Entre A Psicanálise e A Arte
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Psicologia USP Services on Demand
Print version ISSN 01036564
Online version ISSN 16785177 Article
Psicol. USP vol.10 n.1 São Paulo 1999 Article in xml format
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ENTRE A PSICANÁLISE E A ARTE1 Indicators
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Helena K. Rosenfeld2
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Kon, N.M. Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte.
São Paulo, EDUSP/Fapesp, 1996. More
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Mas tenho de lhe fazer uma confissão, que peço não divulgar seja com amigos,
seja com inimigos. Importuneime com a questão de como durante todos esses
anos nunca procurei sua companhia e usufruí de uma conversa com o senhor (supondo que tal não lhe seria
incômodo). A resposta é esta confissão extremamente íntima: penso que o evitei a partir de uma espécie de temor de
encontrar meu duplo.3
É assim que Freud escreve para o escritor Arthur Schnitzler, numa carta que se transformou no "umbigo" desta
obra4 tão multifacetada. Da análise desta carta saem quase todos os temas e questões que o trabalho procura
abordar, movimentandose num espaço que se situa "entre" a psicanálise e a arte, e que já de início exclui a
arte enquanto ilustração dos conceitos psicanalíticos, ou a psicanálise enquanto intérprete de obras de arte ou
de artistas. Tratase de mostrar como ambos os campos estão imbricados numa relação muito profunda e
essencial, que vai além de meros encontros ocasionais.
Freud confessa que o escritor é seu duplo (o "estranhamente familiar"), mas essa afinidade causalhe temor e
deve ser mantida em sigilo. Essa ambivalência básica de Freud será reencontrada, e brilhantemente mostrada
pela autora, em outros aspectos da relação de Freud com a arte e com a sua própria obra.
Desde sua origem, a psicanálise entrecruzase com a arte. Pelo menos é esta a posição da autora e que diverge
da posição de alguns autores consagrados: a psicanálise não é apenas fruto do trabalho de um homem só, ela
também está vinculada às questões de sua época, principalmente às idéias que transpiravam dos movimentos
artísticos da Viena findesiècle, que tinham como representantes artistas como o "duplo" Schnitzler, Klimt e
Schoenberg. A assim chamada "modernidade vienense" caracterizouse, entre outras coisas, por colocar em
cheque a hegemonia da razão, por abrir espaço para o "interior", por pensar toda unidade como sendo feita de
elementos heterogêneos conflitantes e por uma profunda busca das origens. As ressonâncias com o pensamento
freudiano já se fazem ouvir.
Para Noemi, a psicanálise é fruto e matriz do pensamento moderno, fruto de idéias de intelectuais e artistas do
século XIX e matriz de idéias do século XX. No entanto e aqui, a ambivalência proximidade/distância retorna
, a pessoa Freud é incongruente com sua obra: apesar das afinidades com o moderno, ele tinha gostos
conservadores e vivia isolado dos pensadores e artistas de sua época.
Assim, a relação de Freud com a arte e os artistas, bem como suas teorias psicanalíticas sobre a arte, são
outros caminhos percorridos nesta obra. Em relação à arte e aos artistas, Freud tinha atitudes contrastantes,
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num duplo movimento de atração e repulsa, como aparece exemplarmente na carta para Schnitzler. Freud, de
certa forma, "denigre" a arte ao colocála como fomentadora de ilusão, como correção de realidades
insatisfatórias, ou do lado do sonho, do sintoma e do brincar da criança e aqui, a autora nos mostra como
suas concepções estéticas são reducionistas e defensivas. Para Freud, o artista que cria está num campo oposto
ao do analista que busca descobrir as verdades soterradas.
Nesse momento, o trabalho ganha um vigor especial ao trazer a idéia de que a relação de Freud com a arte é,
na verdade, um deslocamento de sua relação com o imaginário, com a fantasia e com a criação que poderiam
estar presentes em sua obra. É isso que o amedronta criações imaginárias constituindo a psicanálise e que
ameaça a cientificidade tão almejada, é disso que o psicanalista se defende. Esse ponto é central porque
implica uma questão epistemológica fundamental para a psicanálise, que transcende a pessoa e a época de
Freud: qual é o estatuto do imaginário na psicanálise? O analista cria realidades ou desvela realidades já
existentes, porém ocultas? A autora tem uma posição muito clara a esse respeito e voltaremos a ela adiante.
Para Noemi Kon, a passagem da teoria da sedução para a fantasia de sedução nunca foi plenamente realizada,
e Freud continuou a buscar a certeza de um fato escondido a ser revelado. Emprestando o termo de Monique
Schneider uma das autoras fortemente presentes neste livro , ela fala numa "dupla navegação" de Freud em
direção ao imaginário e à realidade incansavelmente postulada, em direção à fantasia e ao fato. Esta seria
outra das ambivalências não superadas e que não só é a base da relação ambígua de Freud com a arte, como
também tem força atuante na psicanálise hoje.
A obra freudiana, entretanto, vai além da pessoa Freud, e a autora mostra que por mais que ele pretendesse
fazer ciência, acabou fazendo outra coisa mais uma ambigüidade. E nesse ponto, as idéias de MerleauPonty
vêm alimentar as reflexões sobre o estatuto epistemológico da psicanálise. Ela estaria muito mais próxima do
"logos do mundo estético", que rompe dicotomias clássicas (sujeitoobjeto, verdadeficção, corpoalma, interno
externo), do que da ciência. Os conceitos de pulsão, realidade psíquica e aprèscoup, por exemplo, revelam a
quebra de tais dicotomias. O trabalho com o singular e com a subjetividade do "investigador" também
distanciam a psicanálise da ciência. E mais: a própria psicanálise é criada a partir da "experiência estética" de
Freud, presente em sua escrita, em sua pesquisa e em sua prática. A experiência estética diferenciase da
atitude científica na medida em que é uma oscilação entre atitude crítica e sentimental (Figurelli), em que o
homem está confundido com as coisas (Dufrenne). A escrita de Freud é vista como ato artístico, o que o
transforma num "escritorcientista":
Se admitirmos que apoiandose na interpretação pontyana a linguagem, para a ciência, é reduzida à pura emissão
de sons, permitindo aos homens uma certa coexistência e comunicação e que, para a filosofia, a linguagem é uma
tradução imperfeita de pensamentos, encontramos na atitude de Freud uma postura diferente e inaugural frente à
linguagem (ao menos no campo científico, onde ele pretende se situar), o que permite a irrupção de novos
pensamentos, em sua escrita genética e em sua escuta, agora, então, propriamente, psicanalítica (...) É a fala que
surge aqui com todo seu poder de criação de uma nova subjetividade (...) As palavras deixam de ser apenas veículos
de comunicação de idéias (...) A palavra é fundadora, cria sentido, significa. (Kon, 1996, p.1224).
A partir desse pano de fundo, Noemi vai colocando suas próprias posições. O debruçarse sobre a época e a
pessoa de Freud serve para abrir e levantar questões epistemológicas, metapsicológicas e clínicas mais amplas
e contemporâneas, buscando caminhos por vezes diferentes dos de Freud. Como a própria autora diz, um certo
parricídio é necessário.
Qual é o estatuto epistemológico da psicanálise? É ciência? Arte? Como se dá a construção do conhecimento em
psicanálise? Qual é o estatuto do imaginário? Qual é a relação entre fantasia e realidade? Qual é o estatuto das
origens, do passado? Como a memória pode ser concebida? Qual é o lugar dos fatos na teoria? E a ficção? Qual
é o lugar da criação? O analista cria ou descobre?
Foi para dar conta dessas questões que esta pesquisa foi realizada e Kon explicita claramente suas posições.
Freud negou a cumplicidade com a arte em função de seu dilema (afinidadetemor) frente ao estatuto do
imaginário. No entanto, recusar o imaginário não é apenas livrarse da ilusão mas sobretudo recusar a criação
de "figuras novas do pensável", é recusar o poder de "fazer ser o novo". É preciso aceitar a positividade do
imaginário e da criação. O passado só pode ser recuperado enquanto ficção, a própria memória é ato criador. É
preciso, ainda, romper com a dicotomia que separa sujeito e objeto, e com todas as dicotomias dela derivadas
e que embasam a atitude científica. Assim, o fazer psicanalítico é criação de realidades novas, e não
desvelamento arqueológico de realidades esquecidas, o que o torna comprometido com o fazer artístico. Para
Kon (1996), é preciso fazer de nossa atividade um ato criador, tendo o fazer artístico, fundado na criação
imaginária, como cúmplice: "Possuímos, agora, uma compreensão que nos permite abandonar os temores
freudianos frente ao imaginário; é hora de nos deixarmos fertilizar pela potência criadora explicitada na
atividade artística." (p.207).
Se a arte é cúmplice, a estética pode trazer subsídios valiosos para o fazer psicanalítico. E é assim que a obra
envereda por um caminho dos mais criativos ao propor pequenas amostras dessa possibilidade que é infinita e
ainda pouquíssimo explorada.
Winnicott, por exemplo, ao falar dos fenômenos transicionais e do espaço potencial, permite que se pense num
novo estatuto para o imaginário na psicanálise, na medida em que a ilusão é vista por ele como um momento
necessário para o acesso à realidade. Além disso, as dicotomias do tipo percebidocriado e realidadeficção, são
concebidas como um paradoxo que não pode e não deve ser superado, o que é uma posição bastante
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interessante quando colocada ao lado das idéias de MerleauPonty, e quando incluídas nas discussões
epistemológicas a respeito da psicanálise.
Luigi Pareyson5 (Apud Kon, 1996), esteta italiano que formulou a "teoria da formatividade", pensa o fazer
artístico de uma forma que ilumina o fazer psicanalítico: a arte é um "formar", um fazer que é ao mesmo
tempo um inventar. "Ela é um tal fazer que, enquanto faz, inventa o por fazer e o modo de fazer." (p.202).
A própria idéia da inseparabilidade entre conteúdo e forma, que a arte mostra tão bem, faz com que o fazer
psicanalítico tenha que ser repensado. Freud buscava o conteúdo atrás da forma, mas pensar que o sentido não
se reduz ao conteúdo e que algo permanece enquanto forma levanos a uma escuta totalmente diferente. A
autora busca no esteta Ernst Gombrich auxílio para desenvolver essas reflexões.
E MerleauPonty6 (Apud Kon, 1996), grande presença nesta obra, que ao falar da pintura como criação e não
como cópia, traz um interessante contraponto para nossa prática:
O pintor retoma e converte justamente em objeto visível o que sem ele permaneceria encerrado na
vida separada de cada consciência: a vibração das aparências que é o berço das coisas. Para este
pintor, uma única emoção é possível: o sentimento de estranheza; um único lirismo: o da existência
incessantemente recomeçada. (p.45).
Para Kon (1996), o gesto do pintor, assim concebido, seria emblemático do fazer psicanalítico. Nas suas
palavras:
A escuta psicanalítica, poderíamos dizer, é também uma escuta operante que não reproduz a falamundo constituída,
desde antes, de um sentido essencial. Os sons e os silêncios, as diferenças e os ruídos, articulamse em mim e para
mim enquanto um campo de experiência múltipla. A operação psicanalítica colocanos de frente não com a
exterioridade do que já vem constituído; põenos em contato com a gênese da criação de sentido. Esta escuta (...) é
um fazer, que nasce nesta zona indistinta feita na reciprocidade de meus atos receptivos e da configuração sonora.
Esta é a experiência estética psicanalítica que o gesto do pintor vem apresentar como que em câmera lenta. (p.48).
Para finalizar, acreditamos ser importante assinalar, que este livro apóiase em ampla bibliografia, com
trabalhos não só de Freud incluindo sua vasta correspondência e outros psicanalistas, mas também de
historiadores, filósofos e estetas. As notas de rodapé remetemnos a outros autores ainda, o que poderá ser
muito útil para os interessados em navegar por esse mesmo "entre".
Tratase, enfim, de um trabalho primoroso em que uma "idéia vaga e uma sensação afirmativa" (Kon, 1996,
p.23) no sentido da afinidade entre ambos os fazeres puderam ser transformados numa pesquisa aprofundada e
em idéias teoricamente bem embasadas.
1 Resenha de Kon, Noemi Moritz. Freud e seu duplo: reflexões entre psicanálise e arte. São Paulo, Edusp/Fapesp, 1996
2 Psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, mestre em Psicologia Clínica pela PUCSP.
3 Carta de Freud a Arthur Schnitzler, datada de 14 de maio de 1922, citada integralmente em Kon (1996, p.1278).
4 Freud e seu duplo foi, originalmente, a dissertação de mestrado de Noemi Moritz Kon, defendida junto ao Departamento de
Psicologia Social do Instituto de Psicologia da USP, sob orientação do Prof. Dr. João Augusto FrayzePereira.
5 Os problemas da estética.
6 A dúvida de Cézanne.
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