O Corpo - Fenomeno e Manifestação
O Corpo - Fenomeno e Manifestação
O Corpo - Fenomeno e Manifestação
INSTITUTO DE ARTES
POÉTICAS VISUAIS
Luciana Paludo
Corpo,
fenômeno e manifestação:
perfomance
Porto Alegre
2006
1
Luciana Paludo
Corpo,
fenômeno e manifestação:
performance
Porto Alegre
2006
2
Corpo,
fenômeno e manifestação:
performance
Elaborada por
Luciana Paludo
Comissão Examinadora
Profª Drª: Maria Carolina dos Santos Rocha ________ /Dptº. Filosofia UFRGS.
PARA:
AGRADECIMENTOS
- Aos membros da banca, pelo interesse que demonstraram por minha pesquisa,
ao aceitarem o convite para esta interlocução.
- Aos queridos amigos artistas, colegas da inesquecível turma 12, pelas longas
horas coletivas de reflexão, criação, diversão e arte.
- Meus alunos, pela paciência de me esperar terminar este Mestrado, para que
pudesse lhes dar mais atenção.
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
RESUMO ................................................................................................................ 6
ABSTRACT ........................................................................................................... 7
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11
REFERÊNCIAS ...................................................................................................112
LISTA DE ANEXOS
INTRODUÇÃO
Bruce Nauman, com suas questões inspiradas em problemas de dança, tais como
resistência e equilíbrio, também foram significativos para a composição da
presente reflexão.
Quanto aos autores que conferem suporte teórico à pesquisa, cito Rosalind
Krauss, Sally Bannes e Jorge Glusberg para as questões específicas da
performance. Maurice Merleau-Ponty para a compreensão dos fenômenos da
percepção. Para os conceitos de memória, foi através de Merleau-Ponty que se
chegou a Henri Bergson, principalmente a seus livros Matéria e Memória e A
evolução criadora. Georges Didi-Huberman, em O que vemos, o que nos olha,
respalda esta pesquisa principalmente na fase em que trazia objetos de minhas
gavetas para as performances. Nesse sentido, há uma poética do espaço: dos
cofres, armários e espaços íntimos – que são, também, depositários de memórias.
Gaston Bachelard também é guia, nesse sentido, em A poética do espaço.
É relevante que se traga ao texto, neste início, uma elucidação quanto aos
termos fenômeno e manifestação, sendo que são palavras-chave do título desta
pesquisa, irmanadas com o corpo e a performance. De acordo com Heidegger1,
fenômenos nunca são manifestações, toda manifestação é que depende de um
1
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis. Vozes, 2005. p. 59.
13
2
Em paráfrase à idéia apresentada por Heidegger, in Ser e Tempo. Op. cit., p. 59 e 60.
14
3
No capítulo 4 e 5 do DVD, os dois trabalhos que foram realizados, dessa série, encontram-se na
íntegra.
15
4
SERRES, Michel. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2001; p. 18.
16
5
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 228.
17
6
Doutora em Artes e Ciência das Artes – Paris I – Sorbone. Professora adjunta do Departamento
de Artes Visuais da Universidade de Brasília. Artista visual e performática.
20
- solo ou em grupo;
- com luz, música ou efeitos visuais feitos pelo artista ou em colaboração;
- performadas em galerias, museus ou espaços alternativos;
- raramente seguiria uma narrativa (porém seguiria um script);
- composta de uma série de gestos íntimos ou em teatros de grande
7
MEDEIROS, Maria Beatriz. Bordas Rarefeitas da Linguagem Artística Performance: Suas
Possibilidades em Meios Tecnológicos. 1. ed. BRASILIA: UnB, 2000, p. 32.
8
SCHECHNER, Richard. Performance teoria y prácticas interculturales. Buenos Aires: Libros del
Rojas – Universidade de Buenos Aires, 2000; p. 13. (tradução própria para o português).
9
Em Bordas Rarefeitas da Linguagem Artística Performance: Suas Possibilidades em Meios
Tecnológicos. Op. cit. p. 37.
21
escala visual;
- durar alguns minutos ou muitas horas;
- espontânea e improvisada ou repetida muitas vezes;
- o performer seria o artista. Sua presença seria o elemento
10
diferenciador das outras técnicas artísticas.
Para que seja possível uma reflexão sobre arte – qualquer forma de arte –
é necessário que se tenha um pensamento a respeito da arte. Este
pensamento, porém, de maneira alguma é um pensamento acabado, ou pronto.
Olhar a história, entender o que foi feito e em que contexto emergiu, se torna
uma das maneiras possíveis de melhor compreender o que, hoje, podemos
criar.
10
RoseLee Goldberg. Performance art. From futurism to the present. Cingapura: Thames and
Hudson, 1995, p. 96. apud Maria Beatriz de Medeiros. Op. cit. p. 37.
11
Estruturalista russo, do Círculo Lingüístico de Praga.
22
(...) há sempre numa obra artística qualquer coisa que a une ao passado e
qualquer coisa que aponta o futuro. Em geral, as tarefas são partilhadas
entre diversos grupos componentes, dos quais uns conservam a norma e
12
outros a desintegram.
(...) o artista forja em parte seu instrumento todas as vezes que realiza uma
obra. A cada feita, ele inventa os termos e a relação dos elementos
simultaneamente. Essa relação se manifesta no confronto espacial dos
12
MUKAROVSKY, Jan. Escritos sobre estética e semiótica da arte. Lisboa: Estampa, 1997. p. 47.
13
FRANKASTEL, Pierre. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1993; p. 114-115.
14
IDEM, p. 115.
15
Jan Mukarovsky, op. cit., p. 137-138.
23
16
Pierre Frankastel, op. cit., p. 117.
17
Citação retirada da revista chamada GÁVEA nº 1; p.87, no texto “A escultura no campo
ampliado”, (vide referências bibliográficas) Publicado originalmente em The Anti- Aesthetic –
Essays on PostModern Culture. Washington, Bay Press, 1984. Título Original: Sculpture in the
Expanded Field. – Tradução de Elizabeth Carbone Baez. p. 92.
18
IDEM, IBIDEM.
24
Yvonne Rainer, com seus gestos cotidianos repensava o que podia ser
chamado de dança, o que, aliás, Nijinski já havia feito muito antes, em
Sagração da Primavera e A Tarde de um Fauno, onde, num ato de profundo
envolvimento com sua atuação, chega a se masturbar em cena, deixando o
público chocado, irado e estarrecido. Vito Acconci, anos depois adere a essa
prática em uma de suas obras.
19
KRAUSS, Rosalind. La originalidad de la Vanguardia y otros mitos modernos. Madri: Alianza
Editorial, 1996; p. 302. (Tradução própria).
25
– com um pensamento estético similar. Não que isso não acontecesse anterior
à década de 1960, mas, foi a época de tornar, esta, uma questão para o campo
da arte. Uma questão que se repercute aos dias atuais, nas diversas
configurações que podemos criar e na liberdade de escolhas dos meios e
técnicas utilizados para isso.
Tomemos isso como uma questão de tempo; ritmo é tempo. Pode-se dizer
que a arte, inicialmente, interfere no ritmo corporal de quem faz a obra e, num
segundo momento, de quem olha um trabalho feito, ou a ser feito, como o caso
das artes que acontecem em tempo-espaço real. A música (quando executada
ao vivo), a dança, a arte da performance e o teatro são exemplos de
26
20
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 55.
21
IDEM, p.18.
22
GLUSBERG, J. op. cit., p. 20.
28
Cage teria distribuído uma espécie de partitura para cada um deles, dando-
lhes as indicações dos momentos que deveriam agir, ficar em silêncio, ou
aquietar-se; sem, contudo, dar-lhes instruções do que, ou como fazer. Cage
realizou um “concerto” multimídia entre as artes que se propôs a reunir. A
repercussão desse acontecimento foi tão expressiva que os pressupostos
inaugurados por Untitled Event foram notados não somente nos Estados Unidos,
27
IDEM, p,23.
28
ID. IBIDEM.
30
29
GLUSBERG, J. Op. cit., p. 26.
30
IDEM, p. 27.
31
31
Apud GLUSBERG, J. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 31.
32
GLUSBERG, Jorge. A arte da performance. Op. cit.; p. 37.
32
33
GLUSBERG, J. Op. cit., p. 16.
34
GLUSBERG, J. A arte da performance. Op. cit., p. 16.
33
Para a dança, que mais tarde seria considerada Moderna, o final do século
XIX e início do século XX é um marco importante; extensivo este marco para a
arte e o corpo na arte. Época das ações da norte-americana Loie Füller (1862-
1928); atriz e dançarina, em suas performances utilizava luz elétrica e tecidos, o
que gerava efeitos de cores, resultando em uma configuração visual inédita até
então. O efeito de sombras e nuances diferenciadas, dadas pelo uso de adereços
e movimentos de Füller, veio respaldado pelo advento da luz elétrica e pela
liberdade que começava a se delinear para a criação no campo da arte; também
pelas primeiras conquistas significativas para a liberdade de ação das mulheres. A
historiadora Saly Bannes nos conta mais, a respeito de Füller:
35
IDEM, p. 17.
36
BANES, Sally. Terpsichore in sneakers. Boston: Houghton Mifflin, 1980. p. 2, Introdução.
Tradução própria.
34
Questões que Füller havia abordado em seus trabalhos foram as que deram a
base estrutural para a dança que surgiria da geração pós Segunda Guerra
Mundial. Banes enumera características da arte de Füller que estariam presentes
na dança pós-moderna.
38
Pierre Frankastel, op. cit., p. 103.
36
39
NETO, J. Teixeira Coelho. Moderno Pós Moderno.São Paulo: Iluminuras, 2001; p. 83.
40
IDEM, IBIDEM.
38
41
BANES, Sally. Greenwich Village 1963 – Avant-Garde, Performance e o Corpo Efervescente. Rio
de Janeiro, 1999. p. 19.
42
IDEM, p. 20.
43
IDEM, p. 13-14.
40
44
BANES, Sally. Op. cit., p.14.
45
IDEM, p. 22.
46
FOSTER, Hal. Recodificação; arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial
Paulista, 1996; p. 40.
47
IDEM, p. 41.
48
IDEM, p. 47.
49
IDEM, p. 48.
41
50
ID. IBIDEM.
51
Informações pesquisadas no site <http://pt.wikipedia.org/wiki/Joseph_Beuys> e no livro A
performance como linguagem, de Renato Cohen. São Paulo: Perspectiva, 2002.
42
52
Fontes de pesquisa: <http://www.itaucultural.org.br> e SACCÁ, Lucilla. Corpo como experimento.
<http://www.memorial.sp.gov.br/revistaNossaAmerica/23/port/26>
53
IDEM.
54
Referência retirada do artigo Liberdade Marginal, de Almandrade. No site:
<http://www.officinadopensamento.com.br/arquivos/visuais/artigos/liberdade_marginal_almandrade
.htm>
43
Rex, criado em São Paulo, por Duke Lee (1931), Nelson Leirner (1932), Carlos
Fajardo (1941), José Resende (1945), (...), realiza uma série de happenings.55
O conjunto das reflexões que se trouxe até esta parte da pesquisa, entre
atitudes, conceitos e novas maneiras de elaborar tempo, espaço, arte e corpo, foi
para poder refletir melhor sobre a questão deste estudo: o corpo na performance.
O que pode este corpo nessa arte? O que pode ser feito em uma performance?
Como delinear uma tendência, uma norma, um cânone formal ou estético? A
performance surgiu na ebulição desses experimentos, dessas transformações
sociais; surgiu para consolidar a relação estreita entre arte e vida. Percebe-se que
a questão da configuração estética na performance possui a tendência de se
reinventar a cada obra feita, a cada modo dos distintos artistas lidar com o corpo,
com o espaço e o tempo; está no que surge e emerge. É a natureza própria da
efemeridade.
55
<http://www.itaucultural.org.br> Enciclopédia Artes Visuais – performance.
44
56
<http://www.itaucultural.org.br> – Enciclopédia Artes Visuais – Performance.
57
GLUSBERG, J. A arte da performance. Op. cit., p. 43.
58
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
59
PALUDO, Luciana. Arte, um bem simbólico. <http://www.idanca> – Maio, 2005.
45
discussões no campo da arte como um todo. Nesse todo, a maneira que o corpo
se posicionou nas artes visuais se transformou: saiu, através das proposições e
atitudes dos corpos, da representação da tela, ou da metáfora das partes, para vir
à obra, na performance – vivo, em tempo e espaço real, na apresentação de sua
totalidade.
60
Emmanuel Carneiro Leão – na introdução de Ser e Tempo – parte I, de Martin Heidegger. São
Paulo: Vozes, 2005. p. 16 – 15ª ed.
47
61
SERRES, Michel. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil; p. 181.
48
Que teu corpo não se torne estátua nem túmulo, cadáver antes da
agonia, morte antes de morrer; evita qualquer anestesia (...); toma cuidado
com o torpedo ou torpor de língua e de filosofia; foge das culturas de
proibição. A sabedoria emana do corpo: o mundo dá a sapiência, e os
62
sentidos a recebem, respeita o dado gracioso, acolhe o dom.
62
SERRES, Michel. Os cinco sentidos – filosofia dos corpos misturados. Op. cit., p. 203.
49
Nas artes plásticas, entre o século XV até o final do século XIX o corpo
aparece representado nas obras; pode aparecer, também, como vestígio, como
marca de um corpo que esteve ali, realizando a obra. Um gesto específico em
63
Gil, José. Metamorforses do Corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1997; p. 130.
50
uma escultura, em uma pintura pode ser o indício da mão do artista, de sua
ação corporal ao fazer a obra. No século XX, o corpo passa a ser apresentado
de outras maneiras; pensemos nas pinturas de Pablo Picasso e nas
manifestações performáticas, quando o corpo do artista passa a vir para a obra,
fazendo parte de sua estrutura, ou, ainda, participando ativamente da
composição – no caso de Pollock, na sua action paiting. Pode-se dizer que o
corpo sai da representação, ou do vestígio de um traço; tem a possibilidade de
não ser mais um índice apenas, ou uma imagem. É em tempo, espaço e
presença, elemento que dá forma e constitui as novas propostas das artes
visuais, como a body art, os happenings e a própria performance.
64
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002; p. 66.
51
65
Leonardo da Vinci em Traité de la peinture. Cap. XII, “De la Figure”, § 351. Apud Gil, José.
Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio d’água, 1997; p. 132.
66
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra – um livro para todos e para ninguém. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1977; p. 297.
52
67
IDEM, p. 296.
68
IDEM, IBIDEM.
69
NIETZSCHE, Friedrich W. Assim Falou Zaratustra. Op. cit. p. 296.
53
70
In Janet Kraynak (ed.) Please Pay Attention Please: Bruce Nauman’s Words. Cambrige e
Londres: MIT Press, 2003, p.188. Apud catálogo da exposição, p. 15.
71
Referenciam colhida no texto de Lílian Tone; catálogo da exposição Circuito Fechado de Vídeos
e Filmes Bruce Nauman – vide referências.
72
IDEM, em afirmação do próprio artista.
55
73
O pensamento desenvolvido acerca da imagem do corpo, no sentido exposto, encontra respaldo
na obra de Paul Shilder A Imagem do Corpo – As energias constitutivas da psique. Vide
referências.
56
74
Tradução livre para informações contidas no site do Guggenheim Museum – vide referências.
57
Vito Acconci também é referência, pela sua irreverência, pela maneira com
que trata o seu material corpo. Despojado de maiores pudores, torna relativo
alguns significados pré-estabelecidos, em relação aos discursos do corpo. Por
exemplo, numa série de filmes feitos em Super-8, entre 1969 e 1974, onde registra
seus desempenhos performáticos, usa e manipula seu corpo de forma intensa.
Apesar de as configurações de seus trabalhos não terem relação aparente para
com os trabalhos que proponho, assinalo a forma com que Acconci se
disponibiliza ser e estar, na realização de suas performances e na utilização de
seu próprio corpo (vide ilustrações no ANEXO L). Talvez, nos dois trabalhos
próprios da série Sulcos na Carne, haja uma aproximação estética com os
trabalhos de Acconci, mas isso ainda não está totalmente claro em minha reflexão,
acerca da própria produção.
75
Folha de São Paulo – Caderno Mais! Domingo, 17 de agosto de 2003; p. 5.
76
IDEM.
58
performance que realizo. Enfatizo outro fator que gera identificação e aproximação
com os artistas que cito: suas inserções no campo da arte. Não ficam eles restritos
a um grupo, a um meio ou a técnicas específicas; trabalham em colaboração com
pares contemporâneos que se inquietam pelas mesmas questões e experimentam
possibilidades variadas de realização de suas idéias.
78
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 (1ª
reimpressão 2005); p. 151.
61
79
Procedimento que consiste em utilizar imagens mentais para a melhoria do padrão de
movimento; estudado e cunhado por Mabel Todd e, posteriormente, por sua discípula Lulu
Sweigard, nos meados do século XX. Todd deixou os registros de sua pesquisa no livro The
Thinking Body – vide referências.
80
Entre os anos de 1987 e 1991 fiz a graduação (Bacharelado e Licenciatura) no Curso Superior
de Dança, PUC-PR e Fundação Teatro Guaíra, em Curituba – PR.
62
Nesse sentido, digo que meu corpo é uma amostra de história ambulante,
uma vez que trava uma dialética com o passado, todos os dias, através das
técnicas e preceitos estéticos já constituídos. Ao mesmo tempo, esses preceitos
se redimensionam, em acordo às próprias compreensões, ressurgindo nas
maneiras peculiares com que desenvolvo ações e movimentos. É esse corpo que
está em minhas performances.
81
NETO, J. Teixeira Coelho. Moderno Pós Moderno.São Paulo: Iluminuras, 2001; p.27.
82
Os pressupostos de seus ensinamentos se encontram detalhados no livro Consciência pelo
movimento. Vide referências.
83
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004; p. 56.
63
Equação.
Estado de mutação:
Constante,
Experimento contínuo.
Incerto,
Veloz.
Meu corpo assume o risco.
Tudo que se forma parece poesia?
Às vezes palavra, por outras, corpo...
De repente... Corpo e palavra!
Imagem.
Formas contíguas do pensamento.
Apenas isso, nada mais.
Sobreposição dos modos de ser; modo de ser.
Reunião.
É interessante reunir:
Estar atento às demandas da vontade
Não terceirizar o que emerge.
Reunir é estar presente,
Se não em ato, pelo menos em palavra...
64
84
Em Metamorfoses do corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997. p. 117-118.
65
85
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 168.
66
86
BERGSON, Henri. Op. cit., p. 163.
87
IDEM, IBIDEM.
67
espécie de lembrança que justamente porque a terei tornado ativa que ela irá se
tornar atual, isto é, sensação capaz de provocar movimentos.88 Penso isso em
relação à dinâmica entre meu corpo e os objetos – e o que essa dinâmica
determina na ação. Metáforas, metonímias ou simples materializações, esses
objetos são um modo de tornar atual algo que está alhures, e não no conceito de
passado – como algo morto. Primeiramente os objetos ocupam um status de
lembranças puras (na gaveta ou na mala), no momento da performance adquirem,
ou, passam à categoria de detonadores de sensações atuais, que determinam e
interferem nos padrões de movimento e ímpetos das ações realizadas.
A forma com que usei os objetos durante a ação teve o acaso como fator
determinante; para retirar os objetos da mala, arbitrei que jamais olharia para o
que estaria pegando. Pelos dados da percepção tátil, os objetos seriam acolhidos,
um de cada vez, sem um número determinado, porém. Na mala havia um lenço
roxo, um vestido vermelho, uma caixa de madeira com colares imitando pérola,
um vestido azul, uma boneca de pano e outras quinquilharias que fazem parte de
minhas lembranças.
Para pinçar os objetos da mala já aberta, me posicionava de costas e
tateava; portanto, não via os objetos para escolhê-los. O que veio primeiro foi o
lenço roxo, depois de algumas ações com tal objeto, voltei à mala e repeti o
procedimento mais duas vezes; respectivamente pincei a boneca de pano e a
caixa com os colares. O tato guarda propriedades de remontar o objeto em
imagem na nossa mente; pelas texturas e formas, tinha uma idéia bem
aproximada do que estava manuseando.
A seqüência de objetos pegos foi o que determinou o roteiro que se
estabeleceu na ação. A natureza dos objetos escolhidos fez com que as ações se
diferenciassem, em termos de força, tempo e espaço ocupado. Não foi uma
performance linear, pois que, as diferenças dos objetos manuseados, bem como o
que desencadearam em meu comportamento fez com que a ação tivesse
momentos de profunda calma, extrema velocidade, pausas, quedas e suspensões
do corpo.
88
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Op. cit., p. 163.
68
Lidar com esses elementos-objetos é reascender coisas que não mais são
ou estão, aparentemente. Num sentido mais amplo, é sabido que, se estivermos
atentos ao espaço que nos circunda, qualquer objeto interferirá em nosso modo de
estar naquele ambiente. Caso não haja atenção a isso, creio que nossa relação
para com a vida em si ficará deveras defasada. Quanto maior o estado de atenção
89
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 (1ª
reimpressão 2005) p. 29.
90
IDEM, p. 33.
69
dispensado ao que, por ora, nos circunda - e o que isso determina em nossas
sensações e percepções, mais o esquema corporal se afina com o mundo. Talvez
seja uma das vias para estreitar a relação entre sujeito e objeto. Numa razão
dialética, não hierárquica.
Bergson nos diz que os objetos situados em torno de nós representam, em
graus diferentes, uma ação que podemos realizar sobre as coisas ou que iremos
sofrer delas.91 O que dizer quando se trata de objetos que estão em nossas
gavetas? O que mais há em nossas gavetas, além dos objetos? Há a imensidão...
Bachelard nos fala sobre isso: A imensidão está em nós. Está ligada a uma
espécie de expansão de ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que
retorna na solidão.92 Em (eu) Vim, apesar da presença do espectador, estive na
solidão, a realizar a performance; mas os objetos tornaram relativa tal sensação.
91
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 168.
92
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Marins Fontes, 2000. p. 190.
70
Seja como for, o homem da crença verá sempre alguma outra coisa
naquilo que vê, (...). Uma grande construção fantasmática e consoladora
faz abrir seu olhar, como se abriria a cauda de um pavão, para liberar o
93
leque de um mundo estético (sublime ou temível) e também temporal (...).
93
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Op. cit., p. 48.
71
94
DUBOIS, J. et al. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 2001; p. 411.
95
IDEM, p. 412.
72
maior do que ele próprio, enquanto coisa. Ao mesmo tempo, pode se estabelecer
enquanto coisa, sendo um significante flutuante e não determinado a priori. Talvez
ele seja um dado a priori para mim, no ato da performance, pois, mais ou menos,
posso intuir a razão de ele estar ali. Mas, também é coisa, uma vez que, a cada
vez que estiver diante a um objeto, por mais carregado de semântica que esse
possa vir a ser, é sempre um ato diferenciado – o que nos leva a pensar nos
fatores temporais e espaciais. Um mesmo objeto, deslocado de seu espaço usual,
ou em outra circunstância temporal, já é outro objeto.
96
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 149.
73
(...) reter é ter, mas à distância. Mais uma vez, a “síntese” do tempo é uma
síntese de transição, ela é o movimento de uma vida que se desdobra, e
não há outra maneira de efetuá-la senão viver essa vida, não há lugar do
99
tempo, é o próprio tempo que se conduz e torna a se lançar.
97
Grünbaum, Aphasie und Motorik, p. 395. Apud MERLEAU-PONTY, M. in Fenomenologia da
Percepção. Op. cit.; p. 146.
98
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. Op. cit.; p. 145.
99
IDEM, p. 567.
74
menos que o momento presente, se você entender por isso esse limite
indivisível que separa o passado do futuro. Quando pensamos esse
presente como devendo ser, ele ainda não é; quando o pensamos como
100
existindo, ele já passou.
100
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999; p. 175.
101
IDEM; p. 175-176
75
102
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004. p. 138.
76
103
O trabalho Semelhanças foi composto nos anos de 2002 e 2003; ganhou um prêmio de
incentivo a novos criadores, no Congresso Nacional de Dança, em 2004. O prêmio proporcionou
uma orientação de um outro coreógrafo, o que redimensionou o trabalho em sua forma e
aparência.
77
Se uma imagem presente não faz pensar numa imagem ausente, se uma
imagem ocasional não determina uma prodigalidade de imagens aberrantes, uma
explosão de imagens, não há imaginação.104 Quando iniciei as investigações,
tendo por base de composição e atuação a memória – o passado -, tal
procedimento me deixava perplexa e instigava a imaginação e criação. Era uma
sensação estranha de, mesmo estando sozinha, poder estar acompanhada de
muitas pessoas e ouvir suas vozes... Um procedimento irônico, pois nesse
“desenterrar” das coisas há uma questão de domínio dos fatos do passado, como
se dissesse: assumo esta fatalidade, de mostrar o que se forma, de ser assim, de
carregar essas referências e ser uma amostra do meu próprio passado... Ao
mesmo tempo, poder interferir nisso - uma vez que posso detectar, posso
interferir. Ao realizar esquizo-soma foi como dizer: que venham esses fantasmas!
Que venham e dialoguem comigo novamente, até para que eu possa exorcizá-los.
Assim foi inaugurada uma série de trabalhos que teria relação assumida com as
referências técnicas e estéticas de meu passado.
Se hoje temos determinada configuração é porque somos formados de
parcelas; porque guardamos em nosso corpo, em virtualidade, situações vividas. E
essas situações retornam, com ou sem o devido consentimento, para o presente
de nossas ações. Como referencial teórico condutor desse raciocínio, cito os
pressupostos escritos por Henri Bergson, Maurice Merleau-Ponty e Georges Didi-
Huberman, nas respectivas obras estudadas para o presente estudo.
Em janeiro de 2005, para o encerramento da disciplina Experimentum
Mundi: Utopia, Arte e Psicanálise, foi realizado um Seminário – que aconteceu
durante o Fórum Social Mundial. Naquele momento, essa atenção ao passado e o
que a imaginação poderia trabalhar a partir disso – tema deste capítulo – estava
acontecendo de forma intensa em meu ser. Estava completamente envolvida em
práticas e conceitos que apontavam para isso. Da mesma maneira, percebia que a
atenção se intensificava às percepções imediatas de meu presente... Os canais
104
BACHELARD, Gaston. O ar e os sonhos – Ensaio sobre a imaginação do movimento. São
Paulo: Martins Fontes, 2001; p. 1.
78
105
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004. p. 28-29.
80
analisar o que surgia nos trabalhos que compunha e, também, para compreender
a constituição de seu material primordial, o corpo.
Foram muitos os conceitos estudados no sentido de compreender o
material corpo; sentia meu próprio corpo esfacelado, em camadas... Ao mesmo
tempo percebia que estava cada vez mais preparada para lidar com esse material,
neste modo particular escolhido de seguir as determinações da lei fundamental da
vida, que é uma lei de ação e movimento.
Corpo operado
Operante
Distante
Equacionado
Bem de perto
Quase longe
Recortado
Quase todo
Reunido
Quase sempre
Aqui
Ainda aqui,
Assim.
106
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio da Relação do Corpo com o Espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999. p. 162.
107
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001. p. 143-160.
82
108
IDEM, p. 151.
109
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água, 1997; p. 88.
110
IDEM.
111
IBIDEM.
83
... Nada que seja tão íntimo ou pessoal, pois se almeja algo que parta do sujeito e
escoe para o objeto. Para outros sujeitos; para o que circunda e desestabiliza o
corpo, em contradição constante ao equilíbrio e ao tédio.
Das imagens vistas por um olho interno, quase onisciente, que muito mais
disse da percepção fenomenológica do corpo do que das questões formais e
estéticas do trabalho, o relato se constituiu. Michel Foucault nos fala dessas
transposições... Limitando e filtrando o visível, a estrutura lhe permite transcrever-
se na linguagem. Por ela, a visibilidade (...) passa por inteiro para o discurso que a
recolhe.114 Recolhi a experiência num discurso resultante do meu pensamento.
112
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000; p. 91.
113
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 44.
114
IDEM; p. 185. Nessa parte do livro, Foucault cita Lineu (Philosophie botanique, § 331). Ele
enfatiza que Lineu restituía a própria planta ao olhar, através das palavras, pois queria que a
ordem da descrição, sua repartição em parágrafos, reproduzisse a figura da planta.
84
115
FOUCAULT, Michel. Op. cit.; p. 107.
116
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004; p. 92.
85
117
O evento aconteceu no dia sete de julho de 2005.
86
118
BACHELARD, Gaston. A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000; p. 206.
119
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 149.
120
BACHELARD, G.Op. cit.; p. 221.
87
Não é preciso que os gestos se repitam muitas vezes para que o corpo
se aproprie deles e se torne bailarino ou sapateiro. Encadeamentos de
posturas complicadas incorporam-se tão facilmente em seus músculos,
ossos e articulações que simplesmente desaparecem esquecidos na
memória dessa complexidade. Sem saber como, ele reproduz
posteriormente essas seqüências de posições mais rapidamente do que
assimila; o corpo imita, armazena e lembra. Quem pode computar o
121
enorme tesouro de posturas que ele traz consigo?
121
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004; p. 75-76.
88
122
Em referência ao texto O NARRADOR – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas - Volume I. São Paulo: Brasiliense, 1994; p. 201.
90
123
BENJAMIN, W. Op. cit.; p. 198.
124
IDEM.
91
Ela tem sempre em si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária.
Essa utilidade pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa
sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida – de
125
qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos.
125
BENJAMIN, W. Op. cit.; p. 200.
126
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004; p. 91.
92
127
Refiro-me à dança que tem por base a educação somática; que, antes de qualquer
desenvolvimento estético, prima por despertar a consciência de ser-estar no mundo - no indivíduo
que a realiza. A essa consciência agrega-se noção articular, sensorial, motora; noções espaciais,
do peso do corpo e da velocidade de seu movimento; trabalho respiratório e conhecimento da
anatomia e fisiologia do corpo.
93
128
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004; p. 32-33.
94
129
Merleau-Ponty, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003; p. 145-146.
96
podemos ter uma imagem vaga de nossas escápulas; podemos tomar por
referência as escápulas de outras pessoas, para remontar em nosso esquema
corporal, o que temos na parte de trás de nossas costas. Essa imagem também
instiga à pergunta: quantas coisas mais não estão visíveis aos nossos olhos, de
nosso próprio corpo? Uma imagem-metáfora, no pleno exercício da poética
relativa a essa figura.
Então, a par da forma e do pensamento que proponho, em relação a este
trabalho, esse corpo, em seu coeficiente fenomenológico, simplesmente se propõe
a realizar tarefas de movimentar as escápulas para cima, para baixo, para fora e
para dentro (oposições binárias), numa transmissão de experiência que, se for
analisada do ponto de vista puramente tautológico, quer apenas mostrar o que
podem fazer duas escápulas, além de estarem escondidas às nossas costas.
130
A clavícula é um osso longo e achatado, em forma de ~; se interpõe transversalmente como um
arco que apóia sua extremidade interna no manúbio do esterno e a externa na escápula. A
escápula, por sua vez, é um osso largo e triangular; sua face anterior é lisa e fica em contato com a
parte posterior do tórax (de cujo esqueleto está separada, por dois planos musculares). Sua face
posterior está dividida e duas zonas desiguais por uma crista óssea. O ângulo anterior está
ocupado por uma cavidade articular para o úmero, onde se inserem importantes músculos que
darão movimento aos braços.
98
Não lido com a representação pictórica, mas a luz gera forte influência
sobre minha poética e sobre a estética que se faz surgir. O corpo na performance
é elemento plástico, o que estabelece uma relação com a arquitetura e a
escultura, pois que sua presença interfere no espaço e nas percepções alheias.
Com a incidência da luz, o corpo gera sombras – e a sombra entra, também como
elemento estético. Uma via dupla se estabelece, entre a ação do corpo e o olho do
receptor. Sendo assim, percebo que...
Sou uma gravura efêmera
Sólido-rarefeito
Sujeito
131
BARROS, Anna. A arte da percepção – um namoro entre a luz e o espaço. São Paulo:
Annablume, 1999; p. 35.
132
Robert Irwin, 1997.
101
Quase objeto
Quase coisa
Disposto a ser...
Tudo que vejo e experimento
Pela pele
Pelo olho
Por todos os orifícios.
Meu corpo se estende até o limiar do corpo de outrem... Pelo olho, sim, pelo
olho...
É assim que se traduz.
possibilidades do meu corpo deve ser exercitada todos os dias, pois é esse o
material no qual deverei confiar nos momentos em que estiver performando. O
que pode um corpo? Exatamente, ou, aproximadamente. Quero-o disponível e
flexível; alongado, numa idéia que pode ser transferida ao modo que penso ser –
ou quero ser. Michel Serres nos diz: Sem essa margem a mais de alongamento,
quem poderia dançar, que iogue teria a possibilidade de meditar? A destreza
manual no trabalho ou na arte necessita desse alongamento. Alongar-se é próprio
do homem e continua a ser sua pretensão.133
Mas, tudo isso tem medida e limite – e lidar com o limite é parte da própria
natureza da performance134. As averiguações diárias, talvez, se estabeleçam
nesse intuito: de descobrir onde residem esses limites e, dentro do que se quer e
do que se torna possível, poder borrá-los e, até mesmo, dizimá-los. Ou, por
verificação, confirmá-los e assumi-los. O corpo é feito de matérias perecíveis, já é,
a priori, um ininterrupto processo para o seu próprio fim. Meu corpo, em sua
finitude, é um corpo cheio de marcas, talhado para a arte, há duas décadas e
meia.
133
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 2004; p 134.
134
Conforme refletimos na primeira parte desta pesquisa, no capítulo 2, Esboço de uma reflexão
ontológica – o ser da performance.
135
SERRES, Michel. Op. cit., p.126.
103
líquidos e gás, moléculas, sinais elétricos ou químicos, muitas trocas fluem entre o
mundo e nossas membranas abertas em forma de teia que se sucedem em ciclos
complexos (...).136 É porque tenho esse corpo, configurado desta maneira, que se
torna possível o desenvolvimento de minha arte, no risco de estar presente e “dar
tudo errado”, de, naquele dia não estar disposta a atuar, ou estar com alguma
enfermidade – o que impossibilitaria a boa performance. Como performer, o corpo
que sou deverá estar disponível para ser outra coisa: as coisas que imagino em
arte. Imagino as cores, os objetos, a luz e lá está, também, meu corpo, junto com
os outros materiais. Assim me coloco; determino e estabeleço a ação.
136
IDEM, p. 125.
137
SERRES, Michel. Op. cit., p. 52.
138
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1999;
p. 566-567.
104
139
BERGSON, Henri. Matéria e Memória – Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São
Paulo: Martins Fontes, 1999; p. 160.
140
IDEM, p. 161.
141
IDEM, p. 161-162
105
sua matéria. Caminho eu há algum tempo para isso; o caminho, então, é meu.
Mas, não é só meu, pois que meu corpo se reparte e parte... Anuncia uma fenda,
através de suas talhas visíveis na pele. Anuncia para o outro e re-parte a
experiência.
até ser uma questão de estilo pessoal, mas estava pronta para realizar o que
surgia em minha vontade; não interditar o que se anunciava, a um primeiro
momento. Era essencial deixar surgir, para depois poder observar e refletir a
respeito – a seguir, sim, interferir e determinar o que permaneceria no trabalho,
caso sentisse necessidade. Se observarmos os trabalhos compostos e
apresentados no decorrer desta pesquisa, todos eles revelam, de alguma maneira,
um pouco de lirismo e poesia. Reitero que tal característica, mais do que uma
forma estética é um modo peculiar de ser, uma atitude perante o mundo e as
coisas.
O exercício entre a prática e a teoria passou a ser um jogo dialético nesta
pesquisa; a teoria, na realidade, estava dando respaldo para revelar minhas
manifestações em acordo ao que os fenômenos deflagravam. Imbricado a isso
estiveram as respostas dos receptores. Essa pesquisa não está centrada na
questão da recepção, porém, as trocas foram estabelecidas, durante as
apresentações, num fluxo constante de percepções recíprocas, sempre
enfatizadas e debatidas após as performances realizadas. Dessa maneira,
conclui-se que em todas as etapas dos trabalhos realizados existiram parcelas de
memória: social, individual, coletiva, técnica, artística, etc.
Se o espaço interno é habitado por outrem, digo que estou atenta para
saber de onde vem esse outrem – e o que deflagra em meu ser, o que motiva em
minhas composições em arte. Adquiri o hábito de colecionar memórias, só para
poder usá-las depois, como subterfúgio para a criar. Essa proposição é a
metodologia que guia meu trabalho de performances, pois meu corpo é sempre o
mesmo, embora assuma diversas temporalidades.
142
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água, 1997, p. 182.
107
143
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Op. cit., p. 162.
108
144
GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’água, 1997; p. 162.
145
IDEM, p. 182.
109
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentre todas as coisas que podemos criar, por certo, nada sairá tão
distante daquilo que somos, ou acreditamos ser. Estamos em constante diálogo
com o mundo, com as coisas; só precisamos estar com os canais perceptivos
atentos: prestar atenção. Às cores em nossa volta, à luz e às sombras, às
nuances do dia, seus diferenciais de temperatura; às texturas que nossa pele
experimenta, aos gostos provados... Nos permitir, também, à experiência de
modos novos de estar; por exemplo, andar descalço, engatinhar, rolar pelo chão e
ter o espaço de outra maneira; apreender o mundo de outra forma, dada a posição
do corpo que se modifica, em detrimento ao que lhe é solicitado pela nova
situação.
Estender os olhos – o sentido da visão - por toda a pele; depois, observar o
que ficou disso; qual o residual daquela experiência em nosso corpo e no que isso
pode repercutir em nossos atos. Eis a sugestão desta pesquisa, que nada mais é
que sua própria metodologia – e as inferências acima se construíram na
observação do resultado da própria poética que se fez surgir.
Concluo esta Dissertação - intensa etapa de tempo vivido - contendo no
corpo todos os experimentos que pude re-ter. Se os contenho no próprio corpo,
sou continente de um conteúdo mais amplo do que o mero conceito que a palavra
apresenta. O corpo é continente; significa que a experiência nele está, em estado
mais ou menos dormente; virtual. Todas as experiências e sensações guardadas
esperam o momento em que algo as possa solicitar [um objeto externo, ou uma
memória interior], e as faça vir à tona, para se atualizarem e funcionarem
novamente, como um dado do presente.
Foram gestos, movimentos, ações, espaços diferenciados, ambientações
várias, luz, alimentos diversos, adereços e a percepção de tudo isso, que tornou
possível que a palavra escrita se pronunciasse neste trabalho que, por ora,
concluo. O texto está na pele, as imagens estão nas palavras, mesmo que elas
não dêem conta de toda experiência.
111
REFERÊNCIAS
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34,
1998 - (1ª reimpressão 2005).
DUBOIS J.; GIACOMO M.; GUESPIN L.; MARCELLESI C.; MARCELLESI J.;
MEVEL J. Dicionário de lingüística. 15.ed. São Paulo: 2001.
113
FOSTER, Hal. Recodificação; arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa
Editorial Paulista, 1996.
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade,
2002.
NETO, J. Teixeira Coelho. Moderno Pós Moderno. 4.ed. São Paulo: Iluminuras,
2001.
SERRES, Michel. Variações sobre o corpo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
OBRAS CONSULTADAS
AUSTIN, John Langshaw. Sentido e percepção. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
ECO, Umberto. Tratado geral de semiótica. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.
JOYCE, James. Giacomo Joyce. São Paulo: Brasiliense, 1985. Edição bilíngüe.
Tradução e posfácio de Paulo Leminski.
116
MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
READ, Robert. A Arte de Agora, Agora. 2.ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
SCHÜLER, Donaldo. Heráclito e seu (dis) curso. Porto Alegre: L&PM, 2001.
TODD, Mabel. The Thinking Body – A study of the balancing forces of dynamic
man. New Jersey: Princeton Book Co., 1959.
DOCUMENTÁRIO
Robert Irwin. A Beleza das Questões. Produzido, dirigido e editado por Leonard
Feinstein, 1997 – Tradução e legendas DREI MARC. Rio de Janeiro, 1999.
118
ANEXO F
(eu) Vim
Entrei carregando a mala pela mão esquerda; a caminhada era lenta, com pausas. O olhar
não era vago, mas, propositalmente, olhava sempre para outro lugar, diferente de onde meu corpo
se dirigia. Enquanto me deslocava para frente, olhava para a janela ao lado, que fazia esquina com
a porta, a qual eu havia arredado o painel preto enquanto percebia o ambiente... Lá fora, além da
chuva, havia algumas flores; elas foram um bom subterfúgio para que o olhar permanecesse
deslocado da ação corporal.
Certo é que estava confiando na percepção tátil para localizar a corda e o banquinho que
havia ao lado da escada... Não o havia retirado daquele lugar, resolvi incorporá-lo aos meus
objetos. Encontrei o banco com as pontas dos meus dedos dos pés – por isso a caminhada se
manteve lenta. Com a borda externa da perna direita percebi a circunferência de seu acento, até
chegar à posição que queria: meu corpo de frente para as janelas da frente; meu olhar em direção
à janela ao lado, mas muito além dela... Sentei e não larguei a mala. Achei a corda com o braço
direito e a peguei com a mão direita, levantei e segui para onde meu olhar estava, quase desde o
início. Estava com a corda enganchada no meu braço direito, à altura da articulação do cotovelo.
Segui em um deslocamento lateral, naquele rastro de luz que entrava pela janela lateral.
Aos poucos a mala começou a pesar, pois a estava segurando desde o início – imagino, pela
sensação dada no peso da mala, que o tempo cronológico transcorrido já ultrapassava cinco
minutos. Meu corpo assumia, aos poucos, uma posição de vetor, facilitada pela alavanca que a
corda me proporcionava. Meu ponto de apoio com a corda era o cotovelo; meu próprio peso
machucou a minha pele, pelo atrito da corda... Peguei-a com a mão novamente, quando quase caí,
num desequilíbrio dado pela posição de vetor. Presa pela mão, me detive nessa ação até quase
ficar na horizontal, quando, num só movimento, me soltei, junto com a mala, para o chão. O chão
frio e duro. Mas ele é assim apenas no primeiro momento da queda... Depois, com as trocas de
temperatura entre meu corpo – e as trocas de texturas, macio e quente me parece. Acho que muda
sua textura e sua temperatura, pois meu corpo lhe doa calor e o macio da pele e dos músculos
criam um acordo de sensações.
A mala ficou em pé e eu deitada. Rolando, levantei e me escorei nela. A reação fez com
que, mala e corpo, assumissem uma posição de vetor. Fiquei escorada nela por alguns instantes.
De volta a meu eixo vertical, sentada no chão, a mala perdeu o apoio de meu corpo e caiu.
Comecei a circundá-la, numa altura mediana, sem olhá-la. Circundava a mala e olhava para o
ambiente, num misto de presença-ausência... Achei-lhe o zíper e de tanto circundar, abri a mala.
Sentei novamente, de costas para o objeto maior que guardava os outros objetos – a mala. Com
125
os braços para trás, comecei a vasculhar o interior daquele armário ambulante. Pela textura
percebia, mais ou menos, o que minhas mãos seguravam. Mas havia texturas similares... O tato se
aguçava.
A primeira coisa que peguei de dentro da mala foi um lenço roxo. Com ele repeti um gesto
que havia feito sentada no banco, sem objeto algum nas mãos. É um gesto que guarda uma
história... Peguei o pano roxo e comecei a recolhê-lo, para que coubesse entre minhas mãos. Ele –
o pano – virou uma pequena ‘bola de pano roxo’. Amassou. Nesse momento soltei-o no meu colo,
tornei a pegá-lo e o coloquei na cabeça, de forma que tapasse todo o rosto também. Permaneci
com os olhos abertos, mas enxergava pouco... Levantei e comecei a caminhar, de costas: era uma
provocação múltipla; além de estar com o rosto encoberto, caminhava de costas e me dirigia aos
móveis e objetos do ambiente... Confiante em vários fatores, entre percepção tátil e espacial
momentânea e a lembrança do lugar como um todo, encontrei a estante onde estavam os pincéis e
as tintas. Ali fiquei por um tempo, tateando - com o corpo e os braços voltados para trás -, os
objetos da estante.
Voltei os braços à parte anterior de meu corpo e minhas mãos encontraram o lenço roxo.
Lentamente levantei-o até que descobrisse o rosto – e os olhos que havia fechado. O lenço caiu
para os ombros e abri meus olhos. Realizei um deslocamento em direção à mala e sentei de
costas para ela novamente. Repeti o procedimento da procura dos objetos, conforme descrevi
anteriormente: sem vê-los. Encontrei minha boneca de pano, feita pela minha mãe... A trouxe para
meu colo. Então a criança se voltará talvez para sua boneca. A boneca imita, dizem. É de fato a
34
imagem em miniatura de um corpo humano – o antropomorfismo por excelência.
Estava sentada, em uma diagonal para as janelas da frente, com as pernas estendidas e o
tronco ereto, formando um ângulo de 90°. Coloquei a boneca sentada ao meu lado, escorada pelas
costas no meu braço direito, na mesma posição em que me encontrava. Comecei a balançar meu
tronco para frente e para trás, depois o circundei em pequena e maior circunferência. Por causa de
meu braço atrás das costas da boneca, ela realizava os movimentos também, similares ou
idênticos aos meus. Após a realização de um grande círculo com o tronco, utilizando e
enfatizando-lhe o peso, caímos, eu e meu duplo – eu e a boneca... Ficamos, num ato solidário, um
tempo no chão frio e duro que, novamente, se tornava mais quente e macio, pelas trocas
estabelecidas.
Imagino, com efeito, que num momento ou noutro a criança não pode mais ver sua boneca,
como se diz, e que a maltrata até arrancar-lhe os olhos, abri-la e esvaziá-la... Através do quê
passará a olhá-la realmente desde seu âmago informe.35
34
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 (1ª
reimpressão 2005) p. 83.
35
IDEM.
126
Sentia a respiração um tanto ofegante; sentia meu abdome inflar e desinflar. Ouvia
meu próprio sopro. A posição se tornou desconfortável, o que me levou a rolar de lado e sentar.
Mas, a boneca permaneceu inerte, no chão frio, sem o calor necessário para torná-lo quente ou
macio. Como um retorno ao mesmo lugar, me aproximei novamente da mala, sentada, de costas
para ela. Nesse momento encontro, dentro da mala, outro objeto: uma caixinha de madeira – um
ícone pequeno dentro do ícone maior. Sem olhar para ela, olhando em diagonal para o chão, à
minha esquerda, achei o gancho, abri e encontrei dois colares, de contas que imitam pérolas.
Manuseei os colares e isso fez com que produzissem sons, pelas próprias contas em contato, ou
ao voltarem à caixinha. O som me agradou, por isso continuei por mais algum tempo... Fechei a
caixinha e a coloquei no chão, cobri-a com o pano roxo, que estava perto da boneca, estendida no
chão. Cobri a caixa da mesma maneira que cobrira meu rosto, um pouco antes, com o pano roxo –
simbologia do inerte, do oculto, do não mais necessário ou utilizável... O duplo estava dado em
cada objeto escolhido. Nesse momento tocou meu celular... O acaso veio na hora certa! A música
digitalizada que tocava insistente foi incorporada ao meu gesto; por um momento pareceu que foi
determinado, mas não foi. O puro acaso - e a atenção necessária que lhe deve ser dada no
momento da performance -, que se pronunciava. O inusitado do instante presente é um dos fatores
que justifica o intenso estado de atenção a que me imponho – ou que se impõe a mim, no ato da
performance.
Estava ajoelhada, sentada em meus calcanhares, em diagonal para frente, à minha
esquerda. A música do celular ainda tocava... Nesse momento tapei meu ouvido direito com a mão
direita e a boca com a mão esquerda; a mão direita escorregou para os olhos e a mão esquerda
saiu da boca passando a exercer a função de uma espécie de sensor, ou bengala, pois não
enxergava absolutamente nada... Todo corpo entrava em substituição aos olhos – tato e audição
me faziam ver... Com os meus pés, ao caminhar lentamente, pude achar a corda que estava no
chão. Sabia onde a corda iria dar, então, resolvi segui-la – na incerteza, sempre retornamos ao
lugar de origem. A corda estava no chão, mas a ausência do meu sentido da visão me fornecia a
impressão de que estava em uma corda suspensa e bamba. Senti-me um funâmbulo, numa corda
alta... A sensação de desequilíbrio era intrigante; tive de tomar cuidado para não cair – e nem
abandonar a tarefa de percorrer a corda até o fim... No fim da corda encontrei o banco. Sentei,
destapei meus olhos e, enfim, olhei para frente. Em seguida olhei para os objetos e realmente os
vi, por um instante breve, que anunciou o final daquela performance. Ver é sempre uma operação
de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta.36
36
IDEM, p. 77. [Didi-huberman]
127
128
ANEXO J
Marina Abramovic
Barroco Balcânico
Bienal de Veneza, 1997.
132
ANEXO L
Vito Acconci
Trademarks, 1970
ANEXO M
Merce Cunningham
Merce Cunningham
Na década de 1950.
134
ANEXO N
146
Edição de imagens: dos capítulos 1, 2 e 3, Carlos Brendler; 4 e 5 Paula Krause. Edição final: Paula Krause. Câmera:
Laércio Sulczinski, com exceção do capítulo 2, por Diogo Kronbauer.