM, IBIDEM.
38

1.3 Nova Iorque e o Sonho das Vanguardas - 1960

As transformações no campo da arte, permeadas pelas informações e


influências dos outros campos - no imenso conglomerado de estruturas da
sociedade ocidental -, é algo que rapidamente migra e se integra, nos vários
lugares em que a arte se forma. Delimitar essas fronteiras de surgimento de uma
idéia, ou estética, não é tarefa fácil, principalmente se levarmos em consideração
a velocidade da disseminação dos fatos e dos feitos pelos medias
contemporâneos. Se algo – alguma estética – apareceu em determinado lugar,
primeiramente, foi porque aquele ambiente, em específico, foi propício ao seu
surgimento.

Na agitação cultural da década de 1960, em Nova Iorque, nas ações


distintas de artistas e intelectuais, a necessidade do experimento do novo, em
relação ao que já havia se estabelecido, aparecia como um foco essencial, na
efervescência daquele ambiente. Concepções daquela época migraram e se
estabeleceram em vários lugares. Cada um desses lugares, por sua vez, possuía
suas peculiaridades – e novas características foram criadas pelas influências.
Então, o que se verifica – em termos de ação, pensamento e concepções para a
arte, são replicações de modos, releituras, novas adequações a um mesmo
princípio. Miscigenações com as idiossincrasias locais, bem como
entrecruzamentos com outras influências, oriundas de outros experimentos
práticos ou teóricos que se desdobram em outras aparências, no novo ambiente.

Quando surge alguma configuração estética inédita no terreno da arte, isso


acontece num campo muito restrito. Aos poucos a informação se dissemina. No
caso da vanguarda norte-americana e suas idéias originais a respeito da arte e do
corpo, antes disso e em outros lugares, pessoas já haviam delineado seus
respectivos raciocínios e ações. Banes elucida esse pensamento:

As idéias que esses primeiros artistas da década de 1960 introduziram


na arte – paisagem urbana, comunidade, vida comum, liberdade de
normas e cânones, jocosidade e fisicalidade – não eram inauditas. Elas
foram construídas com idéias e práticas que esses artistas herdaram da
década de 1950 e de antes, mas que ainda se achavam insuficientes.
39

Procurando criar novas comunidades, novos meios de fazer e encarar a


arte, a vanguarda da década de 1960 se achou cercada de contradições.
Pois realizar um puro rompimento, mesmo com um passado desprezado, é
41
impossível.

Eram artistas que criticavam os valores da classe média da cultura


moderna; escolheram viver e trabalhar em Greenwich Village, juntando-se à
boemia tradicional. Muitos deles eram da classe média; segundo Banes, eles
descobriram que não poderiam simplesmente fazer a sua arte rejeitando e
reproduzindo a cultura de classe média. Utilizavam ícones de cultura popular para
criticar a vida burguesa, mas quase toda a noite se viam retratados na Life.42

Parafraseando Banes, na cidade de Nova Iorque, em Greenwich Village,


ano de 1963, uma numerosa rede de artistas, pequenos grupos sobrepostos, e às
vezes concorrentes, formaram a base multifacetada de uma cultura alternativa que
floresceria na contracultura do final da década de 1960.43 Esse grupo semearia os
movimentos de arte da década de 1970 e moldaria os debates sobre pós-
modernismo na década de 1980 e adiante. Esses modos de existência da arte
somam-se às novas noções de comunidade e democracia, de ócio e de trabalho,
dos direitos femininos, do avanço da tecnologia e da ciência médica. Muitos
desses artistas emergiram nas décadas seguintes [1970 e 1980], alguns mesmo
como ícones culturais: Andy Warhol, Yoko Ono, Brian de Palma, Yvonne Rainer,
Kate Millerr, Marshall Mason, são exemplos.

Essa geração ascendente dos jovens artistas de vanguarda em Greenwich


Village, no início da década de 1960, em vários veículos de comunicação de
massa, ocupou uma nova posição, tanto no mundo artístico, como na cultura
americana, em geral. Embora fossem vanguardistas, ocuparam um lugar central
na produção artística, no teatro da Off-Off Brodway, nos happenings, na dança, no
cinema e nas artes visuais.

41
BANES, Sally. Greenwich Village 1963 – Avant-Garde, Performance e o Corpo Efervescente. Rio
de Janeiro, 1999. p. 19.
42
IDEM, p. 20.
43
IDEM, p. 13-14.
40

Eram, em suas juventudes e americanidades, o protótipo de uma


sociedade; o “espelho”. Do mesmo modo em que a sociedade aristocrática de Luís
XIV se espelhava no balé clássico, a sociedade burguesa nova-iorquina, se
espelhava em sua nova geração de vanguarda. Nos Estados Unidos, uma
pretensão ao domínio no mundo artístico internacional estava em ascensão,
graças ao expressionismo abstrato e a um mercado jovem que repentinamente
desabrochava44. Esses artistas mais jovens da década de 1960 amalgamaram o
gume da “arte elevada” (esse terreno elitista de outrora), como a cultura popular
americana do pós-guerra, um projeto alimentado por um ideal quase puritano de
missão. Verifiquemos o que Sally Bannes profere sobre tal pensamento:

Esses jovens artistas conheciam a história de sua arte, mas se sentiam


cortados da tradição – tanto por escolha como pela época e pela geografia.
Uma junção de duas heranças – a americana e a da vanguarda – produzia
um duplo imperativo para tornar as coisas novas. (...) ironicamente, seu
45
projeto específico de vanguarda era, em parte, reinventar a tradição.

Para Hal Foster As convenções artísticas também se estabelecem


precisamente onde elas aparecem rejeitadas.46 Fala de uma certa estratégia
duchampiana47 e diz que isso se constitui em apenas um ato retórico, uma vez
que converte a estética vanguardista, cedo ou tarde, numa instituição. Nesse
raciocínio, o autor continua Chegamos quase ao ponto em que a transgressão é
um dado. Obras em sítios específicos não perturbam automaticamente nossa
noção de contexto, e os espaços alternativos se aproximam da norma48. Nesse
sentido, a marginalidade não é mais dada como crítica49. E o clichê pode estar
naquilo que, outrora, se tinha como subversão. Isso quer dizer que Choque,

44
BANES, Sally. Op. cit., p.14.
45
IDEM, p. 22.
46
FOSTER, Hal. Recodificação; arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial
Paulista, 1996; p. 40.
47
IDEM, p. 41.
48
IDEM, p. 47.
49
IDEM, p. 48.
41

escândalo, estranhamento: deixaram de ser táticas contra o pensamento


convencional – são pensamento convencional.50

A década de 1960 para a arte foi permeada de manifestações


emblemáticas. Exemplo disso foram as performances de Joseph Beuys (1921-
1986), artista alemão que produziu em vários meios e técnicas, entre escultura,
performance, instalação e vídeo. Beuys, em 1962, conheceu o movimento Fluxus,
do qual se tornou um dos membros mais significativos. As performances e
trabalhos multidisciplinares do grupo inspiraram-no a desenvolver sua produção
voltada para a performance. Em 1965, o artista apresenta Como Explicar
Desenhos a uma Lebre Morta, onde caminha pela galeria com o rosto recoberto
de mel e ouro, carregando uma lebre morta, para a qual ele explica as pinturas da
galeria51. Esse é um exemplo de atitude, dos corpos efervescentes da década de
1960 que configuraram e institucionalizaram a arte da performance.

1.4 Contextos do Brasil – 1960

No Brasil, 1950 e 1960 foram décadas em que as produções dos artistas


consolidaram e delinearam identidades culturais – que, também, apontavam para
um nacionalismo. Foi o tempo do Cinema Novo, de Glauber Rocha, do
Neoconcretismo, ideado por Hélio Oiticica e Lygia Clark, a música popular
brasileira e seus grandes festivais, a Tropicália, a poesia neoconcreta. Tempo e
espaço se tornam conceitos de base, em torno dos quais se articulam propostas
estéticas e conceituais. Também esses jovens artistas, similares à juventude
artística norte-americana, delineiam uma identidade própria, em suas brasilidades.

Em 1966 Lygia Clark (1920-1988) inicia a utilização de uma série de


materiais retirados da vida cotidiana, numa atenção clara a tudo que estava ao
alcance imediato de seu corpo. Essa fase marca o início de sua experimentação
com o próprio corpo. Tal averiguação possibilita a artista vivenciar e testar

50
ID. IBIDEM.
51
Informações pesquisadas no site <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Beuys> e no livro A
performance como linguagem, de Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 2002.
42

capacidades sensitivas e reativas, com criação de conjuntos sensoriais; seus


“objetos relacionais”, por exemplo, nada mais são do que meios para proporcionar
às pessoas (expectadores) uma retomada do conhecimento e reconhecimento do
próprio corpo.

Nesse sentido, a proposta da artista se dirige para o corpo e suas


memórias; o corpo em suas variações de temperatura, na sensibilização tátil,
através de diferentes texturas. Esses preceitos passam a direcionar a
intencionalidade de suas obras, a partir de então. Em 1968 produz A casa é o
corpo, onde através dessa proposição sensorial, aponta para uma reflexão a
respeito de corpo, memória e suas origens.52

No intuito de propor a interação espaço-obra-espectador, os Parangolés de


Hélio Oiticica (1837-1980), na relação ambiental proposta pelos objetos, estão
diretamente ligados com a relação-reação corporal esperada do espectador para
com a obra. Na interação da obra, com o movimento do espectador que os
parangolés se constituíam em suas totalidades. Em 1965 escreve A dança na
minha existência; esse texto, juntamente com Bases fundamentais para uma
definição do Parangolé (1964), buscam esclarecer o que seriam os parangolés e
quais eram suas intenções.53

Ao romper com o objeto/arte como coisa destinada à visualidade


(relação “contemplativa”), busca o tato e o movimento, repõe a
sensibilidade recalcada pelo tecnicismo do movimento concreto. Cor,
estruturas, palavras, fotos, dança, corpo, definem a obra. A participação
física é o centro e o interlocutor do acontecimento/arte, o conceito de visão
envolve todo corpo, difícil não pensar na fenomenologia de Merleau-
54
Ponty.

Quanto às performances, no Brasil, Flávio de Carvalho (1899-1973), foi o


pioneiro nas performances, a partir de meados da década de 1950 (...). O grupo

52
Fontes de pesquisa: <http://www.itaucultural.org.br> e SACCÁ, Lucilla. Corpo como experimento.
<http://www.memorial.sp.gov.br/revistaNossaAmerica/23/port/26>
53
IDEM.
54
Referência retirada do artigo Liberdade Marginal, de Almandrade. No site:
<http://www.officinadopensamento.com.br/arquivos/visuais/artigos/liberdade_marginal_almandrade
.htm>
43

Rex, criado em São Paulo, por Duke Lee (1931), Nelson Leirner (1932), Carlos
Fajardo (1941), José Resende (1945), (...), realiza uma série de happenings.55

O Grupo Rex carrega o espírito contestador do dadaísmo e o feitio


interdisciplinar e plural do Fluxus, com marcas evidentes da arte pop. Como
referência, ainda, podemos mencionar as Eletro performances, que eram
espetáculos multimídia concebidos por Guto Lacaz, na década de 1970.

1.5 Corpos e Atitudes

O conjunto das reflexões que se trouxe até esta parte da pesquisa, entre
atitudes, conceitos e novas maneiras de elaborar tempo, espaço, arte e corpo, foi
para poder refletir melhor sobre a questão deste estudo: o corpo na performance.
O que pode este corpo nessa arte? O que pode ser feito em uma performance?
Como delinear uma tendência, uma norma, um cânone formal ou estético? A
performance surgiu na ebulição desses experimentos, dessas transformações
sociais; surgiu para consolidar a relação estreita entre arte e vida. Percebe-se que
a questão da configuração estética na performance possui a tendência de se
reinventar a cada obra feita, a cada modo dos distintos artistas lidar com o corpo,
com o espaço e o tempo; está no que surge e emerge. É a natureza própria da
efemeridade.

Na confluência da arte pop, da body art, do minimalismo e da arte


conceitual, que definem a cena da arte nas décadas de 1960 e 1970, surge a
performance; colocando em xeque certos padrões artísticos e sociais do
modernismo. Propõe, assim, uma variedade de experiências culturais díspares.
Ou seja, não há cânone específico que dite suas normas. Assim, não só as
performances, como os happenings e as instalações dão o tom das novas
tendências para a arte na referida época.

55
<http://www.itaucultural.org.br> Enciclopédia Artes Visuais – performance.
44

Cada vez mais as obras articulam diferentes modalidades de arte -


dança, música, pintura, teatro, escultura, literatura etc. - desafiando as
classificações habituais e colocando em questão a própria definição de
arte. As relações entre arte e vida cotidiana, assim como o rompimento das
barreiras entre arte e não-arte constituem preocupações centrais para a
performance (e para parte considerável das vertentes contemporâneas).56

Nesse sentido, conclui-se que, a configuração de uma performance, além


de questões ideológicas e estruturais do campo da arte, está centrada no próprio
corpo do performer, em suas memórias; nada mais que o resultado específico de
suas vivências, de sua história, de seus anseios e de suas concepções de mundo.
A par disso, também, temos a questão do contexto: Do espaço em se veicula o
feito, do campo ao qual o artista está situado e, principalmente, dos pares relativos
ao campo da arte em que se situa o artista - os quais legitimam o trabalho
enquanto obra de arte. Nesse sentido, Glusberg aponta uma data precisa para a
performance:

Em 1972, a Documenta de Kassel dá reconhecimento internacional à


body art, organizando uma mostra com seus expoentes mais relevantes
em todo o mundo. Ao mesmo tempo, a body art se diluía dentro de um
57
gênero mais amplo – a performance.

O contexto social de uma época também influi e determina o surgimento, a


circulação e a legitimação de uma nova configuração estética (aparência) na arte.
O pensamento que se traz a este parágrafo é respaldado pelo raciocínio de Pierre
Bourdieu, em seu livro A Economia das Trocas Simbólicas.58 Tal obra foi
detalhadamente estudada e apresentada em seminário, na disciplina Leituras de
Obras de Arte I, no percurso do Mestrado – o que resultou em um artigo
publicado59. Não cabe a este estudo, no entanto, uma revisão bibliográfica nesse
sentido. Limita-se, por ora, situar a construção do raciocínio que se esboçou.

Todos os artistas citados nesta reflexão histórica redimensionaram as


formas de composição e aparência das artes; também despertaram novas

56
<http://www.itaucultural.org.br> – Enciclopédia Artes Visuais – Performance.
57
GLUSBERG, J. A arte da performance. Op. cit., p. 43.
58
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
59
PALUDO, Luciana. Arte, um bem simbólico. <http://www.idanca> – Maio, 2005.
45

discussões no campo da arte como um todo. Nesse todo, a maneira que o corpo
se posicionou nas artes visuais se transformou: saiu, através das proposições e
atitudes dos corpos, da representação da tela, ou da metáfora das partes, para vir
à obra, na performance – vivo, em tempo e espaço real, na apresentação de sua
totalidade.

Certo é que, enquanto artistas, nossos gestos e atitudes, bem como


procedimentos técnicos e resultados estéticos guardam, além da influência do
momento presente, resquícios dos fragmentos históricos e estéticos do passado.
No caso particular, guardo, na experiência de meu corpo, anos de prática do balé
clássico, da dança moderna, da dança contemporânea; escritos e publicações de
poesia, apresentações e pesquisas de performances e, também, vivência como
intérprete de música popular brasileira. Guardo inclusive, com zelo e cuidado os
referenciais da filosofia e da história que auxiliam na composição do presente
texto. Todas essas vivências colaboram para o estilo de raciocínio estético que se
forma, para a arte e, especificamente, neste estudo, para a arte da performance. A
seguir, uma reflexão filosófica sobre o corpo e a performance.
46

2 ESBOÇO DE UMA REFLEXÃO ONTOLÓGICA – O Ser da Performance

A performance, para que exista, carece da presença de um corpo


humano vivo, que esteja interagindo com o ambiente. A performance exige um
ser-no-tempo, situado num determinado espaço; temos a questão da presença
como pressuposto indispensável para sua realização.

Pensemos a presença no sentido espacial, como algo que está presente


à sensibilidade humana; no sentido temporal, como aquilo que está sendo, em
oposição ao que passou ou ao que ainda será (no ser que realiza e nos que
estão no ambiente, a assistir ao ato). No sentido ontológico, como o que se dá
em si ou no outro; de certa forma, o ser atual, com seus aspectos de
virtualidade e de potência. Temos a presença como uma problemática da
própria ontologia da performance; para que se constitua o ser da performance é
necessária a presença. O ser da performance é o todo que emerge de um
trabalho, de uma apresentação performática, e não, isoladamente, o corpo do
performer.

Performance: corpo, presença, ser-limite. A presença guarda a


problemática do limite, uma vez que lhe é pressuposto um ser-no-mundo. Em
relação à condição do ser humano, como ser limitado por sua própria natureza,
o selo da finitude está, de antemão, em todos os seus projetos e realizações. O
homem é o ser que fala mesmo quando não fala e cala, recolhendo-se no
silêncio do sentido, assim como é o ser que morre, mesmo quando não morre e
vive, recolhendo-se à temporalidade da existência.60

O limite reporta ao fator tempo. O tempo se torna uma problemática a


ser pensada durante toda existência – mesmo se esse pensar não seja algo
formulado pela linguagem, conscientemente. Quando a ele, ao tempo, nos
voltamos em atenção e pensamento (como se fosse um ente, um ser),
colocamos nosso organismo a romper obstáculos, então criamos coisas –

60
Emmanuel Carneiro Leão – na introdução de Ser e Tempo – parte I, de Martin Heidegger. São
Paulo: Vozes, 2005. p. 16 – 15ª ed.
47

tentativas singelas de perpetuar o tempo, nem que seja efêmero, no caso de


uma performance. O tempo nem sempre corre. Podemos encontrar ou cavar
lugares onde ele congela.61 Criar alguma coisa significa colocar o tempo, num
instante, em suspensão; como se pudéssemos nos precaver do inevitável, que
é a finitude de nossa carne. Certo é que subjetivamos o tempo e, assim,
podemos criar temporalidades distintas; cada processo criativo guarda uma
temporalidade, cada trabalho de arte contém, em virtualidade, tempo
empregado; cada obra feita comporta um passado.

A reflexão dessas questões me tornou ciente de minha condição


enquanto performer; enquanto corpo atuante em tempo e espaço real. Fez
perceber que, no tempo real que estava performando, automaticamente,
enfrentava essas duas problemáticas, ou seja, a de estar presente com o meu
corpo – com o compromisso de instaurar uma performance - e de esse corpo
estar desafiando, a cada instante, os limites impostos, peculiares à sua própria
condição... humana: a todo instante minha finitude está presente – e esse é o
pressuposto básico do processo de existir.

Nessas duas questões (presença e limite) instaura-se uma dialética:


presença como tese, limite enquanto antítese e o corpo como a própria síntese.
Enquanto se posta como meio e suporte da idéia, no momento em que se
predispõe a estar ali, em presença, a cada instante – em seus limites – o corpo
dará os contornos do que será considerado um trabalho, uma obra de arte – no
caso da performance.

Anteriormente se disse que a arte carece de determinados


procedimentos, que, mais ou menos arbitrários, se constituem em um código,
compondo, assim, um conjunto de normas que darão a característica de cada
configuração de arte. Sendo assim, será que existe um código de normas fixas
para se compor uma performance? Na certa, não existe tal código. A
performance nasceu para, justamente, refutar códigos.

61
SERRES, Michel. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil; p. 181.
48

No início da primeira parte deste estudo, no primeiro capítulo, foram


sinalizadas algumas características que poderiam ser encontradas nas
performances, através das palavras de dois autores, RoseLee Goldberg e
Richard Schechener. O ideal, quando não se tem definição fechada acerca de
um objeto, é observar e descrever características. O processo de pesquisa foi
ininterrupto, nesse sentido. Além das observações e especulações acerca de
fenômenos e manifestações das próprias performances, se primou pela
observação de algumas performances de outros artistas.

Ao observar procedimentos de outros artistas e, também, próprios do


meu processo de composição e atuação, pude verificar alguns caminhos que
levam à configuração dessa arte. Nesse fator, juntamente com a reflexão
filosófica acerca do material corpo – e a atuação de meu corpo, em si, é que
reside a parcela de contribuição desta pesquisa para o campo das artes visuais.
Reitero que as reflexões e construções textuais surgiram a partir das
realizações das performances; um discurso vivido, que permeia o aspecto geral
desta dissertação.

Outro fator a ser ressaltado é a reflexão sobre o corpo, encontrada na


maestria das palavras dos autores lidos. Foi uma espécie de trato para o
pensamento; um exercício de refinamento para a composição de novos arranjos
de palavras, o que deu origem ao presente texto. A idéia que Michel Serres
apresenta na citação que segue trouxe à tona alguns entendimentos empíricos
que permeiam minha ação, no conselho implícito que o conjunto de meu
trabalho comporta.

Que teu corpo não se torne estátua nem túmulo, cadáver antes da
agonia, morte antes de morrer; evita qualquer anestesia (...); toma cuidado
com o torpedo ou torpor de língua e de filosofia; foge das culturas de
proibição. A sabedoria emana do corpo: o mundo dá a sapiência, e os
62
sentidos a recebem, respeita o dado gracioso, acolhe o dom.

62
SERRES, Michel. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. Op. cit., p. 203.
49

Acolherei o dom da mobilidade e da ação, na graça da escuta constante


ao que se apresenta aos meus sentidos... Devolverei isso a outrem, na forma
de ação e movimento, no ambiente em que possa estar. A palavra também
sugere a ação, pois tem imagem; pode nos desestabilizar, uma vez que nos faz
ver. A palavra pode dar início à instauração de um ato. Foi o caso do trabalho
próprio Amanhã, ou depois deixe sua pele ver o pôr-do-sol. Um dia escrevi essa
frase, em um rabisco de poesia. Percebi que a poesia seria criada de uma
forma mais efetiva, à presença do sol... Pelo encontro concretizado do corpo
com o sol. Creio que, nesse trabalho, meu corpo revela algo da ritmicidade
encontrada na citação de Serres, acima.

2.1 O Corpo Desvelado – Do pensamento também surge o corpo.

Um deflagrador em potencial das novas maneiras de configurar a arte e


o corpo na arte tem relação direta com as novas concepções de corpo, inclusive
no que tange à elucidação de nossas constituições orgânicas, dadas pelas
averiguações da ciência e da filosofia. O conhecimento da anatomia e da
fisiologia desveladas pela ciência, enraizada na agitação intelectual que sacudiu
a Europa dos séculos XV, XVI e XVII - no plano do saber oficial - e os estudos
fenomenológicos, de Edmund Hussel (1859-1938) a Maurice Merleau-Ponty
(1908-1961), também se apresentam como determinantes às novas
formulações de pensamento a respeito de corpo no mundo. De acordo com
José Gil, O movimento de instauração de certas ciências, como a Anatomia por
André Vesálio, é precedido de um longo trabalho de destruição dos velhos
hábitos de pensamento.63 Isso gerou uma conseqüência nas concepções
vigentes do corpo, bem como, deflagrou aos poucos uma reformulação da
aparência do corpo na arte.

Nas artes plásticas, entre o século XV até o final do século XIX o corpo
aparece representado nas obras; pode aparecer, também, como vestígio, como
marca de um corpo que esteve ali, realizando a obra. Um gesto específico em

63
Gil, José. Metamorforses do Corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1997; p. 130.
50

uma escultura, em uma pintura pode ser o indício da mão do artista, de sua
ação corporal ao fazer a obra. No século XX, o corpo passa a ser apresentado
de outras maneiras; pensemos nas pinturas de Pablo Picasso e nas
manifestações performáticas, quando o corpo do artista passa a vir para a obra,
fazendo parte de sua estrutura, ou, ainda, participando ativamente da
composição – no caso de Pollock, na sua action paiting. Pode-se dizer que o
corpo sai da representação, ou do vestígio de um traço; tem a possibilidade de
não ser mais um índice apenas, ou uma imagem. É em tempo, espaço e
presença, elemento que dá forma e constitui as novas propostas das artes
visuais, como a body art, os happenings e a própria performance.

A dança, onde o corpo está presente, no momento em que transcorre a


apresentação, também inicia uma reflexão dos pressupostos que a regem, com
mais vigor ainda no final do século XIX e início do século XX, culminando na
década de 1960. Entre técnica e estética, o campo da dança, através das ações
e pensamentos de seus criadores e intérpretes, estabeleceu modificações na
sua estrutura. Conforme citado no capítulo anterior, em vários momentos houve
entrecruzamentos entre a Dança e as Artes Visuais. Na década de 1960 isso
fica evidente, uma vez que os pressupostos da dança pós-moderna nova-
iorquina apresentam questões em comum com as performances da época;
muitos artistas trabalharam em colaboração. Sobre a dança, especificamente,
Henri-Pierre Jeudy faz uma reflexão, relacionando-a com outras artes; assinala-
se que tal reflexão pode-se estender perfeitamente à performance:

A pintura, a escultura e a fotografia suspendem o movimento,


restituindo-o no momento de sua captação, mas na dança o movimento
entrega-se por si mesmo e logo desaparece no vazio de onde ele surgiu.
Essa é a razão por que a dança é uma repetição desse nascimento do
corpo no mundo, como se o insensato não pudesse ser figurado senão
64
como uma ironia radical do sentido.

Ainda sobre as descobertas científicas acerca das constituições do


corpo, constata-se que, a cada elucidação, a ciência perturbava o antigo regime

64
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002; p. 66.
51

dos signos vigentes. As informações passariam, gradativamente, de um circuito


fechado de estudiosos, para um maior número de pessoas. No século XX isso
se intensifica com a grande circulação das informações. Esses fatores
propiciaram, ao grupo humano ocidental, a revisão de vários mitos e dogmas
concernentes à sua estrutura.

Embora tais concepções não tenham sido operantes em larga escala


[como ainda, hoje, não o é], no campo da ciência e da arte, as transformações
se deram, principalmente, pelas novas elucidações e publicações a respeito das
pesquisas do corpo e de suas constituições, datadas, ainda, dos estudos de
Leonardo da Vinci (1452-1519) e André Vesálio (1514-1564). Leonardo da
Vinci, além de todos os conceitos apresentados em sua produção estética,
falava da demência soberana da espécie humana. Proferiu, naquela época, que
o tempo fisiológico do ser humano já não seguia o tempo social. E o homem
tem uma demência soberana, que o faz sempre sofrer na esperança de não
sofrer mais e a vida escapa-lhe enquanto espera gozar dos bens adquiridos, a
preço de grandes esforços.65 Da Vinci aponta para a condição humana, aos
esforços patéticos de perpetuação, à condição finita da carne, demasiadamente
humana.

Friedrich Nietzsche (1844-1900), traz essa condição aos seus limites,


com sua crítica contundente aos valores tradicionais da sociedade ocidental.
Considera decadente o conservadorismo da visão do mundo burguesa e cristã;
julga tais pensamentos um modo contrário à natureza humana e à sua
espontaneidade. E é isso o que tendes de pior, ó homens superiores: que
nenhum de vós aprendeu a dançar como convém – a dançar para além de vós
mesmos!66 A dança vem como metáfora do espírito espontâneo.

Em Assim falou Zaratustra – um livro para todos e para ninguém,


Zaratustra é o dançarino que luta contra o espírito da gravidade, o espírito

65
Leonardo da Vinci em Traité de la peinture. Cap. XII, “De la Figure”, § 351. Apud Gil, José.
Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1997; p. 132.
66
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra – um livro para todos e para ninguém. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977; p. 297.
52

terreno. Talvez buscasse escapar dessa condição humana, em demasia.


Zaratustra o dançarino, Zaratustra o leve, que acena com as asas, prestes para
o vôo, a todas as aves, pronto e disposto (...).67 Zaratustra, que fala em
imagens, das coisas mais elevadas, quando dança; que guarda o silêncio
dessas imagens, silenciado pela morte de todas as visões e consolações de
sua juventude.

Zaratustra me faz companhia desde o ano de 2003; ensinou-me: O passo


revela se alguém já marcha no seu caminho: olhai o seu modo de andar! Mas
quem se aproxima da sua finalidade, esse, dança.68 Gostava, ele, de andar
depressa...

E assim me despertou pensamentos que carrego comigo e desdobram-


se, também, em movimentos - que sinalizam outras coisas, ou coisas mesmas,
para um, para muitos, ou nenhum espectador. Movimentos que anunciam a
minha existência e regozijam a minha estada. E quando estou cansada, escuto
uma voz: Levantai vossos corações, meus irmãos, bem alto, mais alto! E sem
esquecer-vos das pernas! Levantai também as pernas, ó exímios dançarinos; e,
ainda melhor: ponde-vos de pernas para o ar!69

2.2 Artistas Referenciais

No estudo das obras de artistas que fazem parte de minhas referências,


detive-me na observação de seus corpos, da tensão de seus olhos, dos gestos
de seus braços, em seus deslocamentos, na forma em que interferiam no
espaço e, por fim, na razão filosófica e estética de seus trabalhos – na questão,
em si, que o conjunto de suas obras – ou alguma obra, em específico -, com
suas características, suscitava. Com esse procedimento de observar, almejou-
se averiguar como outros corpos se comportavam e interagiam no espaço, no
momento em que estavam performando; como, junto a outros elementos, estes

67
IDEM, p. 296.
68
IDEM, IBIDEM.
69
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra. Op. cit. p. 296.
53

corpos se apresentavam ao espaço – e, na medida do possível, saber o que os


movia para isso.

Sem corpo, não há performance; então, o corpo é o material primordial


de uma performance. Mesmo que uma performance aconteça em meio a outros
objetos, se desse espaço subtrairmos o material corpo, então, teremos, quem
sabe, uma instalação, um objeto, ou mesmo um espaço vazio e não uma
performance. O foco se estreita, então, para os discursos que esse material
corpo comporta. Conteúdo, recipiente, significante, ou simples forma, o corpo
está a serviço da instauração de uma performance.

Observei, especialmente, o trabalho de quatro artistas, no decorrer desta


pesquisa, Bruce Nauman (ANEXO H e I), Vito Acconci (ANEXO L), Marina
Abramovich (ANEXO J) e Robert Irwin. A relevância de Irwin ser referência
deste trabalho se dá pela importância que ele confere às vivências próprias de
seu corpo, como forma, como meio de perceber e compreender os fenômenos
que o rodeiam – e de, como esses fenômenos percebidos são determinantes
naquilo que emergirá em seu trabalho; mais: a relação desses fatores com sua
própria existência. A partir de alguns trabalhos desses e outros artistas - da
performance e da dança, trarei algumas características que julgo ter observado,
também, em minha maneira de trabalhar, nas performances que realizo.

Observei com cuidado algumas obras de Nauman; em Dança ou


Exercício sobre o Perímetro de um Quadrado (Quadrilha) (ANEXO H), de 1967-
68, Nauman repete movimentos em torno de um quadrado, como se o estivesse
medindo com as pernas, que são afastadas e aproximadas constantemente,
numa mesma velocidade de seu movimento, em cima das linhas de um
quadrado desenhado no chão. Aparentemente é uma atividade desprovida de
sentido, mas percebe-se a preocupação do performer em manter o mesmo
padrão de movimento. A mesma observação vale para Caminhada com
Contraposto, de 1968 e Caminhada Lenta em Ângulo (Caminhada Beckett)
(ANEXO I), também de 1968. Para essa série, o próprio Nauman define os
pressupostos:
54

Muitos dos filmes eram sobre dança, ou problemas de exercício, ou


movimentos repetidos, como as performances. Existe a ação repetida e ao
mesmo tempo, durante um longo período de tempo, surgem erros ou pelo
menos o acaso, mudanças; você fica cansado e acontece todo tipo de
coisa, então, há uma certa tensão, que dá para explorar uma vez que você
70
começa a compreender como essas coisas funcionam.

Esses vídeos foram inspirados em grande parte pela dança e pela


música experimental da época, em particular as performances de dança de Merce
Cunningham (ANEXO M), elaboradas a partir de movimentos do cotidiano e
atividades normais.71 Além de Cunningham, a música de La Monte Young, Steve
Reich e Philip Glass foram importantes para Nauman por seu sentido de estrutura
de tempo, coisas que continuam (...). Não havia início ou fim.72 Na obra para vídeo
de Merce Cunningham Points in Space, embora diferenciada das performances
para vídeo de Nauman, há questões como a repetição de temas e a interação do
corpo ao espaço; hierarquias são questionadas através da estrutura, na repetição
dos temas, onde cenário, figurinos e corpo se integram num mesmo ambiente;
vários corpos em movimento, sem que haja exaltação de um elemento,
especificamente. Essa estrutura faz com que não se possa identificar uma
narrativa, nem um início, um meio ou um fim específico.

Nos Studio Films, título da série de trabalhos para vídeo de Bruce


Nauman, eram justamente questões físicas, como equilíbrio e resistência que
vinham à tona; “problemas da dança”, segundo o próprio Nauman. Assinala-se a
qualidade de seu movimento em Caminhada com Contraposto, percebe-se a
respiração e a fluidez do movimento, cuidadosamente mantido num padrão
mesmo, com velocidade desacelerada, aonde seus quadris vão de um lado para o
outro, enquanto ele realiza a caminhada em um corredor estreito, similar ao
corredor da obra Corredor de Vídeo Gravado ao vivo, de 1970.

70
In Janet Kraynak (ed.) Please Pay Attention Please: Bruce Nauman’s Words. Cambrige e
Londres: MIT Press, 2003, p.188. Apud catálogo da exposição, p. 15.
71
Referenciam colhida no texto de Lílian Tone; catálogo da exposição Circuito Fechado de Vídeos
e Filmes Bruce Nauman – vide referências.
72
IDEM, em afirmação do próprio artista.
55

A obra Corredor de Vídeo Gravado ao vivo se constitui em uma


instalação com câmera de vídeo (com lente grande angular), fita e aparelho de
vídeo e dois monitores que se encontram ao final desse corredor. Nessa obra,
somos participantes ativos – portanto, a completamos com nossa performance –
pois está prevista a interação do público. Podemos percorrer o longo corredor de
paredes brancas e altas - e a é sensação claustrofóbica, pois é estreito. À medida
que nos aproximamos dos monitores, que estão ao final desse corredor, nossa
imagem, de costas (que está passando no monitor), diminui. É uma sensação
muito estranha de espaço que nos torna pequenos... Até entendermos que a
câmera de vídeo está na entrada do corredor, atrás de nosso corpo.

É exatamente essa questão física, eminentemente, corporal e sensorial,


latente dos trabalhos de Nauman, que instiga e faz com que haja uma
aproximação desta pesquisa com esse artista. No caso de meu trabalho, cito A
performance do apartamento – que será analisada na segunda parte deste
trabalho - e os dois trabalhos da série Sulcos na Carne (ver no DVD, nos capítulos
3, 4 e 5). Da mesma forma, percebo nesses trabalhos próprios as questões acima
citadas, ou seja, a intenção de despertar reações sensoriais distintas no
espectador. As questões de ordem sensorial, em uma obra de arte – quando
efetivamente se realizam - se expandem ao público, no momento da presença real
com o trabalho.

Por exemplo, uma questão apresentada pelo meu corpo, em uma


performance, instiga percepções alheias, uma vez que a imagem de meu corpo
interfere na imagem do corpo de outrem73, provocando ou propondo experiência
similar – pelo menos é isso que visa em sua intencionalidade. Surge, pois, esta
identificação com o trabalho de Nauman, tanto no que o motiva (suas questões de
dança, expostas acima), quanto no resultado estético de seus trabalhos.

Nauman se inspira em trabalhos de Merce Cunningham; a esse respeito, a


estética em meus trabalhos de dança tem afinidades com a proposta técnica e

73
O pensamento desenvolvido acerca da imagem do corpo, no sentido exposto, encontra respaldo
na obra de Paul Shilder A Imagem do Corpo – As energias constitutivas da psique. Vide
referências.
56

estrutural de Cunningham, inclusive no momento da composição, onde células de


movimento independentes se aliam, ou se justapõem, no caso do trabalho ser
realizado em grupo. Foi uma das técnicas corporais que estudei na graduação em
Dança e, mais recente, em aulas com uma ex-bailarina de sua companhia.

Há, também, uma margem de acaso presente em meus trabalhos; um


acaso estruturado, por exemplo, na performance (eu) Vim, que descreverei no
primeiro capítulo da segunda parte desta pesquisa, levei vários objetos para atuar.
Como determinei que não olharia para os objetos - para escolhê-los, deixei que o
acaso determinasse o roteiro, pois a forma dos objetos e seus conteúdos
significativos pessoais é que delineariam as reações e ações de meu corpo,
naquela performance.

Durante a ação, em meio às tarefas a serem realizadas, há – ou pode


haver - arranjos momentâneos, tanto de temas já estudados, quanto de elementos
que surgem, por vezes inusitados, no tempo presente da apresentação. Isso é em
referência, tanto à dança, quanto às ações performáticas; o raciocínio é similar. Na
questão do acaso estruturado, das improvisações, o que torna possível isso é o
corpo preparado, responsivo e atento à ação; sendo assim, o que o corpo realiza
ganha o status de composição, embora seja momentânea - uma vez que é capaz
de memorizar o que fez e jogar, inclusive, com a repetição.

Quanto à Marina Abramovic, o que ressalto do conjunto de trabalhos


analisados é uma certa dramaticidade de seus temas, juntamente com seu
trabalho corporal, de plena presença durante suas performances, pois que,
trabalha, não raro, com situações de risco – atua desafiando a questão do seu
limite, de sua condição humana. No site do Guggenheim Museum, no que se
refere à Marina Abramovic, um dado relevante a esta pesquisa diz que o corpo foi
sempre seu assunto e meio. Explorando os limites físicos e mentais de seu ser,
suportou a dor, a exaustão e o perigo, na questão de sua transformação
emocional e espiritual.74 Em uma entrevista feita por Laurie Anderson a Marina,
publicada na Folha de São Paulo, na introdução a argüidora ressalta: Sempre

74
Tradução livre para informações contidas no site do Guggenheim Museum – vide referências.
57

adorei o senso de aventura de Marina. Ela também possui a rara capacidade de


estar no presente e de prestar atenção ao seu redor.75 Laurie Anderson, enfim,
antes de começar a entrevista define mais um aspecto de Marina Abramovic: (...)
cria a transformação a partir dos mais simples materiais, dando destaque ao
próprio corpo. Uma pessoa intensamente física, ela combina esse aspecto com o
espiritual de uma forma completamente única.76 Concorda-se com as definições
de Laurie Anderson para a artista; razão pela qual, a mesma se apresenta como
referência desta pesquisa.

Vito Acconci também é referência, pela sua irreverência, pela maneira com
que trata o seu material corpo. Despojado de maiores pudores, torna relativo
alguns significados pré-estabelecidos, em relação aos discursos do corpo. Por
exemplo, numa série de filmes feitos em Super-8, entre 1969 e 1974, onde registra
seus desempenhos performáticos, usa e manipula seu corpo de forma intensa.
Apesar de as configurações de seus trabalhos não terem relação aparente para
com os trabalhos que proponho, assinalo a forma com que Acconci se
disponibiliza ser e estar, na realização de suas performances e na utilização de
seu próprio corpo (vide ilustrações no ANEXO L). Talvez, nos dois trabalhos
próprios da série Sulcos na Carne, haja uma aproximação estética com os
trabalhos de Acconci, mas isso ainda não está totalmente claro em minha reflexão,
acerca da própria produção.

Quanto à relação dessas questões citadas, de outros artistas, com a


produção individual, percebi certas características, como a dramaticidade, a
questão de o meu corpo ser, também, meio e discurso do que configuro; o
envolvimento total a que me proponho nas realizações das performances e a
questão da percepção, que determina a maneira com que me aproprio do espaço
em que estou situada e o tempo que tenho para desenvolver-me nesse espaço. A
percepção de minha espacialidade e da temporalidade, inerentes à minha
presença no mundo e no ambiente em que me encontro, juntamente com os
dados da memória é que determinarão a ação e qualidade da ação na

75
Folha de São Paulo – Caderno Mais! Domingo, 17 de agosto de 2003; p. 5.
76
IDEM.
58

performance que realizo. Enfatizo outro fator que gera identificação e aproximação
com os artistas que cito: suas inserções no campo da arte. Não ficam eles restritos
a um grupo, a um meio ou a técnicas específicas; trabalham em colaboração com
pares contemporâneos que se inquietam pelas mesmas questões e experimentam
possibilidades variadas de realização de suas idéias.

Motivada por esse fator, em setembro do ano de 2005 realizei uma


apresentação no Teatro de Arena (vide ANEXO G). Na ocasião, convidei artistas
que desenvolvem pesquisa em artes visuais, dança e teatro. O que apresentei
foram quatro solos de composição própria, onde utilizo música de Heitor Villa-
Lobos; dei o título de Vila, vila, villa-lobo. Nesse trabalho, entre um solo e outro,
meu corpo se transforma; cada solo é diferente, em termos de força e velocidade
aplicadas para a realização das tarefas e dos movimentos. O título do espetáculo,
Os humores do Poeta, apontou essa questão da metamorfose do corpo, seus
humores oscilantes – e o que isso deflagra, em termos de ação. Em cada
coreografia de Vila, vila, villa-lobo houve um estado de corpo diferenciado.
Concluo que esses diferentes estados geram distintos padrões de movimento e
diversas maneiras de estar no espaço, de lidar com o corpo e o tempo em que são
realizadas as ações.

As artistas convidadas, no momento de atuarem, entravam da platéia, nas


transições entre um solo e outro de minha dança – o que era realizado em
silêncio. Tal intervenção teve um caráter performático de improvisação, pois a
realização das tarefas determinadas não foram arbitradas de forma rígida, o que
conferiu a cada artista autonomia de sua ação/criação, dentro do contexto
solicitado pelo trabalho, no encadeamento de ações propostas.

A cada intervenção, um humor novo se pronunciava; então, as intervenções


desencadeavam as transições. Caracterizo essa ação como uma performance
coletiva77 - a qual propus, atuei e dirigi. Estabeleço uma aproximação com Robert
Rauschemberg, em sua primeira performance (Pelicano), conforme já citado.
Ressalto que nesse momento da pesquisa, as tensões entre elementos “vivos”
77
Os elementos trazidos para sua configuração (dança, manuseio de tecidos, montagem de um
trabalho pela artista plástica, objetos e falas) são vistos como parte integrante da estrutura.
59

díspares estavam instigando meu pensamento. Já havia trabalhado com


elementos díspares, sendo eles objetos, na performance (eu) Vim. No mesmo
intuito, propus a meu corpo que reunisse as aparentes contradições, para que o
feito tivesse uma unidade de sentido.

O nível de atenção se eleva quando atuamos com outras pessoas – testar


tal afirmação era um dado relevante para a pesquisa naquele momento. A atuação
ao vivo faz como que os ouvidos, os olhos e a pele se agucem, de modo que
possam responder ao que a ocasião solicita. Nesse momento dependemos de
nosso corpo, apenas; é nele que temos de confiar. O corpo, então, é um elemento
a se transformar e que transforma o espaço. O estado de performance se
pronuncia, onde sujeito e objeto se confundem, nisso está a emergência de outro
objeto, a performance em si. Aí surge o ser da performance: atento, rápido,
disposto e flexível; vivo.
O espaço que propus a realização de Os humores do poeta é,
costumeiramente, destinado às Artes Cênicas, mas as fronteiras se tornam
nebulosas quando questões similares se encontram. O jogo que propus em Vila,
vila, villa-lobo carregou, implicitamente, uma questão que se faz pertinente a esta
Dissertação, pelo menos de ser trazida, que é justamente as fronteiras entre as
categorias de arte, principalmente por eu ser da dança e estar realizando esta
pesquisa no terreno das artes visuais. Não se tem, contudo, a pretensão de
resolver tal questão; todavia ressalta-se que este pensamento já veio ao texto,
com o devido aporte de Rosalind Krauss, Saly Bannes e ações realizadas por
diversos artistas no decorrer do século XX, conforme referências mencionadas.

A apresentação, que teve a promoção da Secretaria Estadual de Cultura e


Instituto Estadual de Artes Cênicas, serviu a esta pesquisa como uma
oportunidade, um campo de tensão onde várias forças, inclusive com suas
divergências, tiveram a intenção e oportunidade de formar uma coisa só, propondo
uma unidade de sentido no todo da realização. Na compreensão do presente
estudo, realizações assim se apresentam como um modo de entender e discutir a
arte, suas fronteiras tênues e os espaços destinados para suas diferentes
manifestações – e como essas diferentes manifestações podem se aproximar e
60

estabelecer trocas. Houve um debate após a apresentação onde tais aspectos


foram evidenciados, entre os artista e o público presente.

2.3 Pedaços de História Guardados num Corpo


Tendo por objetivo averiguar possíveis respostas ao que determinava a
aparência do que surgia em minhas performances - a causa do que se
pronunciava esteticamente -, se trouxe a esta pesquisa as referências históricas.
Tais referências são parte formadora de meu raciocínio estético – portanto, uma
das causas das escolhas estéticas e estruturais em minhas composições.
Na proposição de averiguar a origem de configurações próprias, percebe-se
o quanto “origem” é um conceito ambíguo, quando se entende coisas e fatos do
mundo como marcos sucessivos, onde o presente é apenas um momento fugaz
que traz consigo o ocorrido no passado e aponta a um porvir, que se pronuncia a
partir desses traços. Didi-Huberman auxilia esse pensamento: (...) Portanto, o
passado se dialetiza na protensão de um futuro, e dessa dialética, desse conflito,
justamente surge o presente emergente (...).78
Nosso corpo é um organismo em constante mutação, constituído e
constituinte de seu meio. Se hoje temos um modo de ver e de ser, que nos
permite uma liberdade maior [levando em consideração as sociedades ocidentais
– e em termos restritos, ainda!] isso se deve a processos de mutação, gerados por
instabilidades [interiores e exteriores] do ser humano. Tais fatos interferiram na
maneira pela qual passamos a configurar nossos pensamentos e ações no mundo
- esse grande organismo vivo que nos dá abrigo. Dentre esses pensamentos e
ações, está a arte. O que temos, hoje, em termos de configurações artísticas,
sociológicas, filosóficas, etc, é em decorrência de contextos de empenho coletivo,
na constante tentativa em que nós, humanos, fazemos para modificar
qualitativamente o ambiente em que vivemos.

2.3.1 A Construção do Material Corpo em Questão: (m)eu corpo

78
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 (1ª
reimpressão 2005); p. 151.
61

O assunto que norteou a primeira parte desta pesquisa disse respeito à


construção de algumas concepções de corpo na arte e corpo no mundo. Desse
modo, acredita-se que seja possível traçar uma espécie de genealogia do que se
pronuncia, em específico, nas configurações de minhas performances.
Comecei a trabalhar com o corpo aprendendo ballet clássico (método de
Agripina Vagânova, que era a base da Escola do Teatro Guaíra, a qual cursei);
depois, passei a estudar dança moderna, dentro dos pressupostos da técnica
construída por Martha Graham e, também, Hanya Holm, que foi discípula de Mary
Wigman. A técnica de Merce Cunningham e pressupostos da composição
coreográfica, e da aula, de Alwin Nikolai foram práticas importantes.
Os estudos de Ideocinese79 iniciaram o despertar de um outro raciocínio
para o corpo; um corpo que podia averiguar suas conformações anatômicas. Ao
apreendê-las, teria a capacidade de atuar conscientemente sobre elas,
modificando-as, gradualmente, se caso fosse. Muitos conceitos foram revistos a
partir desse raciocínio – muitos questionamentos em relação aos métodos, em
relação ao corpo e o corpo na arte.
Os métodos devem ter um certo grau de flexibilidade, assim como o corpo.
Sendo assim, podem ser re-construídos a cada dia, conforme as demandas das
circunstâncias de quem deles usufrui e se beneficia. Mas, esse pensamento
democrático, teve seu início nas aulas de Cinesiologia e ballet clássico, nos anos
de 1988 e 1989, no Curso Superior de Dança80, em Curitiba. Nessa época
realizávamos performances e happenings, inclusive com objetivo de compreender
as peculiaridades de cada configuração, nas disciplinas de Improvisação I e II,
também no Curso de Dança. Esse estudo abriu perspectivas de como poderia
realizar a arte e em que espaços isso poderia se constituir. Fomos a bares, praças
e galerias para apresentar os trabalhos práticos da disciplina. Importante salientar,
também, a importância do balé aliado à cinesiologia: de um cânone antigo pode

79
Procedimento que consiste em utilizar imagens mentais para a melhoria do padrão de
movimento; estudado e cunhado por Mabel Todd e, posteriormente, por sua discípula Lulu
Sweigard, nos meados do século XX. Todd deixou os registros de sua pesquisa no livro The
Thinking Body – vide referências.
80
Entre os anos de 1987 e 1991 fiz a graduação (Bacharelado e Licenciatura) no Curso Superior
de Dança, PUC-PR e Fundação Teatro Guaíra, em Curituba – PR.
62

surgir um pensamento novo – principalmente se esse cânone for repensado em


seus procedimentos e razões históricas, técnicas e estéticas. Isso é dito, pois, foi
através dessa técnica mais antiga, muitas vezes rechaçada pelos modernos, que
pude dar início a uma concepção contemporânea de corpo.
Teixeira Coelho ensina: uma teoria, uma visão de mundo não se sobrepõe
a outras, convive com ela.81 Tal raciocínio está muito próximo, também, das
configurações de minha ação corporal, bem como do pensamento que
compreende o corpo próprio - e os modos de preparação deste corpo – de forma a
estar disponível às ações que proponho – e me imponho a realizar.
Diariamente faço educação somática (conhecida por consciência corporal)
nos pressupostos pensados por Mosche Feldenkrais82 e Mabel Todd; após essa
preparação realizo uma aula de ballet clássico, em seguida de dança
contemporânea; por vezes a ordem se inverte, mas, sempre inicio com educação
somática, com o trabalho de chão. O momento em que experimento idéias,
criando novas coreografias e concepções performáticas, vem após ter
disponibilizado meu material; apenas assim percebo que as idéias fluem. Quanto
às técnicas corporais apreendidas e repetidas, Michel Serres auxiliou a
compilação de um pensamento:

Absorvo essas características e, mais do que as imito, digiro-as,


incorporo-as numa mestiçagem (...). O outro faz com que minha carne se
misture a ela própria: além do animal que também habita em mim, em meu
corpo entram todos os outros e, sobretudo, o outro; misturado, mestiçado,
perpassado; perdido em meio a essa grande multidão que me anula,
83
desapareço como uma pequena nuvem de vapor.

Nesse sentido, digo que meu corpo é uma amostra de história ambulante,
uma vez que trava uma dialética com o passado, todos os dias, através das
técnicas e preceitos estéticos já constituídos. Ao mesmo tempo, esses preceitos
se redimensionam, em acordo às próprias compreensões, ressurgindo nas
maneiras peculiares com que desenvolvo ações e movimentos. É esse corpo que
está em minhas performances.

81
NETO, J. Teixeira Coelho. Moderno Pós Moderno.São Paulo: Iluminuras, 2001; p.27.
82
Os pressupostos de seus ensinamentos se encontram detalhados no livro Consciência pelo
movimento. Vide referências.
83
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004; p. 56.
63

Segunda Parte: A Experiência Própria

Equação.
Estado de mutação:
Constante,
Experimento contínuo.
Incerto,
Veloz.
Meu corpo assume o risco.
Tudo que se forma parece poesia?
Às vezes palavra, por outras, corpo...
De repente... Corpo e palavra!
Imagem.
Formas contíguas do pensamento.
Apenas isso, nada mais.
Sobreposição dos modos de ser; modo de ser.
Reunião.
É interessante reunir:
Estar atento às demandas da vontade
Não terceirizar o que emerge.
Reunir é estar presente,
Se não em ato, pelo menos em palavra...
64

1 (eu) Vim – RITUAIS PARA UMA INSTÂNCIA EVOCATIVA

A escrita abre a ameaça de uma distância: é signo de


um signo, a palavra. (...) A palavra enche-se das forças do
corpo (do fígado, das entranhas, do estômago) e das
forças da coisa nomeada.
84
Gil, José

1.1 Relato/Ensaio de uma Experiência

A questão da percepção, que se estabeleceu como elemento metodológico


norteador desta pesquisa, nas composições performáticas próprias, se
sistematizou a partir de uma performance que denominei (eu) Vim; aconteceu em
uma tarde de outono, no atelier de uma artista, localizado num sítio de Viamão,
região Metropolitana de Porto Alegre. Não foi gravada, apenas relatada (ANEXO
F). À medida que o registro escrito se constituiu, pude observar procedimentos
que, até então, aconteciam de maneira automática, trivial e, até, inconsciente. Foi
possível verificar, então, o modo pelo qual configuro meus trabalhos no campo da
arte, em que o material primordial disso é o próprio corpo.
As percepções interferem no estado geral de ânimo e corpo do individuo;
sendo assim, os padrões das movimentações e ações que se sucedem durante a
ação performática são determinados por sensações momentâneas que o corpo do
performer pode perceber e processar. Tal constatação fez parte dos relatos da
performance (eu) Vim. Ao descrever as próprias percepções temporais e espaciais
que pude reter naquele dia, percebi que a atenção conferida ao ambiente - em
suas respectivas imagens, texturas, cheiros e luminosidade - foi geradora de uma
poética interior, bucólica e lírica. Nessa confluência de impressões surgiu uma
qualidade diferenciada em meu movimento – que determinou a estética do que
surgiu.

84
Em Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997. p. 117-118.
65

Além das influências do estado perceptivo do ambiente e do tempo, há


outras variáveis que interferem no estado de ser corpo do performer, tais como,
fatores emocionais e oscilações hormonais – que estabelecem uma relação causal
com os humores, por exemplo. Assim se delineia a qualidade da aparência do que
surge. Mesmo que um trabalho esteja previamente estruturado, essas variáveis
estarão, em potência, na estrutura de uma performance.

Na questão do espaço ocupado durante a ação, o performer, se estiver


atento, absorverá o estado do ambiente, sem, contudo, esquecer o que é – e o
que está a propor. Nesse sentido, esse corpo realiza sínteses, ou seja, na relação
estabelecida pela sua presença - como organismo dotado de memórias,
confrontada com os dados momentâneos, oriundo do lugar onde estiver para
atuar.

O termo síntese refere-se ao ato de compor e reunir; elementos diversos


são agrupados, justapostos, re-arranjados. Nessa operação novos conceitos
emergem; há uma re-significação e re-estruturação dos signos a cada nova
reunião. Duas propriedades aparentemente antagônicas podem ser postas ao lado
uma da outra, o que desencadeia um novo processo semântico. As novas
unidades significativas que resultam das sínteses gerarão o sentido no trabalho
apresentado; o sentido é móvel e flutua no arranjo dos elementos.

Com o corpo, isso ocorre a todo instante: os dados momentâneos recebidos


ganham significados, pois se ligam a dados do passado. O diálogo interno entre
essas duas temporalidades (passado e presente) é o que constitui as sínteses. O
passado, então, voltará a ter influência quando toma emprestada a vitalidade da
percepção presente.85 Assim, a noção de passado como tempo morto é revista e
questionada; o passado é um tempo operante, porém, em virtualidade.

Essas questões emanaram da realização da performance (eu) Vim – e das


reflexões desencadeadas por tal ação. Para compor esse trabalho, reuni objetos
guardados em minhas gavetas; a idéia surgiu em uma das raras organizações

85
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 168.
66

que, de tempo em tempo, esses pequenos recintos recebem. Objetos de gavetas


são tidos por memórias materializadas, nesse procedimento. Já havia trabalhado
com a questão da memória, em esquizo-soma, mas eram memórias internas, não
palpáveis enquanto objetos. Para compor a poética de esquizo-soma, por
exemplo, travava diálogos com o espaço (com gestual subtraído de trejeitos
realizados, costumeiramente, durante o ato de fala). O interlocutor era a luz, pois,
sempre me posicionava em frente a um holofote para gesticular e realizar alguns
movimentos. Havia, sempre, uma pessoa em meu imaginário, alguém para quem
eu contava algo – eram fantasmas que estavam ali, guardados na memória do
corpo, apenas – e não como uma crença no sobrenatural.

Em (eu) Vim, diferente de esquizo-soma, trouxe memórias palpáveis, que


eram os objetos recolhidos em minhas gavetas. Selecione-os alguns dias antes de
apresentar a performance e guardei-os em uma mala. Determinei que carregaria
os objetos para outro ambiente, para verificar o que deflagrariam em minha ação.
Subtraí objetos de seus contextos e os coloquei noutro lugar; que valores teriam
aqueles objetos fora de minhas gavetas? O intuito era que provocassem alguma
reação que me impelisse à ação. Seriam eles detonadores de lembranças puras
ou, talvez, de sensações atuais?

Bergson reconhece uma diferença de grau, e não de natureza, entre esses


dois conceitos: sensações atuais e lembrança pura. Quanto às sensações atuais,
nos diz que são aquilo que ocupa porções determinadas da superfície de meu
corpo.86 A lembrança pura, por sua vez, não diz respeito a nenhuma parte de meu
corpo. Precisaria deixar de ser lembrança para passar ao estado de coisa
presente, atualmente vivida. Seria como remontar uma sensação no corpo, um
calafrio de medo ou de prazer, um desejo, um gosto ou um cheiro; quer dizer, algo
que atue em meu estado presente, onde só restituirei seu caráter de lembrança
reportando-me à operação pela qual evoquei, virtual, do fundo de meu passado.87
O que me interessava no contexto da realização de (eu) Vim, dada a
escolha dos procedimentos adotados, era o conceito de sensações atuais, esta

86
BERGSON, Henri. Op. cit., p. 163.
87
IDEM, IBIDEM.
67

espécie de lembrança que justamente porque a terei tornado ativa que ela irá se
tornar atual, isto é, sensação capaz de provocar movimentos.88 Penso isso em
relação à dinâmica entre meu corpo e os objetos – e o que essa dinâmica
determina na ação. Metáforas, metonímias ou simples materializações, esses
objetos são um modo de tornar atual algo que está alhures, e não no conceito de
passado – como algo morto. Primeiramente os objetos ocupam um status de
lembranças puras (na gaveta ou na mala), no momento da performance adquirem,
ou, passam à categoria de detonadores de sensações atuais, que determinam e
interferem nos padrões de movimento e ímpetos das ações realizadas.
A forma com que usei os objetos durante a ação teve o acaso como fator
determinante; para retirar os objetos da mala, arbitrei que jamais olharia para o
que estaria pegando. Pelos dados da percepção tátil, os objetos seriam acolhidos,
um de cada vez, sem um número determinado, porém. Na mala havia um lenço
roxo, um vestido vermelho, uma caixa de madeira com colares imitando pérola,
um vestido azul, uma boneca de pano e outras quinquilharias que fazem parte de
minhas lembranças.
Para pinçar os objetos da mala já aberta, me posicionava de costas e
tateava; portanto, não via os objetos para escolhê-los. O que veio primeiro foi o
lenço roxo, depois de algumas ações com tal objeto, voltei à mala e repeti o
procedimento mais duas vezes; respectivamente pincei a boneca de pano e a
caixa com os colares. O tato guarda propriedades de remontar o objeto em
imagem na nossa mente; pelas texturas e formas, tinha uma idéia bem
aproximada do que estava manuseando.
A seqüência de objetos pegos foi o que determinou o roteiro que se
estabeleceu na ação. A natureza dos objetos escolhidos fez com que as ações se
diferenciassem, em termos de força, tempo e espaço ocupado. Não foi uma
performance linear, pois que, as diferenças dos objetos manuseados, bem como o
que desencadearam em meu comportamento fez com que a ação tivesse
momentos de profunda calma, extrema velocidade, pausas, quedas e suspensões
do corpo.

88
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Op. cit., p. 163.
68

Cada objeto é um signo; elemento que carrega informações.


Posteriormente, cada signo se realiza, num só golpe, quando provocado. Foi com
base nesse pensamento que os trouxe de meus armários e gavetas para estarem
comigo nessa performance. Tal procedimento pode se enquadrar em duas linhas
de raciocínio. A primeira é puramente tautológica: os objetos escolhidos para a
ação são apenas objetos, que, em acordo às suas texturas, cores e formas
deflagrarão reações motoras. A segunda seria que cada objeto escolhido
comportaria algo mais que sua simples aparência – e não estaria ali ao acaso, na
crença de que aquela imagem do objeto é, para mim, uma profundeza em si,
infinita e obscura - que volta e torna a olhar para o seu sujeito, num ato, de modo
intencional.
Em cada um deles residiria um motivo, que seria uma cisão, um
espaçamento obscuro que ganharia luz ao ser trazido diante do olhar. Inelutável
porém é a cisão que separa dentro de nós o que vemos daquilo que nos olha, nos
diz Didi-Huberman89. Nessa questão do “olhar devolvido pela coisa” é que existe o
espaçamento, um vazio que vai sendo preenchido, conforme a memória atua. E a
memória deflagra toda uma nova percepção da matéria - do corpo. Cada memória
comporta uma perda, senão não seria memória. Seria presente. E o presente já
nos escapa. Isso significa que a todo o momento perdemos coisas e pessoas.
Essa perda gera representações.

Então começamos a compreender que cada coisa a ver, por mais


exposta, por mais neutra de aparência que seja, torna-se inelutável quando
uma perda a suporta – ainda que pelo viés de uma simples associação de
idéias, mas constrangedora, ou de um jogo de linguagem -, e desse ponto
90
nos olha, nos concerne, nos persegue.

Lidar com esses elementos-objetos é reascender coisas que não mais são
ou estão, aparentemente. Num sentido mais amplo, é sabido que, se estivermos
atentos ao espaço que nos circunda, qualquer objeto interferirá em nosso modo de
estar naquele ambiente. Caso não haja atenção a isso, creio que nossa relação
para com a vida em si ficará deveras defasada. Quanto maior o estado de atenção

89
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 (1ª
reimpressão 2005) p. 29.
90
IDEM, p. 33.
69

dispensado ao que, por ora, nos circunda - e o que isso determina em nossas
sensações e percepções, mais o esquema corporal se afina com o mundo. Talvez
seja uma das vias para estreitar a relação entre sujeito e objeto. Numa razão
dialética, não hierárquica.
Bergson nos diz que os objetos situados em torno de nós representam, em
graus diferentes, uma ação que podemos realizar sobre as coisas ou que iremos
sofrer delas.91 O que dizer quando se trata de objetos que estão em nossas
gavetas? O que mais há em nossas gavetas, além dos objetos? Há a imensidão...
Bachelard nos fala sobre isso: A imensidão está em nós. Está ligada a uma
espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que
retorna na solidão.92 Em (eu) Vim, apesar da presença do espectador, estive na
solidão, a realizar a performance; mas os objetos tornaram relativa tal sensação.

1.2 Impressões do Emissor; Semântica do Receptor.


A seguir serão trazidas algumas observações que surgiram no debate
realizado após a performance do dia 18 de maio de 2005. Após a apresentação,
sentei e ouvi descrições da percepção alheia. Uma parte inusitada e importante do
trabalho artístico é poder escutar do outro os visíveis e invisíveis daquilo que
propomos em aparência, através de nossas composições. Foram enfatizados os
elementos formais, tais como o uso do espaço pelo corpo e pelos objetos; bem
como da relação do meu corpo para com os objetos eleitos para a ação. Outro
fator assinalado foi a respeito das dinâmicas de peso adotado nos movimentos e
nalguns gestos carregados de significados psicológicos contidos nas ações
realizadas.
É importante a última observação, uma vez que, a semântica dos
elementos agrupados já guardava uma certa previsibilidade, no sentido que se
sabia, de antemão: que os materiais escolhidos detonariam em minhas ações e
gestos alguma espécie de elementos psicológicos – estava instaurada uma

91
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 168.
92
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Marins Fontes, 2000. p. 190.
70

instância evocativa. No entanto, o intuito não era – de todo - catártico; recolher


esses objetos foi, antes de tudo, uma ação metodológica, um modo operatório –
subterfúgio para criar.
É certo que naquele dia levei comigo, dentro da mala, elementos que de
forma alguma me deixariam inerte. No que tange aos aspectos formais, o
resultado estaria, provavelmente, distante de uma performance que pudesse
transcorrer linearmente. Nada que me fizesse conservar sempre o mesmo peso ou
velocidade em meus gestos e nos meus movimentos - ou deslocamentos. Nada
que não apontasse para uma tensão, também; numa qualidade explícita no corpo,
similar a “segurar” um ímpeto. Algo que tranca na altura da garganta, e deixa o
tórax inteiro mais tenso – e numa conseqüência disso, todo o restante do corpo...
Trazer objetos para a cena é como ressuscitar. Ao contrário da tautologia, a
crença. A esses dois conceitos, nos fala Didi-Huberman:

Seja como for, o homem da crença verá sempre alguma outra coisa
naquilo que vê, (...). Uma grande construção fantasmática e consoladora
faz abrir seu olhar, como se abriria a cauda de um pavão, para liberar o
93
leque de um mundo estético (sublime ou temível) e também temporal (...).

Sim, pois o tempo distancia as lembranças; de certa forma, enterra as


pessoas com quem convivemos em determinados tempos de nossas vidas. E o
que não resolvemos – ou compreendemos -, encobrimos, escondemos. Houve um
momento na performance em que encobri meu rosto com o lenço roxo e depois,
num gesto repetido, encobri a pequena caixa de madeira, com o mesmo lenço.
Formalmente, no momento em que encobri o rosto ou a caixa, foi porque,
um e outro – respectivamente -, esgotaram suas possibilidades para com o meu
corpo. Não tinha mais nada a fazer naquela situação; colocar o lenço foi como
uma breve espera, um momento de transição. O esgotar das possibilidades gera
um desconforto e faz com que exista um abandono da ação que se está fazendo;
nesse momento, não podemos perder o fio condutor daquele ato, sob pena de
dispersar o estado corporal diferenciado que logramos durante a atuação numa
performance. Então, é justamente esse o momento em que ocorre a passagem

93
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Op. cit., p. 48.
71

para a ação seguinte; é uma tensão necessária que desencadeia a próxima


situação, o que dá continuidade ao ato.
Mas, um elemento formal pode levar a significados psicológicos. Uma
observação colhida no debate da recepção foi a cor do pano (roxo); falou o
receptor do luto e da quaresma – dos Santos que eram cobertos com panos roxos
na quaresma... O encobrimento, por certo, acentua a aura mítica das coisas. Ao
me apresentar encoberta, ironicamente, acentuava a minha presença – inferência
dada a partir de observação do receptor.
Um dos elementos da discussão, surgido no debate, foi a relação dos
objetos com o conceito de metáfora e de metonímia. De acordo com o Dicionário
de Lingüística, a metáfora é o emprego de todo termo substituído por um outro
que lhe é assimilado após a supressão das palavras que introduzem a
comparação.94 A metonímia, num conceito do mesmo Dicionário, de um modo
geral, de acordo com a etimologia, (...) é uma simples transferência de
denominação (...) por uma relação da parte ao todo.95
Na discussão desses dois conceitos, em relação aos objetos trazidos para a
performance, digo que os objetos são palavras suprimidas, então, são palavras
configuradas em outras formas. Os objetos são metáforas. Por isso estão ali;
elejo-os, incumbindo-lhes a tarefa de estarem comigo durante a realização da
performance. A mim, especificamente, essas palavras-objeto “dizem”; para quem
vê dizem algo de natureza similar, contígua ou, até, divergente daquilo que tenho
como significante. Cada objeto é uma substituição, não somente de uma palavra,
mas, também de uma situação ou sensação – embora, muitas vezes, não se
pronuncie ao nível da consciência. Creio que seja essa a analogia, quando
menciono a metáfora.
Quanto ao conceito de metonímia, cada objeto seria uma parte, que
apontaria para o todo que determinou a escolha, este todo seria o entorno geral de
minha existência. As circunstâncias e o acaso determinam as escolhas. Ao tomar
um objeto como elemento metonímico, o mesmo se estabelece por um dado muito

94
DUBOIS, J. et al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 2001; p. 411.
95
IDEM, p. 412.
72

maior do que ele próprio, enquanto coisa. Ao mesmo tempo, pode se estabelecer
enquanto coisa, sendo um significante flutuante e não determinado a priori. Talvez
ele seja um dado a priori para mim, no ato da performance, pois, mais ou menos,
posso intuir a razão de ele estar ali. Mas, também é coisa, uma vez que, a cada
vez que estiver diante a um objeto, por mais carregado de semântica que esse
possa vir a ser, é sempre um ato diferenciado – o que nos leva a pensar nos
fatores temporais e espaciais. Um mesmo objeto, deslocado de seu espaço usual,
ou em outra circunstância temporal, já é outro objeto.

1.3 Performance e Tempo


Podemos pensar que o tempo de duração de uma performance se constitui
de duas pequenas marcas no continuum que é a existência daquele corpo que a
realiza. Da mesma maneira para o espectador que se coloca para a recepção. É
possível, porém, racionalizar o tempo; incliná-lo à reflexão e subdividi-lo em várias
categorias: tempo cronológico, do calendário; condições climáticas e temperatura;
hora do dia; ritmo interno em que o corpo se encontra – que interfere na
percepção do tempo cronológico, pois que pode modificar a percepção do tempo...
Certo é que organizamos o nosso tempo em função do sol; um dia, um ano, vários
anos... Tantos quantos forem os pores-do-sol. Esse é o parâmetro.
A velocidade que o corpo assume ao realizar movimentos, ações e
deslocamentos em determinado espaço determina, também, um tempo. O tempo
se relativiza conforme a percepção que temos dele; nesse conjunto de dados
sentidos e percebidos temos um todo que se uniformiza e nos fornece constantes
referências. Considerando o corpo em movimento, vê-se melhor que ele habita o
espaço (e também o tempo), porque o movimento não se contenta em submeter-
se ao espaço e ao tempo, ele os assume ativamente (...).96 Quando um novo
lugar, ou uma situação nova se apresenta ao corpo, todo esquema corporal entra
num estado de redimensionamento. O próprio espaço corporal se redimensiona,
uma vez que o corpo está empenhado em desenvolver suas tarefas, ancorado no
objeto.

96
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 149.
73

O espaço corporal pode distinguir-se do espaço exterior e envolver


suas partes em lugar de desdobrá-las, porque ele é a obscuridade da sala
necessária à clareza do espetáculo, o fundo de sono ou reserva de
potência vaga sobre os quais se destacam o gesto e sua meta, a zona de
97
não-ser diante da qual podem aparecer seres precisos, figuras e pontos.

O esquema corporal seria uma tomada de consciência global de minha


postura no mundo intersensorial98 é o que determina a apreensão de estados
temporais distintos, abstraindo-os e categorizando-os a um nível de consciência.
Temos, em virtualidade, impressões, mais ou menos precisas, de conteúdos das
experiências táteis, cinestésicas, visuais e articulares que tivemos no curso de
nossa existência. Isso nos dá e revela a noção do espaço corporal e do espaço
exterior – compõe o esquema corporal. Os dados colhidos se virtualizam em
nosso corpo, e isso acontece a todo instante, no presente que temos; esse fator
nos confere temporalidade. Se temos o presente, esse instante que já nos escoa,
é porque no instante em que pensar nisso, esse presente já é passado; logo,
quando acabo de realizar uma performance, este já é um ato de meu passado.
Mas, o tempo passado se conserva, pois passado não é um objeto material; é,
sim, um dado transcorrido guardado no corpo – retido no corpo. Merleau-Ponty
elucida esse pensamento:

(...) reter é ter, mas à distância. Mais uma vez, a “síntese” do tempo é uma
síntese de transição, ela é o movimento de uma vida que se desdobra, e
não há outra maneira de efetuá-la senão viver essa vida, não há lugar do
99
tempo, é o próprio tempo que se conduz e torna a se lançar.

A síntese do tempo é uma síntese de transição, uma vez que passado,


presente e porvir se encontram num ritmo cíclico. E a noção de passado, como
tempo que cessou de ser, se apresenta, segundo Bergson, como uma
contradição. Nesse sentido, o autor ensina:

(...) a questão é precisamente saber se o passado deixou de existir, ou se


ele simplesmente deixou de ser útil. Você define arbitrariamente o presente
como o que é, quando o presente é simplesmente o que se faz. Nada é

97
Grünbaum, Aphasie und Motorik, p. 395. Apud MERLEAU-PONTY, M. in Fenomenologia da
Percepção. Op. cit.; p. 146.
98
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. Op. cit.; p. 145.
99
IDEM, p. 567.
74

menos que o momento presente, se você entender por isso esse limite
indivisível que separa o passado do futuro. Quando pensamos esse
presente como devendo ser, ele ainda não é; quando o pensamos como
100
existindo, ele já passou.

Uma das operações metodológicas na minha pesquisa é atenção às


percepções. Quando menciono isso, penso que o ideal seria um estado imediato
“super presente” da sensação. Mas toda percepção já é um dado posterior à
sensação. Já é passado. Encurtar as sínteses, sim, seria um desafio – encurtar a
percepção que se tem delas; ao que se apresenta a meu corpo, a todo instante, e
como essa apresentação é sintetizada e devolvida ao que se tem por intuito criar –
no momento em que me proponho a realizar uma apresentação.
Enfim, quando se é um performer, é preciso assegurar-se de que o corpo
será capaz de perceber os dados momentâneos, atualizar dados já compilados
em um passado, confrontar tais informações e elaborar um novo significado. Por
isso deve ser ágil e atento – deverá ser preparado para assim estar.
A todo instante, novos dados nos são trazidos: lugares novos, novas
situações e pessoas; podemos perceber esse entorno de uma maneira mais, ou
menos, intensa. Mas a percepção, por mais instantânea, consiste, portanto numa
incalculável quantidade de elementos rememorados, e, para falar a verdade, toda
percepção é já memória.101 Então, o que podemos perceber é, sempre, passado.
Concluo que o que me proponho na questão da atenção ao instante e percepção
do máximo daquilo que meu aparato sensorial apreende, é o que determinará a
qualidade geral de minha atuação em uma performance. A atenção é diretamente
proporcional a uma boa atuação. Exercitar esse estado de atenção é uma prática
de busca constante para intensificar a presença – no que tempo e espaço permitir.
As palavras que trago, dos autores que dão respaldo à pesquisa,
representam aquilo que só me era dado pela experiência corpórea, do ver, do
mover e do sentir o que o mundo material oferecia, em relação, posição ou
oposição ao corpo próprio. As configurações engendradas por nós sempre
guardam relação com o tempo passado da experiência. Por essa conclusão, quis

100
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999; p. 175.
101
IDEM; p. 175-176
75

compreender um pouco mais sobre o mecanismo de memória; o seu


funcionamento enquanto fenômeno. Então, as observações à minha ação
performática juntamente com as questões elucidadas pelos autores que utilizo,
tecem uma relação estreita, justamente, pois, a partir dessa elucidação posso
compreender melhor, não tanto a aparência do que surge através de meu corpo
performático, mas, o que determina isso, a origem desse impulso configurador – o
fenômeno que engendra a manifestação.

Nosso corpo não cessa de assumir milhares de formas imprevisíveis:


ele se transforma. Longe da estabilidade, ele se move; longe do
movimento isolado, ele muda (...). Não se desloca apenas sobre o trajeto
daqui para acolá, mas forma-se, deforma-se, transforma-se, estende-se,
102
alonga-se, figura-se, desfigura-se transfigura-se (...).

O corpo na performance é um material que pode assumir formas


imprevisíveis e temporalidades distintas; que se transforma e está longe da
estabilidade; que se move. Esse movimento não é algo isolado, é parte de um
contexto, de uma tessitura que determina o todo da ação - e lhe confere um lugar
no espaço e um tempo de duração. Um corpo móvel e movente é um signo,
relativo, ou próprio, da mobilidade do pensamento e do espírito – do próprio existir.

102
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004. p. 138.
76

2 UM OLHO PARA O PASSADO E OUTRO PARA A IMAGINAÇÃO

Percebi as interferências do passado, quando passei a observar os traços


que emergiam de meus trabalhos, mesmo sem trazer objetos. As primeiras
observações foram feitas em minhas coreografias de dança, quando certos
elementos que compunha começaram a me incomodar, por parecer uma estética
datada, “velha” demais – algo com características do expressionismo alemão, dos
anos 1940, ou, no máximo, do momento que antecedeu o pós-modernismo norte-
americano.
Ao analisar e questionar a razão de meus trabalhos surgirem assim,
comecei a detectar as causas, que, evidentemente, tinham relação com
referências de meu aprendizado nas técnicas corporais de dança. Pode parecer
óbvio, mas esse fator, muitas vezes nos passa despercebido, caso não tenhamos
o hábito de olhar nossas produções e nos questionarmos a respeito do que surge.
Pensava o quanto era difícil romper com alguma tradição, uma vez que
referências estavam inculcadas nos modos das configurações. Mas, somos
matéria carregada de memória.
Nesse caso, a prática antecedeu o conceito. O conceito foi um dado
posterior, uma constatação – assustadora, diria. Compreensões mais claras
acerca desse processo criativo, que envolvia temporalidades de várias ordens,
vieram posteriormente, através de teorias da arte e da percepção. Tornaram-se,
inclusive, tema para novas criações, como é o caso do trabalho solo que inaugura
e assume tais pressupostos, que foi esquizo-soma e, também o trabalho
Semelhanças, composto para o grupo Mimese cia de dança-coisa, o qual fundei,
dirijo e danço103. Semelhanças foi uma configuração em conjunto para o mesmo
tema de esquizo-soma. Concluo que, mais do que tema é uma maneira de
raciocinar; o que se tornou modo de operar em meus trabalhos.

103
O trabalho Semelhanças foi composto nos anos de 2002 e 2003; ganhou um prêmio de
incentivo a novos criadores, no Congresso Nacional de Dança, em 2004. O prêmio proporcionou
uma orientação de um outro coreógrafo, o que redimensionou o trabalho em sua forma e
aparência.
77

Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma
imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma
explosão de imagens, não há imaginação.104 Quando iniciei as investigações,
tendo por base de composição e atuação a memória – o passado -, tal
procedimento me deixava perplexa e instigava a imaginação e criação. Era uma
sensação estranha de, mesmo estando sozinha, poder estar acompanhada de
muitas pessoas e ouvir suas vozes... Um procedimento irônico, pois nesse
“desenterrar” das coisas há uma questão de domínio dos fatos do passado, como
se dissesse: assumo esta fatalidade, de mostrar o que se forma, de ser assim, de
carregar essas referências e ser uma amostra do meu próprio passado... Ao
mesmo tempo, poder interferir nisso - uma vez que posso detectar, posso
interferir. Ao realizar esquizo-soma foi como dizer: que venham esses fantasmas!
Que venham e dialoguem comigo novamente, até para que eu possa exorcizá-los.
Assim foi inaugurada uma série de trabalhos que teria relação assumida com as
referências técnicas e estéticas de meu passado.
Se hoje temos determinada configuração é porque somos formados de
parcelas; porque guardamos em nosso corpo, em virtualidade, situações vividas. E
essas situações retornam, com ou sem o devido consentimento, para o presente
de nossas ações. Como referencial teórico condutor desse raciocínio, cito os
pressupostos escritos por Henri Bergson, Maurice Merleau-Ponty e Georges Didi-
Huberman, nas respectivas obras estudadas para o presente estudo.
Em janeiro de 2005, para o encerramento da disciplina Experimentum
Mundi: Utopia, Arte e Psicanálise, foi realizado um Seminário – que aconteceu
durante o Fórum Social Mundial. Naquele momento, essa atenção ao passado e o
que a imaginação poderia trabalhar a partir disso – tema deste capítulo – estava
acontecendo de forma intensa em meu ser. Estava completamente envolvida em
práticas e conceitos que apontavam para isso. Da mesma maneira, percebia que a
atenção se intensificava às percepções imediatas de meu presente... Os canais

104
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação do movimento. São
Paulo: Martins Fontes, 2001; p. 1.
78

sensoriais estavam buscando um pleno acordo com os estímulos gerados pelo


mundo e pela minha existência nesse mundo, a todo instante.
Para a ocasião do Seminário articulei uma produção teórica A experiência
do corpo que perdemos, a partir de averiguações práticas que estavam
permeando minha pesquisa no momento. O trabalho também teve um
experimento prático, o qual denominei Amanhã, ou depois deixe sua pele ver o
pôr-do-sol; no Anexo B apresento algumas fotografias e no capítulo 2 do DVD
trago o registro do trabalho. A performance foi apresentada ao vivo, em janeiro de
2005, no lago da Unicruz (Universidade de Cruz Alta) e, em vídeo, para o público
do Seminário.

Amanhã ou depois deixe sua pele ver o pôr-do-sol, 2005

Nesse trabalho, além do conceito de memória e percepção, ressaltou-se o


conceito de sinestesia. A música de Erik Satie foi inserida depois, na edição das
imagens, mas era justamente essa música que estava em minha mente, no
momento em que apresentei a performance ao vivo. A memória, relativa aos
dados sensoriais, me é um dado muito presente; quando assisto à gravação,
percebo que a música estava lá, junto ao barulho dos pássaros e do caminhão
que passou ao meu lado... Mas a música de Satie estava apenas na minha mente,
como um estado da alma; determinou a ritmicidade de minha ação e da
configuração que surgiu.
Quanto ao conceito de sinestesia: quando um dado pertencente a um
sentido é transcodificado e entendido por outro sentido, tem-se esse conceito de
forma operante no corpo. No caso desse trabalho, (...) deixe sua pele ver..., a
79

proposta está em que um dado da visão se estenda para o sentido do tato, ou


sentido háptico, se compreendermos o tato em sua extensão mental (não temos
“um tato”; temos em nosso corpo um cabedal de corpúsculos sensoriais que
desencadeiam sensações táteis diversas, como dor, coceira, frio, etc.).
O objeto desse experimento esteve, então, na intercomunicação sensorial
própria (tato e visão num intercâmbio de informações – e audição, tanto pela
lembrança da música de Satie, quanto pelos barulhos que ocorreram no momento)
e na transmissão dessas imagens para o outro, para que o outro tivesse essa
sensação, ou uma sensação contígua, ao ver a imagem – numa operação
sinestésica; o título guarda a sugestão. Michel Serres nos dá outra idéia de como
isso pode acontecer:

O olho acaricia a rocha antes que, em resposta à velocidade dos


deslocamentos, o toque a confirme. Tudo isto ocorre mais ou menos como
se as pupilas dos olhos pudessem tatear e as plantas dos pés fossem
capazes de ver. (...) a visão toca e o tato vê. Se romperem por um só
momento este ciclo, vocês cairão. A visão caminha ou a vida cessa. Quem
não sabe andar, coloca um pé na frente do outro, quem sabe coloca um
105
olho diante de cada sapato.

Compreensões relevantes e essenciais também surgiram dos encontros,


performances e debates realizados com a orientadora desta pesquisa. Seus
questionamentos direcionaram a elaboração lingüística acerca do objeto deste
estudo, ou seja, localizar signos vários, dentro de um repertório pessoal, capazes
de ser indicativos de situações vividas – e de como essas situações vividas são
atravessadores dos resultados que emergem de minhas criações.
Nessas investigações, tanto elementos da natureza, quanto de contextos
culturais, como gestos, movimentos e objetos criados, poderiam ganhar o status
de signo. Esses signos teriam a função de denotar instâncias relacionadas com a
percepção e a memória. A memória, por sua vez, interferiria, de uma maneira mais
ou menos consciente, numa espécie de (re) ordenação dessas informações
fornecidas pela percepção. Seria necessário estar ciente dessa operação para

105
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004. p. 28-29.
80

analisar o que surgia nos trabalhos que compunha e, também, para compreender
a constituição de seu material primordial, o corpo.
Foram muitos os conceitos estudados no sentido de compreender o
material corpo; sentia meu próprio corpo esfacelado, em camadas... Ao mesmo
tempo percebia que estava cada vez mais preparada para lidar com esse material,
neste modo particular escolhido de seguir as determinações da lei fundamental da
vida, que é uma lei de ação e movimento.
Corpo operado
Operante
Distante
Equacionado
Bem de perto
Quase longe
Recortado
Quase todo
Reunido
Quase sempre
Aqui
Ainda aqui,
Assim.

2.1 Material em Camadas


O corpo é um lugar. A ele deve ser dispensado atenção e cuidados, de
modo que se possa otimizar o seu tempo de existência ao máximo de suas
potencialidades. Todos os dias há quase vinte anos, o preparar o corpo, tornando-
o disponível ao meu trabalho, faz parte de um modo de operar a própria
existência; os limites entre o ofício e o que não é ofício se dissipam por essa
razão. Cada performance, ou cada apresentação de dança requer, além desse
ritual de preparação do corpo, algumas especificidades que a demanda da idéia
solicita.
81

Novos modos são agregados, devido às peculiaridades de cada


circunstância. No caso da performance que deflagrou o raciocínio desta pesquisa,
(eu) Vim, o procedimento se deslocou, de forma explícita, para compartimentos
fora do corpo. Gavetas, armários e caixas... Lugares que guardamos coisas. Meu
corpo se assemelha a isso, pois guarda também; guarda o que nele nem cabe, por
isso esquece. Exercito a memória; e a memória é um dado virtual que está no
presente.

Equivale a dizer que meu presente consiste na consciência que tenho


de meu corpo. Estendido no espaço, meu corpo experimenta sensações e
ao mesmo tempo executa movimentos. (...). Por isso meu presente parece
ser algo absolutamente determinado, e que incide sobre meu passado.
Colocado entre a matéria que influi sobre ele e a matéria sobre a qual ele
influi, meu corpo é um centro de ação, o lugar onde as impressões
recebidas escolhem inteligentemente seu caminho para se transformarem
em movimentos efetuados; portanto, representa efetivamente, o estado
atual de meu devir, daquilo que, em minha duração, está em vias de
106
formação.

E o que posso formar, a partir do meu corpo, é porque, realmente, o


estendo no espaço e me disponho a experimentar e sentir aquilo que o próprio
movimento determina e retém.

2.2 Memórias Visíveis, Memórias Invisíveis – Objetos para atuar.


Estabeleço, enfim, uma relação entre os objetos que elejo para estarem
comigo durante algumas performances e as próprias lembranças, que se
transformam em marcadores somáticos. Intuo que esses materiais guardados,
mais ou menos visíveis, são o que tornam possíveis as aparências do que
proponho, em termos de trabalho de arte que realizo com meu corpo. Presto
atenção às sínteses que operam em velocidade acelerada quando estou atuando
– por isso preparo o material previamente. O ritual de preparação é para reunir...
Nesse sentido, meu corpo é a coisa, no que Heidegger107 nos diz da coisa: no

106
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 162.
107
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 143-160.
82

sentido de , como coisa, reunir e conjugar, numa unidade, as diferenças. A coisa ,


como coisa, reúne e conjuga.108
Meu corpo se predispõe, como um recipiente vazio e, na fidelidade de sua
eloqüência, se doa para ação. Quando atua, assume a forma de recipiente, como
se ocorresse um esvaziamento de tudo que já foi, mas, tudo está contido, ainda.
Pelas bordas, ou no fundo. Assim, há a questão da oferta, da doação; para que
outra coisa surja em seu lugar, naquele ser. Por isso é preciso estar atento, para
se predispor a isso, de modo que possa emergir outra coisa, outro ser... O ser da
performance, e, a cada performance, o ser daquele ato.
No instante da ação sendo apresentada, há a realização do virtual; se meu
corpo é a coisa, o é, pois é a vasa que se empresta ao ato. Sólido, porém flexível,
é o amálgama, o fator de reunião desses elementos aparentemente díspares que
darão as referências para ser quem eu sou, aparecer do modo que apareço e vir...
Porvir. O principal instante de reunião é o movimento que realizo, com suas
variações de peso, tempo, espaço e respiração. É a respiração gerada por esses
movimentos – o sopro do ar, que propõe a interação entre o interior e o exterior do
meu corpo,

(...) porque o sopro é uma mediação permanente entre interior e exterior do


corpo, uma passagem, contém em si a própria possibilidade de expressão
(sentido). (...) É deste modo que o sopro se apresenta como uma espécie
109
de princípio diretivo dos ritmos corporais (...).

José Gil nos pergunta O que é um corpo?110 E responde: É uma respiração


que fala.111 O ar expelido do interior do corpo vem carregado de sentido, de ritmo;
é um índice que comporta um sentido, manifestação que gera expressão. Nesse
momento, do sopro expelido pelo corpo, vem o ar aquecido, devolvido ao
ambiente... Vem o ar e o sentido que indica, também, a vivacidade daquele corpo,
em sua totalidade articulada de tempo, enquanto permanece aqui. Entre sopros,
movimentos, espaços e objetos, o corpo está a configurar coisas, numa presença

108
IDEM, p. 151.
109
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água, 1997; p. 88.
110
IDEM.
111
IBIDEM.
83

imediata. Meu corpo configura formas compreendidas enquanto arte; respira, se


movimenta e move... Espaços e objetos...
Os objetos vêm como metáforas daquilo que guardo dentro do corpo. Os
objetos operam como ícones palpáveis daquilo que não posso tocar – só posso
lembrar; ou nem posso, às vezes. Por isso os guardo, em gavetas. As gavetas são
recipientes; elemento de transferência e representação do todo que é o meu
corpo; são extensões dele – assim como os objetos são as extensões da
memória, transpostos em matéria.

O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e


seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta. Sem
esses “objetos” e alguns outros igualmente valorizados, nossa vida íntima
não teria um modelo de intimidade. São objetos mistos, objetos-sujeitos.
112
Têm, como nós, por nós e para nós, uma intimidade.

... Nada que seja tão íntimo ou pessoal, pois se almeja algo que parta do sujeito e
escoe para o objeto. Para outros sujeitos; para o que circunda e desestabiliza o
corpo, em contradição constante ao equilíbrio e ao tédio.

2.3 A Função das Palavras para com as Coisas

O mundo é coberto de signos, que é preciso decifrar, e estes signos,


que revelam semelhanças e afinidades, não passam, eles próprios, de
formas de similitude. Conhecer será, pois, interpretar: ir da marca visível ao
que se diz através dela e, sem ela, permaneceria palavra muda,
adormecida nas coisas.113

Das imagens vistas por um olho interno, quase onisciente, que muito mais
disse da percepção fenomenológica do corpo do que das questões formais e
estéticas do trabalho, o relato se constituiu. Michel Foucault nos fala dessas
transposições... Limitando e filtrando o visível, a estrutura lhe permite transcrever-
se na linguagem. Por ela, a visibilidade (...) passa por inteiro para o discurso que a
recolhe.114 Recolhi a experiência num discurso resultante do meu pensamento.

112
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000; p. 91.
113
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 44.
114
IDEM; p. 185. Nessa parte do livro, Foucault cita Lineu (Philosophie botanique, § 331). Ele
enfatiza que Lineu restituía a própria planta ao olhar, através das palavras, pois queria que a
ordem da descrição, sua repartição em parágrafos, reproduzisse a figura da planta.
84

Foucault ensinou: pois que as palavras recebem a tarefa de poder “representar o


pensamento”. Mas representar não quer dizer traduzir, dar uma versão visível,
fabricar um duplo material que possa, na vertente externa do corpo, reproduzir o
pensamento com exatidão.115
O exercício de uma discussão em Poéticas Visuais aponta, de certa forma,
para uma transmutação de signos. O que a Dissertação contém, também está
contido no trabalho prático realizado – trabalho, esse, motor da discussão. Nesta
transmutação de signos, coisas e conceitos se acomodam e aparecem de
maneiras diversas; sendo ou significando, ou seja, existindo simplesmente ou
representando algo que, via de regra, se sustenta pelo viés da subjetividade.
Neste capítulo, foram as palavras que realizaram sua performance – isso só
foi possível porque, anteriormente, meu corpo todo esteve a performar – a ter a
experiência. As palavras, muitas vezes, vieram com o intuito de remontar
situações, percepções e lugares. Michel Serres auxilia esse pensamento: Assim
como a escrita executa sua dança por meio das linhas, dos movimentos dos
dedos e dos traçados, a palavra também realiza mil e uma contorções físicas.116 A
palavra pode deflagrar um impulso para um movimento, nem que seja na ideação
de um esquema corporal. É pela atualização de uma imagem que a sensação
pode ser restituída e vivida pela palavra.
Nos dois primeiros capítulos desta segunda parte, as palavras restituíram,
pelas suas respectivas propriedades imagéticas, parcela da experiência vivida na
parte prática da pesquisa. Palavras estão à espera de olhos e corpos que lhes
atribuam significados. Assim como o corpo, na performance, ao realizar suas
ações e tarefas, espera olhos e corpos predispostos a ver o ato, de modo que
possa se instaurar.

115
FOUCAULT, Michel. Op. cit.; p. 107.
116
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004; p. 92.
85

3 ESPAÇO, CORPO E MEMÓRIA

Prestemos atenção aos espaços interiores e também aos exteriores – aos


estados desses espaços. Tanto a existência em si, quanto o mundo nos ofertam
fontes imensas, a todo instante - basta que estejamos atentos.

3.1 A Ocupação de um Espaço Alternativo Vazio – FUNÇÃO 01 [F¹]

A fórmula: A³+AP{ }+AC+x = Função 01 – [alguns amigos artistas + apartamento vazio +


amigos convidados + x = função 01]

Em várias partes desta pesquisa se trouxe a afirmação de que o espaço


interfere e desencadeia percepções e memórias. O que será relatado neste
capítulo traz o pensamento acima para mais uma experiência concreta; desta vez,
proposta de maneira coletiva. Nessa oportunidade apresentei o que chamei A
performance do apartamento (ANEXO C e capítulo 3 do DVD). Após alguns
encontros e discussões, um grupo de artistas realizou uma ação em um espaço
privado117. O apartamento que acabara de adquirir, à espera das devidas
reformas, foi o que motivou a função.
Os artistas reunidos tinham um ponto de convergência: eram alunos do
Mestrado em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Encontros periódicos aconteciam desde os meados do ano de 2004, mas, no
primeiro dia em que estivemos juntos no novo apartamento, o espaço vazio se
pronunciou aos olhos e ao corpo das pessoas, solicitando uma ação. Eram
imensos os cômodos e quase sem nenhum móvel; uma que outra mobília e muitas
marcas, como cicatrizes, no chão e na parede. As marcas sinalizavam os lugares
onde, outrora, outros corpos estiveram, naquele lugar.
O espaço determinou uma poética. A isso se seguiu, em resposta, a
ocupação provisória do lugar, por alguns artistas que, naquele apartamento vazio,
fariam surgir suas idéias. Idéias carecem de espaço; idéias de artistas possuem
uma visão poética. Então, o espaço é vivido com afetividade.

117
O evento aconteceu no dia sete de julho de 2005.
86

O poeta vai mais fundo, descobrindo com o espaço poético um espaço


que não nos encerra numa afetividade. Qualquer que seja a afetividade
que matize um espaço, mesmo que seja triste ou pesada, assim que é
expressiva, poeticamente expressa, a tristeza se modera, o peso se alivia.
118
Por ser o espaço poético expresso, adquire valores de expansão.

Afeto é o que retemos de memória – e o que determina essa retenção. É


uma peculiaridade. E o que se forma, não é uma tradução, é uma expressão.
Expressão é sempre uma configuração que se constrói em detrimento a algum
estímulo. O estímulo estava dado em ocupar aquele espaço, coletivamente.
Ocupar um espaço para realizar alguma configuração específica de arte é
uma ação deflagrada por um apelo do corpo, pois, longe de meu corpo ser para
mim apenas um fragmento de espaço, para mim não haveria espaço se eu não
tivesse corpo.119 Espaço e corpo se apresentam um para o outro; para o corpo,
além do espaço imediato de si próprio e da casa onde habita, há todo o espaço
social que, na sua historicidade e memória também é extensão de modos,
costumes, crenças e comportamentos. Para o artista, particularmente, há o
espaço externo específico dos campos da arte aos quais estiver situado.
Entre espaços interiores e espaços exteriores, uma dialética se estabelece.
Como se o interior dos afetos e memórias vazasse, para o exterior do corpo e,
imediatamente, ao espaço exterior, que prontamente o circunda – isso deflagra
uma reação (ação, pensamento, palavras). Nesse diálogo há um
redimensionamento do ser, pois há uma experiência.

O ser é sucessivamente condensação que se dispensa explodindo e


dispersão que reflui para um centro. O exterior e o interior são ambos
íntimos; estão sempre prontos a inverte-se, a trocar sua hostilidade. Se há
uma superfície-limite tal interior e tal exterior, essa superfície é dolorosa
120
para os dois lados.

Naquele sábado, dia da realização da Função 01, já havia sido determinado


o que seria feito. Os estudos em relação ao espaço – por todos que o ocupariam -
começaram duas semanas antes. Algumas pessoas foram convidadas a ver os

118
BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000; p. 206.
119
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 149.
120
BACHELARD, G.Op. cit.; p. 221.
87

trabalhos; mais de cinqüenta compareceram à Função 01. No dia anterior, e na


manhã e tarde daquele dia, alguns trabalhos foram montados.
Minha performance foi estudada e estruturada; depois de estudar o espaço
em que a realizaria, determinei tarefas como: usar iluminação específica para
delimitar o espaço do quarto, num corredor diagonal; percorrer o corredor diagonal
de luz no chão até a parede; encostar-se na parede com braços abertos (nesse
momento a outra performer sairia do armário, ao som do realejo); esperar a outra
performer deitar nas marcas do chão e estabelecer relações gestuais com a
sombra dela. As sombras de suas mãos interagiriam com partes de meu corpo e
me conduziriam ao final da primeira parte da performance. Na segunda parte, o
roteiro de tarefas seria repetido, porém, com a luz do recinto acesa – não haveria
o recurso da sombra. Eram essas as tarefas a serem cumpridas, no que havia
estabelecido para o trabalho que apresentaria. Durou cerca de dez minutos.
Às dezenove horas, aproximadamente, todos circulavam pelas
dependências do apartamento. As pessoas olhavam os trabalhos, conversavam
com os artistas e observavam o lugar. Recolhi-me ao lugar onde iria realizar a
performance; o quarto maior foi a peça da casa escolhida. Começaria a
preparação que faço, instantes antes ao início de uma apresentação.

Não é preciso que os gestos se repitam muitas vezes para que o corpo
se aproprie deles e se torne bailarino ou sapateiro. Encadeamentos de
posturas complicadas incorporam-se tão facilmente em seus músculos,
ossos e articulações que simplesmente desaparecem esquecidos na
memória dessa complexidade. Sem saber como, ele reproduz
posteriormente essas seqüências de posições mais rapidamente do que
assimila; o corpo imita, armazena e lembra. Quem pode computar o
121
enorme tesouro de posturas que ele traz consigo?

Estava pronta para começar...

3.2 A Performance do Apartamento


No momento em que os acertos técnicos foram ajustados, solicitei às
pessoas que entrassem no quarto para assistir à performance. O ambiente já
estava escuro, apenas com o foco de luz que iluminava meus pés (estava em pé,

121
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004; p. 75-76.
88

perto da cama). Lentamente as pessoas foram entrando, com o mínimo de barulho


que podiam fazer. Quem ali estivesse perceberia o ambiente sob o meu ponto de
vista, uma vez que se acomodariam em cima e ao redor de minha cama.

A performance do apartamento, 2005

O que propus foi uma re-criação de minhas sensações enquanto esperava


dormir, naquele quarto imenso, na primeira noite em que fiquei no apartamento. À
espera do sono, algumas sensações se pronunciam; o temor e a noite confundem
o aparato sensorial – por isso lidei com sombras na performance que apresentei.
A sombra de meu próprio corpo, que se desfazia à medida que me aproximava da
parede. Neste caso, a sombra entrou como elemento poético e potencializou a
ação do seu referente.
Ao término dessa parte da performance – onde havia apenas uma luz, que
recortava as ações e iluminava o ambiente -, toda a seqüência foi repetida com as
luzes acesas. As trajetórias dos deslocamentos e as ações foram praticamente as
mesmas, porém, com suas respectivas velocidades aceleradas. O fato de acender
a luz fez com que, do ambiente, fosse subtraído um certo temor das coisas mal
iluminadas, mas, o estranhamento permaneceu na situação incomum: cinqüenta
pessoas em um quarto escuro, num apartamento do Centro de Porto Alegre, numa
noite de inverno; a artista convidada saindo do armário, uma música de realejo
sendo, de vez em quando, tocada; meu corpo projetando sombras
fantasmagóricas nas paredes... Algo de surreal e ilusório.
O resultado estético (aparência) da performance do apartamento teve sua
ritmicidade própria, o que garantiu a autonomia da forma apresentada - a par de
89

qualquer motivação pessoal que possa ter desencadeado a sua feitura.


Particularmente, sabia que o fenômeno que desencadeara tal manifestação havia
sido dado pelas percepções primeiras àquele espaço, nas sensações noturnas
que geraram certo estranhamento. Esse estranhamento veio para a poética da
performance do apartamento. Em conseqüência a isso, o resultado estético, em
sua ritmicidade, propôs aos espectadores sensações contíguas.
Na situação criada houve componentes ilusórios, dados pelo uso da luz e
conseqüentemente, da sombra, que, nesse caso, foi uma espécie de projeção
deformada, aumentada; um fantasma, ou uma imagem de si em grau alterado –
um duplo. E a presença da outra artista enfatizou a questão do duplo, da
transferência e projeção da imagem de si para outra imagem. Ciente disso houve
a provocação; também, na transparência do vestido usado. Essa transparência foi
outro elemento estético que enfatizou o discurso do corpo; significou, de forma
silenciosa: embaixo de nossa roupa há um corpo que se move e é sensível. O
silêncio dessa intenção visa o corpo do outro e isso diz respeito a uma
transmissão da experiência. No texto O Narrador, de Walter Benjamin, embora
não trate dessa natureza de experiência, identifiquei uma idéia análoga – que fez
compreender melhor a própria intenção, ou seja, através das imagens geradas
pelo próprio corpo, nas apresentações das performances, deflagrar um
intercâmbio de experiências relativas ao corpo, genericamente considerado.

3.3 Da Possibilidade de Intercambiar Experiências


Para Benjamin122 O narrador retira da experiência o que ele conta: sua
própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à
experiência dos seus ouvintes. Desde a primeira vez em que li este texto teci
algumas analogias com as questões que motivam minhas observações e
experiências – e o que quero transmitir através delas. Assim como observo meu
próprio corpo, tenho estado atenta aos outros corpos, próximos a mim, de alguma
maneira.

122
Em referência ao texto O NARRADOR – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas - Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1994; p. 201.
90

Um bom material de pesquisa pode ser colhido nessas observações, dos


corpos das pessoas: prestar atenção em seus alinhamentos ósseos e articulares e
imaginar que, atrás de cada alinhamento, há toda uma história, que não se inicia
naquele corpo, especificamente. A essas observações, que vêm de longa data,
concluí - pela troca de experiências e conversas -, que a atenção que determina a
percepção de tais estados e fenômenos do corpo, não estão presentes no
repertório de ações e pensamentos das pessoas. Por essa razão, acredito, quero
contar às pessoas.
Assim se constitui um discurso relativo ao corpo, que aponta questões
concernentes à constituição do corpo próprio, enquanto ser-no-mundo. Meu
veículo para isso não tem sido a palavra – talvez esta dissertação seja um
começo. Gestos e movimentos arranjados em determinados espaços,
intencionalmente – para que outras pessoas possam ver, compõem o que
denomino de experiência repartida. Isso não é peculiaridade desta pesquisa, nem
da performance; todo trabalho de arte pretende essa troca.
Contudo, enfatizo a questão de um corpo vivo estar nesse espaço – e o
corpo é o veículo mais imediato e marcado de nossas vivências; uma vez que se
coloca, em imagem e experiência, num ambiente destinado à apreciação de suas
ações, instaura uma via dupla, entre os próprios significados da estrutura proposta
e as maneiras de os espectadores receberem aquelas imagens. Tais maneiras
estabelecem relação com as imagens de corpo (constituídas e em constante
constituição) de quem estiver a observar o trabalho performático. Então, são
experiências que realizam trocas, em percepções recíprocas, uma vez que a
reação do observador também passa, de alguma maneira, a ser percebida pelo
performer.
Perdemos a faculdade de intercambiar experiências123, nos diz Benjamin. A
isso, uma causa: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que
continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo.124 Essa é a causa da
intenção de propor imagens que desencadeiem um pensar a respeito do corpo,

123
BENJAMIN, W. Op. cit.; p. 198.
124
IDEM.
91

num intercâmbio de experiências. Há um sentido implícito no conjunto de meus


trabalhos que aponta para essa questão. Na forma do trabalho, talvez isso não
venha à tona, explicitamente, mas a ritmicidade estética sinaliza o sentido. Os
títulos dos trabalhos, que têm significativa importância para mim, guardam, por
vezes, de forma mais explícita, um conselho, ou um ensinamento, por exemplo:
Amanhã, ou depois deixe sua pele ver o pôr-do-sol e Você tem duas escápulas. A
partir desses títulos e da intenção dos trabalhos próprios, teço esta analogia, entre
o que Benjamin escreve sobre a natureza da narrativa.

Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária.
Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa
sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de
125
qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.

Creio que essa natureza não se restrinja somente a signos lingüísticos, e


sim, possa se estender a qualquer signo que tenha a intenção de transmitir uma
experiência; sem a necessidade de ser literal, porém. Se puder incorporar as
coisas que realizo em minhas performances às experiências daqueles que olham
os movimentos, haverá uma troca de experiência. O corpo que estará a assistir,
aparentemente imóvel, perceberá os movimentos feitos; por propriedades
sinestésicas ele redistribuirá a experiência visual ao campo cinestésico.

(...) fascinado, o corpo imita, ou imagina imitar a forma indicada pela


performance do dançarino: o esquema já está instalado. Sabe-se que os
neurônios que comandam um gesto real e os que o fazem por um gesto
visto e, portanto, imitado unicamente em virtualidade, descarregam ambos
126
a mesma quantidade de eletricidade.

Eis a dimensão utilitária, a que Benjamin se refere ao falar da natureza da


narrativa. Embora esse não seja um dado a priori quando crio, ou atuo, estabeleço
a analogia. Ao analisar a configuração final de meus trabalhos, em seus títulos e
aparências, observo que, de alguma maneira, há um conselho implícito a respeito
do corpo e seu estar no mundo. A arte não almeja função prática – é exatamente
na distância dessa função que lhe é conferida sua função estética; o que lhe dá o
status de arte. A questão do “conselho” estaria situada na função prática, mas as

125
BENJAMIN, W. Op. cit.; p. 200.
126
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004; p. 91.
92

fronteiras entre prático, estético, teórico e simbólico têm a possibilidade de se


mesclarem. Ademais, não são rígidas as fronteiras que separam essas funções
num mesmo objeto, na arte. Jan Mukarovsky, em seus Escritos sobre Estética e
Semiótica da Arte (vide referências), propõe um Esboço da Tipologia das Funções
na Arte; não cabe a este estudo uma revisão bibliográfica nesse sentido; situa-se,
porém, a construção do referido pensamento.
Quanto ao meu corpo, tomando ele por elemento estético (pois participa da
estrutura da obra), suas marcas e sulcos - e a qualidade do movimento que os
exercícios preparatórios da dança127 lhe conferiram, proporcionaram-lhe
peculiaridades no seu modo de estar, durante a atuação numa performance. Tais
exercícios, os quais faço diariamente para tornar o corpo disponível aos trabalhos
de minhas performances, restituem algo da experiência vivida e não percebida,
pois são construídos com base na percepção corporal. Quando se diz experiência
vivida e não percebida, se faz referência, especificamente, ao processo de estar
atento aos fenômenos que acontecem ao e no corpo, bem como ao espaço
circundante - e como isso determina o que se desenvolve, ou se realiza, no ser em
si e naquilo que dele se manifesta.
Os exercícios permitem a restituição da mobilidade (que se perde com o
tempo), de forma que as idéias possam se configurar melhor naquele veículo: o
corpo. Dão a possibilidade da harmonia e da fluidez da respiração e dos gestos,
facilitam os movimentos; também preparam a concentração necessária para o
momento da atuação. É uma inteligência construída na carne; no corpo sensível
às variações fenomenológicas de sua própria natureza e, também, da natureza e
ambiente como um todo, em suas oscilações respectivas.

Tudo bem que se construa a inteligência artificialmente, não vejo nisso


nenhuma performance surpreendente, mas e a carne, o sensível, o corpo?
A encarnação é o ponto culminante do concreto tanto quanto do saber,
mesmo o mais abstrato. Antes que os representantes da cultura erudita

127
Refiro-me à dança que tem por base a educação somática; que, antes de qualquer
desenvolvimento estético, prima por despertar a consciência de ser-estar no mundo - no indivíduo
que a realiza. A essa consciência agrega-se noção articular, sensorial, motora; noções espaciais,
do peso do corpo e da velocidade de seu movimento; trabalho respiratório e conhecimento da
anatomia e fisiologia do corpo.
93

perturbem gravemente nossas escaladas e nossas sestas sensoriais e


atrapalhem nossa felicidade cultural enchendo-a de sabedoria e
sagacidade, sem lógica nem cálculo, já suficientemente avançados e
dispondo de um espaço de paz, nossos corpos ainda podem ser acolhidos
128
livremente pelo forte vento e pelo grande sol (...).

Para quem atua em uma performance, é essencial que se construa um


saber dessa espécie; que se tenha intimidade com o material mais imediato que
será utilizado para compor a obra: o próprio corpo. Como pode estar e se mover e
quais são as possibilidades disso? Questões pertinentes de se fazer; o trabalho
prático de exercícios e experimentos pode delinear algumas respostas. Se
tivermos a experiência de um outro como parâmetro, ela continuará sendo do
outro e não minha. Por isso entendo que os exercícios da dança, da maneira que
trago na nota explicativa acima, são restituidores da mobilidade necessária para
um performer poder atuar com mais propriedade com o seu corpo.
Para quem assiste a um corpo preparado se mover, em uma performance
terá uma experiência mais intensa, uma vez que, a imanência do corpo que está
sendo percepcionado transcende, pelo fato do preparo que o trabalho de
consciência corporal lhe pôde conferir. O corpo do observador também vive
naquela percepção, de maneira contígua e, também, similar.
Antes afirmei que em minhas observações colho materiais para dizer que,
via de regra, não estamos atentos às demandas das sensações - razão essa que
nos priva de percepções e impressões mais intensas. Arrisco em dizer, ainda, que
retemos muito pouco daquilo que experimentamos. Em que momento de nossa
vida atentamos a isso, ou seja, a uma certa curiosidade do que nos cerca em
relação ao nosso corpo, em sua imanência? Apenas nos primeiros anos, certo;
quando nos deliciamos em nossas averiguações dos ambientes e dos objetos.
Rolamos pelo chão, nos lambuzamos com as coisas que comemos, tocamos nas
coisas - e tudo tem um caráter de coisa, ainda... O inominável dá outro tom à
experiência. Num regresso a isso, acredito que podemos exercitar o inominável;
re-significar os conceitos e os modos inculcados que estão somatizados em
nossos gestos e atitudes.

128
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004; p. 32-33.
94

Se não temos mais oportunidades de rolarmos no chão, de nos


deslocarmos em diferentes bases de sustentação do peso, talvez seja necessário
forjar uma situação e incorporá-la em nossas práticas. Fazer exercícios de
respiração e percepção, por exemplo. Talvez meu corpo diga isso, de alguma
maneira, no ato de transmissão das imagens geradas por ele. No instante que
transmitir imagens com o meu corpo, transmitirei, também, a experiência contida
nele; pois o corpo é materialização, em imagem, de nossas experiências.
Desenvolvi essa reflexão devido à performance que apresentei no evento
que foi a Função 01. O desdobramento da reunião dos artistas no apartamento
provocou uma série de discussões a respeito dos aspectos estruturais que cada
trabalho suscitou – bem como de suas respectivas inserções no campo da arte;
também quanto à questão do espaço ocupado – e da relação dessa ocupação ao
sistema das artes. Foi um espaço criado, não institucional. Importante, também, foi
a tensão das várias estéticas num ambiente não usual; o apartamento se
transformou em galeria, lá tivemos oportunidade de mostrar um pouco das
produções que estávamos desenvolvendo no mestrado, bem como as questões
que as norteavam. Houve debates informais após a apresentação da performance.
Assim, considero relevante essa experiência coletiva para esta pesquisa,
uma vez que realizei um trabalho, que pôde ser apreciado por várias pessoas do
sistema das artes da cidade de Porto Alegre - mais especificamente, vinculadas
ao Instituto de Artes da UFRGS (que é um campo novo para mim) e ao campo da
dança.
As questões que apresentei na performance do apartamento são similares
a algumas que emergiram em outros trabalhos. O duplo retorna com toda a força,
na presença viva da artista convidada e nas sombras produzidas. A memória é
transferida para a questão espacial – e como esse espaço instiga a criação
específica. Esse último fator tornou possível uma reflexão a respeito do espaço
em relação ao corpo - e do corpo em relação ao espaço. Toda a função deflagrou
a atenção para essa questão, bem como para a transmissão dessa experiência,
na apresentação da configuração proposta. O ambiente solicitou a idéia, a qual foi
atendida com zelo.
95

4 MEMÓRIA TALHADA NO CORPO

Sua textura carnal se nos apresenta como ausente de toda a carne, é um


sulco que se traça magicamente sob nossos olhos sem que ninguém o
traçasse, certo oco, certo interior, certa ausência, uma negatividade que
não é um nada, estando limitada precisamente a estas cinco notas entre as
129
quais se instala, a esta família de sensíveis que chamamos luzes.

4.1 A série Sulcos na Carne


Os sulcos que talhei na carne repartiram meu corpo. Os sulcos existem,
Pelos mais variados motivos.
Alguns sulcos estão visíveis, mais do que visíveis – pela pele.
Outros estão na parte interna;
São índices sutis que mal aparecem ou vêm para cima, para a pele.
Os sulcos são raros,
Me são caros.
Determinam
O olhar.
Dirigem
O olhar,
A cada parte do corpo.
Os sulcos repartem o corpo, o subdividem em pequenos territórios.
Territórios de um mesmo lugar.

Os sulcos também são memória; são o anúncio visível do tempo


transcorrido – músculos, tendões, protuberâncias e rugosidades na pele marcam
um tempo no corpo.
Nessa série de experimentações que se iniciou em janeiro de 2006, no
momento em que isso se evidenciou para mim, confio a poética de meu trabalho,
mais do que nunca, nessas marcas. Desvencilho-me dos objetos, como tecidos e
excesso de movimentos para usar somente luz, corpo e alguma ação específica.

129
Merleau-Ponty, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 145-146.
96

4.1.1 Você tem duas escápulas.

Você tem duas escápulas, 2006.

Em Você tem duas escápulas (ANEXO D e capítulo 4 do DVD) estou de


costas para o espectador, sentada em um cubo, com uma lâmpada de 125 wats,
colocada na diagonal frente, num ângulo fechado, direcionada à altura de minhas
escápulas; isso gera uma sombra, que se projeta ao fundo, do qual estou a uma
distância de, aproximadamente, setenta centímetros. A cor laranja da parede do
fundo, a luz branca que incide na pele também branca do meu corpo (referente) e
a grande sombra que se projeta à sua esquerda, compõe a poética desse
trabalho. Meu corpo divide a ação com sua própria sombra. A sombra é uma
espécie de ausência; ausência de massa corpórea – só forma, disforme e
aumentada, à minha esquerda. Um espectro, que revela vagamente a parte não
mostrada do corpo. O paradoxo dessa imagem sem massa da sombra é que a
mesma só se pronuncia com a presença de seu referente, à incidência da luz.
Corpo e sombra, nessa performance, compõem uma dialética, onde a
síntese é o todo do sentido, dado pelo próprio movimento das escápulas, o qual se
tem a tarefa exaustiva de realizar. Estabeleço uma analogia com a obra Dança ou
Exercício Sobre o Perímetro de Um Quadrado (Quadrilha), de Bruce Nauman
(ANEXO H), pela própria estrutura da composição, de apenas uma tarefa para a
ação, pela sua repetição e, também, pela exaustão corporal que determinada
tarefa, ao ser realizada, comporta. Outro ponto em comum com esse trabalho de
Nauman é o tempo de duração, dez minutos.
O uso da luz e o desejo de instigar é um traço em comum entre outros
trabalhos próprios, já realizados e citados no decorrer desta pesquisa. A
peculiaridade de Você tem duas escápulas é a questão explícita de mostrar,
exatamente, uma parte do corpo que não está acessível aos nossos olhos. Só
97

podemos ter uma imagem vaga de nossas escápulas; podemos tomar por
referência as escápulas de outras pessoas, para remontar em nosso esquema
corporal, o que temos na parte de trás de nossas costas. Essa imagem também
instiga à pergunta: quantas coisas mais não estão visíveis aos nossos olhos, de
nosso próprio corpo? Uma imagem-metáfora, no pleno exercício da poética
relativa a essa figura.
Então, a par da forma e do pensamento que proponho, em relação a este
trabalho, esse corpo, em seu coeficiente fenomenológico, simplesmente se propõe
a realizar tarefas de movimentar as escápulas para cima, para baixo, para fora e
para dentro (oposições binárias), numa transmissão de experiência que, se for
analisada do ponto de vista puramente tautológico, quer apenas mostrar o que
podem fazer duas escápulas, além de estarem escondidas às nossas costas.

4.1.2 Daquilo que se Esvai

Daquilo que se esvai, 2006.

Outro trabalho da série Sulcos na carne, Daquilo que se esvai, evidencia a


parte anterior do corpo. Em movimentos dos ombros para frente e para cima, as
clavículas130 também se deslocam nas mesmas direções e apresentam uma
grande concavidade, um grande sulco. Juntamente com feixes do músculo
peitoral, esculpem formas de triângulos, um na parte superior (entre as
articulações da clavícula como o esterno – clavícula, escápula), outro na parte
anterior inferior à clavícula. Nesses sulcos, tenho a tarefa de colocar água, reter

130
A clavícula é um osso longo e achatado, em forma de ~; se interpõe transversalmente como um
arco que apóia sua extremidade interna no manúbio do esterno e a externa na escápula. A
escápula, por sua vez, é um osso largo e triangular; sua face anterior é lisa e fica em contato com a
parte posterior do tórax (de cujo esqueleto está separada, por dois planos musculares). Sua face
posterior está dividida e duas zonas desiguais por uma crista óssea. O ângulo anterior está
ocupado por uma cavidade articular para o úmero, onde se inserem importantes músculos que
darão movimento aos braços.
98

por alguns instantes e, no momento em que as articulações são alinhadas


(ombros em cima do quadril, relaxados), a água escorre.
Havia a possibilidade de realizar deslocamentos pelo espaço do ambiente,
com os sulcos cheios d’água; optei, porém, por não me locomover e enfatizar a
ação de encher os sulcos – foi uma opção momentânea. Os deslocamentos
seriam realizados conforme a percepção espacial que pudesse obter durante a
performance, não sendo uma tarefa determinante para tal. Um dado a ser
considerado é o som que serve de fundo.
Nos dois trabalhos desta série, o barulho de um relógio sinaliza,
literalmente, a questão do tempo em relação ao corpo. O ser que está, a realizar a
performance, no seu pleno estado de presença, indica, também, através das
marcas inscritas em sua carne e na pele, o tempo que não se estanca. Eis que
toda a problemática pensada, na reflexão sobre o ser da performance, no capítulo
dois da primeira parte desta pesquisa, se evidencia.
99

5 ANÁLISE DOS RESULTADOS E METODOLOGIA

5.1 Dos Trabalhos Práticos Realizados


Ao examinar o conjunto de trabalhos realizados durante esta pesquisa,
pôde-se perceber que as questões da memória e da percepção foram trazidas e
analisadas em várias e distintas instâncias, tanto na parte prática [como é o caso
de Esquizo-soma e (eu) Vim], quanto na parte teórica da escrita, com o respaldo
de Bergson e Merleau-Ponty. A memória e a percepção (do que se tem do
presente) foram compreendidas como causas dos fenômenos que determinaram
as manifestações. Nesse sentido, esses dois conceitos foram entendidos – na
iminência de suas subjetividades –, também como metodologia para as
composições das performances.
Ao atuar em uma obra, ao vivo, com o corpo próprio, a percepção
momentânea apreendida se liga a dados da memória, gerando fenômenos que
determinam a qualidade da manifestação. As sínteses operadas pelo corpo, na
reunião dos fatores percepcionados, farão com que um dado em estado virtual
(subjetivo) passe para um estado atual (objetivo) – o que engendrará a aparência
da ação performática.
Num fator mais objetivo, o uso da luz, como facilitador e desencadeador da
percepção nos trabalhos foi um elemento presente em todos os experimentos. Em
Esquizo-soma, a partir da luz, foi possível estabelecer diálogos com o espaço; em
(eu) Vim, regulei a luz natural com os painéis pretos que recobriam as janelas do
atelier onde realizei a performance; na performance do apartamento foi o uso da
luz que fez aparecer as sombras, o que determinou a estética do trabalho; em
Amanhã, ou depois, deixe sua pele ver o pôr-do-sol, a luz (contra-luz) foi o próprio
sol no poente – e meu corpo aparece quase em negativo, em seus contornos. Na
série Sulcos na Carne, a luz evidencia os sulcos, delimitando o lugar do corpo
visado, e que pretende ser visto.
No conjunto dos trabalhos, a luz funcionou como uma espécie de recorte
das partes, no corpo e no espaço, que se pretendiam em evidência; como uma
edição na imagem mostrada. A luz potencializa o que se propõe, tanto como
100

elemento desencadeador da ação (posto para provocar as ações no performer),


quanto em termos de facilitador perceptivo para o receptor (enquanto elemento
estético). Também propicia a instauração de uma dialética entre corpo e sombra.
As próprias partes do corpo, como é o caso da escápula (em Você tem duas
escápulas), bloqueiam a luz e redefinem os contornos e os movimentos; há partes
do corpo que ficam mais ou menos em evidência. Isso interessa à questão
estética da pesquisa.
Anna Barros descreve a relação de um pintor com a luz. Cita Robert Irwin e
diz que Para um pintor, a luz está sempre presente, até quando não esteja lidando
com a representação pictórica. A própria cor já é a atualização de uma
determinada onda de luz.131 Minha identificação com Robert Irwin, além da
importância que ele confere para a luz em seu trabalho, está na questão filosófica
de sua vida: o valor da percepção, sob o viés fenomenológico. Em um
documentário produzido por Leonard Feinstein (1997), o artista afirma:

O mundo não é necessariamente como achamos que é; como dizem,


‘coisas são coisas’... Mas por que e como as vemos - e em que nível
invadem em nossa consciência. Como as deixamos entrar e o valor que
lhes damos, radicalmente mudam nossa visão de mundo... Você começa a
notar que o processo da percepção, que nós revelamos como
determinante, não é determinado; nós o fazemos. E a percepção é uma
das belezas de nossa vida, uma das grandes forças.132

Não lido com a representação pictórica, mas a luz gera forte influência
sobre minha poética e sobre a estética que se faz surgir. O corpo na performance
é elemento plástico, o que estabelece uma relação com a arquitetura e a
escultura, pois que sua presença interfere no espaço e nas percepções alheias.
Com a incidência da luz, o corpo gera sombras – e a sombra entra, também como
elemento estético. Uma via dupla se estabelece, entre a ação do corpo e o olho do
receptor. Sendo assim, percebo que...
Sou uma gravura efêmera
Sólido-rarefeito
Sujeito

131
BARROS, Anna. A arte da percepção – um namoro entre a luz e o espaço. São Paulo:
Annablume, 1999; p. 35.
132
Robert Irwin, 1997.
101

Quase objeto
Quase coisa
Disposto a ser...
Tudo que vejo e experimento
Pela pele
Pelo olho
Por todos os orifícios.

Meu corpo se estende até o limiar do corpo de outrem... Pelo olho, sim, pelo
olho...
É assim que se traduz.

5.2 Das Referências Teóricas e Procedimentos


O ponto central da pesquisa esteve em refletir fenomenologicamente sobre
o corpo vivo, material e suporte da performance. Percebi que minhas
performances não visaram apenas a um produto estético formal, visaram o corpo
e o seu discurso, principalmente. Nesse discurso, seu modo de funcionar e
proceder com os dados de memória – como isso retorna e se atualiza, por
exemplo –, se constituiu como foco da discussão, na parte escrita. Também
conduziu o viés da criação, na parte prática.
Quanto aos procedimentos que configuraram os trabalhos apresentados,
pude observar que as performances que realizei se formaram à medida que
propus coisas para esse corpo – o meu – resolver. Impus-me situações,
sensações, objetos, textos, sons, roupas e movimentos determinados e os lancei
ao meu corpo – lancei meu corpo a eles também, como numa arena, para que
costurasse os signos, freqüentemente díspares. Foi, muitas vezes, na disparidade
e na oposição que se encontrou o motivo. O motivo é sempre uma provocação,
para desencadear a ação. Provoquei reações em meu corpo, para que ele
pudesse atuar a partir delas, pois sei como funciona a memória do e no corpo.
Instigar o próprio corpo a dar respostas a situações criadas é uma
proposição diária. Estou ciente de que a tarefa de me familiarizar mais das
102

possibilidades do meu corpo deve ser exercitada todos os dias, pois é esse o
material no qual deverei confiar nos momentos em que estiver performando. O
que pode um corpo? Exatamente, ou, aproximadamente. Quero-o disponível e
flexível; alongado, numa idéia que pode ser transferida ao modo que penso ser –
ou quero ser. Michel Serres nos diz: Sem essa margem a mais de alongamento,
quem poderia dançar, que iogue teria a possibilidade de meditar? A destreza
manual no trabalho ou na arte necessita desse alongamento. Alongar-se é próprio
do homem e continua a ser sua pretensão.133
Mas, tudo isso tem medida e limite – e lidar com o limite é parte da própria
natureza da performance134. As averiguações diárias, talvez, se estabeleçam
nesse intuito: de descobrir onde residem esses limites e, dentro do que se quer e
do que se torna possível, poder borrá-los e, até mesmo, dizimá-los. Ou, por
verificação, confirmá-los e assumi-los. O corpo é feito de matérias perecíveis, já é,
a priori, um ininterrupto processo para o seu próprio fim. Meu corpo, em sua
finitude, é um corpo cheio de marcas, talhado para a arte, há duas décadas e
meia.

A partir do corpo perfurado, poroso, transpassado por tantos epiciclos


cujas combinações arrastam consigo sutilezas cada vez mais delicadas,
emerge, nasce, surge a alma vertical, assim como da carne mitigada
emana a mente sutil. O animado ou o espiritual que nossas línguas
traduzem pelo sopro dos ventos emana como um fraco vapor, da
experiência proprioceptiva mais imediata do corpo, das circulações sólidas
e das atitudes que envolvem o andar, seguidas das trocas ponderadas de
energia recebidas e produzidas pelos inúmeros ciclos do metabolismo.
Nosso fogo lança sinais incorpóreos na bruma, pois habitamos com a vida
o tecido tênue dos sonhos. Tendo passado meu tempo entre os signos,
135
desvanecerei como a neblina.

Vivemos num mundo de signos constituídos previamente pelos outros; a


partir disso, criamos outros signos. Inclusive a noção de tempo se estabelece
enquanto signo. Se existe tempo, mundo, o outro, as coisas, espaço, etc, tudo isso
se deve porque somos corpo; um ser-no-mundo – e todas as concepções de
mundo se desenvolvem a partir dessa perspectiva. Máquina de fabricação de

133
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004; p 134.
134
Conforme refletimos na primeira parte desta pesquisa, no capítulo 2, Esboço de uma reflexão
ontológica – o ser da performance.
135
SERRES, Michel. Op. cit., p.126.
103

líquidos e gás, moléculas, sinais elétricos ou químicos, muitas trocas fluem entre o
mundo e nossas membranas abertas em forma de teia que se sucedem em ciclos
complexos (...).136 É porque tenho esse corpo, configurado desta maneira, que se
torna possível o desenvolvimento de minha arte, no risco de estar presente e “dar
tudo errado”, de, naquele dia não estar disposta a atuar, ou estar com alguma
enfermidade – o que impossibilitaria a boa performance. Como performer, o corpo
que sou deverá estar disponível para ser outra coisa: as coisas que imagino em
arte. Imagino as cores, os objetos, a luz e lá está, também, meu corpo, junto com
os outros materiais. Assim me coloco; determino e estabeleço a ação.

Com mão e braços livres, o corpo tem o direito de mover-se de acordo


com sua vontade, deve dispor de sua natureza e de sua capacidade. Sua
virtualidade se opõe a qualquer poder. A liberdade se define pelo corpo e
137
este por sua potencialidade.

Então, matéria e memória realizam configurações efêmeras, transcorrendo


em tempo e espaço que não se guardam. Somente o corpo guarda o tempo e o
espaço. Por isso é um pedaço de história, de passado; esse passado não é
particular, apenas, mas de todos os corpos que puderam trabalhar para a
concepção subjetiva que se tem de tempo e existência.

A subjetividade não está no tempo porque ela assume ou vive o


tempo e se confunde com a coesão de uma vida. (...) Estou no passado e,
pelo encaixe contínuo das retenções, conservo minhas mais antigas
experiências, não tenho delas alguma reprodução ou alguma imagem, eu
as tenho elas mesmas, exatamente tais como foram. Mas o encadeamento
contínuo dos campos de presença, pelo qual me é garantido este acesso
ao próprio passado, tem por caráter essencial só efetuar-se pouco a pouco
e passo a passo; cada presente, por sua própria essência de presente,
exclui a justaposição com os outros presentes e, mesmo no passado
distante, só posso abarcar uma certa duração de minha vida desenrolando-
138
a novamente segundo seu tempo próprio.

Vivemos uma série infinita de presentes guardados, sendo assim, nosso


corpo não apenas guarda o que ele próprio pôde viver e apreender; guarda
apreensões e vivências do processo evolutivo do corpo, genericamente

136
IDEM, p. 125.
137
SERRES, Michel. Op. cit., p. 52.
138
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999;
p. 566-567.
104

considerado, dentro do espaço social e cultural circundante. A maneira com que


configuramos nosso trabalho, enquanto artista, nada mais é do que resultado dos
modos com os quais elaboramos, a partir de informações do passado, o presente.
Assim, Meu presente é aquilo que me interessa, o que vive para mim e, para dizer
tudo, o que me impele à ação (...).139
Para o meu ser, essa ação não se resguarda, obedece ao que surge, isto é,
quando uma idéia se pronuncia, prontamente me disponibilizo ao experimento do
que se anuncia como dado (informação) do presente. Meu presente portanto é
sensação e movimento ao mesmo tempo; e, já que meu presente forma um todo
indiviso , esse movimento deve estar ligado a essa sensação, deve prolongá-la em
ação.140 Percebo meu presente enquanto sensação e percepção (que
desencadeiam fenômenos) e movimentos (manifestações); prolongo tal questão
em forma de ação. Minha ação performática (embora não se fixe) é um modo de
distender o meu presente, este instante que já se finda.
Nessa ação uso um corpo talhado, que está entre a fragilidade e a força,
uso gestos e movimentos mais ou menos intensos, com maior ou menor
velocidade, ocupando um espaço mais ou menos amplo; uso cores e textura, em
alguns tecidos. Para negar, ou confirmar a efemeridade do que se passa a cada
segundo? Para negar e confirmar. É o paradoxo, a dialética da imagem que se
anuncia em sua aparência. Donde concluo que meu presente consiste num
sistema combinado de sensações e movimentos. Meu presente é, por essência,
sensório-motor.141
Nesse conjunto de fenômenos e manifestações que realiza meu presente,
aponto à possibilidade de transmissão da experiência, como o próprio movimento
da existência em direção ao outro. Se fizer tudo isso, com certeza não é (apenas)
para mim; a experiência quer ser re-partida... E a palavra repartida vem partida em
dois fragmentos, pois aponta, também, para a partida, ou o ir embora, daquilo que
não se fixa, do corpo que, cedo ou tarde se esvazia, transmuta sua configuração,

139
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 160.
140
IDEM, p. 161.
141
IDEM, p. 161-162
105

sua matéria. Caminho eu há algum tempo para isso; o caminho, então, é meu.
Mas, não é só meu, pois que meu corpo se reparte e parte... Anuncia uma fenda,
através de suas talhas visíveis na pele. Anuncia para o outro e re-parte a
experiência.

5.3 O Conceito Memória e sua Relação com a Aparência


A memória é um dos componentes dos fenômenos que geram a
manifestação e engendram a aparência. Compreender os conceitos de memória
foi um fator essencial para poder analisar, entender, aceitar e interferir nos
padrões de movimento e ações próprias. Uma vez que tomei ciência de que tudo
está em meu corpo, em virtualidade, e que sou a soma dessas experiências,
posso analisar com mais clareza o que surge, bem como os resquícios de suas
respectivas gêneses.
O que é isso, de onde surgiu e por que veio? São questões constantes que
faço quando observo um trabalho que crio. Reitero o quão fundamental se tornou
essa averiguação teórica para possíveis respostas a essas perguntas; Maurice
Merleau-Ponty, Henri Bergson, José Gil, Geoges Didi-Huberman e Michel Serres
deram respaldo à compreensão desse conceito. Sendo assim, considero esse um
dado teórico que se estendeu para a parte prática, subtraindo – um pouco – de
minha angústia de saber a respeito da gênese daquilo que crio, de modo que
possa esboçar algo sobre seus pressupostos estéticos e formais – e compreendê-
los.
Creio que este estudo, como um todo, proporcionou maneiras de
compreender melhor acerca dos processos de armazenamento das experiências –
e no que isso resulta, retorna para o meio. Por essa razão, se tornou fundamental
que a discussão teórica tenha sido deflagrada por ações performáticas.
A inquietação surgiu da prática; me incomodava, por exemplo, nos
trabalhos que compunha, questões como lirismo excessivo e um certo ar
dramático. Parecia que o valor estético do que estava propondo seria menor se
aquelas características se evidenciassem. Ao identificar que as questões acima
citadas permeavam o conjunto de meu trabalho, passei a assumi-las. Poderiam
106

até ser uma questão de estilo pessoal, mas estava pronta para realizar o que
surgia em minha vontade; não interditar o que se anunciava, a um primeiro
momento. Era essencial deixar surgir, para depois poder observar e refletir a
respeito – a seguir, sim, interferir e determinar o que permaneceria no trabalho,
caso sentisse necessidade. Se observarmos os trabalhos compostos e
apresentados no decorrer desta pesquisa, todos eles revelam, de alguma maneira,
um pouco de lirismo e poesia. Reitero que tal característica, mais do que uma
forma estética é um modo peculiar de ser, uma atitude perante o mundo e as
coisas.
O exercício entre a prática e a teoria passou a ser um jogo dialético nesta
pesquisa; a teoria, na realidade, estava dando respaldo para revelar minhas
manifestações em acordo ao que os fenômenos deflagravam. Imbricado a isso
estiveram as respostas dos receptores. Essa pesquisa não está centrada na
questão da recepção, porém, as trocas foram estabelecidas, durante as
apresentações, num fluxo constante de percepções recíprocas, sempre
enfatizadas e debatidas após as performances realizadas. Dessa maneira,
conclui-se que em todas as etapas dos trabalhos realizados existiram parcelas de
memória: social, individual, coletiva, técnica, artística, etc.

O espaço interior do corpo é um espaço de inscrição de conteúdos,


antes de mais, “intersubjetivos” (quer dizer “interpsicossomáticos”). É um
espaço que se conecta com o da pele, e os dois formam uma dupla
interface: psyché-soma, e entre dois ou mais – “psyché-somas”. Não há
espaço interno “monádico”, fechado sobre si; mas só, e desde sempre, o
142
espaço interno é habitado por outrem.

Se o espaço interno é habitado por outrem, digo que estou atenta para
saber de onde vem esse outrem – e o que deflagra em meu ser, o que motiva em
minhas composições em arte. Adquiri o hábito de colecionar memórias, só para
poder usá-las depois, como subterfúgio para a criar. Essa proposição é a
metodologia que guia meu trabalho de performances, pois meu corpo é sempre o
mesmo, embora assuma diversas temporalidades.

142
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água, 1997, p. 182.
107

Conforme ensina Bergson143, o momento presente é constituído pelo corte


instantâneo que nossa percepção pratica na massa em vias de escoamento. Sim,
somos uma massa em vias de escoamento... E é exatamente essa questão que o
corpo aponta: essa matéria móvel e finita, carregada de memórias que nem se
sabe para onde escoarão; e a percepção é o corte efetuado, racionalizado,
equacionado. E a performance? Essa maneira evanescente de se fazer arte... Não
poderia fazer algo para falar contra essas coisas que se findam a todo instante?
Ao que parece, todo performer tem um certo gosto por aquilo que não se inscreve
por inteiro; o que não fica; se esvai.
A performance é efêmera enquanto configuração, porém, enquanto
elemento percepcionado, a questão da sua curta duração e transitoriedade pode
ser questionada. Há alguns anos atrás assisti ao espetáculo Violência, da
companhia de dança Cena 11, de Florianópolis; posso assegurar que o que vi
ainda não escoou de meu corpo. Agora é mais fraca a lembrança, mas, por muito
tempo trabalhou, em imagem e conceito, aquilo que pude ver.
Para o eu performático (ser que se realiza durante a apresentação), a
percepção e a memória são conceitos operantes; através desses fenômenos –
que geram outros - é que as ações essenciais se manifestam. No momento em
que estou atuando, sei, transformo-me num recipiente, cheio de informações e
experiências, que são devolvidas ao mundo em forma de movimento, ação e
criação. Esses movimentos, essas ações e a criação como um todo, no momento
em que se configura, vêm desta maneira porque os dados relativos à minha
apreensão de mundo, bem como as concepções fundadas a partir disso, se
realizam em golpes sucessivos, pois são solicitados.
Quando estou performando solicito, sim, o que já tenho em reservas no
meu corpo, em memória. Tudo retorna; torna. Torna-se outro, pois, vem
transformado. Vai além, é o próprio ato que atualiza e, presentificado, transforma;
re-configura o que emerge e se forma. E a forma que surge em aparência
estabelece relação espacial, temporal e semântica.

143
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Op. cit., p. 162.
108

Entre fenômenos e manifestações, o corpo guardou todas as experiências –


e o corpo tem pele, cérebro, medula, nervos, linfas, gânglios, músculos, líquidos
mais ou menos densos, ossos, membranas, cartilagens, vísceras, espaços
escuros em seu interior... É nele que a memória está e se realiza em movimento,
se atualiza, uma vez que se encontra em virtualidade, em potência. O corpo é
forma e aparência, não sei se é recipiente do espírito ou se é materialidade. Não
sei se tem a alma ao lado, ou dentro... E é esse conglomerado de coisas que está,
em ato, no momento em que sou matéria, constituinte de uma obra. Esse conjunto
elege maneiras de se pronunciar, de dizer o que pensa e o que é, numa atividade
constante de seu espírito.

Somos um “movimento para”: e conforme a fricção, a resistência, o


peso, a leveza, a opacidade dos diferentes suportes, esse movimento
adquire ou não uma velocidade expressiva, quer dizer que permite à alma
exprimir-se. Velocidade da alma, que torna paradoxal o seu lugar: é móbil,
a alma está sempre lá, e pode estar mais ou menos lá. E quanto menos lá
está porque mais se desdobra a linha do infinito em espaços expressivos,
mais a alma se aproxima do seu lugar. É que o lugar está no seu
144
movimento, no movimento que para ele próprio tende.

E esse movimento da alma se traduz na matéria que é o corpo, quer dizer,


no seu exterior, nesses contornos e limites dados pelo espaço da pele. Cria-se
assim uma textura espacial plástica, pronta a adotar toda espécie de formas e de
forças. O nosso espaço da pele (ou espaço do corpo) faz comunicar
imediatamente o espaço interno do corpo com as formas e forças expressivas do
corpo do outro.145 É pela expressão atribuída por outrem que o ato performático
ganha significado, ao ser percepcionado. O corpo aparece e é visto pelo
espectador; o ato de ver encontra ressonância na própria concepção de corpo de
quem estiver olhando.
Vemos, sempre, através de nossa posição, do nosso ponto referencial no
mundo, nossa ancoragem. Essa ancoragem diz quem somos; pelo ambiente onde
crescemos, por nossas impressões mais íntimas – e todo arsenal que o aparato
sensorial pôde nos brindar. São esses referenciais que nos apontam o corpo do
outro de uma certa maneira que nos chega, que nos toca, pelo gosto de ver, ou

144
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água, 1997; p. 162.
145
IDEM, p. 182.
109

pela repulsa. E assim se estabelece a relação, em que a textura plástica do corpo


do performer faz comunicar seu espaço interno - o espaço dos afetos (que
determinam as escolhas), que trava comunicação com as forças expressivas do
corpo do outro.
110

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dentre todas as coisas que podemos criar, por certo, nada sairá tão
distante daquilo que somos, ou acreditamos ser. Estamos em constante diálogo
com o mundo, com as coisas; só precisamos estar com os canais perceptivos
atentos: prestar atenção. Às cores em nossa volta, à luz e às sombras, às
nuances do dia, seus diferenciais de temperatura; às texturas que nossa pele
experimenta, aos gostos provados... Nos permitir, também, à experiência de
modos novos de estar; por exemplo, andar descalço, engatinhar, rolar pelo chão e
ter o espaço de outra maneira; apreender o mundo de outra forma, dada a posição
do corpo que se modifica, em detrimento ao que lhe é solicitado pela nova
situação.
Estender os olhos – o sentido da visão - por toda a pele; depois, observar o
que ficou disso; qual o residual daquela experiência em nosso corpo e no que isso
pode repercutir em nossos atos. Eis a sugestão desta pesquisa, que nada mais é
que sua própria metodologia – e as inferências acima se construíram na
observação do resultado da própria poética que se fez surgir.
Concluo esta Dissertação - intensa etapa de tempo vivido - contendo no
corpo todos os experimentos que pude re-ter. Se os contenho no próprio corpo,
sou continente de um conteúdo mais amplo do que o mero conceito que a palavra
apresenta. O corpo é continente; significa que a experiência nele está, em estado
mais ou menos dormente; virtual. Todas as experiências e sensações guardadas
esperam o momento em que algo as possa solicitar [um objeto externo, ou uma
memória interior], e as faça vir à tona, para se atualizarem e funcionarem
novamente, como um dado do presente.
Foram gestos, movimentos, ações, espaços diferenciados, ambientações
várias, luz, alimentos diversos, adereços e a percepção de tudo isso, que tornou
possível que a palavra escrita se pronunciasse neste trabalho que, por ora,
concluo. O texto está na pele, as imagens estão nas palavras, mesmo que elas
não dêem conta de toda experiência.
111

Tomo a liberdade, no texto, de usar alguns recursos como o itálico, a prosa


e a própria poesia, de modo que possa me aproximar um pouco mais do que
quero dizer, em suas devidas ênfases. O que está transcrito é puro resultado de
memória que ficou inscrita na matéria. A memória tem vozes. As vozes da
memória podem parecer um eco tardio daquilo que se experimentou. Em um certo
sentido, até o são, mas, na linha de raciocínio que adoto, a partir de Bergson e
Merleau-Ponty, essa voz, se ouvida, é um dado do presente. E, quem comanda
essas vozes? Talvez seja a própria pele, atenta a tudo; talvez seja o olho, curioso
pela experiência da luz e da cor, talvez seja, ainda, o que alguns chamam de
alma. Não sabemos da residência dessas fronteiras e esse não saber nos leva ao
processo criativo da arte, como se quiséssemos adivinhar a origem, a gênese do
mundo e das coisas... Simbolicamente apresentado em algo singelo que
podemos, por ora, criar.
112

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americana debate com a performer iugoslava Marina Abramovic sobre a natureza da criação
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REVISTA SEMENSTRAL DO CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA DA


ARTE E ARQUITETURA NO BRASIL. Rio de Janeiro: PUC/RJ. nº 1; s/d. Artigo
consultado: KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. Tradução
Elizabeth Baez.
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CENTRO CULTURAL BANCO DO BRASIL – RIO DE JANEIRO. Catálogo da


Exposição CIRCUITO FECHADO: FILMES E VÍDEOS DE BRUCE NAUMAN
1967-2001. Rio de Janeiro, 2005.
As Informações que constam a respeito de Bruce Nauman, bem como os trechos de depoimentos
do artista foram colhidas no referido catálogo. Essas, por sua vez, foram traduzidas pelas
curadoras da Exposição, Lílian Tone e Nessia Leonzini, da seguinte bibliografia:
KRAYAK, Janet. (ed.) Please Pay Attention Please: Bruce Nauman’s Words. Cambrige e Londres:
MIT Press, 2003, p.188. Apud catálogo da exposição op. cit., p. 15.

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<http://www.officinadopensamento.com.br/arquivos/visuais/artigos/liberdade_margi
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<http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Beuys> Acesso em 15 de março de 2006.

<http://www.itaucultural.org.br> Acesso em fevereiro, março e abril de 2006.

DOCUMENTÁRIO

Robert Irwin. A Beleza das Questões. Produzido, dirigido e editado por Leonard
Feinstein, 1997 – Tradução e legendas DREI MARC. Rio de Janeiro, 1999.
118

ANEXO – PRODUÇÕES PRÓPRIAS


119
120
121
122
123
124

ANEXO F

(eu) Vim

Entrei carregando a mala pela mão esquerda; a caminhada era lenta, com pausas. O olhar
não era vago, mas, propositalmente, olhava sempre para outro lugar, diferente de onde meu corpo
se dirigia. Enquanto me deslocava para frente, olhava para a janela ao lado, que fazia esquina com
a porta, a qual eu havia arredado o painel preto enquanto percebia o ambiente... Lá fora, além da
chuva, havia algumas flores; elas foram um bom subterfúgio para que o olhar permanecesse
deslocado da ação corporal.
Certo é que estava confiando na percepção tátil para localizar a corda e o banquinho que
havia ao lado da escada... Não o havia retirado daquele lugar, resolvi incorporá-lo aos meus
objetos. Encontrei o banco com as pontas dos meus dedos dos pés – por isso a caminhada se
manteve lenta. Com a borda externa da perna direita percebi a circunferência de seu acento, até
chegar à posição que queria: meu corpo de frente para as janelas da frente; meu olhar em direção
à janela ao lado, mas muito além dela... Sentei e não larguei a mala. Achei a corda com o braço
direito e a peguei com a mão direita, levantei e segui para onde meu olhar estava, quase desde o
início. Estava com a corda enganchada no meu braço direito, à altura da articulação do cotovelo.
Segui em um deslocamento lateral, naquele rastro de luz que entrava pela janela lateral.
Aos poucos a mala começou a pesar, pois a estava segurando desde o início – imagino, pela
sensação dada no peso da mala, que o tempo cronológico transcorrido já ultrapassava cinco
minutos. Meu corpo assumia, aos poucos, uma posição de vetor, facilitada pela alavanca que a
corda me proporcionava. Meu ponto de apoio com a corda era o cotovelo; meu próprio peso
machucou a minha pele, pelo atrito da corda... Peguei-a com a mão novamente, quando quase caí,
num desequilíbrio dado pela posição de vetor. Presa pela mão, me detive nessa ação até quase
ficar na horizontal, quando, num só movimento, me soltei, junto com a mala, para o chão. O chão
frio e duro. Mas ele é assim apenas no primeiro momento da queda... Depois, com as trocas de
temperatura entre meu corpo – e as trocas de texturas, macio e quente me parece. Acho que muda
sua textura e sua temperatura, pois meu corpo lhe doa calor e o macio da pele e dos músculos
criam um acordo de sensações.
A mala ficou em pé e eu deitada. Rolando, levantei e me escorei nela. A reação fez com
que, mala e corpo, assumissem uma posição de vetor. Fiquei escorada nela por alguns instantes.
De volta a meu eixo vertical, sentada no chão, a mala perdeu o apoio de meu corpo e caiu.
Comecei a circundá-la, numa altura mediana, sem olhá-la. Circundava a mala e olhava para o
ambiente, num misto de presença-ausência... Achei-lhe o zíper e de tanto circundar, abri a mala.
Sentei novamente, de costas para o objeto maior que guardava os outros objetos – a mala. Com
125

os braços para trás, comecei a vasculhar o interior daquele armário ambulante. Pela textura
percebia, mais ou menos, o que minhas mãos seguravam. Mas havia texturas similares... O tato se
aguçava.
A primeira coisa que peguei de dentro da mala foi um lenço roxo. Com ele repeti um gesto
que havia feito sentada no banco, sem objeto algum nas mãos. É um gesto que guarda uma
história... Peguei o pano roxo e comecei a recolhê-lo, para que coubesse entre minhas mãos. Ele –
o pano – virou uma pequena ‘bola de pano roxo’. Amassou. Nesse momento soltei-o no meu colo,
tornei a pegá-lo e o coloquei na cabeça, de forma que tapasse todo o rosto também. Permaneci
com os olhos abertos, mas enxergava pouco... Levantei e comecei a caminhar, de costas: era uma
provocação múltipla; além de estar com o rosto encoberto, caminhava de costas e me dirigia aos
móveis e objetos do ambiente... Confiante em vários fatores, entre percepção tátil e espacial
momentânea e a lembrança do lugar como um todo, encontrei a estante onde estavam os pincéis e
as tintas. Ali fiquei por um tempo, tateando - com o corpo e os braços voltados para trás -, os
objetos da estante.
Voltei os braços à parte anterior de meu corpo e minhas mãos encontraram o lenço roxo.
Lentamente levantei-o até que descobrisse o rosto – e os olhos que havia fechado. O lenço caiu
para os ombros e abri meus olhos. Realizei um deslocamento em direção à mala e sentei de
costas para ela novamente. Repeti o procedimento da procura dos objetos, conforme descrevi
anteriormente: sem vê-los. Encontrei minha boneca de pano, feita pela minha mãe... A trouxe para
meu colo. Então a criança se voltará talvez para sua boneca. A boneca imita, dizem. É de fato a
34
imagem em miniatura de um corpo humano – o antropomorfismo por excelência.
Estava sentada, em uma diagonal para as janelas da frente, com as pernas estendidas e o
tronco ereto, formando um ângulo de 90°. Coloquei a boneca sentada ao meu lado, escorada pelas
costas no meu braço direito, na mesma posição em que me encontrava. Comecei a balançar meu
tronco para frente e para trás, depois o circundei em pequena e maior circunferência. Por causa de
meu braço atrás das costas da boneca, ela realizava os movimentos também, similares ou
idênticos aos meus. Após a realização de um grande círculo com o tronco, utilizando e
enfatizando-lhe o peso, caímos, eu e meu duplo – eu e a boneca... Ficamos, num ato solidário, um
tempo no chão frio e duro que, novamente, se tornava mais quente e macio, pelas trocas
estabelecidas.

Imagino, com efeito, que num momento ou noutro a criança não pode mais ver sua boneca,
como se diz, e que a maltrata até arrancar-lhe os olhos, abri-la e esvaziá-la... Através do quê
passará a olhá-la realmente desde seu âmago informe.35

34
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 (1ª
reimpressão 2005) p. 83.
35
IDEM.
126

Sentia a respiração um tanto ofegante; sentia meu abdome inflar e desinflar. Ouvia
meu próprio sopro. A posição se tornou desconfortável, o que me levou a rolar de lado e sentar.
Mas, a boneca permaneceu inerte, no chão frio, sem o calor necessário para torná-lo quente ou
macio. Como um retorno ao mesmo lugar, me aproximei novamente da mala, sentada, de costas
para ela. Nesse momento encontro, dentro da mala, outro objeto: uma caixinha de madeira – um
ícone pequeno dentro do ícone maior. Sem olhar para ela, olhando em diagonal para o chão, à
minha esquerda, achei o gancho, abri e encontrei dois colares, de contas que imitam pérolas.
Manuseei os colares e isso fez com que produzissem sons, pelas próprias contas em contato, ou
ao voltarem à caixinha. O som me agradou, por isso continuei por mais algum tempo... Fechei a
caixinha e a coloquei no chão, cobri-a com o pano roxo, que estava perto da boneca, estendida no
chão. Cobri a caixa da mesma maneira que cobrira meu rosto, um pouco antes, com o pano roxo –
simbologia do inerte, do oculto, do não mais necessário ou utilizável... O duplo estava dado em
cada objeto escolhido. Nesse momento tocou meu celular... O acaso veio na hora certa! A música
digitalizada que tocava insistente foi incorporada ao meu gesto; por um momento pareceu que foi
determinado, mas não foi. O puro acaso - e a atenção necessária que lhe deve ser dada no
momento da performance -, que se pronunciava. O inusitado do instante presente é um dos fatores
que justifica o intenso estado de atenção a que me imponho – ou que se impõe a mim, no ato da
performance.
Estava ajoelhada, sentada em meus calcanhares, em diagonal para frente, à minha
esquerda. A música do celular ainda tocava... Nesse momento tapei meu ouvido direito com a mão
direita e a boca com a mão esquerda; a mão direita escorregou para os olhos e a mão esquerda
saiu da boca passando a exercer a função de uma espécie de sensor, ou bengala, pois não
enxergava absolutamente nada... Todo corpo entrava em substituição aos olhos – tato e audição
me faziam ver... Com os meus pés, ao caminhar lentamente, pude achar a corda que estava no
chão. Sabia onde a corda iria dar, então, resolvi segui-la – na incerteza, sempre retornamos ao
lugar de origem. A corda estava no chão, mas a ausência do meu sentido da visão me fornecia a
impressão de que estava em uma corda suspensa e bamba. Senti-me um funâmbulo, numa corda
alta... A sensação de desequilíbrio era intrigante; tive de tomar cuidado para não cair – e nem
abandonar a tarefa de percorrer a corda até o fim... No fim da corda encontrei o banco. Sentei,
destapei meus olhos e, enfim, olhei para frente. Em seguida olhei para os objetos e realmente os
vi, por um instante breve, que anunciou o final daquela performance. Ver é sempre uma operação
de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta.36

36
IDEM, p. 77. [Didi-huberman]
127
128

ANEXOS – ARTISTAS REFERENCIAIS


129
130
131

ANEXO J

Marina Abramovic

Nude with skeleton, 2002-2005

Barroco Balcânico
Bienal de Veneza, 1997.
132

ANEXO L

Vito Acconci

Trademarks, 1970

Shadow Play, 1970

Conversions (Part II), 1971


133

ANEXO M

Merce Cunningham

Merce Cunningham Dance Company

Merce Cunningham
Na década de 1950.
134

ANEXO N

DVD146 – Imagens dos trabalhos práticos

Capítulo 1: Esquizo-soma, 2003-2004. (Fragmento).


Capítulo 2: Amanhã, ou depois deixe sua pele ver o pôr-do-sol, 2005. (Fragmento).
Capítulo 3: A performance do apartamento, 2005. (Fragmento).
Capítulo 4: Você tem duas escápulas, 2006. (Duração: 10 minutos).
Capítulo 5: Daquilo que se esvai, 2006. (Duração: 5 minutos).

146
Edição de imagens: dos capítulos 1, 2 e 3, Carlos Brendler; 4 e 5 Paula Krause. Edição final: Paula Krause. Câmera:
Laércio Sulczinski, com exceção do capítulo 2, por Diogo Kronbauer.

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