LEONELMARTINSCARNEIRO
LEONELMARTINSCARNEIRO
LEONELMARTINSCARNEIRO
São Paulo
2016
LEONEL MARTINS CARNEIRO
São Paulo
2016
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
Dados fornecidos pelo autor
FOLHA DE APROVAÇÃO
Aprovado em__________________________________________
Banca examinadora
“Esta pesquisa foi financiada com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo - FAPESP (Processos n. 2012/05571-3 e 2013/18531-2 )”
Resumo
Esta pesquisa consiste num estudo da experiência (DEWEY, 2010) de espectadores
contemporâneos do teatro a partir da análise de suas narrativas sobre essa experiência.
Tal experiência que é compreendida a partir de um tríplice mecanismo que envolve
memória, atenção e emoção (MÜNSTERBERG, 2004), compreensão essa que atua como
eixo teórico da tese e cujos conceitos são atualizados pelos conhecimentos mais recentes
sobre o tema (XAVIER, 2013; HELENE & XAVIER 2007, 2006 e 2003; IZQUIERDO
2013). Dessa forma, demonstra-se como o processo da memória e da própria experiência
atua de maneira dinâmica, num trabalho contínuo (BOSI, 2012). Apresenta-se um breve
histórico da figura do espectador nas teorias teatrais do século XX e XXI o que deixa
transparecer que a maior parte dos estudos, salvo raras exceções (como MERVANT-
ROUX, 2006), se baseia sobre um espectador idealizado. Para comparar tal figura, em
um segundo momento, com espectadores reais que estão nos teatros, parte-se
primeiramente dos espectadores do Projeto Formação de Público. Em seguida
abordam-se as memórias dos espectadores que tiveram como mesma vivência de base
quatro espetáculos dirigidos por Antônio Araújo (Teatro da Vertigem - TV) e Romeo
Castellucci (Socìetas Raffaello Sanzio - SRS). Para falar da experiência dos espectadores,
no contexto brasileiro, são utilizados como vivências de base os espetáculos Bom Retiro
958 metros (TV) e Sobre o conceito da face no filho de Deus (SRS), cuja a análise da
experiência dos espectadores parte de materiais diversos como artigos, críticas e
entrevistas. Posteriormente, analisa-se experiências de espectadores em território europeu
a partir das peças Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas
(TV) e Go down, Moses (SRS), nas quais acompanha-se o percurso da experiência do
espectador, da criação até as ressonâncias verificadas alguns meses depois da peça ser
assistida pelo espectador. Para isso, utiliza-se a técnica da entrevista aberta (BAUER &
GASKELL, 2007), analisada qualitativamente tendo como base o método de análise de
conteúdo (BARDIN, 2000). Como um dos desdobramentos das entrevistas surge a
possibilidade de uma vida do teatro, vida esta que opera em simbiose com a vida do
espectador.
Figura 1- Mapa com o trajeto que a peça realiza – Bom Retiro .................................. 115
Figura 6 – Foto do espetáculo Sobre o conceito utilizada pelo jornal Le Figaro para a
matéria de 30-10-2011 .................................................................................................. 129
Figura 7 - Momento que o palco é invadido pelos manifestantes em Paris ................. 130
Figura 9 – Foto do espetáculo Sobre o Conceito utilizada pelos jornais Le monde e Zero
Hora ............................................................................................................................. 133
Figura 17 - Foto do lado de fora do espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas)
...................................................................................................................................... 181
Figura 20 – A iluminação desenhada por Guilherme Bonfanti em uma das cenas de Dire
ce qu'on ne pense pas (Bruxelas)................................................................................ 186
Figura 21 - Cena do bar de Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas) ........................... 187
Figura 22 - Cena final de Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas) .............................. 188
Figura 23 - Cena do protesto de Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas) ................... 189
Figura 24 Cena da menina que canta no caraoquê - Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas)
...................................................................................................................................... 190
Figura 25 Cena do médico - Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas) ........................ 191
Figura 26 – A cidade de Avignon tomada por cartazes durante o Festival .................. 192
Figura 28 - Cena do aeroporto Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon) ...................... 196
Figura 29- Cena da visita a casa do sindicalista Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon)
...................................................................................................................................... 197
Figura 30 - Cena do caraoquê Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon) ....................... 198
Figura 31 - Cena do bar - Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon) .............................. 199
Figura 32- Transeuntes olham e são observados durante a cena do bar - Dire ce qu'on ne
pense pas (Avignon) .................................................................................................... 200
Figura 33 – Cena da embaixada - Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon) ................. 201
Figura 34 – Público assiste a cena da embaixada - Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon)
...................................................................................................................................... 202
Figura 37 - Interior do teatro Vidy durante os ensaios de Go Down, Moses .............. 206
Tabela 1 – Percepção dos espaços para práticas culturais e sociais por classes de renda
........................................................................................................................................ 71
Tabela 4 – Agrupamento das categorias analisadas por espetáculos e entrevistas ....... 231
Gráfico 1 - Percentual das pessoas que nunca realiza práticas culturais ........................ 74
Gráfico 9- Projeção do tempo médio das entrevistas para Dire ce qu’on ne pense pas e
Go Down, Moses em 2 anos ........................................................................................ 239
Sumário
Introdução ....................................................................................................................... 31
2.1.2 Um “teatro polêmico”: Sobre o conceito da face no filho de Deus .................. 128
Introdução
As questões que apresento nesta tese são fruto de minha experiência do teatro
como ator e, principalmente, como espectador. Na pesquisa de mestrado abordei os
modos de recepção do espetáculo segundo a atenção, mas percebi que era preciso ir além
e me defrontar com espectadores reais. Impulsionado sobretudo pela reflexão
proporcionada pela pesquisa sobre o Projeto Formação de Público da cidade de São
Paulo, desenvolvi durante os últimos anos uma série de entrevistas colhendo relatos que
remontam à experiência do espectador e à memória do teatro. De certa maneira, posso
dizer que a origem desta pesquisa se encontra também na minha primeira experiência
significativa como espectador de teatro quando tinha 15 anos, que me despertou primeiro
o gosto por ver e fazer teatro.
No desenvolvimento da pesquisa escolhi como primeiro conjunto de
vivências de base o Projeto Formação de Público, que ocorreu na cidade de São Paulo
entre os anos de 2001 e 2004. Houve uma grande dificuldade de encontrar espectadores
que faziam parte da massa de jovens que tinha participado do projeto no início dos anos
2000, sendo que a maior parte dos depoimentos coletados foram de espectadores que
atuavam no projeto como monitores. O Formação foi essencial para o desenvolvimento
da metodologia de pesquisa, mas trouxe muito mais que isso: as entrevistas do projeto
mostraram questões colocadas por espectadores da periferia de São Paulo que não
frequentam o teatro, cidadãos que vêm de fora do teatro e depois do espetáculo vão
embora sem previsão de retorno.
Um espectador da periferia da São Paulo que vai até o centro da cidade assistir
ao teatro, uma cena que se não posso chamar de rara, ao menos se classificaria como
incomum. Durante todos os anos de estudos na universidade, até o doutorado, essa
situação improvável, a qual eu mesmo pude provar, me assombrou. Mas o que faria
alguém sair de casa e andar horas de ônibus, gastar dinheiro e tempo para ver alguém com
roupas estranhas falando de um modo engraçado? Porque depois desse dia fatídico, tive
necessidade de ir ao teatro?
31
Introdução
32
A experiência do espectador contemporâneo
33
Introdução
1
“Portanto, estamos inclinados a pensar que a qualidade principal do sociólogo não pode ser a de
"intérprete" final, mas sim uma qualidade de artesão, preocupado com os detalhes e com o ciclo completo
de sua produção, introduzindo sua ciência nos momentos menos "brilhantes" mas mais determinantes da
pesquisa: constituição da população a ser entrevistada, construção da ficha de entrevista, qualidade da
relação de entrevista, trabalho de transcrição da entrevista, notas etnográficas sobre o contexto ... Em vez
de refletir assim que acabar a pesquisa, o sociólogo deve fazê-lo a cada instante e, particularmente, naqueles
momentos banais, aparentemente anódinos, em que tudo leva a crer que não há nada a se pensar.” (LAHIRE,
1997, p. 16)
34
A experiência do espectador contemporâneo
2
Ainda que existam informações sobre a ideia da encenação nos sites dos teatros e festivais ela ainda não
existe materialmente e, portanto, não há ainda reações concretas do público e da crítica sobre a peça.
Destaco que nos teatros franceses e belgas que realizamos a pesquisa era necessário comprar os ingressos
para os espetáculos com meses de antecedência, pois eles acabaram muito rápido.
35
Introdução
livre acesso, que divide pagantes de não-pagantes, um espaço público livre do espaço
institucional, tive os encontros que definiram os rumos dessa pesquisa.
Nos dias de apresentação chegava antes dos espectadores na porta do teatro
para observar a movimentação e conversar informalmente com as pessoas que
aguardavam amigos, ou estavam à procura de ingressos para comprar, ou mesmo tentando
vender ingressos que estavam sobrando. A porta do teatro é um lugar de vida, um local
de encontros e desencontros, de espera.
No caso das encenações pesquisadas no contexto europeu, procurei abordar
alguns espectadores, antes mesmo do início do espetáculo, me identificando enquanto
pesquisador e convidando-os a participar de minha pesquisa. Esses espectadores
formaram o grupo de controle3, que já sabia que participaria da pesquisa antes mesmo de
assistir ao espetáculo. No entanto, a maior parte dos espectadores de Go Down, Moses e
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas, eram abordados
somente na ocasião da saída dos espetáculos. Procurava escolher os espectadores antes
do início ou mesmo durante a peça, o que me permitia observá-los.
“Quanto tempo dura a entrevista? ” Em geral, essa era uma das primeiras
perguntas que os espectadores me faziam quando eu realizava o convite para participar
de minha pesquisa. Minha resposta sempre foi: “depende de você, de quanto você quiser
falar”. O tempo necessário para falar da experiência é um dado muito importante no
acompanhamento do desenvolvimento das memórias dos espectadores. Ele permite entre
outras coisas acompanhar o trabalho de síntese da memória e as novas conexões que a
experiência pode adquirir ao longo do tempo.
Utilizei para estas entrevistas três modos básicos de registro: a anotação, o
registro em vídeo e o registro em áudio. Destaco o uso de notas como fundamental nas
situações nas quais foram feitas as abordagens dos espectadores. Um gravador ou uma
câmera poderia espantar os sujeitos ou forçar comportamentos. A abordagem direta e
humana foi essencial para que o sujeito tivesse a confiança necessária no pesquisador para
poder falar sobre algo tão pessoal como suas memórias.
Para a utilização da filmagem ou do áudio o espectador foi sempre
consultado. A forma de registro e de como é pedida a autorização para que ele seja feito
3
Utilizo o termo para designar espectadores que já sabiam antes da peça que iriam ser entrevistados e que
servem de base para a comparação sobre a influência que saber que ir a um espetáculo sabendo que vai ter
que falar sobre ele depois afeta a própria experiência do espetáculo.
36
A experiência do espectador contemporâneo
é fundamental para garantir que o sujeito se sinta confortável para falar. O modo de
registro leva em conta também o local de realização das entrevistas. Esse local, que na
primeira entrevista era obrigatoriamente a porta do teatro, na segunda e na terceira era
escolhido pelo próprio entrevistado. Entre falas sobre a infância, pausas e afirmações
entusiasmadas os espectadores constroem os sentidos das peças
Esta pesquisa tem como uma primeira inspiração o estudo empreendido por
Hugo Münsterberg (1916), na obra The Photoplay, que analisa a recepção do cinema e
do teatro a partir de ferramentas psicológicas como a atenção, a memória (a imaginação)
e a emoção e que pode ser considerada uma das primeiras sobre o ato do espectador.
Inspirado por Münsterberg, retomo, nos dias de hoje, os mesmos conceitos de
atenção, memória e emoção para analisar não mais o ato de um espectador imaginário,
mas a experiência do espectador real. Desta forma proponho ao leitor uma breve
introdução a estes conceitos, que serão utilizados e desenvolvidos ao longo dos capítulos.
Atualmente, há diversas conceituações sobre a atenção (NAHAS e XAVIER,
2004, p.1). Segundo Münsterberg, para que um estímulo exterior seja processado
racionalmente, ele deve necessariamente ter a sua passagem permitida pela atenção e por
isso ela é, de todas as funções da mente, a mais importante para a significação do mundo
exterior. O caos do mundo é organizado de modo a engendrar experiências através dos
mecanismos atencionais (MÜNSTERBERG, 2004, p.33).
Tomando por base o estudo já desenvolvido (CARNEIRO, 2011) é possível
afirmar que a atenção pode ser compreendida como um filtro que seleciona as
informações que serão processadas de forma consciente pela mente. Este filtro é, ao
mesmo tempo, condicionado (pelas memórias) e condicionante das experiências e das
memórias que delas decorrem. Deve-se notar que qualquer um dos sentidos humanos, da
visão ao tato, sempre que tem a atenção (involuntária ou exógena) despertada por um
estímulo externo, foca-se na fonte deste estímulo. Um barulho de uma explosão, um
animal que rasteja, um cheiro desconhecido. Tudo que mexe com nossos instintos
naturais, tudo o que provoca uma emoção forte assume o controle da atenção
(MÜNSTERBERG, 2004, p.32).
A atenção pode ser dividida segundo a fonte de estímulo em exógena (ou
involuntária) e endógena (ou voluntária). Enquanto a primeira seria aquela que é
despertada por um estímulo ambiental (um barulho forte, por exemplo), a segunda é fruto
de uma operação interna, a mesma que realizamos quando estamos procurando alguém
37
Introdução
4
Para uma discussão detalhada sobre os conceitos de atenção e sua aplicação no teatro ver: Carneiro, 2015.
38
A experiência do espectador contemporâneo
momentos mais significativos. É nessa memória declarativa que foco meu trabalho. Essas
memórias podem ter como origem e resultado emoções, ou seja, a emoção contribui para
a formação de uma memória e ao mesmo tempo uma memória pode trazer uma emoção.
A emoção é um processo complexo, assim como a memória e a atenção, que
já foram objeto de diversos estudos. Um dos estudos iniciais sobre emoção foi o realizado
por Charles Darwin. Em seu A Expressão das emoções no homem e nos animais (2000)
ele fez a distinção entre “emoções básicas” ou “inatas”, como medo, raiva, alegria, etc.,
comuns aos animais e emoção estética, característica dos seres humanos, sendo que esta
segunda estaria mais ligada à uma educação dos sentidos através da qual se pode ter
acesso a emoções mais refinadas, como a do belo ou do sublime.
Por outro lado, me parece essencial a discussão feita por Vygotsky (1998,
2003) sobre o assunto. Para Vygotsky, a emoção é um processo complexo que envolve
percepção, sensação, atenção e memória. Sob influência de Ribot5, Vygotsky lança as
bases da divisão que neurocientistas como António Damásio (2004) utilizam atualmente,
que separa as emoções em primárias (ou primitivas) e secundárias. Penso que as emoções
“primárias” e “secundárias” em Vygotsky são equivalentes às emoções “inatas” e
“estéticas” de Darwin (2000), ou seja, as secundárias estariam diretamente ligadas ao
grupo social humano.
A experiência do espectador estaria, portanto, ancorada sobre todas essas
funções que incluem a percepção, a sensação, a memória, a emoção e a atenção. Para criar
sua experiência o espectador depende da formação de seu “olhar”, conforme aponta John
Dewey (2010). As relações que os espectadores criam a partir de sua vivência do
espetáculo, em casos como os da Socìetas Raffaello Sanzio e do Teatro da Vertigem não
têm, necessariamente, uma conexão direta com as relações que os produtores vivenciaram
para criar determinada teatralidade. Dessa maneira, neste estudo a questão da estética do
espetáculo ou das intenções dos criadores é completamente acessória, ou seja, a discussão
não está focada na estética do espetáculo, mas nas memórias que essas estéticas provocam
e em como os espectadores lidam com elas.
É fundamental, neste momento, esclarecer o sentido no qual empregarei o
termo experiência. Uma primeira diferença que gostaria de esclarecer é a que existe entre
5
Théodule-Armand Ribot foi um psicólogo francês e é considerado um dos fundadores da psicologia
experimental. É conhecida a influência de suas teorias sobre o teatro, em especial sobre o trabalho de
Stanislávski.
39
Introdução
a experiência em seu sentido mais geral e a experiência em seu sentido mais técnico, que
também pode ser chamada de experimentação. Enquanto no primeiro caso a palavra é
utilizada de forma mais ampla e engloba todas as experiências cotidianas, das menos às
mais significativas, no segundo refere-se a algo que pode ser testado de forma a
comprovar uma hipótese, ou seja, pode ser considerado um sinônimo de experimento
(científico ou teatral).
Estou de acordo com Dewey (2010), para quem apenas uma parte dessas
experiências cotidianas pode ser considerada como significativa, marcante. Uma das
perguntas que permeiam meu trabalho é: o que torna uma experiência significativa?
Durante todo o percurso da pesquisa pude constatar algumas características que unem as
experiências significativas da arte e da vida. Posso citar, a título de exemplo, a força que
a primeira vez tem de se caracterizar como uma experiência significativa. A primeira vez
que fomos a um lugar, ao teatro, na qual vimos uma pessoa. As outras experiências
tendem a se condensar em uma lembrança, mais geral, enquanto a primeira vez parece
possuir um lugar especial nas lembranças.
O que me impeliu a fazer a pesquisa que aqui apresento não foi a necessidade
reconstituir “uma verdade” acerca dos espetáculos, mas observar como os espectadores
são capazes de atualizar as memórias do evento teatral integrando-as à sua vida. O que
me interessa são exatamente as confabulações da memória e as estratégias para organizar
as lembranças que cada espectador vai adotar. São memórias que se constroem
concomitantemente às narrativas.
Proponho que os espetáculos são, portanto, disparadores de analogias,
resultantes da materialidade da cena e que possibilitam ao espectador estabelecer relações
com suas próprias vivências. Tal concepção vai ao encontro da teoria que se ocupa do
espectador contemporâneo, na medida que lhe atribui uma parte do trabalho, que resultará
na experiência que este espectador terá com a arte, seja ela significativa ou não. É
importante dizer também que a maior parte das experiências da vida e da arte não serão
significativas, entrando no âmbito das experiências comuns. Ainda que elas possam
influenciar no desempenho de atividades cotidianas, elas não serão lembradas como
significativas. É sobre essa operação da mente que caracteriza a lembrança de um fato
enquanto significativa que me debruço.
O estudo que fiz leva sempre em consideração a pergunta: ser entrevistado
altera a forma com que alguém se lembra do espetáculo? Em relação ao grupo de controle
40
A experiência do espectador contemporâneo
ainda haveria mais uma questão: o fato de saber que ele falará do espetáculo depois de
assisti-lo altera o modo como o espectador o assiste e como organiza suas memórias?
A experiência é narrada pelos espectadores sempre no presente, ainda que ela
se reporte ao tempo passado. Ao trazer essa experiência através da fala o espectador é
obrigado a atualizá-la e, frente ao contexto presente, ela pode ganhar ou perder
importância. É justamente nesse processo de atualização que a experiência encontra sua
validade. Pode-se ver isso claramente no capítulo que trata do Projeto Formação de
Público. Ainda que as pessoas tenham para si uma concepção sobre o projeto, é apenas
no momento em que essa experiência é (com) partilhada que ela se atualiza e ganha um
corpo concreto: a palavra.
Aproveito a ocasião para esclarecer o leitor que esse texto não procura ser
uma narrativa linear. Ao estudar a experiência, em especial a proposta pelo teatro
contemporâneo, seria no mínimo um movimento incoerente de minha parte tornar essa
tese uma narrativa linear. Por outro lado, a estrutura da tese se apresenta mais próxima da
narrativa que os sujeitos dessa pesquisa fizeram. Em um primeiro momento, é necessário
apresentar, dizer do lugar onde se fala, estabelecer um vocabulário comum, criar o
contexto para que haja compreensão do que se quer dizer. Portanto, me aproximo da
lógica associativa da memória para construir o texto.
Também devo esclarecer que essa tese opera de maneira distinta com os
termos “teatralidades contemporâneas” e “teatro contemporâneo”. Designo “teatralidades
contemporâneas” as formas teatrais híbridas, que utilizam procedimentos cênicos
multifacetados e que colocam o espectador, de diversos modos como participante, co-
criador da cena, encenados a partir dos anos de 1970, seguindo a proposta de Sílvia
Fernandes em seu livro sobre as Teatralidades contemporâneas (2010).
Por outro lado, utilizo a denominação “Teatro contemporâneo” para designar
um gênero teatral, uma classificação utilizada largamente na Europa nos dias de hoje para
classificar um tipo de teatro, que como nos mostra Nathalie Heinich6 em relação ao
contexto das artes visuais, é apenas uma pequena parcela do que é produzido, mas que,
6
“O ‘gênero’ arte contemporânea constitui apenas uma pequena parte da produção artística, ele é financiado
por instituições públicas mais do que pelo mercado privado, ele se encontra no topo da hierarquia em
matéria de prestígio e de prêmios, e ele mantem laços estreitos com a cultura erudita e com o texto”
(HEINICH, 1998, p.11- tradução nossa)
41
Introdução
no entanto, recebe grande parte dos recursos públicos destinados à cultura e concentra
hoje o maior prestígio dos gêneros teatrais e possui características estéticas determinadas.
Portanto, o termo “teatralidades contemporâneas” se refere apenas à estética do
espetáculo, enquanto “teatro contemporâneo” acrescenta a essa dimensão estética uma
sociológica7.
Tendo colocado alguns princípios conceituais que vou utilizar ao longo do
texto e desenvolver quando necessário, falarei no primeiro capítulo sobre construção do
espectador contemporâneo revelando como essa figura está no centro do processo de
modernização da cidade. No primeiro subcapítulo, abordo o desenvolvimento teórico da
figura do espectador nos séculos XX e XXI. Co-criador, figura imóvel que parece dormir
profundamente, imersa, participativa: quem é essa figura? Destaco que no século XXI se
multiplicam os livros que trazem no título e no universo de suas preocupações o
espectador. Em um segundo momento, proponho uma passagem do espectador idealizado
pela teoria para a abordagem de sujeitos reais a partir do caso do Projeto Formação de
Público.
O segundo capítulo é dedicado a uma contextualização da experiência desta
pesquisa e seus primeiros ensaios acerca da experiência do espectador. Sua primeira parte
se dedica a estudar a experiência de espectadores brasileiros que assistiram espetáculos
da Socìetas Raffaello Sanzio e do Teatro da Vertigem, procurando seus resquícios em
múltiplas fontes. Para tal empreitada, me foco nas experiências de espectadores que
assistiram no ano de 2012 ao espetáculo Bom Retiro 958 metros, dirigido por Antônio
Araújo na cidade de São Paulo e dos que viram em 2013 Sobre o conceito da face no
filho de Deus, de Romeo Castellucci, apresentado em Porto Alegre. Aprofunda-se na
compreensão dos mecanismos da experiência e das formas de sondar tal evento, para em
seguida, através de um relato da experiência da pesquisa, mostrar ao leitor o contexto no
qual as entrevistas foram realizadas e introduzi-lo as obras do corpus que serviram de
vivências de base durante o campo realizado na Europa em 2014.
7
Vale ressaltar que a definição de teatro contemporâneo é um terreno árido, no qual nem as obras que
propõem essa definição a executam de maneira inequívoca. Por exemplo, Patrice Pavis em seu
Dictionnaire de la performance et du théâtre contemporain (2014) define o contemporâneo como
podendo ser um teatro que se opõe à arte moderna: “ a maior parte do tempo, o teatro contemporâneo se
refere a uma forma, uma estética uma prática que provém de uma ruptura, de uma virada, de um período,
de uma experiência que ainda não foi ultrapassada ou recolocada em questão” (PAVIS, 2014, p. 51). O
teórico francês ainda repara que há algumas características que são utilizadas pelos críticos para catalogar
uma obra como contemporânea (fragmentação, citação, colagem, documento, participação).
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A experiência do espectador contemporâneo
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A experiência do espectador contemporâneo
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A invenção do espectador contemporâneo
sobre o espectador como central em diversos escritos teatrais e sobre o teatro. Mas
também é importante constatar que se o teatro dos gregos era o lugar dos espectadores
que vinham de fora do teatro, atualmente, cada vez mais, a plateia tem se tornado um
lugar para os artistas e especialistas se admirarem.
Ainda que a figura do espectador estivesse ausente ou submissa a outros
temas da teoria teatral, penso que ela sempre esteve no centro do pensamento que tem sua
origem na prática teatral. Seja por razões filosóficas ou econômicas, o teatro nunca pode
abrir mão do espectador. Não considero que a história do espectador se dê num
movimento único, mas que ela se escreve a partir de retomadas dessa figura em diferentes
momentos históricos sob diferentes formas.
De certa forma, o espectador era central no teatro de Molière, por exemplo,
bem como um dos objetos de maior preocupação de encenadores do século XX como
Stanislávski, Meyerhold, Brecht, Jean Vilar, Peter Brook, Eugênio Barba, Augusto Boal,
José Celso Martinez Corrêa (e a arquiteta Lina Bo Bardi que concebe o prédio do Teatro
Oficina), Antônio Araújo, Romeo Castellucci, entre outros. Nas artes visuais, num
movimento impulsionado por Duchamp, o público passa a pertencer ao mesmo espaço
das obras das artes contemporâneas e nas “ações” de Kaprow ele se torna um participante.
Enquanto uma das preocupações de Shakespeare era de contar uma história
sem que o seu público se aborrecesse (e se manifestasse desfavoravelmente jogando
coisas no palco), Padre Anchieta tentava explicar a existência de uma entidade trinitária
para os indígenas, trazendo a forma do teatro europeu para as terras brasileiras — diga-
se de passagem, que já existiam por essas terras outras formas de teatralidades (HESSEL
e RAEDERS, 1972). Digo isso para demonstrar que acontecia no século XVI, como ainda
ocorre hoje, uma coexistência de formas diversas de se pensar o teatro e seu público. Seria
certamente impossível falar de todas elas, mas busco organizá-las a partir de agentes que
identifico como sendo de referência para o teatro e a teoria teatral contemporânea.
Foco, portanto, em estudos que questionam o papel do espectador e sobre ele
se debruçam para compreender o ato do espectador, sua experiência e a operação
empreendida na construção de sentidos. Por outro lado, é preciso colocar que esse
pensamento teatral nunca esteve fechado em si mesmo e que toda a teoria do teatro sobre
o espectador tem influências de outras disciplinas, com destaque para a filosofia, a
biologia, a psicologia, as ciências sociais e mais recentemente as neurociências.
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A invenção do espectador contemporâneo
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A invenção do espectador contemporâneo
mesmo tempo dirigidas pela atenção, resultando em uma projeção (imaginação). Este
estudo é uma das sementes geradas pelas discussões dentro do campo da psicologia do
início do século XX, que teve como líder o americano Willian James. A discussão em
pauta neste tempo acaba por resultar, de alguma forma, no trabalho Arte como
Experiência (1934) do filósofo e psicólogo americano John Dewey.
Em seu livro, Dewey demonstrou de forma mais abrangente a relação entre a
experiência da arte e da vida que acabam por fazer parte de uma mesma memória (como
discutido em CARNEIRO, 2013). Nesta linha de raciocínio, ao abordar o evento
espetacular é impossível negar a vivência individual do espectador dentro de um ambiente
sociocultural.
A invenção do espectador contemporâneo é processada na sociedade em que
o espectador habita. As mudanças na sua figura teórica e no ato do espectador real são
condicionadas pelo contexto sociocultural ao mesmo tempo em que exercem influência
sobre este. A velocidade impressa na vida do espectador influencia claramente sua
atenção, ou seja, altera o modo como ele verá o mundo, incluindo-se nisto o teatro.
Quando a neurociência explica a formação das memórias o teatro não pode ficar imune a
esse avanço do pensamento humano, pois ele próprio tem seu sentido apenas como uma
grande reflexão sobre a humanidade.
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que estava no teatro (MEYERHOLD, 2012, p.89). Desta maneira ele antecipava o
Verfremdungseffekt (efeito de distanciamento) defendido por Brecht décadas mais tarde.
Para alcançar tal comunicação com seu espectador, Meyerhold põe em evidência a
materialidade dos corpos e objetos em cena. Toda a mudança de paradigmas proposta
por seu teatro colocava, portanto, o espectador no centro.
O movimento do teatro russo aqui representado pelas figuras de Stanislávski
e Meyerhold não era isolado. Ele representava a ponta de uma massa de mudanças
trazidas pelo início do século XX. É notório que entre as últimas décadas do século XIX
e as primeiras do século XX houve uma grande virada da percepção humana.
Entre Rússia e França, destaco à figura do público que é tratada pelo inventor
da palavra teatralidade, Nicolas Evréinoff em seu Le théâtre dans la vie (1930). Ator,
autor e encenador russo que vivia na França, Evréinoff se ocupou da questão do público
do teatro, em especial no capítulo no qual ele propõe que o “amor pelo teatro” manifesto
pelo público seria produto de um instinto teatral, inerente ao ser humano. Em sua obra, o
autor abordou o instinto de teatralização e de transfiguração do ser humano e que de certa
maneira fundamentaria o “amor pelo teatro do público”. As respostas que o público dá ao
ser questionado sobre os motivos de frequentar o teatro podem ser variáveis, mas para ele
o que leva esse espectador ao teatro é a sua pulsão pela transfiguração, um desejo que
estaria ancorado numa teatralidade pré-estética. Por outro lado, permeia também sua obra
a noção de que a própria vida seria um teatro e os seres humanos os atores em seus papéis
(sociais).
As ideias de Evréinoff não estavam isoladas na França dos anos 30, Antoine
Artaud também proporia dentre as suas questões uma busca pela “vida do teatro, ou seja,
o momento originário em que os movimentos da vida enquanto tais são teatro”
(ARANTES, 1988, p .91).
Em 1933, Antonin Artaud lançou seu Le théâtre de la Cruauté (O teatro da
crueldade) que foi seguido pelo lançamento em 1938 de Le théâtre et son double (O
teatro e seu duplo), nas quais abordou o lugar do espectador em seu teatro, dizendo que
“no ‘teatro da crueldade’ o espectador fica no meio, enquanto o espetáculo o envolve”
(ARTAUD, 1993, p.78). Havia um incomodo de Artaud com o teatro que “transforma o
público em voyeur” (ARTAUD, 1993, p.81), incomodo este que gerava seu desejo de que
o espectador fosse envolvido completamente pelo espetáculo, ou seja, que não houvesse
um distanciamento possível.
54
A experiência do espectador contemporâneo
O teatro imaginado por Artaud colocava o espectador como ser sensível. Este
sujeito, central para o teatro, deveria ser tocado através de composições visuais e sonoras.
De certa maneira, esta proposta teórica de Artaud prenuncia o aparecimento da figura do
“espectador participante”, uma “personagem” do teatro que irá se desenvolver e
contaminar os happenings dos anos de 1970 e que atinge propostas radicais como as
materializadas pelos experimentos do fim da carreira de Grotowski e Kaprow. Tais
exemplos mostram que quando a figura do espectador desaparece, o teatro também passa
a ser uma espécie de ritual, se distanciando do jogo.
Tanto para Artaud (1984, IV, p88) quanto para Evréinoff (1930, p. 127-128)
a questão da atenção do espectador era fundamental. Na vida como no teatro, o espectador
às vezes precisa sair do lugar comum, dos “lugares onde sua atenção está a tal ponto
adaptada às coisas que lhe preocupam, que não se pode mais adotar uma postura
contemplativa” (EVRÉINOFF, 1930, 128). Se o mundo era um teatro, somos todos, ao
mesmo tempo, espectadores. Essa ampliação dos limites do teatral proposta por Evréinoff
e de certa maneira por Artaud será, em 1974, retomada pelo sociólogo Erving Goffman
em seu Os quadros da experiência social (2011).
A obra de Goffman, um dos mais influentes pensadores do século XX, traz
um dos olhares mais agudos sobre o espectador.
55
A invenção do espectador contemporâneo
casamentos). Para ele, “se não há plateia, não há atuação teatral” (GOFFMAN, 2011,
p.166).
Goffman é um dos poucos que parece considerar o espectador para além de
sua função pontual diante do evento teatral, tendo este como um ser que possui uma
memória cumulativa de sua trajetória que perdura no tempo. Para explorar a
complexidade da obra de Goffman (assim como as outras que abordo nesse capítulo),
seria necessário um estudo mais aprofundado, o que não vem ao caso, pois não é esse o
objetivo dessa tese. No entanto, penso que é interessante esmiuçar a sua noção dos papeis
que os espectadores assumem, pensando nos indivíduos que compõem o público. Nesse
caso, penso ser preciosa a diferenciação que ele propõe entre o frequentador de teatro e o
espectador.
56
A experiência do espectador contemporâneo
8
Vale dizer que em Kaprow a figura do espectador vai se diluindo e dando lugar ao do participante da ação.
Dessa forma Kaprow, inspirado por Dewey inaugura uma tendência que se espelharia fortemente pelo teatro
a partir do fim dos anos de 1960. Em diferentes graus o espectador torna-se participante da ação teatral.
57
A invenção do espectador contemporâneo
9
“A criação do efeito-V é algo diário que acontece milhares de vezes; não é nada mais do que uma maneira
muito empregada para fazer com que uma coisa se torne compreensível aos outros ou a si próprio. Ele pode
ser observado durante o estudo ou nas conferências de negócios em uma forma ou em outra. O efeito-V
consiste em transformar a coisa dada que deve ser tornada compreensível, para a qual a atenção deve se
dirigir, e que é comum, conhecida, em uma coisa especial, inesperada, que chama a atenção. Aquilo que
parece ser óbvio, é transformado de uma certa maneira em algo incompreensível, mas isto só é feito para
que ela se torne mais compreensível. Para que algo conhecido seja compreendido é necessário que seja
objeto de atenção, precisa ser eliminado o hábito de não procurar uma explicação.” (BRECHT, 1967, p.
173-174)
58
A experiência do espectador contemporâneo
despertar a atenção do espectador sempre que este estivesse a ponto de entrar na ilusão
da ficção teatral.
Posso dizer que se a atenção seria um dos eixos principais de seu teatro épico,
o espectador é o sujeito que está no centro deste teatro. Ainda que como Meyerhold,
Brecht se focasse em um tipo de recepção mais racional de seu espectador, ele de maneira
nenhuma ignorava a importância das emoções na recepção teatral.
O ponto essencial do teatro épico é, talvez, que ele apela menos para os
sentimentos do que para a razão do espectador. Em vez de participar de
uma experiência, o espectador deve dominar as coisas. Ao mesmo
tempo, seria completamente errado tentar negar a emoção a esta espécie
de teatro. Seria o mesmo que negar emoção à ciência moderna.
(BRECHT, 1967, p.41)
Mesmo que não denomine o espectador como co-criador, Brecht procura lhe
dar o domínio sobre o teatro. Ele pode escolher, se posicionar diante da peça. Penso que
aí está uma das primeiras iniciativas (ao lado da de Meyerhold) de dar um papel de
protagonista para o espectador.
Pode-se dizer que a teoria do espectador moderna tem origem nas reflexões
do encenador francês Jan Doat que escreve em 1947 o livro Entrée du public, no qual
ele parte das teorias da psicologia (em especial da psicologia coletiva) para analisar o
comportamento e as emoções do público teatral.
Retomando Evréinoff (1930), Doat fala sobre o instinto de teatralidade do ser
humano, e após analisar a atividade deste espectador, ele conclui que “o teatro ultrapassa
o estético” (DOAT, 1947, p.62). Para Doat, o teatro só pode surgir como expressão do
pensamento de uma sociedade e é feito para essa sociedade (público) que se identifica
com o apresentado. Ele nota, porém, que no contexto pós-Segunda Guerra esse público
estaria desaparecendo (assim como a noção de comunidade) e dando lugar aos
espectadores “que assistem individualmente à representação” (DOAT, 1947, p.81). Fala
também sobre a diferença entre “le public” (o público), uma “multidão organizada, unida
pelo mesmo ponto de vista sobre a ação dramática” (DOAT, 1947, p.82), comunidade
social indivisível e “des publiques” (público), aquele que está presente na plateia do
teatro, mas que não necessariamente representa uma comunidade.
Dez anos após o lançamento do livro de Doat, David Victoroff traria uma
grande contribuição em sua obra L'Applaudissement, une conduite sociale (1957) que
59
A invenção do espectador contemporâneo
apesar de curta, traz dados muito interessantes. Partindo de alguns dos apontamentos que,
ele já havia trazido com seu artigo Le paradoxe du spectateur (1955), nesse livro
Victoroff mostra como o aplauso é uma conduta social construída. Ao propor esta
operação ele revela também como a prática do espectador é fruto de seu contexto social.
O aplauso, que para Darwin podia ser um movimento sem objetivo, expressão
de uma forte alegria, é codificado pelo teatro como um sinal de aprovação. Para Victoroff
não são os indivíduos que batem palma, mas o público, pois “nós não aplaudiremos se
nos sentirmos isolados” (VICTOROFF, 1957, p.132). Desta forma o aplauso seria sempre
um momento de validação coletiva do espetáculo. Assim, se a palma pode ser um reflexo
na vida, “o aplaudir no teatro é uma reação altamente social” (VICTOROFF, 1957,
p.167).
A história social do aplauso de Victoroff mostra como a prática do espectador
que temos hoje em dia foi construída. Criou-se uma espécie de manual de boas práticas
para o espectador, que foi colocada para este através de uma “formação” quase sempre
escondida. O autor traz informações interessantes, como a de que não há traços do aplauso
no teatro da Idade Média francesa ou que, entre os séculos XVII e XVIII, se aplaudia tudo
no teatro. Por outro lado, o hábito atual do aplaudir no teatro parece ter se consolidado a
partir do século XIX, com a difusão da claque e com regras específicas para o aplauso.10
Deste modo, posso dizer que a obra de Victoroff se concentra mais em uma
primeira mudança ocorrida no século XIX, desnaturalizando a formação do público. Ele,
assim como Doat anos antes, demonstra que a atividade do público está sempre em
mudança e que essas mudanças dependem, em grande parte, mas não somente, dos
projetos dos criadores teatrais.
Boa parte do século XX foi marcada por um descontentamento de artistas
com as práticas espectatoriais instauradas no século anterior. Os primeiros frutos desta
insatisfação seriam colhidos na década de 1960, com o advento da revolução cultural,
ponto de virada para a prática do espectador. Essa virada, já apontada como desejada e
10
O texto de Victoroff (1957) é realmente muito interessante e traz dados como que em 1820 foi aberta
uma agência para a contratação de claqueurs (p.153). Ele traz mesmo nesse estudo contratos firmados entre
o teatro e essas pessoas. Também aponta a ligação entre a figura do claqueur de do siffleur, espectadores
profissionais que coordenavam os momentos de aplaudir, bem como incitavam o público a aprovação. Uma
figura dessas, infiltrada na plateia com seu grupo (cada claque era formada por um grupo de indivíduos),
poderia dar a impressão a um desavisado que todos tinham gostado do espetáculo, ainda que isso não fosse
verdade.
60
A experiência do espectador contemporâneo
necessária desde o início do século por artistas, se concretizaria de forma radical a partir
da teoria e da prática de Augusto Boal, apontado por Richard Schechner, diretor da The
Drama Review, como o concretizador do sonho do teatro brechtiano11. A Poética
proposta por Boal coloca o espectador na posição de atuação.
11
ALMADA, Izaías. Boal: embaixador do teatro brasileiro. Monografia não publicada apresentada como
resultado do concurso PROAC nº 28 - PESQUISA EM ARTES CÊNICAS, 2012. Disponível em
<https://institutoaugustoboal.files.wordpress.com/2012/11/almada_monografia_boal.pdf>. Acessada em:
12/12/2015.
12
Espect-ator é o nome dado por Boal ao espectador que passa pela experiência de ator no espaço cênico
debatendo cenicamente questões relacionadas ao problema que trata o espetáculo.
61
A invenção do espectador contemporâneo
O espectador em Boal é tratado como um cidadão. Mas não era a qualquer cidadão que
seu teatro falava, mas às camadas mais oprimidas pela sociedade. O autor brasileiro
advertia sobre os perigos que ser meramente espectador, delegando o poder de decisão a
outros atores, poderia representar.
62
A experiência do espectador contemporâneo
cênica, eles estão em cena todo o tempo, tendo em vista que a estrutura do teatro faz com
que os espectadores se vejam durante todo o tempo.
No fim da mesma década de 1960 o diretor polonês Jerzy Grotowski publica
seu Em busca de um teatro pobre (1968 em inglês, publicado no Brasil em 1971) no
qual declara: “nossas produções são investigações do relacionamento entre o ator e a
plateia” (GROTOWSKI, 1971, p.2). Investindo nesse relacionamento o diretor
considerava que “a essência do teatro é um encontro” (GROTOWSKI, 1971, p.41).
As encenações de Grotowski e Zé Celso são frutos das sementes lançadas por
Artaud nos anos 1930. Em ambos os teatros, de maneira cada vez mais radical o
espectador é colocado no centro da cena, sendo que muitas vezes esse papel, ainda que
momentaneamente, desaparece. A integração do espectador ao espetáculo gera uma
aproximação do ritual, tal qual preconizado por Artaud.
Na mesma década, Peter Brook lançou O teatro e seu espaço (1969 em
inglês, publicado no Brasil em 1970), no qual defendia que o termo mais apropriado para
seu espectador era o de “assistence”, atribuindo ao espectador o papel de parceiro
(partner) do ator.
Nesse mesmo período Bernard Dort lançava na França seu livro Théâtre
Public (1967) no qual desenvolveu um agudo olhar sobre a figura do espectador e sua
relação com a cena, diferenciando o processo na cena aristotélica da proposta por Beckett
A ideia trazida por Dort nesse texto me parece fundamental, mas penso que
recebeu ao longo das últimas décadas pouca atenção. O mesmo autor escreve em La
vocation politique (Théâtres, 1986, p.233-248) uma nova reflexão na qual aborda o
espectador. Nesse texto ele trabalha com a noção de que o público do teatro constitui um
63
A invenção do espectador contemporâneo
13
A citação de Dort fazia referência ao texto escrito por Roland Barthes na década de 1960 sobre o teatro
de Baudelaire que postulava que “A teatralidade é o teatro menos o texto, uma espessura de signos e de
sensações que se edifica no palco a partir do argumento escrito, é aquela espécie de percepção ecumênica
dos artifícios sensuais, gestos, tons, distâncias, substâncias, luzes, que submerge o texto sob a plenitude de
sua linguagem exterior” (BARTHES, 2002, v. II, p.304).
64
A experiência do espectador contemporâneo
uma das primeiras tentativas de abordagem de espectadores reais, feita através de uma
pesquisa de campo no TNP (Teatro Nacional Popular)14 e na Comédie-Française, ambos
na cidade de Paris (França). Seu estudo propunha uma análise quantitativa de
questionários aplicados a mais de 5800 espectadores. Nesse estudo aparecem questões
interessantes levantadas pelo público e como eles queriam um teatro no qual pudessem
jogar com o ator (GOURDON. 1982, p.108)
Esse seria um dos primeiros livros, dentre outros, que trataram a figura do
espectador nas últimas décadas do século XX. Uma das obras que seria mais influente
das lançadas nos anos de 1980 seria A teoria da recepção (Die Theorie der Rezeption
- 1987) de Hans Robert Jauss, que já teria abordado o tema em sua Pequena apologia à
experiência estética (Kleine Apologie der ästhetischen Erfahrung de 1972). Apesar
do autor não tratar diretamente do espectador de teatro, fornece a base na qual diversos
outros estudos do espectador do teatro vão se focar, no campo que passa a ser denominado
“teoria da recepção”.
Nesse percurso histórico posso citar ainda contribuições ao pensamento da
figura do espectador em textos como os de Denis Bablet (1984), Herbert Blau (1990), ou
mesmo do curto texto de Jean Jourdheuil (1984) que traz a interessante proposta de um
“espectador-espectador”, por oposição a um “espectador profissional”.
No entanto, a meu ver, a primeira pesquisa que se aproxima da abordagem
que trago do espectador é a que foi realizada entre 1985 e 1995 pela pesquisadora do
CNRS Marie-Madeleine Mervant-Roux, publicada em 1998 sob o título L'assise du
théâtre. A grande diferença do estudo de Mervant-Roux em relação aos demais é uma
análise que toma por base a perspectiva histórica e antropológica, provocando uma fricção
constante entre os espectadores reais e suas figurações teóricas. Tal operação é repetida e
aprofundada pela pesquisadora em 2006, com a publicação de seu Figurations du
Spectateur. Retomando o tema do espectador em um de seus artigos mais recentes sobre
o assunto Mervant-Roux (2013, p.21) conclui que:
14
É importante dizer que o espectador do TNP já estava acostumado a responder questionários, segundo
uma prática implementada por Jean Vilar desde que assumiu a direção do teatro (1951/1952). Penso que
Vilar pode ser considerado um dos maiores pesquisadores da prática do espectador. Ele desenvolveu grande
parte do teatro que temos acesso hoje, sempre em estrito diálogo com seu público (WEHLE, 1981).
65
A invenção do espectador contemporâneo
15
Ver Mervant-Roux, 2009.
66
A experiência do espectador contemporâneo
67
A invenção do espectador contemporâneo
história não como uma linha contínua, mas através de quadros que revelam o
desenvolvimento da figura do espectador.
Au théâtre! tem, a meu ver, o trunfo de trazer experiências de saídas ao teatro
que extrapolam o contexto europeu, incluindo estudos de caso de Nova Iorque (EUA) e
Rio de Janeiro (Brasil). Também aponta por uma continuidade dessa saída ao teatro que
começa antes do evento teatral e que continua depois deste.
Outra possibilidade de abordagem é a que Christian Ruby faz a partir da
história do conceito filosófico do espectador entre os séculos XVIII e XX. Em La figure
du spectateur (2012), Ruby traz questionamentos sobre o lugar do espectador e sua
experiência a partir de autores como David Hume, Denis Diderot, Kant, Rousseau,
Merleau-Ponty, Baudelaire, entre outros.
Ainda na categoria histórica, tendo como principal vertente a política, Olivier
Neveux traz em seu Politiques du spectateur (2012) uma nova visão sobre a política que
está profundamente enraizada no teatro e no ato do espectador. Entre os campos da
sociologia e da filosofia Gareth White propõe uma análise da participação do público no
teatro - Audience Participation in theatre (2013).
Entre a sociologia e a história estaria o livro de Marie-Madeleine Mervant-
Roux Figurations du spectateur (2006), que aborda a teoria do espectador a partir de
um olhar da antropologia teatral desenvolvida por Elie Konigson. Na mesma linha sócio-
histórica, segue Le plaisir du spectateur de théâtre (2002) de Florence Naugrette. Helen
Freshwater, por sua vez, propõe uma abordagem sócio-histórica da desta mesma figura
do espectador nas teorias cobrindo casos europeus e norte-americanos em Theatre &
audience (2009). Também em In vivo (2011) Anne Gonon faz uma análise da figura do
espectador nas artes de rua (e ao mesmo tempo da própria formação desta arte no período
pós 1968) e coloca em alguns momentos experiências pessoais dessas teatralidades.
Em How Theatre Means (2014), Ric Knowles parte da história para realizar
uma pesquisa sobre a recepção teatral, buscando desvendar os segredos de como o teatro
cria seus significados e propondo análises de espetáculos. Também em uma abordagem
histórico-cultural dos estudos da recepção Flávio Desgranges traça em seu A inversão da
olhadela (2012) alterações no ato do espectador teatral. No mesmo campo dos estudos
da recepção, com foco na estética, Catherine Bouko lança seu Théâtre et Réception
(2010). Em três continentes distintos estes autores refletem sobre a significação do teatro
e o papel do espectador no teatro contemporâneo.
68
A experiência do espectador contemporâneo
69
A invenção do espectador contemporâneo
16
Realizei em 2011 uma pesquisa inicial sobre a experiência do projeto Formação de Público,
desenvolvido na cidade de São Paulo entre os anos de 2001 e 2004 pela gestão municipal. Esse projeto
piloto foi desenvolvido a partir de uma monografia premiada pelo edital 28/2011 do PROAC SP e serviu
para a construção da pesquisa sobre o espectador contemporâneo que apresento nesta tese.
“Projeto realizado com o apoio do Governo do Estado de São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura -
Programa de Ação Cultural – 2011”
70
A experiência do espectador contemporâneo
Tabela 1 – Percepção dos espaços para práticas culturais e sociais por classes de renda19
17
O SIPS é uma pesquisa feita pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em todo território
brasileiro, privilegiando as capitais e regiões metropolitanas, que visa verificar como a população avalia os
serviços de utilidade pública. O relatório fornece informações importantes para direcionar a atuação do
estado a fim de melhorar o acesso e a qualidade destes serviços.
18
A prática cultural é o nome dado aos hábitos de consumo de cultura como ir ao teatro, ao cinema, a
museus etc.
19
IPEA, 2010, p.7.
71
A invenção do espectador contemporâneo
Estes obstáculos algumas vezes são físicos e outras vezes são fruto de
preconceitos inseridos na percepção que o indivíduo tem do mundo, mediados por sua
experiência em seu meio social (ambos reais para o espectador). A característica do
preconceito é a não modulação de nuances, pelo seu desconhecimento. Por exemplo, na
cidade de São Paulo há semanalmente uma lista de atividades culturais gratuitas para a
20
O Centro Educacional Unificado é um espaço público com escola, creche, equipamentos esportivos como
quadra, piscina e equipamentos culturais como bibliotecas e teatros. A maior parte dos CEUs estava em
2004 localizado nas regiões mais periféricas da cidade de São Paulo.
21
IPEA, 2010, p.10.
72
A experiência do espectador contemporâneo
Fátima Luz - Era assim, a gente quer fazer isto, quer aproximar, quer
levar teatro de muitas maneiras para um público que não tem teatro em
seu cotidiano, que não frequenta teatro (quem já frequenta já vai com
suas próprias pernas). Para o público estudantil, prioritariamente, e aí
se falava em formação no sentido de... agora eu não sei a ordem das
coisas, mas eu me lembro que o Gil quando foi ministro falou uma frase
que muitas vezes eu utilizo, que ele falava assim “o povo sabe o que
quer e o povo quer o que não sabe”. 22
22
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 05/06/2012. Fátima foi coordenadora do
Núcleo de Projetos Especiais do Departamento de teatro da cidade de São Paulo entre os anos de 2001 e
2003.
73
A invenção do espectador contemporâneo
23
IPEA, 2010, p.14.
24
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 26/04/2012. Flávio Aguiar é professor
aposentado da FFLCH/USP e foi o coordenador (orientador) geral do Formação.
74
A experiência do espectador contemporâneo
Maria Sílvia Betti - Só para te dar uma ideia eu conversei com uma
professora da rede que mesmo antes da existência do Formação de
Público, por conta própria, ela tinha lido com a turma dela Um Credor
da Fazenda Nacional do Qorpo Santo, ela leu e estudou com a turma.
Ela motivando e fazendo... aí estava o espetáculo em cartaz com direção
da Georgette Fadel e aí ela foi e levou a turma para assistir e quando
eles foram assistir à encenação tinha um grau de desconstrução daquela
estrutura dramatúrgica que a pegou despreparada....
Leonel – Ela não tinha ido antes? Ela já foi com a turma?
M.S.B. – Ela foi com a turma, porque ela foi para ver aquilo que eles
tinham lido. E os alunos falaram “nossa professora, mas eles mudaram
tudo! Como é que é... a peça é desse jeito aí ou é do jeito que a gente
leu na classe? ” E ela ficou tão arrasada, porque ela realmente não tinha
um treino para lidar com aquilo, com aquela linguagem... e ela me falou
“eu achei que o que eu vi um achincalhe”. Ora, quem faz teatro, artes
cênicas e está mergulhado na sala de espetáculos, nem sabe que esse
tipo de situação existe, porque a pessoa está fazendo para os seus
pares.25
25
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 12/04/2012. Betti atuo como orientadora
do Projeto entre os anos de 2001 e 2003. Atua como professora na FFLCH- USP, onde trabalha com o
estudo de teatro brasileiro e norte-americano.
75
A invenção do espectador contemporâneo
26
A relação entre o teatro amador e o “ser espectador” também é discutida por Marie-Madeleine Mervant-
Roux (2011). Como mostra Roseli Figaro (2012, p.41) em seu artigo “os amadores teatrais, estão mais
próximos dos cidadãos comuns, porque não se veem no fazer teatral, como pessoas especiais, diferentes e
mais importantes do que as outras pessoas, e talvez por isso traduzam com maior densidade os temas e os
conflitos da vida cotidiana. ”
27
O movimento Arte contra a Barbárie foi organizado em São Paulo por grupos teatrais inconformados
com o funcionamento Lei Rouanet que através do mecanismo de renúncia fiscal deixa, ainda hoje, que a
iniciativa privada decida para onde vai um investimento público e contribui para a proliferação de uma arte
voltada para o mercado. Através da organização e dos manifestos lançados em 1999 e 2000 esse grupo foi
responsável por conquistar a implantação da Lei de Fomento ao Teatro na cidade de São Paulo em 2002.
76
A experiência do espectador contemporâneo
estudantes das redes públicas de ensino com a linguagem do teatro. Era um momento
muito especial para o teatro paulistano, quando, após muita luta, conseguiu-se a
implantação de políticas públicas para as artes cênicas. Em 2001 o então Diretor do
Departamento de Teatro, que fazia parte da Secretaria Municipal de Cultura da Cidade de
São Paulo, Celso Frateschi, convidou o diretor e cenógrafo Gianni Ratto para desenvolver
a estrutura de um projeto de formação de público para o teatro.
A equipe era dirigida por Gianni Ratto e coordenada por Flávio Aguiar,
professor da FFLCH- USP. Este convidou a também professora da USP, Maria Sílvia
Betti, para participar do Projeto e junto com Fátima Luz – que era a Coordenadora do
Núcleo de Projetos Especiais do Departamento de Teatro – começam a preparar a
estrutura de funcionamento.28
Tudo aconteceu em poucos meses. A gestão da prefeita Marta Suplicy (PT)
teve início em janeiro de 2001, e já em setembro do mesmo ano se colocava em prática o
Projeto, sendo que os encontros dos monitores já aconteciam antes mesmo deste mês. É
importante destacar as mudanças ocorridas na concepção do que era o Departamento de
Teatros dentro da estrutura da Secretaria de Cultura. Com a entrada de Frateschi, aquela
repartição, que era responsável pela administração dos teatros municipais da cidade de
São Paulo, perde o “s” e passa a se chamar Departamento de Teatro, ganhando mais
espaço para promover e administrar todas as políticas relacionadas ao teatro na cidade.
Esta pequena mudança no nome sintetiza uma grande mudança na função e na
importância da linguagem teatral dentro da SMC (Secretaria Municipal de Cultura).
Gianni Ratto convidou alguns diretores para participar do Projeto, como
Ariela Goldmann, Marco Antônio Braz, Débora Dubois e Willian Pereira, com os quais
começou a discutir quais seriam as peças e como seriam montadas. Por fim, Ariela dirigiu
o espetáculo Caiu o ministério, de França Júnior, Braz dirigiu Geração Trianon, de
Anamaria Nunes, Débora dirigiu Pedro mico, de Antônio Callado e Willian dirigiu Nossa
vida em família, de Oduvaldo Vianna Filho. Percebe-se que as peças não foram
escolhidas ao acaso, mas que são textos de importantes autores que retratam épocas
diferentes do Brasil e do próprio fazer teatral.
28
Falarei de forma breve sobre o histórico do Formação de Público e utilizo apelas as partes que se referem
ao presente trabalho. A monografia completa sobre o Formação de Público está disponível nos anexos da
tese.
77
A invenção do espectador contemporâneo
29
Conforme os dados disponibilizados na revista do projeto.
78
A experiência do espectador contemporâneo
Público descobriu em seu primeiro ano que havia uma cultura nas regiões atendidas e
que era necessário dialogar com ela.
Em 2003, o Projeto teve uma mudança importante, pois os espetáculos que
eram até então montados por atores contratados e exclusivamente para o Formação
passaram a ser realizados por grupos convidados. Os espetáculos apresentados no
primeiro semestre de 2003 foram: Auto da paixão e da alegria, da Cia. Fraternal;
Incrível Viagem, da Cia. Estável, Hysteria do Grupo XIX de Teatro e Birosca-bral, o
único da temporada anterior que continuou a ser encenado nas escolas.
Outra mudança significativa foi a ampliação dos espaços utilizados pelo
Projeto. A partir desta edição foram utilizados também os teatros Paulo Eiró e Flávio
Império. Além dos espetáculos encenados no palco, a peça Hysteria era feita em um
casarão localizado no Sítio Morrinhos, na Zona Norte de São Paulo. A temporada do
segundo semestre de 2003 ainda utilizou como palco a biblioteca da Vila Formosa, na
Zona Leste de São Paulo. Neste semestre, ainda foram incluídos no Projeto os
espetáculos Bzzz...O retrato de Janete, da Cia. Coisa Boa e As roupas do rei, da Cia.
Bendita de Teatro.
Todo esse processo era um ensaio para a “grande mudança” que viria em
2004, com a inauguração dos CEUs. Com a chegada dos CEUs, o Projeto passou a contar
com 3 orientadores (Flávio Aguiar, Flávio Desgranges e Luiz Fernando Ramos), com 9
coordenadores de equipes de monitores e com 36 monitores. Era, como apelidado pela
coordenação do Projeto, o “desembarque na Normandia”. Com este batalhão de pessoas
trabalhando e 12 espetáculos30 em cartaz, a iniciativa se descentralizou e fincou
definitivamente suas raízes na periferia. Este ano foi marcado por uma mudança no modo
de realizar as monitorias nas escolas, que passaram a contar com jogos desenvolvidos a
partir de um eixo temático extraído do espetáculo. Muito das peças participantes das
temporadas (do primeiro e do segundo semestre) de 2004 haviam sido contemplados pela
Lei de Fomento, o que ressalta a intenção da coordenação de colocar em cena grupos
30
Os espetáculos encenados foram: A Mulher do trem, da Cia. Os Fofos Encenam; Bispo, de João Miguel;
Agreste, da Cia. Razões Inversas; A la carte, com a Cia. La Mínima; Macbeth, da Cia Fábrica SP; O
Beijo no Asfalto, com o Círculo de Comediantes; Borandá, com a Cia. Fraternal; Biedermann e os
incendiários, com a Cia. São Jorge de Variedades; Mire e Veja, com a Cia. Do Feijão; A farsa do
advogado Pathelin, dirigida por Cássio Scapin; Casa de Orates, com o Grupo TAPA e Mundus
Immundus, com a Cia. Incomoda.
79
A invenção do espectador contemporâneo
600.000 551.800
500.000
400.000
300.000 257.000
200.000
123.792 136.085
100.000
34.923
0
2001 2002 2003 2004 Total
80
A experiência do espectador contemporâneo
350
305
300
250
250
200
150
113
90
100
50
0 Escolas Atendidas
2001 2002 2003 2004
Gráfico 3 - Escolas atendidas anualmente pelo Formação de Público
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A invenção do espectador contemporâneo
suas vivências ele constrói a sua ideia sobre o teatro que, de forma geral, tem muito a ver
com a da sociedade (macro e micro) na qual está inserido.
A ideia era de que os monitores eram os mediadores, mas penso que era o
próprio teatro enquanto instituição social que realizava essa mediação, facilitada pela
iniciativa e pelo trabalho dos envolvidos no Projeto. Fica claro que o teatro atinge dessa
forma uma importância que raramente tem-se visto na atualidade: uma função dramática
mediadora da sociedade sem a qual ele poderia perecer.
Voltando à fala de Walmir, ela mostra como essas pessoas reais que habitam
a cidade fornecem aos artistas uma espécie de contraponto ao público que é frequentador
do teatro. Esses espectadores reais se contrapuseram, desde o início, ao espectador
imaginário para o qual a ação foi pensada. Aguiar expõe em sua fala a evolução da
abordagem do Projeto diante desses espectadores reais.
Flávio Aguiar - A nossa ideia era assim, nós íamos buscar público na
periferia de São Paulo e nós iríamos encontrar lá páginas em branco.
Nestas páginas em branco nós iríamos escrever o amor pelo teatro e
claro pela transformação social, pelo progresso... e, na verdade, o que
nós encontramos foi uma realidade totalmente diferente. No último ano
inclusive, em 2004, quando a gente mergulhou na periferia por meio
dos CEUs, através dos quais nós atingimos um público muito amplo,
nós nos demos conta que isso não era verdade. Por exemplo, existia
muito teatro na periferia, as pessoas faziam teatro espontaneamente.
Claro, não era uma coisa que a gente chamaria de teatro no sentido que
eu chamo de teatro aquilo que é levado no teatro municipal, ou seja, o
canônico, o institucional. Mas as pessoas faziam teatro. Faziam nas
31
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 19/04/2012. Walmir foi monitor entre
2001 e 2004. Trabalhou como ator do em 2004. Formado em geografia pela USP, trabalha como ator e
dramaturgo em São Paulo. É professor de teatro e mestre em Artes Cênicas pela UNESP.
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A experiência do espectador contemporâneo
32
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em16/05/2012. André foi monitor entre os
anos de 2001 e 2003. Em 2004 atuou como coordenador de equipe. É formado em Agronomia pela USP e
trabalha com teatro, principalmente como ator.
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A invenção do espectador contemporâneo
De onde as escolas eram distantes? Para quem? Para os alunos as escolas eram
perto. Perto de suas casas. Muitos deles deveriam sair raramente de Cidade Tiradentes e
na época do Projeto não existiam os equipamentos culturais que lá existem hoje. O
Formação proporcionava ao mesmo tempo a experiência do teatro e de uma cidade
ignorada para os monitores e alunos. Jogava com a noção dos referenciais.
A questão da distância das escolas atendidas (tidas como longe) apareceu em
praticamente todos os relatos dos monitores do Formação. Não existe uma experiência
“pura” do teatro. Ela está submersa em outras questões como às ligadas ao espaço da
cidade. Para os espectadores de Cidade Tiradentes a experiência do espetáculo começou
realmente muito antes de eles chegarem ao teatro.
Se a distância física era algo a ser superado, também o era a distância social.
Há muito mais do que 40 quilômetros separando a Cidade Tiradentes da Vila Mariana.
Há uma barreira social que faz com que um aluno da Cidade Tiradentes não faça a menor
ideia de onde fica a Vila Mariana e pode-se dizer o mesmo em relação a um aluno que
estuda na Vila Mariana; este último, ainda mais que o primeiro, desconhece
completamente a cidade. Abriam-se novas perspectivas para todos os envolvidos no
Projeto (alunos, professores, monitores, coordenadores, orientadores e artistas). Um
descobria um pouco da realidade do outro. Haviam alunos que nos anos 2000 nunca
tinham andado de metrô, professores de português que desconheciam o gênero dramático,
monitores que não imaginavam quão distante do centro pode ser a Zona Leste. Era uma
série de experiências significativas que os relatos fazem emergir das profundezas da
memória.
Aline Ferraz – teve uma coisa muito engraçada, por exemplo essa coisa
dos professores [...] Grande parte deles nunca tinham ido no teatro e
33
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 23/04/2012. Luiz monitor entre 2001 e
2002. É graduado e mestre em letras pela USP. Atua como dramaturgo.
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A experiência do espectador contemporâneo
assim, coisas muito engraçadas ... muitos deles [os alunos] me narravam
que nunca tinham andado de metrô... muitos moravam em São Paulo a
20, 30 anos e nunca tinham andado de metrô porque achavam caro. Que
essa diferença entre ônibus e metrô antes tinha, que era de 20, 30
centavos. Então andavam de ônibus horas, mas não andavam de metrô.
Para eles tudo era muito novo.34
O discurso de Aline Ferraz, que atuou como monitora, traz em sua fala a
concretude do que foi apontado na pesquisa de práticas culturais realizada pelo IPEA.
Grande parte da população nunca foi ao teatro. Mesmo entre os professores, que são tidos
como mediadores do conhecimento do mundo, ir ao teatro não é algo tão comum. A
experiência de teatralidade dos professores é normalmente muito próxima da de seus
alunos, o que pode explicar, ao menos em parte, a não introdução do teatro nas escolas.
A fala de Ferraz também traz outro fator que parece influenciar a experiência
do teatro: o fator econômico. Se, em 2004, as pessoas preferiam andar de ônibus ao invés
de metrô para economizar R$ 0,30, como pensar que elas investiriam seu tempo e dinheiro
para pagar o deslocamento e um ingresso de teatro?
A experiência do espectador está inserida em um sistema monetário que vai,
segundo o seu grupo de convívio, diferenciar as práticas culturais como mais ou menos
relevantes. Me lembro, por exemplo, de que para mim, por muito tempo, gastar as horas
de meu dia e meu dinheiro para ir ao teatro era um desperdício. Tinha esse pensamento,
mas nunca havia ido ao teatro, até porque esse nunca foi um hábito em minha família ou
entre meu grupo de amigos. Essa é uma lógica que serve a exclusão de uma parcela da
sociedade.
Uma das questões do Projeto era, como já comentei, romper com essa lógica.
Algumas das experiências mais significativas, relatadas por diversos entrevistados,
mostravam marcas de quando a exclusão era reafirmada, em especial, por atores.
Confirma-se dessa forma alguns dos preconceitos dos espectadores: uma parte do teatro
não estava interessada neles. Isso ficou claro em atitudes dos atores sobre o palco.
Posso compreender se no momento que o ator recebe um ovo sobre a cabeça
ele decide parar o espetáculo, mas havia também episódios onde a vaidade e a falta de
sensibilidade dos atores eram chocantes. Muitas dessas companhias, apoiadoras da ida ao
teatro desses espectadores, na realidade demonstravam o desprezo do teatro por eles,
34
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 16/02/2012. Foi monitora no ano de 2004.
Aline é formada em artes cênicas na USP e mestre em artes cênicas pela mesma instituição.
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A invenção do espectador contemporâneo
afirmando a sensação de que lá não era o seu lugar. Uma das histórias que melhor ilustra
esse fato é a do ator que interrompe sua fala, incomodado pelos ruídos da plateia.
35
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 14/03/2012. Flávio Desgranges atuou
como orientador no ano de 2004. Professor da ECA-USP (até 2015) e da UDESC, atua na área de pedagogia
do teatro, com ênfase em estudos da recepção.
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A experiência do espectador contemporâneo
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A invenção do espectador contemporâneo
possibilidade de que pessoas com uma experiência real da violência se choquem com uma
violência estetizada, como a que é comumente apresentada nos palcos europeus. É uma
violência que desligada do contexto da cidade torna-se fake.
Como aponta Josette Féral (2012) há uma tendência da cena contemporânea
(europeia) em trabalhar com uma estética que choque o espectador. Esta tendência pode
ter diversas faces, mas a mais cruel delas seria, para a pesquisadora francesa, quando a
violência é exposta em cena, de forma brutal e direta, de modo que as barreiras entre o
real e o ficcional se esfacelam. Vale a pena trazer um trecho da reflexão da pesquisadora
sobre o assunto que trata do espetáculo Rwanda 9436.
36
Espetáculo criado pelo Grupov que traz para a cena vídeos com cenas reais do genocídio que ocorreu em
Ruanda no ano de 1994.
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A experiência do espectador contemporâneo
Lígia Botelho – Eu entrei na sala de aula e falei “oi pessoal eu vim aqui
falar do Projeto para vocês...” e fui fazer minha abordagem, como
sempre, aquela primeira abordagem, improvisação e depois a partir do
espetáculo eu criava o jogo [...] eu entrei nessa sala e comecei a fazer
meu trabalho e eu tentava e não conseguia, eu tentava e não conseguia
aí eu cheguei uma hora que não sabia mais o que fazer e não tinha
sequer um professor na sala, eles não estavam nem aí... e eu pensei “o
que eu vou fazer?”. Aí chegou uma hora que eu no meu desespero, eu
tinha que fazer o trabalho e eu queria fazer. Eu subi na cadeira (parecia
política) eu falei gente... falei vamos conversar com a rapaziada e
comecei a fazer o trabalho. Nesse momento que eu subi na cadeira e
comecei a fazer o trabalho começou a melhorar alguma coisa muito
pouca coisa e de repente apaga a luz... apagão na sala. E o que eu vou
fazer com esse monte de marmanjo? E eu tava ligada no movimento
que ali tinha alguma coisa pesada rolando. E aí eu comecei a tremer. E
os professores já tinham me falado “é Lígia, você tem certeza que você
vai fazer? Só que o negócio aqui é barra pesada”. Então eu já tinha
ouvido comentários na sala dos professores... alguns deles tinham
chegado pra mim e dito “olha Lígia, uma vez uma professora foi
pisoteada aqui, tá? É porque apagão é normal aqui quando rola o
movimento, porque tem uma pessoa aqui que comanda a comunidade e
os alunos não se interessam por nada mesmo e cuidado....”. E aí quando
apagou a luz, entendeu? Eu fiquei num desespero, 9h da noite eu aqui
naquele lugar... daí eu falei peraí... um professor veio me ajudar e
acendeu a luz e eu fiz um trabalho bem capenga aquele dia. Mas não
era porque eu não quisesse... eu tentei, eu me esforcei, fui para outra
sala depois... não, acho que era os alunos que iam para aquela sala...
aquela era a sala da monitoria naquela escola. Quando eu terminei o
trabalho, desligaram a luz naquele dia umas 3 vezes durante o meu
trabalho (os alunos iam no quadro e desligavam. Eles tinham muito
mais poder do que qualquer professor ou alguém lá dentro). 37
A teatralidade que Lígia tenta fazer emergir através de sua atitude física e de
sua colocação espacial é como um flash em meio à realidade de violência desta escola de
periferia. Talvez seja possível dizer que a violência possui uma teatralidade própria que
através de suas técnicas e instrumentos (como as armas). Enquanto no palco a introdução
da violência da realidade é feita de modo a conservar a segurança do espectador ao trazer
37
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 04/05/2012. Lígia foi monitora entre os
anos de 2001 e 2004. É formada em arquitetura e mestre em artes cênicas pela UNESP. Atua como atriz e
professora de teatro.
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A invenção do espectador contemporâneo
vídeos dos fatos, como em Rwanda 94 do Groupov ou em Arquivo 38de Arkadi Zaides,
nos relatos aparecem espectadores que estão realmente em risco (assim como os artistas
e o próprio teatro).
Penso que a narrativa de Dorberto traz uma história que jamais poderia ser
imaginada pelos espectadores que conheci na França (e que assistiram, muitos deles,
espetáculos como Rwanda 94 e Arquivo). Por que fazer teatro correndo risco de vida?
Penso que o motivo principal está ligado ao papel de resistência que o teatro pode ter na
sociedade.
Será que o teatro resiste à violência da realidade? Eu que fui criado durante
toda minha infância e adolescência no bairro citado por Dorberto, por muito tempo pensei
que a cena descrita por ele estava dentro da normalidade. Como a diretora da escola, por
38
No espetáculo Zaides traz à cena imagens filmadas por voluntários palestinos do Projeto Câmera de
B’Tselem (o Centro de Informações Israelense pelos Direitos Humanos nos Territórios Ocupados), que
documentaram suas vidas em áreas de conflito.
39
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 20/04/2012. Dorberto foi monitor entre
os anos de 2001 e 2003. Em 2004 atuou como coordenador de equipe. É formado em letras na USP e é
diretor de teatro.
90
A experiência do espectador contemporâneo
longo tempo, não questionei poder da violência. Em meu encontro com o teatro, descobri
que mais que contar belas histórias, as teatralidades poderiam servir para levantar
questões, provocar o estranhamento da realidade pelos espectadores (tal como propõe
Bertolt Brecht) e que estas operam uma experiência fundamental para o exercício da
cidadania.
Nesse ponto, devo dizer que o projeto é uma das iniciativas mais ousadas que
conheci e que se propôs a questionar a violência em seu coração. Não procuro valorar ou
desmerecer os espetáculos que denunciam a violência para os que estão fora dela, mas
ressalto que o diferencial do Formação de Público era o de atingir espectadores que
enfrentam diariamente a sensação (e o risco real) de que podem não voltar vivos para a
casa40.
A introdução do teatro nessas situações cria em um primeiro momento uma
desestabilização do sistema espetacular da violência. Ao persistir a esse primeiro
momento, a iniciativa acaba por ganhar espaço, como narra Ligia Botelho no desfecho de
seu relato.
40
Penso que não cabe aqui uma digressão, mas vale apena ressaltar que diversos estudos mostram que a
violência atinge de maneira contundente os homens jovens, especialmente os negros, das periferias
brasileiras. Um dos estudos mais recentes é o Mapa da Violência 2014, que pode ser acessado em
http://www.mapadaviolencia.org.br
91
A invenção do espectador contemporâneo
A.F. - Dei uma de mano... Claudia e eu sentamos perto dos caras, como
manos e dissemos “o mano, segura a onda, guarda esse troço, que tá
acabando essa peça” porque, o que a gente ia fazer? Chamar a GCM,
parar o espetáculo e reproduzir uma coisa que eles estão cansados de
ver, que é a exclusão? Então a gente não queria isso assim... e aí esses
manos viram parceiros.
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A experiência do espectador contemporâneo
maioria jovens, eram levados até a área mais central da cidade, como o teatro João
Caetano.
Dorberto Carvalho – O segurança [do teatro João Caetano] foi dar uma
geral, que ele foi polícia, foi dar a geral no cara e ele viu que o cara
estava armado, daí ele falou para o cara “pô irmão, você tá armado
irmão? ” Daí o cara falou “sabe o que é que é senhor, eu tenho que andar
armado porque onde eu moro é perigoso”, daí ele falou “ Tá. Então você
deixa a arma aqui no teatro e depois na saída você pega…”, daí o cara
falou “tá, eu deixo! ” e deixou a arma....
Isabel Santos – Não foi tranquilo [ir no CEU da Paz] não... isso que eu
ia te falar... o que me marcou... [...]eu acho que eram muitos ônibus que
subiam lá o tempo inteiro. Direto tinham apresentações de teatro do
Formação de Público lá e a comunidade começou a se irritar porque a
gente para entrar ali no CEU da Paz passa pelas casas. Inclusive os
ônibus, como é morro, eles iam em curvas e as vezes dava a impressão
que a gente ia entrar no quintal das casas. Eram casas que estavam ali
em áreas de risco e, de repente, eles começaram a jogar pedra no ônibus.
[...] então ao mesmo tempo foi muito engraçado porque tinham alguns
alunos deitando no chão do ônibus. O próprio motorista... [...] eles
adoraram porque eles estavam no meio de um fogo cruzado e fizeram
bagunça. Antes de passar o motorista avisou “fechem as janelas porque
eles podem jogar pedra”.41
41
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 18/05/2012. Isabel participou como
professora entre os anos de 2001 e 2004. Era coordenadora da EMEF Coronel Romão Gomes.
93
A invenção do espectador contemporâneo
Sobre esta história, André Blumenschein oferece sua visão como monitor
responsável pelo debate naquela noite. Há o problema que vem da escola, mas ao chegar
ao teatro este se somava aos problemas de outras escolas e mesmo aos problemas do
próprio Projeto.
42
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 04/05/2012. Cida Ruiz foi monitora nos
anos de 2002 e 2003. Atuou como coordenadora de equipe entre o fim de 2003 e 2004. É Doutora em
comunicação pela USP e tem mestrado e graduação em história. Atuou como professora de escola pública
e trabalha como professora universitária.
94
A experiência do espectador contemporâneo
1.2.3 Vidas
O espectador que vai ao teatro tem um determinado percurso de vida. O
evento teatral pode estabelecer ligações com esse percurso e os relatos do Formação
trazem diversos momentos nos quais isso acontece. O espectador (não especializado)
enxerga a arte com os mesmos olhos que vê a vida e nesta operação se aproxima muito
ao olhar sugerido pelo professor americano John Dewey (2010). Da mesma forma ele
olha para a vida e vê arte. Esse espectador real mostra como a pesquisadora Marie-
Madeleine Mervant-Roux estava certa em afirmar que:
Tanto a teoria quanto os artistas parecem ignorar, cada vez mais, essa
dimensão do teatro enquanto pertencente a um mundo e a um tempo que se estende para
além do evento teatral. O artista que é capaz de compreender isso modifica sua produção.
O relato de Janaína Leite, atriz do Grupo XIX de Teatro, que apresentou a peça Hysteria,
uma das que obtiveram maior sucesso entre os espectadores, mostra como quando o
artista compreende isso e se coloca no lugar do espectador o quanto sua produção pode
ser alterada.
95
A invenção do espectador contemporâneo
ali podendo trocar com eles de um outro lugar... foi muito legal, muito
legal...
E ao mesmo tempo, eu não sei, essa coisa da memória como é.... porque
eu tinha uma sensação de uma coisa tão pobre [ao ver a escola naquele
dia] e eu não tinha essa memória de mim mesma, ou porque não era ou
porque quando você está ali dentro daquele caldeirão você não
consegue ter esse tipo de distanciamento, das condições, dos limites,
das pressões que estão rolando ali naquele contexto. Quase não
reconhecer no sentido assim de que eu já tive daquele lado ali. Foi muito
doido, muito curioso. Eles eram muito vivos, né? Uns relatos muito
crus, porque a gente tem muita camada quando a gente vai comentar
um espetáculo de teatro, a gente já tem muito filtro de linguagem que a
gente sabe, a gente sabe o que o outro espera ouvir... essa galera não
tem. Então tudo vinha muito fresco, da experiência: eu senti aquilo,
lembrei daquilo. A pessoa diz “você é o personagem que não sei o que
lá, não sei o que lá... você é a personagem que gosta de dar”... e é isso
assim... e durante também, que era um caos às vezes, não era só
maravilhoso. A gente não conseguia terminar a apresentação do nível
de algazarra, ou dos caras quererem passar a mão, sabe? Porque a gente
ficava muito perto. No caso do Hysteria como é que eles entendiam?
Porque num teatro, bem ou mal, já tem uma referência. Se perguntasse
para eles o que é teatro? Talvez viesse palco, plateia, mas acho difícil
que fosse vir o que a gente fazia. As meninas entre a gente, os caras
mega perto, falar o tempo inteiro e essa voz ser incluída... não sei,
parece que ninguém tinha referência de que isso podia ser teatro. Então
era muito doido, porque quando você assiste uma peça interativa e tem
a convenção, você sabe e não quer atrapalhar a peça, só vou responder
aquilo que ele me perguntou, isso não é a vida real, você participa já
dentro das regras do jogo. Os caras lá não dominavam as regras do
jogo e nenhuma convenção, então esta relação era muito explodida
assim, muito espontânea e muito... às vezes para voltar para o roteiro
da peça a gente tinha que fazer uma força senão eles iam abrindo e
abrindo e falando. Você perguntou uma coisa, eles querem falar.
Ninguém sabe que tem que ser curto. Você convida a participar e depois
quer limitar a participação? Quer falar e depois não pode, quer passar a
mão e não pode... é muito tênue esse limite quando você não tem o
código.
A gente já fez para plateia de 13, de 12 anos. A gente pensava que não
ia rolar, mas sei lá, eles encontram outras portas de entrada, vão pelo
lúdico mesmo, pela brincadeira, mas eles tinham um entendimento
muito mais impressionante do que a gente imaginava. Quando você
perguntava “o que você sentiu? O que você entendeu? ”. Eles liam a
peça assim como muito adulto fazia, o entendimento temático, a
discussão, da maneira deles de formular, mas estavam lá as linhas de
força da peça. O embate entre as épocas, o feminino... a gente tentava
jogar perguntas para eles também, porque eles tinham mania de
perguntar para explicar. A gente falava: “ mas e você, o que você
achou? Porque os homens estão aí e a gente está aqui? ”. Então tinham
várias respostas interessantes que tinham muito a ver. Todas eram
possíveis. Então era legal, óbvio que era diferente.
Tinha uma coisa interessante de falar “ah, teatro” então tinha uma coisa
meio chique assim das meninas irem de longo... juro por Deus tinham
várias meninas que iam de longo, de salto, porque era um evento,
96
A experiência do espectador contemporâneo
porque o teatro não faz parte da vida de ninguém. Não é que nem no
campinho de futebol do bairro.43
43
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 17/04/2012. Janaína participou do Projeto
como atriz no ano de 2003. É integrante do Grupo XIX de teatro e mestre em artes cênicas pela USP.
44
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 21/05/2012. Luciana foi monitora entre
os anos de 2001 e 2003. Em 2004 atuou como coordenadora de equipe. Formada em letras pela USP
trabalha como professora na rede municipal de São Paulo.
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A invenção do espectador contemporâneo
A invenção do espectador passa por coisas que jamais passaram pela teoria
teatral que dele trata como a questão de que roupa utilizar. A formação desse espectador
se dará verdadeiramente pela prática que muitas vezes é imitativa. Um dos principais
mecanismos de aprendizagem é a imitação e é assim que o espectador pode se sentir
pertencente a uma determinada realidade social. Ao ir pela primeira vez ao teatro a
espectadora teve uma leitura de que a plateia ia vestida de maneira “glamorosa”, como se
vê em filmes. Certamente não era o caso, mas poderia ser se ela tivesse ido ao Teatro
Municipal, por exemplo. Assim, através de sua experiência, provavelmente na próxima
vez ela não iria com esse tipo de roupa (ou talvez não fosse mais ao teatro).
O fato é que as questões do comportamento social adequado para o teatro não
são óbvias e se mostraram verdadeiramente importantes para os espectadores do
Formação.
98
A experiência do espectador contemporâneo
alguma coisa importante pra tá lá! ”. Então todo mundo que assumia o
palco tinha algo de importante para dizer, mas na questão com o EJA.
Com a molecada que era do ensino regular, era mais difícil – eu tô
falando do ponto de vista da dedicação porque mistura a minha
passagem enquanto coordenador do CEU e enquanto professor de artes,
então eu tenho essas duas experiências...45
Mas afinal qual a diferença entre os atores da novela e do teatro? Entre o culto
e o teatro? Questões essenciais para os espectadores reais que muitas vezes não podem
ser sequer formuladas quando o teatro trata com uma plateia habitual.
45
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 16/04/2012. Jacson coordenador de
cultura do CEU Alvarenga em 2004. Também participou do projeto como professor no mesmo ano.
46
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 11/04/2012. Paulo participou como aluno
do Projeto no ano de 2004.
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A invenção do espectador contemporâneo
Aline Ferraz- Uma coisa que marcou muito é que quando o agente
cultural fazia o trabalho com os alunos e ele funcionava, esses mesmos
alunos voltavam com suas famílias no final de semana, que era um dia
que era aberto e não tinha monitoria. Então isso é muito legal porque
eles tinham o papel de agentes culturais, porque eles tinham de alguma
maneira tentado ser multiplicadores daquilo...
100
A experiência do espectador contemporâneo
101
A invenção do espectador contemporâneo
nem sempre são tão claras. O teatro continua sua vida em uma relação simbiótica com
seus espectadores. A memória do evento teatral podia se manifestar de maneira direta
como narrado por Paulo ou de formas mais veladas.
Jacson Matos– nem os monitores não viam isso, mas eu que estava lá
[no CEU Alvarenga] todo dia via, que o Formação voltava, que
repercutia. Exemplo: cantarolar uma música da peça. Entende? O cara
bagunçou durante a apresentação, mas ele gravou a música que era
cantada na peça. Ele sabe trechos da peça.
47
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 16/05/2012. Liana participou como
professora do Projeto entre 2001 e 2002. Era professora de português da EMEF Luiz David Sobrinho.
102
A experiência do espectador contemporâneo
48
Entrevista sobre o Projeto Formação de Público realizada em 27/03/2012. Luiz atuou como orientador
do Projeto nos anos de 2003 e 2004. Professor da ECA-USP e atua na área de teoria do teatro.
49
O Serviço Social do Comércio possui diversos equipamentos culturais na cidade que são muito
procurados por escolas para a promoção de passeios. Um dos mais amados pelas crianças são os passeios
aos parques aquáticos.
50
Parque de diversões que era situado na cidade de São Paulo e para o qual as escolas organizavam várias
excursões durante o ano.
103
A invenção do espectador contemporâneo
de Paulo é capaz de mostrar em seu tom quão significativa foi para ele aquela noite no
teatro.
Ainda que Paulo, como muitos dos outros espectadores, já tivesse assistido a
“peças mais comerciais” (como ele mesmo define), o Projeto Formação de Público
permitia o acesso de um teatro de pesquisa e experimentação. Não se coloca em discussão
com isso apenas a questão da qualidade das encenações, mas da diversidade de linguagens
e propostas que existem dentro do próprio teatro. Neste sentido, o Formação criava a
possibilidade de um desenvolvimento de repertório para o espectador.
Paulo Sant’ Anna - Tinha assistido algumas peças (entre duas e cinco)
voltadas para o mercado e ali, na peça O beijo no asfalto, tinha algo
diferente que me saltou os olhos. Então quando eu cheguei e já vi uma
proposta diferente que era a coxia aberta, os atores sentados à vista do
público no palco o tempo inteiro, o cara levanta e vai para a cena, eu
falei: nossa que interessante isso! Porque quando você começa a fazer
teatro você não imagina quais são as possibilidades disso.
Através desta fala Paulo expressa como sua atenção foi surpreendida por uma
estética diferente daquela que ele estava habituado. Assim como veremos nos relatos dos
espectadores das encenações de Romeo Castellucci e de Antônio Araújo, por mais que o
teatro faça a desconstrução da ficção desde Brecht, esse não é o modelo de teatro que as
pessoas têm por padrão. A desconstrução da ficção, a fragmentação do texto, a
deambulação, ainda podem provocar surpresa na maior parte das pessoas não habituadas
à linguagem teatral contemporânea. É provável que este choque seja um fator
fundamental para que a memória tenha se instalado de forma tão contundente. Se “a
primeira vez a gente nunca esquece”51, é justamente porque pode haver um choque que
rompe a barreira atencional e que permite que o fato se instale no âmago do ser. Este fato
pode se desenvolver muitas vezes de forma subterrânea.
Muitos são os depoimentos que mostram como esse processamento da
experiência teatral era significativo e que a mesma peça que para uma pessoa estava
associada a sentimentos positivos, para outra poderia ter um caráter negativo. Esse caráter
negativo poderia estar associado a uma experiência traumática individual ou mesmo a um
51
Ditado popular comumente utilizado para designar a primeira relação amorosa.
104
A experiência do espectador contemporâneo
tabu. Para as pessoas que o Projeto atendia, uma peça de teatro, por mais tradicional que
fosse em sua forma, tinha o poder de colocar em xeque os seus valores éticos, morais e
religiosos. Há diversos relatos de pessoas que preferiam não participar do Projeto ou que
saíam no meio das apresentações. Os motivos eram variados, mas estavam em sua maioria
ligados a questões-tabu para a sociedade da qual vinham. De forma recorrente a trava à
experiência teatral se impunha por questões religiosas:
Se para Paulo o teatro se liga a sentimentos positivos que fazem que ele
busque a repetição deste prazer no próprio teatro, por outro lado, para estas pessoas para
as quais o teatro representava uma ameaça a suas crenças e impotências, lhe era atribuído
um caráter negativo e, portanto, ele era negado, evitado.
Pude constatar esta esquiva por parte das pessoas da periferia, em especial
dos adultos, durante o projeto de uma oficina pontual de Formação de Público, que
desenvolvi na EMEF Monte Belo, no extremo noroeste da cidade de São Paulo, no ano
de 2012.
A oficina, que foi realizada com alunos das 7ª e 8ª séries do ensino regular e
com alunos das 3º e 4º séries do EJA (Educação de Jovens e Adultos), demonstrou a
dificuldade dos espectadores em discutir alguns temas. A peça escolhida para esta
formação foi Boca de Ouro de Nelson Rodrigues, dirigida por Marco Antônio Braz e
apresentada no teatro do SESI na Avenida Paulista. Durante a preparação para a ida ao
teatro, era comum alunos (em sua maioria com mais de 40 anos) que fugiam da oficina.
Eles fugiam por temer a possibilidade de ter que se defrontar com uma das suas maiores
dificuldades: ler. Fugiam porque teatro “não era coisa de Deus” ou porque tinham medo
de ter que falar em público. Ao mesmo tempo queriam fazer a oficina e foram até lá
voluntariamente. Era claro o conflito entre o desejo de prazer e a moral da realidade.
Ainda que tenha sido uma pesquisa piloto e menos complexa do ponto de
vista metodológico do que a que realizei com os espectadores dos espetáculos dirigidos
por Antônio Araújo e Romeo Castellucci, creio que os relatos falam de um espectador
que está ausente do teatro e que representa a maior parte da população. Como pude
105
A invenção do espectador contemporâneo
106
A experiência do espectador contemporâneo
2. A experiência da pesquisa
Antes de entrar na análise do material coletado ao longo desta pesquisa,
proponho ao leitor uma localização da experiência deste trabalho, evidenciando assim o
processo. Penso que a partir desse processo ficará mais claro para o leitor o lugar do qual
falo e meu ponto de vista sobre esse material. Há diversas escolhas nesse processo que
não podem ser ignoradas como, por exemplo, a escolha da entrevista aberta para a geração
de material de pesquisa, na qual “o trabalho de elaboração é ao mesmo tempo ‘emergência
do inconsciente e construção do discurso’” (BARDIN, 1988, p. 173).
Diante do fato de que uma experiência, tanto no que diz respeito à produção
como à recepção da arte, está vinculada a um grande número de aspectos subjetivos,
muitas vezes as metodologias de pesquisa desenvolvidas pelas ciências “duras” não dão
conta da complexidade do fenômeno e são insuficientes para uma discussão estética e
filosófica da arte. Questionários, testes de reflexo, filmagens, entre outros processos
largamente utilizados em algumas áreas de estudo, como a psicologia e a medicina,
mostram-se incapazes de abordar todos os aspectos subjetivos da experiência do
indivíduo. Como afirma Morin, o ser humano é, ao mesmo tempo, singular e múltiplo
(2011, p.51). Por isso é necessário apreender o que está tecido junto aos fatos objetivos.
Isso torna a entrevista diferente de um questionário ou de outra forma de saber, pois “a
entrevista é um encontro social, não simplesmente um lugar para a troca de informações”
(COHEN et al., 2007, p.350). Ela é por isso uma forma privilegiada de estudo de uma
realidade dentro de seu contexto sociocultural. Por outro lado, há também uma seleção
dos espectadores que buscou contemplar diferentes faixas etárias e ocupações.
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52
Dentre os espectadores que tiveram as suas entrevistas transcritas cerca de 80% são pessoas cujas as
ocupações principais não se relacionam ao teatro. O número é provavelmente alto se comparado a
porcentagens de trabalhadores do teatro dentro do quadro da população economicamente ativa, em especial
no Brasil, mas demonstra uma restrição se compararmos o percentual com que encontramos na primeira
abordagem que contava com pelo menos 50% de indivíduos ligados ao teatro.
109
A experiência da pesquisa
especialista possui um repertório que evita, na maior parte dos casos, os choques de
atenção. Dessa maneira seu olhar, em muitos casos, é diametralmente oposto ao que
vamos encontrar no espectador não-especializado.
Desta maneira cheguei a uma seleção de espectadores que privilegia a
multiplicidade de olhares, idades e ocupações. São 10 pessoas que compõem a amostra
principal, ou seja, que realizaram as entrevistas seguindo a metodologia prevista e mais
11 pessoas que deram ao menos uma entrevista gravada. Antes de entrar no rico universo
trazido por estes espectadores, ou seja, na pesquisa principal deste doutorado, penso que
é necessária uma introdução do leitor ao universo que esses espectadores participam. Para
tal proponho dois ensaios que introduzem as obras de Romeo Castellucci e Antônio
Araújo a partir de obras anteriores as selecionadas para o corpus.
Abordo Sobre o conceito da face no filho de Deus (SRS) e Bom Retiro 958
metros (TV) utilizando múltiplos materiais, que permitem uma aproximação da
experiência do espectador do teatro contemporâneo que identifica vestígios de sua
experiência nesses materiais e mapeia as influências que esta experiência pode sofrer.
Outra questão interessante trazida nesses ensaios é a experiência no território brasileiro
que permite uma comparação como a experiência em território europeu que será tratada
no próximo capítulo.
Depois desses primeiros ensaios, busco contextualizar e descrever os
espetáculos do corpus Go Down, Moses e Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues
qu’on ne parle pas, partindo de minha própria experiência, como pesquisador, em
território europeu, no ano de 2014.
110
A experiência do espectador contemporâneo
Aline53 – No dia que eu fui ver [o Bom Retiro 958 metros] tinha um
menino de Cuba assistindo que era um menino que está na SP [Escola
de Teatro] fazendo direção. Eu o conheci na ocasião por meio de amigos
53
Todos os espectadores entrevistados tiveram seus nomes alterados para preservar suas identidades.
Entrevista coletiva realizada pelo autor na Universidade de São Paulo no dia 11 de maio de 2013.
111
A experiência da pesquisa
112
A experiência do espectador contemporâneo
113
A experiência da pesquisa
54
Conforme descreve sua tese: Araújo, Antônio. A encenação no coletivo: desterritorializações da função
do diretor no processo colaborativo. São Paulo: ECA/USP, 2008.
55
Um dos mais importantes rios do Estado de São Paulo, cruza toda a cidade de São Paulo. É um rio muito
poluído, quase um esgoto a céu aberto, pelo qual o Teatro da Vertigem levou seus espectadores para a
assistir a bordo de um barco a peça BR3.
114
A experiência do espectador contemporâneo
O espetáculo, feito como uma procissão pelas ruas do bairro parte do prédio
construído para a Escola de Farmácia de São Paulo entre 1901 e 1905 (ponto A na Figura
1), lugar que após sofrer diversas ampliações foi tombado em 1982 pelo Governo do
Estado de São Paulo e abriga desde 1987 uma oficina cultural do estado.
56
Este trajeto foi feito com base nos seguintes endereços:
A - Rua Três Rios, 363; B - Rua Cesare Lombroso, 259; C – Rua Três Rios, 252
Fonte: Google Maps
115
A experiência da pesquisa
57
Fonte: Arquivo do Grupo
116
A experiência do espectador contemporâneo
58
Utilizo em meu trabalho diversos trechos de entrevistas coletados por outros autores.
117
A experiência da pesquisa
118
A experiência do espectador contemporâneo
119
A experiência da pesquisa
pode atrair a atenção tão fortemente quanto uma explosão. O mesmo se pode dizer para
algo inesperado em um espaço conhecido. A intensidade da atenção está diretamente
relacionada à memória, e trabalha sobre a confirmação ou a quebra de expectativas,
baseadas em nossas experiências anteriores e em nossa projeção do futuro.
Quando tratamos da audição isso fica mais claro ainda, pois não deixamos
nunca de receber vibrações do ambiente em nossos tímpanos, não somos capazes de
fechar os ouvidos, como fazemos com os olhos, e, no entanto, nossa audição pode ser
direcionada para certo som ou mesmo suprimida de nosso consciente como quando
dormimos. Há ainda a questão que o som, enquanto vibração, nos chega também através
do ressoar em nosso corpo. Mesmo os surdos podem sentir e reconhecer as vibrações
rítmicas dos tambores, por exemplo. O som tem um tipo de acesso direto à memória,
fixando-se sem passar pela consciência.
Como demonstram estudos (XAVIER, 2013) ainda que um evento não seja
registrado no nosso consciente ele pode influenciar de maneira circunstancial no
desenvolvimento de tarefas. Voltando-se para a peça do Vertigem é possível afirmar que
ainda que o espectador tenha concentrado a atenção nos atores que performavam diante
de seus olhos, a memória do espetáculo está impregnada da cidade que estava viva ao
redor da cena. Tal fato aparece muito claramente no relato de Talita59, ao ser questionada
sobre qual era a lembrança mais marcante do espetáculo.
59
Bom Retiro 958 metros. Entrevista realizada na cidade de Paris em 26/06/2014. Espetáculo assistido em
março de 2013.
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris. Espetáculo e 1ª entrevista em 06/11/2014. 2ª
entrevista em 10/11/2014. 3ª entrevista em 16/06/2015. Talita é brasileira e morava em Paris, tinha 31 anos,
era doutoranda em artes visuais e professora de creche. Foi ao espetáculo com Roberta, por minha sugestão.
60
Entrevista informal realizada em abril de 2013 e transcrita em nosso caderno de campo.
120
A experiência do espectador contemporâneo
Esse mesmo trecho da peça, já citado anteriormente por Ismail Xavier como
um desfile e abordado por Talita como uma luta, reaparece diversas vezes nos textos do
dossiê publicado pela revista Sala Preta.
Por motivos diversos essa foi também a cena mais significativa para um dos
espectadores, entrevistado por Beth Néspoli após o espetáculo.
A cena mais marcante para mim foi a briga das mulheres, porque é
assim mesmo, quando duas pessoas com a mesma capacitação
concorrem a uma vaga, elas têm de se matar para consegui-la -
funcionário público, formação em arquitetura, 30 anos. (NÉSPOLI
2012, p.241)
61
Fonte: arquivo do grupo
121
A experiência da pesquisa
122
A experiência do espectador contemporâneo
Esse tipo de interpretação só seria possível para uma pessoa que tivesse tal
conhecimento. Eu mesmo nem imaginava isso até ler o artigo do arquiteto Marcos Cartum
(2012), para quem pode ser vista, em vários momentos da peça, essa alusão ao meretrício.
Se a cena da luta de duas mulheres nuas no meio da rua foi mais marcante
para alguns e a deambulação pelo centro comercial deserto e escuro foi um momento
crucial para outros, além disso, a entrada no TAIB – Teatro de Arte Israelita Brasileiro
(ponto C da figura 1) não é menos citada. Como conta Mauro Meiches (2012, p.191):
123
A experiência da pesquisa
124
A experiência do espectador contemporâneo
Minha recordação do TAIB é que ali tinha assistido a uma peça de teatro
amador. Era um teatro decadente próximo da Estação da Luz. Um colega do curso técnico
em mecânica disse que uma amiga iria se apresentar e me chamou para acompanhá-lo.
Chegando perto do teatro, vi em um bar dois dos atores dos filmes de Francisco
Cavalcanti63. Um era seu filho, Fabrício Cavalcanti, e o outro era Reynaldo Sapucaia,
atores e ícones dos filmes de Francisco. Comecei a desconfiar que aquele poderia ser um
espetáculo dirigido pelo mesmo Francisco Cavalcanti. Quando a cortina se abriu, minha
suposição se confirmou e o próprio Francisco estava em cena, amparado por Japonês
(outro ator de seus filmes). Me lembro da precariedade, do cheiro forte de mofo do lugar,
da felicidade dos atores de estar em cena e da minha própria em ver histórias insólitas
materializadas no palco.
62
Fonte: Arquivo Pessoal
63
Francisco Cavalcanti é um dos diretores mais representativos do “cinema da Boca do Lixo”. Ele mantinha
um grupo de teatro amador que ensaiava no Brás, São Paulo, SP. Tomei contato com seus filmes através
das exibições que ocorriam semanalmente no canal comunitário de São Paulo.
125
A experiência da pesquisa
126
A experiência do espectador contemporâneo
127
A experiência da pesquisa
Sobre o conceito da face no filho de Deus (Sul concetto di volto nel figlio
di dio, originalmente em Italiano) espetáculo da Socìetas Raffaello Sanzio dirigido por
Romeo Castellucci, teve sua estreia no ano de 2010 em Essen (Alemanha). O espetáculo
por um lado apareceu para a academia ou o meio artístico contemporâneo como
representativo das “tendências” das teatralidades contemporâneas, mas também ficou
conhecido pela população francesa, como o espetáculo interrompido por um grupo de
católicos integristas em Paris.
A peça, saudada pelo público do teatro como mais uma obra do celebre artista
italiano, em 2011 ganhou tons dignos das páginas policiais nos jornais franceses ao ser
alvo de protestos, chegando a ser perturbada, em sua estreia parisiense. Como mostra
Nathalie Heinich (1998, p.146-148), nas artes visuais é longa a história de obras e artistas
que foram acusados de atos blasfematórios por conta de suas obras. A autora cita
exemplos como Messe pour um corps (1969) de Michael Journiac e Celtic (1971) de
Joseph Beuys.
64
Romeo Castellucci: la pièce qui fait scandale. In Le Figaro, par Harmelle Eliot, 30/10/2011. Disponível
em http://www.lefigaro.fr/theatre/2011/10/30/03003-20111030ARTFIG00226-romeo-castellucci-la-
piece-qui-fait-scandale.php Acesso em 15/09/2015.
128
A experiência do espectador contemporâneo
Figura 6 – Foto do espetáculo Sobre o conceito utilizada pelo jornal Le Figaro para a matéria de 30-10-
201165
65
Foto disponível no site do jornal http://www.lefigaro.fr/theatre/2011/10/30/03003-
20111030ARTFIG00226-romeo-castellucci-la-piece-qui-fait-scandale.php. Crédito: Anne-Christine
Poujoulat/AFP
66
“Castellucci arrête le Christ à Avignon” In Le Monde, par Fabienne Darge, 22/07/2011. Disponível em
http://www.lemonde.fr/ete/article/2011/07/22/castellucci-arrete-le-christ-a-
avignon_1551663_1383719.html#bMt7POoTciW10qgc.99 Acessado em 15/09/2015
129
A experiência da pesquisa
Voltando à questão das fotos, elas parecem servir para “colocar mais lenha”
nessa fogueira acesa pelo grupo integrista católico. Se na matéria do jornal Le Figaro
eles mostram a foto, totalmente fora de contexto, de um ator que parece beijar a boca da
imagem da reprodução da pintura de Antonello de Messina, pintor renascentista, em
dimensão aumentada sobre uma tela ao fundo do palco, o artigo do Le Monde de 22 de
julho já havia estimulado a polêmica, ao colocar, também fora de contexto na matéria, a
imagem de meninos “apedrejando a imagem de Cristo”.
67
No cartaz lê-se “chega de cristofobia”. Foto disponível em http://www.metronews.fr/paris/sur-le-
concept-du-visage-du-fils-de-dieu-au-theatre-de-la-ville-les-catholiques-integristes-ecopent-d-
amendes/mmfu!iS0ZRIvEg3jjE/ Sem créditos
130
A experiência do espectador contemporâneo
Figura 8 – Foto de Sobre o Conceito utilizada pelo jornal francês Le Monde de 22/07/2011 para ilustrar
a reportagem sobre o espetáculo68
Deixando de lado o fato de que boa parte do frisson causado pela peça se deva
a uma instigação da imprensa francesa, fato que pode ser comprovado pela absoluta
normalidade na qual foi apresentada a peça em países como a Itália (“berço histórico do
catolicismo”) e no Brasil (“maior país católico do mundo”), bem como em muitas outras
partes do mundo, essa é uma peça que realmente parece estabelecer uma conexão, já
quase perdida, entre o teatro e a sociedade contemporâneos.
68
Foto disponível em http://www.lemonde.fr/ete/article/2011/07/22/castellucci-arrete-le-christ-a-
avignon_1551663_1383719.html#bMt7POoTciW10qgc.99. Crédito: Anne-Christine Poujoulat/AFP
69
“Peça italiana leva polêmica e inquietação ao Theatro São Pedro”, In: Correio do Povo (sem autoria),
18/09/2013. Disponível em http://www.correiodopovo.com.br/ArteAgenda/507924/Peca-italiana-leva-
polemica-e-inquietacao-ao-Theatro-Sao-Pedro. Acessado em 15/09/2015
131
A experiência da pesquisa
70
“Polêmica religiosa no Porto Alegre Em Cena”. In: Jornal do Comércio (sem autoria), 18/09/2013.
Disponível em http://jcrs.uol.com.br/site/noticia.php?codn=134697. Acessado em 15/09/2015.
132
A experiência do espectador contemporâneo
alvo de protestos religiosos71. A foto utilizada é a mesma que o jornal francês Le Monde
trouxe para ilustrar a matéria publicada em 24 de outubro de 201172. Uma parte do artigo,
mais descritiva, também remete a artigos da imprensa francesa. No entanto o jornalista é
o primeiro a se perguntar: “qual o motivo da polêmica?”. Ao colocar essa pergunta para
o ator Sergio Scatella (que faz papel do filho), ele responde “Você tem que perguntar para
eles [ o público]. ” (ZERO HORA, 18/09/2013). A essa informação é acrescentado por
Gianni Plazzi (ator que faz o papel do pai): “Procurar uma relação direta entre os
personagens e o retrato de Jesus que está no cenário não é um bom caminho para
interpretar a peça” (ZERO HORA, 18/09/2013).
Figura 9 – Foto do espetáculo Sobre o Conceito utilizada pelos jornais Le monde e Zero Hora73
71
“Grande destaque do Em Cena, espetáculo italiano foi motivo de protestos religiosos”. In: Jornal Zero
Hora, por Fábio Prikladnicki, 18/09/2013. Disponível em
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/09/grande-destaque-do-em-cena-espetaculo-
italiano-foi-motivo-de-protestos-religiosos-4272154.html>. Acessado em 15/09/2015.
72
“Des intégristes catholiques perturbent Sur le concept du visage du fils de Dieu". In Le Monde, par
Matthieu Mégevand, 24/10/2011. Disponível em http://www.lemondedesreligions.fr/culture/des-
integristes-catholiques-perturbent-sur-le-concept-du-visage-du-fils-de-dieu-24-10-2011-1976_112.php.
Acessado em 15/09/2015
73
Foto de Divulgação. Crédito: Klaus Lefebvre
133
A experiência da pesquisa
informações a respeito da companhia e de suas passagens pelo Festival, em que ele tenta
dar pistas interpretativas para o espectador que veria o espetáculo:
Sim, este é um daqueles espetáculos que você tem que completar com
a imaginação. Não há exatamente uma história, mas uma sequência de
cenas. Funciona em dois planos: um deles mostra a relação entre o pai
e o filho; outro remete a um registro onírico, no qual se passam diversos
eventos sem conexão aparente. Uma frase de Castellucci no material de
divulgação dá uma pista: “Quero encontrar Jesus em sua mais extrema
ausência”. (JORNAL ZERO HORA, 18/09/2013)
74
"’A polêmica tem ocorrido apenas com aqueles que não viram a peça’, diz Romeo Castellucci”. In: Jornal
Zero Hora, 20/09/2011. Disponível em http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/09/a-
polemica-tem-ocorrido-apenas-com-aqueles-que-nao-viram-a-peca-diz-romeo-castellucci-4275950.html.
Acessado em 15/09/2015.
75
Claro que existe uma mídia alternativa, mas foram considerados para essa parte do estudo os periódicos
impressos de maior circulação nas cidades abordadas.
134
A experiência do espectador contemporâneo
brasileira. Nota-se que no Brasil a “polêmica” não aparece a não ser na fala de
especialistas do teatro ou dos “bem informados” que leram os jornais antes de ir ao
espetáculo.
A imprensa brasileira opta, na maior parte dos casos, por um jornalista
multifuncional que possa cobrir desde um atentado até uma peça de teatro (sem saber o
contexto de ambos os acontecimentos). Dessa forma, é muito comum encontrar nos
jornais da atualidade textos informativos sobre as peças, tanto que em minha pesquisa nos
principais periódicos de Porto Alegre encontrei apenas um único artigo denominado
“crítica”, que foi publicado no dia 19 de setembro 2013 pelo jornal Zero Hora76. A
crítica escrita por um diretor de teatro gaúcho começa trazendo a sua experiência pessoal
de espectador.
Após sintetizar sua experiência pessoal com a peça, descrevendo a qual fato
de sua vida a peça se ligou, e com qual profundidade a peça o emocionou, provocando
abundantes lágrimas, ele muda a chave da crítica para demonstrar quão especialista ele é
dentro do jogo das artes contemporâneas. Penso que com a frase: “Mas isso é
reminiscência pessoal e Castellucci vai mais além” (JORNAL ZERO HORA,
19/09/2013), ele anuncia a sua mudança de rumo. E prossegue:
76
“Sobre o Conceito da Face no Filho de Deus convida a uma desconstrução interior dolorosa e
inevitável. I0n: Jornal Zero Hora, por João de Ricardo, 19/09/2013. Disponível em:
<http://zh.clicrbs.com.br/rs/entretenimento/noticia/2013/09/sobre-o-conceito-da-face-no-filho-de-deus-
convida-a-uma-desconstrucao-interior-dolorosa-e-inevitavel-4277299.html>. Acessado em: 15/09/2015.
135
A experiência da pesquisa
77
“Peça abre mostra em SP sem cheiro de fezes que marcou sessões em Paris”. Folha de São Paulo,
9/3/2014. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2014/03/1422889-peca-abre-mostra-
em-sp-sem-cheiro-de-fezes-que-marcou-sessoes-em-paris.shtml>. Acessado em: 15/09/2015.
78
“Castellucci e o juízo de Deus”. Sobre o conceito da face no filho de Deus por Edélcio Mostaço,
publicado em 22/09/2013 no Blog do Festival de Teatro de Porto Alegre. Disponível em
<http://poaemcena.blogspot.com.br/2013/09/sobre-o-conceito-da-face-no-filho-de_9350.html>. Acessado
em 15/09/2015.
136
A experiência do espectador contemporâneo
muito menos inocente do que os textos dos jornalistas supracitados. Por meio do seu texto,
o pesquisador cria sua análise colocando em tensão o método crítico tradicional e a teoria
teatral contemporânea. Ele se dedica à materialidade da cena para tentar de alguma forma
explicar como uma composição aparentemente simples pode ter um efeito tão potente na
percepção dos espectadores. Uma parte significativa de seu artigo é a em que ele traz a
público algo que é pouco dito sobre o encenador: “Todos esses recursos não são vagos
nem imprecisos. Foram buscados com meticulosa precisão pelo encenador e evidenciam
signos historicamente legíveis na história do teatro ocidental, a enciclopédia disponível
que a cena contemporânea utiliza. ” (MOSTAÇO, 2013)
Tomando esse trecho de seu artigo como base, assim como o tom e as
múltiplas referências a nomes, teorias e conceitos, poder-se-ia afirmar que se trata de um
espetáculo feito somente para especialistas. Mas o início e o fim de seu texto, que citam
o espetáculo como “uma porrada”, me levam a crer que por detrás do professor
especialista no assunto tem um espectador-espectador que ainda buscava dar sentido para
sua experiência do espetáculo. Não que todos sejam obrigados a serem tocados pelo
espetáculo, como bem mostram as entrevistas que realizei, mas tanto no caso de Mostaço
quanto de João de Ricardo, o texto dá indícios de que a peça ultrapassou os limites do
entendimento racional.
Se um dos papeis principais da crítica especializada é o de fazer uma primeira
mediação entre o público e o espetáculo, penso que o conjunto dos textos citados acima
deixa a desejar. Talvez a melhor mediação entre o público brasileiro e a peça esteja em
um texto de Romeo Castellucci publicado no Cartografias.MITSP_1, revista produzida
por ocasião do festival:
137
A experiência da pesquisa
138
A experiência do espectador contemporâneo
Rodrigo79
No mês de setembro de 2013 fui até a cidade de Porto Alegre, capital do
estado do Rio Grande do Sul, para assistir à estreia nacional da peça Sobre o conceito da
face no filho de Deus, dirigida pelo encenador italiano Romeo Castellucci, a grande
atração internacional da 20ª edição do Festival de Teatro Porto Alegre Em Cena.
A cidade de Porto Alegre, ou pelos menos seu centro, já me era familiar, pois
já havia estado lá em duas ocasiões. A primeira, em 2005, para o mesmo Festival Porto
Alegre em Cena, como técnico da peça Primus, da campineira Boa Companhia; a
segunda, em 2012, por ocasião da minha participação em um congresso da ABRACE
(Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-graduação em Artes Cênicas).
Era dia 20 de setembro, por um acaso, justamente o dia de meu aniversário e
após assoprar as velas na cidade de São Paulo, embarquei rumo a Porto Alegre, onde
cheguei por volta das 14h. Depois de me instalar no hotel, fiz uma breve caminhada até
o teatro (Theatro) São Pedro. Ainda não havia nenhuma movimentação, a não ser a dos
técnicos do teatro que realizavam os últimos preparativos para a apresentação. Não sei
exatamente a hora, mas era um fim de tarde chuvoso. Vi Rodrigo subindo a ladeira da rua
lateral do teatro e entrando na bilheteria do teatro. Ele saiu e sentou-se em frente ao teatro.
Não havia mais ingressos.
Começamos a conversar, esperando o tempo passar. Eu à espera de
espectadores e ele de um ingresso. Quando o teatro abriu as portas, entramos para tomar
um café e ele deixou o nome na lista de espera. Ele me contou que tinha 37 anos e que
era natural de Porto Alegre, onde tinha crescido e passado a maior parte de sua vida, ainda
que tivesse morado por um tempo no Rio de Janeiro. Dava aulas de teatro para crianças
e adolescentes. Convidei-o para participar da pesquisa e ele topou. Quando o interroguei
sobre qual era sua expectativa em relação à peça, ele me respondeu enfaticamente “não
espero nada da peça, espero ser tocado”, reforçando logo em seguida a ideia de que ele
vai ao teatro para ser tocado, procurando uma experiência significativa.
Uma funcionária do teatro sobe e gentilmente avisa que ele vai poder entrar
porque haviam sido disponibilizadas cadeiras extras. Enquanto ele vai comprar o ingresso
eu observo o assistente de direção Silvano Voltolina falar com uma pesquisadora no salão
do café do teatro. Observo o próprio prédio do teatro e a decoração desse salão de um
79
Destaco que todos os espectadores de Sobre o conceito da face no filho de Deus que participaram dessa
pesquisa tiveram seus nomes alterados para preservar suas identidades.
139
A experiência da pesquisa
luxo decadente. Cabe falar que o edifício é um dos mais antigos teatros do Brasil em
atividade, e sua primeira inauguração foi em 1858.
Logo em seguida descemos, encontrando várias “personalidades” do teatro e
pesquisadores de todo o Brasil interessados no “grande evento social” em torno da peça.
Eu me sentei em uma das últimas fileiras ao fundo do teatro, enquanto Rodrigo estava ao
pé do palco em uma cadeira extra. Do lugar que eu estava, conseguia ter uma visão
completa do teatro, em especial do público das galerias. As cortinas vermelhas aveludadas
já estavam abertas e um cenário realista de uma sala e um quarto estavam dispostos no
palco, no fundo do qual estava, em grandes dimensões, a famigerada obra de Antonello
de Messina. Era a primeira vez que via o espetáculo e logo que os atores entram em cena,
sendo que Gianni Plazzi entra amparado por dois assistentes de palco, logo me esqueci
da pesquisa e mergulhei em um universo de sensações. Me recordo muito bem da peça,
mas, no entanto, devo dizer que o que melhor recordo é de que uma espectadora saiu
gritando, logo no início da peça, indignada com algum evento da peça, e que uma outra
espectadora, sentada ao meu lado, deu um berro de horror, num gesto inconsciente de
desespero, ao ver uma das últimas vezes em que a personagem do pai defeca,
“emerdando” todo o palco.
A reação da mulher ao meu lado ficou restrita a mim e a um outro espectador
que estava sentado do outro lado dela, não chegando aos outros espectadores. Por outro
lado, a reação de indignação da espectadora que saiu gritando passou a integrar a
experiência da maior parte do público. Rodrigo, que estava em uma posição oposta à
minha, traz como um dos primeiros elementos rememorados em sua entrevista a mesma
cena da mulher que saiu do teatro indignada.
Leonel - Ela saiu, começou a bater o pé, eu pensei (Rodrigo - Ela ficou
muito indignada) ela veio para sair, eu não entendi direito, você ouviu
o que aconteceu?
Rodrigo - Ela não tava entendendo italiano e ela [disse]: “eu não vou
ficar numa peça que eu não tô entendendo nada! ”... eu acho que ela
140
A experiência do espectador contemporâneo
141
A experiência da pesquisa
dia posterior, no qual ele explicita melhor sua expectativa diante da peça e reflete sobre a
mesma.
Penso que seu depoimento traz uma informação muito importante sobre a
trajetória que leva um espectador a assistir uma peça. Ela é sempre diversa, mas
fundamental para a experiência do espectador.
Certamente, esse enquadramento descrito por Rodrigo é definidor de sua
experiência. Chama a atenção também a informação de que ele, enquanto espectador,
estaria dando preferência para ir em poucas peças, mas que lhe proporcionassem uma
142
A experiência do espectador contemporâneo
experiência com maior profundidade. Essa é uma característica que pude observar em
vários espectadores entrevistados.
Diante da grande quantidade de estímulos da vida contemporânea, alguns
espectadores passam a buscar no teatro uma qualidade de experiência que é difícil de ser
encontrada em outros lugares. Como nos chama atenção Romeo Castellucci: a
experiência do teatro tem como uma de suas características proporcionar uma experiência
de solidão individual e coletiva ao mesmo tempo, que o diferencia das outras artes ou
atividades esportivas.
Voltando-se para a materialidade peça, Rodrigo descreve como o primeiro
elemento que lhe vem à cabeça a imagem de Antonello de Messina e seu contraste com
o “evento social” dos artistas teatrais que foram ver a atração internacional do Festival.
143
A experiência da pesquisa
Rodrigo não tinha lido essa entrevista de Castellucci, mas em sua inteligência
sensível, ou intuição como ele próprio prefere chamar, compreendeu profundamente a
sensação que o próprio encenador experimentara em uma tarde de domingo, ou seja, o
desnudamento provocado pelo olhar que chega a uma intimidade profunda.
Rodrigo - Porque tem aquela coisa, tão...é... tão comum do humano, que
é o defecar, e toda aquela... a exposição também, né? O quanto a gente
se protege, da exposição da nossa entranha, porque para mim a
intimidade não é: “vamos tirar a roupa e estou íntimo” e sim esse
revelar, esse desnudamento da tua entranha, daquilo que tu... aquilo que
tu não conta para ninguém, mas tu consegue encontrar no outro, uma
possibilidade de ir além daquele encontro social da máscara.
144
A experiência do espectador contemporâneo
145
A experiência da pesquisa
Rodrigo – É daqueles espetáculos que... que nem você falou para ela,
“daqui um ano a gente vai pensar”... mas é uma coisa que bate. É um
daqueles que, eu me conheço, é um daqueles que vai ficar nessa
memória que a gente estava falando ontem. É... porque ele mexe em um
lugar, antropológico, eu acho.
Esse local tão humano, o qual toca ao espetáculo, e ao mesmo tempo tão
pouco racional, cria uma sensação no espectador com a qual ele tem que lidar sem saber
exatamente, racionalmente, os seus motivos ou o caminho para sua solução. A peça pode
ser disparadora de um estado contemplativo no espectador, tal como descreve Rodrigo.
Penso que esse estado de suspensão na qual o espectador pode estar imerso
no momento dos aplausos é disparador de um mergulho ainda mais profundo não na peça,
mas em si mesmo. Nos dias que se passam à sensação ocasionada pela suspensão, vai se
diluindo e se integrando ao hábito do cotidiano. Durante esse processo é comum que os
sentidos venham, como ventos que sopram do inconsciente. Esses ventos trazem, não
146
A experiência do espectador contemporâneo
raro, lembranças relativas a outras peças, em geral tidas pelo espectador como
significativas. Para Rodrigo, por exemplo, Sobre o conceito da face no filho de Deus
traz à tona Medeia Vozes (Festival Porto Alegre em Cena 2013), apresentada pelo grupo
gaúcho (ou tribo de atuadores, como eles se autodenominam) Ói nóis aqui traveis e O
idiota (Festival Porto Alegre em Cena 2010), do grupo lituano Meno Fortas.
Se por um lado Medeia vozes aparece quando ele faz referência à sensação
do tempo na peça encenada por Castellucci, por outro a peça encenada pelo grupo Meno
Fortas faz uma transição do tempo (que se liga a Medeia vozes pela duração alongada)
para a questão da memória da peça após algum tempo, de certa maneira em alusão à forma
como o espectador pensa que a memória da encenação de Castellucci irá se desenvolver.
Os caminhos da memória e da experiência teatral parecem ser sempre espiralados.
147
A experiência da pesquisa
Rodrigo - Sabendo que são do mesmo diretor, [não noto nada] nada,
assim [em comum]. Eu acho que ele está em um outro momento,
assim... eu não acompanho o trabalho dele, não sou conhecedor do
Castellucci...
Leonel - As duas vezes que ele veio para o POA em Cena você viu?
Rodrigo - Não, eu perdi, mas eu tenho um amigo que fala muito bem
do Buchettino, que era o Pequeno Polegar, que as pessoas assistiam
todas deitadinhas. Eu tenho um amigo que diz, que foi a coisa melhor
que ele viu no Porto Alegre em Cena até hoje e... uma das coisas, que
eu acho que agora, consegue contemplar outros títulos. Mas ele fala,
mas eu não estava em Porto Alegre, morava no Rio nesta época, e ele
fala de uma maneira impressionante assim, da experiência, se não me
engano, era em containers, e tu assistia deitadinho, em travesseirinhos,
e era do Castellucci também...
[...]
Rodrigo – Tinha uma questão do Oresteia...É... Ficou mais uma
questão da estética, ele não, eu não sei se por imaturidade, porque eu
era bem mais jovem, mas tem uma questão da estética, das mulheres
super gordas, dos homens magros e tal, mas eu não consigo ter uma
referência... aquilo não me tocou dessa maneira, como os outros, alguns
outros, ficam como te falei do Idiota assim, não... talvez nessa... talvez
a coisa da experimentação.
148
A experiência do espectador contemporâneo
Ainda depois de tanto tempo que Rodrigo viu o Oresteia de Castellucci ele
se lembra de alguns detalhes, mas verifica que o espetáculo não se enquadra na categoria
“experiências significativas do teatro”, como outros espetáculos que lista. Ele ainda deixa
claro que sua intuição é de que o espetáculo Sobre o Conceito tem grandes chances de
incorporar o hall de suas experiências teatrais significativas.
Rodrigo – [...] Acho que esse vai ficar, como outros já ficaram, que
comentei contigo ontem, do Medeia do Antunes, do Fausto daqui que
eu assisti 9 vezes, que eu tenho imagens nítidas até hoje.
Penso que a entrevista de Rodrigo nos dá várias pistas sobre as quais podemos
inclusive ler as outras entrevistas. A colocação de sua sensibilidade como principal eixo
de leitura da peça nos deixa em uma condição próxima à idealizada por Romeo
Castellucci, mas certamente não representa a totalidade dos espectadores.
149
A experiência da pesquisa
Ravena
Diferentemente de Rodrigo, conheci Ravena somente um dia após a peça, por
ocasião do encontro da Escola de Espectadores de Porto Alegre, a qual ela costuma
frequentar. Falei com ela porque durante as discussões do encontro de espectadores me
chamou a atenção o seu ponto de vista crítico (negativo) em relação à peça, que se opunha
à opinião da maior parte dos espectadores presentes. Por ter uma opinião minoritária,
percebi que ela não conseguiu desenvolver muito seu raciocínio crítico durante a sessão
e por isso fui ter com ela após o seu término, convidando-a para participar de minha
pesquisa e a falar um pouco mais sobre a sua experiência do espetáculo.
Tendo ela aceito o convite, começamos a conversar em um dos bancos do
café do Teatro Renascença. Ela me contou que morava em Porto Alegre e tinha 31 anos.
Também me disse que era formada em Relações Públicas. Preferiu que eu não filmasse
nossa conversa que foi apenas gravada com o áudio da câmera.
Ravena declara que o seu interesse era o de “ver espetáculos que mexam
comigo, que me façam pensar, mas esse aí não conseguiu muito”. Ela diz que ficou
curiosa quando viu todas as pessoas levantarem para aplaudir no fim do espetáculo,
inclusive a mãe dela, que a acompanhava nesse dia. O que teria tocado essas pessoas?
Talvez a sua curiosidade a esse respeito que a tenha levado a ir até o debate da Escola de
espectadores desse dia.
A primeira informação acerca do espetáculo trazida por Ravena vem em uma
negativa: o espetáculo “não comunicou, nem para dizer que eu odiei, eu não odiei, eu
achei uma coisa inerte assim”. Formada na área da comunicação, ela busca nas teorias de
sua área um embasamento para o que aconteceu. Ao mesmo tempo que ela diz que o
espetáculo foi “inerte” ela reconhece a possibilidade de que ele fique em sua memória.
150
A experiência do espectador contemporâneo
Ravena - Não foi com muita gente que aconteceu [de não gostar],
porque muita gente gostou, minha mãe gostou (Leonel - Sua mãe
gostou?) A minha mãe gostou. (Leonel - E a sua mãe não tem nada a
ver com teatro). Nada, nada, nada (Leonel - Ela é frequentadora de
teatro?) Não eu sou mais que ela, ela vai assim quando eu puxo ela. Ela
gosta, mas vai bem menos.
Vale a pena sublinhar que o significado da peça para Ravena está impregnado
definitivamente pelo que sua mãe lhe falou enquanto elas voltavam para casa. Se quando
ela saiu do espetáculo ele parecia tão “inerte”, no caminho para casa novos sentidos
começam a surgir. No momento da entrevista, já várias outras relações são feitas.
151
A experiência da pesquisa
80
“Diretor italiano Romeo Castellucci explica motivações por trás de peça polêmica”. In: O Globo
(entrevista do jornal com o encenado). 08/03/2014. Disponível em: <http://glo.bo/1gePrBL>. Acessado em:
15/09/2015.
152
A experiência do espectador contemporâneo
Voltando para leitura de Ravena, certamente ver uma cena tão cotidiana, para
ela, gerou decepção em relação às expectativas que tinha criado com todo o alvoroço da
mídia criado ao redor de Sobre o conceito. Não havia nada de espetacular em trocar as
fraldas de um velho, como sua mãe havia feito. Convido o leitor a ver e refletir sobre o
trecho de sua entrevista no qual ela fala sobre sua decepção em relação ao espetáculo, ao
mesmo tempo em que diz como ele a remeteu à sua vida cotidiana.
153
A experiência da pesquisa
Voltando-se para a sua interpretação da peça, Ravena admite ter lido sobre a
peça na mídia antes de assisti-la e, assim, busca formular um sentido geral para a
encenação: “talvez o personagem principal... tava culpando o Cristo por todo aquele
sofrimento que ele tava passando”.
Penso que é difícil dizer até que ponto o que os espectadores veem está na
peça, até que ponto o espetáculo serve como um espelho de suas próprias experiências. É
certo que ao falar do espetáculo eles acabam falando de si e de suas relações com o
mundo. Não pretendo que esta seja uma tese de cunho psicanalítico, mas é certo que há
ligações entre todo o seu discurso e o modo como ele é construído. Penso que se
tivéssemos mais oportunidades de conversar poderíamos discutir sobre a relação do
sofrimento do filho na peça e a vida de Ravena, por exemplo.
Mas porque Ravena não gostou da peça nem desgostou? Ela mesma busca em
sua reflexão a resposta, sem encontrar. Não é apenas uma questão de entender ou não a
peça, como ele mesma reconhece.
Impossível não refletir sobre o seu discurso. Ainda que para monitorar o
desenvolvimento da memória da peça ao longo do tempo fossem necessárias mais
entrevistas, me parece que a peça realmente atingiu sua pele, mas como um veneno
potente logo se espalhou por todo o seu corpo, despertando memórias, nem sempre as
melhores, de sua vida e criando novas redes de significação e filtros atencionais.
Fica claro que o que foco de minhas entrevistas são as percepções do
indivíduo sobre a peça e sobre si mesmo e que estas têm fronteiras em constante revisão:
são móveis. O que diria Ravena após dez anos? As possibilidades de mudança das
memórias são permanentes. Se Ravena interagisse com Rodrigo, quais seriam as
consequências? Sendo a experiência atualizada diante do contato com o meio e com os
seres humano, posso supor que esses encontros entre os espectadores podem produzir
mudanças importantes nos sentidos e nas lembranças do espetáculo.
154
A experiência do espectador contemporâneo
Giulio
Conheci Giulio na saída do espetáculo, por intermédio de uma amiga em
comum. Ele também viu o espetáculo no dia 20 de setembro de 2013. No dia 21, após a
entrevista com Ravena e Rodrigo eu fui até sua casa, em uma área central de Porto Alegre.
Sentado em seu sofá, ele me contou que era formado em ciências sociais, que trabalhava
como pesquisador e que sua idade era de 48 anos.
Espectador frequente e amante do teatro, Giulio me mostrou sua valiosa e
bem organizada coleção de ingressos que cobria um longo período e uma grande
diversidade de produções. Cada ingresso servia de elemento disparador de uma memória
teatral ou da constatação do esquecimento de um espetáculo.
A primeira informação que Giulio deu em sua entrevista foi uma
contextualização das informações que ele tinha sobre a peça e como elas criaram, desde
o início uma tensão entre o “ir” e o “não ir” na peça. Por um lado, os argumentos para
não ir eram contundentes.
Por outro lado, havia argumentos vistos como positivos. Acho que a
preciosidade do discurso de Giulio está em tornar evidente esse processo que há, para
todos espectadores, na escolha de um espetáculo. Os caminhos são os mais variados, mas
me parece que a importância desse caminho como componente da experiência teatral é
sempre muito grande.
155
A experiência da pesquisa
Giulio - Então assim, eu estava muito tenso, eu acho que a cena grrr...
colaborava, de uma maneira que já te ganha, a composição do cenário,
a música, a figura do velho. Imediatamente eu me senti capturado, só
que eu achei que o espetáculo não me ganhou, eu acho que ele tem uma
coragem de tratar de determinados temas [...]
Giulio - Eu acho que tem duas ideias em uma hora. A ideia de dizer:
bom eu vou essa crueza da situação da merda, da dependência, da
fragilidade, tudo aquilo que aquela personagem expressa, e da
ambivalência daquele filho, tentando ser um bom filho, e ao mesmo
tempo passar por cima, da contradição do nojo, da própria pena, muito
legal, só que distendido. Vai ter oito trocas de fraldas na cena. Na
segunda eu digo “óó...até onde vai isto?” e eu acho que o elemento
surpresa e... mexer no tabu, bem interessante, a experiência da plateia é
legal, tem um desconforto geral, eu acho que isso é pedagógico, é legal,
eu comentei com um amigo, que encontrei na porta, “todos nós vamos
lembrar a deste espetáculo em algum momento, seja trocando alguém
ou seja sendo trocado! ”. Agora coincidiu que eu tinha visto o filme
Amor há pouco tempo, não sei se tu chegaste a ver. Este filme... (Leonel
– não , mas eu ouvi muito...) E esse filme, para mim, ele antecipou um
pouco do impacto que tem este espetáculo...[...] E aí a cena seguinte,
que eu acho aí, viagem minha, da heresia, da blasfêmia, da revolta
contra a figura, ali, de Jesus e tal... Talvez para os italianos tenha um
156
A experiência do espectador contemporâneo
impacto muito mais significativo do que para nós, a ideia de jogar uma
bomba na face de Nosso Senhor.
Giulio, assim como Renata, optam por um tipo de análise mais racional da
peça, privilegiando as ideias colocadas pelo artista. No entanto, ele acaba mencionando o
“desconforto” que a peça causa. Um desconforto baseado em sensações físicas. Acho
importante sublinhar a percepção de Giulio sobre as diferenças entre o contexto cultural
italiano (ou europeu), no qual e para o qual a peça foi criada, e o brasileiro. Ainda que
ambos os países sejam predominantemente católicos, as histórias da religião e da relação
das pessoas com ela é completamente diversa. Certamente esse é mais um elemento do
contexto que contribui para a especificidade da leitura do espectador.
Outra percepção bem importante que eu gostaria de ressaltar é a suposta
crueza com qual Romeo Castellucci trata a cena, no sentido de dar elementos que se
aproximam do real, ou, em todo caso, dão a impressão de realidade ao espectador. Essa
“sensação de realidade” é fundamental para a experiência gerada pelo espetáculo.
Giulio – [o espetáculo diz] Não! Vamos tratar das coisas como elas são
e... te entregar isso de uma maneira que é simplesmente real, só que tu
tá vendo ela representada e tu tá sofrendo em grupo, isto é muito loco,
é uma sala sofrendo, a gente vê o desconforto, as troças, as..... (Leonel
- Tinha bastante barulho, né?) Aquele barulho da cadeira do teatro São
Pedro é de madeira, e aqueles mezaninos, como é que chamam, galerias,
camarotes, tem os pisos de madeira, então... as cadeirinhas de palhinha,
daquelas que quando as pessoas estão desconfortáveis, elas se
reacomodam nas cadeiras e tu ouve aqueles rangidos.
157
A experiência da pesquisa
Considero significativa a informação acerca da primeira coisa que ele fez ao fim do
espetáculo.
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A experiência do espectador contemporâneo
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A experiência da pesquisa
Neiva
Conheci Neiva alguns meses antes da entrevista na Universidade de São
Paulo. Sempre cordial e inteligente, conversamos em várias ocasiões desde então,
normalmente sobre teatro. Ela também foi à Porto Alegre para assistir à apresentação do
espetáculo Sobre o conceito da face no filho de Deus, no dia 20 de setembro. Nos
encontramos rapidamente pouco antes do início do espetáculo e me lembro que ela estava
acompanhada por amigos do coletivo teatral de que ela integra.
Neiva tem formação universitária e pós-graduação em artes cênicas e atua
como professora da rede municipal e dramaturga de um coletivo teatral, ambas atividades
desenvolvidas em São Paulo. Ela é a especialista do teatro que escolhi para compor a série
de quatro entrevistas sobre este espetáculo. Para mim Neiva é justamente o exemplo que
ser especializado no teatro não é necessariamente um impeditivo de que o espectador se
emocione, mas que ao mesmo tempo há uma leitura da peça a partir dos mecanismos da
teoria e da prática teatral.
Neiva inicia sua fala dando sua opinião sobre a peça e analisando sua trama.
Como vimos anteriormente é muito comum o espectador aproximar o espetáculo da área
que melhor domina (nesse caso a dramaturgia) para fazer sua análise. Sua análise é técnica
e precisa, demonstrando o seu olhar treinado.
160
A experiência do espectador contemporâneo
grande radicalidade estética, e eu acho que é por isso que sai todo
mundo, pelo menos todo mundo que eu conversei, tão chocado assim,
por que... é a sensação que eu tive de ver a peça, como você falou, o
teatro é potente mesmo.
161
A experiência da pesquisa
fiquei também muito tocada, que é essa... esse beco sem saída que a
gente se enfiou com o iconoclasmo, na minha opinião, assim, que a
gente não acredita mais nisso cegamente... a gente não consegue, mas
também não tem outra coisa pra pôr no lugar, assim... então isso no
plano teórico, né? A respeito da peça.
Neiva – Mas é o que me pegou, assim, que... que eles colocam duas
cenas que meio que se opõem, antes da... pra mim a peça é dividida em
três partes (risos) pra mim né? Uma primeira parte com uma trama
muito simples, muito, e que eu acho que com uma dramaturgia simples,
naturalista quase, embora a cena não, mas a dramaturgia seja meio
naturalista, e que você via metade da plateia chorando, né? e que eu
fiquei muito tocada também... uma cena simples que resume várias
questões sobre o fato de sermos humanos, na minha opinião, assim... e
depois uma cena contrária à aquela, então uma cena na qual, quase a
necessidade de Deus tá posta em cena, e depois uma cena na qual as
crianças, aqueles que são novos no mundo, e que por isso tem o ímpeto
de destruí-lo, meio pensando na Hannah Arendt, no que ela fala que as
crianças são essas pessoas que precisam conhecer a tradição porquê...
senão elas ou destroem, porque elas chegaram agora, e aí elas fazem
isso, né? Esse mesmo gesto. E depois ele coloca o velho e o menino,
num estado meio de contemplação assim. E aí ele não toma... ele não
chega numa síntese, né? A gente podia dar uma interpretação meio que
dialética, tipo uma coisa e depois põe o seu oposto no fim ele nos mostra
uma síntese daquilo. Mas não é isso que acontece, porque a questão não
se resolve numa síntese, e aí a questão sai da trama, porque não há
trama, na minha opinião, que daria conta de finalizar essa peça... não
teria uma trama pra fechar essa peça assim... e vai pra um plano que é
do impacto da imagem.
162
A experiência do espectador contemporâneo
indícios da reação coletiva do conjunto de espectadores que estão presentes naquele dia,
também chamado de público.
O público não é uma massa amorfa de pessoas todas com o mesmo
sentimento, mas uma combinação na qual o resultado é sempre mais complexo do que o
de uma soma simples dos sujeitos presentes. Penso que o mistério da reação do público é
comparável ao da mente humana. Assim como os neurônios estão para o cérebro, os
espectadores estão para o público. Estabelece-se uma rede, uma ligação, uma
comunicação através de elementos objetivos como o barulho das cadeiras, risos,
respirações ou, nesse caso, o choro.
Pequenas informações nesses grandes blocos são preciosas quando o que
estamos procurando são os rastros da experiência do espectador do teatro. Por exemplo,
a informação de desconforto causada pela encenação em Neiva e a sua reação após o
espetáculo, muito semelhante as citadas por Rodrigo, que propicia ao espectador um
estado mais contemplativo.
Neiva – [...] eu saí mal da peça assim, eu não fui beber [...] Foi assim,
a gente saiu e ficou um tempo te procurando, você tava entrevistando
alguém, segundo a A... (L - não tava) acho que ela se confundiu, aí a
gente disse “ah vamos sair pra comer”... eu não queria nem comer, saí
enjoada, aquele cheiro! Né? Tem todas essas coisas, aí eu saí sem
vontade de comer, a gente foi, comi, e aí eles foram pra balada e eu fui
pra casa... que eu fiquei muito tocada mesmo. Aí por razões pessoais
também, que eu acho que é raro, quem não tem uma situação de... uma
espécie de decadência do corpo na família, que é o caso da primeira
trama, né? E daí a gente vê aquele velho pedindo desculpa, né?
A sensação descrita por Neiva foi muito próxima à minha própria após o
espetáculo. O mal-estar físico que pode ser causado pela peça, presente em diversos
relatos, demonstra a efetividade da matéria teatral sobre a nossa mente. Nesse sentido
ressalto o efeito catártico do espetáculo, em todos os seus sentidos reunidos. É a
possibilidade da purificadora kátharsis grega evocada por Aristóteles como resultado
sentido pelos espectadores após uma peça e ao mesmo tempo a psicanalítica, que traz à
consciência memórias recalcadas e libera os sentimentos represados. É o intestino que
evacua, purificando o corpo.
Esse trecho é definitivamente a passagem para que a própria espectadora,
liberta das teorias, possa entrar em uma reflexão pessoal, relacionando a peça a sua vida
e trazendo lembranças pessoais, muitas delas traumáticas. Nessa parte da entrevista, quase
163
A experiência da pesquisa
em sua metade, ela traz informações muito interessantes como, por exemplo, a evolução
da sensação que ela experimentou ao fim da peça e a ocorrência da lembrança da
encenação nos seis dias que dividiam a assistência do espetáculo e a entrevista.
Neiva - eu não fiquei assim triste de... no dia seguinte eu já tava melhor,
né? bem melhor, mas é... mas não é triste de ficar chorando quando você
vê um filme triste, sabe? é mais triste de tocado, de pensando. É
pensando... e aí se não tá a fim de esquecer isso, sabe? Quando você vê
uma coisa legal que cê quer ficar remoendo aquilo?
Leonel- E nestes dias você lembrou da peça? Depois que você deixou
seus amigos...
N - Então, eu contei ela pra várias pessoas né que não foram ver, então
... eu lembrei... é... lembrei sim, lembrei sim, mas acho que também tem
isso de recontar, e de ir entendendo o que foi visto novamente. Eu
recontei isso muitas vezes, lembrei...
No primeiro momento, Neiva deixa claro que apesar de ter sido uma
experiência ligada ao sentimento de tristeza, que normalmente é tido como negativo, a
experiência que ela teve do espetáculo foi positiva. Essa experiência contraditória gerada
pela peça cria de uma certa maneira uma necessidade de repetir a peça, assim como
descreve o mecanismo freudiano do trauma. O “remoer” na mente, o reviver a peça no
discurso, são certamente tentativas da mente de processar o evento ainda não
completamente assimilado.
Neiva ainda faz relações entre essa peça e outras do mesmo diretor (como a
série de espetáculos da Tragedia Endogonidia) e toca em assuntos que apareceram
também nas outras entrevistas, como a questão de um aplauso “fora do tempo” que a peça
pedia ou, em suas palavras, “não deu tempo de eu sacar direito, de eu ter certeza, sabe,
que acabou pra aplaudir? ”. Também fala do hábito do público brasileiro de aplaudir
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A experiência do espectador contemporâneo
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A experiência da pesquisa
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“O quadro é a palavra que uso para me referir a esses elementos básicos que sou capaz de identificar.
Esta é a minha definição de quadro. Minha expressão ‘análise de quadros’ é um slogan para referir-me ao
exame, nesses termos, da organização da experiência. ” (GOFFMAN, 2011, P. 34)
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Assisti o espetáculo Dire ce qu’on ne pense pas em Bruxelas e Avignon e o espetáculo Go Down,
Moses em Lausanne e Paris.
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A experiência do espectador contemporâneo
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Acompanhei cada encenação ao menos por três dias em cada uma das quatro cidades (Paris, Lausanne,
Avignon e Bruxelas).
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A experiência da pesquisa
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“Romeo Castellucci: Io, maestro di teatro senza mai esserlo". In: Repubblica, di Ilaria Venturi,
21/04/2015. Disponível em:
<http://Bolonha.repubblica.it/cronaca/2015/04/21/news/romeo_castellucci_io_maestro_di_teatro_senza_
mai_esserlo_112547549> acessado em 26/10/2015.
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A experiência do espectador contemporâneo
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Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
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A expressão “dimensão humana” é recorrente na Europa e designa uma cidade que se mantem de um
tamanho que seja adequado a vida de seus cidadãos, permitindo, por exemplo, que os deslocamentos sejam
feitos a pé ou de bicicleta.
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A experiência da pesquisa
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A experiência do espectador contemporâneo
A segunda cena que me lembro é a cena em que o ator Simone Toni (que faz
a personagem…vskji88) coloca uma câmera, como aquela que se utiliza para fazer
endoscopia em sua garganta, mostrando o trabalho de suas pregas vocais enquanto ele
fala (impossível prestar atenção à sua fala diante da materialidade de suas cordas vocais).
Haviam pessoas que ajudavam os atores e que ficavam em cena. Quem
seriam? O povo? Me lembro também de uma máquina que quebrava lâmpadas de
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Fonte: Arquivo Pessoal. Crédito: Luca Del Pia.
88
Segundo Castellucci o nome da personagem é uma homenagem aos mestres do teatro como Grotowski e
Stanislávski.
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A experiência da pesquisa
iluminação e que o som era forte, acho que em especial na cena de em que Giulio César
(o ator Gianni Plazzi) fazia seu discurso sem proferir uma só palavra. Eram cenas sem
uma ligação, peças separadas como sugere o próprio nome (Júlio César. Peças avulsas na
tradução para o português), tanto que a ordem dos fatos da qual me recordo é
provavelmente diversa daquela na qual eles me foram apresentados.
O que falar dessas cenas, além das imagens-sons que elas trazem e das
sensações que elas me causam? Aparecem em meu próprio discurso características que
iriam se repetir na maior parte das entrevistas sobre as peças de Castellucci. Por exemplo,
a dificuldade de construir uma narrativa para contar a experiência.
Tentei ser objetivo em minha descrição, mas também poderia dizer que o
aparelho de fazer endoscopia me lembrou (e me causou) a sensação física exata do dia
em que eu passei pelo exame, sensação essa, diga-se de passagem, nada agradável.
Desde que pude assistir pela primeira vez o trabalho de Castellucci ao vivo,
em 2012, quando vi Four Seasons Restaurant em Avignon, pude ser testemunha da
89
Fonte: Arquivo Pessoal. Crédito: Luca Del Pia.
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A experiência do espectador contemporâneo
fisicalidade com a qual se pode fruir seu teatro. Nesse processo há uma profunda relação
entre todos os cinco sentidos humanos em sua obra, todos profundamente ligados à lógica
da emoção, com destaque para a conexão entre o ouvir e o ver. Penso que ele trabalha,
muitas vezes, diretamente sobre a percepção do espectador.
Na entrevista que fiz com Romeo Castellucci em Bolonha, propus como uma
das questões que ele me falasse da importância do som no seu teatro, ao que ele me
respondeu:
Penso que aí está uma das chaves para compreender o processo criativo de
suas peças e fica claro que ele está sempre pensando no público na hora de conceber uma
obra. Todo seu teatro é uma composição dialética entre elementos racionais e emocionais.
Esses elementos são construídos, em geral, separadamente, ou seja, não se chega a uma
emoção por uma trama de elementos racionais, muito menos a uma conclusão racional
sobre o espetáculo pelas ações da emotividade.
Assim como as vias da razão e da emoção nunca estão a serviço uma da outra,
imagem e som no trabalho da Socìetas sempre buscam escapar ao tom meramente
ilustrativo. Romeo Castellucci faz de forma consciente uma montagem que joga com essa
tensão entra a razão e a emoção de seu espectador.
Essas reflexões foram completadas por uma viagem de menos de 100
quilômetros de trem para a cidade de Cesena. Essa cidade, com seus quase 100 mil
habitantes, é muito diferente de Bolonha. Dinâmica em suas relações econômicas, Cesena
foi uma grande descoberta para mim. Já no trem, sentado com mais três homens, comecei
minhas perguntas sobre a cidade e constatei que nenhum dos presentes tinha a menor
ideia do que era a Socìetas ou de quem era Romeo Castellucci. Ao chegar na cidade fui
90
Entrevista realizada em 28/03/2014 por Leonel Carneiro na cidade de Bolonha. Tradução: Eli Borges Jr.
Revisão de tradução: Leonel Carneiro.
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A experiência da pesquisa
91
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
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A experiência do espectador contemporâneo
produções, uma vez que o Comandini não comportaria as dimensões da maior parte de
seus cenários. Segundo Valentina, o teatro da cidade (Bonci) também não serve para a
companhia porque tem o palco muito inclinado. Esse é um dos motivos que fazem com
que a companhia se apresente na cidade apenas uma vez por ano, em média, durante
festivais organizados pelo próprio grupo.
O teatro é acolhedor e, segundo as informações passadas pela equipe de
produção, um verdadeiro centro de agitação cultural da cidade. Contraditoriamente
nenhuma das pessoas que abordei na cidade frequentava o local. Penso que isso não
desmerece a atividade do grupo que busca se integrar à cidade, mas mostra como o teatro
é uma prática cultural para poucos. Nesse contexto, o público do teatro contemporâneo
destaca-se por ser ainda mais reduzido e especializado.
A partir de então, sempre que vejo um espetáculo de Castellucci, reconheço
nele a humanidade e o esforço para desenvolver um diálogo com a cidade manifesto
através do trabalho da companhia no Teatro Comandini.
Outra característica da cidade é a grande quantidade de igrejas. Além de estar
na Itália (centro mundial do catolicismo) a cidade foi o local de nascimento de quatro
papas (Bento XIII, Pio VI, Pio VII e Pio VIII). De certa forma mais dissipada em Bolonha,
a presença da igreja católica em Cesena é constante. Certamente é em diálogo com essa
presença que muitas das obras de Romeo Castellucci abordam o tema da religião.
Aproveitando minha ida à cidade, no dia 24 de março de 2014 realizei uma
pesquisa que consistia em caminhar pela região central da cidade e seus entornos e
procurar saber o quanto as pessoas em Cesena conheciam o trabalho da Socìetas. O
questionário era feito seguindo o seguinte procedimento: caminhando pela rua eu
abordava um transeunte qualquer, procurando variar entre as idades dos abordados, e
como alguém que estivesse perdido colocava essas três questões:
1 – Você sabe onde é o Teatro Comandini?
2 – Você conhece a Socìetas Raffaello Sanzio?
3 – Você conhece o encenador Romeo Castellucci?
O resultado dessa enquete foi muito interessante: das 44 pessoas abordadas,
apenas uma respondeu positivamente à primeira pergunta e nenhuma respondeu
afirmativamente as questões 2 e 3. Mesmo na área próxima à Faculdade de Letras da
universidade de Cesena, nenhum estudante respondeu positivamente às perguntas. Em
geral, as pessoas me responderam que conheciam o Teatro Bonci, e me indicavam esse
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A experiência da pesquisa
teatro, dizendo que eu poderia perguntar lá o que desejava saber. De fato, o Teatro Bonci,
construído no fim do século XIX, é o maior teatro da cidade e figura como um ponto de
referência, destacando-se por sua arquitetura e tamanho. Embora as pessoas tenham o
teatro como referência espacial na cidade, posso arriscar que a maior parte dos
interpelados jamais assistiu a uma encenação no teatro Bonci.
Dentre todos que conversei, o que mais me impressionou foi o único que
respondeu positivamente a uma das questões. Era um jovem que trabalhava em um café
na rua perpendicular ao Teatro Comandini, a cerca de 100 metros de distância. Ele
conhecia o Comandini justamente porque aquele era um dos cafés mais próximos do
teatro e os atores e alunos dos cursos iam lá frequentemente. Provavelmente o próprio
Romeo deve ter ido ao café. Decidi tomar um café para conversar mais com o atendente.
Perguntei se ele já tinha entrado alguma vez no Comandini, ele sorriu e respondeu que
não, entrando na parte interna do restaurante para buscar uma bebida para um cliente.
O ar natural da resposta me deixou intrigado e quando ele voltou, lhe
perguntei por que ele não tinha ido ao teatro, se o prédio era tão perto. Ao que ele me
respondeu com as seguintes palavras: “o teatro não é para todos! ”. Quando pergunto o
porquê ele me diz “não sei por que, mas não é para todos... o teatro não me interessa... eu
prefiro ver televisão em casa! ”. De seu ponto de vista, o teatro é algo chato e feito para
uma elite. Em suas palavras, pessoas como ele se divertem com outros tipos de coisa.
Depois de trabalhar durante todo o dia, tudo o que ele mais quer é chegar em casa e
relaxar. Ele me disse que algumas vezes vai a shows de música, em especial de rock.
Todas essas memórias, que se misturam às minhas memórias de vida,
certamente passaram a influenciar o meu olhar sobre a obra de Romeo Castellucci, e
somam-se a elas a sensação de crise (financeira) e decadência que pude sentir nas cidades
italianas pelas quais passei nessa ocasião, uma decadência do “clássico” que marca
presença na obra de Castellucci.
176
A experiência do espectador contemporâneo
Bruxelas (Bélgica)
A primeira vez que fui para Bruxelas foi no dia 15 de abril de 2014, para
acompanhar os ensaios da peça Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne
parle pas, dirigida por Antônio Araújo. Nessa ocasião pude conhecer as instalações do
Teatro Nacional da Bélgica (Théâtre National de Bélgique ou Théâtre de la Communauté
française), que conta com uma sala de espetáculos bem equipada e salas de ensaio. Em
uma dessas salas, Antônio Araújo preparava os atores, figurantes e equipe técnica para a
ação do espetáculo que seria realizado na Bolsa de Bruxelas.
Consegui assistir a um92 ensaio dentro da sala do teatro, no qual pude perceber
que se fazia apenas uma grande preparação das coisas para a montagem da peça que
aconteceria realmente no espaço da Bolsa, local escolhido para a representação. Na
segunda parte do ensaio, caminhei com a equipe até o prédio da Bolsa e, ao chegar lá,
Antônio Araújo começou a falar com seus atores como e onde ele tinha imaginado cada
cena.
Ficou claro no modo como o diretor conduziu o trabalho que já havia toda
uma concepção espacial da peça. Ele sabia onde e em que momento cada cena iria
acontecer, bem como as músicas e efeitos visuais e sonoros que iria utilizar. Toda sua
equipe está trabalhando em função de suas ideias para a encenação. Mesmo o lugar dos
espectadores já estava colocado desde o início. Cada deslocamento espacial
(movimentação dos espectadores pelo espaço) e de foco da cena foram minuciosamente
planejados.
Minha segunda passagem por Bruxelas se deu no fim de maio de 2014, por
ocasião da realização dos primeiros ensaios abertos e da estreia do espetáculo. Quando
voltei, após algumas semanas de trabalho, o grupo já estava ensaiando no espaço da
apresentação (Bolsa de Bruxelas) e a parte técnica já estava bem encaminhada. Faixas do
espetáculo estavam afixadas na fachada do prédio. Ainda assim, tudo corria do lado de
fora numa aparente normalidade.
92
Após o primeiro ensaio que vi dentro do teatro, Antônio Araújo me explicou que eu não poderia
acompanhar outros ensaios do espetáculo no teatro por motivos legais.
177
A experiência da pesquisa
Nos meses que antecederam ao espetáculo, nos quais pude fazer visitas ao
local da encenação, notei que algumas figuras passavam todo o dia sentadas nas
escadarias da Bolsa, pois se tratava de um ponto de encontro de jovens, famílias,
mendigos e do tráfico de drogas. Sentado nessas escadarias pude conversar com algumas
pessoas e passei mesmo a ser reconhecido pelos mendigos e traficantes. Em nenhum
momento falei que estava lá como pesquisador. Afinal, era normal as pessoas passarem
seu tempo na escadaria esperando alguém, tomando uma cerveja ou simplesmente
esperando o tempo passar.
93
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
178
A experiência do espectador contemporâneo
94
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
179
A experiência da pesquisa
95
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
180
A experiência do espectador contemporâneo
esgotaram-se, pois não havia muitos lugares). Depois de pouco tempo eles foram para um
bar “aproveitar a noite”.
Figura 17 - Foto do lado de fora do espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas)96
Um casal de turistas alemães estava de passagem pela rua e parou para ver.
Perguntei o que estava acontecendo e eles disseram que parecia que era uma peça de
teatro ou algo assim. Perguntei também para uma jovem, de cerca de 16 anos, que
aguardava seus amigos, se ela sabia do que se tratava. Ela me explicou que era uma peça
sobre as línguas e que a primeira parte era feita fora da Bolsa e o restante acontecia lá
dentro, mas ela não sabia direito a história.
Nesse dia falei também com Hassan, que voltando do trabalho tinha parado
na escadaria para uma tomar uma cerveja e assistiu ao início da peça. Mesmo sem ter lido
nada sobre a peça ele disse imaginar que ela deveria falar sobre as questões de imigração
e dos conflitos linguísticos que eram muito fortes na Bélgica. Ele me contou um pouco
de sua história de vida e de seu percurso familiar, explicitando o porquê de não ir ao
96
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
181
A experiência da pesquisa
teatro. Falou muito sobre como aquela cidade foi construída por estrangeiros e mesmo
assim os estrangeiros não têm direito à cidade.
A figura 17 mostra o espetáculo visto do ponto de vista dos espectadores que
estão de fora. Logo após o fechamento do portão a vida começa a voltar ao normal nas
escadarias da Bolsa e as pessoas voltam se se instalar nelas enquanto os atores desfazem
suas barracas.
A primeira cena do espetáculo foi de fato marcante para mim, pois era a que
se via de maneira mais latente o conflito entre o real e a ficção. Seja pelos atores vestidos
de mendigos que conviviam com mendigos reais ou pela mistura entre espectadores que
pagaram para ver o espetáculo e os outros que podiam ter apenas uma “amostra grátis”
do espetáculo.
Uma das imagens que mais me marcou (e que acabei registrando com minha
câmera) foi a da figura do segurança (real) cuidando para que apenas os pagantes
entrassem na Bolsa, enquanto os atores estavam sobre sua cabeça falando seus textos. Era
a encenação ficcional e a real ocorrendo ao mesmo tempo. Cada um dos personagens
ignorava a existência do outro como se houvesse uma quarta parede (nesse caso um piso)
que os separava.
182
A experiência do espectador contemporâneo
Figura 18 – Atores, segurança e espectadores no início de Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas) 97
Nessa primeira cena, na qual o público era o principal ator e o diretor apenas
colocava uma moldura teatral, vida e arte estavam mais juntas do que nunca. A peça que
ocorreria dentro da Bolsa era um espelho da realidade. Outra passagem que me lembro
bem é aquela na qual, em um dos dias, pouco antes do público entrar na Bolsa, chegaram
jovens com bandeiras vindos de uma manifestação ocorrida na cidade.
97
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
183
A experiência da pesquisa
O espetáculo conta a história de uma economista que volta com seu pai,
um exilado político da ditadura que se nega a falar, ao país no qual ele
viveu seu exílio (poderia ser a Bélgica). Seu retorno se dá por ocasião
de um congresso no qual ela irá apresentar sua tese sobre a crise
mundial. Paralelamente a isso mostra também a figura de um agente de
fronteiras que vive com sua esposa que está grávida na beira de um lago.
98
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
184
A experiência do espectador contemporâneo
185
A experiência da pesquisa
Figura 20 – A iluminação desenhada por Guilherme Bonfanti em uma das cenas de Dire ce qu'on ne
pense pas (Bruxelas) 99
99
Fonte: arquivo pessoal. Crédito: Guilherme Bonfanti.
186
A experiência do espectador contemporâneo
Uma das cenas de dentro do prédio que eu tenho mais clara em minha
memória é a cena do bar. Não por coincidência, essa também foi a cena mais abordada
pelos espectadores entrevistados. Acho que deve ser ressaltado que essa era uma das
poucas cenas em que os espectadores estavam em uma posição frontal com a ação cênica
e o espetáculo, muito similar a dos teatros convencionais. A fotografia revela a cena toda,
mas em minha memória o foco de toda a cena era a economista e o empresário do lixo
(que estão à esquerda). Minha atenção estava focada neles e, por isso, muitas vezes eu
nem atentei aos outros atores. Por outro lado, com a iluminação e a proximidade entre os
espectadores era muito comum que um olhasse para o outro
100
Fonte: arquivo pessoal. Crédito: Guilherme Bonfanti.
187
A experiência da pesquisa
101
Fonte: arquivo pessoal. Crédito: Guilherme Bonfanti.
188
A experiência do espectador contemporâneo
102
Fonte: arquivo pessoal. Crédito: Guilherme Bonfanti.
189
A experiência da pesquisa
Figura 24 Cena da menina que canta no caraoquê - Dire ce qu'on ne pense pas (Bruxelas) 103
103
Fonte: arquivo pessoal. Crédito: Guilherme Bonfanti.
190
A experiência do espectador contemporâneo
Ao demonstrar a operação que esta cena tem em minha memória acabo por
dar os primeiros nomes que estas cenas vão receber. Mais à frente nos discursos dos
espectadores essas cenas ganham outras nomeações, mas espero que o contexto da peça
que dei a partir de minha própria experiência possa servir de guia ao leitor.
Outra questão interessante é quão diferente a peça pode ser, em todos os
aspectos, quando encenada em um outro espaço e em uma outra cidade. Realmente para
mim são duas encenações diferentes de um mesmo texto, feitas pelos mesmos atores
(ainda que os figurantes tenham sido substituídos) e dirigida pelo mesmo diretor.
104
Fonte: arquivo pessoal. Crédito: Guilherme Bonfanti.
191
A experiência da pesquisa
Avignon (França)
A cidade de Avignon é habitada todo verão por milhares de espectadores que
vão ao Festival de teatro. Na primeira vez que fui à cidade, em 2012, assisti à peça Four
Seasons Restaurant, de Romeo Castellucci. No meio do festival, tudo o que vi foi a
cidade tomada pelos cartazes e pelo clima de festivalização. Em julho de 2014 fiz minha
segunda viagem para Avignon, dessa vez para acompanhar a estreia do espetáculo Dire
ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas.
105
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
106
O Festival de Avignon tem uma programação oficial de artistas convidados pela organização (IN) e uma
programação alternativa com espetáculos de grupos de todo o mundo que buscam se lançar no Festival
(OFF).
107
Lugares sobre os quais eu já tinha ouvido muitas vezes o nome, mas que fizeram sentido para mim
somente a partir de 2012, quando eu mesmo pude experienciar o Festival de Avignon e que são
emblemáticos na cultura teatral francesa.
192
A experiência do espectador contemporâneo
108
Regime especial de trabalho que permite que atores, diretores e demais trabalhadores do teatro possuam
um rendimento mínimo mesmo nos períodos entre uma criação e outra. Nesse ano, uma medida do governo
ameaçava cortar ou dificultar a obtenção dos benefícios dos intermitentes dos espetáculos. Desta maneira,
a categoria organizou uma série de protestos e ações, inclusive com o cancelamento de festivais e de
representações.
109
Há espectadores como Daniel Le Beuan, com quem conversei algumas vezes, que compram ingressos
para todos os espetáculos do festival oficial, mas se formos contar todos os espetáculos que são feitos no
OFF é realmente impossível que alguém possa assistir a tudo.
193
A experiência da pesquisa
“festivalização”, é possível a experiência significativa, desde que haja uma relação mais
profunda com a cidade.
Além da abordagem dos espectadores na porta do teatro (antes ou depois do
espetáculo) também tentei colocar um chamado a depoimentos espalhado por pontos
estratégicos da cidade, como a bilheteria central do festival. O pedido de depoimentos,
que incluía todas as peças dos encenadores Romeo Castellucci e Antônio Araújo, foi
completamente ignorado pelo público.
Como mencionei, Dire mudou radicalmente quando foi encenado em
Avignon. É impossível evitar a comparação que me leva a dizer que o espetáculo parecia
mais uma adaptação de um espetáculo que foi pensado milimetricamente para a Bolsa de
Bruxelas.
Do ponto de vista de minha pesquisa, foi muito interessante acompanhar o
espetáculo em Bruxelas e depois em Avignon, pois ficou claro como o contexto
sociocultural influi na recepção do espetáculo. Mais que isso: ficou claro como, tal qual
sugere Mervant-Roux (2013), o espectador atua como um ressonador do espetáculo, ou
seja, ele atua como no sentido de modular o espetáculo não só durante o evento como
depois dele.
Para tratar alguns pontos de diferenças entre o espetáculo, opto por mostrar
as fotografias das cenas seguidas de breves comentários.
194
A experiência do espectador contemporâneo
110
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
195
A experiência da pesquisa
111
Fonte: Festival de Avignon. Crédito: Christophe Raynaud de Lage.
196
A experiência do espectador contemporâneo
Figura 29- Cena da visita a casa do sindicalista Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon)112
112
Fonte: Festival de Avignon. Crédito: Christophe Raynaud de Lage.
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A experiência da pesquisa
113
Fonte: Festival de Avignon. Crédito: Christophe Raynaud de Lage.
198
A experiência do espectador contemporâneo
114
Fonte: Festival de Avignon. Crédito: Christophe Raynaud de Lage.
199
A experiência da pesquisa
Figura 32- Transeuntes olham e são observados durante a cena do bar - Dire ce qu'on ne pense pas
(Avignon )115
Outra cena que mudou bastante foi a cena dos protestos em frente à
embaixada. Ela foi realizada do lado externo do prédio, utilizando o telhado de vidro.
Enquanto em Bruxelas eles estavam na varanda do palácio fazendo um discurso, em
Avignon eles estavam no telhado da embaixada fugindo. Essa minha leitura só reforça a
tese de como o espaço vai definir em grande parte a leitura do espectador. São duas
encenações distintas de uma mesma cena.
115
Fonte: Arquivo Pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
200
A experiência do espectador contemporâneo
116
Fonte: Festival de Avignon. Crédito: Christophe Raynaud de Lage.
201
A experiência da pesquisa
Figura 34 – Público assiste a cena da embaixada - Dire ce qu'on ne pense pas (Avignon)117
Na Figura 34 fica clara essa divisão entre quem vê a cena e quem apenas ouve.
Os espectadores com a face iluminada são os que conseguem enxergar a ação que se passa
do lado de fora. Para os espectadores que estavam mais próximos ao fotógrafo a visão era
nula.
O público por fim se juntava novamente e seguia para uma sala onde assistia
a conferência na qual a economista perde a fala.
Penso que minha experiência mostra que cenas potentes, como a do bar, ainda
que reencenadas completamente, continuarão sendo marcantes. Sobre os motivos que
levam a esse fato discutirei mais à frente a partir das entrevistas.
117
Fonte: Festival de Avignon. Crédito: Christophe Raynaud de Lage.
202
A experiência do espectador contemporâneo
Lausanne (Suíça)
Muito menos conhecida que Paris ou Avignon, Lausanne foi uma grande
surpresa para mim. Romeo Castellucci fez sua nova criação no Vidy Théâtre, um dos
centros de referência do teatro contemporâneo no país. Vincent Baudriller, que foi por 10
anos diretor do Festival de Avignon, assumiu a direção do teatro há alguns anos e
transformou seu perfil de programação e seu público alvo.
O teatro Vidy por si só impressiona com sua numerosa equipe. São 67
funcionários fixos trabalhando todo tempo para programar espetáculos, desenvolver
novas criações, administrar o teatro e realizar ações culturais junto a escolas e
associações. Impressiona também pela arquitetura moderna: as quatro salas bem
equipadas, restaurante a preços acessíveis, proposição de serviço de guarda de crianças
que permite aos pais assistirem à peça e localização privilegiada na margem do lago
Léman.
O teatro Vidy não é menos impressionante que o próprio contexto no qual
está inserido. Um contexto de riqueza e de acesso aos bens culturais faz com que uma
cidade de pouco mais de 130 mil habitantes tenha cerca de 18 teatros.118 A impressão de
que tudo funciona (realmente as coisas funcionam) acaba por esconder as dificuldades de
integração dos imigrantes e dos pobres na sociedade Suíça.
118
Numa pequena digressão, a população de Lausanne é menor, por exemplo, que Varginha (MG), cidade
que apesar de contar com um festival de teatro nacional tem cerca de três teatros com uma atividade bem
menos intensa que a encontrada em Lausanne. Cabe ainda dizer que Lausanne é um caso à parte mesmo no
contexto suíço. Em cidades como Neuchâtel, o teatro tem um lugar historicamente menos importante que
em Lausanne para a sociedade.
203
A experiência da pesquisa
119
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
204
A experiência do espectador contemporâneo
120
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
205
A experiência da pesquisa
A sala que estava sendo utilizada para os ensaios era grande, mas permitia
que mesmo quem estivesse sentado ao fundo enxergasse bem, como mostra a 37, tirada
do fundo do teatro. A foto mostra também que quando utilizada a luz de serviço,
praticamente não se podia ver o que estava por trás de uma espécie de véu que separava
palco e plateia.
O ensaio das cenas foi feito mais seguindo a sequência, algumas vezes sem
as transições. Quando, por fim, assisti à peça em uma espécie de “passadão”122, já
conhecia as cenas de maneira independente, mas percebi como era diferente quando elas
estavam colocadas naquela determinada sequência e apresentadas de maneira seguida.
Me lembro também que eles chegaram a ensaiar uma cena na qual os
figurantes traziam um cachorro em cena (que parecia um lobo), mas depois essa cena
acabou por desaparecer na versão final, assim como algumas placas com imagens
utilizadas nos ensaios.
121
Fonte: Arquivo pessoal. Crédito: Leonel Carneiro.
122
Termo utilizado no Brasil para o ensaio em que se faz a peça como ela será apresentada, sem parar,
como se fosse uma apresentação.
206
A experiência do espectador contemporâneo
Na Figura 38 vê-se ainda uma dessas placas na primeira cena, mas pelo que
me lembro no “passadão” ela não estava lá.
A primeira cena do espetáculo, uma espécie de prólogo, refletia para mim
sobre o espectador da arte contemporânea. Ela se passava em um ambiente totalmente
branco e sem elementos de cenário, além de um quadro com um coelho que ficava ao
centro, no fundo do palco. A impressão que tive é de que a cena mimetizava uma galeria
de arte na qual pessoas brancas e bem vestidas performavam o espectador especialista.
Essa passagem não tinha falas, mas através de uma coreografia ela mostrava
as discussões sobre a arte que este público especializado desenvolvia. Outro fato que me
leva a considerar essa cena como um prólogo é que além de estar aparentemente
descolado da lógica que gere as outras cenas, ela ocorria enquanto os espectadores
entravam no teatro.
123
Fonte: Vidy Théâtre. Crédito: Guido Mencari
207
A experiência da pesquisa
124
Fonte: Arquivo Pessoal. Crédito: Leonel Carneiro
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A experiência do espectador contemporâneo
125
Foto de Divulgação. Crédito: Guido Mencari.
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A experiência da pesquisa
126
Foto de Divulgação. Crédito: Guido Mencari.
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A experiência do espectador contemporâneo
127
Foto de Divulgação. Crédito: Guido Mencari.
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A experiência da pesquisa
128
Foto de divulgação do espetáculo. Crédito: Guido Mencari
212
A experiência do espectador contemporâneo
213
A experiência da pesquisa
Paris (França)
Paris é evidentemente uma das cidades mais presentes nessa tese, pois foi
onde morei durante um tempo significativo deste doutorado. Não gastarei minhas linhas
falando de uma das cidades mais conhecidas do mundo, mas é impossível não dizer que
pude conhecer um dos lugares mais “humanos” do mundo. A Biblioteca Nacional da
França (BnF), a Biblioteca Interuniversitária da Sorbonne (BIS), a Universidade Paris 3,
a Galeria Colbert, os restaurantes universitários (CROUS), Antony, a cidade em que
morei, os teatros a que fui (em especial o Théâtre de la Ville, local onde Go Down, Moses
foi encenado), são lugares presentes nesta tese. Cada um desses lugares aviva a memória
de fatos e pessoas (o contrário também é verdade) todo o tempo de escrita dessa tese129.
Em uma de minhas primeiras incursões no Théâtre de la Ville, pude conversar
com funcionários e constatar como a questão dos protestos em torno do espetáculo de
Castellucci, Sobre o conceito da face no filho de Deus, tinha deixado marcas profundas.
Eles se recusaram todo o tempo a falar ou a fornecer qualquer material sobre a peça e me
explicaram que tinha sido um momento muito difícil para eles. Em um segundo momento,
quando fui fazer a pesquisa com os espectadores, tudo correu bem, pois eu fazia a
abordagem direta das pessoas, sem precisar da mediação dos funcionários do teatro.
Também o contexto da peça era mais fácil, pois dentro de uma homenagem
da programação do Festival de Outono de Paris, o primeiro de uma aguardada série de
três espetáculos, Go Down, Moses me permitiu ter acesso a um grande número de
espectadores, sendo que alguns deles viam um espetáculo de Romeo Castellucci pela
primeira vez.
Certamente que o excesso de oferta de espetáculos que a cidade de Paris
propicia (um dos maiores do mundo) não contribui para a formação das lembranças a
longo termo. Desta forma, procurei mesclar públicos que iam com mais e com menos
frequência ao teatro.
129
Essa tese é um testemunho de minha experiência da mudança política na França e especialmente dos
atentados que aterrorizaram todo o mundo e que tiveram como palco a cidade de Paris. No momento em
que finalizava a tese, em novembro de 2015, ocorreram um dos piores atentados terroristas da história que
deixaram mais de 140 mortos. No Brasil também o momento não é dos melhores, há gritos irracionais que
pedem a volta da ditadura militar, crise econômica e política, o governo de São Paulo fecha escolas,
policiais matam inocentes, desastres ambientais são rotina, os interesses da religião e do agronegócio
dominam a política e a USP quer fechar hospitais, creches e restaurantes universitários. Na medida que o
teatro é um reflexo da sociedade ele é mais do que nunca um lugar de resistência e de memória que busca
manter a pulsão de vida frente a fatos que anunciam mudanças para os próximos anos.
214
A experiência do espectador contemporâneo
130
Não havia tempo nem recursos suficientes para realizar as três entrevistas que propunha em Lausanne.
215
A experiência da pesquisa
131
Não trago narrativas das cidades de São Paulo e Porto Alegre, pois nos casos dos espetáculos Bom
Retiro 958 metros e Sobre o conceito da face do filho de Deus, que acompanhei nessas cidades, a maneira
como trouxe as referências permitem ao leitor inferir o contexto que foram escritos.
216
A experiência do espectador contemporâneo
217
O espectador das teatralidades contemporâneas
132
Utilizo palavras-chave em português e em francês pois as entrevistas foram feitas nas duas línguas.
218
A experiência do espectador contemporâneo
Para tal análise selecionei apenas os espectadores que tinham feito a segunda
e a terceira entrevistas sobre os espetáculos Dire ce qu’on ne pense pas e Go down,
Moses. Desta maneira são analisadas um total de 18 entrevistas com 10 pessoas
diferentes, sendo 4 espectadores que assistiram à encenação de Antônio Araújo e 6 que
assistiram ao espetáculo de Romeo Castellucci.
Todas as entrevistas com espectadores utilizadas nesse capítulo foram feitas
entre os anos de 2014 e 2015. Os nomes dos espectadores foram substituídos por nomes
fictícios para preservar sua identidade. Para diferenciar as segundas das terceiras
entrevistas foi adotada uma fonte e uma tabulação diferentes para quando elas forem
citadas. Cada primeira intervenção de um sujeito é acompanhada por um rodapé que
discrimina o número da entrevista (2ª ou 3ª), o espetáculo a qual ela se refere e o local no
qual o espectador viu o espetáculo. Há também informações sobre a idade, profissão e
naturalidade do espectador. De maneira geral pude perceber que algumas categorias
tinham mais ocorrências que outras no discurso dos espectadores, como ilustra o Gráfico
6.
219
O espectador das teatralidades contemporâneas
Pude notar que quase todas as categorias elencadas por Pavis e as minhas
próprias foram contempladas nos discursos. Chamo a atenção para a ausência da
ocorrência de menções ao figurino e à maquiagem.
Em parte, a ausência dessas categorias reflete uma característica inerente ao
teatro contemporâneo: a utilização de roupas cotidianas e de pouca ou nenhuma
133
Utilizo o termo mise en scène do francês para reforçar a diferença entre a encenação e o encenador. Sigo
Dort (1977, p.61) para quem o surgimento da a encenação (mise en scène) a partir do século XIX não se
explica pela aparição da figura do encenador, mas por uma modificação dos públicos que deixam de ser
homogêneos, não podendo ser mais separados por gêneros.
220
A experiência do espectador contemporâneo
maquiagem. Se o ator estivesse com a mesma roupa fora do teatro, de maneira geral, ele
passaria despercebido.
Na encenação dirigida por Araújo em Bruxelas, por exemplo, havia uma
espécie de prólogo que contava com atores instalados nas escadarias da Bolsa de Bruxelas
(local onde o espetáculo foi realizado). Os atores sentados junto à barraca azul usavam
um figurino que pouco os diferenciava das outras pessoas que ficavam em frente à Bolsa
normalmente. A única diferença notável seria a utilização das barracas, que é uma prática
proibida e reprimida pela polícia do local.
Os espectadores olham a cena sem saber ao certo se se trata de ficção ou
realidade. Essa é uma marca da intervenção urbana que o Teatro da Vertigem costuma
promover por onde passa. Araújo parece buscar mimetizar a realidade local, propiciando
essa ambiguidade ao olhar do espectador. Essa mesma cena do início do espetáculo foi
modificada por Antônio Araújo na apresentação do espetáculo no Festival de Avignon.
Os figurinos de mendigo foram substituídos por trajes sociais. Esses atores ficavam
durante longo tempo deitados no chão em locais próximos ao prédio do Hôtel des
Monnaies.
Já no caso de Go Down, Moses, os figurinos eram mais comuns e em parte
das cenas, dir-se-ia até que realistas, ou seja, muito próximos a roupas utilizadas em
situações reais. Do início até o meio da peça o que os espectadores viam eram pessoas
em trajes condizentes com as situações comentadas. Foi comentada, por outro lado, a
ausência de roupa e as máscaras na última parte do espetáculo.
Se por um lado a menção ao figurino e à maquiagem não foi feita, o Gráfico
6 mostra que a referência à categoria cena foi, em disparada, a mais utilizada pelos
espectadores. Penso que isso reflete outra característica das teatralidades
contemporâneas, que é a divisão do espetáculo em quadros ou cenas. Essa divisão se torna
o ponto principal de referência para os espectadores, que passam a organizar sua memória
do espetáculo utilizando essa categoria.
Apesar das semelhanças, o Gráfico 7, que analisa as ocorrências de cada
categoria separadas por espetáculo, revela que há grandes diferenças entre os espetáculos.
221
O espectador das teatralidades contemporâneas
134
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Bruxelas em francês. Espetáculo e 1ª entrevista em 27/05/2014. 2ª entrevista em 29/05/2014. 3ª entrevista
07/09/2014. Dinho é belga, tinha 45 anos, era formado em sociologia, atuando como professor universitário.
Foi ao espetáculo a convite de uma amiga (do meio teatral) e estava junto com Sabrina, sua esposa, no dia
do espetáculo e das entrevistas.
222
A experiência do espectador contemporâneo
135
2ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
136
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Bruxelas em francês. Espetáculo e 1ª entrevista em 27/05/2014. 2ª entrevista em 29/05/2014. 3ª entrevista
07/09/2014. Sabrina é belga, tinha 43 anos, era formada em enfermagem atuando como professora do
ensino superior. Foi ao espetáculo a convite de uma amiga (do meio teatral) e estava junto com Dinho, seu
esposo, no dia do espetáculo e das entrevistas.
137
3ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
223
O espectador das teatralidades contemporâneas
138
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Avignon em francês. Espetáculo e 1ª entrevista em 08/07/2014. 2ª entrevista em 10/07/2014. 3ª entrevista
em 15/11/2014. André é francês e mora em Avignon, tinha 24 anos, trabalhava como ator e fazia graduação
na cidade. Também fazia o conservatório dramático. Trabalhou acompanhando a produção e por isso esteve
em todas as apresentações da peça, ainda que só tenha assistido integralmente a 2 ou 3.
139
2ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
224
A experiência do espectador contemporâneo
140
2ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
225
O espectador das teatralidades contemporâneas
226
A experiência do espectador contemporâneo
141
Ver Helene e Xavier, 2003.
142
Entrevista realizada em 28/03/2014 por Leonel Carneiro na cidade de Bolonha. Tradução: Eli Borges Jr.
Revisão de tradução: Leonel Carneiro
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Entrevista realizada em 28/03/2014 por Leonel Carneiro na cidade de Bolonha. Tradução: Eli Borges Jr.
Revisão de tradução: Leonel Carneiro
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O espectador das teatralidades contemporâneas
objetos e sons, que é o sentido que esse som tem. Se nas cenas do eixo que gira ou da
ressonância o som é mecânico e de certa forma mais abstrato, na cena em que aparece
uma lixeira e algo se movendo dentro dela o som do choro de um bebê parece ganhar uma
significação mais imediata e é menos citado. Penso que esse som é menos citado pelos
espectadores porque, a partir dele, é mais fácil produzir-se uma compreensão racional da
cena, como aponta Roberta144:
144
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris em português. Espetáculo em 06/11/2014. 2ª
entrevista em 07/11/2014. 3ª entrevista em 31/03/2015. Roberta é brasileira e morava em Paris, tinha 31
anos, era doutoranda em artes cênicas e diretora de teatro. Foi ao espetáculo com Talita. É casada com
Júlio.
145
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
228
A experiência do espectador contemporâneo
Se pensarmos na fala de Castellucci durante sua entrevista, esse som que não
tem “ligação com a imagem” parece ter sido uma concepção do encenador, para quem o
trabalho de conjugação de elementos visuais e sonoros é um conhecimento específico.
Assim como um acorde, as cenas das peças dirigidas pelo encenador também se utilizam
das somas dos elementos de sua composição para criar uma outra coisa, uma espécie de
síntese, diferente da simples soma entre elas. Essa composição, que Castellucci chama de
disciplina no excerto abaixo, agiria no enfrentamento do desafio de contrabalancear
emoção e razão.
146
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris em Francês. Espetáculo e 1ª entrevista em
05/11/2014. 2ª entrevista em 08/11/2014. 3ª entrevista em 29/03/2015. Bianca é francesa e mora em Paris,
tinha 51 anos, e trabalhava como diretora de mídia. Foi ao espetáculo só e sentou-se ao meu lado.
147
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
148
Entrevista realizada em 28/03/2014 por Leonel Carneiro na cidade de Bolonha. Tradução: Eli Borges Jr.
Revisão de tradução: Leonel Carneiro
149
Utilizo o termo imagem-sonora para reforçar ideia de que participa da composição dessa imagem a qual
o espectador se refere outros sentidos além da visão, ainda que na maior parte dos casos, ao que parece, a
visão é o sentido que organiza essa imagem.
229
O espectador das teatralidades contemporâneas
conhecido que o brasileiro. Por outro lado, no que diz respeito à questão da encenação, o
espetáculo Dire ce qu’on ne pense pas é mais referido por seus espectadores. Essa
menção ao encenador ou à encenação reflete a influência do ambiente sociocultural na
formação do olhar do espectador.
Dando continuidade à análise, pude verificar que há uma variação das
memórias ao longo do tempo. Algumas categorias e cenas citadas na segunda entrevista
são ignoradas na terceira. Do mesmo modo, algumas outras categorias que eram pouco
citadas na segunda entrevista ganham mais espaço na terceira como vemos no Gráfico 8.
Gráfico 8 – Frequência das categorias por espetáculo e número sequencial da entrevista (por ocorrência
de palavra-chave)
230
A experiência do espectador contemporâneo
aumenta ao longo do tempo (direta) ou diminui com o passar do tempo (inversa). Depois
de fazer essa operação, propus uma comparação da mesma categoria dos dois espetáculos.
Ao comparar uma mesma categoria nessas duas encenações, pude verificar se
elas tinham ou não o mesmo comportamento ao longo do tempo. Diante dessa proposta,
pude chegar a três possibilidades de comportamento distintos.
No primeiro comportamento há uma proporcionalidade entre a segunda e a
terceira entrevista de cada espetáculo. Por exemplo, a categoria “ator” é mais citada na
segunda do que na terceira entrevista para ambos os espetáculos. Isso indica que a
categoria será menos presente na recordação dos indivíduos de ambos os espetáculos ao
longo do tempo.
A segunda possibilidade é que as categorias apresentem comportamentos
inversos para cada espetáculo. Por exemplo, a categoria “cena”, que é menos citada na
terceira entervista de Go Down, Moses do que na segunda, enquanto, a mesma categoria
apresenta um comportamento inverso no caso de Dire ce qu’on ne pense pas. Proponho
que este pode ser um indício de um tipo de memória que tem uma tendência a ter sua
evocação variada segundo o espetáculo.
Por fim, o terceiro comportamento é um que não permite realizar a
comparação entre os espetáculos. Ele se dá na ausência da menção à categoria em uma
das entrevistas. Dessa forma, ele revela traços que são característicos de cada encenação,
como posso citar o exemplo da categoria “barulho” que revela um traço marcante de Go
Down, Moses. Se dividirmos as categorias nessas três tendências, teremos a seguinte
tabela:
Proporcional Inversa Não comparável
Ator Cena Barulho
Encenador Corpo Cenário
Imagem Dramaturgia Deslocamentos
Território Personagens Duração
Luz
Encenação
Música
Objetos
Prédio
Quadro
Voz
Tabela 4 – Agrupamento das categorias analisadas por espetáculos e entrevistas
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O espectador das teatralidades contemporâneas
Num primeiro olhar sobre essa organização das categorias, pode-se dizer que
as que têm comportamentos proporcionais possuem uma vida própria e apresentam um
mesmo comportamento, ganhando ou perdendo importância ao longo do tempo. Tais
categorias revelam traços mais gerais da organização das memórias do teatro
contemporâneo.
A palavra ator, por exemplo, é utilizada de diferentes maneiras durante a
entrevista. No caso de André, por exemplo, ela aparece de uma maneira mais próxima
aquela que é colocada por Pavis.
Interfere na sua leitura o fato que ele prórprio é ator e, dessa maneira, conhece
bem as categorias utilizadas pela teoria teatral e se interessa pela prática dos atores como
uma forma de exercício de sua profissão, tanto que ele é dos poucos a dizer que se lembra
da atuação na terceira entrevista.
150
2ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
151
3ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
152
2ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
232
A experiência do espectador contemporâneo
sua materialidade concreta e, para a peça de Araújo, também para se referir ao espectador
que está em cena.
Por outro lado, a categoria imagem mostra bem como os espectadores irão
usar uma mesma palavra de muitas formas diferentes. Apresento abaixo algumas das
possibilidades encontradas.
153
3ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
154
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris em português. Espetáculo e 1ª entrevista em
08/11/2014. 2ª entrevista em 21/11/2014. 3ª entrevista em 02/04/2015. Clara é brasileira e morava em Paris,
tinha 54 anos é arquiteta e dá aulas de música. Foi ao espetáculo com Vanessa e com o marido desta.
155
2ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
156
3ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
157
2ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
158
3ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
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O espectador das teatralidades contemporâneas
159
3ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
160
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris em português. Espetáculo em 08/11/2014. 2ª
entrevista em 08/11/2014. 3ª entrevista em 04/04/2015. Júlio é francês e morava em Paris, tinha 28 anos, e
atuava como tradutor. É casado com Roberta que o incentivou a ir ver a peça e amigo de Talita.
161
2ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
162
3ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
163
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Bruxelas em português. Espetáculo e 1ª entrevista em 26/05/2014. 2ª entrevista em 29/05/2014. 3ª entrevista
em 07/09/2014. Adelaide é nascida na Guiné-Bissau e criada em Portugal, tinha 27 anos, trabalhava como
empregada doméstica. Foi ao espetáculo a convite da professora do curso de francês. Estava junto com
Tatiana.
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164
2ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
235
O espectador das teatralidades contemporâneas
165
3ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
166
2ª entrevista – Go down, Moses – Paris.
236
A experiência do espectador contemporâneo
Por outro lado, o que o espetáculo Dire ce qu’on ne pense pas põe em
evidência são os corpos dos espectadores.
167
3ª entrevista - Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
237
O espectador das teatralidades contemporâneas
experiência. O tempo de cada entrevista (ver Tabela 5) não era pré-estipulado e variava
conforme a necessidade de cada espectador. Ele começava a ser contado no momento
que eu ligava o dispositivo de gravação e acabava quando o espectador se dizia satisfeito,
ou seja, quando tinha dito tudo que julgava importante sobre sua experiência do
espetáculo.
238
A experiência do espectador contemporâneo
para verificar como tal tendência se desenvolveria ao longo do tempo, mas a manutenção
do tempo em relação ao espetáculo dirigido por Romeo Castellucci demonstra uma
projeção de uma lembrança duradoura, enquanto para o caso do espetáculo de Antônio
Araújo a tendência é de que a lembrança se condense muito rapidamente até se tornar
apenas uma frase.
É comum que depois de algum tempo eu não me lembre de um espetáculo,
de suas cenas ou mesmo de sua história, mas me lembre de uma espécie de sensação que
o espetáculo me deixou. “Não gostei porque era longo”, “era um espetáculo bonito” etc.
Dessa forma, quando o espetáculo se reduz a uma frase ele perde a ligação com o percurso
de vida. Do ponto de vista da memória, seria mais bem-sucedido um espetáculo que,
sendo capaz de se articular com a vida do espectador, despertasse a cada vez que fosse
evocado uma nova associação.
A título de especulação, calculei qual seria a tendência de crescimento (ou
diminuição) do tempo de entrevista para ambos os espetáculos, baseado nos dados da
Tabela 5 dentro de um período de dois anos. A análise do tempo das entrevistas, embora
não possa ser vista de maneira isolada, denota a tendência das memórias em relação ao
tempo.
Gráfico 9- Projeção do tempo médio das entrevistas para Dire ce qu’on ne pense pas e Go Down, Moses
em 2 anos
239
O espectador das teatralidades contemporâneas
espetáculo (6 minutos de fala em média) e após dois anos o espetáculo poderia ser
concentrado em uma frase (de menos de 1 minuto). Por outro lado, aqueles que assistiram
Go down, Moses teriam um tempo médio de entrevista bem estável de cerca de 31
minutos após 12 meses e 36 minutos depois de 24 meses.
Fica claro que todo o trabalho de mapeamento proposto neste capítulo é
essencial para revelar algumas tendências da experiência dos espectadores entrevistados.
Apesar de ser muito útil para revelar tendências mais gerais, esse tipo de análise parece
não penetrar em camadas mais finas do discurso.
Deve-se levar em consideração, por exemplo, que os espectadores
entrevistados são de nacionalidades diversas, têm línguas maternas diferentes e as
entrevistas foram concedidas no idioma escolhido por eles (nem sempre o materno). As
diferenças culturais certamente contam na hora de escolher as categorias de análise. Nota-
se que os francófonos se balizam mais pelas categorias propostas por Pavis (2012) que os
lusófonos. Há, enfim, uma série de outras variáveis, como a relação com cada
entrevistado, o local de entrevista, o fato de ser estrangeiro, que não estariam
contempladas em uma análise destas categorias os mesmo de outras que podem ser
criadas.
Diante dessa primeira tentativa de abordar as entrevistas fica claro que ela
consegue apenas tocar na superfície das verdadeiras questões apresentadas pelos
espectadores, uma vez que se foca, na maior parte dos casos, na estética do espetáculo,
como se ele estivesse descolado da vida deste espectador. Por este motivo, penso que a
análise a partir das categorias teatrais em uso serve como uma aproximação da
experiência do espectador que deve ser aprofundada pela analise direta do discurso, a
partir do qual emanam outras categorias que possuem uma lógica própria.
Após tal constatação, proponho ao leitor que acompanhe as flutuações de meu
olhar sobre as entrevistas, que busca desvendar, subjetivamente, o enigma da experiência
dos espectadores entrevistados.
240
A experiência do espectador contemporâneo
168
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
241
O espectador das teatralidades contemporâneas
242
A experiência do espectador contemporâneo
vividos pelos artistas, influenciado pela soma de ideias e experiências anteriores, sendo
que algumas delas se tornam referências em suas memórias. Do mesmo modo o
espetáculo continua depois que as “cortinas fecham”. Ele continua seu desenvolvimento
em nossa memória.
169
Regnault é um filósofo francês, professor da Université Pais VIII. Um apaixonado por teatro ele escreve
em seu Le spectateur algumas de suas memórias do teatro, organizadas e refletidas a luz de sua filosofia.
243
O espectador das teatralidades contemporâneas
2015, com espectadores que pude acompanhar desde a saída desses espetáculos, ou até
mesmo antes disso.
A tendência de dramatizar e criar narrativas, mesmo nos casos nos quais ela
não está posta a priori, foi algo que pude perceber em todas as entrevistas que fiz. Em
alguns casos mais claramente, em outros menos, mas o espectador parece sempre estar
procurando uma ligação entre os fatos apresentados na peça e identificar uma sequência
lógica na mesma.
Se o teatro dramático prima pela compreensão da narrativa, o teatro
contemporâneo parece se recusar a dar essa narrativa de maneira fácil. Exige que o
espectador trabalhe. O resultado é que uma mesma cena, uma mesma peça, podem
resultar em narrativas completamente diferentes.
Para entrar nesse território, proponho ao leitor um olhar atento à narrativa
criada por Adelaide sobre Dire ce qu’on ne pense pas. Essa narrativa é diferente daquela
que eu empreendi, demonstrando como há possibilidades de interpretação da cena que
extrapolam mesmo a intencionalidade dos produtores.
244
A experiência do espectador contemporâneo
245
O espectador das teatralidades contemporâneas
Penso que essa passagem da entrevista com Adelaide demonstra muito bem
como ela, à medida que fala da peça, tenta construir uma narrativa coerente a partir de
sua própria experiência. A sequência de cenas apresentadas pela peça, que eu mesmo
tinha lido como cenas independentes, foi vista por Adelaide como uma única história,
com diversos flashbacks171. Vendo minha intervenção durante a entrevista percebi que
mesmo eu tinha criado uma narrativa (como narro em capítulos anteriores), um pouco
diferente da de Adelaide. Destaco que a encenação é construída de uma forma que fica
difícil dizer qual seria a leitura mais correta da cena. Isso está expresso por Adelaide no
fim de sua fala, quando ela se coloca a interrogação “ou não?”, acompanhada por um “não
sei...”.
Para que a minha narrativa sobre o espetáculo não fique como única
referência de comparação à empreendida por Adelaide, proponho uma comparação com
as narrativas de outros espectadores.
170
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
171
É necessário salientar que ainda que seguisse o texto de Bernardo Carvalho (2014), a encenação não era
feita de forma realista e possuía diversas invenções que permitiam uma multiplicidade de leituras.
172
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Bruxelas em português. Espetáculo e 1ª entrevista em 26/05/2014. 3ª entrevista em 07/09/2014. Tatiana é
portuguesa, tinha 28 anos, era formada em comunicação e trabalhava como caixa de supermercado. Foi ao
espetáculo a convite da professora do curso de francês. Estava junto de Adelaide no espetáculo.
246
A experiência do espectador contemporâneo
173
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
247
O espectador das teatralidades contemporâneas
mendigos por ter acompanhado a montagem da peça, mas que um espectador bem poderia
acreditar se tratarem de mendigos verdadeiros. Surge dessa maneira uma condição de
liminaridade entre o real e o ficcional, gerando para o espectador uma experiência que a
pesquisadora Erika Fischer-Lichte (2013, p.31) denomina como “experiência de crise”.
Leonel - O pastor....
174
Considero o espetáculo de Brook (2014) uma boa ilustração de como precisamos organizar a memória
para que ela possa ser acessada. Na ficção dirigida por Peter Brook e Marie-Hélène Estienne, a personagem
Sammy Costas coloca cada memória, como um objeto, em alguma parte de sua casa, começando pelas
prateleiras e terminando por encher toda a cidade. Ao fazer ligações entre as novas memórias e as memórias
já consolidadas, e ao repeti-las no ato da fala, o espectador aumenta circunstancialmente as chances de se
lembrar da peça.
248
A experiência do espectador contemporâneo
175
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
249
O espectador das teatralidades contemporâneas
Ainda que o encenador tenha tido uma intenção ao criar, quando a obra é
apresentada ao público ela deixa de pertencer ao autor e passa a pertencer ao espectador,
que vai lhe dar as colorações que bem entender dentro do que lhe foi proposto. Dessa
maneira, como propunha Dewey (2010, p.21-22), “Os atributos da obra de arte dependem
não apenas das pessoas que a vivenciam (assim como do produto artístico), mas também
das circunstâncias da experiência”.
Voltando ao caso de Adelaide, é fato que quando contei sua reação a um
membro da equipe do espetáculo tive que ouvir “não, mas a Adelaide entendeu errado,
eram várias cenas e o pastor era uma crítica a todas igrejas”, e depois “não, a Tatiana não
entendeu, quem estava louco era o pai, não a filha”. Retomando a situação, penso que
Adelaide e Tatiana estavam atentas à matéria física do teatro, dos sons, corpos, objetos
etc. Elas estavam atentas ao sentido, procurando criar narrativas plausíveis e ancoradas
na experiência particular de cada uma.
O que havia em comum entre Adelaide e Tatiana, além do fato de terem visto
“juntas” Dire ce qu’on ne pense pas, é que ambas não eram frequentadoras do teatro (e
nunca tinham assistido teatro contemporâneo). Ambas estavam lá pelo acaso, levadas pela
professora de francês de um curso para estrangeiros.
Se para a pessoa com quem conversei da equipe do espetáculo elas não
pareciam o público idealizado para a peça seriam, em teoria, recebidas como muita alegria
por Romeo Castellucci, para quem o “espectador ideal seria aquele que entrasse no teatro
por acaso: sem ferramentas intelectuais, seu olhar é totalmente sensação, conhecimento
por meio dos sentidos, pura abertura física à representação, poro aberto aos afetos que
vêm da cena” (CASTELLUCCI, 2014c, p.35).
Penso que a afirmação de Castellucci vem no sentido de restaurar a validade
da experiência do espectador não especializado. Percebo olhando para as entrevistas, o
quão atento à matéria em cena eles estão e como o frescor de ver pela primeira vez esse
tipo de teatro aumenta sua capacidade atentiva. Sua afirmação combate a ideia de que um
176
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
250
A experiência do espectador contemporâneo
público que não conheça o teatro contemporâneo não vai compreendê-lo, luta contra a
ideia do fracasso do espectador.
177
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Avignon em francês. Espetáculo e 1ª entrevista em 09/07/2014. 3ª entrevista 15/11/2014. Morena é francesa
e mora em Avignon. Tinha 30 anos e trabalhava na Universidade de Avignon. Foi a peça seguindo a
recomendação de uma amiga (que é artista).
178
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
251
O espectador das teatralidades contemporâneas
parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens e
ideias de hoje, as experiências do passado”.
Como efeito colateral de minha pesquisa, penso que a maior parte desses
espectadores não especializados, que saíram do teatro com a impressão de que não
entenderam a peça, acabam por descobrir que eles tinham compreendido muito além do
que pensaram inicialmente. A ilusão do fracasso do espectador deve ser combatida, mas
essa luta não pode se dar em uma frente única e deve incluir todas as ferramentas que
levem o teatro a encontrar sua função social na atualidade.
179
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris em francês. Espetáculo e 1ª entrevista em
04/11/2014. 2ª entrevista em 08/11/2014. 3ª entrevista em 02/04/2015. Fábio é francês e mora em Paris,
tinha 47 anos, e trabalhava como crítico de cinema para um grande jornal francês. Foi ao espetáculo só e
sentou-se ao meu lado.
252
A experiência do espectador contemporâneo
Ir à Paris para assistir teatro. Fica claro como o contexto, na passagem narrada
por Fábio, foi fundamental para que a experiência se instalasse como significativa. Outra
questão que a fala de Fábio suscita é que mesmo antes de sua primeira experiência com
o gênero teatral contemporâneo ele já tinha uma experiência de teatro através da
televisão.181
Vê-se assim como a experiência teatral, mesmo a tida como a primeira, não
está isolada das outras experiências dos espectadores. Ao falar de sua primeira
experiência do teatro, Fábio acaba por evocar também a sua primeira experiência
significativa do cinema.
O leitor pode estar se perguntando nesse momento: “mas por que Fábio fala
do cinema se a entrevista é sobre teatro? ”. Como já disse, as experiências do espectador
são todas integradas e, além disso, penso que a sua paixão forte pelo cinema foi o que
impulsionou, mais tarde, sua incursão pelo universo do teatro e da dança. De fato, o
cinema é o ponto de referência de Fábio, a partir do qual ele olha o mundo.
Sua fala constata que a emoção provocada pelo filme de Lynch condiciona
seu olhar de espectador. Desse modo fica expressa uma outra questão, que é a influência
180
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
181
Na França, o teatro sempre foi muito presente no rádio e na tv. Transmissões ao vivo, peças radiofônicas,
gravações de espetáculos são ainda hoje muito comuns. Discos de teatro traziam as vozes mais conhecidas
dos franceses como a de Sarah Bernhardt, uma das atrizes francesas mais famosas no início do século XX.
182
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
253
O espectador das teatralidades contemporâneas
183
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
184
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris em português. Espetáculo e 1ª entrevista em
08/11/2014. 2ª entrevista em 21/11/2014. Vanessa é brasileira e morava em Paris, tinha 42 anos e atuava
como jornalista. Foi ao espetáculo com Clara e com seu marido.
254
A experiência do espectador contemporâneo
185
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
186
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
255
O espectador das teatralidades contemporâneas
dar uma espécie de contexto, que tinha relação com sua vida e sua vivência teatral
anterior, era imprescindível para poderem falar dos espetáculos sobre os quais a pesquisa
se focava.
3.2.2 Contextos
A contextualização me permitia compreender suas falas, saber o local de onde
eram feitas. Dentro desse contexto, a primeira experiência teatral apareceu diversas vezes.
Mas também é possível identificar outros tipos de contextualização. Um dos mais
frequentes é aquele que explica como a trajetória de vida levou a pessoa até aquele
espetáculo, muitas vezes mais significativa que o próprio espetáculo.
Mas o que isso tem a ver com a peça? Tudo! Nessa contextualização Adelaide
me coloca a par de seu ponto de vista e de sua relação com o grupo ao qual ela pertencia
quando assistiu ao espetáculo encenado por Antônio Araújo. Ela demonstra que o convite
da professora foi o elemento disparador de sua ida ao teatro naquele dia. É muito provável
que, se não fossem os convites que a professora de francês ganhou para levar ao teatro os
alunos de seu curso, Adelaide jamais teria sequer pensado em ir ver a peça. Um espetáculo
pode continuar a existir após o evento teatral, mas não pode prescindir dele, ou seja, ele
deve ter sido apresentado.
O teatro está inserido na vida real e seu contexto é também o econômico e o
social. Sabrina, por exemplo, faz questão de me contar que foi ao teatro fazendo uso do
artigo 27 da Declaração Universal de Direitos do Homem. Na Bélgica, isso é traduzido
187
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
256
A experiência do espectador contemporâneo
188
DOCUMENTO OFICIAL DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM, artigo 27.º:
“Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e
de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”. Disponível em:
http://www.humanrights.com/pt/what-are-human-rights/universal-declaration-of-human-rights/articles-
21-30.html>. Acessado em 02/12/2015.
189
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
257
O espectador das teatralidades contemporâneas
Ela conhece o tipo de teatro que é promovido pelo Teatro Nacional de Bruxelas ou o tipo
de espetáculo que sua amiga prefere.
Por outro lado, a contextualização à qual os espectadores recorrem nos faz
lembrar que o teatro faz parte da vida, representando uma parte ínfima da mesma. Uma
oportunidade de sair para o teatro envolve muitas coisas. O trabalho, o grupo de amigos,
a família. Alguém tomou conta dos filhos de Dinho no dia em que ele viu a peça. Bianca
teve que se esforçar para assistir Go Down, Moses.
Sempre que vou ao teatro me coloco a questão de Bianca: “vou ou não vou?”.
Sair de casa, pegar um transporte, gastar dinheiro com os ingressos, comer fora, voltar
tarde para casa, ter que conseguir que alguém fique com os filhos, lembrar que no outro
dia devo acordar cedo. Ir ao teatro demanda do espectador um investimento de tempo,
dinheiro e energia pessoal. Muitas vezes, como nos fala Bianca, vamos ao teatro por
verdadeiras obras do acaso. Um amigo que nos deu seu bilhete, um espectador que chega
atrasado, alguém que nos convida para o espetáculo, enfim, as possibilidades são
inúmeras. Esses esforço e investimento são o que tornam o teatro tão humano: um gerador
de encontros e desencontros.
190
Na França praticamente todos os teatros propõe um abonnement, que consiste em oferecer aos
espectadores assinaturas no qual o espectador é obrigado a pegar um número mínimo de ingressos, em troca
de vantagens, como a redução do preço dos bilhetes.
191
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
258
A experiência do espectador contemporâneo
Valorizo ainda mais esse discurso de Bianca ao pensar que ela estava sentada
ao meu lado no teatro e, um pouco por força do acaso e muito por seu empenho pessoal,
pode estar lá naquela noite e compartilhou comigo e com outros tantos espectadores
aquele momento. Após a peça, abordada por um desconhecido, aceitou trabalhar sobre
sua experiência como espectadora, dando seu testemunho para esta pesquisa. Assim como
Bianca, Fábio (que também estava, em um outro dia, sentado ao meu lado no teatro) me
contou como ele tinha ido ao espetáculo por obra do acaso.
Fábio nos diz como ir ao espetáculo de Castellucci foi uma opção que se deu
pela falta de opção. Isso acontece com muita frequência no contexto francês, no qual se
acaba por comprar bilhetes para peças que não veríamos, só para completar a assinatura.
Isso permite ao espectador ter boas e más surpresas.
Sublinho que como Bianca (e Sabrina e Dinho para o espetáculo de Araújo),
Fábio declara ter ido ver Castellucci sem realmente conhecer seu trabalho. Noto, no
entanto, que ele mostra como a escolha não se deu por mero acaso. Castellucci era um
nome conhecido, ele já tinha visto imagens das peças (que em geral são bem plásticas) e
conhecia o título. Em seguida ele se declarará sem preconceitos sobre a peça, mas posso
dizer que isso é impossível, uma vez que nossa experiência nos leva sempre a criar
192
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
259
O espectador das teatralidades contemporâneas
expectativas sobre aquilo que vamos ver. Essas expectativas podem ser confirmadas ou
cair por terra.
260
A experiência do espectador contemporâneo
É significativo que antes de falar sobre Go Down, Moses Júlio tenha que se
referir a Sobre o Conceito, sua iniciação ao teatro de Castellucci. Ao mesmo tempo, em
seu discurso, podemos ver como ele está ciente de que sua opinião sobre o espetáculo
pode mudar, como já ocorreu. Ele demonstra também claramente alguns critérios que
considera essenciais na classificação de um espetáculo como mais ou menos próximo às
suas expectativas: para quem é feito? Para que? Para um espectador como Júlio (com
quem me identifico), a arte pela arte não deve ser valorizada. Ainda que a ligação de
Castellucci com seu mundo não seja descartada por Júlio, ele questiona se o encenador
não teria encontrado uma fórmula para produzir uma máquina de enigmas sem sentido.
Dentro de minha proposta de compreender como os sentidos são negociados
e como lembramos a partir de grupos sociais e dos lugares por onde circulamos, procurei
incluir na pesquisa pequenos grupos e casais para poder, dessa forma, olhar mais de perto
a construção dos sentidos em “pequenas comunidades”. Portanto, devo esclarecer que
Júlio e Roberta são casados e ambos são amigos de Talita. Roberta e Talita assistiram ao
espetáculo Go Down, Moses juntas. Eu encontrei Júlio na porta do teatro para tomar uma
cerveja e fazer a entrevista e sou muito próximo aos três.
Clara e Vanessa foram juntas ao teatro no mesmo dia em que Júlio. Eles se
sentaram lado a lado no final do espetáculo, quando eu conversava com os espectadores
e acabaram se encontrando. As suas histórias, como de outros microgrupos, vão
aparecendo nas falas dos entrevistados. Dinho e Sabrina são casados e assistiram à Dire
ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas juntos, assim como
Adelaide e Tatiana, que foram ver a peça junto com a turma do curso de francês. São
caminhos que se cruzam e se separam, que têm em comum o evento teatral.
Voltando à fala de Júlio, é significativo que a conversa com Roberta tenha
alterado sua opinião e, portanto, sua memória do espetáculo Sobre o conceito, o fato
também tinha sido mencionado no dia anterior na entrevista de Roberta, que foi realizada
separadamente de Júlio.
193
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
261
O espectador das teatralidades contemporâneas
262
A experiência do espectador contemporâneo
L - A segunda parte?
263
O espectador das teatralidades contemporâneas
(Pausa longa)
194
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
264
A experiência do espectador contemporâneo
265
O espectador das teatralidades contemporâneas
Quando atenta-se para a fala de Roberta e Júlio, é possível notar que há uma
negociação feita ao longo do tempo. Na segunda entrevista sobre o espetáculo Go Down,
Moses ambos se remetem mais à negociação de sentidos de um espetáculo que viram
alguns anos antes (Sobre o conceito). É somente na terceira entrevista, alguns meses
depois, que as negociações de sentido de Go Down, Moses começam a se estabilizar.
Depois que Roberta conversa com Margarida e com Júlio, comigo e com outros amigos
que assistiram ao espetáculo, fica clara a continuidade do processo de significação da
peça. Isso é o que chamo de “a vida do teatro”196, e que pode ser vista alguns meses depois
na terceira e última entrevista.
195
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
196
Para mim a vida do teatro está relacionada à sua continuidade na memória dos participantes do evento
teatral. Essa vida refere-se à capacidade de um espetáculo potente de continuar habitando a memória que
trabalha constantemente sobre ele, atribuindo-lhe novos sentidos.
197
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
266
A experiência do espectador contemporâneo
267
O espectador das teatralidades contemporâneas
198
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas
199
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
268
A experiência do espectador contemporâneo
eram reais. Nessa linha tênue entre a ficção e a realidade, um ator que coloca a mão na
vagina de uma atriz pode chocar tanto o espectador (nesse caso, em especial as
espectadoras) quanto presenciar essa cena em um metrô. A cena mais citada como
marcante de Dire ce qu’on ne pense pas é nada menos do que a cena em que um ator
simula um assédio sexual à atriz principal.
O grupo de Adelaide não esperava que o teatro pudesse trazer uma cena como
esta, tão comum nos dias de hoje, no palco. Ao enquadrar a situação cotidiana, o
espetáculo aumenta seu impacto, e passa a ser impossível ignorá-la, fingir não vê-la.
Como bem diz Adelaide, os espectadores “ficaram surpreendidos nessa parte
negativamente”.
Apesar da cena do bar ser a mais citada nas entrevistas a curto e a longo termo,
uma questão latente para grande parte dos espectadores ao sair da peça era a ocupação do
espaço dos mendigos, em frente à Bolsa, por atores disfarçados de mendigos. No debate
com o encenador sobre a peça, realizado em 28 de maio de 2014 no espaço da Bolsa de
Bruxelas, essa questão esteve presente. Com base nas respostas da equipe do espetáculo
aos espectadores, a meu ver ela não foi compreendida. A senhora questionava se o
200
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
269
O espectador das teatralidades contemporâneas
espetáculo teria legitimidade para ocupar a casa dessas pessoas sem domicílio fixo, ou
seja, a escadaria da Bolsa. Notei que os espectadores que aplaudiram sua fala
concordaram com ela. Sem julgar o mérito desse incômodo gerado no espectador, nesse
primeiro momento, penso que ele pode ter origem na violência. A violência que pode
estar na visão do espectador para quem a peça coloca em evidência as pessoas que moram
habitualmente na escadaria da Bolsa, mas que em geral passam desapercebidas ou no ato
do espetáculo de desalojar e expor essas pessoas contra sua vontade. Mas também um
incômodo que pode ser gerado pela inutilidade desse teatro que estetiza a desgraça sem
que isso gere nenhum tipo de reflexão.
O teatro ao encenar a violência provoca um efeito de potencialização desta
violência, que pode causar esse incomodo para alguns, mas que também pode estetizar-
se, virando uma “brincadeira” de se fazer o mendigo. Eu coloco, portanto, essa cena
dentro daquelas que, no limite não bem definido entre ficção e realidade, são contrárias à
expectativa do público.
De toda forma, essa questão seria muito menos lembrada nas segundas
entrevistas e praticamente esquecida nas terceiras. A surpresa ocasiona o choque da
atenção no caso narrado por Adelaide. Carregada de afetos negativos, a experiência
parece se configurar de uma maneira muito próxima ao mecanismo do trauma.
A relação entre experiência violenta e o trauma já está colocada desde o início
da teoria freudiana, sofrendo uma série de mudanças ao longo de sua carreira. Nas
palavras do jovem Freud (2006, p.153) “chamemos de traumáticas as excitações externas
que possuírem força suficiente para romper o escudo protetor”. Se pensarmos nessa
definição, mesmo uma experiência positiva, mas violenta, poderia ser traumática.
O trauma, fruto de um choque violento, desorganiza a nossa mente,
desestabiliza. É um momento em que as respostas que conhecemos não são suficientes
para classificar algo. Em um evento traumático, diante da impossibilidade de impedir os
grandes fluxos de estímulos que invadem o aparelho mental, só resta ao corpo do
indivíduo deixá-los em suspensão para um processamento posterior.
A cena do bar de Dire ce qu’on ne pense pas, na qual a violência
aparentemente ultrapassa os níveis de realidade esperados em uma peça de teatro (ao
menos para os parâmetros de Adelaide), causa um choque no momento em que ocorre.
Ainda na ocasião da segunda entrevista de Adelaide, a experiência estava em grande parte
suspensa, mas o fato de poder refletir e verbalizar sobre tal experiência a ajudou a chegar
270
A experiência do espectador contemporâneo
Realmente a cena mais comentada foi a do bar, que apareceu ainda com mais
força na terceira entrevista. O que faz essa cena tão forte? Quais são os preconceitos que
ela toca que incomodam tanto? A cena do bar (nome que dou), vista como um prostíbulo
por Adelaide, ganha um adjetivo na fala de Tatiana que talvez revele um outro motivo
que torna a cena marcante.
201
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
202
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
271
O espectador das teatralidades contemporâneas
203
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
204
Evento de um parque de diversões da cidade de São Paulo no qual atores se vestiam de personagens de
filmes de terror e saiam pelo parque assustando os visitantes.
205
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Avignon. Espetáculo e 1ª entrevista em 07/07/2014. 2ª entrevista em 10/07/2014. Paul é francês e mora em
Paris, tinha 58 anos e trabalhava como crítico de teatro de um grande jornal francês. Foi o espetáculo para
escrever uma crítica.
206
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
272
A experiência do espectador contemporâneo
207
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
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O espectador das teatralidades contemporâneas
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2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
209
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas
274
A experiência do espectador contemporâneo
perfeitamente à enfermeira Sabrina), calar-se. Uma das primeiras coisas que ela disse em
sua segunda entrevista justificaria sua posição perante a peça:
210
2ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas - Bruxelas.
275
O espectador das teatralidades contemporâneas
211
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
212
Como nos mostra Nathalie Heinich (1998) os limites da legalidade também são objetos da arte
contemporânea.
276
A experiência do espectador contemporâneo
que a experiência do espectador é como a água de um rio cujas margens dão a forma.
Essas margens seriam compostas por uma soma de fatores que vão do local da
apresentação às escolhas dos artistas. Não é por um acaso que os espectadores de Dire ce
qu’on ne pense pas se referem às questões da tensão social. Isso está na peça.
Aproveitando a fala de Adelaide, chamo atenção para esse espaço que existe
na dramaturgia de ambas as peças analisadas. Esse espaço funciona como um espelho que
reflete a vida de quem vê o palco. Há um momento de inversão do olhar e aquela imagem
que olhamos passa a olhar-nos (a mesma ideia presente, segundo Castellucci, na origem
do espetáculo Sobre o conceito).
Adelaide parte do mote dado pelo encenador para falar de seu ponto de vista
sobre esse assunto e com isso traz a artificialidade das relações e a questão da
discriminação social, na qual está embutida a racial. Do mesmo modo como vimos André
relatando a pressão sentida nos últimos cinco anos.
Voltando a questão da violência encenada, percebo como ainda que
desprovida de uma emoção para o espectador, ele reconhece a violência na cena e passa
a adjetivar as imagens. Por exemplo, Bianca na sua terceira entrevista ainda se lembra
bem da cena de Go Down, Moses na qual a mulher perde seu sangue. Ela adjetiva a
imagem como longa e forte.
Ainda que se possa ver que cada um faz sua leitura da cena, acho que é um
dado interessante que essas cenas que nos traz Bianca sejam as mais lembradas pelos
outros entrevistados também. A cena da mulher que perde sangue parece ainda mais longa
do que o tempo que ela realmente dura e é classificada como forte por Bianca. Penso que
quando ela utiliza esse adjetivo para a cena está se referindo à violência da imagem de
uma mulher que perde seu sangue, sozinha, dentro do banheiro de um bar.
213
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
277
O espectador das teatralidades contemporâneas
214
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
278
A experiência do espectador contemporâneo
não assume uma ligação com outras peças ou fatos de sua vida. Diante disso eu pergunto
a Júlio se ele acha que tal qual o processo de mudança de sentidos que ele descreve Sobre
o conceito não poderia ocorrer no caso de Go down, Moses.
215
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
279
O espectador das teatralidades contemporâneas
No relato de Clara, vê-se o quão fundamental foi ir ao bar após a peça, para a
construção dos sentidos a respeito dela. Na segunda entrevista, mesmo com a distância
de alguns dias do evento, noto que Clara ainda comenta a peça a partir de pequenas
lembranças, amparadas por categorias mais clássicas de análise do teatro. Ela pega, por
exemplo, a categoria “cenografia” e comenta sobre o seu tom pastel. Depois ela analisa
os corpos em cena, lembra que eles pareciam musculosos, ampliados, e isso a remete ao
desenho de Leonardo Da Vinci. No fim de seu discurso ela chega à questão da violência
que, para ela, estaria relacionada ao som do espetáculo.
A questão do som do espetáculo Go Down, Moses iria aparecer diversas
vezes durante os relatos dos espectadores. Algo que parece “feito pra chocar” ou “sem
sentido” para Clara, parece estar no centro fundamental da construção de sua memória do
espetáculo.
216
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
280
A experiência do espectador contemporâneo
Ainda que o som associado ao eixo giratório pareça acessório para Clara, ele
é uma das primeiras lembranças que aparece na terceira entrevista. Como explicar isso?
Penso que apesar de não ter marcado Clara de forma consciente, a imagem do eixo
girando e das perucas que se enroscam nele enquanto um som forte faz vibrar todo o
corpo atinge e algo em sua memória implícita. Talvez um aviso primitivo de alerta. Uma
mudança do estado da atenção.
217
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris
281
O espectador das teatralidades contemporâneas
É curioso notar que para Fábio, assim como para Clara, a cena do eixo
giratório e com a peruca também vem mais ou menos após o mesmo tempo da segunda
entrevista e traz junto de si a cena da caverna. Ainda que realmente existam duas cenas
com o eixo giratório, uma no início do espetáculo e outra antes da cena da caverna, parece
que a memória dos espectadores tem a tendência de agrupá-las em uma única lembrança,
ligada à cena da caverna. Isso fica claro quando Fábio diz que não está colocando as cenas
na ordem certa. A tendência, me parece, é de lembrar apenas da primeira cena do eixo
giratório, mais no início da peça. De fato, ainda que outras cenas tenham marcando os
218
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
282
A experiência do espectador contemporâneo
espectadores, aparentemente a cena da caverna, nesse jogo entre a ilusão e o mostrar sua
fabricação, toca em um ponto sensível dos espectadores.
Talita traz em sua fala a mesma primeira cena do eixo giratório e mais uma
informação que passou despercebida de alguns espectadores de Go Down, Moses: havia
uma cena durante a entrada do público, um prólogo. Na sequência de sua entrevista Talita
fala sobre a sua tentativa de atribuir sentidos a cena do eixo giratório e da peruca.
219
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
220
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
283
O espectador das teatralidades contemporâneas
possível, conforme mostra a continuação de seu discurso, fazendo com que ela se volte
para a materialidade do que está sendo apresentado.
No momento da encenação, a fruição era mais por via das sensações do que
de qualquer outra coisa. O barulho, o giro, o cabelo, o eixo. A somatória de todos esses
elementos cria uma sensação complexa que será explorada por Talita na continuidade de
sua entrevista. Ela deixa claro que a atribuição de sentidos para o espetáculo vem depois.
Posso mesmo dizer que ela é formulada, muitas vezes, durante a própria entrevista.
221
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
222
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
284
A experiência do espectador contemporâneo
por todos os espectadores, e incomoda. Talita atribui esse incômodo ao tempo distendido
no qual ela ocorre.
Acho interessante comparar a tentativa de criação de narrativa na segunda
entrevista com a que Talita empreende na terceira. A lembrança da peça, alguns meses
depois, parece mais vaga, mas ao mesmo tempo mais objetiva.
Vê-se como ela chega de maneira mais direta à cena da caverna na terceira
entrevista, a qual ela vai explorar de maneira mais minuciosa. Ao mesmo tempo chama
atenção a incerteza se a cena pertenceria a essa peça. A questão do tempo apareceria
muito menos na terceira entrevista. Crucial para Talita, na segunda entrevista, o tempo da
cena seria também um elemento que apareceria na entrevista dos outros espectadores de
223
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
285
O espectador das teatralidades contemporâneas
Go Down, Moses. Alguns desses espectadores, que conhecem também a obra do diretor
americano Robert Wilson (dentre eles Paul, Júlio, Talita e Fábio), acabam por ligar a
produção de Castellucci a dele. Para Talita a ligação se dá, justamente, no trabalho de
criação de imagens no tempo.
224
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
286
A experiência do espectador contemporâneo
Mas o que seria esse espaço mental do qual fala Fábio? Penso que ele está
utilizando nesse momento um vocabulário do cinema, no qual não seria mais a narrativa
dramática que conduz a leitura do espectador, mas o próprio encadeamento das cenas.
Para Fábio, esse teatro que é fabricado, artificial, é quase a “antítese das artes
presenciais” e recorre, assim como o cinema, à atividade mental para completar os
intervalos entre os quadros, ou seja, a narrativa do teatro de Castellucci, assim como a
proposta pelas montagens de Eisenstein, utilizam da montagem para narrar e atingir a
emoção dos espectadores que são os responsáveis por completar a cena.
225
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
226
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
287
O espectador das teatralidades contemporâneas
227
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
288
A experiência do espectador contemporâneo
A fascinação descrita por Fábio durante a cena da caverna tem a ver com uma
sensação que temos diante de algo que não conhecemos. A atenção foca-se, com toda a
sua energia, para poder dar conta daquilo que vemos. A transição quase mágica para a
cena da caverna faz surgir aos poucos os pedaços da gruta e as personagens que a
compõem. Cada pedaço que o espectador vê é motivo de surpresa e pode provocar o
entusiasmo.
Chamo atenção para a constatação de Fábio sobre como o diretor italiano
trabalha diretamente a atenção de seu público. Ele cria propositalmente uma dramaturgia
que tenciona e distende a atenção de seu espectador. Isso aparece claramente em todos os
seus espetáculos que assisti. Uma cena que é fruída na desatenção torna o choque do
espectador, na cena seguinte, ainda mais forte. Penso que é isso que acontece na relação
entre as cenas do distrito policial e da caverna. Enquanto na primeira ele faz uma cena
com uma representação bem realista (ainda que existam traços estranhos), na qual o
espectador não precisa fazer muito esforço para fruir, na segunda ele cria um mundo
muito distante do contemporâneo e obriga o espectador a trabalhar no sentido de fazer
conexões. Realmente é uma cena inesperada que vai chocar a atenção do espectador. Na
continuação de seu discurso, Fábio reflete sobre o efeito dessa quebra de expectativas que
a peça proporciona.
Penso que um modo de explicar a catarse que Fábio viveu, compartilhada por
tantos outros espectadores, pode se referir à materialidade da cena apresentada ao
espectador. O encenador italiano sabe bem manejar a atenção e a memória do espectador
visando provocar um efeito potente. O efeito emocional pode ocorrer quando esse
228
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
229
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
289
O espectador das teatralidades contemporâneas
Fábio não pôde evitar se emocionar diante da peça. Também não pôde evitar,
durante a entrevista, a emoção trazida pelo seu trabalho de rememoração e de oralização
da experiência. Contar uma memória não é apenas contar um fato do passado, mas
presentificá-lo.
230
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
290
A experiência do espectador contemporâneo
A sensação que traz novamente a emoção para Fábio me parece ser a que está
ligada ao desejo de que a peça não pare. Dessa forma, vê-se que a emoção inicial vivida
no momento do espetáculo não é a mesma, nem tem a mesma origem da que presenciamos
na entrevista. Se no momento do espetáculo havia algo físico, material, no jogo da
encenação, que o tocou durante a entrevista não é mais esse jogo que provocará as
lágrimas. A rememoração não da emoção que sentiu, mas dos aspectos materiais da
encenação, parece ser capaz de ativar uma espécie de memória emotiva do espectador.
Essa emoção pode também advir de um sentimento de compreensão profunda
por parte do espectador ou mesmo da sensação de não ter compreendido o espetáculo. É
uma emoção que possui origens diferentes para cada espectador. Para Armando, por
exemplo, a sensação de não ter clareza do sentido daquilo que se vê resulta em emoções
que não são racionais. Outro elemento chave são as sensações físicas provocadas pela
cena.
231
Go down, Moses. Entrevista realizada na cidade de Paris em francês. Espetáculo e 1ª entrevista em
04/11/2014. 2ª. 3ª entrevista em 23/03/2015. Armando é francês e mora em Paris, tinha 33 anos, e era
frequentador assíduo do teatro, em especial da ópera. Estava com um grupo de amigos.
291
O espectador das teatralidades contemporâneas
Penso que a sensação de falta (de fim, de chaves, de conexões entre as cenas
etc.) está na base dos efeitos que propõem ao espectador uma experiência a qual ele pode
ou não aderir. Se ele topar o jogo, terá que tentar responder aos enigmas propostos. O
espetáculo do encenador italiano, como diz Talita, parece ter o objetivo “de levar você
pra um outro lugar mesmo”. Quando se sai do espetáculo a sensação de inconclusão que
levou Fábio às lagrimas deixa Talita sem saber se gostou ou não gostou. Talvez essa nem
seja mais a questão. A sensação física e a alteração do estado de consciência parecem ser
bem mais importantes do que uma análise dos elementos do espetáculo.
232
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
233
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
292
A experiência do espectador contemporâneo
293
O espectador das teatralidades contemporâneas
A fala de Fábio traz novamente a dor física, o nervo, como metáfora para
falar do teatro de Castellucci. A memória da ficção, em seu trabalho, tem implicações
reais. Ao evocar a cena e o momento que tinha lhe tocado, Fábio revive alguns dias depois
a mesma emoção.
Penso que essa emoção será fundamental para classificar essa peça, ou essa
cena, como uma experiência significativa. A cena, como uma agulha que toca um nervo,
tem um potencial “curador”, catártico. Voltando à questão da suspensão do espetáculo,
gostaria de expor que o aplauso é o resultado mais concreto disso. São aplausos calados,
que incomodaram a mim e aos espectadores com quem conversei. Aplausos de alívio pelo
fim da prazerosa tortura que o espetáculo propicia.
Analisando o discurso de Fábio, pode ser que todos estivessem, assim como
ele, batendo as palmas mais lentamente por estarem surpresos. Eu mesmo me lembro da
sensação de bater palmas ainda no espírito do espetáculo, como se estivesse saindo de um
transe profundo.
Minhas experiências como espectador dos espetáculos de Castellucci e
Araújo são comumente finalizadas com a sensação de que não precisaria aplaudir no final
e com um certo incômodo pessoal, com a quantidade, intensidade e duração dos aplausos
(no Brasil todos ficam de pé, sempre, e na França não param de aplaudir até a terceira vez
que os atores entram em cena). Os aplausos parecem estar fora de contexto, tanto que em
235
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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A experiência do espectador contemporâneo
uma das noites os espectadores nem chegaram a aplaudir Go Down, Moses até a terceira
entrada:
237
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
295
O espectador das teatralidades contemporâneas
Se ela reconhece que é uma cena que traz uma emoção, provavelmente o faz
baseando-se na reação de outros tantos espectadores que choravam durante a cena. No
entanto, ela procurava a emoção no texto, tanto que ela cita na sequência de sua fala a
peça Psicose 4.48, dirigida anos antes por Claude Régy, como um espetáculo que a
emocionou. Acho importante o depoimento de Bianca, que mostra que não há uma
homogeneidade na recepção desse espetáculo. Mas é preciso dizer que para a maior parte
dos espectadores que entrevistei a cena da caverna tocava em algum tipo de emoção direta
e profunda. Vê-se a construção da cena, que choca a atenção, ultrapassa a expectativa,
paralisa o espectador em sua cadeira.
238
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
296
A experiência do espectador contemporâneo
Desse modo ela faz a sua própria leitura a partir dos elementos que conseguiu
coletar. Por outro lado, ela reforça a questão da operação da atenção do público nas peças
239
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
240
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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O espectador das teatralidades contemporâneas
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3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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A experiência do espectador contemporâneo
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3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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O espectador das teatralidades contemporâneas
243
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
244
Em 2007 seu orçamento foi de mais de 13 milhões de euros.
300
A experiência do espectador contemporâneo
Fica explícito que a peça também influencia não só na vivência teatral como
em toda vivência diária. A partir do momento que a lembrança fica ligada ao espaço físico
da Bolsa, por exemplo, sempre que Dinho passar diante da Bolsa de Bruxelas há grande
possibilidade dele se lembrar de Dire ce qu’on ne pense pas. Se evidencia que quando
eu lhes pergunto se pensaram na peça no intervalo entre a segunda e a terceira entrevista.
245
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas.
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O espectador das teatralidades contemporâneas
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3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
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A experiência do espectador contemporâneo
do grupo de controle, ou seja, que já sabia antes da peça que seria entrevistada, relata
como além da alteração de suas memórias o fato de participar da pesquisa também alterou
seu olhar durante o espetáculo.
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3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
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O espectador das teatralidades contemporâneas
Pouco importa se o que é narrado foi visto ou uma invenção da memória, mas
é certo que os sentimentos que atravessam a mim e aos espectadores que entrevistei são
verdadeiros e impulsionam essa memória viva do teatro em relação com a vida.
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3 ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
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A experiência do espectador contemporâneo
O que resta de um espetáculo teatral? Essa foi a pergunta mote das entrevistas
que realizei durante o percurso deste doutorado no qual me debrucei sobre a experiência
de alguns espectadores de espetáculos das teatralidades contemporâneas. Escolhi essa
pergunta justamente pela abertura que ela dava para que o espectador, tomando o
espetáculo como objeto referente, desenvolvesse uma narrativa livre, da forma que ele
(ou ela) bem entendesse.
Ao pesquisar sobre experiência dos espectadores, acabei constatando que o
indivíduo, testemunha ocular do fato teatral, durante a ação de falar sobre o que se
lembrava dava novamente vida àquilo que contava. É como se por um momento a peça
de teatro, mesmo as assistidas há muitos anos, passassem em frente aos meus olhos
através da fala de suas testemunhas.
Um evento pode se dar sem testemunhas, mas um espetáculo teatral, sem seus
espectadores, seria teatro? Como mostra a próprio significado da palavra testemunha, é
ela que “assiste a certos atos para os tornar autênticos e válidos”. No caso do teatro, o
espectador (nome especial para a testemunha do teatro) é o responsável pela sua validação
e por zelar por sua continuação. Um espectador que conta um espetáculo lhe insufla nova
vida a partir do sopro da palavra. Em seu relato, modificado conforme sua experiência do
teatro, ele vai dar continuidade ao espetáculo assistido.
Diante dessas constatações não posso deixar de concordar com Marie-
Madeleine Mervant-Roux (2006, p. 78- tradução nossa) para quem “O tempo da vida
teatral, efetivamente, não é somente o tempo das obras. É também o dos lugares”.
Enquanto existir o lugar e o contexto social propícios, as obras podem continuar a existir,
mesmo sem serem apresentadas. Há obras que têm uma vida mais longa e outras uma
vida mais curta, mas certamente na maioria dos casos essa vida ultrapassa a delimitação
temporal dada pelo fechamento das cortinas.
Mostro ao leitor alguns resquícios dessa vida do teatro, que para além dos que
já apresentei anteriormente, reforçam a ideia de que o teatro continua agindo individual e
250
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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O espectador das teatralidades contemporâneas
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2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
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A experiência do espectador contemporâneo
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3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
307
O espectador das teatralidades contemporâneas
que esses nomes podem ter pequenas variações entre as entrevistas ou entre os
entrevistados, mas que, no geral, eles partem sempre dos mesmos princípios de formação.
2ª entrevista 3ª entrevista
Cena dos homens pré-históricos Cena do eixo rotativo
Som da máquina que roda As pessoas andando
Cena da mulher parindo
Cena do lixo
Cena do detetive
Cena do scanner
Cena dos homens primitivos
Tabela 6 -Nomes das lembranças de Go Down, Moses - Júlio
308
A experiência do espectador contemporâneo
terceira entrevista ele utiliza a palavra bonita para adjetivar a cena dos “homens
primitivos”. Ele acrescenta a peruca à cena do “eixo rotativo” dando também uma
imagem ao som relatado na segunda entrevista. Por fim, ele classifica as cenas da “mulher
parindo e dos “homens primitivos” como as que são lembradas com mais detalhes,
seguindo a essa afirmação só detalhes desta segunda.
Olhando pelos nomes posso dizer que o que há em comum entre as duas cenas
classificadas por Júlio como as mais significativas é que elas se referem a
pessoas/personagens. Há cenas também que são marcadas por objetos com as do “lixo”
ou a do “scanner”, sendo que esta segunda ele relata que era uma imagem marcante. Mas
porque ela não seria a mais lembrada se é marcante?
Passando para Fábio, notei que em sua primeira reflexão sobre o espetáculo,
em cada uma das entrevistas, ele não chega a listar a cena da pré-história (que será citada
somente mais à frente na entrevista). Assim como Júlio, Fábio cita a “turbina” e o seu
som logo no início da segunda entrevista.
253
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
254
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
309
O espectador das teatralidades contemporâneas
2ª entrevista 3ª entrevista
Turbina (fala do som) A mulher trancada no banheiro
A moça no banheiro que perde seu sangue Delegacia
Delegacia Scanner
Lixeira Transição pré-histórica
Tabela 7 -Nomes das lembraças de Go Down, Moses - Fábio
255
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
310
A experiência do espectador contemporâneo
2ª entrevista 3ª entrevista
Hemorragia A mulher que perde seu sangue
Maquinaria e os cabelos que são aspirados Scanner
com o barulho (para ela o início da cena
da hemorragia)
A transição para a cena da caverna
Tabela 8 - Nomes das lembraças de Go Down, Moses - Bianca
256
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
311
O espectador das teatralidades contemporâneas
257
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
312
A experiência do espectador contemporâneo
313
O espectador das teatralidades contemporâneas
258
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
314
A experiência do espectador contemporâneo
2ª entrevista 3ª entrevista
Cena do banheiro Cena do banheiro
Cena do bebê com o container Delegacia (cena do interrogatório)
Delegacia Caçamba de lixo e o bebê chorando
Ressonância Caverna
Prólogo
Cena do torno
Tabela 9- Nomes das lembraças de Go Down, Moses - Talita
No modo como Talita constrói a sua fala (que eu optei por editar na segunda
entrevista e deixar praticamente sem cortes na terceira, por serem extremamente
parecidos os trechos), vemos que a ordem das cenas vai servindo para que desperte nela
as lembranças que ela ligou a cada uma das cenas. Ela varia novamente entre a
identificação pelo lugar, pelo objeto, pela ação e pela personagem, com predominância
da classificação por local.
Diferentemente dela, Roberta, em sua segunda entrevista, cita apenas a
imagem-som daquela “coisa girando e aquele som” como a primeira coisa que vem à sua
mente. Será somente na terceira entrevista que Roberta citará, logo de início, as outras
cenas.
259
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
260
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
315
O espectador das teatralidades contemporâneas
2ª entrevista 3ª entrevista
Aquela coisa girando e aquele som Banheiro
Lixeira com o bebê mecânico tosco
Planeta dos macacos
Máquina de hospital
Tabela 10- Nomes das lembraças de Go Down, Moses - Roberta
316
A experiência do espectador contemporâneo
Amparado por minhas notas, realizei uma comparação entre os nomes que eu
mesmo tinha dado para as cenas com os nomes sugeridos pelos espectadores e percebi
que muitas vezes eles coincidem. Aproveito a Tabela 11 para reestabelecer a ordem na
qual as cenas do espetáculo foram apresentadas. Diante da tabela eu pude perceber que a
minha própria classificação era ancorada nos lugares em que as cenas aconteciam e que
as transições eram descritas a partir dos objetos em cena.
Faço uma pequena digressão apenas para esclarecer que Fábio e Bianca
também falaram em sua terceira entrevista sobre a cena 9, mas optei por separar porque
eles se referem à transição da cena e não à cena em si. A minha sugestão é que isso
acontece por conta de a cena ter se instalado prioritariamente em sua memória implícita,
317
O espectador das teatralidades contemporâneas
e que neste primeiro momento, no qual são convocadas as memórias explicitas, mais
acessíveis para o espectador, elas são deixadas de lado. Outro argumento que reforça essa
tese é embasado no fato de nas segundas entrevistas os espectadores não terem citado
essa cena.
Desta forma vemos que na 2ª entrevista é dada prioridade na primeira reflexão
para uma parte do espetáculo que se instala de uma maneira mais física e racional. Esta
proposta é reforçada pelo fato de que todos os espectadores citam a cena 2 (e 7) em suas
segundas entrevistas. A associação da imagem ao eixo que gira, o barulho de grande
intensidade e os tons graves imprimem-se de maneira forte no corpo do espectador. Essa
cena é como uma navalha que corta a sua carne e na primeira semana após o espetáculo
essa ferida ainda estava aberta. A vida do espetáculo nesse momento colocava essa ferida
em primeiro plano na consciência. Essas mesmas cenas, passados três meses, já não eram
lembradas num primeiro momento. Em três meses a ferida já havia cicatrizado. O
espectador não lembrava mais dela em primeiro plano, mas a cicatriz continuaria lá para
lembrá-lo da navalha que havia lhe cortado há três meses (tanto que eles se lembraram da
cena ao longo da 3 ª entrevista).
Por outro lado, a cena 9 tinha se instalado na memória implícita e com o
passar do tempo mostrou ter se desenvolvido, como um vírus que se instala e se reproduz
invisivelmente no corpo. Ela esteve todo o tempo lá, mas apenas após os três meses é que
o espectador começa a constatar racionalmente os seus efeitos. Nesse momento em que
há a constatação a cena já se espalhou pelo corpo e se tornou parte desse espectador.
Uma outra questão que a comparação desperta é que a cena 6 é a única que
todos os espectadores nomeiam da mesma forma, ou seja, todos partem do objeto do
scanner (que pode ser chamado de outras formas) para falar da cena. Em geral essa cena
não aparece na 2ª entrevista pelo mesmo motivo da cena 9 (caverna), mas na 3ª ela
funciona quase que como um dispositivo disparador das memórias da cena 9.
A cena 4 (lixeira) também despertou minha curiosidade, pois temos de um
lado Júlio e Fábio que veem o lixo (assim como eu) como referência da cena, enquanto
Talita e Roberta têm como referência a lixeira com o bebê. Qualquer generalização seria
precipitada dentro do quadro que trabalhamos, mas é interessante que os homens se
lembraram do objeto com mais destaque em cena e que as mulheres apontaram para uma
mescla entre a narrativa (que numa conjugação de som, luz e movimento mecânico
sugeria ao espectador a existência de um bebê na lixeira) e o objeto.
318
A experiência do espectador contemporâneo
319
O espectador das teatralidades contemporâneas
entre o teatro proposto por Eisenstein e por Castellucci, quase um século depois, é o
estado de espírito que o diretor deseja causar.
Cabe esclarecer que eu tinha essas perguntas em mente e na maior parte dos
casos os espectadores me deram as respostas sem que fosse necessário fazer a pergunta.
Isso não se aplica somente para as últimas duas perguntas, as quais eu realmente fazia em
um momento em que o espectador declarava não ter mais nada a dizer.
Tais perguntas me levaram a identificar uma forte influência do fato de ser
entrevistado sobre a vida do espetáculo no grupo estudado. Alguns declararam ter
pensado na peça durante o tempo que separou o espetáculo e a terceira entrevista. Outros
disseram que suas lembranças foram despertadas por minha mensagem, perguntando se
eles poderiam dar a terceira entrevista (geralmente um e-mail enviado cerca de 20 dias
antes da data prevista para as entrevistas).
320
A experiência do espectador contemporâneo
Bianca – Eu me perguntava se a
entrevista mudaria alguma coisa... se
com o passar do tempo, em relação a
minha percepção da peça, mas finalmente
acho que não... eu fiquei sobre... sobre
a minha impressão de logo depois da
peça. Não teve realmente uma grande
mudança, na qual eu me dissesse “ ah, é
isso, entendi! ”... sobre as coisas que
eu não compreendi no momento, eu
continuo na mesma interrogação, no
mesmo questionamento que eu estava
depois da peça. 262
261
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
262
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
321
O espectador das teatralidades contemporâneas
não ver tal material. No caso do projeto ECHO (ver nota de rodapé Erro! Indicador não
definido.), do qual participei e no qual se trabalha com as memórias de espectadores da
década de 50 e 60, houve casos de espectadores que não quiseram ver os materiais e
declararam que não queriam ter a sua lembrança do espetáculo alterada.
Por outro lado, as fotos eu mostrei não eram do mesmo espetáculo que o
espectador tinha assistido. Dessa forma, para os espectadores de Go down, Moses em
Paris eu mostrei fotos tiradas por Guido Mencari em Lausanne e um áudio do spiritual
Wade in the water, em versão diferente da utilizada pela peça (disponível no DVD em
anexo). No caso de Dire ce qu’on ne pense pas, eu mostrava as fotografias e vídeos de
Avignon para os espectadores de Bruxelas e os matérias coletados em Bruxelas para quem
tinha assistido à peça em Avignon.
Separei o material baseado nas segundas entrevistas, buscando cobrir
ausência ou reforçar cena tidas como marcantes. Era como um presente dado em troca do
relato dos espectadores (já que eu não podia colocar meu próprio relado, mostrava parte
do material coletado). Penso que de maneira geral esse trabalho de estímulos gerou uma
pequena resposta imediata que se limitava a comentários sobre as fotos.
Consegui a partir das fotos detectar uma cena que me pareceu esquecida por
vários espectadores: a “galeria de arte” de Go down, Moses. Ao mostrar a foto, alguns
espectadores, como Bianca, acabaram por se lembrar da cena, percebendo que a tinham
esquecido antes de ver a foto.
Por outro lado, Roberta não conseguiu reconhecer a cena como fazendo parte
do espetáculo.
263
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
322
A experiência do espectador contemporâneo
A música que foi esquecida reforça a clareza que as espectadoras têm dos
“barulhos” e dos “efeitos sonoros”. Para que uma cena seja considerada significativa,
viva, ela deve envolver uma emoção. Uma parte entediante não será esquecida pelo
espectador, como mostram os comentários curtos sobre a cena da delegacia. Eles
tomavam em geral uma conotação negativa. Como se fosse a parte chata da peça (parece
que era assim que ela era lembrada).
264
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
265
É importante diferenciar as lembranças esquecidas simplesmente, as quais me refiro, das memórias que
são bloqueadas na mente por algum motivo e que podem apresentar um outro comportamento, se tornando
significativas quando trazidas ao consciente.
266
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
267
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
323
O espectador das teatralidades contemporâneas
Eu diria que a fotografia não despertou muito interesse. Todos eram capazes
de reconhecê-la como pertencentes à peça, mas não parecia um dos momentos mais
significativos.
No entanto, os comentários que mais me surpreenderam foram os da cena das
cavernas. Pensava que talvez a fotografia pudesse trazer à tona comentários que se
aproximassem da emoção narrada pela maior parte dos espectadores, mas, no entanto, os
comentários se focaram mais na foto
268
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
269
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
270
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
271
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
272
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
273
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
274
3ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
324
A experiência do espectador contemporâneo
Com isso pude verificar que as imagens vivas do teatro que os espectadores
tinham eram muito mais complexas e cheias de detalhe do que a fotografia. Durante as
entrevistas pude constatar que a análise da fotografia não remetia necessariamente ao
espetáculo.
As fotografias de Dire ce qu’on ne pense pas tinham uma diferença em
relação as de Go down, Moses: havia um fator de curiosidade a mais para o espectador
relacionado a como o encenador adaptou e espetáculo.
Leonel – é a situação?
275
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
276
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Bruxelas.
325
O espectador das teatralidades contemporâneas
277
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
326
A experiência do espectador contemporâneo
Sempre que algo que pode remeter ao espetáculo “cruza o caminho”, suas
lembranças são ativadas. A língua estrangeira, o prédio do teatro, uma pessoa que remete
ao espetáculo, tudo serve de alimento a esse habitante das memórias.
278
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
279
Dire ce qu’on ne pense pas dans des langues qu’on ne parle pas. Entrevista realizada na cidade de
Avignon em francês. Espetáculo e 1ª entrevista em 09/07/2014. 3ª entrevista 16/11/2014. Francisco é
francês e mora em Avignon. Tinha 58 anos e era um ex-sindicalista aposentado. Foi ao teatro com a mulher
e duas amigas.
280
3ª entrevista – Dire ce qu’on ne pense pas das des langues qu’on ne parle pas – Avignon.
281
Esclareço que a forma que utilizo o termo se refere a ter memórias das memórias do espetáculo e
portando não se alinha com o emprego do termo que faz John H. Flavell, nos estudos sobre a memória,
definindo-o como a auto-regulação de qualquer iniciativa cognitiva. Para mais detalhes ver: FLAVELL,
John H. Metacognition and cognitive monitoring: a new area of cognitive developmental inquiry.
American Psychologist. vol. 34, n. 10, p. 906-911, 1979.
327
O espectador das teatralidades contemporâneas
282
Entrevista realizada em 28/03/2014 por Leonel Carneiro na cidade de Bolonha. Tradução: Eli Borges Jr.
Revisão de tradução: Leonel Carneiro.
328
A experiência do espectador contemporâneo
283
Fala do espetáculo Cour d’honneur (2013).
329
O espectador das teatralidades contemporâneas
Procura-se
Tendo em vista a peça que prepara para a Cour d’honneur do Palais des
papes em 2013, Jérôme Bel deseja encontrar espectadores que tenham
assistido a um ou vários espetáculos nesse lugar desde a criação do
Festival. Ele os receberá na École d’Art, sem hora marcada, de 15h à
17h de segunda 11 à sexta 22 de julho, exceto sábados e domingos.285
Ele recebeu nesse período centenas de pessoas que contaram oralmente suas
experiências na Cour. Esses depoimentos foram gravados e analisados e dentre eles Bel
escolheu 15 espectadores para trabalhar sobre as memórias. Dessa forma, como nos
contou Bernard Lescure286 (um dos espectadores-atores do espetáculo), Bel pediu que
cada um deles trabalhasse sua memória para apresentá-la e acompanhou à distância,
realizando reuniões por Skype, por exemplo.
O espetáculo aborda, portanto, uma memória que a princípio era oral e que
durante esse processo é estabilizada pela escrita. Dessa forma, o que se vê no palco não é
284
Programa do espetáculo Cour d’honneur. Disponível em: <http://www.festival-
avignon.com/fr/spectacles/2013/cour-d-honneur>. Acessado em 14/10/2015.
285
Texto extraído do programa do espetáculo Cour d’honneur. Tradução nossa.
286
Realizei uma entrevista com Bernard Lescure em 07/03/2014 na cidade de Paris.
330
A experiência do espectador contemporâneo
mais a memória viva, mas uma memória do teatro após um trabalho estético. Essa
memória trabalhada com artifícios teatrais torna-se mais potente um simples testemunho
e impacta os espectadores que assistem à representação.
Dessa maneira, quando o espetáculo de Bel termina, ele começa a habitar as
memórias do espectador, misturadas aos seus outros elementos e influenciando-os. A
escalada que Antoine Le Menestrel faz em Inferno, de Castellucci, mistura-se à escalada
que o mesmo Antoine faria anos depois em Cour d’honneur, remontando a sobreposição
de memórias já descrita por Aristóteles em sua Metafísica (1984).
A vida do teatro, um ponto de vista individual sobre a memória coletiva
(Halbwachs, 2006), é uma vida que se mistura a de outros espetáculos e, como um ser
orgânico se desenvolve, é muitas vezes imprevisível. Os relatos presentes no espetáculo
Cour d’honneur compartilham outras questões que foram trazidas nas entrevistas que
coletei que falam sobre a experiência do teatro.
Jacqueline Micoud, 70 anos, professora de artes plásticas aposentada que
mora próximo a Avignon, fala de onde ela morava quando era pequena e de sua primeira
ida ao Festival. Ela conta que uma professora do local que morava criou um grupo de
teatro amador, o qual era seguido pelos camponeses e por sua família com muito interesse.
Um dia ela lhes propôs ir à Avignon. Eles falaram que aquilo não era para eles. A
professora respondeu que Jean Villar cuidava da cena, mas cuidava também do que se
passava ao seu redor (não havia lugares para os notáveis). Ela era pequena e não foi à
viagem. Quando voltaram estavam eufóricos e falaram durante todo o dia. Depois disso,
ir para Avignon se tornou um habito para as pessoas da cidade.
Em 1960, aos 17 anos, era a sua vez de ir ao Festival e ela assistiu à Antigone,
de Jean Villar. Ela relata que a figura de Antígona entra em sua vida a partir desse
momento e é a essa figura que ela recorre nos momentos de dificuldade, pedindo força a
cada dia para continuar. Dessa maneira, ela “carrega a peça” com ela, para utilizar a
definição empregada por Paulo Sant’Anna (espectador do Projeto Formação de
Público), e dessa forma o espetáculo passa a atuar definitivamente em seu percurso de
vida.
A fala de Micoud traria outras características relevantes das experiências
relatadas pelos espectadores. A mais importante delas é a relação que sua experiência do
teatro compõe em sua experiência de vida, seja pela memória do Festival como um lugar
desejado e esperado, ou pela personagem de Antígona que se instaura como um ponto de
331
O espectador das teatralidades contemporâneas
apoio pessoal. Também em seu relato apareceria a força e a importância que a primeira
experiência significativa de teatro pode ter. Mesmo após mais de 50 anos, a memória da
personagem e do contexto de sua primeira ida ao teatro ainda estão fortemente vivos em
sua memória.
Outra fala que estabelece diversas conexões com as entrevistas coletadas é a
de Bernard Lescure, professor de francês aposentado de 67 anos, que mora em Clermont-
Ferrand. Ele relata como a peça mais marcante que viu na Cour Le soulier de satin,
dirigido por A. Vitez, em 1987. Não por um acaso essa era a primeira vez que Lescure ia
a Cour assistir a um espetáculo. Ele cita também a lembrança de cenas de Inferno, de
Castellucci.
Ele mostra em seu discurso como o espetáculo de Castellucci se organiza em
cenas quase independentes. Ele cita a cena dos cachorros que atacam Romeo, a
quantidade de pessoas em cena de todos os tipos e cores e vestidas com roupas coloridas
e a escalada do muro da Cour. Ele vê o alpinista na janela em Inferno e se lembra que é
lá que a virgem aparece em Le soulier de satin.
Assim, demonstra que mesmo memórias de espetáculos diferentes, vistos
nesse caso num mesmo espaço, podem se mesclar, se condensar. Em todo caso, o fim de
seu discurso é a parte em que levanta uma das questões mais preciosas, ele diz: “eu não
sei se eu me lembro ou se eu invento, ao seu lado [do alpinista de Inferno], há a lua.
Finalmente eu me pergunto: será que cada vez que eu venho a Cour d’honneur, eu não
venho rever Le soulier de satin”287.
Sua fala deixa novamente clara a importância que a primeira vez pode ter e
como ela influencia, ainda que de maneira inconsciente, as outras experiências do teatro.
Também deixa claro que não importa exatamente se o seu discurso pode ter distorções da
realidade ou invenções, em todo caso em sua memória o fato está tal qual ele descreve e,
se não era assim, passa a sê-lo no momento em que ele formula o discurso.
Porém, do ponto de vista desta pesquisa, penso que um dos depoimentos mais
importantes do espetáculo seria o trazido pelo relato de uma espectadora que, ignorando
o anúncio de Bel, foi até a entrevista com o encenador para dizer porque nunca tinha ido
a um espetáculo na Cour.
287
Fala do espetáculo Cour d’honneur (2013).
332
A experiência do espectador contemporâneo
288
Fala do espetáculo Cour d’honneur (2013).
289
O Festival de Avignon “In” é a mostra oficial que traz artistas selecionados pela direção do festival. No
“Off” apresentam-se grupos de todo o mundo que, menos famosos, procuram fazer divulgação de seus
trabalhos.
333
A experiência do espectador contemporâneo
Considerações finais
Vamos acabar de modo positivo?
É bonito. É bonito.
Júlio 290
290
2ª entrevista – Go Down, Moses – Paris.
335
Considerações finais
que havia existido na cidade de São Paulo no início dos anos 2000, como forma de
registrar, através das memórias de seus participantes, as práticas do Projeto. Porém, o
universo ao qual fui exposto durante essa pesquisa me revelou uma face da prática dos
espectadores que, apesar de conhecer, nunca tinha sido para mim um objeto de reflexão.
Ver na fala do outro a realidade conhecida ajuda a observá-la de maneira distanciada.
Durante o mestrado havia estudado e teorizado acerca da recepção do
espectador, a partir do conceito de atenção, em quatro formas ideais de recepção, segundo
a qual artistas do século XX buscavam estimular a atenção do espectador: o teatro
científico, que corresponde ao teatro épico de Brecht; o teatro dissolutivo, que tem como
exemplo mais bem desenvolvido o naturalismo de Stanislávski; o teatro da distração tão
bem caracterizado por Kracauer e que tem como exemplo o musical da Broadway, e o
teatro da atenção, que é descrito, em parte, por Lehmann, em seu Teatro pós-
dramático.291
Esse foi o gancho que me levou a perceber que não só eu, como a maior parte
da teoria teatral que eu conhecia, tratava o tema do espectador a partir das intenções dos
artistas, ou mesmo de ideias abstratas sobre este, seu ato e sua experiência. Comecei então
uma pesquisa bibliográfica que ao mesmo tempo buscava identificar a construção desta
figura teórica idealizada, quase sempre e ao mesmo tempo em busca de conceitos que me
auxiliassem na compreensão do funcionamento da experiência do teatro do ponto de vista
do espectador.
Parti da obra de Hugo Münsterberg (1916), que no início do século XX
propunha observar como o filme (e o teatro) criavam sentidos na mente do espectador.
Para sondar essa experiência ele retomou na primeira parte de seu livro os conceitos, que
estavam em franco desenvolvimento, da atenção, da memória (imaginação) e da emoção,
para na segunda parte se debruçar sobre a construção de sentidos no cinema e nas outras
artes e discutir a função do filme na sociedade.
Revisei, assim, a evolução dos conceitos de atenção, memória e emoção ao
longo do século XX, processo durante o qual estive em contato com o professor Gilberto
Xavier do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo, e que me auxiliou a
compreender tal evolução do ponto de vista das neurociências. Em meio a esse processo
me deparei com a obra Arte como Experiência (1934), de John Dewey. Sua obra
291
Para mais informações ver Carneiro, 2015, p.48-51.
336
A experiência do espectador contemporâneo
constitui um ponto importante da teoria para com o espectador. Posso dizer que essas
literaturas, apesar de tratarem de um espectador ideal, foram as grandes inspiradoras para
a linha de raciocínio desenvolvida neste trabalho.
Destaco o papel da emoção para o reconhecimento de uma experiência como
significativa, ou seja, destacada das demais experiências comuns. Conforme comprovam
os estudos das neurociências, a memória e a emoção são processos indissociáveis. Uma
memória carregada de emoções fortes tem grandes possibilidades de restar como
significativa para o espectador. Nas teatralidades estudadas, ao que parece, os diretores
primam por emoções que causam o desconforto do espectador, criando assim um contexto
para que as experiências teatrais se instalem como significativas na memória do
espectador.
Assim, escolhi a experiência (composta por atenção, memória e emoção)
como linha organizadora da narrativa que desenvolvi na pesquisa. Percebi ao ouvir os
relatos que a experiência do teatro é feita de algo além da própria memória do evento
teatral. É o conjunto das memórias do espectador (da cena e da vida comum, podendo ser
implícitas ou explicitas) que produzem a experiência do teatro. Esta experiência é
organizada de modo a produzir sentidos para o vivido. Falar de experiência, portanto,
permite abarcar uma vasta gama de aspectos que serão recebidos e interpretados pela
subjetividade do espectador.
Ao mesmo tempo procurei compreender, através de uma vasta pesquisa
bibliográfica, a invenção da figura teórica do espectador, percebendo que para isso não
podia ficar restrito a teoria teatral. Constatei que a figura do espectador oscila no século
XX, seguindo o fluxo das marés do pensamento humano. Não se deve esquecer, em
nenhum momento, que ela é fruto de um determinado contexto sócio-histórico,
influenciando-o. É esse contexto o início do século XXI assistirá a um crescimento dos
debates acerca do espectador.
Para contrapor a figura do espectador ideal encontrada na maior parte das
teorias estudadas propus uma teoria fundamentada em espectadores reais. Assim sendo,
me lancei numa longa pesquisa que campo realizando mais de 150 entrevistas e
abordando mais de 200 pessoas.
Pude perceber já no momento de coleta que havia pequenas diferenças nas
experiências das teatralidades contemporâneas se comparados os casos dos espectadores
entrevistados no Brasil e na Europa francófona. É muito delicado fazer uma afirmação
337
Considerações finais
definitiva sobre essas diferenças, mas me parece que elas têm uma relação direta com as
diferenças sociais das duas regiões geográficas. Posso citar, por exemplo, a questão da
personagem dos moradores de rua utilizados pelo Teatro da Vertigem tanto em Bom
Retiro como em Dire ce qu’on ne pense pas.
Claro que os contextos em que essa figura aparece em ambas as peças são
diversos, mas há em ambas as peças uma cena em que essas figuras, excluídas da
sociedade, são impedidas a entrar no espaço do teatro, um espaço proibido para “gente
como eles”. Notei que o fato das personagens que moram na rua serem expulsas da porta
do shopping em Bom Retiro não foi nem mencionada, enquanto em Dire ce qu’on ne
pense pas a cena trouxe uma discussão polêmica para os espectadores. Em ambos os
países (Bélgica e Brasil) há moradores de rua, mas há diferenças nas formas que os
habitantes desses países lidam com a questão e essas diferenças influenciam na
experiência que o espectador terá da peça.
Na análise destas entrevistas pude perceber que as diferenças nas falas dos
entrevistados se acentuava quando se fazia a comparação entre as entrevistas dadas em
idiomas diferentes. Na pesquisa realizada no contexto europeu, que teve como vivências
de base Dire ce qu’on ne pense pas e Go down, Moses, pude entrevistar 48 pessoas (24
para cada espetáculo). Dessas, nove deram a entrevista em português (18%) e 39 em
francês (82%). Ainda que houvesse pequenas variações em relação às localidades (entre
o português do Brasil e de Portugal ou o da França e da Bélgica), notei que elas eram
muito menores do que as que existiam entre os idiomas. Decidi então privilegiar o
equilíbrio entre os dois idiomas na seleção de espectadores para a segunda e terceira
entrevista. Selecionei dessa maneira sete lusófonos (44%) e nove francófonos (56%) para
a etapa da coleta, na qual entrevistei 16 espectadores (8 para cada vivência de base).
Dessa maneira me parece razoável dizer que a experiência do teatro tem como
parte essencial de sua constituição a língua. A célebre frase de Fernando Pessoa diz:
“minha Pátria é minha língua”. É nessa língua que se constrói a linguagem que vai
articular a experiência em palavras. Um dos grandes exemplos dessas diferenças é a que
encontrei na análise feita no capítulo 4.1, que mostra que espectadores francófonos se
referiram muito mais às categorias de análise dos espetáculos utilizadas pela teoria
(também francófona) de análise dos espetáculos do que os espectadores lusófonos. Posso
citar, a título de exemplo, a menção muito maior dos francófonos às categorias ator,
338
A experiência do espectador contemporâneo
339
Considerações finais
anterior da aquisição da linguagem (antes dos dois anos). São sensações que não podem
ser descritas diretamente e para as quais os espectadores empregam imagens e metáforas.
Um outro ponto que diferencia ambas as produções é a relação que os
espetáculos do Teatro da Vertigem criam com o espaço para os espectadores
entrevistados. Ao sair do espaço teatral (não convencional, nesse caso) o espectador pode
passar a diferenciar a sua experiência daquele teatro de outras. Em especial no caso de
Bruxelas, vários espectadores relataram a ligação entre a sua experiência teatral ao espaço
da encenação, modificando a significação daquele espaço (da Bolsa) da cidade no
contexto geral de sua vida.
Uma sensação comum às peças de ambas as companhias é de algo inconcluso.
O espectador sai do teatro com a sensação de que o espetáculo teria uma continuação.
Essa sensação aparece mais fortemente no quadro dos espectadores não-especialistas.
Penso que essa sensação é uma das que diferenciam o teatro contemporâneo de outros
tipos de teatro dramático.
Entre semelhanças e diferenças nas experiências dos espectadores, penso que
a principal conclusão é que ainda que uma encenação possa ser mais ou menos marcante
para um espectador, sua inscrição na vida desse sujeito se dará muito mais através de
procedimentos que contextualizem o teatro na vida. Surge, assim, a possibilidade de
“carregar a peça”, de torná-la uma ferramenta de operação da realidade. Essa apropriação
profunda de uma peça é geradora de desejos e expectativas para esses indivíduos que
serão refletidas em sua fala sobre o teatro, como mostrado por Bernard Lescure em sua
fala.
Outro dado interessante foi o tempo utilizado pelos espectadores para falar de
sua experiência. Verifiquei a tendência das memórias do espetáculo em se concentrarem
cada vez mais com o passar do tempo. No entanto, se o espetáculo tiver sucesso em fazer
conexões com a vida da pessoa, uma tendência oposta pode surgir e o espectador terá
progressivamente a necessidade de mais tempo para falar. De toda maneira, para
averiguar essa tendência seria necessária a continuação desta mesma pesquisa por mais
alguns anos, entrevistando estes mesmos espectadores ao longo do tempo. De fato, esse
é um caminho em potencial a seguir.
Em relação a esse tempo, percebi que além de um movimento de síntese,
também há pequenas variações nos relatos desses espectadores, que aconteciam sem que
este se desse conta, mas de maneira geral os espectadores mantiveram a mesma opinião
340
A experiência do espectador contemporâneo
sobre a peça, a mesma ideia geral. Esse tempo era composto não só de palavras como de
sons, pausas e silêncios. Muitas vezes as pausas disseram muito mais do que as próprias
falas sobre a experiência do espectador.
Do ponto de vista individual, as experiências do teatro são incorporadas à
experiência de vida do espectador e colocadas em relação com estas. É desse processo de
articulação entre as memórias do teatro e da vida que parecem surgir os sentidos do teatro.
Dessa maneira, ainda que uma peça possa ter a sua ideia compreendida pelo espectador
no momento em que ela acontece, o sentido para a experiência do teatro será dado
somente depois do evento teatral, pela articulação desta à experiência de vida. As
narrativas, organização desta experiência pela linguagem, se mostraram durante o meu
percurso um elemento fundamental para a construção da experiência do teatro de seus
sentidos.
Ao compreender esse espectador como um ser integral, cuja vida ultrapassa
o tempo do teatro, passo a ver claramente a influência de fatores como a exclusão social
e econômica sobre eles. O teatro contemporâneo afirma-se, como trazem os discursos de
Alix Nelva, do atendente do café de Cesena e de tantos outros relatos que ouvi, cada vez
mais, como um teatro para uma elite. E nisso ele se equipara a outras tradições como, por
exemplo, a ópera.
Enquanto o teatro continuar excluindo o público comum de suas salas,
fazendo-os se sentir inferiores ou fora do seu contexto de classe, ele estará negando a sua
essência, ao menos a de sua criação na Grécia Antiga, sua função dramática. Vejo três
alternativas diante desse distanciamento do teatro contemporâneo da cidade (para o artista
e para o pesquisador do teatro): integrar-se a esse teatro e aceitar essa separação com a
sociedade como natural, desistir do teatro e deixar que ele se acabe em detrimento de
outras práticas culturais que podem assumir a sua função, ou se aliar aos espectadores
excluídos do teatro para, ao lado deles, pensar como o teatro pode retomar seu lugar na
sociedade contemporânea.
Confesso, por fim, que apesar de ser a mais difícil a terceira alternativa é a
que mais me atrai.
341
A experiência do espectador contemporâneo
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Som: Kako Guirardo. Trilha Sonora: Erico Theobaldo e Miguel Caldas. Figurinos:
Marcelo Sommer. Dramaturgismo: Antônio Duran. São Paulo: Teatro da Vertigem, 2012
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Lessa; Bruno Batista; Cácia Goulart; Daniela Carmona; Denise de Almeida; Ivan Kraut;
Luciana Schwinden; Marília De Santis; Roberto Audio; Rodolfo Arantes; Sérgio Siviero;
Sérgio Pardal; Vanderlei Bernardino; Telma Vieira. Assistente de Direção: Eliana
Monteiro. Desenho de luz: Guilherme Bonfanti. Direção de Arte e Cenário: Márcio
Medina. Figurinos e Adereços: Marina Reis. Criação e Direção Musical: Thiago Cury e
Marcus Siqueira. Desenho de som: Kako Guirado. Coordenação Teórica e
Dramaturgismo: Sílvia Fernandes e Ivan Delmanto. São Paulo: Teatro da Vertigem, 2006.
APOCALIPSE 11,1. Direção geral: Antônio Araújo. Dramaturgia: Dramaturgia:
Fernando Bonassi. Atores: Joelson Medeiros; Luciana Schwinden; Luis Miranda;
Mariana Lima; Mihlen Cortaz; Mika Winiavier; Miriam Rinaldi; Roberto Audio; Sergio
Siviero; Vanderlei Bernardino. Direção de arte: Marcos Pedroso. Direção musical e trilha
sonora: Laércio Resende. Assistente de direção: Marcos Bulhões (2000) /Eliana Monteiro
(2002). Figurinos: Fábio Namatame. Desenho de luz: Guilherme Bonfanti. Desenho de
som: Kako Guirado. São Paulo: Teatro da Vertigem, 2000.
O LIVRO DE JÓ. Direção geral: Antônio Araújo. Dramaturgia: Luís Alberto de Abreu.
Atores: Daniella Nefussi; Joelson Medeiros; Lismara Oliveira; Luciana Schwinden;
Marcos Lobo; Mariana Lima; Marília de Santis; Matheus Nachtergaele; Miriam Rinaldi;
Roberto Audio; Sergio Siviero; Siomara Schröder; Suia Legaspe; Vanderlei Bernardino.
Músicos Alexandre Galdino/José Eduardo Areias; Camila Lordy; Flávia Maria; Giovanna
Sanches; Miriam Cápua. Composição e direção musical: Laércio Resende. Figurinos e
visagismo: Fábio Namatame. Desenho de luz: Guilherme Bonfanti. Direção de arte:
Marcos Pedroso. Desenho de som: Kako Guirado. Coordenação teórica: Ivan Marques.
Assistente de direção: Marcos Lobo. Direção de cena: Eliana Monteiro. São Paulo: Teatro
da Vertigem, 1995.
O PARAÍSO PERDIDO. Direção geral: Antônio Araújo. Dramaturgia: Sérgio de
Carvalho. Atores: Cristina Lozano; Daniella Nefussi; Eliana César; Evandro Amorim;
Johana Albuquerque; Luciana Schwinden; Lucienne Guedes; Luís Miranda; Marcos
Lobo; Marta Franco; Matheus Nachtergaele; Mika Winiavier; Miriam Rinaldi; Ricardo
Iazetta; Roberto Audio; Sérgio Mastropasqua; Sérgio Siviero; Vanderlei Bernardino.
Músicos: Alexandre Galdino; Atílio Marsiglia; Camila Lordy; Eduardo Areias; Fabiana
Lian; Flávia Maria; Giovanna Sanches; Isaías Cruz; Laércio Resende; Magda Pucci;
Marcos A. Boaventura; Marta Franco; Miguel Barella; Paulo Scharlack; Rita Carvalho;
Roseli Câmara; Cláudio Gutierrez. Assistente de Direção: Eliana Monteiro. Composição
e direção musical: Laércio Resende. Figurinos, adereços e visagismo: Fábio Namatame.
Desenho de luz: Guilherme Bonfanti. São Paulo: Teatro da Vertigem, 1992.
358
A experiência do espectador contemporâneo
Hartmann, Annette Höpfner, Nadine Karbacher, Sara Keller, Pia Koch, Marion
Neumann, Vanessa Richter, Helga Rosenberg, Ria Schindler, Janine Schneider, Christina
Wintz/ Solistas: Sirje Aleksandra Viise. Dramaturgia: Piersandra Di Matteo e Florian
Borchmeyer. Ilumitação: Erich Schneider. Cesena /Berlin/Paris: Socìetas Raffaello
Sanzio/ Schaubühne, 2015. (Espetáculo criado em 6 de março de 2015 na Schaubühne –
Berlin)
MOSES UND ARON. Opera em dois atos (1954). Musica e Libreto: Arnold Schönberg
Condutor: Philippe Jordan. Direção, cenários, iluminação e figurinos: Romeo Castellucci.
Com: Thomas Johannes Mayer (Moisés), John Graham-Hall (Aarão), Julie Davies,
Catherine Wyn-Rogers, Nicky Spence, Michael Pflumm, Chae Wook Lim, Christopher
Purves, Ralf Lukas, Maren Favela, Valentina Kutzarova, Elena Suvorova, Shin Jae Kim,
Olivier Ayault, Jian-Hong Zhao, Béatrice Malleret, Isabelle Wnorowska-Pluchart, Marie-
Cécile Chevassus, John Bernard, Chae Wook Lim, Julien Joguet. Coreografia: Cindy Van
Acker. Dramaturgia: Christian Longchamp e Piersandra Di Matteo. Mestre do coro José
Luis Basso. Paris Opera Orchestra and Chorus. Cesena/ Paris/ Madrid: Socìetas Raffaello
Sanzio/Ópera de Paris/ Teatro Real de Madrid, 2015.
GIULIO CESARE (versão 2014). Direção: Romeo Castellucci. Com: Dalmazio Masini
e Simone Toni affiancati da Gianni Piazzi e Silvano Voltolina. Cesena/Bologna: Socìetas
Raffaello Sanzio, 2014. (Espetáculo apresentado em nova versão no dia 27 de março de
2014 na Accademia di Belle Arti di Bologna)
359
Bibliografia
HEY GIRL!. Direção, cenário e iluminação: Romeo Castellucci. Música: Scott Gibbons.
Atores: Silvia Costa, Sonia Beltran Napoles. Cesena/Paris: Socìetas Raffaello Sanzio,
2006.
Ciclo “Tragedia Endogonidia": Direção: Romeo Castellucci. Música: Scott
Gibbons.Cesena: Socìetas Raffaello Sanzio, 2002- 2004.
C.#01 CESENA. I Episodio della Tragedia Endogonidia (2002)
A.#02 AVIGNON. II Episodio della Tragedia Endogonidia (2002)
B.#03 BERLIN. III Episodio della Tragedia Endogonidia (2003)
BR. #04 BRUXELLES/BRUSSEL. IV Episodio della Tragedia Endogonidia (2003)
BN. #05 BERGEN. V Episodio della Tragedia Endogonidia (2003)
P.#06 PARIS. VI Episodio della Tragedia Endogonidia (2003)
R.#07 ROMA. VII Episodio della Tragedia Endogonidia (2003)
360
A experiência do espectador contemporâneo
361
A experiência do espectador contemporâneo
Anexos
Anexo 1 – Catálogo do material coletado durante a pesquisa e disponível
em DVD anexo à tese
363
Anexos
364
A experiência do espectador contemporâneo
365
Anexos
107 Relatório PDF Relatório geral da monitora Lígia Botelho - maio de 2004 9
112 Relatório PDF Relatório monitorias, por Verônica Melo - maio de 2004 2
Relato de Maria Sílvia Betti sobre a visita dela e de alguns
113 Relatório PDF monitores ao CEU Jambeiro em 19-08-2003 4
VIII - Vídeo
Vídeo do Projeto Formação de Público Produzido em
114 Vídeo VOB 2004 (26 m e 58 s)
IX - Monografia
115 Monografia PDF Monografia sobre o Projeto Formação de Público 120
123 Entrevista 2 Adelaide PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 11
124 Entrevista 3 Adelaide PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 14
125 Entrevista 2 Dinho e Sabrina PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 16
126 Entrevista 3 Dinho e Sabrina PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 12
127 Entrevista 2 Paul PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 3
128 Entrevista 3 Morena PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 6
129 Entrevista 3 Francisco PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 7
130 Entrevista 2 André PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 8
131 Entrevista 3 André PDF Entrevista sobre o espetáculo Dire ce qu'on ne pense pas 7
132 Entrevista 2 Fábio PDF Entrevista sobre o espetáculo Go Down, Moses 13
133 Entrevista 3 Fábio PDF Entrevista sobre o espetáculo Go Down, Moses 13
134 Entrevista 3 Armando PDF Entrevista sobre o espetáculo Go Down, Moses 4
135 Entrevista 2 Bianca PDF Entrevista sobre o espetáculo Go Down, Moses 6
136 Entrevista 3 Bianca PDF Entrevista sobre o espetáculo Go Down, Moses 7
366
A experiência do espectador contemporâneo
367
Anexos
Anexo 2 - DVD
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