Psicologia em Estudo 1413-7372: Issn: Revpsi@
Psicologia em Estudo 1413-7372: Issn: Revpsi@
Psicologia em Estudo 1413-7372: Issn: Revpsi@
ISSN: 1413-7372
revpsi@uem.br
Universidade Estadual de Maringá
Brasil
RESUMO. O presente trabalho consiste em um estudo teórico que apresenta os efeitos da violência sexual na infância sob a ótica de
Sándor Ferenczi (1873-1933), psicanalista da primeira geração dos discípulos de Freud o qual conferiu grande importância ao trauma
sexual e ao papel do adulto na constituição do psiquismo infantil. Serão analisadas suas contribuições – originadas da clínica com
pacientes adultos que haviam sofrido abuso sexual na infância – privilegiando o artigo ferencziano, publicado em 1933, “Confusão de
língua entre os adultos e a criança”. A fim de compreender determinados movimentos psíquicos marcados pela ação da clivagem psíquica,
pretendemos examinar a descrição de dois arranjos psíquicos: a identificação com o agressor e a progressão traumática ou prematuração,
aportes teóricos ferenczianos que serão utilizados para uma reflexão clínica.
Palavras-chave: Sándor Ferenczi; violência sexual infantil; clivagem.
ABSTRACT. This article presents theoretical study that shows the effects of sexual violence during childhood according to Sándor
Ferenczi ((1873-1933) – psychoanalyst of the Freud’s first generation disciples – that gave a great importance to the sexual trauma and
to the role of an adult in building the infantile psychism. Originated from the clinical impasses he had faced, his contributions allowed
us to guess the richness of his analytical listening, which has made the psychic movement subtleties easier to be noticed, marked in
these cases by splitting actions. This way, privileging one of the most important articles by this same author, published in 1933,
“Confusion of Tongues between Adults and the Child”, we will follow the theoretical elaborations that led to the description of two
psychic splitting destinations: identification with the aggressor and the traumatic progression or precocious maturity, ferenczian
theoretical contributions to be used for a clinical reflexion..
Key words: Sándor Ferenczi; infantile sexual violence; splliting.
RESUMEN. El artículo presenta los efectos de la violencia sexual en la infancia desde la perspectiva de Sandor Ferenczi (1873-
1933), psicoanalista de la primera generación de discípulos de Freud, quien dio gran importancia al trauma sexual y el papel del
adulto en la constitución del psiquismo de los niños. Surgidas de los problemas clínicos que se enfrentó, sus contribuciones
permiten vislumbrar la riqueza de su escucha analítica, posibilidad que facilitó la percepción de la sutileza de los movimientos
psíquicos, marcados, en estos casos por la acción de escisión. Por lo tanto, a favor de uno de los artículos más importantes de este
autor, publicado en 1933, "Confusión de lenguas entre los adultos y los niños", vamos a seguir las elaboraciones teóricas que
culminaron en la descripción de los dos destinos de la escisión psíquica: la identificación con el agresor y la progresión traumática
o prematuridad.
Palabras-clave: Sándor Ferenczi; la violencia sexual infantil; escisión.
1
Apoio: FAPEMIG.
*
Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2011), Brasil.
#
Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000); pós-doutora pela Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (2009); professora associada na Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.
122 Mendes e França
O presente trabalho consiste em um estudo teórico mestre para que não divulgasse seus achados sobre a
sobre os efeitos do abuso sexual na infância sob a concretude da sedução, apresentou o artigo que nos
ótica de Sándor Ferenczi, autor que conferiu grande servirá de guia neste trabalho, “Confusão de língua
importância ao trauma sexual e ao papel do adulto na entre os adultos e a criança” (1933[1932]).
constituição do psiquismo infantil. Com o objetivo Apesar de suas contribuições inovadoras haverem
refletir clinicamente sobre as consequências da influenciado grandes teóricos, como Melanie Klein,
violência sexual na infância, serão analisadas algumas Donald Winnicott e Michael Balint, isso não impediu
de suas contribuições originadas da clínica com que essas caíssem no esquecimento, devido à rejeição
pacientes adultos que haviam sofrido abuso sexual na dos colegas às suas experiências clínicas. Para
infância. Para alcançar esse objetivo, analisaremos acompanharmos melhor seu trabalho e os percalços
principalmente o artigo ferencziano, escrito em 1932 e que o condenaram no meio psicanalítico,
publicado em 1933 denominado “Confusão de língua examinaremos com mais vagar o desenvolvimento de
entre os adultos e a criança”, através do qual sua produção.
pretendemos acompanhar as elaborações teóricas que O percurso do autor que ora estudamos foi
culminaram na descrição de dois destinos para a dividido por Balint (1967/2011) em três fases,
clivagem psíquica: a identificação com o agressor e a demarcadas entre si por importantes alterações
progressão traumática ou prematuração. técnicas e teóricas. Na primeira e mais longa dessas
Considerando que o estudo destas duas noções fases (1908-1927) Ferenczi debruçou-se sobre o
está intrinsecamente ligado à trajetória clínica de estudo aprofundado da técnica psicanalítica clássica,
Ferenczi, julgamos apropriado percorrê-la caracterizada pela objetividade, neutralidade e
sucintamente – apoiando-nos nos escritos de Balint, paciência ilimitada, com também iniciou a transição
um de seus principais discípulos – com o intuito de para sua polêmica técnica ativa, baseada em
localizar a inserção dessas noções em sua obra e no intervenções diretivas, orientadas pela observação
contexto clínico. Desse modo, antes de concentrar
atenta da transferência. Apesar dos êxitos terapêuticos
nossa atenção nas teorizações específicas do referido
e do rico material clínico resultante da aplicação dessa
artigo, faremos uma breve apreciação dos textos
nova técnica, Ferenczi precisou admitir que
compilados no Volume IV das suas “Obras
determinados pacientes não haviam sido beneficiados.
Completas” (2011), que referenciam a temática do
Tendo como princípio norteador básico de sua
trauma e da clivagem psíquica.
prática clínica que enquanto um paciente desejasse
prosseguir com o tratamento caberia ao analista
UMA BREVE EXPOSIÇÃO SOBRE O PERCURSO encontrar uma forma de ajudá-lo,
CLÍNICO DE SÁNDOR FERENCZI independentemente das dificuldades dessa tarefa, o
fracasso da técnica ativa em alguns casos
Apesar de contemporâneo de Freud (1856-1939), representou uma “provocação irresistível” (Balint,
o psiquiatra húngaro Sándor Ferenczi (1873-1933) só 1967/2011). A busca pelo aperfeiçoamento marcou
veio a conhecer seu futuro mestre, analista e amigo em o período seguinte (1927-1928) e levou Ferenczi a
1908, após a leitura entusiasmada de “A Interpretação modificar suas intervenções no sentido de focalizar
dos sonhos” (1900). Demonstrando uma grande a atenção nas expectativas do paciente em relação
capacidade de compreensão do corpo teórico ao analista, que deveria flexibilizar-se ao máximo.
psicanalítico e, ao mesmo tempo, liberdade de Os textos resultantes dessa fase - “A adaptação da
pensamento para introduzir novos conceitos, Ferenczi criança à família” (1928[1927]/2011), “O problema
escreveu o seu primeiro artigo, “Transferência e do fim da análise” (1928[1927]/2011) e
introjeção”, em 1909. Desde então, a forte inserção no “Elasticidade da técnica psicanalítica” (1928[1927-
movimento psicanalítico e sua grande habilidade em 1928]/2011) - mostram que Ferenczi, inicialmente,
manejar, com diplomacia, assuntos conflituosos, atenuou a força de suas intervenções e, ao invés das
levaram-no a fundar a International Psychoanalytical ordens e interditos da técnica ativa, optou por
Association (IPA). Enfim, sua originalidade e talento conselhos e sugestões. Posteriormente, abandonou
clínico foram qualidades que levaram Freud a tê-lo em por completo mesmo a mais suave forma de
alta conta, apelidando-o de seu “paladino” ou “grão- intervenção, e foi corajoso o bastante para admitir e
vizir secreto” (Bokanowski, 2000). Não obstante, mais publicar que o aumento da tensão provocada por
adiante a ousadia intelectual de Ferenczi permitiu-lhe sua técnica ativa levara muitos de seus pacientes a
aprofundar temas que haviam se tornado uma espécie de reativação infrutífera das
problemáticos para Freud. Desrespeitando o pedido do experiências traumáticas da infância.
Violência sexual em Ferenczi 123
A propósito, o retorno insistente dos traumas ou expressaria “somente o sintoma do imenso desejo
psíquicos durante as sessões foi, gradualmente, de amor e de afeição que Ferenczi carregava
tornando-se um problema central para Ferenczi: em consigo?” (Balint, 1967/2011, p. XXIII)2.
sua concepção, o traumatismo psíquico resultava não O estranhamento geral provocado por essas
só do evento traumático em si, mas também da reação novidades ferenczianas parece ter sido o principal
dos adultos e de sua indiferença diante do sofrimento motivo pelo qual sua vasta obra (compilada nos quatro
da criança. Assim, Ferenczi concluiu que algumas das volumes das “Obras Completas”) acabou sendo
regras fundamentais da técnica psicanalítica relegada a segundo plano por tanto tempo. Assim,
tradicional, como a abstinência e a neutralidade do mesmo cientes das críticas, demarcamos elaborações
analista, poderiam ser, em muitos casos, iatrogênicas ferenczianas frequentemente retomadas nas pesquisas
(Kupermann, 2008). Em outras palavras, “a técnica sobre a violência sexual infantil, pois indicam alguns
analítica clássica podia, em certos casos, produzir destinos psíquicos para a criança e apresentam os
estados semelhantes [ao trauma], na medida em que desafios enfrentados pelo analista nesses casos.
levava o paciente a rememorar ou a repetir o
traumatismo original enquanto o analista mantinha sua
passividade benevolente e objetiva.” (Balint, CONFUSÃO DE LÍNGUA ENTRE OS
1967/2011, p. XXI). ADULTOS E A CRIANÇA
No terceiro período (1928-1933), uma
significativa queda em sua produção científica parecia Os primeiros contatos com os textos de Ferenczi
indicar uma crise intelectual. De fato, a história do já nos permitem perceber que sua sensibilidade clínica
movimento psicanalítico aponta para uma crescente é o ponto de atração mais forte em sua obra. Nós, que
trabalhamos com a temática da violência sexual
indisposição e distanciamento entre Ferenczi e a
infantil, logo nos envolvemos com uma descrição
sociedade psicanalítica (Balint, 1967/2011). Incerto,
sobre os efeitos dessa vivência no psiquismo infantil e
talvez, da acolhida que seus textos receberiam, passou
a dificuldade para o restabelecimento da confiança nos
a não mais publicar suas observações. Na verdade,
adultos, que traz consequências diretas para o manejo
seus principais artigos dessa época só foram transferencial no processo analítico.
traduzidos para a língua inglesa mais de vinte anos Ecos significativos entre suas observações e nossa
após sua morte, e só passados mais de trinta anos prática clínica levaram-nos a relevar as críticas de
foram publicadas suas obras completas em francês. No alguns autores que consideraram a abordagem do
Brasil, a primeira edição saiu ainda mais tardiamente, traumatismo sexual no texto “Confusão de língua
em 1991 e 1992. Esgotada já há algum tempo, acaba entre os adultos e a criança” como uma retomada
de ser relançada neste ano (2011), sem grande ingênua da teoria da sedução freudiana (Pinheiro,
repercussão na comunidade psicanalítica. 1995). Aliás, compreendemos exatamente o contrário:
Apesar da produção escassa - apenas um artigo a que a grande contribuição da qual poderíamos tirar um
cada ano -, o terceiro período foi marcado por efetivo proveito encontrava-se nas elaborações de
importantes avanços teóricos sobre o trauma psíquico, Ferenczi sobre o trauma. Afinal, ao focar os efeitos da
as noções de desmentido e clivagem psíquica (“A sexualidade do adulto sobre a criança, ele acaba
criança mal-acolhida e sua pulsão de morte” dimensionando devidamente a importância conferida
(1929/2011), “Princípio de relaxamento e neocatarse” ao papel do outro na constituição do psiquismo
(1930[1929]/2011), “Análise de crianças com adultos” infantil – oportunidade perdida por Freud ao
(1931/2011) e “Confusão de língua entre os adultos e abandonar sua primeira teoria da sedução3.
a criança” (1933[1932]/2011)). A técnica e os
resultados clínicos obtidos nessa fase refletiam a 2
solução encontrada por Ferenczi para fixar os limites Por outro lado, Figueiredo (2003) chegou a conclusões
importantes para a teoria da técnica psicanalítica a partir
de tolerância e complacência com que o analista das experiências clínicas de Ferenczi, ressaltando que
deveria tratar seu paciente: tal qual um adulto afetuoso diante das manifestações da clivagem, especialmente
trataria uma criança. Nesse sentido, afirmava que, caso presentes em pacientes borderlines, a interpretação deve
as interpretações se mostrassem inúteis, o analista, em possuir a “(...) finalidade fundamental de reconhecimento
uma atitude de acolhimento diante do sofrimento do (espelhamento) da parte cindida e de sua experiência até
então invalidada” (p. 32).
paciente, poderia recorrer à afeição e à gentileza 3
sinceras. Anos depois, Balint, um de seus principais Temos que reconhecer que tanto Freud quanto Ferenczi
acabaram se atendo aos extremos da sedução, como se ela
discípulos, questionaria se a inserção dessas precisasse ser, necessariamente, mito ou verdade. Este
experiências afetivas no setting analítico seria legítima ponto foi retomado por Jean Laplanche, que considerou o
124 Mendes e França
desencadear intensas crises de angústia acompanhadas Tal rumo se justificava pelos problemas clínicos com
por perda de consciência. os quais se deparou, principalmente aqueles que se
Ao longo do artigo de 1933, o autor argumenta referiam à repetição do trauma nas sessões de análise,
ainda que “Se a criança se recupera de tal agressão [a os quais mostravam como, através da identificação
violência sexual], ficará sentindo, no entanto, uma inconsciente e de uma regressão psíquica, o analista
enorme confusão; a bem dizer, já está dividida, ao era colocado no lugar do agente original do trauma,
mesmo tempo inocente e culpada, e sua crença no ocupando uma posição autoritária. Essa situação
testemunho de seus próprios sentidos está desfeita.” demonstrava o quanto esses pacientes abusados
(p. 117, grifos nossos). Em outro exemplo, o autor haviam se tornado reféns da repetição traumática das
reitera que o fator que se mantém na clivagem é a cenas de abuso sexual que impregnava a passividade
relação intrínseca com o choque traumático: em seu psiquismo.
Após várias tentativas de manejo técnico desse
(...) não existe choque, nem pavor, sem um contexto transferencial, Ferenczi voltou a questionar
anúncio de clivagem da personalidade. A suas intervenções. Diante do impasse clínico, o autor
personalidade regride para uma beatitude
pré-traumática, procura tornar o choque
relata que sua primeira hipótese foi que as repetições
inexistente (...). Se os choques se sucedem no incessantes seriam reflexos das resistências
decorrer do desenvolvimento, o número e a subjacentes a um forte recalcamento, o qual só poderia
variedade dos fragmentos clivados ser desfeito por etapas, permitindo que o paciente
aumentam, e torna-se rapidamente difícil, passasse várias vezes pela mesma situação de
sem cair na confusão, manter contato com angústia; no entanto, direcionando sua atenção para
esses fragmentos, que se comportam todos
algumas atitudes específicas desses pacientes, notou
como personalidades distintas que não se
conhecem umas às outras. (p. 119) que eles, apesar de serem extremamente obedientes e
demonstrarem aceitar suas interpretações, costumavam
Enfim, no artigo póstumo “Reflexões sobre o surpreendê-lo com explosões de raiva, durante as
trauma” (1934[1931-1932]/2011), no qual estão quais o acusavam de ser insensível e cruel.
compilados seus escritos sobre a temática do Estranhando tais reações, uma vez que sua técnica o
traumatismo psíquico, encontramos a ideia de levava a ser muito acolhedor com seus pacientes e a
clivagem da personalidade como uma forma de tornar valorizar extremamente os afetos transferenciais,
o trauma inexistente, uma “falsificação otimista” que Ferenczi concluiu que encenavam a experiência
teria como objetivo fazer o sujeito retornar à original de violência e provinham de um objeto
tranquilidade anterior. Nesse sentido, a clivagem, que agressor internalizado, que continuava a atacar,
pode ter extensões variáveis e diferentes graus de agora, desde o interior do psiquismo.
profundidade, encarregar-se-ia de não permitir o Na descrição de Ferenczi, a identificação com o
acesso ao psiquismo de partes insuportáveis da agressor ocorre quando o medo da criança diante da
experiência traumática. Mas, afinal, quais seriam os autoridade e da força do adulto chega ao ponto de
destinos quando o mecanismo de clivagem predomina provocar uma perda de consciência que paralisa as
no funcionamento psíquico? Para Ferenczi, na base reações normais de repulsa ou resistência à agressão e
das mais diversas patologias que podem se originar a impossibilita o recurso a qualquer tipo de defesa
partir da clivagem destacam-se a identificação com o contra o desprazer. Nesses casos, a solução encontrada
agressor e a prematuração ou progressão traumática. pelo psiquismo é tornar o agressor intrapsíquico:
Ao se fazer o agressor deixar de ser um outro, Outra configuração possível da identificação com
externo, este passa a ser submetido ao processo o agressor se dá quando a parte violentada e frágil é
primário, modelado segundo o princípio do prazer. Tal considerada insuportável e, então, é projetada para o
processo resulta, sem dúvida alguma, na minimização exterior. O resultado é que esse indivíduo tentará
da ameaça externa, porém provoca a clivagem do destruir o que projetou no mundo externo, agindo, ele
próprio ego. Assim, a identificação com o agressor próprio, como abusador, mimetizando o
parece instalar duas figuras no psiquismo, comportamento daquele que o agrediu, geralmente
representantes da cena da agressão: a criança abusada com alguém que considera semelhante a si mesmo
e maltratada, que representa o ego fragilizado, e o quando era submetido à agressão. Para esse “novo
agressor, atuando de forma semelhante ao superego abusador”, crianças mais novas constituem alvos
sádico. Os resultados que advêm da interação entre óbvios, por sua fragilidade e pela facilidade com que
essas duas figuras psíquicas podem originar diferentes são colocadas em posição de obediência. Nesse
arranjos. arranjo, o sadismo e a agressividade voltada para o
Quando não é possível as percepções e sensações meio externo são bastante evidentes, mas a face
da experiência traumática entrarem no esquema do complementar masoquista também pode ser inferida,
recalcamento e da neurose – devido à radicalidade das já que o individuo passa a agredir no outro justamente
circunstâncias ou à própria fragilidade infantil – o a projeção de seu ego infantil maltratado. Nesse
psiquismo pode ser obrigado a defender-se da arranjo, a projeção do próprio ego acarreta graves
excitação massiva através do mecanismo da rejeição e prejuízos a esse indivíduo, especialmente no que se
clivagem, solução que abre caminho para o refere a uma perda de contato com o seu mundo
estabelecimento da identificação com o agressor. Ao interno e com a realidade circundante (Mendes, 2011).
tentar manter a vivência traumática isolada no Neste sentido, concordamos com Uchitel (2001)
psiquismo, sem assimilação relativamente ao restante quando afirma que a criança identificada com o
dos conteúdos psíquicos, consegue-se controlar a agressor "é triplamente vítima: por não ter mais o
objeto idealizado que perde, por ser objeto de agressão
angústia, mas decorre dessa atitude um desligamento
e por converter-se ele mesmo em agressor" (p. 124).
(de extensão variável) entre o ego e a realidade que
Ao lado da identificação com o agressor, Ferenczi
pode encontrar expressão não só na exigência de
descreveu o curioso fenômeno da progressão
submissão sem limites de si próprio, mas também nas
traumática ou prematuração, o qual também considera
perversões, através da repetição estereotipada, em ato, como um possível resultado da clivagem pós-
dos abusos sofridos. Essa estratégia do psiquismo – na traumática. Segundo o autor, quando um grave
qual o ego fica obrigado a seguir os comandos do abandono ou uma grande aflição, acompanhados de
invasor para tentar se livrar de sua tirania e angústia de morte, abatem-se sobre a criança, há um
perseguição implacável – representa o caminho da despertar de capacidades que só deveriam se
repetição compulsiva do trauma e está atrelada a uma manifestar na idade adulta: “a criança que sofreu uma
diminuição geral da atividade psíquica, aspecto agressão sexual pode, de súbito, sob a pressão da
frequentemente constatado nos atendimentos a essas urgência traumática, manifestar todas as emoções de
crianças através do empobrecimento do brincar, dos um adulto maduro, as faculdades potenciais para o
processos criativos, das fantasias, e pela inibição da casamento, a paternidade, a maternidade” (Ferenczi,
capacidade de pensar. 1933[1932]/2011, p. 119). Essa eclosão súbita de
Se, por um lado, o psiquismo não puder suportar a novas faculdades em resposta ao choque traumático
parte que representa o agressor, esse fragmento será ocorre não só no plano emocional, mas também no
projetado para o mundo externo, movimento que intelectual: afinal, para que a criança possa proteger-se
propicia ou facilita encontros nos quais o objeto irá “do perigo que representam os adultos sem controle,
“encarnar” essa projeção, sendo levado a agir como ela deve, em primeiro lugar, saber identificar-se com
um sádico. Assim, novamente diante do agressor, só eles” (Ferenczi, 1933[1932]/2011, p. 120). Isto
restará ao indivíduo a submissão e a obediência: a significa que, em um quadro oposto ao da regressão
reedição da cena traumática na qual, originalmente, foi traumática, a criança que sofre uma violência sexual
obrigado a se calar para garantir sua sobrevivência. pode ativar muito cedo, e de forma estereotipada, as
Nesse arranjo da identificação com o agressor, emoções e aptidões de um adulto – tal como ocorre
entendemos que o ego, mesmo submetido e com os “frutos que ficam maduros e saborosos
maltratado, é preservado em alguma medida – o que depressa demais, quando o bico de um pássaro os
facilita a intervenção clínica (Mendes, 2011). fere” (Ferenczi, 1933[1932]/2011, p. 119) – palavras
128 Mendes e França
que podem ser justapostas às de Kupermann (2008), conquistar a confiança do paciente, considerada o
quando fazendo reflexões clínicas, deduz que a elemento que “(...) estabelece o contraste entre o
prematuração é presente e um passado insuportável e traumatogênico.
Esse contraste é indispensável para que o passado seja
responsável pela destruição da sensibilidade reavivado, não enquanto reprodução alucinatória, mas
e pela incorporação de um saber alheio à como lembrança objetiva”. (Ferenczi,
produção de sentido por parte do sujeito, o 1933[1932]/2011, p. 114-115, grifo do autor)
que se pode reconhecer na pobreza erótica e
Ferenczi temia que a insensibilidade do analista,
no enfraquecimento da potência de fantasias
e de imaginar presente em muitos dos que camuflada sob a capa da neutralidade, pudesse
recorrem hoje à clínica, para os quais o peso empurrar o analisando em direção à reprodução do
do real é esmagador. (Kupermann, 2008, p. trauma na transferência, pois, ao se deparar com a
154-155) frieza do analista, a única saída seria a revivescência
do momento traumático – no qual a criança, por não
Mesmo que, nesse contexto de dor e solidão, a ter a quem recorrer, precisou clivar seu psiquismo para
saída encontrada pela criança seja tornar o agressor suportar o medo –, que se manifesta então como uma
intrapsíquico, seu medo diante da autoridade do adulto forte crise de angústia ou dissociação: “Não
continuará provocando a paralisação das reações surpreende que o paciente não possa fazer outra coisa
normais de repulsa ou resistência à agressão, senão repetir exatamente, como quando da instalação
impossibilitando a utilização de recurso a qualquer da doença, a formação dos sintomas desencadeados
tipo de defesa contra o desprazer. Culpada por haver por comoção psíquica." (Ferenczi, 1933[1932]/2011,
um dia desejado, está destinada ainda a introjetar o p.115).
sentimento de culpa de um adulto agressor, que Se esperamos que a revivescência do momento
demonstra negação e remorso. Visto que esta criança traumático conduza à ab-reação de uma grande
tem todas as razões para não confiar no adulto e para quantidade de afetos inconscientes, ajudando na cura
resistir a uma aliança terapêutica, como irá se dos sintomas, na experiência de Ferenczi com
posicionar diante do analista? Vejamos o que pacientes traumatizados esse processo não conduzia a
Ferenczi, com sua vasta experiência clínica, tem a um desfecho satisfatório, e sim, apenas a uma
ensinar sobre esse impasse analítico. repetição da cena traumática. Tal constatação o
impulsionou no caminho da implementação de
mudanças tanto em sua postura como analista quanto
MANEJO TÉCNICO COM PACIENTES VÍTIMAS na própria condução do tratamento. Com o objetivo de
DE VIOLÊNCIA SEXUAL levar seus pacientes a confiar novamente em um
adulto, Ferenczi passou a empenhar-se em uma atitude
Ao usar a técnica psicanalítica para tratar de casos empática, que pudesse diminuir as chances de uma
de pacientes que haviam sido molestados sexualmente retraumatização durante a análise. Na verdade, ao
em sua infância, Ferenczi logo compreendeu que por afirmar que o paciente severamente traumatizado, nos
trás da docilidade e da transferência positiva havia um momentos de crise, é “como uma criança que não é
estado de extrema passividade que os obrigava a mais sensível ao raciocínio mas, no máximo, à
permanecer submissos à sua autoridade e à dor que benevolência (Freundlichkeit) materna” (Ferenczi,
lhes era infligida pelo tratamento. A partir dessa 1933[1932]/2011, p. 115), Ferenczi insistia na
observação paradoxal, concluiu que estava lidando necessidade de que o analista mantivesse um contato
com psiquismos que funcionavam predominantemente emocional genuíno com o paciente regredido. Sua
através do mecanismo de clivagem e, apesar da conclusão foi que, com esse manejo técnico, os
transferência positiva e do empenho no tratamento, momentos de maior descontrole tinham sido atenuados
esses pacientes percebiam que cada sessão os e, mesmo que ainda ocorressem, não acarretavam mais
conduzia a sofrimentos intensos e, por causa disso, aos pacientes um desequilíbrio psíquico tão danoso
também sentiam ódio do analista. quanto antes.
Com a finalidade de interromper o ciclo de
submissão que constatou nesses pacientes, Ferenczi
apostou no estabelecimento de uma relação de UMA LEITURA PROVEITOSA
confiança no setting como componente fundamental.
Acreditava que somente a profunda autenticidade e a De nossa parte, após reunir essas contribuições de
abertura do analista à escuta das críticas e o Ferenczi para a temática da violência sexual infantil,
reconhecimento de seus próprios erros poderiam concluímos que suas teorizações possuem uma
Violência sexual em Ferenczi 129
Kupermann, D. (2009). Introjeção, corpo erógeno e simbolização. Uchitel, M. (2001). Neurose traumática. São Paulo: Casa do
Memória da psicanálise: Ferenczi, a ética do cuidado, São Paulo: Psicólogo.
Duetto, 3, 31-35.
Laplanche, J. & Pontalis, J-B. (1975). Vocabulário da psicanálise. 2ª
ed. Santos: Martins Fontes.
Mendes, A. P. (2011). A identificação com o agressor: interfaces
conceituais e suas implicações para o estudo da violência sexual
infantil. Dissertação de Mestrado, Departamento de Psicologia da Recebido em 30/10/2011
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Aceito em 01/05/2012
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
Pinheiro, T. (1995). Ferenczi: do grito à palavra. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor/ Editora UFRJ.
Endereço para correspondência: Anna Paula Njaime Mendes. Av. Augusto de Lima, 444/apto 506 – Centro, CEP 30190-001,
Belo Horizonte-MG, Brasil. E-mail: annanjm@gmail.com.