36 36 PB

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 476

HISTÓRIA DA MAIO-AGO. 2020 V.

13
33

HISTÓRIA DA
HISTORIOGRAFIA
International Journal of Theory and History of Historiography

ISSN 1983-9928 Revista Eletrônica Quadrimestral


Expediente

EXPEDIENTE
EDITOR CHEFE
Temístocles Cezar (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)

EDITORES EXECUTIVOS
Ana Carolina Barbosa Pereira (UFBA . Salvador . BA . Brasil)
Ewa Domanska (AMU . Poznan . Polônia)
João Rodolfo Munhoz Ohara (UFRJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Luisa Rauter Pereira (UFOP . Mariana . MG . Brasil)
Mateus Henrique Faria Pereira (UFOP . Mariana . MG . Brasil)
Omar Acha (UBA . Buenos Aires . Argentina)

CONSELHO EDITORIAL
Alejandro Eujanian (UNR . Rosário . Argentina)
Arthur Alfaix Assis (UnB . Brasília . DF . Brasil)
Arthur Lima de Àvila (UFRGS . Porto Alegre . RS. Brasil)
Claudia Beltrão (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Durval Muniz de Albuquerque (UFRN . Natal . RN . Brasil)
Fabio Wasserman (UBA . Buenos Aires . Argentina)
Fábio Franzini (UNIFESP . Guarulhos . SP . Brasil)
Fernando Nicolazzi (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)
Flávia Florentino Varella (UFSC . Florianópolis . SC . Brasil)
Helena Mollo (UFOP . Mariana . MG . Brasil)
Julio Bentivoglio (UFES . Vitória . ES . Brasil)
Lucia Maria Paschoal Guimarães (UERJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Pedro Meira Monteiro (Princeton University . Princeton . Estados Unidos)
Pedro Spinola Pereira Caldas (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Raquel Glezer (USP . São Paulo . SP . Brasil)
Rebeca Gontijo (UFRRJ . Seropédica . RJ . Brasil)
Ricardo Salles (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Rodrigo Turin (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Sérgio da Mata (UFOP . Mariana . MG . Brasil)
Tiago C. P. dos Reis Miranda (Universidade de Évora . Évora . Portugal)
Valdei Lopes de Araujo (UFOP . Mariana . MG . Brasil)

3 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


Expediente

CONSELHO CONSULTIVO
Astor Diehl (UPF . Passo Fundo . RS . Brasil)
Carlos Fico (UFRJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Carlos Oiti (UFG . Goiás . GO . Brasil)
Cássio Fernandes (UNIFESP . Guarulhos . SP . Brasil)
Chris Lorenz (VU University Amsterdam . Amsterdã . Holanda)
Denis Bernardes - in memoriam (UFPE . Recife . PE . Brasil)
Edgar De Decca - in memoriam (UNICAMP . Campinas . SP . Brasil)
Eliana Dutra (UFMG . Belo Horizonte . MG . Brasil)
Estevão de Rezende Martins (UnB . Brasília . DF . Brasil)
Ewa Domanska (Adam Mickiewicz University . Poznañ . Polônia)
Fernando Catroga (Universidade de Coimbra . Coimbra . Portugal)
Francisco Murari Pires (USP . São Paulo . SP . Brasil)
François Hartog (EHESS . Paris . França)
Frederico de Castro Neves (UFC . Fortaleza . CE . Brasil)
Guillermo Zermeño Padilla (Colegio del México . Cidade do México . México)
Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University . Stanford . Estados Unidos)
Hayden White - in memoriam(Stanford University . Stanford . Estados Unidos)
Iris Kantor (USP . São Paulo . SP . Brasil)
José Carlos Reis (UFMG . Belo Horizonte . MG . Brasil)
Jörn Rüsen (KI/ UWH . Witten . Alemanha)
Jurandir Malerba (PUC-RS . Porto Alegre . RS . Brasil)
Keila Grinberg (UNIRIO . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Luiz Costa Lima (PUC-Rio . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Manoel Salgado Guimarães - in memoriam (UFRJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Marco Morel (UERJ . Rio de Janeiro . RJ . Brasil)
Marlon Salomon (UFG . Goiânia . GO . Brasil)
Pascal Payen (Université de Toulouse II - Le Mirail . Toulouse . França)
Sanjay Seth (University of London . Londres . Reino Unido)
Sérgio Campos Matos (Universidade de Lisboa . Lisboa . Portugal)
Silvia Petersen (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)

EDITOR ASSISTENTE
Marcos Eduardo de Sousa (UFOP . Mariana . MG . Brasil)

4 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


Expediente

EDITORES COLABORADORES
Francisca Dávila de Oliveira (UFOP . Mariana . MG . Brasil)
Mayra de Souza Marques (UFOP . Mariana . MG . Brasil)
Renan Siqueira Moraes (UFOP . Mariana . MG . Brasil)
Tiago da Costa Guterres (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)

SECRETARIA
Aguinaldo Medeiros Boldrini (UFOP . Mariana . MG . Brasil)

REVISÃO DE LÍNGUA PORTUGUESA


Luiz Antônio dos Prazeres

REVISÃO DE LÍNGUA INGLESA


Tikinet Edição

REVISÃO DE LÍNGUA ESPANHOLA


Carina de C. Álvarez

DIAGRAMAÇÃO
Marcos Eduardo de Sousa (UFOP . Mariana . MG . Brasil)

REALIZAÇÃO
Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH)

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal


do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal


de Ouro Preto (UFOP)

5 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


Expediente

APOIO
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG)
Programa de Pós-graduação em História - UFRGS

CONTATO
Rua do Seminário, s/n - Centro Mariana - MG
35420-000| Brasil
http://www.historiadahistoriografia.com.br
historiadahistoriografia@hotmail.com
Telefone: (31) 3557-9400

MISSÃO
A História da Historiografia é um periódico interinstitucional
patrocinado pelos Programas de Pós-graduação em História da
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) e da Universidade Federal do
Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), coordenada pela Sociedade Brasileira
de Teoria e História da Historiografia (SBTHH). Sua publicação se insere
no âmbito de grupos e núcleos de pesquisa de Universidades brasileiras e
estrangeiras das áreas de teoria da História e história da historiografia. A
revista tem como missão a divulgação do conhecimento das áreas de teoria
da História, história da historiografia e outras afins no intuito de fomentar
o intercâmbio de ideias e resultados de pesquisas entre investigadores
dessas áreas correlatas, através da publicação de artigos inéditos que,
após o processo de avaliação editorial, sejam considerados relevantes às
discussões de tais campos. Além de pesquisas originais, incentiva-se a
produção de artigos de debate historiográfico que resenhem criticamente
publicações recentes pertinentes aos temas relacionados com as áreas de
conhecimento que configuram o escopo da publicação. A linha editorial da
HH, desta forma, almeja a constituição de um espaço de livre acesso para
o debate acadêmico por meio de publicações relacionadas à área.

6 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


Expediente

FICHA CATALOGRÁFICA
História da Historiografia. Ouro Preto - International Journal of
Theory and History of Historiography / Edufop, 2020, volume 13,
número 33, Maio-Ago., 2020, 476 p.

Quadrimestral ISSN 1983-9928

1. História - Periódicos CDU 930(05)

7 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


Expediente

EDITORIAL EDITORIAL
Conhecimento e comunicação histórica: novos
desafios na crise atual
Luisa Rauter Pereira 13

DOSSIÊ DOSSIER
Decolonizar a historiografia medieval: Introdução
à ‘História da Historiografia Medieval - Novas
Abordagens’
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna,
Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo 19
É possível uma história da historiografia medieval?
Rodrigo Prates de Andrade 39
Performances do passado: drama social e conceito
de história nos últimos anos de Alfonso X de Castela
(1272-1284)
Rodrigo Bragio Bonaldo 59
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?
A reflection on how to decolonize the Middle Ages
through the theory of Medievalism
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira
Amaral 97
Jacopo Gaetano Stefaneschi: um cardeal-historiador
entre os séculos XIII e XIV
Igor Salomão Teixeira 131

8 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


Expediente

A literatura mística feminina e a escrita da História na


Baixa Idade Média ocidental: entre biografia, memória
e relato social
André Luis Pereira Miatello 163
History and Historiography in Early Christian Ireland
- Muirchú’s ‘Vita Patricii’ and Tírechán’s ‘Collectanea’
Dominique Santos 197
Historiography at the Crossroads: Eschatological
Expectations, Biblical Exegesis, and Astronomical
Cycles in the times of Charlemagne
Dmitri Starostin 229

ARTIGOS ARTICLES
Historia del tiempo presente: la triple frontera entre
pasado, presente y futuro. Un análisis desde la historia
oral y los marcos normativos
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón 273
Un grano de arena en la inmensidad del mar: lo que
puede aportar la historia a la elaboración de pasados
traumáticos
Florencia Levín 309
La historia universal de Cesare Cantú en América
Latina
Hernán G. H. Taboada 341
Tirano, louco e incendiário: BolsoNero. Análise da
constituição da assimilação entre o Presidente da
República do Brasil e o Imperador Romano como
allelopoiesis
Fabio Faversani 375

9 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


Expediente

Entre a tradição e a inovação: o IHGB e a escrita


biográfica nas primeiras décadas republicanas
Alexandre de Sá Avelar 397
Filosofia da existência, existencialismo e o problema
do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur
Breno Mendes 431

NORMAS DE PUBLICAÇÃO 467


EDITORIAL GUIDELINES

10 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928


HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG
HISTORIOGRAFIA

Conhecimento e comunicação histórica: novos


desafios na crise atual
A crise sanitária confinou em variados graus grande
parte da população mundial em casa, limitando as interações
presenciais ao nível mínimo. Mesmo em países como o Brasil,
em que a gestão desastrosa da situação não permitiu um
isolamento social forte e consequente, o medo do contágio
interferiu nas relações interpessoais de forma inédita.
Esse movimento vem consolidando o lugar das redes sociais
como um ambiente ainda mais vital de interação social,
de ensino e aprendizado, produção e circulação de informação e
conhecimento. Essa situação veio associar-se a um movimento
recente, mas, anterior, de virtualização do debate político, em
que as extremas direitas até então têm sido hegemônicas.
Pautas abertamente antidemocráticas, agregadas à produção
em massa de fakenews e negacionismos têm “viralizado” de
forma inédita nas redes, formando um caldo de opinião que
tem posto em cheque o mundo democrático, suas instituições,
suas formas de vida e também de produção de conhecimento.
Em resposta a tal conjuntura, grupos diversos da sociedade
civil têm feito, nos últimos anos, um intenso movimento
de intervenção no debate público virtual, o que, neste
momento, parece mostrar seus primeiros sinais de sucesso.
Nesse esforço, o papel da comunidade acadêmica e, em
especial, da área de História tem se feito presente.

A conjuntura da pandemia do Coronavírus associada


à ascensão das extremas direitas vem contribuindo
decisivamente para a relativização de certezas em torno de
determinados formatos de apresentação e comunicação
que ainda mantinham o saber histórico disciplinar dentro de
uma relativa, porém já enfraquecida, zona de conforto. O
artigo acadêmico, o livro, o capítulo, a aula, a conferência, o
simpósio temático parecem ceder algum espaço para novos
formatos e linguagens, como a live, a aula virtual, o vídeo,
o blog, o Podcast, o livro de divulgação científica e o texto

13 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p.13-17 - DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1670
Editorial

de intervenção ocasional no debate público. Se, inicialmente,


estavam sendo produzidos, muitas vezes por “leigos”, em
especial por jornalistas, hoje vemos os historiadores ampliando
sua intervenção nesses novos campos. Duas preocupações
associadas parecem crescer entre a comunidade acadêmica
de historiadores neste momento: a necessidade de incorporar
decisivamente o ambiente virtual às suas práticas de produção
e comunicação do saber histórico; e uma profunda mudança da
linguagem em uso pelos praticantes da disciplina, o que impõe
um novo processo de letramento para muitos historiadores
acostumados a falar quase que exclusivamente a seus pares.
A preocupação com a acessibilidade da comunicação
do saber histórico, bem como a abertura para o debate
com a comunidade têm se destacado nos últimos
anos e se intensificado nestes meses de pandemia.
Paralelamente, vemos uma movimentação das revistas
acadêmicas da área buscando associar o formato “artigo
acadêmico” a outras formas de produção, circulação e
apresentação do saber histórico, adequadas à cultura virtual,
que, a propósito têm revelado um grande interesse pela história.

Vemos hoje a aceleração exponencial de uma tendência


verificada nas últimas décadas do século XX. Trata-se de mais
um capítulo do processo de questionamento de demarcações
basilares da disciplina histórica, tanto em seus protocolos de
conhecimento como de comunicação do saber. A naturalidade
da separação entre passado e presente, e do processo inevitável
de “esfriamento” do passado, tornado assim disponível para o
manejo da ciência histórica, já vinha desde as últimas décadas do
século XX sendo desconstruída. Os passados-presentes, frutos
de experiência traumáticas e feridas históricas, mostraram
sua resistência a se encaixar em tais pressupostos, impondo
um contundente realinhamento disciplinar. Não apenas os
pressupostos epistemológicos, mas também de apresentação,
difusão e popularização da história vinham sendo renovadas,
evidenciando o fato de que o elemento estético e ficcional e as
variadas linguagens, não são acessórios, mas parte substancial

14 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p.13-17 - DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1670
Editorial

da prática historiográfica democratizada. Percebeu-se a relativa


inadequação das formas tradicionais de escrita da história
pautadas no distanciamento analítico para a comunicação
dos passados traumáticos frutos do testemunho de sujeitos
históricos antes marginalizados e silenciados.

Tal movimento de democratização do saber histórico


ganha agora novas camadas neste momento de profunda
crise global. No instante do perigo, em que a democracia e
a ciência encontram-se sob bombardeio de forças claramente
reacionárias e violentas, vemos erguer-se na sociedade um
movimento de defesa de instituições e formas de vida próprios
da democracia. Uma delas é a ciência. Se fora indispensável
até aqui desconstruir a pretensão de neutralidade do discurso
científico, e, em particular, do discurso histórico, evidenciando
sua circunscrição epistêmica, social e política – crítica primordial
para a construção democrática na segunda metade do século
XX – hoje, vemos a necessidade da defesa de determinados
princípios salutares do discurso científico. Os acordos
partilhados de construção da verdade factual, o processo da
pesquisa, a necessidade da prova, da verificação de dados,
a avaliação pública de resultados e, sobretudo, a constante
vigilância reflexiva sobre os preconceitos sedimentados que
possam atuar indevidamente sobre o conhecimento, revelam,
ainda mais claramente, sua importância num contexto em
que as fakenews e os negacionismos mais abjetos ganham
adeptos raivosos no debate público. Se, por um lado, a ciência
foi usada inegavelmente como discurso legitimador do racismo
e da opressão, há elementos saudáveis da prática científica
que são fundamentais para a manutenção de uma sociedade
democrática que precisam ser defendidos abertamente
hoje. Um certo controle crítico, nos termos da democracia
sobre as proposições que são veiculadas ao público como
“verdades”, vem sendo cada vez mais assumido como tarefa
do campo das humanidades. O combate a negacionismos,
caracterizados, não apenas pela negação propriamente
dita de fatos históricos, mas por generalizações indevidas,

15 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p.13-17 - DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1670
Editorial

usos descontextualizados e tendenciosos de informações


históricas com o objetivo único de revestir preconceitos
arraigados de uma aparência de legitimidade, são hoje uma
das tarefas fundamentais do historiador e do cientista social.
Tal combate pela ciência e pela democracia pelos praticantes
das humanidades, se dá hoje de forma indissociada do uso
competente das ferramentas oferecidas pelas tecnologias
contemporâneas de comunicação. A comunidade de
historiadores e historiadoras compreende a centralidade
do ambiente virtual no debate público e se esforça por
encontrar aí suas próprias maneiras de intervenção.
Fazer história, participar do debate público, presencial e
virtual, defender a democracia e seu aprofundamento são hoje
elementos indissociáveis.

As revistas acadêmicas de excelência do campo das


Humanidades têm buscado participar e contribuir para mais essa
etapa de transformação do campo. Além do aperfeiçoamento
dos formatos tradicionais de publicação – o artigo, o dossiê, a
resenha, a tradução – e da ampliação do leque de indexadores
a que a revista se vincula, a História da Historiografia ampliou
recentemente seu campo de atuação editorial com dois projetos
conjugados, o Portal de Humanidades HHMagazine e o Podcast
Historiar. O HHMagazine, coordenado pela historiadora Thamara
de Oliveira Rodrigues, professora da Universidade do Estado de
Minas Gerais, publica textos curtos de intervenção, ensaios,
resenhas, poesias, contos e outros formatos de mídia. Embora
não exclusivamente, o projeto divulga produções em teoria da
história e história da historiografia, muitos deles associados
diretamente às produções da revista. Desse modo, o portal tem
sido um importante veículo para que as ferramentas teóricas
desenvolvidas por nosso campo sejam postas em movimento,
para pensar os desafios do mundo atual. Uma função correlata
do portal é divulgação dos dossiês e artigos publicados pela
História da Historiografia nas redes, contribuindo para a
popularização desta produção científica.

16 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p.13-17 - DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1670
Editorial

No mesmo espírito, o Podcast Historiar, coordenado por


mim em parceria com a aluna de graduação em História na
UFOP, Larissa Vitória Ivo, e com a professora Helena Azevedo
Paulo de Almeida, se dedica a ampliar a visibilidade à produção
acadêmica publicada em nossa revista. Buscando traduzir
pesquisas acadêmicas para a linguagem própria do Podcast,
isto é, acessível a um público que ultrapassa o dos especialistas,
convidamos os autores de cada número para apresentar seus
trabalhos. Estamos ampliando o escopo do projeto em direção à
inclusão de entrevistas sobre temas contemporâneos diversos
vistos sobre a ótica das áreas da teoria da história e da história da
historiografia, e sobre teses e livros recentemente publicados.
Vale ressaltar que estamos em busca de financiamento para
que o Podcast se profissionalize cada vez mais. O Podcast tem
se firmado muito recentemente no Brasil e no mundo como
um ágil e acessível veículo de mídia com grande potencial de
crescimento, em especial, no campo da divulgação científica e
da História Pública. A Revista História da Historiografia avista,
nesses projetos, uma importante frente de atuação editorial
associada ao essencial trabalho de publicação dos formatos
habituais de textos acadêmicos, aos quais dedicamos grande
parte de nossos esforços. Oferecemos, assim, ao público nossa
contribuição para o fortalecimento da ciência, da universidade
pública e da democracia no Brasil.

Luisa Rauter Pereira

Ouro Preto, julho de 2020.

Luisa Rauter Pereira


lurauterp@gmail.com
Universidade Federal de Ouro Preto
Departamento de História
Programa de Pós-Graduação em História
Mariana
Minas Gerais
Brasil

17 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p.13-17 - DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1670
DOSSIÊ
DOSSIER
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Decolonizar a historiografia medieval:


Introdução à ‘História da Historiografia Medieval -
Novas Abordagens’
Decolonizing medieval historiography:
Introduction to ‘History of Medieval Historiography: New
Approaches’
Coordenadores:
Khodadad Rezakhani
https://orcid.org/0000-0001-5718-5104

Luciano José Vianna


https://orcid.org/0000-0001-7355-7609

Otávio Luiz Vieira Pinto


https://orcid.org/0000-0001-5628-3263

Rodrigo Bragio Bonaldo


https://orcid.org/0000-0002-3938-5169

“Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem


moderno de ter plena consciência da historicidade de todo
presente e da relatividade de toda opinião.”
Hans-Georg Gadamer, 1963

“Há muito tempo acredito que as formas medievais e pós-


modernas de consciência histórica são similares, de modo que
a narrativa fundamental da ruptura modernista com o passado
medieval encontra pouco crédito e que, em realidade, é o
modernismo que representa o momento estranho da concepção
ocidental de história”.
Gabrielle Spiegel, 2016

“Os passados subalternos são indicações dessa fronteira


[temporal]. Com eles atingimos os limites do discurso da
história. A razão de ser disto reside, como afirmei, no facto
de os passados subalternos não fornecerem ao historiador um
princípio de narração que possa ser racionalmente defendido
na vida pública moderna”
Dipesh Chakrabarty, 2000

19 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

Nossa relação com o período medieval é ambígua. Por


vezes, a Idade Média é negada, distante e estrangeira. Por
outras, é muito próxima, senão presente, um passado vivo
que nunca se furta aos mais criativos usos. Dentro dessa
oscilação entre identidade e alteridade, nesse jogo entre a
imagem de uma “origem” e o papel de um “outro ausente”,
alguns desejam conhecê-la, outros querem sê-la (SPIEGEL
1997, p. 59; ANKERSMIT 2005, p. 327; CHAKRABARTY
2005, p. 227). O passado, afinal, não costuma aflorar sem
a agência humana. Para tanto, é preciso que se organize, na
esteira das políticas do tempo, toda uma série de “práticas
de sincronização” (JORDHEIM 2014). As mais vulgares dessas
práticas utilizam o procedimento clássico dos paralelos:
vociferam Deus Vult e inundam a internet com releituras da
“descoberta” do Brasil no âmbito de uma “Última Cruzada”
(PACHÁ 2019; LANZIERI JÚNIOR 2019; COELHO; BELCHIOR
2020). As mais sofisticadas argumentam sobre a permanência
de estruturas de longa duração, relegando-nos, ainda assim,
à condição de débito eterno para com a Europa. Outras
perspectivas abrem contra as primeiras um combate de
morte, e em seu lugar performam os símbolos dos excluídos,
das bruxas em luta e dos camponeses em jacquerie.
Nelas, alegorias mobilizadas pelos feminismos decoloniais
chegam a questionar as consequências políticas da própria
sincronização (Cf. OLIVEIRA 2020). No centro dessas
tensões, e tentando atravessar tais fenômenos como
problemas históricos, estão os dois sentidos tradicionalmente
atribuídos ao termo historiografia: o estudo da escrita da história
pelos medievais, interessado pela pesquisa de um conjunto
limitado de fontes narrativas que permitam a problematização
de uma “operação historiográfica” êmica; e os estudos
historiográficos que discutem modelos interpretativos, fazem
análises de recepções, identificam apropriações, registram
efeitos e simultaneidades entre tempos heterogêneos,
chegando a denunciar usos e abusos ético-políticos que
da Idade Média são feitos desde o mundo contemporâneo
(GUENÉE 1980, p. 11-12). Em suma, continuamos a
encontrar o presente no passado e o passado no presente.

20 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

As contribuições apresentadas neste número da revista História


da Historiografia evidenciam e entrelaçam esses dois planos da
experiência do tempo.

Em nosso país, a história da historiografia, como


subdisciplina acadêmica, preocupou-se, sobretudo, com a
formação da historiografia moderna. Sua vertiginosa ascensão
foi acompanhada por um olhar que não raramente deslizou
dos antigos aos modernos, deixando de lembrar que a querela,
ela mesma, nasceu de um topos medieval (MATEUS 2013).
Isso talvez tenha ocorrido porque a “memória disciplinar”
(GUIMARÃES 2003; TURIN 2013) encontrou dificuldades em
acessar correlatos da escrita da história, para não falar de
figurações do historiador, no período medieval. A sensibilidade
histórica moderna foi alimentada por uma epistemologia
realista, a qual tendia a julgar a verdade do conhecimento
desde a eficiência técnica de sua enunciação. Assim, passou a
limitar o depósito da fé em “duas fontes possíveis: a memória
e a evidência” (DE CERTEAU 1981, p. 370). Criou um código
para o qual muito da escrita da história medieval encontraria
difícil tradução. Caracterizados pela convergência entre o que
iríamos chamar de realidade e ficção, os gêneros literários
compósitos que davam conta de narrar os acontecimentos na
Idade Média seriam recebidos com crescente estranhamento
na medida em que a História se disciplinava (AURELL 2013,
p. 97-106). Investidos por uma tradição compilatória alheia
às características da função autoral contemporânea (CHENU
1927 p. 81-86; TEEUWEN 2003, p. 222-223; AURELL 2012, p.
155-175), aliados ainda a uma particular exemplaridade desde
a qual o passado administrava relação tipológica direta com
os eventos contemporâneos (SPIEGEL 1997, p. 92), os modos
de fazer crer próprios à historiografia medieval receberam da
modernidade global os signos nada provectos de uma identidade
exótica, confusa e irracional.

Consequentemente, não é raro que o problema da


experiência do tempo na Idade Média seja até hoje “resolvido”
por algumas menções a Agostinho. Por sua vez, se a história

21 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

da historiografia (quase) alienou a Idade Média, dada a forma


particular como os domínios da História se organizam no Brasil,
os estudos medievais terminaram por se deslocar parcialmente
do diálogo com abordagens teoricamente orientadas. A obscura
relação que passou a cercar nossas percepções a respeito
da historiografia medieval é testemunha desse não diálogo
que tornou ainda mais atrativo a uma subdisciplina centrada
na modernidade operar graves esquecimentos. Raramente
lembramos que Hayden White começou sua carreira como
medievalista (PAUL 2008). É conveniente esquecer que a
história dos conceitos surge desde a necessidade de imprimir
fidelidade ao exame dos universos conceituais medievais
(BRUNNER 1992). Apenas muito recentemente assistimos ao
primeiro comentário nacional sobre o quanto o desdobramento
da virada linguística em uma história da historiografia
teoricamente orientada, atenta às metanarrativas e ao exame
de unidades de sentido metonímicas, deve à análise dos
complexos modos de significação elaborados nas crônicas e
histórias eclesiásticas (ANHEZINI 2019; Cf. SPIEGEL 1997).
Deixamos de lado que os estudos de performance, saudados
como uma alternativa ao esgotamento dessa mesma virada
linguística (DOMANSKA 2011), têm origens ligadas à análise
de sagas islandesas (TURNER 1971).

Além das menções supracitadas, recordemos os nomes


mais presentes de Marc Bloch e Jacques Le Goff, mestres de
uma nova história, para formalizar um argumento de partida: o
período medieval atuou no último século como um dos grandes
laboratórios para a inovação teórico-metodológica na escrita da
história. Chegou a ser saudado como uma espécie de “carro-
chefe da historiografia contemporânea”, pois tomou a frente
propondo temas, métodos, conceitos e diálogos com outras
ciências humanas (FRANCO JÚNIOR 2001, p. 14). Sustentamos,
em contrapartida, que existe muito a resgatar e construir em um
diálogo mutuamente frutífero entre os estudos medievais e a
história da historiografia. Os artigos aqui reunidos são evidência
de que a criatividade e a diversidade dos estudos de história
da historiografia medieval nunca foram tão robustas. Neles,

22 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

abordagens teoricamente orientadas convivem com estudos de


profunda erudição e análise das fontes. Em todos observamos
o esforço em tensionar os limites do conceito de história, de
forma a abarcar expressões de experiências do tempo não
redutíveis às sensibilidades nem instruídas pelos conceitos-
chave da modernidade. Ademais, o conjunto dos artigos aqui
apresentados fazem referência, em sua constituição, a algumas
das características da operação historiográfica na Idade Média,
as quais foram apresentadas através de publicações de autores
que são referência neste campo de estudos (AURELL 2005;
AURELL 2006; AURELL 2013, p. 95-142; AURELL 2016; SPIEGEL
1975; SPIEGEL 1983; SPIEGEL 1990; SPIEGEL 1995).

As contribuições apresentadas ultrapassam, ainda, os três


momentos da sensibilidade histórica expressos nas epígrafes
que selecionamos. Com Gadamer, assistimos à captura precisa
da experiência moderna, captura que ocorre no instante em
que essa mesma tradição ocidental, no pós-guerra, passa a ser
questionada, possibilitando que a consciência histórica pudesse
dimensionar os efeitos do passado. Com Gabrielle Spiegel,
o relato de um momento pós-moderno faz a historiadora
ocidental se reconhecer no espelho de um passado cujo
reflexo fora ofuscado pela luz da razão instrumental. Por fim,
com Chakrabarty, em capítulo que dialoga diretamente com
a imaginação histórica medieval e seus efeitos no presente,
temos o reconhecimento do outro com o outro, a solidariedade
entre passados subalternos, do Sul Global com a Europa pré-
iluminista. Esse é nosso segundo argumento: asserção que
se abre ao momento no qual nos encontramos, um momento
no qual demandas sociais pela decolonização das formas de
pensar são exacerbadas como efeito de políticas de ações
afirmativas nas universidades brasileiras. Um momento no
qual pululam propostas de uma “história (in)disciplinada”
(AVILA; NICOLAZZI; TURIN 2019), no qual abordagens que nos
preparam para um “futuro sem precedentes” (SIMON 2019)
parecem cada vez mais urgentes. Como é urgente, também,
que valorizemos não apenas a representatividade espacial da
América Latina nas narrativas cada vez mais globais da história,

23 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

mas, igualmente, sua projeção teórica e cognitiva sobre outros


espaços, manifesta pela aplicação de inovações metodológicas
e conceituais desenvolvidas desde o continente sul-americano
(GRECCO; SCHUSTER 2020, 429). É desse modo que o potencial
disruptivo de uma historiografia medieval analisada desde o
Sul Global tem em disputar, decolonizar e dissociar o passado
dos medievais de identidades atualmente hegemônicas torna-
se sedutor demais para ser ignorado (Cf. SILVEIRA 2019).

Hoje entendemos os estudos medievais como uma


heterologia. Sabemos que, nesse período, a Europa era uma das
mais remotas províncias do mundo. E que as histórias, crônicas,
livros de feitos e genealogias que desse tempo restaram seriam
investidos, ao longo do processo de esclarecimento, do estatuto
de registros subalternos, expulsos para os “limites do discurso da
história”, incapazes como eram de oferecer à ciência da história
qualquer “princípio de narração que possa ser racionalmente
defendido na vida pública moderna” (CHAKRABARTY 2005, p.
227). Reconhecemos que a historiografia medieval é o grande
Outro da historiografia disciplinada. É objetivo deste dossiê,
no entanto, sugerir que esse fato, paradoxalmente, talvez
nos coloque muito próximo dela (Cf. SPIEGEL 2016, p. 21;
AURELL 2016, p. 143-156). Pois antropologizar e historicizar,
para seguir o argumento de Chakrabarty, é apenas metade do
caminho. De fato, para exercitar tais operações, precisamos
antes reconhecer que passados subalternos – como aqueles
representados pela escrita da história medieval – nos oferecem
possibilidades à compreensão de nosso próprio presente.

O questionamento da identidade da escrita da história


medieval como negação determinada da historiografia disciplinar
é precisamente o tema abordado pelo artigo de Rodrigo Prates
de Andrade. Em diálogo com Jean-Claude Schmitt, Justin Lake,
Bernard Guenée e Alain Guerreau, o autor assinala as dificuldades
que categorias cognitivas modernas têm em compreender a
Idade Média. A partir daí, o texto estrutura seus argumentos
desde o chamado “giro antropológico” nos estudos medievais.
Esse deslocamento permite ao autor identificar, de forma

24 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

experimental, o pré-moderno com o não ocidental. O resultado


é a formulação de um argumento que entende o eurocentrismo
não apenas como uma questão de posicionalidade espacial.
Categoria espaço-temporal, ele configura, para além da
representatividade, formas de conhecer e produzir mundos.
Dessa maneira, a questão central a respeito da possibilidade de
uma história da historiografia medieval se volta rumo ao estudo
dos modos de historicização próprios às tradições medievais de
raciocínio (SETH 2013). Modos plurais que – em diálogo entre a
história do conceito de história com o pensamento pós-colonial,
Prates considera não redutíveis às expectativas estabelecidas
pela sensibilidade histórica moderna.

O debate sobre a pertinência de reunirmos certos gêneros


literários medievais sob a nomenclatura historiográfica
aparece em outra contribuição do presente dossiê, dessa vez
aplicada a um estudo de caso. O artigo de Rodrigo Bonaldo
problematiza o conceito de história na obra de Alfonso X,
em virtude das apresentações corporais das histórias nas
cortes do Rei Sábio. Para isso, mobiliza um diálogo entre a
história dos conceitos e os estudos de performance, cruzando
a análise das Estorias alfonsinas com a leitura de fontes que
legislavam sobre a maneira correta de apresentá-las. O autor
compreende a noção de performance em dois planos: no âmbito
microanalítico, remete-a à tensão criativa entre rituais e jogos
cortesãos; no âmbito macropolítico, faz menção ao processo
de guerra civil que se estabelece ao longo do recorte temporal
assinalado (1272-1284). A partir da noção de “drama social”,
emprestada da antropologia, Bonaldo entende as reuniões
bianuais das cortes como momentos liminares dentro dos
quais a performance das Estorias era projetada como veículo
de conciliação simbólico-afetiva e reestruturação da ordem do
tempo. Constituindo um clima de imersão e de produção de
efeitos de presença do passado, essas performances abrem-se
à disputa e negociação de sentidos conceituais estratificados
em tempos “não simultâneos”. Essa tarefa de sincronização
do não simultâneo ajuda não apenas a compreender a
racionalidade do “anacronismo” das fontes como também

25 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

indica que – nesses momentos liminares de mudança social,


operam-se igualmente mudanças conceituais que alimentavam
cognitivamente a realidade política. Se o conceito de história
não se fazia central na Idade Média, o artigo termina sugerindo
que o papel político da contagem das histórias talvez ainda
esteja sendo subestimado pela história da historiografia.

Tão longe, tão perto: o contraste entre perspectivas que


se aproximam e se afastam do período medieval talvez seja
tão antigo quanto a invenção, ainda no século XIV, do próprio
conceito de Idade Média. É esse o percurso crítico seguido
por Maria Eugenia Bertarelli e Clínio de Oliveira Amaral. Seu
texto reconhece essas duas formas de se abordar o passado
medieval, mas vai além, assumindo uma postura crítica à
tese da “longa Idade Média” importada às américas através
de trabalhos recentes. Segundo o artigo, a transposição do
argumento de uma longa Idade Média para nosso continente
teria como epifenômeno ressaltar a permanência de estruturas
europeias em nossa identidade. Isso tornaria as sociedades
americanas herdeiras incontestes do Velho Mundo. Promoveria
uma espécie de colonização do imaginário por meio de
representações do passado em um momento no qual grupos
de ódio usam politicamente a Idade Média nesse mesmo
sentido. Seguindo a chamada “teoria do Medievalismo”,
Bertarelli e Amaral propõem, em compensação, não o estudo
de “reminiscências medievais”, mas a análise de processos de
invenção, recriação e apropriação do passado que tem nas
disputas ideológicas do tempo presente seu referente mais
concreto. O objetivo do artigo não poderia ser mais pertinente
a este dossiê: decolonizar a Idade Média.

Com a contribuição de Igor Salomão Teixeira, passamos


da análise de passados presentes ao exame erudito de fontes
medievais desde suas características historiográficas. O artigo
apresenta Jacopo Gaetano Stefaneschi (1260-1343) como um
“cardeal-historiador” e analisa os textos De centesimo seu
Iubileo anno liber e o Liber Cerimoniarum Curiae Romane.
A partir do registro do Jubileu de 1300 e da descrição de

26 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

cerimoniais litúrgicos, Teixeira questiona os métodos do


cardeal. Entende-os a partir da inserção de Stefaneschi nas
redes de sociabilidade da corte papal, também com a familia
cardinalis, relações que abriam ao clérigo a possibilidade de
ver por si mesmo os acontecimentos que registrava. Ao inserir
a pesquisa dentro do universo de estudos recentes, Teixeira
não deixa de ressaltar sua originalidade: mergulhar na obra
de um personagem cuja produção textual se destacava em
comparação com outros cardeais de sua época (em sua
excepcionalidade como historiador) é oferecer luz a respeito
da atuação dos cardeais em um momento chave da história da
Igreja. Mas pensar as fontes como historiografia traz desafios
que começam aquém da figuração do historiador. A escrita da
história na Idade Média, alerta Igor Salomão Teixeira, é difusa,
espalhada por diferentes gêneros, o que nos traz a necessidade
de atentar a um amplo universo de textos e de práticas.

A família dos cardeais, comunidade doméstica que faz


companhia aos papas, mais do que qualquer família, é
fundamentalmente patriarcal. Pensar modulações da escrita
feminina da história dispersa nos gêneros literários medievais,
em contrapartida, é o desafio encarado por André Luis Pereira
Miatello. Com uma prosa leve e ritmada, o autor ressalta o
bom número de escritoras de história no período, ao lado
da presença de scriptoria e centros de circulação livreira nos
conventos. Seu objeto, no entanto, é mais específico e original.
Busca estudar, a partir de duas obras, a Vida de la Benaurada
Sancta Doucelina mayre de las Donnas de Robaut e o Liber
Lelle, de que maneira a linguagem mística instigou novas
formas de narração histórica. Mais do que isso: apresenta
evidências de como a mística e sua escrita foram veículos do
protagonismo feminino no mundo das letras ocidentais a partir
do século XIII. Miatello destaca as relações entre os gêneros
biográficos e autobiográficos que marcam suas duas fontes e
os critérios de veracidade da historiografia, demonstrando, a
partir das trocas com os relatos místicos, o caráter compósito,
diversificado e inovador da escrita da história medieval e de
suas autoras.

27 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

É possível que algumas generalizações didáticas tenham


um papel silenciador na história da historiografia. A história
entre os gregos como organizada em ciclos; a historiografia
romana limitada ao topos de mestra da vida; a oitocentista
como unicamente centrada na nação: essas linhas gerais são
responsáveis por constituir um padrão que, como se sabe, não
corresponde à riqueza das fontes. No caso do período medieval,
limitarmos a história à história eclesiástica implica praticar o
esquecimento de documentos de potencial interesse à teoria
da história. É partindo dessa crítica que Dominique Santos
resgata a tradição Seanchas, conjunto de narrativas fixadas
no início do período medieval e transmitidas aos compiladores
das histórias da Irlanda do século VII. Santos analisa duas
obras contemporâneas, a Vita Sanctii Patricii e a Collectanea,
tratando seus autores, ou Seanchaidhean, como historiadores
de pleno direito. Seus conhecimentos, no entanto, eram
atravessados por toda uma gama heterogênea de saberes,
das leis às genealogias, da poesia à hagiografia, passando
pelos anais e registros paroquiais. A contribuição problematiza
as estratégias de historicização dessa tradição e, buscando
preservá-las de juízos modernos, compreende a coerência de
seus modos de pensar. Dominique Santos, por fim, advoga que
a incorporação da tradição Seanchas nos cânones da história
da historiografia pode nos ajudar a dialogar melhor com outras
formas de escrita da história pré-modernas.

O último artigo que apresentamos mergulha na compreensão


de uma racionalidade que combinava expectativas escatológicas,
alegoria e filosofia natural. Dmitri Starostin é responsável por
evidenciar como as políticas do tempo histórico nas cortes
carolíngias dependiam da execução conjunta da exegese bíblica
com observações celestes. Sua fonte principal é a Vita Caroli
Magni de Eginhardo, entendida em diálogo com a tradição
das histórias universais. Starostin desenvolve o sofisticado
argumento segundo o qual o biógrafo de Carlos Magno foi
capaz de aproximar o “tempo da criação”, representado pelo
passado profundo do Antigo Testamento, com o “tempo de
hoje” através de uma ciência exegética que combinava o

28 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

cálculo da história sagrada com a manipulação do simbolismo


escatológico. Segundo o autor, a necessidade de revisar os
calendários de páscoa abre a oportunidade de trabalhar as
expectativas escatológicas com vistas ao ano 800, ano que
correspondia ao fim do Sexto Milênio da criação. A hipótese final
parte da crítica da concepção do tempo cristã como meramente
linear. Para Dmitri Starostin, o interesse nos temas e datas
da história universal aumenta de acordo com a observação de
efemérides celestes; sua tese indica que a discussão sobre o
fim dos tempos é sincronizada com a observação dos nodos
lunares. Fim de um ciclo lido como um começo: é com base
nessa lógica que Carlos Magno, coroado Imperador em 25 de
dezembro de 800, pôde se apresentar como um novo Davi.
Esse fenômeno é despertado pela performatividade real e pela
função temporal que a transpassa: a presença. Para aqueles
que conhecem os símbolos, para aqueles que entendem os
números em sua dupla dimensão, matemática e exegética, a
relação entre Carlos e Davi não é metafórica. Carlos Magno é
Davi. Foi assim que a historiografia carolíngia estabeleceu um
sistema de comunicação simbólica entre o rei, os magnatas e
seus súditos, garantindo a função de legitimidade do poder.

Qual o sentido em mobilizar os passados do medievo em


meio à catástrofe global? Essa pergunta nunca poderia ter sido
prevista em toda sua pertinência. Ela foi se tornando mais
e mais relevante aos organizadores deste dossiê na exata
medida em que o evento pandêmico começou a traduzir e
fazer aflorar as ansiedades de uma emergente sensibilidade
histórica. Uma historicidade, se assim preferimos, modulada
diante da possibilidade concreta de mudanças radicais, da
ultrapassagem de (mais um!) limiar crítico que promete
desafiar toda compreensão do passado como experiência e
toda tentativa de domesticação do novo pela narrativa. Caso
o preço que teremos de pagar pela “nova normalidade” seja a
completa dissociação com a experiência do passado (SIMON
2019, p. 52-78), isso significaria também que nosso desejo
de compreender a Idade Média fará companhia ao desejo
de se abrir a novas formas de habitá-la afetivamente? Como

29 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

já assinalamos, “práticas de sincronização”, significação e


expressão da existência temporal dependem da articulação
entre os passados e nossas angústias, esperanças, temores
e planos. O tempo histórico, passado, presente e futuro, é
aglutinado como um singular através da capacidade humana
em anexar emoção as suas dimensões. Em outras palavras, não
existem efeitos sem afetos, nem história efetiva sem história
afetiva. A Idade Média, tão presente no imaginário, nas artes,
nas produções literárias contemporâneas, nas redes sociais e no
cinema, na televisão e nos passatempos eletrônicos, evocada
e concorrida em meios políticos e religiosos, é outro desses
palcos globais no qual encenamos “várias emoções humanas,
incluindo essas de esperança e desespero” (CHAKRABARTY
2018, p. 17). A presença do medievo nos lembra que a
temporalidade é sempre plural, que os passados nunca são
totalmente passados: afinal, “tornar visível essa disjunção
é aquilo que os passados subalternos nos permitem fazer”
(CHAKRABARTY 2005, p. 225).

Seria possível “(des)atualizar” a historiografia medieval


para, a seguir, configurá-la em virtude de um futuro que seja
“próprio” às angústias do Sul Global? Não estamos longe,
como se vê, de sugerir que a decolonização dos passados
medievais passa pela crítica da submissão de sua escrita da
história a formas “de se relacionar com o tempo histórico como
atualização repetidora” (PEREIRA; ARAUJO 2020, p. 126). A
dissociação do passado dos medievais com as identidades
nacionais europeias, com o cristianismo conservador, com a
monumentalização dos grandes homens e com a genealogia
das elites globais, assim poderia dialogar com a emergência de
formas mais progressistas de figurar e performar afetivamente
os espaços de conhecimento do medievo? É esperança dos
organizadores que as virtudes epistêmicas demonstradas pelas
contribuições deste dossiê – o engajamento ético e crítico com as
fontes, ao lado da reflexão teórica a respeito dos instrumentos
para sua interpretação, contribuam para o estabelecimento
de um passado, ao passo que autêntico, ao mesmo tempo
próprio às demandas de nossa “geopolítica do conhecimento”

30 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

(GRECCO; SCHUSTER 2020, p. 444). Essa tarefa não começa


nem se encerra, no entanto, com este dossiê. Essa é a tarefa
de uma geração.

Decolonizar passados subalternos, como o Itihasa indiano,


as Seanchas da Hibérnia ou as Estórias castelhanas é fazer
da consciência histórica, antes um “privilégio do homem
moderno”, um direito humano universal? Não pagaríamos, com
isso, o custo de reforçar o velho universalismo, submetendo
formas contingentes de experiência temporal ao guarda-chuvas
eurocentrado do gênero “história”? Ou, quem sabe, podemos
pluralizar os significados da consciência histórica, ampliando
seu campo semântico de modo a abarcar a diversidade das
formas de se sentir e testemunhar a mudança e a permanência
em função do tempo? Essas perguntas expressam a tensão
que o presente dossiê carrega como pano de fundo. Trata-
se, ainda, do problema do lugar da historiografia medieval na
história da historiografia (e na teoria da história). A respeito de
tais questionamentos, longe de fixar um ponto final, fazemos
um convite ao diálogo, a uma conversa amigável, a um debate
que, enfim, se instaura entre os estudos medievais e as
historiadoras e historiadores da historiografia.

31 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

REFERÊNCIAS

ANHEZINI, Karina. Gabrielle Spiegel, textualidades,


passado e virada linguística. In: AVELAR, Alexandre de
Sá; BENTIVOGLIO, Julio. O Futuro da História: Da crise
à reconstrução de teorias e abordagens. Vitória: Editora
Milfontes, p. 227-239, 2019.

AURELL, Jaume. El nuevo medievalismo y la interpretación


de los textos históricos. HISPANIA. Revista Española de
Historia n. 66, v. 224, p. 809-832, 2006.

AURELL, Jaume. From Genealogies to Chronicles: the Power


of the Form in Medieval Catalan Historiography. Viator,
n. 36, p. 235-264, 2005.

AURELL, Jaume. Authoring the Past: History,


Autobiography, and Politics in Medieval Catalonia. Chicago:
The University of Chicago Press, 2012.

AURELL, Jaume. La historiografía medieval: siglos IX-XV.


In: Comprender el pasado. Una historia de la escritura
y el pensamiento histórico (Aurell, Jaume; Balmaceda,
Catalina; Burke, Peter; Soza, Felipe). Madrid: Ediciones
Akal, p. 95-142, 2013.

AURELL, Jaume. La historiografía medieval. Entre


la historia y la literatura. València: Publicacions de la
Universitat de València, 2016.

AVILA, Arthur de Lima; NICOLAZZI, Fernando; TURIN,


Rodrigo. A História (in)Disciplinada. Vitória: Editora
Milfontes, 2019.

BRUNNER, Otto. Land and Lordship: Structures of


Governance in Medieval Austria. Philadelphia: University of
Pennsylvania Press. 1992.

32 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

COELHO, A. L. S; BELCHIOR, Y. K. A extrema-direita


brasileira e sua visão (ideológica) da cavalaria medieval.
In: BUENO, André; BIRRO, Renan; BOY, Renato. Ensino
de História Medieval e História Pública. Rio de Janeiro:
Sobre Ontens/UERJ, 2020.

CHAKRABARTY, Dipesh. Histórias de minorias, passados


subalternos. In: SANCHES, Maria Ribeiro (org).
Deslocalizar a Europa: Antropologia, Arte, Literatura e
História na Pós-colonialidade. Lisboa: Edições Cotovia, p.
209-230, 2005.

CHAKRABARTY, Dipesh. Anthropocene time. History and


Theory. v. 57, n. 1, mar., p 5-38, 2018.

CHENU, Marie-Dominique. Auctor, actor, autor. Archivum


Latinitatis Medii Aevi, n. 3, p. 81-86, 1927.

DOMANSKA, Ewa. El viraje performativo en la humanística


actual. In: Criterios, Havana, n. 37, p. 125-142, 2011.

DE CERTEAU, M. Une pratique sociale de la différence:


croire. In: Faire croire. Modalités de la diffusion et de la
réception des messages religieux du XIIe au XVe siècle.
Actes de table ronde de Rome (22-23 juin 1979) Rome:
École Française de Rome, p. 363-383, 1981.

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média. Nascimento do


Ocidente. São Paulo: Brasiliense, 2001.

GUENÉE, Bernard. Histoire et culture historique dans


l’Occident médiéval. Paris: Editions Aubier-Montaigne,
1980.

GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. A cultura histórica


oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar.
In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. História Cultural:
experiências de pesquisa. Porto Alegre: UFRGS, 2003.

33 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

GRECCO, Gabriela de Lima; SCHUSTER, Sven. Decolonizing


Global History? A Latin American Perspective. Journal of
World History, n. 2, v. 31, p. 425-446, Junho de 2020.

JORDHEIM, Helge. Introduction: Multiple times and the


work of synchronization. Forum: Multiple Temporalities.
History and Theory, n. 53, p. 498-518, 2014.

LANZIERI JÚNIOR, C. Ontem e hoje, o porta estandarte:


reflexões sobre os usos do passado medieval, a estética
bolsonarista e os discursos recentes da direita brasileira.
Roda da Fortuna, n. 2, v. 8, p. 189-209, 2019.

LE GOFF, Jacques. Un long Moyen Âge. Paris: Tallandier


Éditions, 2004.

MATEUS, Samuel. A Querela dos Antigos e dos Modernos:


um mapeamento de alguns topoi. Cultura: revista de
História e Teoria das ideias, v. 29, p. 179-200, 2012.

OLIVEIRA, M. da Glória de. Temporalidade da luta ou


a potência de uma operação historiográfica feminista
decolonial. Humanas: pesquisadoras em rede. Junho,
2020. Disponível em: https://bit.ly/3fGE20m. Acesso em:
19 jun. 2020.

PACHÁ, Paulo. “Why the Brazilian far right loves the


European middle ages”. Pacific Standard. Fevereiro, 2019.
Disponível em: https://bit.ly/2NbQZTw Acesso em: 20 jun.
2020.

PAUL, Herman. A Weberian medievalist: Hayden White in


the 1950s. Rethinking History: The Journal of Theory
and Practice. n. 12 v. 1, p. 75-102, 2008.

PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Vozes sobre Bolsonaro:


esquerda e direita em tempo atualista. In: KLEM, Bruna
Stutz; PEREIRA, Mateus; ARAUJO, Valdei. Do fake ao fato:
(des) atualizando Bolsonaro. Vitória: Editora Milfontes, p.
125-150, 2020.

34 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

SETH, Sanjay. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva? História


da Historiografia História da Historiografia: International
Journal of Theory and History of Historiography, n. 11, v. 6,
p. 173-189, 2013.

SILVEIRA, Aline Dias da. História Global da Idade Média:


estudos e propostas epistemológicas. Roda da Fortuna,
n. 1, v. 8, p. 210-236, 2019.

SIMON, Zoltán Boldizsár. History in Times of


Unprecedented Change: A Theory for the 21st Century.
London: Bloomsbury, 2019.

SPIEGEL, Gabrielle M. Political Utility in Medieval


Historiography: a Sketch. History and Theory, n. 3, v.
14, p. 314-325, 1975.

SPIEGEL, Gabrielle M. Genealogy: Form and Function in


Medieval Historical Narrative. History and Theory, n. 1,
v. 22, p. 43-53, 1983.

SPIEGEL, Gabrielle M. History, Historicism and the Social


Logic of the Text. Speculum, n. 1, v. 65, p. 59-86, 1990.

SPIEGEL, Gabrielle M. Romancing the Past: the Rise of


Vernacular Prose Historiography in Thirteenth-Century
France. Berkeley/Los Angeles/London: University of
California Press, 1995.

SPIEGEL, Gabrielle M. The task of the historian.


Presidential address delivered at the 123rd annual meeting
of the American Historical Association, held in New York
City in 2009. Disponível em: https://www.historians.org/
about-aha-and-membership/aha-history-and-archives/
presidential-addresses/gabrielle-m-spiegel. Acesso em: 10
mai. 2020.

SPIEGEL, Gabrielle M. Structures of Time in Medieval


Historiography. The Medieval History Journal, n. 1, v.
19, p. 21-33, 2016.

35 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Khodadad Rezakhani, Luciano José Vianna, Otávio Luiz Vieira Pinto & Rodrigo Bragio Bonaldo

TEEUWEN, Mariken. The Vocabulary of Intellectual Life


in the Middle Ages. Turnhout: Brepols, 2003.

TURIN, R. História da historiografia e memória disciplinar:


reflexões sobre um gênero. História da Historiografia:
International Journal of Theory and History of
Historiography, n. 13, v. 6, p. 78-95, 2013.

TURNER, Victor. An Anthropological approach to the


icelandic saga. In: BIDELMAN, T. (Ed.). The Translation
of culture: essays to E.E. Evans-Prichrad. Londres:
Tavistock, 1971.

36 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
Decolonizar a historiografia medieval

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

Khodadad Rezakhani
k.rezakhani@fu-berlin.de
Freie Universität Berlin
Berlin
Germany

Luciano José Vianna


luciano.jose.vianna@gmail.com
Universidade de Pernambuco
Petrolina
Pernambuco
Brasil

Otávio Luiz Vieira Pinto


rocha.pombo@hotmail.com
Universidade Federal do Paraná
Curitiba
Paraná
Brasil

Rodrigo Bragio Bonaldo


rodrigobonaldo@yahoo.com.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis
Santa Catarina
Brasil

37 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 19-37 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1671
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

É possível uma história da historiografia


medieval?
Is a history of medieval historiography possible?

Rodrigo Prates de Andrade


https://orcid.org/0000-0003-1787-6191

RESUMO
Neste artigo, ao tomar como ponto de partida uma possível
dubiedade da historiografia medieval, nos propomos a ABSTRACT
refletir sobre as limitações de uma episteme temporal
Starting from a possible dubiousness of medieval historiography,
e espacialmente centrada na Europa e na modernidade,
this article reflects on the limitations of a temporal and spatial
além de traçar alguns caminhos possíveis à compreensão
episteme centered on Europe and modernity; furthermore,
dos modos de historicização medievais. Essas reflexões
we trace some possible ways to understand medieval modes
possuem como princípio um debate alavancado pela
of historicization. These discussions are based on a debate
historiografia francesa da segunda metade do século XX
leveraged by the French historiography of the second half of the
acerca da existência de uma fratura entre modernos e
20th century about the existence of a divide between moderns
pré-modernos, que impediria uma percepção acurada
and pre-moderns that would prevent an accurate perception of
das experiências humanas do passado a partir de um
the human experiences of the past from a vocabulary guided
vocabulário guiado pela modernidade. Nessa perspectiva,
by modernity. In this perspective, the very modern concept
o próprio conceito moderno de história, fruto dos séculos
of history – fruit of the 18th and 19th centuries – would be
XVIII e XIX, seria incapaz de apreender modos de produzir
unable to grasp ways of producing and representing the past
e representar o passado anteriores a sua concepção. A fim
prior to its conception. To answer these questions, we look
de responder tais questionamentos, procuramos traçar
to trace other possibilities for understanding the concepts of
outras possibilidades de compreensão dos conceitos de
history and historiography by bringing together the medieval
história e historiografia através de uma aproximação
studies, the history of historiography, and anthropology. The
entre os estudos medievais, a história da historiografia
considerations established here seek to reaffirm the current
e a antropologia. As considerações estabelecidas aqui
demands of disciplinary history, while also suggesting an
buscam reafirmar demandas atuais da história disciplinar,
opening of the history of historiography as a means of
ao mesmo tempo que aventam uma abertura da história
embracing the multiple pre-modern and non-Western modes
da historiografia como um meio de abarcar os múltiplos
of historicization.
modos de historicização pré-modernos e não ocidentais.

PALAVRAS-CHAVE
História da historiografia; História Medieval;
Antropologia
KEYWORDS
History of historiography; Medieval history;
Anthropology

39 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

Em Une histoire religieuse du Moyen Âge est-elle possible?,


ensaio publicado em 1994, o medievalista Jean-Claude Schmitt
se questionou acerca da possibilidade de uma história religiosa
do medievo. Uma questão que, segundo o próprio autor,
poderia parecer estranha aos olhos e ouvidos contemporâneos,
afinal foram aqueles mesmos séculos conhecidos pela presença
constante da fé. No entanto, esse questionamento carrega em
seu âmago outra face: o conceito de religião é conveniente
à compreensão do cristianismo medieval? Nas palavras de
Schmitt, “o recuo que se impõe à antropologia que estuda uma
sociedade diferente da sua não é ainda mais indispensável
para o historiador cujo objeto de estudo é a tradição à qual
pertence?” (SCHMITT 2014, p. 31).

Não procuramos aqui, como demonstra o título


deste ensaio, acercar-nos sobre os estudos das práticas
“religiosas” na Idade Média. Contudo, ao refletirmos sobre
a viabilidade de uma história da historiografia medieval,
os questionamentos de Schmitt complexificam nossos
problemas: se a história, objeto e ofício dos historiadores na
contemporaneidade, está arraigada em nossas percepções,
ela é conveniente ao exame das formas de experienciar o
tempo no medievo? Crônicas, hagiografias, genealogias e
outros gêneros de narração sobre o passado circularam entre
mosteiros e cortes na cristandade latina medieval. Seria
possível classificarmos esta profusão de obras sob o signo da
história?

Nas palavras de historiadores como Bernard


Guenée (GUENÉE 1980, p. 11) e Justin Lake (LAKE 2015,
p. 89), por muitos anos aqueles que se debruçavam
nesses gêneros “historiográficos” procuravam modos de
“encontrar o passado” – como se aqueles documentos se
transmutassem em “janelas” para outras temporalidades –, a
desconsiderar intenções, formas de compreender o mundo
e contextos sociais. Eles se constituíam como documentos
capazes de fornecer informações aos historiadores sobre os
aspectos aos quais versavam. Por outro lado, como aponta

40 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

Lake, em Current Approaches to Medieval Historiography,


pesquisas recentes buscaram observar nesses textos não
apenas “fatos” sobre o passado, mas as modalidades
pelas quais foram compostos. Um eco da ideia de que
o passado, ou ao menos sua escrita, configurava-se a
partir dos anseios do presente, afirmação reconhecida por
parte considerável do campo disciplinar no âmbito da
historiografia moderna e que justamente incidiria de maneira
similar naquilo que podemos chamar de uma “historiografia
medieval” (LAKE 2015, p. 89).

Para Bernard Guenée, ao menos nos círculos franceses,


os estudos voltados à compreensão de uma “historiografia
medieval” deram seus primeiros passos somente entre os
anos de 1866 e 1876, em torno da Revue critique d’histoire
et de littérature. Permeada por perspectivas oriundas da
ciência histórica alemã, foi nessa mesma revista que a palavra
“historiografia”, associada à ideia de uma literatura histórica,
apareceu pela primeira vez em território francês. Nesse
contexto, a própria palavra historiografia concebia múltiplos
sentidos, desde “a arte de escrever a história” até a um
campo específico destinado à análise de textos históricos,
isto é, aquilo que chamamos de história da historiografia
(GUENÉE 1980, p. 11-12).

A ambiguidade presente na historiografia, como


aponta Guenée, não se limita à compreensão de um campo
geral, mas igualmente em suas especificidades. Afinal,
quando falamos de uma historiografia medieval, estamos a
significar as obras voltadas à produção e representação do
passado gestadas em um determinado período histórico, ou
a um conjunto de escritos contemporâneos acerca da Idade
Média? Para além dessa flutuação semântica, estudiosos
tanto do medievo quanto da modernidade apontavam que
a ausência dos parâmetros modernos, do que se definia
enquanto “historiografia” sustentava a ideia de que entre os
“medievais” não teria existido um labor dito “historiográfico”
(GUENÉE 1980, p. 12-15).

41 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

Em sua multiplicidade de sentidos e a fim de evitar a


reiteração de um discurso que nega o estatuto “historiográfico”
aos gêneros medievais de produção e representação do passado
baseada em uma tradição moderna, optamos por assumir
esses mesmos gêneros a partir do signo de uma “historiografia
medieval”.

Nossas proposições, cabe ressaltar, não visam a um


estudo dessa multiplicidade “historiográfica” no medievo,
temática que conta com uma ampla ancoragem nos estudos
medievais1, mas a uma inquirição dos sentidos da atribuição de
um estatuto “historiográfico” para essas obras. Ao tomarmos
como ponto de partida uma possível dubiedade da historiografia
medieval, nos propomos a refletir sobre as limitações de uma
episteme temporal e espacialmente centrada na Europa e na 1
Não poderíamos aqui
deixar de referenciar
modernidade, além de traçar alguns caminhos possíveis à os trabalhos seminais
compreensão dos ditos modos de historicização medievais. de Bernard Guenée
Histoire et culture
historique dans l’Occi-
dent médiéval (1980)
Uma fratura cognitiva e de Gabrille Spiegel
The Past as Text: The
Theory and Practice
Ora, segundo Alain Guerreau, o século XVIII estabeleceu of Medieval Historiog-
raphy (1997), obras
uma fratura entre “pré-modernos” e “modernos”. Em suas fundamentais ao es-
palavras, conceitos como economia e religião, concebidos tabelecimento de uma
história da historio-
na modernidade, no intuito de explicá-la, são incapazes de grafia medieval.
apreender a sociedade medieval. Empregá-los aos estudos
dessas sociedades incorreriam em contradições que viciariam
a abordagem historiográfica (GUERREAU 2002, p. 21-26). Não
seria preciso aqui traçar as aproximações entre Guerreau e
Schmitt – a modernidade marcava, em suas perspectivas, uma
fratura cognitiva que nos impossibilitaria de compreender um
mundo “pré-moderno” a partir de um vocabulário exógeno.
Afinal, é possível pensar os modos de crença das sociedades
latino-cristãs no medievo por meio da religião?

Em suas ressalvas, Schmitt destacou como o conceito


de religião, tal como usualmente o compreendemos, era um
fenômeno da modernidade – ele configurava um modo de
crer, mas também um papel institucional da Igreja que não

42 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

encontrava eco nos séculos anteriores. Nesse caso, a cultura


cristã da modernidade funcionava como um filtro capaz de
moldar nossa visão acerca de outras sociedades. Isso ocorreria
de tal modo que, quando pensamos no politeísmo greco-
romano, acabamos por reproduzir uma lógica própria da Igreja
que o opunha ao monoteísmo judaico-cristão. A própria ideia de
transcendência divina, componente essencial ao cristianismo,
não poderia ser reempregada em outros modos de crença sem
incorrer em disfunções (SCHMITT 2014, p. 31-33).

O medievalista, inserido em países como a França,


marcados por um vocabulário eurocentrado, deve se despir.
Cabem a esses historiadores romper as “continuidades
aparentes” que, no espaço e no tempo, os conectam ao seu
objeto de estudo. Tal qual o antropólogo, ele deve recuar,
desidentificar-se, tanto no âmbito da experiência quanto nas
palavras, a fim de evitar a reiteração de um discurso tautológico
sobre a Idade Média (SCHMITT 2014, p. 33-35).

Desenvolvida no decorrer da segunda metade do


século XX, a antropologia histórica francesa se pautou em
um procedimento fundamental ao saber antropológico – a
desidentificação. As ressalvas do autor acerca da necessidade
de um recuo, denotam uma fratura entre o passado e o presente
que deveria ser sobreposta pelo historiador. Ao propor um
distanciamento, a antropologia histórica, na perspectiva de
Schmitt, rompe com um tipo de história que compreendia uma
confluência entre o medievo e a modernidade – a existência,
por exemplo, de uma religião na Idade Média em moldes
similares aos nossos.

No âmbito da historiografia francesa, a aproximação com


a ciência social “vizinha” antecedeu à alcunha da antropologia
histórica. Se, em Os reis taumaturgos, Marc Bloch já sustentava
uma visão interdisciplinar entre os dois campos, foi no
decorrer dos anos 1960 que o termo gradualmente se firmou,
principalmente nos nomes de Emmanuel Le Roy Ladurie e
Jacques Le Goff (HAR-PELED 2010, p. 2-3). Essa “ancoragem”
da historiografia nos mares da antropologia e da etnologia

43 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

se tornou perceptível na obra seminal de Le Roy Ladurie,


Mountaillou. Apoiada em autores como Godelier, Bourdieu,
Sahlins, Lévi-Strauss, entre tantos outros, ela demarcava
novas possibilidades à análise das experiências humanas do
passado, em uma confraria de historiadores e antropólogos
(BENATTE 2007, p. 2-3).

No caso de Le Goff, entre as décadas de 1960 e 1970,


existiu uma gradual inflexão à antropologia, sedimentada na
criação do Groupe d’Anthropologie Historique de l’Occident
Médievál em 1978 (HAR-PELED 2010, p. 3-4). Nota-se que, em
1977, no prefácio de Pour un Autre Moyen Age, o pesquisador
destacou o papel crucial da etnologia em um diálogo profícuo
com a história – o que Durkheim foi às gerações precedentes;
Marcel Mauss o era a sua (LE GOFF 1993, p. 10-11).

Em 1977, Le Goff afirmou sua preferência pelo termo


“antropologia histórica”, no lugar de “etnologia histórica”.
Segundo o autor, a etnologia esteve circunscrita à concepção de
um colonialismo europeu; enquanto a antropologia se voltava
a um conhecimento abrangente das sociedades humanas. O
projeto dessa aproximação à ciência social vizinha configuraria,
no campo da história, um saber distinto daquele elaborado
pelas “classes dirigentes brancas” (LE GOFF 1993, p. 11).

Os fundamentos do giro antropológico se pautaram


em uma descentralização da história – nas margens, essa
não seria geocentrada ou etnocentrada. Se a medievalística
francesa seguiu ou não esses caminhos, importa que, de
algum modo, uma antropologia histórica do ocidente rompeu
com a perspectiva de uma história nacional vigente. Tal
percepção se constituiu em uma geração de historiadores
influenciados pelo cenário do pós-guerra, mas, principalmente,
pelos movimentos de descolonização e o “maio de 1968”
(HAR-PELED 2010, p. 5-6).

Quando Le Goff traçou como um dos fundamentos de


sua antropologia histórica do ocidente medieval o método
comparativo, principalmente com o que ele chamou de

44 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

“sociedades primitivas”, ele alicerçou um distanciamento entre


a Idade Média e o tempo presente. Primitivos e medievais
se aproximavam justamente porque se distanciavam dos
modernos (BASCHET 2016, p. 122-123). De modo similar,
as elucubrações de Schmitt se pautaram em um método que
afastava o historiador do cristianismo medieval de seu objeto
de estudo, em um distanciamento entre “nós” e “eles”: “o
cristianismo medieval é uma cultura singular, mas o mesmo
pode ser dito de qualquer outra cultura. Os cristãos são “como
os outros” (SCHMITT 2014, p. 40).

No entanto, não nos restam dúvidas dos limites deste


giro antropológico, ao menos em sua vertente francesa. Ao
proporem outra história para além das fronteiras nacionais,
estes historiadores reiteraram novos centrismos. No fim,
suas histórias pouco se afastaram daquelas elaboradas pelas
“classes dirigentes brancas”, tal como aclamaram realizar.
Vale lembrar que, para Misgav Har-Peled, a antropologia
histórica se desenvolveu no cenário francês do pós-guerra
como uma “contra-história” pautada pelas margens, defronte
a uma história nacional e branca. Sobreposta no século
XXI, ao confrontar problemas como a transculturalidade, a
superação de um modelo centro/periferia e, principalmente,
ao abandonar uma narrativa centrada no ocidente, na Europa e
no cristianismo, segundo suas palavras, ela desencadearia em
uma história mais dialógica daquilo que se compreende como
“Ocidente” (HAR-PELED 2010, p. 8).

Quais seriam, então, os caminhos a uma história


deseurocentrada, que objeta povos que circularam em uma
espacialidade europeia? Os primeiros passos desse movimento
se dão ao reconhecermos, conforme Eduardo Aubert, que
a fratura conceitual instituída com o estabelecimento da
modernidade, entre os séculos XVIII e XIX, alicerçava uma
episteme na qual o Ocidente moderno seria contraposto,
tanto em relação a um mundo não ocidental, como a América,
quanto ao seu próprio passado pré-moderno. Assim, as
nascentes ciências sociais fundadas na Europa do oitocentos

45 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

se constituíram a partir desta triangulação entre um Ocidente


moderno, um passado ocidental e um presente do não ocidente
(AUBERT 2010, p. 1-2).

“Descolonizar” a Idade Média, nos dizeres de Jeffrey


Cohen, incidiria em um processo de questionamento do
caráter intermediário dessa temporalidade entre os antigos e
os modernos, isto é, de questionamento de uma existência
alicerçada no reflexo da modernidade (COHEN 2000, p. 6). Os
alicerces do eurocentrismo não se encontravam apenas em sua
posicionalidade espacial, mas também temporal, figurada na
própria ideia da modernidade. Este “euromodernocentrismo” se
organizava como uma espécie de epicentro da história, capaz
de nomear e classificar outras realidades espaço-temporais,
fossem elas uma “América Primitiva”, uma “Grécia Antiga”
ou uma “Europa Medieval”. Uma fórmula de produção do
conhecimento capaz de impor, por exemplo, a lógica moderna
da religiosidade cristã à compreensão dos modos de crença
ameríndios e cristãos pré-modernos.

Como vimos, as ressalvas de Jean-Claude Schmitt acerca


da problemática de uma história religiosa da Idade Média se
assentaram na existência de uma continuidade – aparente –
entre os modos de crença cristãos pré-modernos e modernos.
Para Schmitt, esse era um dos pontos fulcrais ao exercício da
medievalística: evitar essas “continuidades aparentes” que
conectam seu tempo ao universo medieval e que acabam por
nublar sua visão. E como historiadores, qual continuidade talvez
nos fosse mais aparente que não a própria história?

Um paradigma euro-moderno
O medievalista Alain Guerreau, ao se aprofundar no que
denominou uma “fratura” que distanciava modernos e pré-
modernos, acabou por delinear a impossibilidade da existência
de historiadores antes do século XVIII. Impor essa categoria a
personagens como Plutarco, Eusébio de Cesareia, e até mesmo
Voltaire, incorreria em um erro. Não existia nestes autores, o

46 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

que Guerreau entende como a pedra fundamental do ofício: a


compreensão de que as sociedades humanas se transformam
(GUERREAU 2002, p. 30).

Um movimento que, conforme Reinhart Koselleck, teve


sua origem no distanciamento entre o espaço de experiências
e o horizonte de expectativas, em um processo de aceleração
do tempo, de tal modo que as mulheres e homens dos séculos
XVIII e XIX cada vez menos percebessem ecos do passado
em seus presentes e futuros. A emergência de conceitos como
progresso e revolução incidiam em um olhar mais atento ao
que se transformava do que ao que permanecia. Não que o
termo história inexistisse antes do advento de um conceito
moderno. Como demonstrou Koselleck, a “novidade” daquela
altura foi a transformação das histórias em uma história, isto
é, de uma noção plural à concepção de um singular coletivo,
uma História, substantivo próprio, que pode abranger tanto
a realidade quanto a forma de expressá-la, como em uma
fusão da antiga distinção entre a res gestae e a historia rerum
gestarum (KOSELLECK 2012).

Muito bem. Se a história, tal qual foi concebida na


modernidade, inexistia anteriormente aos séculos XVIII e XIX,
seria possível escrever uma história de algo que não existe? O
problema é que a concepção dessa historiografia moderna se
encerra em si mesma: ao mesmo tempo em que ela marcava a
origem do conceito, ela se firmava como um “ponto arquimédico”
capaz de definir o que é história ou não (SETH 2013, p. 175).
Uma aporia que, como apontaram Santos, Nicodemo e Pereira,
incide no seguinte questionamento: “sendo a história um
produto da modernidade europeia, do período 1750-1850, é
possível falar de fato em outras tradições historiográficas, não-
ocidentais?” (SANTOS; NICODEMO; PEREIRA 2017, p. 174). E
mais, a emendar essas palavras, é possível falar em tradições
historiográficas não ocidentais ou pré-modernas?

Neste momento se faz essencial definirmos os contornos


do que fazemos, quando afirmamos empreender uma
história da historiografia. Essa, como realça Araujo, surgiu

47 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

conjuntamente ao processo de estabelecimento da história em


fins do século XIX. De tal modo que, sendo função primária,
a história da historiografia visava à configuração de uma
narrativa acerca das formas de escrever o passado,
dos antigos aos modernos. Contudo, com a quebra de
percepções lineares, como se uma determinada ciência
pudesse ser concebida apenas através de continuidades, a
história da historiografia se firmou como um meio de
objetar as condições de produção do discurso histórico
(ARAUJO 2006, p. 79-80).

Como uma subdisciplina da história, ela se volta ao


estudo de “fenômenos historiográficos”, indicados por Araujo,
como os modos de historicidade, isto é, as experiências
humanas do tempo. Ela não deve se circunscrever ao exame
de uma história disciplinada – o exercício desta história da
historiografia presume o que o próprio autor definiu como uma
teoria da historicidade, uma teoria que fundamenta a natureza
historiográfica de um dado objeto. Sua complexidade, porém,
encontra-se justamente na capacidade de compreendermos as
condições de emergência de um determinado tipo de história
(ARAUJO 2013, p. 38-43).

Contudo, mesmo esse modelo de história da historiografia


encontrou seus críticos, precisamente no que esses definiram
como o caráter não universal da história. Sanjay Seth, nessa
perspectiva, entendia que a história, como código baseado
em uma determinada historicidade ocidental, era incapaz de
“codificar passados não-ocidentais”.

Nas palavras de Seth, quando os historiadores


ocidentais escrevem sobre passados vinculados às suas
identidades históricas, esses se defrontam com bruxas,
dragões e milagres, ou seja, com um código distinto a uma
observação racionalista. Porém, esse passado é compreendido
no processo em que ele deixa de ser ele mesmo, isto é, no
processo de dessacralização de uma sociedade que deixou
de acreditar em bruxas, dragões e milagres e passou a
escrever sobre elas, de modo a inseri-las em um viés racional.

48 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

No processo de marcação de uma distância entre o objeto-


passado e o presente das práticas do historiador, essas
constantemente se mesclavam. E aqui se encontraria a
incapacidade de a história codificar os passados não ocidentais:
“a história continua “encontrando o presente no seu objeto”,
mas não encontra “o passado na sua prática”, pois o passado
dos países não-ocidentais não é o passado da história” (SETH
2013, p. 178-179).

Outras tradições
Ao seguirmos o modelo de uma história da historiografia
que se instaura como um meio de analisar os modos de
historicidade das sociedades humanas, incorremos na aporia
de um saber incapaz de compreender a experiência do
tempo em contextos pré-modernos ou não ocidentais. Seria
necessário à execução de tal tarefa entender como outros
grupos de costumes distintos dos nossos experimentavam o
tempo de outra maneira: “outras épocas, outros costumes”.
A frase célebre do antropólogo Marshall Sahlins nos remete à
possibilidade de outras formas de conceber a história. Em suas
palavras, ordens culturais distintas possuem lógicas singulares
de ação e de consciência histórica (SAHLINS 1990, p. 62). A
historicidade moderna, apreendida como um fluxo do passado
ao futuro mediado pelo presente, seria, portanto, apenas
um dos modos de figurar o tempo. Outras ordens culturais
possuiriam modos distintos de concebê-lo.

Sahlins definiu, desse modo, a urgência de uma


antropologia da história pela sua capacidade de explodir o
próprio conceito daquilo que compreendemos como história
(SAHLINS 1990, p. 19). Um conceito que, como destacam
Stephan Palmié e Charles Stewart, consolidou-se no mundo
ocidental através do paradigma historicista moderno como a
única maneira de observar o passado. Tal paradigma se pauta
em princípios da lógica, da evidência e da verificabilidade pela
prova, para citarmos apenas alguns de seus fundamentos. No
entanto, por mais que tais princípios não sejam exclusivos

49 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

ao historicismo moderno, outras culturas definiriam suas


práticas singulares de historicização através de outros modos
(PALMIÉ; STEWART 2016, p. 210).

Nas palavras de Palmié e Stewart, para além de uma


história da historiografia ou uma filosofia da história, as
abordagens etnográficas e antropológicas poderiam fornecer
outras perspectivas sobre a relação das sociedades humanas
com o passado, tanto por não privilegiarem textos escritos,
quanto por um “olhar” não restrito a um paradigma moderno
e ocidental. Uma abordagem que requer um novo vocabulário,
afinal, a concepção de uma historiografia centrada na
escrita invisibilizaria outras formas de experienciar o tempo.
Ora, segundo os autores, a introdução de termos como
“historicização” seriam capazes de abranger modalidades
de produzir e representar o passado não restritivas a uma
tradição moderna e ocidental fundamentada na escrituralidade
(PALMIÉ; STEWART 2016, p. 207-226).

Em relação à observação de sociedades com


distintos modos de historicização, o primeiro desses
perigos é o de assumir essas lentes modernas – e seus
princípios como a cronologia e a progressão – e invisibilizar
esses outros modos de historicização. Um movimento
que poderia incorrer na negação de modos locais e não
ocidentais de se relacionar com o tempo – uma reiteração
do colonialismo intelectual (STEWART 2016, p. 81).
Conforme Palmié e Stewart, cabe à antropologia da
história compreender como os modos de historicização são
constituídos em sociedades não ocidentais e que, por sua vez,
não se conformam aos moldes do historicismo moderno.
Tal abordagem objetiva compreender como os diversos
modos de historicização se tornavam convincentes
e importantes em suas respectivas sociedades
(PALMIÉ; STEWART 2016, p. 208-211).

Contudo, esta antropologia não pode se circunscrever


somente a uma inquirição de outros modos de historicização
deslegitimados e subordinados a uma historicidade moderna

50 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

e ocidental. Essa antropologia precisa demonstrar como


o próprio historicismo moderno é um fenômeno cultural e
historicamente específico – seu exercício supõe a suspensão
de um “etnocentrismo cronotópico” e do julgamento acerca
desses outros modos de historicização. Mas qual o sentido
da palavra “história” nesses estudos? Como reempregá-
la sem incorrer nesse etnocentrismo cronotópico e na
reiteração de um privilégio euro e modernocentrado
(PALMIÉ; STEWART 2016, p. 225-226)?

O caminho traçado pelos autores busca uma


conceituação simples e heurística da “história” capaz de
abranger as formas de relação com o passado estabelecidas
pela escrituralidade, pela oralidade, pela corporalidade, pelas
afeições – uma “história” que não se restrinja ao historicismo
moderno (PALMIÉ; STEWART 2016, p. 226). Para Stewart,
no intuito de orientar essas pesquisas antropológicas,
etnográficas e, acrescentaríamos aqui, históricas, a palavra
deve significar aquilo que escolhemos que ela signifique.
A história como uma categoria exógena, nessa perspectiva,
não mais como um equivalente do historicismo moderno,
abarcaria a diversidade espaço-temporal dos múltiplos
modos de historicização (STEWART 2016, p. 83).
Sem recair nas teias do anacronismo, o paradigma moderno de
história não seria imputado a outras culturas – uma distinção
que, em geral, as alça ao estatuto de uma não história.
Trata-se de perceber que o paradigma moderno, assim como
tantos outros paradigmas, compõe diferentes modos de
historicização.

Ao assumirmos os conceitos de “história” e “historiografia”


a partir de uma perspectiva modernocentrada e eurocentrada,
esses seriam incapazes de apreender a diversidade espaço-
temporal dos modos de se relacionar com o passado.
Uma postura que insistiria em um privilégio de que a história
só poderia existir em uma determinada posicionalidade
espaço-temporal, ao passo que outras modalidades seriam
circunscritas a uma não história. Assim, ao se afastarem

51 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

de um paradigma historicista moderno, as experiências de


historicização medievais eram neglicenciadas de um estatuto
“historiográfico”. Um olhar que busque descolonizar esta história
ocidental deve assumir os fenômenos modernos e europeus
enquanto cultural e historicamente localizados. O historicismo
moderno e ocidental seria apenas um dentre tantos modos de
historicização. O historicismo não pode ser um equivalente da
história.

Santos, Nicodemo e Pereira, ao se confrontarem com


a posicionalidade de termos como história e historiografia, e
a incapacidade desses termos de compreenderem contextos
não ocidentais – e, acrescentaríamos aqui, pré-modernos –,
cogitaram dois caminhos possíveis. Por um lado, adotar os
limites desses conceitos e restringir a história da historiografia
a partir de uma tradição ocidental e moderna e, por outro,
abarcar as múltiplas modalidades de historicização e colocar
a estabilidade e relevância desta subdisciplina em questão
(SANTOS; NICODEMO; PEREIRA 2017, p.181-182).

Aventar a primeira possibilidade incorreria ou na reiteração


de uma caracterização na qual a história e a historiografia
seriam um privilégio do mundo ocidental e moderno ou na
edificação de uma espécie de “Torre de Babel” que instauraria
uma incomunicabilidade entre as diversas pesquisas voltadas
aos modos locais de produção e representação do passado.
Por outro lado, a segunda alternativa considerada pelos
historiadores supracitados, de fato, poderia tornar a história
da historiografia restritiva e até mesmo irrelevante em relação
às múltiplas histórias possíveis. Contudo, um caminho viável
estaria em uma abertura proporcionada pelo chamado de
Sahlins a um potencial destrutivo e criativo da abordagem
antropológica da história. Destrutivo, pois seria capaz de
romper com paradigmas consolidados na historiografia;
criativo, porque seria capaz de substituí-los por modelos que
harmonizassem a diversidade cultural no tempo e no espaço.
A antropologia explodiria a história da historiografia não no
intuito de extingui-la, mas de ampliar seus escopos.

52 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

Nesse alargamento da história da historiografia, mais


próxima de uma antropologia da história, quais seriam, então,
os lugares nos quais se situariam as múltiplas realidades
medievais, cristãs ou não?

Para a historiadora Gabrielle Spiegel, impor as categorias


modernas de um realismo historiográfico à Idade Média
incorreria em um erro justamente porque as fronteiras entre o
que poderia ser chamado de “real” ou “ficcional” no contexto
medieval eram mais turvas e, em alguns casos, até inexistentes.
Em sua perspectiva, a autora denota uma distinção essencial
entre os parâmetros de uma historiografia moderna e uma
historiografia medieval. Enquanto, na primeira, “conteúdo” e
“fatos” se constituem como alicerces de uma vocação realista;
a segunda se caracterizou justamente pelo emprego de um
estilo realista permeado por um conteúdo que, aos olhos
modernos, seria presumivelmente ficcional, como milagres,
anjos e dragões (SPIEGEL 1997, p. xii).

Neste sentido, a produção historiográfica medieval deve


ser concebida em seus próprios termos, sem imputar qualquer
parâmetro alheio a ela, tal qual todo modo de produção e
representação do passado deve ser compreendido. Como já dito,
a seguir os modelos de uma antropologia da história, devemos
entender como os modos de historicização de uma determinada
sociedade se tornaram evidentes aos seus membros. Uma tarefa
que se constitui necessária, pois a imposição de um paradigma
moderno e historicista não apenas incorre em uma percepção
errônea desses modos de historicização, mas também, na
reiteração de um colonialismo intelectual que transforma esse
mesmo paradigma em uma “ilha de história” cercada por um
vasto oceano de “não histórias”.

Como já vimos, as bases do historicismo moderno se


encontrariam muito mais em uma posicionalidade espaço-
temporal, figurada na Europa e na modernidade, do que
simplesmente espacial. Tal posicionalidade se constituiu não
somente em oposição a um mundo não ocidental, mas também
frente a um passado pré-moderno. Fosse em um tom negativo

53 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

que contrastava um tempo de luzes a um tempo de trevas ou


nostálgico, que fazia do passado um berço mítico das origens,
o mundo pré-moderno, como a própria terminologia sugere,
não era moderno.

No exercício de uma antropologia histórica da história,


a multiplicidade dessas modalidades de historicização pré-
modernas não seriam compreendidas como “primitivas” ou
estágios embrionários e intermediários do que viria a ser a
historicidade moderna. Em vez de pensarmos em continuidades
ou descontinuidades que permitiriam ou não compreendermos
os modos de historicização não ocidentais ou pré-modernos
– fossem eles cristãos ou não –, deveríamos voltar nossos
interesses à individualidade e alteridade dessas modalidades
de produção e representação do passado. Reconhecer as
existências destas outras tradições não ocidentais e pré-
modernas, mais do que negar sua relevância, enriqueceria a
própria história da historiografia.

54 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

REFERÊNCIAS

ARAUJO, Valdei Lopes de. História da historiografia como


analítica da historicidade. História da Historiografia:
International Journal of Theory and History of Historiograhy,
v. 6, n. 12, p. 34-44, 2013. DOI 10.15848/hh.v0i12.620.
Disponível em: https://www.historiadahistoriografia.com.
br/revista/article/view/620. Acesso em: 16 out. 2019.

ARAUJO, Valdei Lopes de. Sobre o lugar da história da


historiografia como disciplina autônoma. Locus: Revista de
História, v. 12, n. 1, p. 79-94, 2006. Disponível em: https://
periodicos.ufjf.br/index.php/locus/article/view/20629.
Acesso em: 16 out. 2019.

AUBERT, Eduardo Henrik. L’anthropologie historique par le


détour de la musicologie: une ethnomusicologie historique
du Moyen Âge est-elle souhaitable?. L’Atelier du Centre
de recherches historiques: Revue électronique du CRH,
v. 6, n. 1, p. 1-13, 2010. Disponível em: https://journals.
openedition.org/acrh/1916. Acesso em: 16 out. 2019.

BASCHET, Jérôme. Jacques Le Goff e o local correto


das descontinuidades na História. Brathair: Revista de
Estudos Celtas e Germânicos, v. 16, n. 2, p. 114-135, 2016.
Disponível em: ppg.revistas.uema.br/index.php/brathair/
article/view/1248. Aceso em: 16 out. 2019.

BENATTE, Antonio Paulo. História e antropologia no


campo da Nova História. Revista História em Reflexão,
v. 1, n. 1, p. 1-25, 2007. Disponível em: http://ri.uepg.
br/riuepg/bitstream/handle/123456789/523/ARTIGO_
HistoriaAntropologiaCampo.pdf?sequence=1. Acesso em:
16 out. 2019.

COHEN, Jeffrey J. Introduction: Midcolonial. In: COHEN,


Jeffrey J. (org.). The postcolonial Middle Ages. New
York: St. Martin’s Press, 2000. p. 1-17.

55 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

GUENÉE, Bernard. Histoire et culture historique dans


l’Occident médiéval. Paris: Editions Aubier-Montaigne,
1980.

GUERREAU, Alain. El Futuro de un Pasado: la Edad Media


en el siglo XXI. Barcelona, Crítica, 2002.

HAR-PELED, Misgav. Décoloniser l’histoire occidentale:


Les naissances politiques de l’anthropologie historique.
L’Atelier du Centre de recherches historiques: Revue
électronique du CRH, v. 6, n. 1, p. 1-13, 2010. Disponível
em: https://journals.openedition.org/acrh/1914. Acesso
em: 16 out. 2019.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição


à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma
Patrícias Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro:
Contraponto; Editora PUC-RIO, 2012.

LAKE, Justin. Current approaches to medieval historiography.


History Compass, v. 13, n. 13, p. 89-109, 2015. DOI
10.1111/hic3.12222. Disponível em: https://onlinelibrary.
wiley.com/doi/abs/10.1111/hic3.12222. Acesso em: 16 out.
2019.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade


Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa:
Estampa, 1993.

PALMIÉ, Stephan; STEWART, Charles. Introduction: For an


anthropology of history. HAU: Journal of Ethnographic
Theory, v. 6, n. 1, p. 207-236, 2016. DOI 10.14318/
hau6.1.014. Disponível em: https://www.haujournal.org/
index.php/hau/article/view/hau6.1.014. Acesso em: 16
out. 2019.

56 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
É possível uma história da historiografia medieval?

SANTOS, Pedro Afonso Cristovão dos; NICODEMO, Thiago


Lima; PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. Historiografias
periféricas em perspectiva global ou transnacional:
eurocentrismo em questão. Estudos Históricos, v. 30, n. 60,
p. 161-186, 2017. DOI 10.1590/s2178-14942017000100009.
Disponível em: http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.
php/reh/article/view/65456. Acesso em: 16 out. 2019.

SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 1990.

SCHMITT, Jean-Claude. O corpo, os ritos, os sonhos,


o tempo: ensaios de antropologia medieval. Petrópolis:
Vozes, 2014.

SETH, Sanjay. Razão ou Raciocínio? Clio ou Shiva? História


da Historiografia: International Journal of Theory and
History of Historiograhy, v. 6, n. 11, p. 173-189, 2013.
DOI 10.15848/hh.v0i11.554. Disponível em: https://www.
historiadahistoriografia.com.br/revista/article/view/554.
Acesso em: 16 out. 2019.

SPIEGEL, Gabrielle. The past as text: the theory and


practice of medieval historiography. Baltimore: John
Hopkins University Press, 1997.

STEWART, Charles. Historicity and Anthropology. Annual


Review of Anthropology, v. 45, n. 1, p. 79-94, 2016. DOI
10.1146/annurev-anthro-102215-100249. Disponível em:
https://www.annualreviews.org/doi/abs/10.1146/annurev-
anthro-102215-100249. Acesso em: 16 out. 2019.

57 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
Rodrigo Prates de Andrade

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

Rodrigo Prates de Andrade


andrade.rprates@gmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina
Florianópolis
Santa Catarina
Brasil

RECEBIDO EM: 25/OUT./2019 | APROVADO EM: 26/MAR./2020

58 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 39-58 - DOI https://doi.org 10.15848/hh.v13i33.1542/
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Performances do passado: drama social e conceito


de história nos últimos anos de Alfonso X de Castela
(1272-1284)
Performances of the past: social drama and the concept of
history in Alfonso X’s final years (1272-1284)

Rodrigo Bragio Bonaldo


https://orcid.org/0000-0002-3938-5169

RESUMO
Este artigo interpreta o conceito de história em Alfonso
X de Castela (séc. XIII) desde o ponto de vista das ABSTRACT
expectativas relativas às apresentações de suas
This article investigates the concept of history in the
estorias nas cortes. Para tanto, aproxima a Estoria de
works of Alfonso X of Castile (13th century) through
España e a General Estoria da prática trovadoresca e
the performative display (retraer) of his stories at the
do universo conceitual jurídico que a regulamenta na
courts. Such performances bring Estoria de España and
Segunda Partida. No nível teórico, a análise mobiliza
General Estoria closer to troubadour practices, as well as
um diálogo entre a história dos conceitos e os estudos
to the legal universe that regulate them in the Segunda
de performance. O debate converge com respeito à
Partida. At a theoretical level, this analysis enables a
centralidade das práticas corporais para a agência dos
dialogue between Conceptual History and Performance
conceitos na vida material, o que indica: 1) a emergência
Studies; such debate converges with the centrality of
politicamente orientada do presente no passado, via
bodily practices for the agency of concepts in material
paralelos, e do passado no presente, via performance;
life, which indicates: 1) the political emergence of the
e 2) a tensão entre história e poesia na composição de
present in the past (via parallels) and of the past in
um discurso que se quer verdadeiro. Por fim, defende-
the present (via performances); 2) a tension between
se a importância da mobilização dos múltiplos sentidos
history and poetry in the composition of a true discourse.
do conceito de retraer para a compreensão da conexão
Finally, I stress the historically saturated nature of the
entre a crise do reinado e a modificação semântica do
concept of retraer, along with the mobilization of its
conceito de história alfonsino.
meanings to understand the connections between social
crisis and semantic change on Alfonso X’s concept of
History.

PALAVRAS-CHAVE
História dos Conceitos; Estudos de Performance;
Historiografia Medieval
KEYWORDS
Conceptual History; Performance Studies; Medieval
Historiography

59 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

Os anos finais da vida de Alfonso X foram marcados


pelo seu abandono por parte dos familiares, pela rebelião
dos nobres, dessa vez liderada pelo filho, pela consequente
solidão e pela doença. Neles, o velho rei, com a face
desfigurada, olho esquerdo vazado pelo câncer, recuou para
o scriptorium do palácio de Sevilha. Na cidade preferida de
seu pai, ocupou-se em escrever história. Esquecido por todos,
com exceção da filha Beatriz, Alfonso tomaria uma última
e desesperada medida: pede auxílio a seu maior inimigo,
Ibn Yûsuf, emir do Marrocos. É na chamada “versão crítica”
da Estoria de España, retrabalhada nesse momento de crise
(circa 1282-1284), que encontramos as razones – a ordem
e o sentido – atribuídas pelo Rei Sábio a sua aliança com o
flagelo mouro:

Al rey Rodrigo cuedan quel mató cuende Julián. Fruela mato a su


Hermano Vimarano com sus manos (...) e después sus vassallos
mataron a Fruela en Cangas por vengança del Hermano. El
infant don Garçia tomó el regno por fuerça a su padre el rey
don Alfonso el Magno. (...) Al rey don Alfonso, fijo del rey don
Fernando el que ganó Seuilla, tolliól el regno su fijo el infante
don Sancho. E alçáronse com don Sancho todos los del regno,
e ajuramentáronse contra el rey para prenderle et echarle de
la tierra. Mas ayudóle Dios e los de Seuilla e el rey Abeneniufal
de los abonmarines a esse rey don Alfonso (ms. Ss, F. 66v,
corresponde a PGC, p. 314b 2-7; apud MARTÍNEZ 2010, p 448;
Cf. FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ 2000, p. 80)

O texto compila a Historia de rebus Hispaniae, lembrando,


a partir do Toledano, os assassinatos cometidos nas cortes
godas como razões para a derrota cristã na antiguidade
tardia. O paralelo entre Alfonso III e seu filho Garcia com
o caso de Alfonso X e Sancho IV aparece para deixar claro
que a usurpação do reino é um delito tão grave quanto o
regicídio. Como mostraram Francisco Rico e Diego Catalán, a
historiografia alfonsina incluía-se dentro de um projeto político
e cultural unitário. Suas “estorias” não foram compiladas
apenas tendo em vista um viés “enciclopédico”, mas politizavam
uma epistemologia já manifesta na General Estoria e que

60 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

se torna mais clara na “versão crítica” da Estoria de España


(MARTIN 2000, p. 49-50). Ora, a dignidade dessas estórias não
residia apenas na intenção em legitimar o monarca e seu saber,
mas na capacidade de administrar “enseñanzas” na mesma
medida em que prometia – ainda que por “castigos” (como a
invasão moura) – enredar um “curso del mundo”, compondo
uma ordem do tempo cujo espaço central era habitado pelo
corpo do rei (REDONDO 2000, p. 138-139).

A elaboração dos ensinamentos e dos castigos como funções


do sentido do tempo ou do “curso del mundo” responde,
portanto, pela politização das estorias. Indica usos políticos
que conferem significado à emergência de passados presentes.
Relaciona-se a um fenômeno diagnosticado na historiografia
medieval por Gabrielle Spiegel a partir de Reinhart Koselleck
sob o conceito de “simultaneidade do não simultâneo” (SPIEGEL
2016, p. 22). Prenúncio de dramas, narrativas que entrelaçam
temporalidades dissonantes, encenações de assincronia que
multiplicam experiências: com essa figura de pensamento
descrevemos uma “outra grande modalidade de relação com
o tempo” (HARTOG 2017, p. 136), uma outra grande forma,
em especial, a partir do surgimento do regime de historicidade
moderno, o qual tenderá a descartar qualquer indício de
simultaneidade como anacronismo. Se a identificação de
estratos e combinações de tempos nos textos medievais não é
uma novidade para os medievalistas, o que este artigo propõe é
uma interpretação do “anacronismo” na historiografia medieval
a partir de sua relação com a performance dos relatos. O
argumento que busco explorar, portanto, parte da ideia de que
o conceito de história alfonsino obtém ganho de compreensão
ao levarmos em conta as expectativas para a apresentação das
histórias nas cortes.

Parto, dessa forma, do chamado de Gabrielle Spiegel para


que observemos os “múltiplos estratos do tempo embutidos
nos processos e práticas históricas”, de modo a aproximar os
estudos sobre a escrita da história medieval da “perspectiva
de Koselleck a respeito do tempo histórico” (2016, p. 31).

61 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

Entretanto, não deixo de avançar das políticas da linguagem


às novas “materialidades” (PIHLAINEN 2019) – e o faço por
dois caminhos convergentes. Primeiro, reconhecendo os atuais
esforços da história dos conceitos em superar o logocentrismo
do campo. Esforços que levam autoras como Margrit Pernau e
Imke Rajamani a advogarem pelo papel do corpo nos processos
de mudança conceitual. É ao indagar conceitos vernaculares
e campos semânticos não redutíveis à racionalidade moderna
que as pesquisadoras desenvolvem um modelo que “enfatiza
ser através da tradução para práticas corporais que os conceitos
impactam na realidade material” (PERNAU; RAJAMANI, 2016
p. 59). Creio que tal percepção complemente estudos recentes
que buscam indagar a mudança conceitual na Estoria de España
não apenas através do texto, mas também de outros suportes
conceituais, como os ciclos pictóricos (RODRÍGUEZ PORTO,
2012; 2014). Afinal, frente a um contexto pré-moderno no qual
“corpos, imagens e vozes expressavam conceitos” – quando
eram as palavras escritas que procuravam “assemelhar-se
às vozes e às figuras” (BOUZA 2002, p. 111 e 113) – não
exercitaríamos uma abordagem compreensiva ao problematizar
as relações entre performances (orais, visuais, corporais) e a
escrita da história?

O segundo caminho será trilhado precisamente por um


diálogo com os estudos de performance. Procuro inspiração
no conceito de “drama social”, proposto por Victor Turner, e
parto dos desdobramentos da discussão após o encontro
do antropólogo com Richard Schechner. Sem impor às
fontes um rígido modelo, guardo nos olhos a dialética entre
processos sociais implícitos e performances manifestas, entre
dramas coletivos e estruturas retóricas que os elaboram
(TURNER 1992, p. 72-73).

É, afinal de contas, entre 1272 e 1284, última e mais


dramática década de vida de Alfonso X, que o rei se dedica
a revisar sua grande obra historiográfica. Na Castela do
século XIII, os dramas sociais, como ciclos de aceleração
do tempo, completavam-se de dois em dois anos. Era com

62 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

essa periodicidade que se reuniam as cortes, os conflitos


eram suspensos e as histórias, performadas. Chamo de
performance o resultado da “tensão criativa” entre ritual e jogo
(SCHECHNER 2013, p. 80 et passim). Minha análise tem como
foco seu caráter processual, amarrada por questionamentos
a respeito da experiência político-cultural como experiência
do tempo. Nas páginas que se seguem, sugiro que seja na
“teatralidade” das formas de apresentação da história (ocorridas
nesses momentos em que os ciclos se completavam e as
negociações eram instauradas) que se constitui um clima de
imersão e produção de efeitos de presença do passado
(GUMBRECHT 2010) – e sustento que isso se dê pela aproximação
da historiografia alfonsina com o universo conceitual e com as
práticas trovadorescas.1

Este artigo está dividido em três partes. A primeira secção


procura capturar as palavras associadas à performance dos
feitos na Espanha do século XIII, com o objetivo de estabelecer, 1 Este caminho foi
através desse procedimento, o campo semântico próprio aberto pelos estudos
de Jesús Rodríguez-
do lexema retraer, termo que, na elaboração de Rodriguez- -Velasco (2006; Cf.
Velasco (2006), regulamentava a relação entre palavras e RODRÍGUEZ PORTO
2014, p. 948).
feitos. Mas a história dos conceitos interessa-se sobretudo pela
mudança conceitual e a põe em relação com a mudança social.
O método que busco empregar, portanto, instrui a investigação
não a partir da descrição sincrônica ou da definição fotogênica
de um conceito, mas da narrativa, cadenciada por imagens
documentadas em movimento, de sua franca modificação.
A análise que segue identifica uma transição semântica que
vai de uma primitiva acepção agonística até a tentativa de
estabilização de seu significado em um valor pedagógico. Ao
fim do artigo, como veremos, essa mudança conceitual será
justificada por uma modificação de público-alvo.

A segunda parte dá conta de um primeiro ciclo de


tensões. Esse “drama social” inicia-se com a rebelião
de 1272 e arrefece na primavera de 1274, quando o rei
anuncia a retomada de suas tratativas pelo trono do Sacro-
Império (Ida al Imperio). É nessa ocasião que julgo ser

63 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

oportuno analisar a documentação legislativa alfonsina.


Valho-me, sobretudo, de trechos da Segunda Partida. Será
nesse segundo momento que aproximarei a historiografia
do rei sábio do seu universo conceitual jurídico.
O objetivo é investigar as expectativas abertas pela
regulamentação da performance de retraer. Busco entender
o repertório do jogo desde o “fablar en gasaiado: o
departir (debater), retraer (contar ou narrar fatos reais ou
fictícios) e o jugar de palabra (escarnecer)” (SODRE 2012,
p. 141). A combinação dessas estratégias pode tornar a
linguagem ambígua o suficiente para evitar (ou provocar!)
episódios violentos. Logo, interesso-me em compreender
a importância das emoções causadas por esses artifícios
(as quais oscilam perigosamente entre o riso e a fúria) para
a reprodução da fidelidade dos vassalos ao rei. Mais do
que isso: questiono os modos como a legislação intenta
disciplinar o jogo por meio de um ritual. Aí começam a entrar
em cena o valor de verdade e a clareza da historiografia, a
qual procura domar a equivocatio, a ambiguitas e a obscuritas
(DIAS 2009).

A crise sucessória inaugurada pelos acontecimentos


de 1275 abre um novo momento no reinado alfonsino, e a
ela dedico a terceira e última parte do artigo. Meu ponto de
chegada se dará ao assinalarmos a crescente contradição entre
a verdade e a mentira, figuradas, no discurso alfonsino tardio,
entre a história e a poesia. Trata-se do período mais delicado
do reinado de Alfonso X. É também o momento mais sensível
para o meu argumento. Ao passo que a crise se agrava, as
trocas entre a escrita da história, o universo conceitual e as
práticas trovadorescas encontram um limite crítico. Frente às
ameaças da equivocatio, a tensão instaurada entre história
e poesia torna-se insustentável, no limite de provocar, entre
os dois conceitos, uma ruptura. Uma quebra que determinará
negativamente a definição dos contornos do conceito de história
alfonsino, permitindo que as estorias se consolidem como um
“discurso verdadeiro”.

64 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

Com isso, completamos dois objetivos: 1) compreender


como as modalidades alfonsinas de cultivo do passado (escrita
e performance) respondem às crises políticas – à deserção
das altas linhagens, à crise sucessória e às invasões mouras
– culminando no universo conceitual próprio à General Estoria
e, principalmente, à “versão crítica” da Estoria de España;
2) estabelecer um diálogo, através de uma investigação
teoricamente orientada, entre os estudos de performance e
a história dos conceitos, aplicando-o ao questionamento dos
modos de disciplina referentes a conceitos pré-disciplinares de
história e suas formas de apresentação. Drama social, drama
conceitual: a pesquisa nos conduzirá ao argumento que liga
as narrativas e encenações do não simultâneo à sucessão
acelerada de conflitos que, na linguagem da violência corporal,
negociavam a modificação de “conceitos-chave” (IFVERSEN
2011; KOSELLECK 2006). 2 Embora assuma-
mos, com fins didáti-
cos, que a Estoria de
Antes de começarmos, julgo necessário um breve España corresponda
comentário preliminar sobre as fontes. Desde os anos 1980, à história nacional e
a General Estoria à
com os estudos de Diego Catalán, distinguem-se na tradição história universal, é
textual da Estoria de España entre as “versões”, levadas a digno de nota que a
primeira guarda ca-
cabo pela rede dos scriptoria de Alfonso X, e as “crônicas”, racterísticas de uma
de origem pós-alfonsina (FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ 2000, p. 10). história universal (Ver
RICO 2008).
Aqui nos interessam as duas redações alfonsinas. A “versão
primitiva” foi elaborada entre 1270 e 1275. Em 1983, com
a aparição do manuscrito Ss, descobre-se a “versão crítica”,
texto que – graças ao excerto citado na abertura deste artigo
– temos certeza de que foi composto entre 1282 e 1284 (DE
LA CAMPA 2000, p. 88-90). A General Estoria, uma grande
história universal em seis partes, tem sua redação iniciada
em 1274. Em 1280, começa a circular sua Quarta parte, a
última escrita durante a vida do rei (RICO 2008, p. 41-43)2.
Dentro do projeto político-cultural alfonsino, ambas as estorias
ocupavam uma posição chave na comunicação do monarca
com seus reinos, “perfeitamente homóloga”, nas palavras de
Georges Martin, “à relação sociopolítica estrutural rei/povo que
proclama a Segunda Partida” (2000, p. 41, grifos originais).

65 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

É nesse espírito que interrogo a documentação jurídica. O


estado da arte assume que o Especulo era a forma original das
Siete Partidas; e que o Setenario corresponde à tentativa final
de revisá-las após 1272 (ou, contraditoriamente, um modelo
inicial). Embora ainda se discutam as datações aproximadas,
certo é que a Segunda Partida, a qual contém leis que vão nos
interessar, estava concluída, senão desde 1265 (O’CALLAGHAN
2019, p 14), pelo menos até 1272 (SODRÉ 2009, p 152).
Alguns autores argumentam que a promulgação das Partidas
tenha se dado apenas em 1348, com o Ordenamiento de
Alcalá. Antes disso, o código seria válido apenas para os pleitos
reais (GONZÁLEZ JIMÉNEZ 2004, p. 367; SODRÉ 2009, p.
160). Outros sustentam que, apesar da oposição dos nobres,
não apenas as Partidas, mas o próprio Fuero Real continuou
em uso em Castela (O’CALLAGHAN 2019, p. 134). Não tenho
a pretensão de intervir nesse debate. Creio ser suficiente
para meu argumento aceitar que a Segunda Partida indica
3 A associação entre
expectativas de regramento de figuras de linguagem (e de as estorias alfonsinas
com uma “cultura do
pensamento) corporificadas em performances nas cortes. Em
passado” pré-discipli-
meu juízo, essas expectativas indiciam a domesticação de nar e não necessaria-
mente científica deve
modelos figurados em metáforas e personagens exemplares
inspiração a Nicolazzi
(fictícios ou não) que radicam comportamentos sociais (como (2019, p. 239).
a amizade e a rebelião).

Metáforas radicais
Outros tempos, outras culturas do passado: modalidades
de comunicação com os mortos e de codificação da experiência
do tempo desfilam na história e pululam no globo.3 Se a
temporalização do tempo na modernidade é uma marca
de sua aceleração, a Idade Média se identificaria não pela
resignação frente à distância imanente entre passado e futuro,
mas pelas engenhosas elaborações derivadas de expectativas
transcendentes pela experiência da vida dos mortos no
presente. A cultura medieval aproximava-se, em outras
palavras, de uma “cultura de presença”. Uma cultura que
produzia na sagração eucarística a metonímia da presença do

66 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

corpo divino (RODRÍGUEZ-VELASCO 2009 p. 23; GUMBRECHT


2010 p. 75). Uma “cultura comemorativa” que, tendo o corpo
e o espaço como dimensões predominantes, mesmo no âmbito
secular constituía lugares (como veremos, concretos) de
“recuperação, em nome de uma coletividade, de algum ser ou
evento anterior no tempo ou fora do tempo de modo a fecundar,
animar ou tornar um momento significativo no presente”
(VANCE 1981, p. 374).

O castelhano medieval possuía um conceito específico


associado a essas práticas de cultivo do passado.4 Em geral
um verbo, “retraer” ou “rretraer”, entre outras flexões do
lexema, indicava o relato oral de um argumento. Essa família
de palavras foi provavelmente tomada de empréstimo do
vocabulário da poesia provençal e das canções de gesta
francesas (RODRÍGUEZ-VELASCO 2006, p. 431) e condensava-
4 O levantamento que
se em um conceito historicamente saturado. O termo aparece segue foi realizado a
duas vezes já no Poema de Mio Cid (doravante PMC), datado partir do Nuevo dic-
cionario histórico del
de finais do século XII. Na primeira menção, ocorrida na cena español, desenvolvido
do abuso cometido pelos infantes de Carrión (“la afrenta de pela Real Academia
Española. Utilizou-se
Corpes”), as filhas do Cid reagem ao assalto dizendo: “si nos o endereço https://
fuéremos majadas, abiltaredes a vos, retraer vos los an en bit.ly/2U2CZQH.
Acesso em 28 jan.
vistas o en cortes”. Na segunda menção, já durante as cortes, 2020.
Cid retruca o olhar inquisitorial lançado a um dos símbolos
de sua honra: “Qué avedes vós, conde, por retraer la mi
barba?” (Cf. FEDERICO 2014, p. 103). A Vida de San Millán
de la Cogolla, compilada em cerca de 1230, em igual medida
faz uso da expressão, primeiro, relacionando “retraer e
contar”, depois, “dezir e retraer”. O Libro de Alexandre, de
1240-1250, utiliza o conceito pelo menos quatro vezes,
associando-o a “veer”, “retener”, “dezir”, “connoçer”, “plazer”
e “creer”. A relação desses verbos de ação comunicativa,
narração e lembrança, com o problema da honra, da
“eredat” (herança), dos antepassados e da justiça retorna no
Poema de Fernán González, enquanto o Poridat de Poridades
(ambos circa 1250) garante que “puedes tu retraer la ondra en
que eras”.

67 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

Se Fernando III já havia incorporado o lexema no Fuero


Juzgo, lançado em 1241, as obras alfonsinas farão largo uso
do conceito e, como veremos, o Rei Sábio chegará a legislar
sobre as práticas associadas a ele na Segunda Partida. Na
versão primitiva da Estoria de España (doravante PCG), retraer
é coligado a questões de “heredamiento”, assim como à prova
(“prouar”) por meio da visão (“veer”), do ouvido (“oyr”) e dos
feitos dignos de serem lembrados (as “muy grandes noblezas”).
Para Alfonso X, se “deue morir la mas onrrada mientre que
pudiere”, de modo que, em vida, façamos “cosa que nos ayan
siempre que retraer”, pois mais vale morrer ou ser aprisionado
do que “fazer mal fecho que despues ayan a los parientes que
retraer”. Se, na primeira história nacional, a expressão aparece
pelo menos uma dezena de vezes, seu uso na General Estoria
não é menos vasto, embora o significado do conceito sofra
restrições: “retraer los primeiros fechos”, “& dellos por retraer
lo que saben” de modo que se faria “grant la estoria & las
razones della”. Na história universal alfonsina (circa 1280), o
conceito aparece na companhia de um número mais limitado
de palavras, as quais chegam a se repetir: “[rele]menbrar”,
“contar los buenos fechos”, quando “quiero retraer e contar
de cabo las cosas por que avemos passado” ou quando Moisés
“escuantra los fijos de Israel e les comiença a retraer las leies”.
A relação com as disputas pela honra sobrevive senão pela
cópia do excerto supracitado do Poridat de Poridades. Como
uma ação intermediária entre a memória e a intenção de
expressá-la, a asserção aparece ainda nas Cantigas 24, 56 e
99, fazendo menção à lembrança dos milagres operados pela
Madre de Deus: “Dest’un miragre retraer”. Essa modificação
semântica é, contudo, tardia. Voltaremos a ela no final deste
artigo.

O verbo retraer estratifica uma série de valores que jogam


com o universo simbólico da aristocracia guerreira. Nas canções
de gesta, a palavra tem ligação com disputas pelos significados
da honra – a qual refere-se à posse dos meios de produção
(terras) e à reprodução social da propriedade pelo direito de
herança – via fixação dos grandes feitos e lembrança da linhagem

68 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

ancestral. Retraer servia de meio de comunicação de “metáforas


radicais” (TURNER 2008, p 22) que balizavam “modelos
de conduta” (DIAS, 2009). Mais do que jogo de linguagem
(o qual se podia “oyr”), a palavra insinuava uma performance
(que se poderia “veer”), uma espécie de disputatio vulgar, um
fablar en gasaiado, um ritual e um jogo no qual se brincava com o
corpo (como a barba de Cid) além das palavras (MADERO 1992;
SODRÉ 2012). Na violência simbólica imanente às canções de
gesta, retraer poderia ser algo como reprochar ou acusar. O
campo semântico do conceito habitava um ponto de intersecção
entre os significados da memória e da justiça, da vingança e
da reparação. O retraer era enunciado desde uma perturbação
de sentido e vinha abrir a arena hermenêutica que possibilitava
sua (re)constituição mediante uma negociação. Sob signos que
humanizam o tempo, ele oferecia chaves culturais para se lidar
com uma crise, senão mesmo, em sua ambição mais sublime,
com a própria morte mediante a lembrança eterna.

Na versão primitiva da Estoria de España, vemos a


orientação desse jogo de valores rumo a um lugar concreto,
rumo a um espaço de ordem no qual perturbações temporais
podem ser superadas. O lexema verbal indicava uma ação
comunicativa, a abertura de um fórum, um canal no qual a
linguagem da fidelidade demarcava a distância e o pacto de
arbitragem entre o corpo do rei e seus fortes (e sediciosos!)
braços. Seu modelo ainda estava próximo da poética das
canções de gesta. As emoções que o retraer expressava ou
provocava assumiam “função estrutural no sentido de que
refletiam tensões políticas” (BOUQUET; NAGY 2018, p. 125) as
quais demandavam mediação. O conceito de retraer capturava
significados que delineavam o horizonte de expectativas da
justiça. Ou Elvira e Sol, no PMC acuadas pelos Infantes de
Carrión, não deixaram de lhes sugerir o castigo e a reparação
da desonra: “retraer vos los an en vistas o en cortes”? É para
as cortes e para o palácio, lugares da execução da justiça e da
enunciação da verdade, que devemos agora atentar.

69 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

Primeiro ato: a rebelião de 1272


Alfonso X reinou entre 1252 e 1284. Filho de Fernando
III e Beatriz da Suábia, herdou quase toda a península
ibérica. Aquilo que chamamos de “rebelião dos nobres” diz
respeito a uma série de acontecimentos que respondem às
políticas administrativas, aos gastos da coroa, às medidas
legais e às inovações conceituais do reinado alfonsino. Seus
antecedentes repousam em querelas familiares, na relação
do rei com os príncipes de Espanha. O equilíbrio entre os
poderes das principais casas, unidas sob os senhores de
Lara e de Haro, era pressuposto para a paz. A alta nobreza
contava outras famílias, como os Cameros, os Manrique,
os Mendoza, os Ponce e os Meneses, as quais se definiam
por patrimônio, linhagem e favorecimento das cortes.
Mais abaixo ficavam os ricoshombres, os cavaleiros não
vilões e os senhores de terras em geral. A Igreja e os
habitantes das cidades completavam os estados gerais
(Partidas, II, XXI, preâmbulo).

A mediação entre esses interesses privados era realizada


nos ayuntamientos, encontros regionais, e nas cortes
generales, verdadeiras assembleias dos estados, as quais o
rei costumava convocar uma vez a cada dois anos. Na Castela
medieval, as cortes eram “instituições nômades, mais do
que itinerantes” (RODRÍGUEZ-VELASCO 2009, p. 21). Não
havia uma capital do reino, sequer um centro para além
da estrutura física do monarca. Nas Partidas (II, IX, 27), a
corte é definida como o ambiente no qual coabitam o corpo
do rei, o de seus vassalos e de seus oficiais, funcionando
também como uma schola (RODRÍGUEZ-VELASCO 2006, p.
438; MARTÍNEZ 2010, p. 112). Na lei seguinte (Partidas II,
IX, 28), a corte aparece como um mar profundo e largo que
cercava toda a terra. Nesse vasto oceano cabiam “pescados de
muitas naturezas”. Nele, a largueza aparecia como sinônimo
não de generosidade – como era comum nas canções de gesta
– mas de extensão e variedade de opiniões. Algumas eram
verdadeiras; outras, falsas. Aos conselheiros caberia o papel

70 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

da agulha de uma bússola a orientar o caminho das decisões


reais (RODRÍGUEZ-VELASCO 2006, p. 435; O’CALLAGHAN
2019, p. 101).

A próxima lei define o que é palácio (Partida II, IX,


29). Ao contrário da corte, lugar de incerteza, o palácio é
o espaço do saber certo e verdadeiro. Nele, o rei se reúne
com os homens, com eles compartilha comida, delibera
pleitos, depois “joga com as palavras”. Apenas aquilo que era
conveniente devia ser enunciado ou disputado. As palavras
inconvenientes, minguadas ou soberbas, eram reprimidas.
Alfonso, é claro, precisava lidar com elas se quisesse financiar
a conquista da coroa imperial ou guerrear contra os mouros
(MARTÍNEZ 2010, p. 315). De todas as cortes que convocou,
uma primeira desponta como evento disruptivo, marcando,
na história de seu reinado, a fronteira entre um antes e um
depois: aquela que se reuniu em Burgos, entre 29 de setembro
e 11 de novembro de 1272.

Os nobres não confiam mais em convites e resolvem


reclamar do lado de fora das muralhas. Mandam o melhor
amigo do rei, Nuño de Lara, ir ter com Alfonso. Tinham se
indisposto com uma série de inovações relacionadas à
retomada do direito romano. Protestavam também a respeito
dos custos do casamento de Fernando de la Cerda e da conta
das “idas” e “buscas do império” (KINKADE 1992, p. 292-
293; MARTÍNEZ 2010, p. 323-326; O’CALLAGHAN 2019, p.
20 e 198). Alfonso conseguiu a maioria dos votos dos três
estados, deixando os rebeldes sem alternativa. Enviaram
emissários informando suas intenções de desnaturación – ou
quebra do pacto vassálico – requisitando um tempo de graças.
No total, o monarca concedeu-lhes 42 dias; ganhava tempo
para convencer os vassalos de seus vassalos a não seguirem o
caminho da rebelião. Ao todo, cerca de 1200 pessoas rumaram
ao sul, no trajeto confiscando alimentos, profanando templos,
incendiando povoados, saqueando outros, em direção ao
exílio no qual renderiam homenagem ao emir de Granada
(O’CALLAGHAN 2019, p. 165; KINKADE 1992, p. 294).

71 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

Por um lado, Alfonso inaugurava um conceito de


realeza como instituição “total” ou “imperium monárquico”
(RODRÍGUEZ-VELASCO 2009, p. 30). Por outro, mantinha o
costume antigo de considerar o reino sua propriedade privada.
Apenas nos meses finais de 1273 que a situação começaria a
dar sinais de reconciliação. O rei parece ter feito concessões às
cortes reunidas em Burgos. A extensão e a permanência dessas
medidas são, porém, debatidas. Alguns sustentam que, para
isso, Alfonso X a tudo acatou, da restauração dos Fueros Viejos
à suspensão de taxas da Igreja (MARTÍNEZ 2010, p. 329-330).
Outros lembram que existem evidências do uso do Fuero Real
em Castela após 1272 (O’CALLAGHAN 2019, p. 134).

Os eventos de 1272 montam o palco de um primeiro ato


para nossa descrição da mudança semântica do conceito de
história alfonsino. A relação do rei com sua própria família,
em especial seus irmãos, deteriorou-se rapidamente, como
demonstra o exílio de Enrique e a participação de Felipe na
revolta (O’CALLAGHAN 2019, p. 35). A data de 1272 marca uma
mudança na comunicação do rei com as classes dominantes.
O monarca torna-se menos inclinado a impor e mais dedicado
a convencer (FERNANDEZ-ORDÓÑEZ 2000, p. 66). No âmago
desse projeto – volto agora a argumentar mais diretamente
– encontrava-se a tensa relação entre as cortes e o palácio,
lugares que serão figurados, respectivamente, como próprios
à poesia e à história.

A rebelião dos nobres aponta como a passagem do tempo


social assume formas que a antropologia da performance teria
chamado de “dramáticas”. No século XIII, essas irrupções
ganhavam um caráter “público” durante as cortes. Nesses
momentos liminares, as relações entre lealdade e obrigação
são colocadas à prova. O conflito dispõe em evidência aspectos
fundamentais da sociedade: os laços familiares, as relações
de vassalagem e matrimônio, a honra e o dever etc. Os
“dramas sociais”, como tenho argumentado, organizam-se
como estruturas que não são “produto do instinto, e sim de
modelos e metáforas que os atores carregam em suas cabeças”

72 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

(TURNER 2008, p. 30-31). É por esse motivo que instruímos a


investigação com a análise do campo semântico do conceito de
retraer. Com ele, passamos da “estoria escrita à fazaña oral”
(RODRÍGUEZ PORTO 2012, p. 403). Como cadinho de metáforas
que radicam as formas de ação, o relato das façanhas impacta a
realidade material, sobretudo a partir de sua tradução através
de práticas corporais (PERNAU; RAJAMANI, 2016).

Acaso seria estranho que os magnatas resolvessem, ao


deixar Burgos em 1272, retraer as palavras atribuídas a Rodrigo
Diaz de Vivar, ao dizer adeus à mesma Burgos dois séculos
antes? Difícil esquecer do célebre verso 20 do Poema de Mio
Cid: “¡Dios, qué buen vassalo seria, si oviesse buen señor!” Essa
imagem nos leva na direção do insight fundador que advoga
pela “interdependência, talvez dialética, no relacionamento
entre dramas sociais e gêneros culturais de performance”
(TURNER 1992, p. 72). Frente a tais modelos estabelecidos,
o que Alfonso teria de fazer, dois anos depois, em busca da
conciliação? Aqui encontramos uma tarefa hermenêutica e
outra legislativa: controlar os discursos e regular seus usos.
Ambas as tarefas se encontravam na vontade de palatinização
dos estamentos cortesãos. O tratado pseudoaristotélico
conhecido em sua versão ocidental como Poridat de Poridades,
recomendava que o trabalho de transmitir a palavra do rei fosse
executado por um funcionário específico. O “alguazil” era o
oficial que, atuando próximo dos escribas e dos “estoriadores”,
tinha a tarefa de “explicar aos ouvintes, reunidos na corte,
as verdades essenciais que sustentam a autoridade do rei”
(REDONDO 2000, p. 141):

E quando fuere su fiesta, paresca uma uez em el anno a tod el


Pueblo, e fable antel us omne bien rrazoado de sos aguaziles
quel gradesca a Dios la merced quel fizo em serle todos
obedientes. E digales que les fara mucho dalgo e mucho de
plazer si forem obedientes. E amenazelos sy no fueren (...).
E com esto sera seguro del leuantamiento de los pueblos e
nenguno non sera atrevido de fazer danno em todo el regno.
(PORIDAT 2010 p. 112-113).

73 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

O tratado chega a fazer recomendações a respeito da


constituição do etos do “alguazil”. Podemos resumi-las nos
seguintes pontos: que, tendo um porte físico avantajado,
soubesse “razonar”, falando de maneira sábia e clara. Que,
sendo “fermoso de rrostro”, não fosse nem “desdennoso nin
desuergonçado”. Verdadeiro em suas palavras, que amasse
a verdade e “desam[asse] la mentira”. Buscava-se alguém
corajoso, apaixonado pelas coisas da cavalaria e pelas
histórias de batalhas, mas que soubesse escrever, conhecesse
a gramática e as palavras de Deus. Por fim, era preciso que
o candidato fosse bom “retenedor de las eras del mundo”,
conhecedor dos “dias de los omnes e de costunbres de los
rreyes” e das maneiras dos louvados “omnes antigos” (Idem,
p. 127-130; Cf. REDONDO 2000, p. 140-142).

O alguacil devia conhecer e saber transmitir com clareza


os costumes de outras épocas, sem ferir os hábitos da sua. Do
árabe, al-wazir significava, segundo as Partidas (II, IX, 20),
“aquel que ha de prender et de justiciar los homes en la corte del
rey por su mandado, ó de los jueces que judgan pleytos”. Estava
em uma posição de centralidade não apenas nas performances
de retraer, como vicário da voz real, mas também em relação
às noções de verdade e de justiça. Quando necessário, fazia
o papel de torturador, administrando tormentos na presença
de um juiz e de um escriba, os quais registravam as palavras
do torturado para que “pudessem ser utilizadas nos processos
judiciais” (O’CALLAGHAN 2019, p. 104). O controle do discurso
real era o mecanismo primeiro para a imposição da vontade
alfonsina nas cortes. Mas existia outro: a direta regulação
dos comportamentos e valores da cavalaria desde a Segunda
Partida. A leitura de histórias e o cantar de gestas tinha aí um
papel fundamental:

e por ende ordenaron que así como em tienpo de guerra


aprendiesen fecho d’armas por vista e por prueva, que otrosí
em tienpo de paz lo apresiesen por oída e por entendimiento;
e por eso acostunbravan los cavalleros cuando comíen que les
leyesen las estorias de los grandes fechos de armas que los otros
fezieran (Partidas II, XXI, 20).

74 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

Estipular aquilo que os nobres deveriam ler ou ouvir


enquanto comiam era apenas uma das prescrições éticas a
respeito da cavalaria. Dormir, se vestir, como falar e se portar:
os legisladores alfonsinos não pouparam regulamentos.
Pode-se dizer que as Partidas chegam a reinventar a classe
guerreira, no sentido de que promovem uma “transformação
dos modos de conceber e de falar da cavalaria” (RODRÍGUEZ-
VELASCO 2009, p. 42 grifos originais). Abriam uma negociação
calcada em dois valores fundamentais: a honra e a lealdade,
propondo, frente a elas, o consenso em torno do que era
“pro comunal”. Seus objetivos buscavam colocar a violência
simbólica e efetiva praticada pela cavalaria à serviço da
coroa, além de prever punições para os infratores do pacto.
Como mostrou Georges Martin, o título XXI da Segunda
Partida capturava toda a nobreza em um modelo de ética
cavaleiresca administrado por uma função (a defesa do reino)
e um conjunto de rituais (inaugurados pela investidura)
(MARTIN 2004, p. 234).

Esses rituais podem ser entendidos como “dispositivos” que


designam uma ordem para relações concretas de poder: “gestos,
movimentos e expressões linguísticas” coordenam estratégias
de “sujeição e dominação” (RODRÍGUEZ-VELASCO 2009, p.
27). Rituais mexem com os corpos, os vestem, os flagelam, os
cicatrizam. Lidam com as mentes, fazem uso indiscriminado de
histórias reais e fábulas pedagógicas (modelos e metáforas que
radicam comportamentos), como a relação entre Alexandre e
Aristóteles ou a história de Alfonso VI e El Cid. Para Alfonso X,
os rituais cortesãos deveriam ritmar um processo social mais
amplo relacionado à centralização monárquica. Na investidura,
o cavaleiro começa a adquirir vínculos. No ritual de retraer,
ele os reforça. A Partida II (IX, 30) regulava o conceito como
produtor de solidariedade:

Retraer en los hechos o en las cosas cómo fueron o son


pueden ser es gran binestancia a los que en ellos saben avenir. Y
para esto ser hecho como conviene, deben allí ser consideradas
tres cosas: tiempo y lugar y manera. Y tiempo: deben cuidar

75 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

que convenga a la cosa sobre la que quieren retraer, mostrando


por buena palabra o por buen ejemplo o por buena hazaña otra
que semeje con aquella para alabar la buena o para desatar
la mala. Y otrosí deben considerar el lugar, de manera que lo
retrayeren, que lo digan a tales hombres que se aprovechen de
ello (...) (Partidas II, IX, 30).

A polissemia do conceito de retraer faz seu campo semântico


ligar-se a significados cujas combinações poderiam resultar
em efeitos emocionais diversos: narrar, ver, ouvir e crer, mas
também censurar, combater ou disputar os feitos do passado
(“cómo fueron”), do presente (“o son”), do futuro ou de um
universo poético (“pueden ser”). Fazê-lo seria uma grande
virtude (“binestancia”), desde que o enunciador saiba com eles
produzir a concórdia (“en ellos saben avenir”). A tensão entre
seus argumentos verbais aqui é expressa no relacionamento,
já perceptível, mas ainda mal resolvido, entre poesia e história.
Continua o texto:

(...) así como si quisieren aconsejar a hombre escaso diciéndolo


ejemplos de hombres grandes, y al cobarde de los esforzados.
Y manera: deben cuidar de retraer en manera que digan por
palavras cumplidas y apuestas lo que dijeren y se semeje que
sabían bien aquello que dicen, otrosí, que aquellos a quienes
lo dijeren tengan gusto en oírlo y en aprenderlo; y en el juego
deben cuidar que aquello que dijeren sea apuestamente dicho, y
no sobre aquella cosa que fuere en aquel lugar a quien jugaren,
mas a juegos de ello; como si fuere cobarde, decirle que es
esforzado, y al esforzado, jugarle de cobardía, y esto debe ser
dicho de manera que aquel con quien jugaren no se tenga por
denostado, y más, lo tomen con placer, y que tengan con qué
reír de ello, tanto él, como los otros que oyeren (Partidas II, IX,
30).

Se as palavras em jogo forem proferidas na direção de


um covarde, deve-se dizer que ele é valente; e se valente
for, deve-se dizer que é covarde. Tudo isso como forma de,
pela eloquência, transformar o conflito em amizade, a ofensa
em elogio. Essa estranha passagem já foi entendida segundo

76 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

propósitos diferentes. Paulo Roberto Sodré entendeu que a lei


regulava “uma atividade cortesã que coincide com a natureza do
gênero satírico”. Preocupado sobretudo com suas repercussões
posteriores no reino português, o autor analisou essa regulação
no âmbito das artes de trovar. Nas cantigas de escárnio e
maldizer, deveriam se fazer notar “equívocos de situação” que
proporcionassem o “humor e o divertimento” (SODRÉ 2012,
p. 143). Marta Madero, por sua vez, preferiu falar de “injúria
lúdica”, procedimento operado pelos jograis em brincadeiras
com o corpo, com a religião e com o próprio comportamento
cortesão. A noção de jogo aqui é entendida por ambos os
autores como uma concepção que anula os efeitos ofensivos
das palavras (MADERO 1992, p 117-127). Rodríguez-Velasco
leu a mesma passagem com a expressão “retórica da ironia”
em mente, e a entendeu menos no âmbito da “relação entre
palavras e feitos” e mais no sentido de uma relação “entre
a palavra e seus problemas hermenêuticos” (2006, p. 433).
Por fim:

Y otrosí, el que lo dijere, que lo sepa bien reír en el lugar donde


conviniere, pues de otra manera no sería juego; y por eso dice
el verbo antiguo que no es juego donde hombre no ríe, pues sin
falta el juego con alegría se debe hacer, y no con saña ni con
tristeza. Por eso quien se sabe guardar de palabras excesivas
y desapuestas, y usa de estas que dicho hemos en esta ley, es
llamado palaciano, porque estas palabras usaron los hombres
entendidos en los palacios de los reyes más que en otros lugares,
y allí recibieron más honra los que las sabían (Partidas II, IX, 30,
grifos meus).

Creio ser relevante distinguir duas estruturas que, embora


sobrepostas, conservam entre si certa autonomia: o jogo e o
ritual. Ambas estão no cerne da performance e “na realidade,
a performance pode ser definida como o comportamento
ritualizado, condicionado e permeado pelo jogo” (SCHECHNER
2013, p. 89). Menos “sério” ou “real”, o jogo é, outrossim,
uma forma de intervenção na realidade que cerca os corpos
que “retraem” o passado. Procedimento delicado, nunca deixa
de possuir um potencial disruptivo. Jogar com as palavras

77 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

é acessar os afetos e buscar, pela inversão da experiência,


evolver-lhes por uma simulação capaz de anular a cizânia. Com
o jogo, falamos, então, de “um tipo diferente de equívoco”, o
qual “estaria justamente na surpresa de os ouvintes e o próprio
visado perceberem a brincadeira dos contrários” (SODRE
2012, p. 142). Na historiografia ibérica dos séculos XIII e
XIV, como mostrou Isabel de Barros Dias, os protagonistas
nem sempre eram censurados por lançar mão do recurso à
equivocatio. Pelo menos não enquanto conseguissem manter
um “periclitante equilíbrio entre a verdade, o possível, a
ficção e a mentira sem, no entanto, caírem nas duas últimas”
provando “sagacidade e capacidade estratégica.” (DIAS 2009,
p. 5) O jogo, no entanto, tem uma tendência indomável.
Como o “coringa em um baralho”, ele é “volátil e perigoso”
(SCHECHNER 2013, p. 89). Afinal, a produção de “efeitos
de presença” do passado (GUMBRECHT 2010) por meio
de comemorações, ou, como prefere Dias, “a criação de
outros mundos possíveis que se verifica no teatro” pode ser
considerada análoga à “interpretação de um discurso equívoco
de acordo com o horizonte de expectativa do destinatário”
(DIAS 2009, p. 6).

Em outras palavras, o riso ou o ódio poderiam refletir


tensões políticas. O jogo era uma dimensão particularmente
significativa para uma sociedade na qual “elos afetivos tinham
de facto uma dimensão política” de modo que as “alianças e
as hostilidades eram formalizadas em um nível emocional”
(BOUQUET; NAGY 2018, p. 105). A história dos conceitos
pós-virada linguística tem insistido na importância do papel
das emoções nos processos de aproximação dos significados
razoavelmente diversos que os conceitos assumem quando
comunicados por diferentes meios, como o texto, a voz,
a imagem, o corpo etc.. O acesso às emoções, argumenta-
se, é fundamental para tornar as equivalências e conexões
semânticas mais plausíveis (PERNAU; RAJAMANI 2016, p. 58).
Para os legisladores alfonsinos, regular o jogo é promover
uma tradução conceitual que possa controlar a recepção do
texto na voz e no corpo daqueles que o performam. Sem

78 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

“palabras excesivas y desapuestas”, começa-se a inculcar


comportamentos ritualizados na mobilização da linguagem e
dos movimentos corporais.

Chegamos à segunda estrutura que compõe a performance.


Com o ritual, a violência possível é subtraída da enunciação e
domesticada por regras corporificadas. Ao contrário do jogo, o
ritual guarda seriedade e nos remete à produção de estabilidades
pela repetição previsível de um roteiro. A presença do alguacil,
como vicário do corpo do rei, dava o tom oficial de quem executa
o rito, fazendo às vezes de juiz de um jogo. Era ele quem
conduzia a performance, enunciando um discurso verdadeiro.
A presença intimidadora do torturador era garantia da verdade
(alfonsina) e do castigo (corporal) da mentira. Com base nesse
horizonte de expectativa, o improviso era disciplinado na
direção da abertura do tempo e do espaço à “antiestrutura” (ao
rompimento controlado das regras sociais pelo estabelecimento
temporário de regras alternativas), ou seja, à emergência de
um estado emocional de igualdade e camaradagem marcado
pelo riso (“communitas” na linguagem antropológica; “pro
comunal” na linguagem alfonsina) (SCHECHNER 2013, p. 70 e
88). Quem alcançava esse estado era chamado de “palaciano”.
No “espaço de certezas” (RODRÍGUEZ-VELASCO 2006) do
palácio, modelos e metáforas (que radicam comportamentos)
deveriam ter seu impacto emocional orientado pela razon
alfonsina. Essa era, ao menos, a expectativa depositada pela
legislação nas performances de retraer os feitos: vencer
uma batalha por afetos, ao narrar as glórias do passado
(“no es juego donde hombre no ríe”).

Segundo ato: o terrível ano de 1275 e a crise


sucessória
Em 1275, Alfonso X vai a Beaucaire para tentar, uma
última vez, convencer o Papa de seus direitos sob o trono do
Sacro Império. À negativa papal soma-se uma sequência de
acontecimentos catastróficos. Ibn Yûsuf invade a Andaluzia.
Nuño de Lara, aconselhado a pegar as tropas adversárias

79 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

de surpresa, desce as muralhas de Écija e morre ao liderar


uma carga de cavalaria. Em Jaén, o arcebispo de Toledo,
Sancho de Aragão, é decapitado após uma escaramuça.
Mas o pior estava por vir. Fernando, príncipe herdeiro,
chega a Villa Real e logo perece de uma séria doença. Seu
último ato terá consequências duradoras para a estabilidade
do reino: fazer Juan Nunes, filho de Nuño de Lara, jurar
a defesa dos direitos de sucessão de seus filhos, os
Infantes de la Cerda (MARTÍNEZ 2010, p. 364-365;
GONZÁLEZ JÍMENEZ 2004, p. 298). Essa foi a erupção que fez
reemergir a disputa entre as duas principais casas do reino,
os Lara e o Haro, causando uma guerra civil que só seria
resolvida com a morte do rei em 1284. Esse foi a erupção
que fará reemergir, no seio do conceito de história alfonsino,
um topos antigo.

Em meio ao caos, Sancho, o segundogênito, assume a


defesa do reino. Consegue uma trégua na primavera de 1276
sob rumores de conspiração. Rumores que levam o rei a ordenar
as cruéis execuções, supostamente sem julgamento, de seu
irmão Fadrique (afogado) e de Simón Rodrigo de Cameros
(queimado). A divisão do reino incentiva Ibn Yûsuf a invadir
novamente a Andaluzia em 1277-78. No começo de 1278, a
rainha Violante foge, levando os netos à segurança das cortes
de Aragão. Ela exige resgate e Sancho, interessado no apoio
da mãe, financia seu retorno, desviando fundos alocados para
a defesa de Algeciras. O exército nunca recebe o dinheiro e
perece. No outono de 1280, o rei, furioso, manda executar o
tesoureiro real, Zag de Maleha (GONZÁLEZ JIMÉNEZ 2004, p.
324; MARTÍNEZ 2010, p. 279). Sofrendo de um carcinoma,
corre palavra de que Alfonso estaria louco e doente de lepra.
O mal da alma não faz bem a sua popularidade que, em
meio aos revezes militares, a crise fiscal e a arbitrariedade
das execuções, diminui sensivelmente enquanto a de
Sancho aumenta (MARTÍNEZ 2010, p. 419). A Ordem de
Santiago é destruída. É Sancho quem lidera os exércitos na
campanha de 1280-81 contra Granada. É ele quem força,
novamente, uma trégua. A escalada nos conduz a Sevilha,

80 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

outubro de 1281, quando ocorre a “última e mais dramática


de todas as reuniões de Cortes convocadas por Alfonso X”
(GONZÁLEZ JIMÉNEZ 2004, p. 342).

A nobreza, assustada com o comportamento do rei,


descontente pelos motivos usuais, une-se a um clero
ressentido: em maio de 1279, o Papa Nicolas III já havia feito
circular um documento (memoriale secretum) que reclamava
da interferência em questões eclesiásticas, do apontamento de
bispos, da alienação de sedes e da usurpação de taxas. Uma
velha denúncia, a de que Alfonso era uma espécie de “rei mago,
da tradição de seu tio Frederico II” (MARTÍNEZ 2010, p. 190),
retornava. Aos olhos de parte da Igreja, o rei se apresentava
como uma espécie de “novo Salomão”, um “intermediário entre
Deus e os fiéis, dispensando o clero” (Idem, p. 425-27). A ala
providencialista do reino se aproxima de Sancho com o objetivo
de convencê-lo de ser o escolhido por Deus. Durante as Cortes
de Sevilha, em 1281, pede licença ao pai para ir a Córdoba
negociar trégua com os de Granada. Ao invés disso, vai ter
com os irmãos, João e Pedro, que planejam um golpe. Iniciam
campanha para angariar aliados, unindo rumores de loucura e
de lepra com temores de tirania frente às execuções sumárias
(GONZÁLEZ JIMÉNEZ 2004, p. 343; MARTÍNEZ 2010, p. 278).

Deposto pelo “conciliábulo de Valladolid” em 1282, Alfonso


passará seus dois últimos anos em Sevilha. Agora, como a
coruja de Minerva, “tentará alcançar, através da ordenação da
‘estoria’, aquilo que não pôde conseguir com seus livros de
leis: rodear com seu ‘saber’ todos os estamentos de sua corte”
(REDONDO 2000, p. 137). Ao lado da poesia e do direito, a
escrita da história torna-se uma tarefa íntima para Alfonso.
Francisco Rico ensina que imagens recorrentes a respeito do
caráter sedicioso da aristocracia guerreira de Castela armam
o leitmotif da General Estoria. O procedimento discursivo é
transversal também na Estoria de España e intensifica-se
na “versão crítica”. Narram-se tempos remotos, lembram-se
dos mitos, assume-se o recurso evemerista que transforma
deuses em heróis e paralelos entre tempos desarmônicos

81 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

emergem simultaneamente à desarmonia social. Ao contar a


história do primeiro Hércules, fundador de tantas cidades em
Espanha, Alfonso louva o guerreiro mítico, para queixar-se dos
cavaleiros de Castela. Afinal, ao invés de fazer a guerra em
outras partes, de moverem-se à conquista de outros países e
senhorios, resolvem no seu fincar pé para conspirar contra o
rei: antigamente não havia “tantas rebueltas del mundo e lides
e malas uenturas como en el nuestro tempo” (General Estoria,
I, p. 305a apud RICO 2008, p. 103).

Como vimos na abertura deste artigo, a emergência


politicamente orientada do presente no passado era forçada
pela intentio real. Muito próximo de seu corpo, o scriptorium
de Sevilha era o espaço em que Alfonso podia “veer
[supervisionar] e esterminar [determinar] las cosas de los
saberes qu’él mandava ordenar” (Crónica abreviada apud
MARTINEZ 2016, p. 345). Abandonado pelos nobres de Castela,
cercado de mestres, poetas e jograis liderados pelo alguacil
mayor de Sevilha, Gómez Pérez (GONZÁLEZ JÍMENEZ 2004, p.
354), o rei parecia obcecado com a ideia da verdade e com as
formas de nela fazer crer. Para isso, da mesma maneira que o
presente emergia no passado, o passado, desde um conjunto
de práticas cortesãs, deveria aflorar no presente, provocando
efeitos de simultaneidade entre tempos não simultâneos.
O prólogo da Estoria de España já elogiava o saber dos antigos
que:

ayuntando otrossi las partes, fizieron razon, et por la razon que


uiniessen a entender los saberes et se sopiessen ayudar dellos,
et saber tan bien contar lo que fuera en los tempos dantes cuemo
si fuesse en la su sazon. (PCG, prólogo, 39, grifos meus).

Contar as histórias dos tempos de antes como se estivessem


acontecendo em seu próprio. Não era essa uma perícia que se
esperava dos jograis nas cortes? Uma “teatralidade” relacionada
a razões que não parecem ignorar diferenças qualitativas
entre o ontem e o hoje, embora tendam a sublimá-las em
nome da possibilidade de cantar e emaranhar temporalidades

82 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

dissonantes. Uma modalidade de relacionamento com o


tempo praticada por gestos que performam o passado
“en la su sazon”. Aqui os recursos disponíveis até 1272
encontram um limite relacionado à disposição (textual) e à
apresentação (corporal) da historiografia alfonsina. Refiro-
me à estrutura episódica, compartilhada com as canções e
com os poemas, a qual permitiria ao texto ser tratado como
um conjunto de “feitos particulares suscetíveis de serem
desgarrados, memorizados fragmentariamente e disseminados,
retraídos sem uma ordem precisa” (RODRÍGUEZ-VELASCO
2006, p. 423, grifos meus).

Um princípio metanarrativo, no entanto, ganha força


estruturante nas versões tardias das estorias. Esse princípio
ligava-se ao modo pelo qual Alfonso concebia a História.
Constituía o núcleo poético de suas narrativas e se expressava
como uma linna que vai de Júpiter, o primeiro dos reis, até o
Rei Sábio. Dessa linhagem vieram os líderes de Troia, também
Eneias e Rômulo, os Césares e os imperadores, incluindo
Frederico Barba-Ruiva, bisavô de Alfonso (FERNÁNDEZ-
ORDÓÑEZ 2009, p. 37). A história era a narrativa dos povos que,
por direito divino, “dominaram a terra e, antes de tudo, de seus
príncipes e senhores naturais” (FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ 2000,
p. 72; 2009, p. 34-35). A sucessão dos senhorios, tendo os
detentores do imperium como metonímias do povo, subordina
o eixo cronológico que estrutura as estorias. Esse princípio,
lapidado no fim de sua vida, afiançava o pensamento político
alfonsino (REDONDO 2000, p. 142; FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ
2009, p. 117).

Em suma, a “versão crítica” da Estoria de España entregou


a resposta mais bem-acabada que o rei conseguiu dar à crise
que, inaugurada em 1275, intensificou-se até sua morte em
1284. Ela alterou o modelo da “versão primitiva”. empoderando
as figurações da monarquia (DE LA CAMPA 2000, p. 106).
Composta entre 1282 e 1283, remodelou os modelos de
explicação e transmissão da história. Mas seus pressupostos
meta-históricos já estavam ensaiados na obra que circula

83 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

ao menos desde o início da década de 1280. A General


Estoria, além de compilar boa parte do scriptorium alfonsino,
incorporou textos de diferentes confissões e procedências.
Suas premissas enciclopédicas rezavam, afinal, pela
exaustividade e pela exemplaridade das fontes. Sua cronologia
era estruturada pelos Cânones de Eusébio e Jerônimo, pelo
Pantheon de Godofredo de Viterbo e pela História Escolástica
de Pedro Comestor. Os compiladores alfonsinos enfrentaram o
desafio de coordenar a natureza fragmentária desses relatos
analísticos em unidades narrativas, as quais chamaram de
“estorias untadas” (MARTIN 2000, p. 56; FERNÁNDEZ ORDÓÑEZ
2000, p. 73).

Uma das maiores inovações da General Estoria, no entanto,


foi o uso extensivo de fontes poéticas, sobretudo a obra de
Ovídio, como as Metamorfoses e as Heroidas. Essa é a origem da
associação do rei Júpiter a Alfonso e do sentido da linna imperial,
da genealogia que faz as vezes de metanarrativa, uma vez que
ultrapassa os episódios narrados e confere a eles significado em
uma ordem do tempo. Na segunda parte da General Estoria,
as Metamorfoses chegam a ocupar o lugar dos Cânones como
fonte estrutural. O uso de Ovídio, porém, causava embaraços.
Como demonstra Irene Salvo García (2015, p. 44), um dos
principais problemas consistia em obrigar os colaboradores
alfonsinos a trabalhar com um material sobrenatural,
que incluía a transformação dos corpos dos protagonistas
(novamente a história não prescinde da domesticação do corpo,
do corpo de deuses transformados, pelo princípio evemerista,
em reis!). É notável o esforço que o texto alfonsino faz em
distinguir o mito da história, interpretando relatos sobrenaturais
como figurações que concordam com a Bíblia. Para isso, os
compiladores lançam mão de glosas e comentários exegéticos
de Ovídio, sendo o principal deles Arnulfo de Orleáns, autor das
Allegoriae (circa 1175). Em teoria, os princípios de exaustividade
(enciclopédica) e exemplaridade (dignidade epistemológica)
justificariam o uso de fontes poéticas. Por vezes, no entanto,
esses critérios não eram seguidos. García atribui tais lapsos à
chegada de um colaborador mais reticente em usar a matéria

84 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

ovidiana. Sem contestar essa hipótese particular, gostaria de


sugerir que a passagem a seguir fosse lida, igualmente, como
evidência da tensão geral que perseguimos entre história e
poesia:

los actores delos gentiles, que fueron poetas, dixieron muchas


razones en que desuiaron de estorias; e poetas dizen en el
latin por aquello que dezimos nos en castellano enfennidores e
assacadores de nueuas razones, e fueron trobadores que trobaron
enel latin, e fizieron ende sus libros en que pusieron razones
estrannas e marauillosas e de solaz, mas non que acuerden
con estoria menos de allegorias e de otros esponimientos (...)
E assi fizo Ouidio, que fue poeta, (...) non son estoria por
ninguna guisa. (General Estoria, I parte êxodo, lib. XIII, cap.
XV, p. 368b-369ª apud RODRÍGUEZ-VELASCO 2006, p. 446;
Cf. GARCÍA 2014, p. 50).

Diferente do “estoriador”, o poeta é um fingidor


(“enfennidor”), um caluniador (“assacador”), que, ao inventar
novas, estranhas e maravilhosas razões, não poderia se
distanciar mais da história. O poeta não narra gestas,
“las cosas como fueron” nem “o son”, mas canta como
“pueden ser” (Partidas II, IX, 30). A tradução do célebre
excerto 1451b da poética realizada em 1256 por Hermann,
o Alemão, da qual são conhecidas cópias em castelhano,
aqui se faz sentir (RODRÍGUEZ-VELASCO 2006, p. 433). Sua
leitura, contudo, deve parecer pouco ortodoxa para a história
das relações entre historiografia e poética, constituindo-
se em um obscuro e curioso episódio de uma longa
discussão (Cf. HARTOG 2017, p. 114-117). A história
universal alfonsina conseguiu colocar Aristóteles de
cabeça para baixo e a oposição agora contava em favor
de uma “nova dignidade epistemológica” (MARTIN 2000,
p. 48). A história era verdadeira; a poesia, mentirosa.
A tensão já foi lida como reflexo da dificuldade de se constituir
um relato histórico universal que absorvesse fontes de todas
as confissões e gêneros em uma sequência de “estorias
untadas” (GARCÍA 2014, p. 59). Mas ela também sugere
uma tentativa de estabelecer uma narrativa clara, sem

85 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

afetações alegóricas, digna de um “discurso verdadeiro”


e livre das ambiguidades da linguagem (equivocatio).
Como lembrou Isabel de Barros Dias:

A historiografia é uma forma textual cujo discurso se caracteriza


especialmente por sobrevalorizar a clareza semântica dos seus
enunciados. Esta promoção da univocidade da sua narrativa
implica a sua própria valorização como transmissora de verdades,
o que constitui ponto fundamental da imagem que, em termos
gerais, a história tem e procura veicular de si própria, mesmo se
em oposição às características inerentes à sua própria natureza
discursiva. (DIAS 2009, p. 2)

Os colaboradores alfonsinos dedicaram muito trabalho


à tarefa de aperfeiçoar as estorias, tornando sua narrativa
mais concisa, suas palavras mais claras e seus argumentos
mais precisos. Nesse sentido, sugiro que a disposição em
disciplinar o uso de “alegorias” e “otros esponimientos” dialoga
com o esforço de estabilização do conceito de retraer em um
significado que captura o horizonte de expectativas do final do
reinado alfonsino. Nos últimos anos de vida do rei, a função
de comunicação com a aristocracia – assumida pelas estorias
em 1272 – é abandonada face às circunstâncias de isolamento
político do monarca. Com o rei deposto, as estorias abdicam
da meta de arbítrio e domesticação da nobreza guerreira,
passando a mirar o ensinamento dos Infantes de la Cerda.
Como indicamos na primeira secção, retraer associa-se, na
General Estoria e na “versão crítica” da Estoria de España, aos
“fechos” capazes de fazer “grant la estoria & las razones dela”.
Saturado historicamente, o conceito agora se articula desde
um sentido há muito estratificado sob outras tantas acepções
que glosamos: o da lembrança exemplar. Graças à erupção
desse argumento, podemos dizer que o conceito de história
alfonsino torna sua escrita, efetivamente, magistra vitae.

86 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

Considerações finais
Nos últimos anos de sua vida, Alfonso X dirige a “versão
crítica” com o “objetivo de ‘reescrever’ a história da Espanha e,
sobretudo, provavelmente, com o fim, malogrado, de escrever
a sua própria” (FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ 2000, p. 80). Seria a
história, então, na Castela do século XIII, um “conceito-chave”,
um conceito que combinava “muitas experiências e expectativas
de forma a se tornar indispensável para qualquer formulação
das questões mais urgentes” de seu tempo? (IFVERSEN 2011,
p. 74) A história dos conceitos sugere que a história se torna
chave, um “conceito básico”, ao ser posta “em movimento”
(KOSELLECK 2006, p. 41) com a emergência do Sattelzeit
(1750-1850). Afinal, além de cumprir papel pertinente em
situações de mudança e contestação social, um conceito-chave
ainda precisa preencher pelo menos outros dois requisitos: 1)
transitar entre campos semânticos diferentes, sem perda de
relevância; 2) demonstrar capacidade em capturar significados
que “delineiam horizontes de expectativas” (IFVERSEN 2011,
p. 85-86).

O argumento desenvolvido neste artigo pode agora ser


formalizado: ao tempo de Alfonso X, sobretudo durante o
recorte assinalado, o conceito-chave para a experiência do
tempo não era “história”, mas retraer. O lexema correspondia à
encenação do “drama social”, era disputado e negociado entre
o monarca e os nobres, transitando entre o vocabulário das
canções de gesta, o universo conceitual jurídico, chegando até
a escrita da história. Conceito errante, conseguia capturar não
apenas o horizonte da justiça cortesã, mas apresava em seu
significado a própria mudança de expectativa com a elaboração
da historia magistra vitae palaciana. Trazia, portanto, a história
para o seu campo semântico, mas mantinha frente a ela um
grau hierárquico maior. Quem “retrai” pode retraer estorias,
mas também canções e poemas, de modo que a história era
um mero hipônimo. Por outro lado, quem a mobilizava, quem
a colocava “em movimento”, senão o conceito e as práticas de
retraer o passado? Isso equivale a dizer que, antes de acessar

87 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Rodrigo Bragio Bonaldo

o topos de “como se escreve a história” na Idade Média,


deveríamos, quem sabe, refletir sobre “como se contava a
história”.

A subordinação da escrita da história ao conceito de retraer


nos interessou sobretudo a partir de dois ângulos. Primeiro, da
aproximação que promovia entre historiografia e performance.
As chaves de leitura que falam em “cultura de presença”
(GUMBRECHT 2010) ou “cultura comemorativa” (VANCE
1981) serviram de porta de entrada para, respectivamente, a
compreensão da centralidade das práticas corporais na cultura
medieval e da importância do passado na composição de
“modelos de conduta” (DIAS 2009). Em culturas semiletradas
ou espetacularizadas, os conceitos não são carregados apenas
através da linguagem, estão nas imagens, nas vozes, nos
corpos e na política das emoções (PERNAU; RAJAMANI, 2016).
O fato de retraer ser o conceito chave na enunciação das
estorias indica sua aproximação com o universo da poesia e da
“teatralidade” imanente às performances. Essa relação ajuda
a explicar a presença do passado desde o “não simultâneo”.
A história desse modo instruída torna-se irredutível ao
tempo linear e homogêneo inaugurado pelos avatares mais
fortes do regime de historicidade moderno. Em segundo
lugar, assinalamos como a aproximação da história à poética
causava embaraços aos colaboradores do projeto alfonsino.
Sua razón, em resposta, obrigava-se a domar os gêneros
da escrita, como a lei buscava disciplinar a performance,
elaborando uma narrativa que mascarava seu núcleo poético
com a intenção de controlar a própria interpretação. Alfonso
fazia-se imperador graças a Ovídio, mas o texto da General
Estoria, mesmo estruturando sua metanarrativa desde as
Metamorfoses, precisava definir-se como saber “verdadeiro”
em oposição à poesia. Uma contradição típica de uma arte que
se quer ciência, de uma literatura que se quer verdade, mesmo
que “em oposição”, como defendeu Isabel de Barros Dias, “às
características inerentes à sua própria natureza discursiva.”
(DIAS 2009, p. 2).

88 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

REFERÊNCIAS

ALFONSO X. Estoria de España. Madison: Hispanic


Seminary of Medieval Studies, 1995.

ALFONSO X. General Estoria. Alcalá de Henares:


Universidad de Alcalá, 2003.

ALFONSO X. La Estoria de España de Alfonso X. In:


GUTIÉRREZ, Mariano de la Campa. Estudio y edición de
la Versión Crítica desde Fruela II hasta la muerte de
Fernando II. Malaga: Universidad de Malaga, 2009.

ALFONSO X. Las Siete Partidas, nueuamene Glosadas


por el Licenciado Gregorio Lopez del Consejo Real de Indias
de su Magestad. Salamanca: Andrea de Portonaris, 1555.
(Partidas).

ALFONSO X. Primera crónica general de España. Ed.


Ramón Menéndez Pidal. Madrid: Gredos, 1955.

ANÔNIMO. El Nuevo Testamento según el manuscrito


escurialense. I-J-6. Madrid: Real Academia Española,
1970.

ANÔNIMO. Fuero Juzgo. Madison: Hispanic Seminary of


Medieval Studies, 1992.

ANÔNIMO. Libro de Alexandre. Madrid: Cátedra, 1988.

ANÔNIMO. Poema de Fernán González. Madrid:


Biblioteca Nueva, 2001.

ANÔNIMO. Poema de Mio Cid. Barcelona: Crítica, 1993.

ANÔNIMO. Poridat de poridades. Alcalá de Henares:


Universidad de Alcalá de Henares, 2004.

89 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

ANÓNIMO. Traducción de las Cantigas de Santa María.


Madrid: Real Academia Española, 1974.

BAILEY, Matthey (org). Cantar de Mio Cid. University


of Texas at Austin Liberal Arts: Instructional Technology
Services. Disponível em: https://miocid.wlu.edu/. Acesso
em 22 out. 2019 (PMC)

BERCEO, Gonzalo de. Vida de San Millánde la Cogolla.


Madrid: Espasa-Calpe, 1992

BOUQUET, Damien; NAGY, Piroska. Medieval sensibilities:


a history of emotions in the middle ages. Cambridge: Polity
Press, 2018.

BOUZA, Fernando. Comunicação, conhecimento e


memória na Espanha do século XVI e XVII. In: LISBOA,
João (org.). Livros e Cultura escrita: Brasil, Portugal,
Espanha. CULTURA: revista da história das ideias. Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa, 2002. p. 105-172.

DE LA CAMPA, Mariano. Las versiones alfonsíes de la


“Estoria de España”. In: FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ, Inés
(org). Alfonso X el Sabio y las Crônicas de España.
Valladolid: Centro para la Edición de los Clásicos Españoles,
2000. p. 83-106.

DIAS, Isabel de Barros. A equivocatio na narrativa


historiográfica ibérica dos sécs. XIII e XIV. E-Spania:
Revue interdisciplinaire d’études hispaniques médiévales et
modernes. 8. Décembre 2009. DOI 10.4000/e-spania.18640.
Disponível em: https://bit.ly/3aNdIQi. Acesso em 22 jan.
2020.

FEDERICO, García Larraín. El honor en el Poema de Mio


Cid. Revista de Humanidades, n. 30, julho-dez de 2014.
Disponível em: https://bit.ly/2GyfUNR. Acesso em: 29 jan.
2020.

90 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ, Inés. El Taller de las “Estorias”. In:


FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ, Inés (org). Alfonso X el Sabio
y las Crônicas de España. Valladolid: Centro para la
Edición de los Clásicos Españoles, 2000.

FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ, Inés. Las Estorias de Alfonso


el Sabio. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes,
2009.

GARCÍA, Irene Salvo. Entre poesia e historia: la materia


ovidiana em la obra alfonsí. Troianalexandrina. v. 14,
n. 14, p. 37-63, 2014. DOI 10.1484/J.TROIA.5.108306.
Disponível em: https://bit.ly/2RWMX3v. Acesso em 29 jan.
2020.

GONZÁLES JIMÉNEZ, Manuel. Alfonso X el Sabio.


Barcelona: Ariel, 2004.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que


o sentido não consegue transmitir. Tradução de Ana Isabel
Soares. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

HARTOG, François. Crer em História. Tradução de Camila


Dias. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

IFVERSEN, Jan. About Key Concepts and How to Study


Them. Contributions to the History of Concepts, v. 6, n. 1,
p. 65-88, 2011. DOI 0.3167/choc.2011.060104. Disponível
em: https://bit.ly/2UdbNi2. Acesso em: 29 jan. 2020.

KINKADE, R. P. Alfonso, X, Cantiga 235, and the Events of


1269-1278. Speculum, v. 67, n. 2, p. 284–323, 1992. DOI
10.1086/706097. Disponível em: https://bit.ly/2vmYyB3.
Acesso em 21 out 2019.

KOSELLECK, R. Futuro Passado: Contribuição à semântica


dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia Maas;
Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto, 2006.

91 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

MADERO, Marta. Manos violentas, palabras vedadas:


la injuria en Castilla y León (siglos XIII-XV). Madrid: Taurus,
1992.

MARTIN, Georges. Control regio de la violencia nobiliaria.


La caballería según Alfonso X de Castilla. Annexes des
CLCHM. v. 16, p. 219-234, 2004.

MARTIN, Georges. El modelo historiográfico alfonsí y


sus antecedents. In: FERNÁNDEZ-ORDÓÑEZ, Inés. Las
Estorias de Alfonso el Sabio. Alicante: Biblioteca Virtual
Miguel de Cervantes, 2000.

MARTÍNEZ, Salvador H. Alfonso X, the Learned: a


biography. Leiden/Boston: Brill, 2010.

MARTÍNEZ, Salvador H. El humanismo medieval y


Alfonso X el Sabio. Ensayo sobre las orígenes del
humanismo vernáculo. Madrid: Edições Polifemo, 2016.

NICOLAZZI, Fernando. Culturas do passado e


eurocentrismo: o périplo de tláloc. In: AVILA, Arthur
Lima de; NICOLAZZI, Fernando; TURIN, Rodrigo (org). A
História (in)Disciplinada. Vitória: Editora Milfontes, p.
211-243, 2019.

O’CALLAGHAN, Joseph F. Alfonso X, the justinian of


his age. Law and Justice in Thirteenth-Century Castile.
Ithaca: Cornell University Press, 2019.

PERNAU, Margrit; RAJAMANI, Imke. Emotional translations:


conceptual history beyond language. History and Theory,
v. 55, n. 1, p. 46-65, 2016. DOI 10.1111/hith.10787.
Disponível em: https://bit.ly/2RCRzwL. Acesso em: 29 jan.
2020.

92 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

PIHLAINEN, Kalle. The Possibilities of ‘Materiality’ in


Writing and Reading History. História da Historiografia:
International Journal of Theory and History of
Historiography, v. 12, n. 31, p. 47-81, 22 Dec. 2019.
Disponível em: https://bit.ly/3c9fOcN. Acesso em: 02
maio. 2020.

PSEUDO-ARISTÓTELES. Secreto de los Secretos /


Poridat de las Poridades. Versiones castellanas del Pseudo-
Aristóteles Secretum Secretorum. Estudio y edición de
Hugo O. Bizzarri. Valencia: Universitat de València, 2010.
(Poridat)

REDONDO, Fernando Gómez. La construcción del modelo


de crónica real. In: FERNÁNDEZ- ORDÓÑEZ, Inés (org).
Alfonso X el Sabio y las Crônicas de España. Valladolid:
Centro para la Edición de los Clásicos Españoles, 2000.

RICO, Francisco. Alfonso el Sabio y la “General


Estoria”: tres lecciones. Alicante: Biblioteca Virtual Miguel
de Cervantes, 2008. E-book. Disponível em: https://bit.
ly/36yrZ06. Acesso em: 21 out. 2019.

RODRIGUEZ PORTO, Rosa M. Inscribed/Effaced. The Estoria


de Espanna after 1275. Hispanic Research Journal, v.
13, n. 5, 2012. DOI 10.1179/1468273712Z.00000000025.
Disponível em: https://bit.ly/2U5IFJH. Acesso em: 29 jan.
2020.

RODRÍGUEZ PORTO, Rosa María. De tradiciones y traiciones:


Alfonso X en los libros iluminados para los reyes de Castilla
(1284-1369). In: ESTEVE, cesc; LONDOÑO, Marcela;
LUNA, Cristina; VIZÁN, Blanca (org). El texto infinito:
tradición y reescritura en la edad media y el renacimiento.
Salamanca: Publicaciones del Semyr, p. 947-962, 2014.

RODRÍGUEZ-VELASCO, Jesús D. Ciudadanía, soberania


monárquica y caballería: poética del orden de caballería.
Madrid: Ediciones Akal, 2009.

93 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

RODRÍGUEZ-VELASCO, Jesús. Espacio de certidumbre.


Palabra legal, narración y literatura en las Siete Partidas
(y otros misterios del taller alfonsí). Cahiers d’Études
Hispaniques Médiévales, v. 29, p. 423-451, 2006.
Disponível em: https://bit.ly/36vn8ge. Acesso em: 27 jan.
2020.

SCHECHNER, Richard. Performance Studies: an


introduction. London and New York: Routledge, 2013.

SODRÉ, Paulo Roberto. Fontes jurídicas medievais: o fio, o


nó e o novelo. In: Gladis Massini-Cagliari; Márcio Ricardo
Coelho Muniz; Paulo Roberto Sodré. (Org.). Série Estudos
Medievais 2: Fontes. 1ed. Araraquara: Anpoll, 2009,
v. 2, p. 151-167.

SODRÉ, Paulo Roberto. O jugar de palabras nas rubricas


explicativas das cantigas de escárnio e maldizer. In: Gladis
Massini-Cagliari; Márcio Ricardo Coelho Muniz; Paulo
Roberto Sodré. (Org.). Fontes e edições. Araraquara:
Anpoll, 2012, v. 3, p. 140-159.

SPIEGEL, Gabrielle. Structures of Time in


Medieval Historiography. The Medieval
History Journal, v. 19, n. 1, p. 21-33, 2016.
DOI 10.1177/0971945816638616. Disponível em: https://
bit.ly/37Byv7y. Acesso em: 21 out. 2019.

TURNER, Victor. Dramas, campos e metáforas: ação


simbólica na sociedade humana. Tradução de Fabiano
Morais. Niterói: Editora da UFF, 2008.

TURNER, Victor. From Ritual to Theatre: The Human


Seriousness of Play. London: The John Hopkings press,
1992.

VANCE, Eugene. Roland and the Poetics of Memory. In:


HARARI, Josué V (org). Textual strategies: perspectives
in post-structuralist criticismo. Ithaca: Cornell University
Press, 1981. p. 374-403.

94 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
Performances do passado

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

Rodrigo Bragio Bonaldo


rodrigobonaldo@yahoo.com.br
Universidade Federal de Santa Catarina
Professor de Teoria da História
Florianópolis
Santa Catarina
Brasil

Partes diferentes e posteriormente aprimoradas


desta pesquisa foram discutidas em algumas
oportunidades, cujos convites de participação
muito me honraram. Além do evento “Autoria e
autoridade na historiografia: modelos antigos,
dilemas modernos”, organizado por Juliana Bastos
Marques e Federico Santangelo e ocorrido na
USP em julho de 2019, minhas participações na
Anpuh-SC e nos seminários do Programa de Pós-
Graduação em História Global da UFSC foram
muito instrutivas. A todas e todos que colaboraram,
meus agradecimentos. Deixo menções especiais a
Ana Carolina Schveitzer, Fábio Augusto Morales,
Juliana Bastos Marques, Aline Dias da Silveira,
Renato de Araújo Monteiro, Otávio Luiz Vieira Pinto,
Waldomiro Lourenço da Silva Júnior, Roger Chartier
e Temístocles Cezar.

RECEBIDO EM: 27/OUT./2019 | APROVADO EM: 10/MAR./2020

95 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 59-95 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1543
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Long Middle Ages or appropriations of the medieval?


A reflection on how to decolonize the Middle Ages
through the theory of Medievalism
Longa Idade Média ou apropriações do medievo? Uma
reflexão para se descolonizar a idade média através do
medievalismo
Maria Eugenia Bertarelli
https://orcid.org/0000-0002-4884-956X

Clínio de Oliveira Amaral


https://orcid.org/0000-0002-3495-9848

ABSTRACT
We present an overview of the studies on the Middle Ages
that exceeds the traditional chronological milestones of RESUMO
the period. Initially, we present the historiography on
Apresentamos uma reflexão acerca dos estudos sobre
the Long Middle Ages, a construct that postulates the
a Idade Média que se estende para além dos marcos
idea of a medieval world found in the present and thus,
cronológicos tradicionais do período. Nesse sentido,
beyond the 15th century and the European continent. In
analisamos, inicialmente, a historiografia sobre a longa
contrast, we seek to present the theory of Medievalism
Idade Média na perspectiva de um mundo medieval que
which emphasizes the relationship between the
se perpetua e se expande para além do século XV e do
contemporary world and the discursive appropriations
continente europeu. Em contraponto a essa perspectiva,
of the medieval period. This theory is not quite familiar
buscamos expor a teoria do medievalismo, enfatizando a
in the Brazilian academic context, but it offers great
relação entre o mundo contemporâneo e as apropriações
possibilities to approach the Middle Ages from a more
discursivas sobre o período medieval. Tal teoria, ainda
autonomous perspective, rather than the European
pouco debatida no meio acadêmico brasileiro, oferece
historiography, on which, historically, medieval studies
possibilidades para uma abordagem das apropriações sobre
have been grounded.
a Idade Média em uma perspectiva de maior autonomia em
relação à historiografia europeia, a qual historicamente os
estudos sobre o medievo estiveram vinculados.

KEYWORDS
Medievalism; Long Middle Ages; Historiography
PALAVRAS-CHAVE
Medievalismo; Longa idade média; Historiografia

97 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

Introduction
We have noticed that a white, patriarchal and Christian
past, whose political and religious boundaries are non-existent,
has been particularly acclaimed currently in Brazil, leading us
to believe that the European concept of Middle Ages seems to
be in vogue. Such appropriation of the Middle Ages in Brazil can
be understood as the unfolding of a worldwide phenomenon
related to certain political groups, with special repercussions in
the United States and Western Europe.

Discussing the topic on the website Pacific Standard (2019),


Paulo Pachá claims that there is a close connection between
the new right-wing interests in Brazil and their appreciation for
the Middle Ages (PACHÁ 2019). He discusses the term Deus
Vult, a Latin expression used as a battle cry associated with
the First Crusades. The expression means God wills it and
has reappeared in Brazil in the 21st century linked to national
right-wing movements. The author analyzes the interest to
disseminate the Middle Ages associated with a hegemonic
and Judeo-Christian culture, mostly white and patriarchal,
emphasizing a historical continuity between Brazil and Western
Europe.

This phenomenon Pachá identified helps us understand that


reclaiming the Middle Ages is, in fact, a way to give meaning to
a certain interpretation of the current context. Interpretations
and reinterpretations of the Middle Ages have been recurrent
over the years of western history. The very creation of the term
in the 14th century arises from an effort to reinterpret a recent
past, identifying it as a period of intellectual depression so as
to value a modernity that would be revived after centuries of
darkness.

This means that the humanists were the first to create a


middle period to which they attributed negative features when
contrasting it to the moment of splendor of literature and
arts they sought to praise. The Middle Ages emerged, thus,

98 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

as a concept marked by the decline of the ancient world, the


literature, as well as the Latin culture.

The Italian humanist scholar Francesco Petrarca, commonly


Anglicized as Petrarch, was one of the first to refer to the concept
of the “Dark Ages” while also contributing to its development.
Theodore Mommsen states that Petrarch may be considered a
pioneer when it comes to the development of the idea of history
being divided into three moments (MOMMSEN 1942, p. 241).
Indeed, Mommsen explains how Petrarch praises Classical
Antiquity and contrasts it with a middle period. This interval –
that he calls depression – starts after the fall of the Western
Roman Empire and ends with the beginning of a modern age.
Petrarch describes the Middle Ages from a rather pessimistic
perspective, characterizing it as a time of decline and decay.
Still, in his book Africa, Mommsen states that Petrarch hopes
for better times: as the darkness would fade away, Petrarch’s
descendants would return to the “pristine pure radiance.”

An identity had been created to this new movement Petrarch


believed he belonged to, opposed to the Dark Age that followed
the fall of the Roman Empire. One of the first interpretations
of the Middle Ages of western history appears precisely as a
middle period between a glorified Antiquity and an intellectual
revival, that began to disconnect from the darkness. Although
envisioned by Petrarch, he did not define such revival. The
Middle Ages arise to affirm a humanist renaissance in the 14th
century.

The notion of decline has remained in the debates on


the formation of the Middle Age throughout history. In the
Enlightenment period, the double conceptual fracture analyzed
by Alain Guerreau (GUERREAU, 1980) transforms the medieval
world into a completely different one where the notions that
characterize it, ecclesia and dominium, are no longer meaningful
due to the Enlightenment concepts of economy and religion.
The Middle Age was seen as a period of decadence that started
with the arrival of peoples called barbarians that put an end to
the greatness of Rome.

99 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

In the transition from the 18th to the 19th century, Edward


Gibbon’s studies spread into the European intellectual sphere.
The English historian summarizes the perspective of decadence
that characterized the medieval period since its starting point,
identifying the imperial decline as a result of the triumph of
barbarism. In History of the decline and fall of the Roman
Empire (1776), Gibbon argues that the splendor of the Roman
civilization was interrupted by both the rise of Christianity and the
German invasions of Danube-Rhine borders. Therefore, Gibbon
becomes a central figure in consolidating the historiographic
topos of decadence.

In 19th century historiography, the Middle Ages was in the


spotlight as historians sought in the medieval past the origins
of European national identities. The ideas of decadence were
softened, mostly in regions of German culture that sought
to recover their heritage brought by Germanic peoples. In
these areas, Romanticism contributed to recover themes
and characters of the medieval past through a less negative
perspective.

Hilário Franco Júnior (FRANCO JÚNIOR 2001) discusses the


readings and appropriations of the Middle Age throughout history
in the introduction of his book: A Idade Média: nascimento do
Ocidente (2001). In the chapter entitled “O (pré) conceito da
Idade Média”, he analyzes the distinct receptions of this period,
showing how an era of decline and decay during the Renaissance
and the Enlightenment was glorified during Romanticism in the
19th century. In a context in which the national identity in
Europe is being discussed, the Middle Ages emerged as the
cradle of nationalities: the truth and logical thinking of the Age
of Enlightenment gave way to the appreciation of the senses,
the instinct, and the dreams. Franco Júnior identifies works of
the Romantic Era inspired by or based on medieval themes, such
as Goethe’s Doctor Faustus (1808 and 1832), The Hunchback
Of Notre-Dame (1831) by Victor Hugo, Walter Scott’s historical
novels (1771-1832), and Wagner’s works, Tristan and Isolde
(1859) as well as Parsifal (1882).

100 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

We can observe that the interpretations and reinterpretations


of the Middle Ages began as the historical period itself ended,
although its concept was still being constructed. Since then,
different historical contexts have sought to create and recreate
the Middle Ages based on their contemporary interests.

If we consider the discursive appropriations of this period,


one may conclude that there have been several Middle Ages or
even that the Middle Age is a discursive construction, thus it
does not exist (AMALVI 2002 p. 537). Nevertheless, we keep
talking or writing about it, actually, about its projection that
most suits the present. Having said that, the question of which
conception of Middle Age we have to consider remains; whether
it is the one from the past, that of the present, the one that
connects us to the “cradle of Western civilization” – term used
by European historiography –, or the one that sees it as a way
to understand the here-and-now, as Francis Gentry and Ulrich
Müller propose (GENTRY, MÜLLER 1991).

In this paper, we intend to problematize these two approaches


to the Middle Age and concurrently defend its decolonization,
i.e., we will present the theory of Medievalism as a way to
analyze these constant appropriations of the Middle Ages, by
questioning the French theory that supports the existence of a
long Middle Age. We use Medievalism, a North-American theory
that emerged in the 1970’s, as an alternative to the French
theory. Our objective is to emphasize the relationship between
contemporaneity and discursive appropriations of the Middle
Age in post-medieval periods.

As Brazilian scholars are not quite familiar with this theory,


it is important to comprehend its definition as well as its
historiographic trajectory in North American, European and
Brazilian studies, although incipient. To do so, this paper will be
divided into two parts. First, we will present the French notion
of long Middle Ages. Then, we will introduce the Medievalism
theory and its repercussions on the decolonization of the Middle
Ages, which is also an effort to promote the decolonization of
traditionally colonized historiographies, as the Brazilian.

101 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

The Long Middle Ages and European centrality


Prior to our discussion on the Medievalism theory and the
historiographic debates regarding this field of study, first we
must differentiate it from the approaches of the French school
inaugurated by Jacques Le Goff1 (LE GOFF 2006). Even though
some researches on Medievalism and Le Goff’s theory on the
long Middle Ages mingle in certain academic texts, it is essential
to state that they are different traditions and approaches of
distinct historiographical perspectives.
1 Le Goff developed
The Medievalism theory is not well-known in the Brazilian his theory about the
academia and it was mentioned in Porto Júnior’s paper As long Middle Ages
based on discussions
expressões do medievalismo no século XXI (PORTO JÚNIOR about temporalities,
2018), one of the first to present the discussion in the country. first introduced in the
book Pour un autre
This study, published by Anais do XVIII Encontro da Anpuh- Moyen Age published
Rio, contains a historiographical review of the theories on in 1977. Between
1980 and 2004, he
Medievalism (and Neomedievalism), examining the research published a series of
developed in these fields. The author analyzes the “academic papers in the aca-
demic journal L’His-
endeavor in this area”, with a particular interest in the 1970’s toire, which were later
onwards, presenting the North American tradition initiated published in the book
Un long Moyen Âge in
with Leslie J. Workman along the tradition inaugurated by the 2006.
medievalist Jacques Le Goff in France. “In the late 1970’s, the
2 MACEDO and MON-
idea of a contemporary conception of the Middle Ages was GELLI distinguish
also approached by the internationally renowned medievalist Reminiscências me-
dievais (medieval
Jacques Le Goff (1924 – 2014) ...” (PORTO JÚNIOR 2018, p. 3). reminiscences) from
By exploring the “contemporary” Middle Ages, the author seeks Medievalidade (me-
dievalness) (PORTO
to understand medievalism, neomedievalism, “medievalness”2 JÚNIOR, 2018, p. 06).
and the studies on reminiscences of the medieval period.

Porto Júnior mentions several theories indistinctly, placing


them under the umbrella term studies on a contemporary
notion of the Middle Ages. This inaccuracy places together
different theoretical foundations with different historiographic
pathways. In fact, when we analyze the repercussions of the
medieval culture in post-medieval times, we tend to find certain
terms that refer to it, as memoirs, recreations, reconstructions,
representations, reappropriations, reinterpretations,

102 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

recollections, reminiscences, remains or even endurance. It has


become common to use such terms to refer to the Middle Ages
once the period was over; but it is vital to distinguish them to
understand the theories on Medievalism. Recreate, reconstruct
or represent the Middle Ages refer to approaches different from
those that investigate the remains, reminiscences or survival of
the medieval world in modern or contemporary times. It is not
just a subtle difference between terms that are most appropriate
to describe the repercussions of the medieval culture – if such
“medieval culture” even exists, as we will discuss later. We must
differentiate between two fields of research that approach the
Middle Ages beyond its chronological limits. Those who seek
to understand the remains, reminiscences or endurance of
the Middle Ages should be attached to the tradition of French
medieval historiography inaugurated by Jacques Le Goff.

Next, we will analyze this tradition in order to understand


how precisely this field of concerns arose, helping us to clarify
one of the greatest difficulties in understanding the theories
on medievalism: the misunderstandings about the medieval
reminiscences.

Jacques Le Goff’s long Middle Ages and his heirs


This concept was first introduced by Jacques Le Goff in
the preface of his book Pour un autre Moyen Âge (1977),
according to which the Middle Ages would have started in
the 2nd or 3rd century and ended in the 18th century, with
the strikes of the Industrial Revolution. For the first time a
medievalist defined another conception of the Middle Ages,
not aligned with the traditional chronological frameworks:
between the Fall of the Roman Empire in 476, and the Fall
of Constantinople in 1453, or even with the Reconquista
of Granada in 1492 or the arrival of Europeans in America.
The long Middle Ages had not just begun a little before the 5th
century, but it also ended after the 14th and 15th centuries,
according to this new periodization.

103 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

In A la recherche du Moyen Âge, a book of interviews


conducted by Jean Maurice de Montremy published in France
in 2003, we find a chapter entitled The Long Middle Ages, in
which Le Goff discusses the main features and unfolding of
this concept that he analyzed throughout his career. He begins
by explaining his discomfort with the traditional chronology
he found at the beginning of his studies in the 1950’s: “As a
historian, I inherit a periodization modeled by the past – but
I must also ask myself about these artificial time cuts, which
are sometimes harmful to the understanding of phenomena”
(LE GOFF 2003, p. 39-40, translation). He believes that history
is a “continuum”: only when a series of changes affect economy,
customs, politics or sciences, forming a new system, then it
would be possible to talk about a change of period. A single
event, date or reference is insufficient to rupture historical
periodization.

Based on these principles, Le Goff disagrees that the


Renaissance should mark a rupture with the Middle Ages,
attributing to Jackob Burckhardt the responsibility of having
imposed a notion of rupture with the Middle Ages through
his classic study The Civilization of the Renaissance in Italy
(1860) – a notion of rupture he believes to be artificial.
Burckhardt believes that, during the Renaissance, a spirit
that values the arts and antiquity emerges, creating a unique
context in the European culture, capable of differentiating
it from the previous period; Le Goff, heir to the works of
Erwin Panofsky, notes that we should not speak of a single
rebirth, but of rebirths, since the very logic of renaissance
is inseparable from medieval history. In the text Outono da
Idade Média ou primavera dos tempos novos? (LE GOFF 2007,
p. 220), the author states that the renaissance of the 14th
and 15th centuries was another rebirth among others that
occurred throughout the Middle Ages, such as the Carolingian
Renaissance and the Renaissance of the 12th century – it was a
singular period in western history, but it did not mark a rupture
with the Middle Ages.

104 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

Le Goff believes that only with the innovations of the


18th century, e.g., Adam Smith’s theories, the development
of the stationary steam engine, the concept of progress, the
industrialization of Europe, and the theories of Rationalism and
Scientism in the Encyclopédie, it is possible to consider the end
of the Middle Ages.

In short, (...) changes do not result from coups in all sectors


and all places simultaneously. Hence my idea of long Middle
Ages as, in certain aspects of our civilization, it still prevails
and at times it appears after official dates. The same can be
said of the economy, as we cannot refer to the market before
the 18th century. The rural economy could only make hunger
disappear in the 19th century. The vocabulary of politics
and economics only changes definitively – a sign of change in
institutions, means of production and mentalities corresponding
to these changes – with the French and the Industrial Revolutions.
It is also a time to build a new science that is no longer medieval
(Galileo, Harvey, Newton, etc...). (LE GOFF 2008, p. 66-67,
translation).

Among the prominent heirs to the French tradition


inaugurated by Jacques Le Goff is the French medievalist
Alain Guerreau, who analyzed the elements that ended the
medieval world based on the idea of the long Middle Ages.
Guerreau claims that, during the 18th and 19th centuries,
there was a double rupture. On one hand, an aspect to be
considered is that, from the ideas of the Enlightenment
writers, a new structure defined as religion arises and
“is simultaneously an element that represents a form of social
practice and a specific set of activities and institutions whose
articulation did not have any precedents” (GUERREAU 2002, p.
438, translation). The very term religion would not make sense
if applied to the medieval context. Thus, with the emergence
of the idea of religion, the medieval structure of ecclesia was
broken – a term that in itself meant field of the sacred, the
church, as an institution, and the group of men who took part
in it.

105 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

On the other hand, Guerreau observes that Adam Smith


laid the foundations of the classical free market economic
theory during the Enlightenment period. The notion of a labor
force without attachment or protection was created as the idea
of transferable land that could be exploited emerged. Guerreau
recalls Adam Smith’s ideas on economic prosperity, according to
which land and work contracts could be traded – the obstacles
were considered medieval practices that had to be overcome.
These theories valued liberalism and assumed “the market as a
dominant institution in the sense that ‘market mechanisms’ are
taken as the basis of social organization” (GUERREAU 2002, p.
440, translation). According to Guerreau, the structure of the
medieval dominium – by which peasants were bound to the
land, to serfdom, and to loyalty to their masters – was broken.

The double fracture of the 19th century put an end to ecclesia


and dominium. Religion and economy gained force and made
the idea of Middle Ages almost unrealistic in terms other than
anarchy (and similar conceptions) and/or a slow-conflicting
gestation of contemporary Europe: incoherence and/or teleology
(GUERREAU 2002, p. 441, translation).

For Guerreau, the medieval world has lost its meaning since
the 19th century; but until then, one could understand Western
European society from the medieval structures of ecclesia and
dominium. In fact, he believes the colonies in America were
organized based on these structures.

Another important disciple of the French tradition was


Jérôme Baschet, about whom Le Goff wrote:

Evidently I am glad to see that Jérôme Baschet justifies, better


than I could, the conception of long Middle Ages that surpasses
or rather erases the false rupture of the 16th century, of a
rebirth that would be its negation and that would recall it as the
darkness of obscurantism (LE GOFF apud BASCHET 2006, p. 17,
translation).

106 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

Taking into account his experience in Mexican lands, Jérôme


Baschet studied the conquest and colonization of the new world
from the perspective of the long Middle Ages. According to
Baschet, the Expansion of Europe beyond the bounds of the
continent must be understood from the logic of the dynamism
of the feudal system, which was far from declining in the 14th
century, but rather expanding its borders towards new worlds.

Baschet considers the year 1492 as a reference to discuss


the links between the end of the Reconquista in the Iberian
Peninsula and the beginning of the marine adventure that
leads to the Conquest: “...Reconquest and Conquest are
part of a unity and participate in the process of unification
and expansion of Christianity” (BASCHET 2006, p. 27,
translation). The year 1492 was not seen as a division between
two strange eras, but a point when “two historical moments
with a profound unity coincided” (BASCHET 2006, p. 27,
translation). The first colonists explored American lands hoping 3 This book has not
been translated into
to materialize medieval geography, e.g., when Christopher English. It was pub-
Columbus sought the earthly paradise in the upstream of the lished in French in
2004 and translated
Orinoco river. into Portuguese in
2006.
As a result, Baschet observes how the medieval world
was established on the other side of the Atlantic during
the maritime expeditions. He acknowledges the weight of
a colonial domination that arises from Western dynamics
“leading to the transfer and reproduction of European
institutions and mentalities – not ignoring an original reality,
but still a reproduction – in the colonies of the New World”
(BASCHET 2006, p. 32, translation).

Le Goff, in the preface to the book A civilização feudal: do


ano mil à colonização da América (The feudal civilization: from
the year one thousand to the colonization of America)3, defines
Baschet’s perspective:

Jérôme Baschet estimates that despite whatever differences


may exist between medieval Europe and 16th-century colonial
America, the essence of medieval feudalism is once again found

107 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

in America: the dominant and structuring role of the Church;


a shift in balance regarding the tension between monarchy
and aristocracy, without rupturing with the feudal logic; the
increasingly important activities of businessmen – committed
to Atlantic trade or the exploitation of mineral and agricultural
resources of the colonial world – remain within the traditional
corporate and monopolistic frameworks, and these men continue
to guide their income towards the acquisition of lands and
noble status. However, Baschet accepted the expression “late
and dependent feudalism”, since it is a world whose logic is
completely different from ours. (LE GOFF apud BASCHET, 2006,
p. 18, translation).

We must highlight that Baschet was deeply influenced by


the studies of Luis Weckmann, a Mexican intellectual who wrote
two important books based on the idea of a continuum between
feudal Europe and colonial America: The medieval heritage of
Mexico, published in 1984, and La herencia medieval del Brasil,
published in 1993. Weckmann aims to prove that feudalism
was transplanted to America, particularly regarding Mexico
and Brazil, and analyzed how this process permeates colonial
culture at all levels. Weckmann brings an original approach
to the historiography on the colonial period, which revolved
around the transition from the feudal to the capitalist mode
of production. In Brazil, the discussion leaned towards an
analysis of the characteristics of the mode of production based
on slavery – oriented, mostly, by the studies of Jacob Gorender
(GORENDER, 1980). Historians besides analyzed the political
and legal feudal and lordship institutions, which characterized
the colonization in Portuguese America

Weckmann takes part in these debates by analyzing


cultural and ideological heritages, observing medieval sciences,
geography and mystical and religious experiences. The former
debates grounded on economic, political and legal bases shift
to a new field: that of the history of ideas. He sees the Atlantic
as a “blurred mirror” that shows the Old Continent reflected in
the New World – not faithfully, though.

108 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

No hubo en la península ibérica el otoño de la Edad Media que


con tanta maestría ha sabido Huizinga describir en relación con
la Europa central; por ello, los españoles principalmente, pero
también los portugueses, pudieron transmitir al Nuevo Mundo
instituciones y valores arquetípicos de la Edad Media todavía en
plena vigencia (WECKMANN 1993, p. 18).

He argues that the colonial period, both in the Spanish and


in the Portuguese Americas, was oriented by maintaining feudal
institutions and privileges – many of them already obsolete in
the Old World, but here still surviving – and a living medieval
culture. However, he believes that the medieval world was
not faithfully reproduced: “El océano que dio su nombre a la
Civilización Atlántica no fue nunca, en el proceso histórico, un
simple espejo que reflejara el Mediterráneo...” (WECKMANN
1993, p. 19). He also affirms that religious life during the
early colonial centuries was a “faithful copy” of the medieval
structure. For the Mexican historian, the first settlers saw the
New World through medieval lenses and carried with them
medieval conceptions and legends.

As for the Brazilian long Middle Ages, we can refer to


Hilário Franco Júnior’s paper entitled Raízes medievais do
Brasil (Brazil’s medieval roots), published in 2008 by Revista
de História da USP (a Brazilian journal of History). Here,
the historian presents medieval heritages spotted in the
foundations of Brazil, not only throughout the colonial period
but also currently. The reference to a famous book written by
Sérgio Buarque de Holanda does not seem to be accidental.
Franco Júnior is able to pinpoint medieval roots found in Brazil,
such as the personal aspect that dominates social relations in
the country, the fragility of institutions, and the difficulty to
abide by non-personal regulations. The personalist aspect that
permeates social relations led to a sociability Sérgio Buarque
defined as a characteristic of the cordial man (o homem cordial).

Franco Júnior also notices how the sugar production


structures of the colonial period were similar to the
organizational frameworks of feudal society: they were

109 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

almost entirely self-sufficient, there were people on the land


working on crops and raising animals, there were chapels
etc. He provides further examples of medieval roots in Brazil
and believes that what we know as Coronelismo is “nothing
but a national version of clientelism and patronage found in
medieval Europe” (FRANCO JÚNIOR 2008, p. 87, translation).
The historian points out some Brazilian cultural aspects whose
origins can be traced back to medieval societies. The first is
the language, which had more linguistic marks of the medieval
period than of Portugal of the 15th to the 18th centuries. He
also analyzes music, carnival traditions, and even religion. The
worship of saints and the belief in the millennial messiah, as
found in American territory, are deeply rooted in the culture
of medieval Europe. He emphasizes how “the frustration in
transplanting institutions, ideas, and habits to another physical
reality led to the pervasive feeling that Sérgio Buarque
described as that of ‘being a foreigner in our own land’”
(FRANCO JÚNIOR 2008, p. 103, translation).

Studies carried out based on the notion of long Middle


Ages accentuate a perception that societies in America
are inevitably heirs to the European continent. In fact, by
analyzing the presence and reminiscences of the feudal
society, taking into account the notion of long Middle Ages, a
core issue is the European reality and how it has endured over
time.

The Middle Ages appears here as a reference, emphasizing


the dependent aspect on the European experience, since the
medieval society served as a model to be transplanted to the
colonies. From this historiographical view, the reference to
the Middle Ages leads us to a colonialist interpretation of the
history of territories in the New World centered on a Eurocentric
perspective. Considering that the reference to understand the
New World’s history lies in the Middle Ages and this connection
is still noticeable in the present and future, by medieval
reminiscences, a teleology of western history is created, whose
core is the European historiography.

110 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

Now, if Europe is the core, it is tempting to link America’s


discovery to the Middle Ages. However, this particular
interpretation of the conquest disregards the historical rupture
caused by the conquest itself, as well as the underlying process
of colonization.

Sans doute que, si l’on regarde depuis le côté européen, il existe


toujours la possibilité de projeter son histoire, son système
de valeurs etc. pour établir l’idée d’un processus dans lequel,
par exemple, la conquête aurait eu un passé, c’est-à-dire, une
histoire liée à la guerre contre les Maures. Ainsi, les combats qui
ont eu lieu en Amérique étaient, eux aussi, dirigés contre les
infidèles, de la « même » façon que ceux de la reconquête.

En outre, du point de vue européen, les Maures, les Indiens, les


juifs étaient classés, grosso modo, comme des « infidèles ». De
cette façon, la conquête, comme la reconquête, fait partie de la
même guerre « sainte », qui, à travers tout le Moyen Âge, s’est
manifestée par une série de guerres contre les « infidèles ». Si
on adopte la perspective européenne, la conquête ne représente
qu’une continuation dans un nouveau monde et, ainsi, il n’est
pas possible de mesurer la rupture qu’elle a provoquée pour les
Indiens.

Néanmoins, les habitants de la Mésoamérique avaient-ils la même


possibilité de chercher dans leur passé cette situation pour la
comprendre comme une sorte de déjà-vu ? Non. Si on change la
place de l’observateur pour prendre le point de vue des Indiens,
on est obligé d’admettre une totale rupture avec leur histoire.
Une telle expérience doit être associée au sentiment, vécu par
les Indiens pendant les premiers contacts entre les Européens et
les habitants de la Mésoamérique, d’une totale étrangeté.

Ainsi, l’écriture de l’histoire de la conquête peut, en même


temps, montrer une « continuité », pour les espagnols, ou une
totale rupture, pour les Indiens, avec le passé. Pour cette raison,
au lieu d’affirmer que le Moyen Âge « a continué en Amérique »,
il serait préférable de voir comment les Indiens ont dû apprendre
plusieurs éléments de la pensée médiévale et, ensuite, comment
ils ont fait pour les maîtriser. Par ailleurs, on croit que les auteurs
soutenant l’idée d’un long Moyen Âge aux Amériques n’ont pas
bien compris les détails et les nuances liées soit à la reconquête,
soit à la conquête. L’une et l’autre font partie d’un contexte précis
(évidemment, il y a plusieurs intersections entre elles), c’est-à-
dire que le passé de la conquête est né dans le contexte politique

111 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

qui a opposé les royaumes de Castille et de Portugal, surtout


depuis la fin du XIVe siècle jusqu’à 1411. (AMARAL, ALMEIDA,
BERRIEL 2014, p. 10-11).

Thus, questioning the conception of long Middle Ages is an


effort to see the medieval appropriations as something original,
part of an autonomous historical process, not necessarily
associated with the European historiographic paradigms. Here
is Baschet’s reply to the authors’ critiques:

Il y a sans doute une part de malentendu (ou d’incompréhension)


dans notre débat. Mon propos se situe à un fort niveau de
généralisation, mes interlocuteurs me répondent sur le plan
des spécificités (ibériques et surtout portugaises). Nous ne
nous plaçons pas à la même échelle de modélisation. Non que
l’une soit plus pertinente que l’autre. Elles sont toutes deux
nécessaires. Pour ma part, j’admets volontiers le caractère
préliminaire de mon travail et le fait qu’un modèle aussi général
doive être affiné pour tenir compte d’une multiplicité de situations
particulières. En revanche, je me demande si mes interlocuteurs
ne tendent pas à récuser le registre de la généralité ou s’ils
ne s’emploient pas à rejeter un modèle général au motif qu’il
n’aurait pas pris en compte certaines particularités (ce qui me
semblerait relever d’une confusion des échelles). La question
est bien plutôt de savoir si ces particularités peuvent s’articuler
au modèle général, quitte éventuellement à le modifier, sans
pour autant le faire imploser. Rappelons au passage ce que
Braudel disait des modèles historiques : ils sont strictement
indispensables ; mais leur plus grande utilité survient au moment
où ils font naufrage…

L’enjeu serait de parvenir à travailler conjointement aux différentes


échelles, pour articuler les spécificités des organisations sociales
locales ou nationales aux traits les plus généraux d’un système
global (BASCHET, 2014).

Baschet insists on the issue of scale, citing Braudel’s


work, according to whom America should be seen from a global
scale articulated with Europe, stating that he established a
model that takes Western Europe as reference. From his reply,
we can observe how he sees history – associated with great

112 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

models, according to the Annales –, and by doing so upholds


a scientific stance, which allows him to state in an “unbiased”
way that the Middle Ages came to America and thus did not
consider the authors’ idea to distance the observer from the
viewpoint, by embracing the indigenous’ and black people’s
standpoints. Other elements found in his text have also been
questioned by the theory of Medievalism, such as the excessive
appeal to scientific authority as well as the focus on European
frameworks.

Although the authors of Le Moyen âge est-il arrivé


aux Amériques ? (AMARAL, ALMEIDA, BERRIEL 2014) do
deserve credit for shifting the perspectives of observation,
they were unable to carry the discussion on the Middle
Ages to present time, which is one of the core issues we address
here.

We propose that the Medieval period be seen hic et nunc.


To avoid the present-centrism – stressed by Baschet as a trend
used to understand the Middle Ages by dealing with categories
and representations of the present –, our objective is to reflect
on the many appropriations of the Middle Ages in the present
by the movie industry, religion, videogames, seeking a “living
Middle Age”– one that lives in the present and is projected
into the future, constantly resignified in light of contemporary
issues. As such, the relationship between past, present and
future is a way to address the Middle Ages in the Americas,
considering that this period was and still is being recreated
here and now.

The trenches opened by the theory of Medievalism


The Medievalism theory has its origins in debates in
the United States and it proposes a new perception of the
Middle Ages in the present. According to Leslie Workman
(WORKMAN 1998 p. 487-488), one of the founders of
Medievalism in the US, it is a field of study that focuses on
the reception of medieval representations. Therefore, it is not

113 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

a question of analyzing the reminiscences of this period; it is


rather a continuous process to recreate, recall or re-appropriate
the medieval past in relation to the present.

Although the Brazilian medieval historiography has


little dialogue with the North American, it is important to
mention that this epistemological renovation took place in the
Anglophone word. Currently, Medievalism is an independent
and autonomous field of historical knowledge, especially among
English and North American historians. With the development
of this field, we can cite a number of journals and research
groups that have published papers, e.g.: The year’s work in
medievalism; The New Medievalism; The Past and Future
of Medieval Studies; Medievalism and Modernist Temper;
Medievalism in the Modern World; Studies in Medievalism; and
International Society for the study of Medievalism. In addition
to traditional investigation centers and academic journals,
there is a blog, coordinated by Richard Utz, one of the most
4 Cf: http://stud-
respected contemporary scholars in this area4. iesinmedievalism.
blogspot.com/, ac-
The term Medievalism, in English, first appeared in 1844 cess on October 02,
2019.
in the Oxford English Dictionary (EMERY, UTZ 2017, p. 2). In
the 19th century, the term was associated with the Middle Ages
and was perceived as part of national history. It reappeared
markedly only in the last third of the 20th century, with Alice
Chandler’s book A Dream of Order (CHANDLER 1970). Before
that, medievalism had not been part of the academic repertoire.
In addition to being in alignment with several of Workman’s
ideas, Chandler’s papers contained a few definitions which
became part of the research field that had just begun.

Elizabeth Emery and Richard Utz (EMERY, UTZ 2017, p.


1) believe that a lot is owed to Leslie Workman and Kathleen
Verduin, after all they worked from the late 1970’s to the 1990’s
to promote, within academia, the interest in Medievalism, often
seen with distrust by many American and European scholars of
the time. In 1979, the first publication of the journal Studies
in Medievalism came out, under Workman’s supervision – a
journal that is a reference in the field and that continues to be

114 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

published. Workman remained as editor until 1999 when Tom


Shippey from St. Louis University took charge, succeeded by
Karl Fugelso from Towson University.

In 1981, Workman initiated his partnership with Kathleen


Verduin, professor of American literature at the University of
Michigan. Out of this partnership, the international conferences
through the series The year’s work in medievalism came up in
1986. This publication was conceived by Workman as a space
to promote Medievalism, and it eventually became a tool to
circulate articles based on the presentations held in the annual
International Conference on Medievalism. One of their legacies,
after having worked together for decades, is that they were
able to establish a connection between the field of Medievalism
and the academic sphere. (EMERY, UTZ 2017, p.1).

An interesting aspect of this movement is how Workman


saw the relationship with the medieval past, which possibly
explains the criticisms that the Medievalism theory received.
After all, the historiography of the 20th century – and a significant
number of historians in the 21st century – are still guided by the
postulates of the “new history” (Nouvelle Histoire) grounded
on the “science” status. For Workman, Medievalism is more
connected to the emotional field, which is intrinsic to it. The
intellectual development came only in the first decades of the
21st century, but without the scientific claim of the new history
(Nouvelle Histoire). As a matter of fact, out of this relationship
between subjectivity and the construction of an object several
issues came up; they were addressed by Workman and are still
being developed by the generation that succeeded him.

At first, Medievalism was related to the perception of the


present linked to the everyday life, that is, the focus was (and
still is) on the present. This leads to a debate regarding the
construction of History as a Social Sciences and the agency
of non-specialists, and how the social construction – that is
not a monopoly of the academy – defines the limits of reality
of our society. Thus, starting with Workman, Medievalism was
about the rediscovery of medieval materials by scholars and

115 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

laymen and, above all, it was about the way in which these
discoveries/reconstructions were (and are) used, recreated,
even politically, to create a discourse of self-defining identity
(GENTRY, MÜLLER 1991).

According to Workman, Medievalism contributed to the way


the Middle Ages was (and continues to be) written, invented,
constructed, and interpreted in post-medieval times, including
by the social sciences and non-academic individuals. In other
words, its contributions are the reflections on the application
of medieval frameworks to contemporary needs and the
way in which the Middle Ages inspired the various forms of
art and thoughts. In the 1990’s, Workman wished to delimit
the field of Medievalism studies; however, it did not happen
as he died in 2001. This project was reshaped in 2017, not
in an encyclopedia – as Workman had envisioned it – but
as a dictionary, elaborated and organized by Emery and Utz
entitled Medievalism: key critical terms, in which the terms
and concepts that were once questioned by critics received
a theoretical foundation to justify their usage. We would like
to point out that the authors themselves mentioned that the
existence of this book is due to Workman and Verduin’s work.

In the 21st century, many issues and even the struggles faced
by Workman and Verduin in the past are already “resolved”:
the tensions between “pastism” and “presentism” views,
between memory and subjectivity, deconstruction of authority
conceptions, authenticity and the relationship with institutions
that disseminate them, historiography itself included. Based on
Emery and Utz, we can say that Workman provided the core idea
of Medievalism as a theory used currently, i.e., the processes
of recreation, reinvention and reenactment of medieval culture
in post-medieval periods. Some questions regarding Workman
and Verduin’s legacy are still left to be answered.

But what is ‘medieval culture’? If by medieval culture we mean


the cultural productions (art, literature, music, architecture,
treaties, memoirs, etc.) produced during the period from the fall
of the Roman Empire (476) to the fall of Constantinople (1453),

116 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

the historical period roughly considered ‘medieval’ by historians


today, then medieval culture has always been ‘received’:
people of the sixth century discussed earlier events, texts, and
works of art just as did people from the fifteenth century. The
concept of a uniform period known as the ‘Middle Ages’ is itself
a construct, invented in the fifteenth century by humanists
seeking to glorify their own time as superior ‘Renaissance’
(EMERY, UTZ 2017, p. 2).

One of the contemporary discussions on Medievalism is


the focus on how the Middle Ages or the “medieval culture”
was (and is) received nowadays, and on the existence of
a “medieval culture”. We draw attention to the fact that
Medievalism also encompasses research on the creation of
European national identities, and the relationship with the
so-called “scientific” history and medievalism, and the lay uses
of the Middle Ages from the 19th century to the present day
(ROSA 2017, p. 161).

Among the various constructs that formed/form


Medievalism, we highlight the postcolonial studies. Understanding
the Middle Ages through the lenses of postcolonial studies helps
us reflect on the role of a historiography that claims a scientific
and neutral stance, especially based on anthropological studies.
Using the postcolonial studies aligned with the constructs
on Medievalism helps us identify the ideological character
through which medieval history was and continues to be
written by European colonists or by the colonized historians
themselves – the Middle Ages is a field that was and continues
to be colonized.

Here are some questions raised by Dagenais and Greer on


the relationship between the Middle Ages and colonialism:

Is it possible to colonize a region of history, as it is to colonize


a region of geography? There are many reasons to believe so.
The history of “The Middle Ages” begins at the precise moment
when European imperial and colonial expansion begins. The
Middle Ages is Europe’s Dark Continent of History, even as Africa
is its Dark Ages of Geography. Colonization of the past is an

117 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

indispensable companion of empire. The very moves by which


European nation-based empires establish themselves across
vast reaches of geography space, constituting themselves by a
simultaneous assimilation and othering of this space and the
people who inhabit them, involves them at the same time in the
invention of a complementary past other to themselves, a past
which belongs to, but which can never be granted full citizenship
in, the nation of Modernity. A full exploration of the varying ways
in which “The Middle Ages” and “medieval” have served the
interest of empire over the past six hundred years (and continue
to do so today) is beyond the scope of this introduction, or,
indeed, of this special issue of the Journal of Medieval and Early
Modern Studies. I want simply to begin to follow some leads
among the early discourses which establish The Middle Ages not
as a period in history, but as a vastness of time ripe for colonial
exploration (DAGENAIS, GREER 2000, p. 431).

These issues paved the way for scholars such as Nadia


Altschul and Kathleen Davis who were able to see the Middle
Ages not as a period in time but a conception, an idea, a mobile
category that, in light of Medievalism, can be used in any
society, in any place (DAVIS 2008, p. 7).

In one of her papers, Nadia R. Altschul discusses


the medieval temporality in the Spanish America and in
Brazil. She argues that “Medievalism Studies has carefully
distinguished itself from places that were “medieval” instead
of ‘post-medieval’” (ALTSCHUL 2017, p. 3). She argues that
Medievalism refers to the Middle Ages that has come to an end.
Therefore, according to Workman’s definition, Medievalism
presupposes the idea that not only is the Middle Ages over, but
also that it stayed in the past, justifying the interest in reliving
or imitating it.

Richard Utz believes there are several motivations to


recreate the Middle Ages after its end. He has dedicated his
career to studying a construction, Rhodes Hall, built by the
Rhodes family in 1904 in a noble area of the city of Atlanta
(UTZ 2017). Utz wondered about the reasons to recreate a
castle in Atlanta in the early 20th century based on medieval

118 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

Germany. His research seeks to understand how a medieval


castle evokes royalty, the nobility of kings, queens and their
lifestyle. He is interested in understanding how “new Middle
Ages” are created throughout history based on the creator’s
own image and logic.

In Brazil, we can hardly find research done with this


association between postcolonial studies and Medievalism. We
can mention two manuscripts written by Altschul. First, Gilberto
Freyre e al-andalus, which is a chapter of her book Politics
of Temporalization (2020) dedicated to the studies of Freyre’s
medievalism grounded on a miscegenated and culturally hybrid
past he identifies in medieval Portugal. Second is Medievalism
and the Contemporaneity of the Medieval in Postcolonial
Brazil (2015), in which she problematizes the endurance of
the Medieval in Brazil after its independence. To this end, she
used the theory of Medievalism and literary criticism to analyze
Os sertões (Rebellion in the Badlands), a work by Euclides da
Cunha about the foundation of the Brazilian nation as well as
5 First published in
the European nations. 1845.

Regarding the Spanish America, Altschul, in a class at


the University of Glasgow (2019), when analyzing the book
Facundo or, civilization and barbarism (2002)5 maintained
that Domingo Faustino Sarmiento constructed a medieval
temporality in 19th-century Argentina. She defends that in
Facundo, Sarmiento divided Argentina into two temporalities:
the 19th-century, contemporary with the author; and the 12th-
century represented by the countryside. The time division in
Facundo is also symbolically represented by two cities; the
contemporary is represented by Buenos Aires and the medieval
by the city of Córdoba. In general, Altschul argues that, for
Sarmiento, the countryside, which was occupied by Amerindians
or by the medievalized rural forces, represents a primitive land
that according to Sarmineto should be conquered and whose
culture should be eradicated. The Middle Ages is presented in
this work through the author’s appropriation of the medieval,
inspired by his contemporary political references.

119 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

In short, by decolonizing the Middle Ages, we wish to


decolonize the research carried out in this area. We want
to explore reinterpretations and re-appropriations of the
Middle Ages in the tropics, although we do not deny that the
knowledge-power relationship is intrinsic to “scientific” work.
Despite studying the Middle Ages of the present, the core
of Medievalism is to approach a period that ended and from
that it can be evoked or recreated based on contemporary
interests of the context in question, i.e., in the light of our
“Brazilianness”. To do so, we must question some postulates of
contemporary historiography that are still linked to scientism
and its 20th-century constructs, the Annales school, the new
history (Nouvelle histoire) among others.

Throughout this paper, we sought to expose the French


theory of the long Middle Ages, its repercussions and
effects on the study of the colonial period in the Americas.
We observed how a Eurocentric historiography aimed not
only at understanding the Middle Ages within western
Europe, but also at expanding it beyond Europe, in the American
continent.

The Middle Ages that goes beyond its chronological and


geographical limits has influenced and, many times, even
justified medieval studies in Brazil and all over America. From this
perspective, it is noticeable that American societies inevitably
figure as heirs to the European continent. The medieval society
is taken as the model that was transplanted to the colony – this
is a colonized and Eurocentric perception of history, since the
reference point to comprehend the history of the New World
was the feudal institutions and models.

In the first part of this study, we tried to show how this


perception of the conquest in America ended up disregarding
the historical rupture caused by the conquest itself, especially
if we take into account the perspective of the peoples present
in the American continent before the arrival of European
colonizers.

120 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

In order to present the historiography devoted to


“decolonizing” the history of the New World, we also presented
the theory of Medievalism as an alternative to approach the
6 This topic is an al-
Middle Ages in the Americas.
lusion to Richard Utz’s
text – Don’t Be Snobs,
Medievalists! (UTZ
2015). We should ex-
Don’t Be Snobs, Medievalists6 plain that, initially,
Utz’s text concerns
the reality of the Unit-
According to Richard Utz (2015), medievalists
ed States. Nonethe-
experienced an academic growth between the 19th and the 20th less, we believe that
it greatly applies to
centuries. We agree with him from a statistical and symbolic
the Brazilian context.
perspective – in terms of prestige – as the medieval Our criticism about
the medieval Brazil-
historiography was able to demonstrate that its object
ian historiography –
and practices were “scientific”. But where do we which even applies to
the works of the afore-
stand today, almost at the end of the second decade of the
mentioned authors –
21st century? is that it still remains
attached to a French
tradition grounded
On one hand, many medievalists are not engaged in any on scientific criteria,
contemporary debates and still support the idea of a scientific that we believe to be
artificial, as all these
or anthropological stem, whatever gives it the scientific aspect; criteria implicitly con-
this is done as a way of trying to maintain or regain the prestige sider a possibility to
write the “true history
it used to have. On the other hand, as professors, we have of the Middle Ages”.
observed in our practice that our students’ interests lie, for the A recently published
book, A historiogra-
most part, on the enchanted version the Middle Ages found in fia medieval no Bra-
Game Of Thrones, Harry Potter, videogames linked to medieval sil, showed that a
significant number
themes. What we see is a huge gap between the Brazilian of our national pro-
academia and our students’ reality, especially the ones in their duction at graduate
level still reproduces
first years of undergraduate course. It has been very hard the theoretical foun-
to sustain our legitimacy, as a field of knowledge, based on dations proposed by
the medieval French
our conception of medieval heritage or the long Middle Ages, historiography of the
as pointed out by Utz. “We are no longer protected by our 20th century and thus
reproduces the idea
involvement in preserving European heritages, an involvement that it is possible to
often joined up with primordialist, jingoist, and colonialist reach the “true” Mid-
dle Ages as long as
mentalities discredited in the Western world by the 1970s” the right methods
(UTZ 2015). are applied (AMARAL,
RANGEL 2019).
(CONT.)
Any type of academic narrative that is based on the notion
of medieval heritage, ends up revealing a rather obscure side
of the Brazilian medieval historiography, which is the condition

121 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

of its colonized roots and its involvement with the reproduction


of discredited speeches in Europe and in the USA due to its
nationalist character.

As Utz warned us when referring to the North American


and the European contexts, it is important to realize that we
are living in equal or greater isolation from society. After all,
paradoxically, it is undeniable that we were able to create a
national historiographic field and produce a lot about the Middle
Ages at the end of the 20th century and during the 21st century
(AMARAL, RANGEL 2019). Nevertheless, we believe it did not
solve or improve the isolation condition between the academic
production and society, regarding the Middle Age. Paraphrasing
Utz (2015), if this had happened, the new Brazilian right wing
would not have appropriated the Middle Ages through the idea
(CONT.)
of Deus Vult, according to which a historical continuum between There is little work on
Europe and Brazil is established (PACHÁ 2019). the reinterpretations
and re-appropriations
of the medieval, and
Underlying the interest the new right wing has shown the few available re-
in the Middle Ages, Brazil has followed a global trend to attract veal medieval rem-
iniscences, in align-
followers to the enchanted Middle Ages. These followers are ment with the notion
non-scholar enthusiasts, who do not necessarily have any of a long Middle Age,
tending to highlight
political position, as in the case of the new right. They are only how these appropria-
enthusiasts because, as hard as it is to admit, we cannot deny tions are far from the
“true” Middle Ages.
that:

Instead of disdaining the broad public interest in medieval


culture, we should acknowledge and respect that many whom
we brand as “amateurs” or “dilettantes” (terms etymologically
indicating “love” and “delight”) invest as much or more time,
energy, and money in engaging with the Middle Ages than some
of us professors do. Collaborating with these natural allies will
strengthen, not endanger, the discipline (UTZ 2015).

The stand of our Brazilian medievalists is not different from


our American or European colleagues’; we are usually resistant
to non-academic spaces, although our students consume the
enchanted Middle Ages in movies, TV series, games etc. The

122 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

academic posture has been the same: these scholars quote


the mantra of anachronism as if there were any historians on
this planet who did not do it daily, in fact, what is the problem
with anachronism? Now, is history a science?! Once again, we
embrace paradigms of the 19th and 20th centuries. However,
we use the work of the Society for Creative Anachronism to
illustrate our lessons, because:

The Society for Creative Anachronism has added more to our


knowledge of medieval culture by practicing blacksmithing, re-
enacting the Battle of Hastings, and performing historical dance
than D.W. Robertson’s decision, albeit substantiated by learned
footnotes, that all medieval art was created and needs to be read
according to the principles of patristic exegesis. Similarly, Michel
Guyot’s megaproject of rebuilding a medieval castle, Guédelon,
from scratch over a 30-year period, based on 13th-century
building plans and without modern technology, yields infinitely
more information than another 50 essays obsessing about the
authorship of the anonymous Nibelungenlied or Cantar de Mio
Cid. Moreover, sites like medievalists.net and publicmedievalist.
com communicate valuable information more effectively to
academic and non-academic audiences than dozens of academic
journals accessible at subscribers-only sources like JSTOR or
Project Muse (UTZ 2015).

We conclude by stating that it would be important


to reinforce some possibilities that the theory of
medievalism has brought us, as well as point out our
contradictions as medievalists. As Utz states, we should
stop thinking about the medieval theme through a notion of
“otherness” – the Middle Ages as the “other” – that supports
the idea that our legitimacy would be based on creating forms,
methods and techniques, in order to reach this “other”, and at
the same time take a neutral and distant stance. Would it not
be more interesting to consider all current conceptions about
the Middle Ages as nothing more than discursive constructions
and former conceptions originated in the Renaissance, and
that they are in constant and uninterrupted process of re-
elaboration?

123 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

Moreover, it would be interesting to accept the conception,


already presented in the book How Soon is Now? by Carolyn
Dinshaw (2012), according to whom we are not observers or
“omniscient intruders”, but active collaborators in a continuous
process of creation of the Middle Ages, that is, we should reflect
on the role of the medievalist in this construct called Middle
Ages. And since it is a social elaboration, carried out in every
period of history, we cannot see ourselves as the owners of
history, with the right of censor/inquisitor, who utilizes some
scientism, developed over the 19th and 20th centuries, to
say what the Middle Ages is or is not. We are left with Utz’
suggestion: we should stop being snobbish. We should be
more like lay enthusiasts and manage to establish an ethical
relationship, guided by critical thinking. That way, we might be
able to decolonize ourselves and contribute to the great area
of humanities.

124 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

REFERENCE

ALTSCHUL, Nadia. Facundo or, civilization and barbarism.


On January 21, 2019. Class notes.

ALTSCHUL, Nadia. Medievalism and the contemporaneity


of the Medieval in Postcolonial Brazil. In: FUGELSO, Karl;
FERRÈ, Vicente; MONTOYA, Alicia (eds.). Medievalism on
the Margins. Studies in Medievalism. Cambridge: Boydell
& Brewer, v. 24, 2015. p.139-140. 

ALTSCHUL, Nadia. Politics of Temporalization.


Medievalism and Orientalism in Nineteenth-Century South
America. Philadelphia: University of Pennsylvania Press,
2020.

ALTSCHUL, Nadia. Underside of Medievalisms: On Medieval


Temporality in Spanish America and Brazil. “Comparative
Medievalisms”. The text was provided by the author,
2017.

AMALVI, Christian. Idade Média. In: LE GOFF, Jacques;


SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente
medieval. v. I. Bauru/São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial,
2002. p. 537-551.

AMARAL, Clínio de Oliveira; ALMEIDA, Ana Carolina Lima


e BERRIEL, Marcelo Santiago. Le Moyen âge est-il
arrivé aux Amériques ? Un débat sur le long moyen
âge aux Amériques. Éditions Universitaires Européennes:
Saarbrücken, 2014. 

AMARAL, Clínio de Oliveira; RANGEL, João


Guilherme Lisbôa (orgs.). A historiografia medieval no
Brasil: de 1990 a 2017. Curitiba: Apris, 2019. 

125 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

BASCHET, Jérôme. Ce monde qui n’était pas encore


le nôtre et qui s’est emparé des Amériques.
Paris: Éditions Papiers, 2014. Available at:  http://www.
editionspapiers.org/laboratoire/ce-monde-qui-n-est-pas-
encore-le-n%C3%B4tre-et-qui-s-est-empar%C3%A9-des-
am%C3%A9riques. Accessed: Oct 4, 2019. 

BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à


colonização da América. Translated to Portuguese by
Marcelo Rede. São Paulo: Globo, 2006.  

CHANDLER, Alice. A Dream of Order: The Medieval


Ideal in Nineteenth-century English Literature. Lincoln/
Nebraska: University of Nebraska Press, 1970. 

COHN JR., Samuel. Piété et commande d’œuvres d’art


après la Peste Noire. Annales HSS. Paris: EHESS, nº 3, p.
551-573, mai/juin. 1996. 

COHN JR., Samuel. The place of the dead in Flanders and


Tuscany: towards a comparative history of the Black Death.
In: GORDON, Bruce; MARSHAL, Peter (publ.). The Place
of the dead: death and remembrance in late medieval and
early modern Europe. Cambridge: Cambridge UP, 1999. p.
16-43. 

DAGENAIS, John; GREER, Margaret R. Decolonizing the


Middles Ages: introduction. Journal of Medieval and Early
Modern Studies. Duke University Press, v. 30, n. 3, 2000.
p. 431-448. 

DAVIS, Kathleen. Periodization and Sovereignty: how


ideas of feudalism and secularization govern the politics of
time. Philadelphia; University of Pennsylvania Press, 2008. 

DINSHAW, Carolyn. How Soon is Now?  Durham: Duke


University Press, 2012. 

126 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

EMERY, Elizabeth; UTZ, Richard. Making medievalism: a


critical overview. In: Ibidem (eds.). Medievalism key
critical terms. Woodbridge: Boydell & Brewer, 2017. p.
1-10. 

FRANCO JÚNIOR, Hilário. Raízes medievais do Brasil. Revista


USP, n. 78, p. 80-104, 2008. Available at:  http://www.
r evis t as.usp.br/r evusp/ar tic le/view/13680/15498.
Accessed: Oct 1, 2019. 

FRANCO JÚNIOR, Hilário. A Idade Média: nascimento do


Ocidente. 2º ed, São Paulo: Brasiliense, 2001.   

GENTRY, Francis G. and MÜLLER, Ulrich. The reception


of the Middle Ages in Germany: an overview. Studies in
Medievalism. III/4. p. 401, 1991. Available at: http://
medievallyspeaking.blogspot.com/2010/04/what-is-
medievalism.html. Accessed: Oct 3, 2019. 

GORENDER, Jacob. O escravismo colonial. São Paulo:


Ática, 1980.

GUERREAU, Alain. Féodalisme, un horizon théorique.


Paris: Sycomore, 1980. 

GUERREAU, Alain. Feudalismo. In: LE GOFF, Jacques


e SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do
Ocidente Medieval. v. I. Bauru/São Paulo : EDUSC/
Imprensa Oficial. 2002. p. 437-455.

LE GOFF, Jacques avec la collaboration de Jean-


Maurice Montremy. À la recherche du moyen âge. Paris :
Editions Louis Audibert, 2003.

LE GOFF, Jacques com a colaboração de Jean-


Maurice Montremy. Em busca da idade média Rio. de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.

LE GOFF, Jacques. Pour un autre moyen âge : temps,


travail et culture en Occident. Paris : Gallimard, 1977.

127 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

LE GOFF, Jacques. Un long moyen âge. Paris: Tallandier,


2006.

LE GOFF, Jacques. Raízes medievais da Europa.


Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.  

MOMMSEN, Theodore. Petrarch’s conception of the Dark


Ages. Speculum, v. 17, n. 2, p. 226- 242, 1942.

PACHÁ, Paulo. Why the brazilian far right loves the european
middle ages. Pacific Standard. 2019. Available at: https://
psmag.com/ideas/why-the-brazilian-far-right-is-obsessed-
with-the-crusades. Accessed: Oct 12, 2019.

PORTO JÚNIOR, João Batista da Silva. As expressões do


medievalismo no século XXI. In: ENCONTRO DA ANPUH
RIO: HISTÓRIA E PARCERIAS, XVIII, 2018, Rio de
Janeiro, Anais [...], p. 1-10.  

ROSA, Maria de Lurdes. Fazer e pensar a História


Medieval hoje: guia de estudo, investigação e
docência. Portugal: Universidade de Coimbra Press, 2017. 

SARMIENTO, Domingo Faustino. Facundo or, civilization


and barbarism. London: Penguim Books Ltd, 2002.

UTZ, Richard. Cupid and the castle:


Romance, medievalismo and race at
Atlanta’s Rhodes Hall. The Public Medievalist, 4, Abr,
2017. Available at: https://www.publicmedievalist.com/
rhodes-hall/. Accessed: sept. 17 2019.

UTZ, Richard. Don’t Be Snobs, Medievalists!


2015. Availabe at: https://www.chronicle.com/article/Dont-
Be-Snobs-Medievalists/232539. Accessed: Sept 29, 2019.

WECKMANN, Luis. La herencia medieval del Brasil. Cidade
do México: Fondo de Cultura Econômica, 1993.  

128 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Long Middle Ages or appropriations of the medieval?

WORKMAN, Leslie. An interview with Leslie J. Workman.


In: SHIPPEY, Tom and UTZ, Richard. Medievalism in
the Modern World: Essay in honour of Leslie Workman.
Turnhout: Brepols, 1998. p. 480-499.

129 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
Maria Eugenia Bertarelli & Clínio de Oliveira Amaral

ACKNOWLEDGMENT AND INFORMATION

Maria Eugenia Bertarelli


mariaeugeniabertarelli@gmail.com
Universidade do Grande Rio
Linhas UFRRJ
Professor of History
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
Brasil

Clínio de Oliveira Amaral


cliniodeamaral@yahoo.com.br
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Laboratório de estudos dos protestantismos
Professor of Medieval History
Rio de Janeiro
Rio de Janeiro
Brasil

We would like to thank to research group:


LINHAS- UFRRJ.

Translated by Giselle Louro Botelho.

RECEIVED IN: 31/OCT./2019 | APPROVED IN: 25/MAY/2020

130 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 97-130 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1555
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Jacopo Gaetano Stefaneschi: um cardeal-historiador


entre os séculos XIII e XIV

Jacopo Gaetano Stefaneschi: a cardinal-historian between 13th


and 14th centuries

Igor Salomão Teixeira


http://orcid.org/0000-0002-6866-9654

RESUMO
O tema deste artigo é a produção textual de Jacopo
Gaetano Stefaneschi. A documentação consiste em dois ABSTRACT
textos: De centesimo seu Iubileo anno liber - sobre o
This article discusses the textual production of Jacopo
primeiro Jubileu da Igreja, convocado por Bonifácio VIII,
Gaetano Stefaneschi. The documentation consists of two
para 1300 - e o Liber Cerimoniarum Curiae Romane -
texts: De centesimo seu Iubileo anno liber – about the
texto que descreve cerimônias regidas por pontífices
first Jubilee of the Church, requested by Pope Boniface
e que compreende o período em que Stefaneschi foi
VIII, for 1300; and Liber Cerimoniarum Curiae Romane
cardeal, de 1295 até sua morte em 1343. A hipótese
– a text that describes ceremonies conducted by pontiffs
que guia esta investigação é que analisar a produção de
and that encompasses the period during which Stefaneschi
narrativas elaboradas por cardeais amplia a compreensão
was a cardinal (from 1295 until his death in 1343). The
da história da corte pontifícia. A metodologia consiste
hypothesis that guides this investigation is that the analyzes
em identificar, neste estudo de caso, expressões e
about the production of narratives elaborated by cardinals
referências que remetem a acontecimentos precisos e
expands the understanding of the history of the pontifical
datáveis e, a partir disso, responder à questão: Pensar
court. The methodology consists in identifying expressions
a escrita da história na idade média oferece respostas
and references that point to precise and datable events
diferentes das encontradas na historiografia sobre
and, from that, answer the question: does the writing of
a atuação dos cardeais? Os conceitos centrais para
history in the middle ages offers different answers than
análise são cerimonial, familia cardinalis e corte papal.
those found in historiography about the performance of
As conclusões apontam para o aprofundamento e
cardinals? The central concepts for analysis are ceremonial,
diversificação, a partir do método, das discussões sobre
familia cardinalis and papal court. The conclusions point to
a escrita da história na Idade Média.
the deepening and diversification of discussions about the
writing of history in the Middle Ages.

PALAVRAS-CHAVE
História Medieval; Escrita da História; Historiador
KEYWORDS
Medieval History; Writing History; Historian

131 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

Introdução
Jacopo Gaetano Stefansechi (ca.1270-1343) era filho
de Pedro Stefaneschi, um senador romano, e Perna Orsini,
membros de duas importantes famílias da elite romana, e
sobrinho-neto de Nicolau III, papa entre 1277-1286. Ascendeu
na carreira eclesiástica a partir do pontificado de Nicolau IV,
entre 1288-1292, ao ser nomeado Subdiácono. Foi ordenado
Cardeal por Bonifácio VIII em 1295. Esteve junto aos papas de
Avignon, inclusive, participando dos conclaves que elegeram
Clemente V, João XXII e Bento XII (HÖLS 1965; ROMANO 1844
e 1854). Sua produção textual é vasta e diversificada, o que
inclui o Opus Metricum, espécie de hagiografia em verso sobre
Celestino V, o De centesimo seu Iubileo anno liber, sobre o Jubileu
da Igreja de 1300, o Liber cerimoniarum Curiae Romanae, no
qual, aparentemente, descreve cerimônias nas quais os papas
estavam presentes - de ordenação de cardeais a coroação de
reis ou cerimônias de canonização. Também escreveu textos
hagiográficos sobre São Jorge e sobre um milagre atribuído a
Maria em Avignon.

Em relação às funções de um cardeal na administração


papal naquele contexto, Pierre Jugie assim as caracterizou:

Consiste, antes de tudo, em assistir e ajudar o papa em sua


função de dispensar benefícios eclesiásticos, em duas formas
particulares, a coleta de benefícios e a recepção de renúncias.
No que concerne à coleta de benefícios maiores (bispados
ou abadias), não é preciso dizer que é o papa propriamente
dito que nomeia, ou por delegação e não um cardeal, o novo
titular, afirmando uma reserva geral ou especial. Entretanto, um
membro do Sacro-Colégio pode interceder junto ao pontífice em
favor de tal ou tal pessoa. (JUGIE 1986, v. 1, p. 114)

A partir desta citação, é possível identificar que


atividades como escrever cerimoniais, textos hagiográficos
ou registros sobre acontecimentos específicos não estavam
necessariamente na linha de frente das atividades que deveriam

132 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

ser desempenhadas por um cardeal. Esse é um dos elementos


que torna os textos escritos por Stefaneschi documentos
interessantes e, também, coaduna com a argumentação de
Bernard Guenée sobre a cultura histórica no Ocidente Medieval
como uma atividade secundária (GUENEE 1980).

A partir dessas informações iniciais, podemos afirmar que


a produção textual de Jacopo Gaetano Stefaneschi destoava
daquela realizada por outros cardeais seus contemporâneos.1
O que se pretende demonstrar são as especificidades dessa
atuação, a partir de um estudo de caso nas obras desse
cardeal, de modo a pensar como operacionalizou o registro de
acontecimentos contemporâneos. Partimos da hipótese de que
analisar a produção de narrativas elaboradas por cardeais amplia
a compreensão da história da corte pontifícia. Perguntamos:
Pensar a escrita da história na idade média oferece respostas 1 Pierre Jugie (1986,
v. 2, p. 84) afirmou:
diferentes das encontradas na historiografia sobre a atuação “Gui de Boulogne
dos cardeais? est tout à fait repré-
sentatif de la culture
des cardinaux de la
Este artigo está dividido em 3 partes: na primeira papauté d’Avignon:
apresentamos, em linhas gerais, os documentos analisados conformiste par con-
viction et par intérêt,
e como a historiografia tem trabalhado com os textos; na il participe au mou-
segunda, apresentamos uma discussão historiográfica sobre vement général sans
avoir l’envergure d’un
formas distintas de analisar a atuação dos cardeais entre os Stefaneschi.”
séculos XIII e XIV; na terceira, conclusiva, apontamos que
os elementos selecionados em cada um dos documentos
analisados fornecem recursos para o aprofundamento das
discussões sobre a escrita da história na Idade Média.

O Jubileu e o Cerimonial Romano


Os textos selecionados foram produzidos simultaneamente,
pelo menos, entre 1295-1330. Concordando com o que afirmam
Léon-Honoré Labande (1893), Mario Fois (2000) e Amedeo De
Vicentiis (2008), é possível afirmar que o cardeal Stefaneschi
registrava acontecimentos muito próximo de quando teriam
ocorrido. Selecionamos os seguintes excertos para as análises
iniciais:

133 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

Pretendemos realizar com este livro o nosso desejo de transmitir


às gerações futuras tudo aquilo que aprendemos sobre o ano
do centenário, o jubileu, seja como testemunhas oculares,
seja auriculares, seja por referir as opiniões que escutamos,
retendo o que a memória, por graça de Deus, não coletou, por
serem inúteis à geração presente, mas, ao contrário, por serem
necessárias à geração futura e que, ainda assim, constituem
motivo de prazer tanto para uma quanto para outra. A decisão
de escrever estas memórias foi causada pela divulgação da
grande indulgência, embora, independentemente das várias
opiniões, a confiança de ser capaz de evitar o esquecimento.
[Fruturorum aliquid mandare memorie de centesimo quem
iubileum fore constat anno, in hiis, quorum quedam visu, quedam
opinione didicimus, conceptum animo votum aggredimur. Rem
siquidem, Deo auspice, et si notam presentibus non inutilem
postris necessariam, utrisque oblectamenti causam. Nam et quo
res vulgatior est eo libentius scribere gliscimus, dum paucos
presentis evi in alikud perventuros speramus, parvique refert
grande minimunve fuerit quod gestum est dum utrumque delet
oblívio] (Ms. BAV, G3 fol. 3r-3v)2.
2 Todas as citações
do Ms.1706 são fruto
de transcrição nossa,
Quando o rei Roberto foi coroado em Avignon, não tínhamos com auxílio da edição
Stefaneschi (1997, p.
nada escrito que se referisse à coroação do rei Carlos II, então 198), e o mesmo vale
o fiz a partir de minhas memórias. [Quando rex Robertus fuit para as traduções.
coronatus Avionione, non habuimus hanc scripturam, que loquitur
de coronatione regis Karoli secundi, sed aliqualem memoriam
ego habebam.] (Ms. 1706, fol.18r).

Há, pelo menos, quatro elementos a sublinhar


nessas duas passagens: o desejo de transmitir os
acontecimentos às gerações futuras; de registrar as
memórias pessoais; de evitar o esquecimento; e de relatar
o caráter solene e oficial das cerimônias registradas. Esses
elementos também se distinguem ao considerarmos os
textos nos quais estão inseridos. A citação mais extensa
está no texto que tem como único foco um acontecimento: o
primeiro jubileu da igreja, convocado por Bonifácio VIII para
o ano de 1300. Este texto é composto por essa espécie de
prólogo no qual o cardeal Stefaneschi explicita seus objetivos.
A segunda citação, diferentemente, está inserida em um

134 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

conjunto variado de textos multiformes (em extensão, em


conteúdo, em referências) reunidos sem a necessidade de uma
sequência cronológica.

O primeiro excerto é o início do livro sobre o jubileu de


1300; o segundo, uma das rubricas sobre coroações de reis
feitas pelos papas. No caso, especificamente, o cardeal trata
tanto da coroação de Carlos II de Anjou (sobre a qual não
havia nada escrito), ocorrida oficialmente em 1289, quanto
da de seu filho, sucessor do trono do reino de Nápoles-Sicília,
Roberto, dito o sábio, em 1309. Ao final desta mesma rubrica
o cardeal informa também que o fez a partir da ordem do papa
Clemente V (papa entre 1305-1314).3

Segundo Giovanna Ragionieri (1997, p. 217), o fato de o


cardeal Stefaneschi ter escrito sobre o jubileu não significa
necessariamente que ele tenha desempenhado um papel
de protagonista naquele contexto, e sim, que tinha ligações 3 Ms. 1706 fol. 18r:
“Unde facta fuit ru-
próximas com o papa e que era interessado na liturgia. A brica alia multum sol-
análise realizada por Ragionieri não necessariamente destoa de lempnis et ordinata,
quam dominus papa
reflexões anteriores, como as de Arsenio Frugoni, interessado Clemens dixit, quod
em questões filológicas e sobre a fortuna manuscrita. (FRUGONI fecit poni in libro”.

1949; 1950) Claudio Leonardi, no prefácio da edição do texto


– publicada em 2001, define esse testemunho como “singular”
(LEONARDI 2001, p. VII).

Em relação ao Liber cerimoniarum, é importante explicitar


a principal característica desse tipo de texto. Segundo Marck
Dykmans, um cerimonial pode ser definido da seguinte forma:

um livro litúrgico que oferece as regras dos ofícios sem oferecer


as orações. Estas eram [consideradas] as essenciais e apareciam
sozinhas nos livros mais antigos. Pouco a pouco explicações
foram adicionadas. São as rubricas. Foram elaboradas, então,
obras especiais, as ordines, nas quais foram reunidas [as regras
e as explicações]. (DYKMANS 1977, v.1, p. 7)

A partir desta citação, podemos considerar um cerimonial


como um livro de orientações, com regras. Porém, como

135 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

escreveu Stefaneschi sobre a coroação dos reis da Sicília, é


possível perceber que, ao menos para esse registro, memórias
podiam ser a referência para as regras das cerimônias.

A historiografia sobre o cerimonial romano de Jacopo


Stefaneschi é consideravelmente diversificada. É possível
afirmar que os estudos podem ser classificados entre discussões
filológicas e sobre a fortuna manuscrita e estudos sobre os ritos
e cerimônias concernentes aos ofícios do papa no século XIV
(EHRLE 1889, p. 565-602; LABANDE 1893, p. 45-47; HÖSL
1965; SCHIMMELPFENNIG 1973; DYKMANS 1981). Também é
possível identificar um interesse específico, na historiografia
do século XIX e do início do século XX: os autores estavam
preocupados em “extrair” o “real valor histórico” do documento.
Léon-Honoré Labande seguiu o mesmo tipo de abordagem
de Franz Ehrle, na medida em que ambos consideraram o
Liber cerimoniarum importante por causa do registro quase
contemporâneo que o cardeal fez das cerimônias nas quais
esteve presente. Labande transcreveu parte das rubricas sobre
cerimônias de coroação dos reis da França e da Sicília, sobre as
canonizações de Celestino V e Tomás de Canteloupe. Labande
finalizou seu texto, afirmando que nessas transcrições está
contido o valor histórico do documento.

A obra de Ignaz Hösl tem praticamente o mesmo objetivo


do volume publicado por Denifle e Ehrle, a saber, apresentar
algumas contribuições para o entendimento da história
eclesiástica do século XIV. É centrada, no entanto, na atuação
de Jacopo Stefaneschi. O livro é relativamente curto e dividido
em sete capítulos (A família Stefaneschi e sua condição de
nobreza; a formação escolar de Jacopo Stefaneschi; sua carreira
eclesiástica na cúria romana e sua nomeação como cardeal;
da sua atuação como cardeal até sua morte; sua atividade
literária; suas aproximações com Giotto e, por fim, a familia
e a relação com Dante). Desses capítulos, o mais extenso
é o que trata da atividade literária, definida nos seguintes
termos: vasta, duradoura e “pré-humanista” (HÖSL 1965,
p. 31). Esse capítulo é dividido em cinco partes, cada uma

136 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

delas dedicada a uma obra atribuída ao cardeal Stefaneschi.


Também é possível afirmar que, para Hösl, o interesse sobre
o cerimonial recai nas “notas” sobre os acontecimentos entre
1289-1328. O autor, assim como Labande, destaca o uso de
palavras como hodie, que remetem a redação ao momento da
observação das cerimônias, com especial destaque, no texto
de Hösl, para as cerimônias relacionadas aos próprios cardeais.
O autor finaliza essa sessão, afirmando que as passagens mais
importantes do Ms. 1706 são as editadas por Ehrle e Labande,
mas que seria salutar que uma edição completa do manuscrito
fosse publicada, de modo a oferecer novos materiais para o
entendimento comparativo e mais amplo da história da corte
papal4 (HÖSL 1965, p. 105).

As conclusões de Hösl ganharam eco nas décadas de 1970


e 1980 com os trabalhos de Bernhard Schimmelpfennig (1973)
e Marc Dykmans (1981). As obras Die Zeremonienbücher der
4 Outro texto que
Römischen Kurie Im Mittelalter, do historiador alemão, e Le aborda a importância
cérémonial papal de la fin du Moyen Âge à la Renaissance, do Ms. 1706, mas que
trata de assuntos re-
do jesuíta, comportam tanto estudos introdutórios e analíticos lativos a algumas fun-
quanto edições de textos, o que inclui, em ambos os casos, o ções administrativas
internas é MOLLAT
Liber cerimoniarum, de modo geral, e reflexões sobre o Ms. 1706 (1927, p. 1-10).
Cecano, de modo específico. Uma das divergências em relação
às duas obras está relacionada ao recorte temporal: o autor
alemão inicia sua reflexão sobre a tradição dos livros cerimoniais
a partir do século XII e estende as análises até o século XVI
em um único volume. A obra de Dykmans, diferentemente, é
composta por 04 volumes, assim divididos: 1) O cerimonial
no século XIII; 2) O cerimonial de Jacopo Stefaneschi; 3) Os
cerimoniais no contexto do Cisma do Ocidente; 4) O cerimonial
após o retorno dos papas a Roma a partir do cerimonial de
Pedro Ameil.

Para Schimmelpfennig, a mudança da corte papal para


Avignon, além de provocar modificações não necessariamente
abruptas na cidade, também teria provocado mudanças na
reorganização dos cerimoniais (SCHIMMELPFENNIG, p. 38-39).
O historiador alemão cita todas as referências bibliográficas

137 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

consideradas anteriormente e reconhece a importância


dos trabalhos de Labande e Ehrle. Sua preocupação é,
então, oferecer, pela primeira vez, a edição completa do
MS. 1706, precedida por uma descrição da ordem das
rubricas, a fortuna manuscrita e as diferentes mãos que
atuaram na composição do manuscrito. A edição do manuscrito
é a primeira de um conjunto de quatro cerimoniais editados
na mesma publicação. O Ms. 1706 é o segundo em termos
de extensão de número de rubricas editadas (I-XLIII)
sendo superado pela edição de um manuscrito da “época
do papa Bento XIII” (LXXIX-CXXXVII) - esse cerimonial,
classificado por Schimmelpfennig como “coleção C”,
está inserido na parte da obra sobre os cerimoniais no período
do Cisma e, portanto, refere-se ao período do antipapa Bento
XIII, eleito em Avignon, 1395 (SCHIMMELPFENNIG 1973, p.
148-244).

O que diferencia substancialmente a obra de


Schimmelpfennig do trabalho de Dykmans é a abordagem dada
por ambos em relação ao autor e ao Ms.1706 (DYKMANS 1981,
p. 25-252 e 253-507 – edição do cerimonial). O cardeal Jacopo
Gaetano Stefaneschi, no primeiro caso, é citado como autor
do cerimonial, mas nenhuma atenção é dada à sua carreira
eclesiástica e/ou à sua familia. Diferentemente, Dykmans
dedicou os três primeiros capítulos do segundo volume da
série à questão biográfica do autor do Liber ceriomoniarum.
No entanto, enquanto Schimmelpfennig propôs uma discussão
aprofundada sobre a fortuna manuscrita do texto e uma edição
específica para o Ms.1706, Dykmans propôs uma edição a
partir de dez manuscritos diferentes, incluindo o Ms.1706.
Sendo assim, a obra de Dykmans é importante na medida em
que fornece elementos que ampliam a compreensão sobre a
trajetória de Jacopo Gaetano Stefaneschi.

As duas obras são diferentes em relação à atribuição


de autoria. Schimmelpfennig afirma que o Ms.1706 apenas
oferece indícios para afirmar que se trata do cerimonial de
Jacopo Gaetanho Stefaneschi. Dykmans, no entanto, afirma

138 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

com precisão que o cardeal Stefaneschi é o autor do texto; faz


tal afirmação, inclusive, criticando o historiador alemão.5

Considerando as pesquisas realizadas no final do século


XIX, podemos perceber que os autores estavam preocupados
em ler o texto identificando seus aspectos verificáveis,
datáveis, pensando o documento como portador de uma
“verdade”. As discussões filológicas e as propostas de edição
das décadas de 1970-1980, diferentemente, estavam voltadas
ao estabelecimento do texto.

Podemos afirmar que analisar dois documentos que foram


produzidos para gerar memória e para descrever, caracterizar
e orientar a realização de cerimônias da corte papal é observar
um espectro amplo de elementos que compreende história das
instituições e da formação intelectual dos integrantes da corte
papal; o envolvimento dos ocupantes de posições elevadas
5 “Nous entendons,
no ordenamento da Igreja romana em disputas teológico- en toute amitié
doutrinárias (como a atuação do cardeal Stefaneschi no contexto pour Schimmelpfen-
nig, mettre en va-
da consulta sobre a pobreza de Cristo realizada por João XXII em leur les fondements
1322) e defesa de posicionamentos em contextos mais amplos de l’opinion con-
traire.” (DYKMANS
de crises institucionais (como a relação do cardeal Stefaneschi 1981, p. 133).
e a instalação dos pontífices em Avignon, principalmente a
partir de 1309). Nesse espectro amplo, também está incluída
a cultura escrita e a forma de se registrar acontecimentos e,
porque não dizer, de se escrever a história.

De centesimo seu Iubileo anno liber

O códice não está em bom estado de conservação; particularmente,


foi evidentemente cortado ao longo das margens e reduzido às
dimensões atuais de 240 x 168 milímetros. O texto em prosa do
De centesimo ocupa a maior parte do manuscrito (cc.3r-27v)
[...] Em conclusão, pela decoração do De centesimo os resultados
das análises paleográficas e da crítica estilística concorrem para
evidenciar critérios análogos e arcaizantes: apenas o conteúdo
do códice orienta a datação, com segurança, para depois de
1300. (RAGIONIERI 1997, p. 218 e 223)

139 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

Giovanna Ragionieri caracteriza o Ms. G3 da Biblioteca


Apostólica Vaticana (BAV) com essas palavras. A autora aponta
para elementos técnicos relacionados tanto às imagens contidas
no códice quanto aos outros textos que o compõem. A partir da
digitalização do manuscrito pela BAV interessa observar que o
texto está bastante danificado pela ação não só do tempo.

Em relação ao conteúdo, a divisão é apresentada, além do


prólogo citado anteriormente no qual o cardeal expõe os motivos
pelos quais elaborou a obra, em dezesseis caput de assuntos
variados: Os rumores que se espalhavam sobre a indulgência
papal e sua relação com a peregrinação a Roma (quando ir, onde
ir, quanto tempo de indulgência etc) (Ms. BAV, G3 fol. 4r-6r);
consultas realizadas pelo papa aos cardeais sobre a questão
do ano centenário (1300) e a elaboração da decretal e seu
conteúdo (Ms. BAV, G3 fol. 6v-7v) e a repercussão da decretal.
Claudio Leonardi (2001, p. IX-XI) afirma que os momentos
principais na estrutura deste texto podem ser apresentados da
seguinte forma:
Caput 1 – 3: Descrição da origem do jubileu
Caput 4 – 11: Repercussões da grande peregrinação à
Roma
Caput 12 – 15: Capítulos dedicados ao pontificado romano
e seus poderes.

No caput 4, sobre a repercussão da peregrinação, há uma


inserção do autor na narrativa:

Nós mesmos nos colocamos, do mesmo modo, não por ostentação


de grandeza, mas por transmitir um incitamento à posteridade.
Residíamos em Trastevere perto da igreja da Mãe de Deus – onde
se diz que no momento da Natividade do nosso Salvador brotou
de uma fonte um grande jato de óleo sobre o Tibre – dita, depois,
Taverna meritória (aqui é o lugar da nossa origem paterna) – e
depois da promulgação da indulgência fomos em peregrinação
por trinta dias consecutivos nas duas basílicas [Basília Vaticana
e Basílica Ostiense] sem deixar de frequentar o consistório
em Latrão no mesmo dia. [Nobis vero magis quod ipsi egimus
notum non ut magnum sed ut motivum posteris pandamus.
Concessa quidem indulgentia cum Transtiverim iuxta ecclesiam

140 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

Dei genitricis unde in salvatoris nostri nativitate largo rivo olei


fons versus Tiberim scaturisse peribetur, iam dudum Tabernam
Meritoriam dictam, undeque nobis native ac paterne originis
orsus moram traheremus, diebus triginta continuis principum
utramque basilicam peregrinationis causa ingressi sumus,
nec minus sepius prius eadem die Lateranum ad consistorium
matutina luce properantes] (Ms. BAV, G3 fol. 8v-9r).

O trecho citado faz menção ao comportamento do cardeal


Stefaneschi no contexto da repercussão da indulgência. Revela
que procurou imitar cardeais mais velhos (magna etate maturi
patres utramque basilicam visitaverint) e que não deixava
de cumprir seus compromissos, como ir a Latrão, mesmo
nos dias de peregrinação. Porém, fornece outros elementos,
como, por exemplo “o lugar da origem paterna” e onde residia
(“Trastevere, perto da Igreja da Mãe de Deus”). Mescla essas
informações biográfico-topográficas com elementos de cunho
hagiográfico (o grande jato de óleo sobre o rio Tibre quando da 6 Ms. BAV, G3 fol.
11r: “Ceterum ne
Natividade). tempus terentes frus-
tra invisi simus, Apuli,
Há, também, em outras passagens, uma espécie de Sardi, Corsique, tor-
ridam estatem nacti
informações sobre o cotidiano em Roma devido ao grande aliis autumpno, ye-
fluxo de peregrinos (Hungria, Germânia, Provença... “poucos meque fecere locum.”

ingleses, por causa das guerras”): carestia de alimentos,


organização de grupos a peregrinar dependendo da origem.6
O cardeal alerta seus leitores em relação aos aprendizados da
experiência de 1300:

Tu, que estás lendo com atenção, caso tenhas compreendido os


problemas logísticos da multidão, não duvides dos [problemas] de
seu sustento. Reconsideres no futuro sempre o que aconteceu no
jubileu e o quanto é necessário que te prepares. [Hec qui lectitas,
multitudinem si capis, frugem non ambigas. Sic enim transacta
inspexisse collibeat, ut accuratiores inventura preparemur] (Ms.
BAV, G3 fol. 13v).

Esta passagem, localizada no caput VIII, marca também


uma espécie de transição, pois, no mesmo título, o cardeal
inicia o relato sobre os frutos positivos do jubileu em Roma

141 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

e para os cristãos. Um dos primeiros pontos considerados


pelo autor foi a ajuda financeira aportada pelos peregrinos.
Isso contribuiu para a melhoria do estado material das
basílicas.7 Os principais pontos, no entanto, são os
relacionados à reafirmação dos valores cristãos e da remissão
dos pecados. E, para tanto, o cardeal, em diferentes momentos
do texto, questiona se o papa poderia/deveria fazer esse tipo
de concessão.

A partir desta breve apresentação, podemos afirmar que


estamos diante de um texto que, embora trate de um único
assunto – o jubileu de 1300 – fornece informações tanto sobre
formas de registro quanto de concepções de texto, a mescla de
elementos factuais com aspectos “excepcionais”. Retornaremos
a esses elementos na última parte deste artigo.

7 Ms. BAV, G3 fol.


Liber cerimoniarum Curiae Romanae 15r-16r: “Et ne qui-
cquam intactum
oblivioni deseartur,
Segundo Dykmans (1981), a partir da edição de temporalis basilicis
Schimmelpfennig – que numera as rubricas de I a XLIII – é emolumenti aliquid
devotionis signum ac-
possível identificar dez grupos de temas no Liber cerimoniarum: crevit.”

1. A ascensão dos papas


2. O cerimonial cardinalício
3. A liturgia papal
4. Usos da Cúria para sermões e consistórios
5. Ordenação de um cardeal-diácono por um papa
6. O concílio
7. Consagração imperial e real
8. Canonizações
9. Complementos sobre a missa papal e os consistórios
10. Cardeais e legados
Anexo: Funerais de papas e cardeais.

O manuscrito que analisamos (Ms. 1706), diferentemente


do De centesimo, não apresenta aquela espécie de prólogo.
O texto é iniciado na rubrica sobre o “Domingo de Ramos” e

142 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

informa, dentre outras coisas, o local em que devem ficar as


pessoas e o que se deve fazer quando o Papa está presente na
celebração.8

Destoa, no entanto, a forma como o Cardeal trata algumas


informações. O texto da rubrica supracitada inicia com a
expressão “Hac die” (neste dia/no dia). Trata-se de uma data do
calendário litúrgico sobre a qual não é possível determinar o dia
do mês em que acontece. Porém, isso não impedia o cardeal de
precisar uma celebração específica. Fazemos referência a esse
aspecto pois, para outras celebrações, há o dia da semana, 8 Ms. 1706, fol.1r:
do mês e o ano na qual aconteceram. No início deste artigo, “Hac die, scilicet do-
minica in ramis palma-
citamos a rubrica sobre a coroação dos reis Carlos II e Roberto rum, si papa celebrat,
de Anjou. A rubrica inicia da seguinte forma: diaconus cardinalis
dicturus passionem,
habens planetam vio-
lacei coloris plicatam
Quando o senhor Carlos segundo, rei da Sicília, foi coroado pelo super humerum [si-
senhor Papa Nicolau IV em Riete no dia de pentecostes do ano nistrum], ut in qua-
do senhor 1289, segundo ano do pontificado do mesmo senhor dragesima fit, more
consueto osculatur
papa Nicolau, foi observada tal ordem. [Quando dominus Karolus pedem pape…”
secundus, rex Sicile, fuit coronatur per dominum Nicolaum papam
IV apud Reate in die pentecostes anno domini MCCLXXXVIIII, 9 As Vésperas Sici-
pontificatus eiusdem domini Nicolai papae anno secundo, talis lianas foram ampla-
mente tratadas em
ordo extitit observatus ] (Ms. 1706, fol. 17r) crônicas do período.
Destacamos a Croni-
con siculum, na qual
Há, nesta passagem, ao menos dois elementos é possível acompa-
nhar as tratativas, as
importantes: a precisão ou a intenção de registrar o dia correto cartas e acordos entre
em que tal coroação ocorreu e a nomeação de Carlos II como papas, angevinos, pa-
lermitanos e aragone-
rei da Sicília em 1289. Sobre esse aspecto, devemos considerar ses entre 1280-1340.
que, na década de 1280, os angevinos, que governavam o
“reino da Sicília” desde a batalha de Benevento (1266), haviam
sido expulsos de Palermo no contexto das Vésperas Sicilianas
e que Carlos, tornado Carlos II em 1289, estava em posse
dos aragoneses e foi libertado após acordo que trocou três
filhos com o pai, para que ele pudesse, dentre outras coisas,
governar. Porém, desde então, os angevinos não exerceram
nenhum tipo de governo sobre a Ilha da Sicília, e sim apenas
sobre a parte continental do reino com a capital em Nápoles.9
Outras referências temporais também estão presentes quando

143 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

da descrição das canonizações presenciadas pelo cardeal


Stefaneschi, como no caso da canonização de Pedro Morrone –
ou papa Celestino V – ocorrida em 1313.10

Acreditamos que, para melhor compreender a amplitude


e profundidade desses elementos narrativos, é necessário
contextualizar a atuação dos cardeais, principalmente no
momento da mudança da Sé Apostólica para Avignon. Essa
contextualização foi elaborada, principalmente, a partir de três
estudos realizados entre os anos de 1960-1980. As obras de
Bernard Guillemain, Agostino Paravicini Bagliani e Pierre Jugie
também foram importantes para a elaboração da proposta aqui
apresentada, a saber, pensar os mesmos sujeitos (Cardeais) e o
mesmo objeto (a atuação desses sujeitos) a partir da produção
escrita visando, no mínimo, ampliar a compreensão da história
da corte pontifícia. 10 Ms. 1706, fol.13v:
“Anno domini MCC-
CXIII die secunda
Maii intrantis Avinione
Historiografia sobre a atuação dos cardeais no dominus noster papa
Clemens in consisto-
século XIV rio publico, presen-
tibus prelatis et offi-
A trajetória de Jacopo Gaetano Stefaneschi pode ser cialibus curie, qui die
precedenti ad hanc
enquadrada em dois termos que auxiliam a compreensão diem vocati fuerant…”
do período no qual os pontífices governaram a cristandade
a partir do território avignonense. O primeiro termo é “corte
papal” e o segundo é “familia cardinalis”. O estudo basilar para
o entendimento da formação das carreiras eclesiásticas em
Avignon é a obra La cour pontificale d’Avignon (1309-1376),
de Bernard Guillemain. O autor justifica o recorte cronológico
a partir da chegada de Clemente V em Avignon, em março
de 1309. Nessa cidade, o pontífice reuniu-se com os cardeais
e seus oficiais enquanto esperava a abertura do concílio de
Vienne (França). O ano final do recorte, 1376, por sua vez,
coincide com o retorno de Gregório XI a Roma. O autor propõe
a seguinte definição para “corte pontifícia”: “a sociedade que
circunda o chefe da Igreja e o ajuda a preencher as funções
de todo tipo de ordem a ele incumbidas” (GUILLEMAIN 1962,
p. 38). Segundo Guillemain, essa corte era composta, sem
necessariamente estar bem definida e profissionalizada,

144 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

pelo conselho do papa e pelos cardeais; os empregados dos


serviços administrativos (Chancelaria, Penitenciária, Audiência
das causas), que representavam o governo central da Igreja;
capelães, camareiros e médicos, que conviviam de forma
mais íntima e privada com o papa; as pessoas relacionadas
à segurança; cozinheiros, padeiros etc. Cabe destacar ainda
que, segundo o autor, os cardeais possuíam “eles mesmos uma
pequena corte”. (GUILLEMAIN 1962, p. 39) Por causa dessa
diversidade de funções identificáveis, mas não necessariamente
de fácil distinção, o autor afirma que a palavra utilizada na
documentação é curialis. O vocábulo, a partir de um documento
de Bonifácio VIII,

aplica-se não apenas aos cardeais e aos oficiais da corte pontifícia,


mas também a toda pessoa que está a serviço do papa e de seus
subordinados e a quem quer que fosse que residisse nesta corte
para tratar de negócios”. (GUILLEMAIN 1962, p. 39)

Além de uma característica bastante “clerical”, Guillemain


aponta que esta comunidade doméstica próxima ao pontífice
pode ser definida também como uma familia cujo primeiro traço
é sua característica patriarcal (GUILLEMAIN 1962, p.40-42).

A preocupação em definir e caracterizar essa familia também


foi tema da obra Cardinali di curia e ‘familiae’ cardinalizie:
dal 1227 al 1254, de Agostino Bagliani, publicada na década
seguinte. O autor define familia cardinalis como uma expressão
recorrente na documentação para se referir ao

conjunto de todas aquelas pessoas que se encontravam a serviço


de um cardeal, ligados ou residentes na Cúria, seja clérigo seja
leigo, capelão ou servidores. O termo ‘família’ cobre, assim, uma
vasta gama de funções, títulos e, além disso, várias atribuições…
(BAGLIANI 1972, v. 2, p. 452)

É importante perceber que as obras, publicadas com um


intervalo de dez anos, embora abarquem períodos distintos,

145 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

coincidem para a aplicação do vocábulo encontrado na


documentação e que esses vocábulos (curialis e familia)
apontam para uma diversidade de cargos, e que os cardeais
ocupavam importante função – a ponto de fazerem parte da
corte papal e possuírem eles mesmos uma corte própria, ou
uma familia.

As obras de Guillemain e Bagliani também são importantes


para o entendimento mais aprofundado sobre a relação entre
cardeais e os papas na Idade Média. Guilllemain propôs uma
questão: partindo-se do princípio que o poder papal coloca o
próprio papa em uma posição de centralidade, qual a influência
exercida pelo pontífice na composição, comportamento e
mentalidade de sua corte? Para responder à pergunta, o autor
realizou dois caminhos: inicialmente analisou os defensores e
críticos da teoria da infalibilidade do poder papal, a formação
intelectual, a proximidade geográfica da origem dos pontífices
e a relação que eles estabeleceram com esses lugares no que
tange à concessão de privilégios e benefícios durante o período
de Avignon. O segundo caminho foi a composição da entourage
papal, com protagonismo dos cardeais. Segundo o autor:

Desde a segunda metade do século XII, a coesão e as prerrogativas


do grupo dos cardeais mais próximos do chefe da Igreja romana
não paravam de crescer… As funções mais importantes do Sacro-
Colégio não estavam revestidas por uma característica coletiva?
Era sua responsabilidade eleger o papa com maioria de dois
terços dos membros presentes no conclave, segundo um cânone
do terceiro concílio de Latrão, de 1179, excluindo-se qualquer
participação exterior; a ele estava reconhecida a faculdade,
desde que reunido em consistório, de dar sua opinião sobre
todas as grandes questões que fossem colocadas; aos poucos,
uma parte dos rendimentos da Igreja romana era atribuídas a
ele…(GUILLEMAIN 1962, p.181)

A partir desta citação, é possível afirmar que, para


Guillemain, os cardeais – principalmente quando reunidos
em colegiado –, tinham poderes de extrema importância, os
quais iam desde a escolha do pontífice à divisão, junto com o

146 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

supremo sacerdote, de receitas obtidas com diferentes tipos


de encargos cobrados de estados vassalos, por exemplo. Essa
síntese despertou no autor o interesse em analisar se, por
exemplo, os privilégios que os pontífices distribuíam às suas
regiões de origem também se refletiam na composição do
colégio cardinalício. A constatação é relevante porque, durante
o governo de Bento XI (Nicolau Boccasini, 1240-1304, nascido
em Treviso), o colégio cardinalício era composto por um total de
19 cardeais (15 italianos, 2 franceses, 1 inglês e 1 castelhano).
Desses, 10 (09 italianos) iniciaram a função durante o
pontificado de Bonifácio VIII (Bento Gaetano, circa 1230-1303,
nascido em Anagni). No momento da eleição de Clemente V
(Bertrand de Got, 1264-1314, nascido em Villandraut – na
Gascônia) o colégio era composto por 15 cardeais, sendo 12 de
origem na península itálica. No tempo da morte de Clemente
V, em 1314, a composição desse colégio já tinha passado
para uma maioria de membros de origem no reino da França
(03 franceses do Norte e 23 franceses do Midi, dos quais 13
gascões). Do total de 134 cardeais nomeados pelos papas
ditos de Avignon, 111 vieram do reino da França, e, além
disso, 27 cardeais foram “fornecidos” por apenas 05 famílias,
principalmente as famílias Got (Clemente V), Duèze (João
XXII) e Roger (Clemente VI) (GUILLEMAIN 1962, p. 184-
195). As análises de Guillemain revelaram que a composição
da corte papal de Avignon gerou impactos populacionais
e, consequentemente, na organização do espaço urbano.
O autor, ao final, defendeu que o principal motivo pelo
fluxo de pessoas e suas atividades foi a presença do papa
(GUILLEMAIN 1962, p. 697-722).

A condução das análises a partir da centralidade do papa


também marca a obra Bagliani. O autor afirma, na primeira
página, que foi uma decisão papal que configurou a principal
modificação da composição do colégio cardinalício. Em outras
palavras, segundo o texto, Gregório IX (papa entre 1227 e
1241) e Inocêncio IV (papa entre 1243-1254) negavam cada
vez mais os pedidos dos cardeais para ocuparem sedes de
bispados, arcebispados ou patriarcados com a justificativa

147 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

de que os cardeais deviam permanecer na cúria (BAGLIANI


1972, p. 1). Entretanto, o autor realizou um caminho diverso
do seu predecessor e escolheu aprofundar o estudo dos dados
biográficos dos cardeais (nacionalidade, origem, parentesco,
cultura, vida pré-cardinalícia, missões oficiais, políticas e
religiosas) de modo que esses dados, posteriormente colocados
em conjunto, fornecessem sínteses e estatísticas mais seguras
(BAGLIANI 1972, p. 4). Em relação a essa obra, que não trata
dos cardeais do século XIV, é importante ressaltar o destaque
dado pelo autor à questão biográfica e à trajetória dos sujeitos,
incluindo a fase anterior à função de cardeal. A obra é quase
um catálogo prosopográfico no qual se encontram subitens
biográficos de 18 cardeais que compunham o colégio no
contexto da morte de Honório III (1227); sobre os 10 cardeais
promovidos por Gregório IX; e sobre os 15 promovidos por
Inocêncio IV. Além disso, ao elaborar um status quaestionis
afirmou que a obra de Guillemain foi importante por ter jogado
luzes sobre as características gerais das famílias cardinalícias
(BAGLIANI 1972, p. 446).

Essas duas obras apontam para dois caminhos extensos,


diversificados e complementares: a) uma abordagem ampla
sobre as teorias que fundamentavam o poder papal no século
XIV e a transformação geográfico-local-urbana ocorrida durante
a permanência dos papas em Avignon; e b) uma abordagem
prosopográfica.

Pierre Jugie talvez tenha realizado a operação historiográfica


que alcançou certo êxito ao reunir as duas perspectivas na
tese, ainda inédita, datada de 1986. O autor dividiu sua
argumentação em uma parte biográfica da trajetória pré-
cardinalícia de Gui de Boulogne à sua familia. Interessante
perceber que Gui de Boulogne está inserido exatamente no
contexto da “virada francesa” na composição do colégio
cardinalício, conforme apontado por Guillemain. Gui de
Boulogne ascendeu ao cardinalato em 1342, no pontificado de
Clemente VI (Pedro Roger, um dos pontífices do período que
tornou cardeais um número considerável de membros de sua

148 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

família sanguínea), aos vinte e seis anos de idade (JUGIE 1986,


v. 1, p. 109-112). Ainda segundo Jugie, a familia de Gui de
Boulogne foi um de seus pontos mais fortes em sua trajetória
(JUGIE 1986, v. 2, p. 93).

A produção de Pierre Jugie sobre a matéria é vasta e pode


ser agrupada em temáticas que giram na órbita da formação
intelectual dos cardeais (JUGIE 2003, p. 118-121; 2008, p.
171-193), na composição das famílias (JUGIE 1990, p. 41-59) e
de seus arquivos (JUGIE 2005, p. 651-739; idem 1991, p.157-
180) e manifestações específicas desses cardeais – com especial
atenção a Gui de Boulogne – em relação a temas e processos
nos quais estiveram diretamente envolvidos, principalmente
a partir de missões em nome dos pontífices. Em relação à
primeira temática – e que, como o autor afirmou, não era um
Stefaneschi – é importante considerar que as informações
11 Um dos elementos
sobre a formação cultural dos cardeais promovidos antes de que podem levar, por
1342 é mais escassa do que para o período entre 1342-1378. exemplo, à relativiza-
ção do uso do termo
pode ser considera-
No geral, a formação dos cardeais consistia, principalmente do na própria ativi-
considerando os doutores, em direito civil, canônico e em dade pastoral de Gui
de Boulogne, da qual
teologia (esses em menor número) (JUGIE 2008, p. 178-187). se conhece ao menos
Jugie, ao questionar se os cardeais de Avignon eram homens dois sermões. (JUGIE
1986, v. 2, p. 88-92).
letrados, respondeu que, no geral, sim. (JUGIE 2008, p. 193)
Porém, além da formação escolar, cursos seguidos desde a
iniciação em artes às licenças e doutorados, o autor alertou
para a necessidade de se analisar a atuação dos cardeais e que
tipo de “uso” fizeram de seus conhecimentos adquiridos em
bancos escolares/universitários ou com preceptores.11

Em relação à corte papal de Avignon e à composição do


colégio cardinalício, Sylvain Piron apresentou uma reflexão que
destoa relativamente da argumentação de Pierre Jugie sobre
a importância dos juristas de formação que atuaram junto aos
papas de Avignon. Segundo Piron, a partir do pontificado de
João XXII (Jacques Duèse, jurista de formação, cardeal a partir
de 1313, papa entre 1316-1334), houve um tournant teológico
na composição das comissões convocadas pelo papa para que
se pronunciassem sobre temas os mais variados (casamento,

149 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

magia, pobreza, condenações etc). Essas comissões –


formadas por experts e “mais amplas que o conselho dos
cardeais canonicamente requisitados” – auxiliaram o papa nas
“decisões teológicas mais importantes” (PIRON 2012, p. 357-
391). A partir do levantamento realizado por esse historiador,
pode-se constatar que Jacopo Gaetano Stefaneschi atuou
apenas na primeira consulta. O tema da consulta foi a pobreza.
Foi realizada em 1322 (consulta apontada por Piron como
a única na qual predominam os cardeais – 14 respostas; o
que não corresponde à totalidade do colégio cardinalício do
período) (PIRON 2012, p.364-373).12 Embora aponte para o
protagonismo progressivo dos teólogos em relação aos juristas
no contexto do pontificado de João XXII, Piron converge para
um dos argumentos de Pierre Jugie na medida em que ambos
afirmam que a presença/residência dos papas em Avignon, 12 Sobre as con-
sultas, ver Boureau
principalmente a partir de João XXII, provocou profundas
(2004). A participa-
transformações em relação à organização do espaço, atração de ção de Stefaneschi:
VAT LAT 3740 fl. 111
pessoas interessadas em obter formação intelectual próxima à
v. Disponível em:
corte pontifícia, o que também passou a configurar, em relação https://digi.vatlib.
it/view/MSS_Vat.
à formação cultural dos cardeais, em certo protagonismo da
lat.3740. Acesso em:
Universidade de Avignon. 20 jun. 2018. Edição:
Tocco (1910, p. 172-
173). Sobre a familia
Essa revisão bibliográfica aponta elementos importantes sob João XXII: Theis
que sustentam a justificativa sobre a importância da presente (2012).
proposta: ao tratar da ocupação e composição de um alto posto
na hierarquia da Igreja romana – o cardeal e o colégio cardinalício
– a historiografia deixa evidente a existência de pontos de
convergência e de divergência. Em relação aos aspectos
convergentes, a crescente organização e burocratização das
funções administrativas e jurídicas na corte papal, o que
conferiu acréscimo de poderes aos cardeais; converge também
para a composição da familia cardinalícia a partir da existência
de vínculos prévios seja com o local de origem dos papas seja
com as suas relações de parentesco; converge, ainda, para a
importância de se compreender a trajetória dos cardeais. Em
relação às divergências, podemos situá-las em dois campos:
um metodológico e outro de argumentação. A divergência
metodológica, na verdade, aponta a diversidade de caminhos

150 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

que podem ser empregados nas análises, como a prosopografia


e a história intelectual. A divergência de argumentação pode ser
percebida entre o que defende Jugie sobre a predominância dos
juristas e o que defende Piron sobre o crescente protagonismo
dos teólogos.13 Embora a questão, neste ponto, esteja restrita
ao colégio cardinalício no primeiro caso e ampliada para as
comissões de consulta do papa no segundo, é de se questionar,
por exemplo, se a partir do pontificado de João XXII o colégio
cardinalício pode ter perdido espaço nas tomadas de decisão
e que, inclusive, pode ter gerado a crise de 1378, conhecida,
grosso modo, como cisma do Ocidente. (FERNANDES 2011,
p. 69-87; GENEQUAND 2014, p. 249-279) Este levantamento
também revelou, considerando as argumentações de Pierre
Jugie, que entre os cardeais existiam formações intelectuais
diversas (uns mais outros menos envolvidos com a prática
universitária ou literária, por exemplo) a ponto de o autor
considerar sua personagem privilegiada de análise, Gui de
13 É importante res-
Boulogne, um homem que não pode ser comparado a um
saltar que esta pers-
Jacopo Gaetano Stefaneschi. pectiva está direta-
mente relacionada
com o que se pode
encontrar na obra de
A escrita da história entre os séculos XIII e XIV ROBIGLIO (2008).

Dado que a historiografia analisada anteriormente aponta


uma diversidade de métodos de análise, podemos afirmar que
apresentamos uma proposta distinta. Pensar a atuação do
cardeal Stefaneschi a partir de sua produção escrita amplia o
campo de observação. Além disso, como aponta o título deste
artigo, pensamos no cardeal a partir da sua trajetória como
“historiador”. Mas o que viria a ser e como identificar o fazer
historiográfico na Idade Média?

Esta pergunta vem sendo feita pelo menos desde o


lançamento do livro de Bernard Guenée sobre a cultura
histórica no Ocidente medieval (GUENEE 1980). De lá para cá,
os métodos de análise têm se diversificado e os mais diferentes
tipos de textos, autores, regiões e períodos – inseridos no
recorte do século V ao XV – foram estudados visando responder
a uma questão de fundo: localizar um saber historiográfico no

151 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

período classicamente conhecido como medieval é fornecer


mais elementos para, ainda, combater o preconceito sobre a
Idade Média (CHEN e SCHABERG 2013; ALMEIDA 2010, p. 76-
108). Acreditamos que a relação idade média-trevas, a partir
da temática da escrita da história, já está suficientemente bem
respondida, portanto, não voltaremos a ela.

Interessa em que termos a historiografia tem encontrado


a atividade de historiador nos textos do período medieval.
A primeira constatação é uma certa diversidade de funções
sociais: princesa (Anna Comneno); monges (Raul Glaber, Richer
de Reims); frades pregadores (Bernardo Gui); “historiógrafos”
chineses. (CHEN 2010, p. 1071-1091) A segunda constatação é
que essa mesma diversidade se verifica nas frentes de atuação
dos autores desses textos. Nenhum se dedicava exclusivamente
à função da escrita da história. Talvez, por perdurar certa
concepção de que a história é um tipo de conhecimento mais
simples, por tratar apenas do que aconteceu, como é possível
ler na Suma Teológica, de Tomás de Aquino (TOMÁS DE AQUINO
2001).

No geral, o primeiro item observável é o prólogo. Nas linhas


iniciais dos textos – assim como revela o Stefaneschi no De
centesimo – estão expostos os objetivos e os critérios para a
seleção e encadeamento das informações na narrativa: não
esquecimento, exemplo para gerações futuras, feitos dignos de
memória. Percebemos que são textos dotados de concepções
de passado e presente. Néri Almeida chega a afirmar que Raul
Glaber é um historiador do tempo presente (ALMEIDA 2010,
p. 98) e Marcella Guimarães conclui que os autores (“todos
homens” – considerando os documentos analisados pela
autora) eram conhecedores de tradições escritas anteriores
(GUIMARÃES 2015, p. 76-89). As duas historiadoras também
enfatizam que boa parte dos registros são sobre conflitos,
guerras. Não estamos diante desses casos, não nos textos do
Stefaneschi. Porém, estamos diante de acontecimentos precisos
e datáveis (O Jubileu de 1300 e as peregrinações a Roma;
coroações de reis, canonizações, entronização de papas).

152 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

De centesimo e o Liber cerimoniarum são distintos em


conteúdo. A primeira diferença é a inexistência de prólogo no
livro das cerimônias. Não há, no Ms. 1706, uma justificativa
do porquê para a produção do texto. O primeiro texto é
dedicado exclusivamente a um movimento do pontífice e
as consequências observáveis a partir desse movimento. O
segundo fornece rubricas independentes e diversificadas. Na
diversidade temática das cerimônias pontifícias, algumas foram
diretamente relacionadas a personagens e acontecimentos na e/
ou da Península Itálica. Por exemplo: ao tratar da coroação dos
reis da Sicília, Stefaneschi privilegiou o relato sobre a coração
de Carlos II em Rieti, e não sobre a coração de Roberto, na
França; relatou as canonizações de dois “santos napolitanos”,
a saber, Luís de Anjou e Tomás de Aquino (TEIXEIRA 2019).

Os textos também se diferenciam em relação à maior


inserção do autor na narrativa: Stefaneschi chega a informar a
parte da cidade de Roma na qual teve origem seu lado paterno
e a parte em que vivia; além disso, informa sobre seus hábitos
durante o período da indulgência. O mesmo não se verifica no
Liber cerimoniarum. Embora tenha relatado rituais nos quais
tinha lugar privilegiado de observação, não necessariamente
sabemos, por este texto, quantas vezes o cardeal foi às
reuniões de cardeais entre uma cerimônia e outra. Parte disso
também decorre da divergência de registros no interior do
mesmo texto: para uns, temos detalhes do dia, mês, ano do
pontificado; para outros, apenas o dia no calendário litúrgico,
como revela a rubrica do domingo de ramos.

Primeiras conclusões
O projeto no qual essas reflexões estão sendo desenvolvidas
produz, neste artigo, seus primeiros resultados. Por isso o
subtítulo adotado para encerrar o texto. A partir dos elementos
apresentados respondemos à pergunta motivadora desta
análise: Pensar a escrita da história na idade média oferece
respostas diferentes das encontradas na historiografia sobre a
atuação dos cardeais? As análises permitem afirmar que sim.

153 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

Dar a conhecer os acontecimentos do jubileu de 1300 restritos


à cidade de Roma aproximou narrador e objeto da narrativa.
Registrar cerimônias não provocou o mesmo movimento em
direção ao cotidiano da corte papal nem da familia cardinalícia.

Esses elementos permitem afirmar, a partir do estudo de


caso apresentado, que a escrita da história é um objeto difuso
na produção escrita na idade média. Daí a necessidade de se
atentar a diferentes tipos de textos, com diferentes formatos e
conteúdos. Também é importante frisar que a historiografia que
se dedica, desde o século XIX, a pensar a produção do cardeal
Stefaneschi, em geral, e o cerimonial romano, em específico,
é marcada por diferentes procedimentos metodológicos. Os
primeiros estudiosos viram valor principalmente nos elementos
datáveis. Os estudos da segunda metade do século XX
ampliaram a compreensão ao pensar a inserção dos indivíduos
(cardeais) em um grupo (familia). Porém, essas abordagens
não necessariamente usavam a escrita da história na idade
média nem como objeto de pesquisa, nem como horizonte
metodológico. É possível afirmar que a proposta apresentada
neste artigo tem potencial para ampliar a compreensão da
história da corte pontifícia. Essas conclusões, somadas às
informações biográficas e sobre a composição do colégio
cardinalício na virada do século XIII para o XIV, permitem
avançar a pesquisa. Podemos apontar uma outra hipótese que
aprofundará as análises a serem desenvolvidas: a Península
Itálica está privilegiada por ser o Stefaneschi um dos poucos
cardeais italianos e um dos mais antigos do colégio cardinalício
no papado de Avignon?

154 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

REFERÊNCIAS, MANUSCRITOS E DOCUMENTOS


UTILIZADOS

MANUSCRITOS

Ms. BAV. Arch. Cap. S. Pietro, fol.3r-27v G3, Disponível


em: https://digi.vatlib.it/view/MSS_Arch.Cap.S.Pietro.G.3.
Acesso em: 20 out. de 2019.

Ms. VAT. LAT 3740. fl.111v. Disponível em: https://digi.


vatlib.it/view/MSS_Vat.lat.3740. Acesso em: 20 jun. 2018.

Ms. VAT. LAT 4877. fl.51r-63v. Disponível em: https://digi.


vatlib.it/view/MSS_Vat.lat.4877. Acesso em: 20 out. de
2019.

Ms. VAT. LAT 4932. 80fl. Disponível em: https://digi.vatlib.


it/view/MSS_Vat.lat.4932. C Acesso em: 20 out. de 2019.

Ms. 1706, 50fl. Biblioteca Cecano – Avignon.

DOCUMENTAÇÃO IMPRESSA

JACOBI CARDINALIS S. GEORGII ad VELUM-AUREUM.


Opus Metricum. Apud: Acta Sanctorum, vol.17. Maio, 4a
parte, dias 17-19. Paris/Roma: Victorem Palmé, 1866, p.
437-442).

JACOBI CARDINALIS S. GEORGII ad VELUM-AUREUM.


De centesimo seu iubileo anno liber. Apud: Sac. D.
QUATTROCHI. “L’anno santo del 1300”. Bessarione:
pubblicazione periodica di studi orientali. Roma, Anno
IV, vol.7, 1899-1900. p. 299-317.

155 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

JACOBI CARDINALIS S. GEORGII ad VELUM-AUREUM. De


centesimo seu iubileo anno liber. Apud: FOSSI, G. (Dir).
La Storia dei Giubilei. Vol.1 (1300-1423). Prato: BNL –
Edizioni; Giunti Gruppo Editoriale, 1997. p. 191-215.

JACOBI CARDINALIS S. GEORGII ad VELUM-AUREUM. De


centesimo seu iubileu anno liber. Org. Claudio Leonardi.
Texto crítico Paul Gehardt Schmidt. Tradução e notas de
Antonio Placanica. Florença: SISMEL-GALLUZZO, 2001.

TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola,


2001, vol.1.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, N. de B. “Raul Glaber: um historiador na Idade


Média (980/985-1047)”. Signum, v. 11, n. 2, p. 76-
108, 2010. DOI: 10.21572/2177-7306.2011.V11.N2.05.
Disponível em: http://www.abrem.org.br/revistas/index.
php/signum/article/view/23/22. Acesso em: 23 jul. 2020.

BAGLIANI, A. P. Cardinali di curia e ‘familiae’


cardinalizie: dal 1227 al 1254. Pádua: Antenore,
1972. 2 v.

BOUREAU, A. Le pape et les sorciers. Une consultation


de Jean XXII sur la magie en 1320 (manuscrit BAV Borghese
348). Roma: EFR, 2004.

CHEN, J. W. “Blank Spaces and Secret Histories: Questions


of Historiographic Epistemology in Medieval China”. The
Journal of Asian Studies, v. 69, n. 4, p. 1071-1091, 2010.

CHEN, J. W. e SCHABERG, D. (Orgs). Idle Talk: Gossip


and Anecdote in Traditional China. Berkeley: GAIA Books,
2013.

156 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

DE VICENTIIS, A. “Scrivere contro la storia: Il cardinale


Iacopo Stefaneschi  (1260ca.-1341) e i suoi opuscoli
metrici”. In: ANDALORO, M.; MADDALO, S. e MIGLIO, M.
(orgs). Frammenti di Memoria: Giotto, Roma e Bonifacio
VIII. Roma: ISIME, 2008. p. 7-15.

DYKMANS, M. “Les palais cardinalices d’Avignon”.


Mélanges de l’École française de Rome: Moyen-Age,
Temps modernes. Tomo 83, n. 2, 1971, p. 389-438.

DYKMANS, M. Le Cérémonial papal: de la fin du Moyen


Âge à la Renaissance: Le cérémonial papal du XIIIe siècle.
Bruxelas/Roma: Institut Historique Belge de Rome, 1977.
v. 1. 

DYKMANS, M. Le Cérémonial papal: de la fin du


Moyen Âge à la Renaissance: De Rome en Avignon ou le
cérémonial de Jacques Stefaneschi. Bruxelas/Roma:
Institut Historique Belge de Rome, 1981. 3 v.

EHRLE, F. “Zur Geschichte des päpstlichen


Hofceremoniells im 14. Jahrhundert”. In: DENIFLE, P. H. e
EHRLE, F. (Orgs). Archiv für Literatur - und Kirchen -
Geschichte des Mittelalters. Fünfter Band. Freiburg Im
Breisgau: Herder’sche Verlagshadlung, 1889. p. 565-602.

FERNANDES, F. R. “Nem Roma, nem Avinhão, mas Pisa”.


In: SOUZA, J. A. de C. R. de (Org). As relações de Poder:
Do Cisma do Ocidente a Nicolau de Cusa. Porto Alegre:
EST, 2011. p. 69-87.

FOIS, M. “Il giubileo del 1300”. Archivum Historiae


Pontificiae. v. 38, p. 23-40, 2000.

FRUGONI, A. « Riprendendo il De centesimo seu Iubileo


anno liber del Cardinale Stefaneschi ». Bullettino
dell’lstituto Storico Italiano per il Medio Evo e
Archivio Muratoriano, v. 61, p. 163-172, 1949.

157 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

FRUGONI, A. II « Libro del Giubileo » del cardinale


Stefaneschi. Bulletino dell’Istituto storico italiano per
il Medio Evo, v. 62, p. 01-121, 1950. Reimpresso em: Il
Giubileo di Bonifacio VIII. Anagni: Istituto di Storia e
di Arte del Lazio Meridionale, 1996.

GAETANO MORONI ROMANO. Dizionario di Erudizione


Storico-Ecclesiastica: Da S. Pietro sino ai nostri giorni.
Vol.XXVIII (FR-GE). Veneza: Tipografia Emiliana, 1844,
p. 92-110; Vol.LXIX (SPO-STE), 1854, p. 294-295.

GENEQUAND, Ph. “Des ombres aux chapeaux rouges. Pour


une nouvelle histoire des cardinaux à la fin du Moyen Âge”.
In: BARRALIS, Ch.; BOUDET, J-P.; DELIVRÉ, F.; GENET,
J-Ph. (Orgs.). Église et État, Église ou État? Les clercs et
la genèse de l’État moderne. Roma/Paris: École Française
de Rome/Publications de la Sorbonne, 2014. p. 249-279.

GUENEE, B. Histoire et Culture historique dans


l’Occident Médiéval. Paris: Aubier Montaigne, 1980.

GUILLEMAIN, B. La cour pontificale d’Avignon (1309-


1376): étude d’une société. Paris: Broccard, 1962.

GUIMARÃES, M. L. “As intenções da escrita da história


no outono da Idade Média”. In: TEIXEIRA, I. S.; BASSI,
R. (orgs). A escrita da história na Idade Média.
São Leopoldo: Oikos, 2015. p. 76-89.

HÖSL, I. Kardinal Jacobus Gaietani Stefaneschi:


Ein Beitrag zur Literatur - und Kirchengeschichte des
beginnenden vierzehnten Jahrhunderts. Vaduz: Kraus
Reprint, 1965.

JUGIE, P. “Avant ou hors de l’université : remarques


sur la formation intellectuelle initiale des cardinaux de la
papauté d’Avignon”. In: BENÉZET, B. (Org). L’université
d’Avignon. Naissance et renaissance, 1303-2003. Arles:
Actes Sud, 2003. p. 118-121.

158 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

JUGIE, P. “Cardinaux et chancelleries pendant la papauté


d’Avignon. Une voie royale vers les honneurs?”. In: JAMME,
A; PONCET, O. (orgs.). Offices et papauté (XIVe - XVIIe
siècle). Charges, hommes, destins. Roma: EFR, 2005, p.
651-739.

JUGIE, P. “Les cardinaux de la papauté d’Avignon, des


lettrés?” In: GILLI, P. (coord). Les élites lettrées au Moyen
Âge. Modèles et circulation des savoirs en Méditerranée
occidentale (XIIe- XVe siècles). Actes du séminaire du
CHREMMO. Montpellier: PUM, 2008. p. 171-193

JUGIE, P. “Les cardinaux issus de l’administration royale


française: typologie des carrières antérieures à l’accession
au cardinalat (1305-1378)”. In: Crises et réformes dans
l’Église de la réforme grégorienne à la préréforme.
Actes du 115ème Congrès national des sociétés savantes
(Avignon, 1990). Section d’Histoire médiévale et de
Philologie, Paris: CTHS, 1991, p. 157-180.

JUGIE, P. “Les familiae cardinalices et leur organisation


interne au temps de la papauté d’Avignon. Esquisse
d’un bilan”. In: Aux origines de l’État moderne. Le
fonctionnement administratif de la papauté d’Avignon.
Anais, Avignon (23-24 janeiro/1988). Roma: École Française
de Rome, 1990. p. 41-59. Disponível em: https://www.
persee.fr/doc/efr_0000-0000_1990_act_138_1_3923.
Acesso em: 23 jul. 2020.

JUGIE, P. Le Cardinal Gui de Boulogne (1316-1373):


Biographie et étude d’une familia cardinalice. Tese
(Arquivista-Paleógrafo). Paris: École National des Chartes,
1986. 3 v. (Material Inédito, Datilografado).

LABANDE, L-H. “Le cérémonial romain de Jacques Cajétan.


Les données historiques qu’il renferme”. Bibliothèque
de l’école des chartes. t. 54, 1893. p. 45-74. Disponível
em: http:// www.persee.fr/doc/bec_0373-6237_1893_
num_54_1_447729. Acesso em: 20 jun. 2018.

159 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

LEONARDI, C. “Introduzione – Prolegomena”. In:


STEFANESCHI, I. De Centesimo seu iubileo anno.
Florença: SISMEL – Galluzo, 2001. p. VII-XIII.

MOLLAT, G. “Miscellanea Avenionensia”. Mélanges


d’archéologie et histoire, t. 44, 1927. p. 01-10. Disponível
em: https://www.persee.fr/doc/mefr_0223-4874_1927_
num_44_1_8549. Acesso em: 20 jun. 2018.

NOLD, P. Pope John XXII and his Franciscan Cardinal:


Bertrand de la Tour and the Apostolic Poverty Controversy.
Oxford: Clarendon Press, 2003.

PIRON, S. “Avignon sous Jean XXII, l’Eldorado des


théologiens.” Cahiers de Fanjeaux, Jean XXII et le
Midi. n. 45, 2012. p. 357-391.

RAGIONIERI, G. “Jacopo Stefaneschi e il De Centesimo:


Um Cardinale testimone del primo giubileo”. In: FOSSI, G.
(Dir). La Storia dei Giubilei. Vol.1 (1300-1423). Prato:
BNL – Edizioni; Giunti Gruppo Editoriale, 1997. p.216-223.

ROBIGLIO, A. A. La sopravvivenza e la gloria: Appunti


sulla formazione della prima scuola tomista (sec. XIV).
Bolonha: ESD, 2008;

SCHIMMELPFENNIG, B. Die Zeremonienbücher der


Römischen Kurie im Mittlelalter. Tübingen: Max
Niemeyer, 1973.

THEIS, V. “De Jacques Duèse à Jean XXII: la construction


d’un entourage pontifical”. Cahiers de Fanjeaux, Jean
XXII et le Midi. n. 45, 2012. p. 103-130.

TEIXEIRA, Igor S. Duas canonizações napolitanas?


Tomás de Aquino e Luís de Anjou (1308-1323). Tempo,
v. 25, n. 1, p. 88-109, 2019. Disponível em: http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-
77042019000100088&lng=en&nrm=iso. Acesso em: out.
2019.

160 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Igor Salomão Teixeira

TOCCO, F. La quistione della povertà nel secolo XIV


secondo nuovo documenti. Nápoles: Francesco Perrella,
1910.

161 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
Jacopo Gaetano Stefaneschi

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

Igor Salomão Teixeira


teixeira.igor@gmail.com
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Professor Adjunto de História Medieval
Porto Alegre
Rio Grande do Sul
Brasil

Bolsista de produtividade/CNPq.

Este artigo apresenta os primeiros resultados


do projeto “O cerimonial romano de Jacopo Gaetano
Stefaneschi (ms. 1706 Ceccano): política e cultura
histórica na corte papal de Avignon (1294-1352)”
financiado com bolsa de produtividade pelo CNPq.

RECEBIDO EM: 31/OUT./2019 | APROVADO EM: 13/ABR./2020

162 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 131-162 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1552
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

A literatura mística feminina e a escrita da História


na Baixa Idade Média ocidental: entre biografia,
memória e relato social
Female Mystical Literature and History Writing in the Western
Late Middle Ages: Between Biography, Memory and Social
Report
André Luis Pereira Miatello
http://orcid.org/0000-0002-1254-8837

RESUMO
Michel de Certeau classifica a linguagem mística
como “fábula”, isto é, como algo que precisa ser dito ABSTRACT
e que constitui uma forma especial de enunciação
Mystic language is classified by Michel de Certeau as
da experiência histórica; como enunciação, a mística
“fable”, that is, as something that must be said and that
constitui uma “prática de escrita” que pretende redefinir
constitutes a special form of enunciation of historical
os limites do dizível, do real e do verdadeiro; durante
experience; as enunciation, mysticism constitutes
a Idade Média, a escrita mística feminina inseriu
a “writing practice” that seeks to redefine the limits
as mulheres no campo da historiografia, até então
what is sayable, real, and true. During the Middle
marcadamente masculina, pela qual fabricaram uma
Ages, female mystical writing inserted women in the
linguagem específica de enunciação da vida interior
field of historiography, which used to be completely
que se apresenta sob a forma de narrativas biográficas.
composed of males. Through mystical works, they
Neste texto, serão estudadas Li Vida de la Benaurada
fabricated a specific language of enunciation of
Sancta Doucelina e Il Memoriale di Angela da Foligno
the inner life, one that presents itself in the form of
produzidas por mulheres da Baixa Idade Média desde
biographical narratives. This paper examines Li Vida
a perspectiva da narrativa de memória para entender
de la Benaurada Sancta Doucelina and Il Memoriale di
se e como a linguagem mística engendra novas formas
Angela da Foligno, documents produced by women of
de narrar a história e se essas formas indicam novos
the Late Middle Ages, from the perspective of narrative
caminhos para entendermos as noções de objetividade,
memory to understand if and how mystical language
subjetividade e alteridade na história e na historiografia
creates new ways of narrating history and whether
ocidental.
these forms indicate new ways of understanding the
notions of objectivity, subjectivity and otherness in
Western History and Historiography.

PALAVRAS-CHAVE
Mística; Mulheres; Historiografia Medieval
KEYWORDS
Mysticism; Women; Medieval Historiograph

163 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

Introdução

Entre as Histórias contra os Pagãos, de Paulo Orósio


(c. 385- c. 420), e as Histórias Florentinas, de Nicolau Maquiavel
(1469-1527), contam-se centenas de outras obras de história
escritas em prosa ou verso, em latim e nas mais variadas línguas
romances. Bernard Guenée (2006, p. 526) define a história
como “um relato simples e verdadeiro, visando transmitir à
posteridade a memória do que passou”, um relato escrito que
buscava em outros relatos escritos e no testemunho oral as
referências da própria narrativa.

Todavia, para nossa tristeza, os escribas ocidentais do


período medieval, tão interessados em escrever sobre o
passado, não procuraram sistematizar ou discutir as diversas
maneiras pelas quais eles redigiam obras que consideravam
históricas. O que sabemos é que a historiografia não era uma
atividade metódica ou científica e que sequer perseguia uma
mesma finalidade, ao narrar acontecimentos que tanto podiam
estar num passado distante como no presente. Assim, os livros
históricos expressavam-se em gêneros narrativos variados,
como os anais, as crônicas (locais, regionais ou universais),
as genealogias, as biografias e as próprias histórias (também
locais ou universais), cada qual com suas regras e premissas.
O historiador era mais um compilador do que um autor, pois
seu interesse não era ser original e nem se sentia o criador das
matérias que narrava; ao escrever, ele acreditava obedecer às
auctoritates de seu ofício, que podiam ser a Bíblia (cheia de
livros de história) ou os autores antigos (gentios ou cristãos).

Os livros de história interessavam às pessoas do poder


e da religião, às instituições, às coletividades e a diversos
indivíduos, homens e mulheres, santos e pecadores. A
depender dos tempos e lugares, um livro de história podia
oscilar entre ser uma narrativa com finalidade edificante e
um repositório de documentos organizados e circunstanciados
com finalidade político-jurídica de validade institucional.

164 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

Um livro de história fornecia informação sobre o passado,


preservava a memória de famílias e corporações, ajuntava,
produzia e conservava documentos do interesse de instituições
seculares e eclesiais, exaltava os feitos de pessoas consideradas
ilustres, comemorava eventos de alto significado político-social
e engrandecia dinastias, reinados, casas religiosas, ofícios
eclesiásticos e toda uma infinidade de motivos e situações,
podendo ser uma narrativa memorialista ou até mesmo um
relato épico e heroico.

A despeito da multiplicidade de objetivos e da variegada


natureza narrativa desses textos de história, podemos dizer que
a historiografia redigida no Ocidente medieval era uma prática
erudita que exigia um mínimo de perícia durante a recolha
das informações e dos testemunhos, capacidade de efetuar
o que chamamos de crítica documental e, talvez, sobretudo,
talento literário, pois a historiografia daquele tempo mantinha
o lastro com a época anterior, em que a escrita da história
obedecia aos cânones da gramática, poética, retórica, enfim,
das belas-letras (BOUCHAUD, FOUGRE-LEVEQUE, WALLERICH
2017 p. 3). Daí, que todo historiador (homem ou mulher)
precisava demonstrar habilidade com as palavras, com a forma
literária e com as disposições da matéria a ser narrada, o que
fazia desse escritor um litteratus, isto é, uma pessoa erudita
e culta. Porém, esse escritor erudito não era historiador em
tempo integral e nem ganhava a vida exclusivamente com
esse ofício; os historiadores eram pessoas que operavam
segundo as necessidades e circunstâncias do momento
(GUENÉE 2006, p. 523), podendo desempenhar,
simultaneamente, outras atividades políticas, religiosas ou
acadêmicas, sobretudo a partir do século XII.

Apesar de, na Itália das comunas, haver existido cronistas


leigos contratados para registrar a história local – eles eram
geralmente notários públicos –, é certo que a grande maioria
dos historiadores, desde o século V, eram clérigos (bispos,
monges, cônegos e frades) e que, em ambos os casos, eram
homens. Porém, os estudos conduzidos desde a década de 1990

165 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

elencaram um volume considerável de obras históricas escritas


em casas religiosas femininas, ou em seu entorno, cuja autoria
pode ser atribuída, com muita probabilidade, às mulheres
eruditas que ali residiam (VAN HOUTS 1992; MOULINIER
1995; NELSON 1996). Nos mosteiros femininos, os scriptoria
funcionavam no mesmo regime de trabalho de seus correlatos
masculinos: as religiosas dedicavam-se a copiar e também a
produzir narrativas históricas que, com algumas diferenças de
ênfase, organizavam-se aos moldes da historiografia monástica
masculina. É o caso, por exemplo, da Abadia de Gandersheim,
onde viveu Rosvita (935-1002), a monja dramaturga, poetisa
e historiadora que, em 968, completou as Gesta Ottonis
Imperatoris, história versificada que comemorava a coroação
imperial de Otto I, em 962 (LEES 2013).

O caso de Rosvita é bastante emblemático, mas não é único.


No século X, nas regiões orientais da Francia (atual Alemanha),
onde a família Liudolfinga assentava suas bases políticas,
os mosteiros femininos, geralmente régios, contavam-se às
dúzias e, em todos eles, as religiosas professas esmeravam-se
em transcrever a memória de suas linhagens, os feitos de seus
ancestrais e a própria história de suas abadias e mosteiros;
assim, podemos identificar, além de Gandersheim, outros centros
monásticos femininos de produção de história, como Essen,
onde se destacou a abadessa Matilda (949-1011); Quedlinburg,
cujas monjas redigiram os Annales Quedlinburgenses, entre
966 e 999; e Nordhausen, que produziu duas Vitae Mahthildis
(antiquior e posterior) sob o abaciado de Richburga, entre 962-
1007 (VAN HOUTS 1992, p. 54-59). Janet L. Nelson (1996
p. 192) vai ainda mais longe, ao apostar que os Annales
Mettenses Priores (compostos por volta de 806), considerados
até recentemente obra anônima ou coletiva, podem ter sido
redigidos pelas professas do mosteiro carolíngio de Chelles,
cuja abadessa era a irmã de Carlos Magno, Gisela (757-810).

Esses exemplos apontam para uma evidência negligenciada


e, ainda, pouco discutida da presença de mulheres no ofício
de historiador e, mais do que isso, da existência de núcleos

166 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

produtores de livros, incluindo os de história, que eram


mantidos por mulheres. Em tais obras, além da história político-
eclesiástico-militar, já convencional entre os historiadores
homens, nota-se que as historiadoras procuraram realçar a
atuação de mulheres no passado e, como se vê no caso de
Rosvita, de colocá-las à altura dos homens como personagens de
igual relevância histórica. Além disso, os mosteiros germânicos
não eram os únicos a contar com historiadoras. Seria muito
distante da realidade que as demais residências monásticas
femininas da cristandade tivessem cronistas homens, pois o
trabalho de cronista, num mosteiro, não só era uma função
que dependia de nomeação oficial por parte do abade ou da
abadessa, mas era um cargo ocupado permanentemente
por religiosos ou religiosas locais designados para o ofício
por haverem demonstrado perícia na escrita, capacidade
de observação dos acontecimentos e síntese narrativa.
Para a região italiana, num período mais tardio (sécs. XV-XVI),
Kate Lowe (2003) notou a imensa potencialidade de narrar a
história demonstrada pelos conventos femininos e como tais
crônicas conventuais registram uma intepretação religiosa do
passado a partir de uma perspectiva que a autora qualifica de
feminina.

No conjunto literário manejado por mulheres do período


medieval, destacam-se diversos outros gêneros compositivos e
outras escritoras. É notável como, sobretudo a partir do início
do século XIII, abundaram os chamados escritos místicos que,
ao mesmo tempo em que discorriam sobre as experiências
profundas de oração e de enlevo espiritual de mulheres extáticas,
também registravam suas vidas com uma finalidade, senão
idêntica, ao menos semelhante à da historiografia, pelo menos
no quesito edificação, instrução, exaltação memorialística e
compromisso de relatar a verdade dos acontecimentos.

Ademais, a experiência de arrebatamento místico (ou pelo


menos a aceitação social desse fenômeno) projetou a mulher
para uma posição de destaque na sociedade local e até nacional,
o que possibilitou e favoreceu que mais narrativas biográficas

167 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

sobre mulheres fossem compostas por mulheres – a mística


feminina do século XIII abriu ainda mais espaço social para
as mulheres escritoras (McGINN 2017, p. 10). Em segundo
lugar, as biografias de místicas escritas por mulheres também
facultaram que as línguas vernáculas (base quase geral dos
escritos místicos femininos) rivalizassem ou até suplantassem
o latim como língua primária da escrita biográfica que,
como espero demonstrar, assumia estatuto historiográfico.
Em terceiro lugar, destaco ainda o fato de que as biografias
de mulheres místicas fizeram com que, sob o gênero
biográfico, as narrativas históricas transpusessem os muros
do claustro e alcançassem as praças das cidades e as
casas das famílias leigas, abrindo espaço para uma divulgação
ainda mais ampla da literatura biográfica e da narrativa sobre
o passado.

Narrar a vida tornou-se uma necessidade ainda maior para


tais mulheres, dadas as dificuldades que elas enfrentavam para
defender seus ensinamentos espirituais frente a uma teologia
científica masculina que colocava sob suspeita todo conhecimento
produzido fora do âmbito universitário ou monástico tradicional
(TROCH 2013, p. 3). Consideradas subversivas, muitas
dessas místicas precisaram apelar para a história, a fim de
validar ou autenticar a verdade de suas experiências e de sua
doutrina frente à tradição mais antiga da espiritualidade cristã.
Assim, as mulheres místicas lançaram mão das biografias
não só pelos motivos comuns de enaltecimento, mas também
como uma nova forma de enunciação da verdade, tendo
como referência a própria subjetividade que defendiam
(MAYERS 1998).

Dados os limites deste artigo, tomarei por base documental


apenas duas obras biográficas de mulheres místicas, que serão
analisadas comparativamente: a primeira obra é Li Vida de la
Benaurada Sancta Doucelina mayre de las Donnas de Robaut
(A Vida da Bem-aventurada Santa Doucelina fundadora das
Damas de Robaut), biografia/hagiografia em língua provençal,
composta provavelmente em 1297 pelas beguinas discípulas de

168 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

Doucelina de Digne (1214-1274), em Marselha; a segunda obra


será o chamado Memoriale de Santa Ângela de Foligno (1248-
1309), que é uma espécie de autobiografia ditada por Ângela
em vernáculo umbro e anotada e traduzida simultaneamente
para o latim por um frade seu discípulo que se intitula
frater A., entre 1291-1297.

Espero demonstrar que a literatura mística do século


XIII, marcadamente biográfica e, neste caso, historiográfica,
trouxe uma contribuição considerável para a escrita da
história ocidental, pois alargou as possibilidades linguísticas
de expressar as vivências humanas no tempo e ajudou a
questionar os limites entre o real e o ficcional, o homem e a
mulher, o oral e o escrito, o latim e as línguas vernáculas, o
sagrado e o profano; além disso, essas biografias de místicas
constituíram um exercício concreto de como usar os recursos
da historiografia para narrar a memória de si e, dessa forma,
serviram também para destacar o lugar do sujeito na história
coletiva; enquanto expressões da interioridade humana, as
biografias de místicas forjaram (ou contribuíram para forjar) um
léxico qualificado para descrever as vivências da consciência e
identificar o lugar da consciência na história. Por fim, pode-se
dizer que as biografias de místicas também aportaram uma
discussão que, no fundo, reelaborou o papel da providência
divina no tempo humano e o papel da liberdade humana frente
aos desafios de sua trajetória histórica.

A mística e a escrita da história


Como experiência extraordinária e individual de uma
realidade que se crê transcendente, a mística não se preza
facilmente a definições, principalmente porque ela não é algo
relativo a um lugar e a um tempo precisos. Sob o nome de
místicos, podemos retroceder a Sidarta Gautama, o Buddha,
no século V a.e.c., passando pelo teólogo sufi Rumi, no século
XIII, e chegando a tantos outros, no século XX, como Thomas
Merton, Etty Hillesum ou Simone Weil. Como se vê, a mística
pertence a muitas religiões e suas manifestações podem

169 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

variar desde um modo mais consciente de vivência religiosa


até a estados de alteração psíquica ou emocional que levam
o ‘místico’ a experimentar êxtases, arrebatamentos mentais e
outros fenômenos fora do comum.

Na Encycoplaedia Universalis, em 1971, Michel de Certeau


propunha que mística é:

um conhecimento experimental que, lentamente, se separou


da teologia tradicional ou das instituições eclesiais e que se
caracteriza pela consciência, adquirida ou recebida, de uma
satisfatória passividade onde o eu se perde em Deus (apud LION
1987, p. 407).

Ao ressaltar certa equivalência entre ‘conhecimento


experimental’ e ‘consciência da presença de Deus’, Certeau
define mística como uma relação especial entre dois sujeitos, o
humano e o divino, em que esse último absorve ou arrebata o
primeiro. Certeau também destaca que essa relação assenta-
se num tipo de conhecimento que, embora não contradiga,
ao menos não se confunde com a teologia (enquanto ciência
tradicional sobre Deus) e nem com as diversas comunidades de
fé (e suas explicações catequéticas), de modo que o ‘místico’ é
necessariamente um indivíduo diferente dos demais membros
de sua comunidade. Esse modo de entender o problema,
certamente, tem o seu lugar nos estudos de mística moderna
ocidental, porém, por si mesmo, ele pode nos levar a diminuir
alguns elementos irrenunciáveis da compreensão de mística
antes da modernidade.

Bernard McGinn (2012, p. 17) adverte que “nenhum


místico (pelo menos não antes do século presente) acreditava
em ou praticava “mística”. Eles acreditavam em e praticavam
cristianismo (ou judaísmo, ou hinduísmo ou o islã), ou seja,
em religiões que continham elementos místicos (...)”. Essa
precaução evita que pensemos que o estado místico era algo
procurado por si mesmo ou que constituía um valor diferente
ou diferenciador para aquele que se sentia tomado por essa

170 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

consciência especial do divino. Para evitar tais problemas,


McGinn estabelece a seguinte distinção: 1) mística como parte
ou elemento da religião; 2) mística como um processo ou modo
de vida e 3) mística como uma tentativa de expressar uma
consciência direta da presença de Deus” (McGINN 2012, p. 16).
Esse último tópico é digno de nota, pois ele está diretamente
associado aos diversos textos produzidos para registrar e
exprimir a experiência mística e para ensinar o modo de vida
místico aos que por ele se interessavam.

Os casos que iremos estudar demonstram a pertinência


dessa distinção: Doucelina de Digne e Ângela de Foligno,
praticantes do cristianismo, vivenciaram um processo
espiritual que as promoveu a um estado de enlevo e de
alteração da consciência e, a partir disso, suas experiências
foram a base da redação de narrativas místicas com o fito
de fornecer instrução e conselho para outros praticantes.
Para nós, interessa mais o texto místico, e sua narratividade,
do que a experiência que, em si, já não é mais recuperável, a
não ser nos limites do registro biográfico. Portanto, se o que
resta é o escrito místico e sua repercussão na comunidade
de crentes – pois todo texto místico é composto para uma
audiência mais ou menos vasta –, a literatura mística é o
suporte primário para o aprendizado da mística e também para
o seu estudo.

Se no verbete ‘mystique’, da Encyclopaedia Universalis,


de 1971, Certeau parece valorizar mais a fugacidade da
experiência mística do que a posteridade do registro escrito,
o mesmo não ocorre em sua obra magistral, La Fable
Mystique [A Fábula Mística], de 1982. Nesse livro dedicado
à literatura mística dos séculos XVI-XVII, Michel de Certeau
observa que os escritos místicos modernos passaram a
ser vistos a partir da noção de fábula, cuja etimologia
evoca o verbo latino fari, que significa falar. A fábula seria
a nova condição da expressão da experiência mística
após a ascensão da cultura escrita, no século XVI, quando
as oralidades enunciativas do real foram desmerecidas

171 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

pelos “examinadores” e “observadores” científicos


(CERTEAU 1982, p. 23); como ‘fábula’, o escrito místico foi
associado ao ficcional, isto é, ao não real imaginado e, com
isso, tornou-se o oposto da historiografia. Porém, notem que
o qualificativo fábula aplicado à literatura mística seria uma
consequência da nova postura epistemológica surgida na
modernidade, uma manobra, sobretudo, iluminista.

Michel de Certeau, por sua vez, não concorda com isso.


Se, como ele diz, o texto místico é “um artefato do silêncio”
(CERTEAU 1982, p. 50), a historiografia não deixa de ter
relação com a ficção: para ele, a historiografia manifesta
um quê de comédia e, nesse sentido, também dialoga com
a ficção. A escrita da história seria “uma comédia dos erros”,
uma “encenação” de um quiproquo – ela suscita teatralmente
os personagens e as falas de outro modo perdidos –, pois em
Certeau, a atividade historiográfica prioriza as perdas e não os
fatos; a historiografia seria a explicação dessa perda e, nesse
sentido, voltamos ao texto místico como artefato do silêncio
(NAPOLI 2018, p. 9).

Todavia, o argumento principal a ser aqui ressaltado


é que a oposição entre ‘mística fabular’ e ‘historiografia’ é
completamente estranha ao século XIII. Em primeiro lugar,
porque, então, nem a historiografia era “uma operação definida
pelas regras e os modelos elaborados por uma disciplina
[metódica] do saber [científico]” (CERTEAU 1973, p. 154), nem
a literatura mística “valia pelo que tornava possível e não pelo
que provava” (LION 1987, p. 413). Em segundo lugar, porque,
no século XIII, não era só a literatura mística que funcionava
segundo as engrenagens da oralidade e da linguagem simbólica,
mas também a literatura historiográfica, como se verifica, por
exemplo, na associação, já feita desde a Antiguidade romana,
entre ‘historiografia’ e ‘oratória’. Tanto quanto Marco Túlio Cícero,
também os autores do período medieval pensavam que “o bom
historiador nada mais era do que o bom orador” (MIATELLO
2015, p. 120). Boa parte das obras historiográficas latinas
medievais assumem, em todo ou em parte, aspectos épicos,

172 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

trágicos, poéticos e parenéticos que, na grande maioria


dos casos, confundem-se, ainda que parcialmente, com as
características da narrativa fabular antiga, das canções de
gesta ou dos textos laudatórios.

É assim que a escrita da história operacionalizada por


mulheres na Baixa Idade Média pôde lançar mão de suportes
diversos, como as hagiografias, as crônicas conventuais, os
livros de memória ou as autobiografias. Os títulos que nomeiam
algumas dessas obras, aliás, são atribuições futuras ou, então,
externas que, a depender dos casos, podem nos levar a
enganos, supondo, por exemplo, que a prática historiográfica
ficasse restrita somente aos textos associados à narrativa de um
passado coletivo com finalidades políticas. O empenho feminino
nesse campo, bem longe de seguir o modelo convencional
antigo (marcadamente masculino), acabou por diversificar e
enriquecer, como espero demonstrar a seguir, a abrangência
da historiografia em termos de suportes, modos de narrar e de
objetos narráveis na qualidade de objetos históricos. É por isso
que escolhi tratar da Vida da Bem-aventurada Santa Doucelina
e do Memorial de Ângela de Foligno, pois são textos que se
complementam em suas diferenças literárias e, ao mesmo
tempo, alargam o padrão convencional da escrita da história,
trazendo para essa prática letrada maior perspicácia e maior
capacidade de análise das situações humanas ali representadas.

A Vida de Doucelina de Digne: entre história social


e crônica conventual
Doucelina entrou para a história da espiritualidade cristã
como uma beguina, nascida em Digne (hoje Digne-les-Bains,
na Provença), por volta de 1214-1215; ‘beguina’ era o nome
atribuído a mulheres de diferentes classes sociais que assumiam
um gênero de vida penitencial que, apesar da extrema piedade,
do celibato e do uso de roupas específicas, não pode ser
visto como uma vida religiosa no sentido jurídico e canônico
do termo. O cronista Salimbene de Parma (1221-1290), que
provavelmente conheceu Doucelina quando visitou a Provença,

173 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

por volta de 1247, afirma que “ela nunca entrou numa ordem
religiosa, mas viveu sempre, casta e religiosamente, no
século” (SCALIA 2007, p. 1532). A ênfase no aspecto ‘secular’
do engajamento religioso de Doucelina denota a sua condição
leiga e de todas as suas companheiras e, a propósito, reforça
o empenho de estar entre as pessoas e de trabalhar em favor
da cidade.

‘Beguina’ designa a mulher que, dentro das possibilidades


eclesiais abertas ao gênero feminino, escolheu consagrar a
sua vida a Deus por uma atividade geralmente voltada para a
assistência social, o ensino e a contemplação, sem se enquadrar
nos limites de uma clausura ou sob a tutela de homens, ainda
que clérigos (SWAN 2014, p. 11). Diferentemente das monjas,
as beguinas não renunciavam aos bens pessoais; ao contrário,
conservavam-nos e administravam-nos de pleno direito, muitas
vezes celebrando contratos em nome próprio e auferindo
bons rendimentos de sua ocupação civil. Era isso que dava
às comunidades beguinas condições de plena independência
econômica e jurídica em relação aos poderes eclesiásticos e
políticos, e garantia que essas mulheres conduzissem suas vidas
a seu modo, inserindo-se, inclusive, em atividades profanas,
como o artesanato e o comércio.

Doucelina tornou-se beguina em 1240 quando congregou


uma pequena comunidade feminina às margens de um ribeirão
chamado Roubaud (grafia moderna de Robaut), em Hyères,
que passou a designar a sua fundação, a ‘Casa das Damas de
Roubaud’, nome que se manteve mesmo quando a fundadora
mudou-se para Marselha, por volta de 1254, e constituiu ali
uma comunidade muitas vezes maior – Salimbene diz que
eram mais de oitenta mulheres que ele classifica como “nobiles
domine” (SCALIA 2007, p. 1534), o que salienta a boa situação
social e econômica dessas beguinas provençais e justifica o
apelativo ‘damas’ que as próprias beguinas se impunham.

O testemunho de Salimbene confirma o material da Vida,


pois em ambos os textos a grande característica de Doucelina,
a sancta femina, era a extrema elevação de sua vida espiritual

174 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

demonstrada nos êxtases, nos arrebatamentos e na levitação –


geralmente públicos –, bem como nos milagres que realizava,
o que nos coloca frente à condição mística que anteriormente
definimos. Doucelina estava longe de ser uma beguina comum
e, no entanto, sua excepcionalidade facultava que as beguinas,
em Marselha, gozassem de ampla aceitação e se tornassem
referências de vida espiritual, sobretudo para as mulheres da
cidade.

A Vida da bem-aventurada Santa Doucelina chegou


até nós através de um único manuscrito, provavelmente do
início do século XIV e de origem marselhesa. A atribuição de
autoria feminina começou quando o cônego Joseph Albanès
(1822-1897), o primeiro editor do manuscrito, publicou seu
trabalho em 1879. Nessa edição, Albanès inclusive defendia que
Philippine de Porcelet (m. 1316), uma abastada matrona que se
tornou discípula de Doucelina e era considerada uma segunda
fundadora, fosse a verdadeira autora da biografia. Defendia
ainda que o manuscrito remanescente era, na verdade, uma
versão revista e ampliada, em 1315, de uma primeira versão
coligida anos antes, em 1297 (ALBANÈS 1879, p. XXI).

Embora o manuscrito se encerre com um tal de Iacobus


Peccator suplicando que se rezasse por ele, é muito difícil
supor que tenha sido um homem o autor de uma biografia que
consegue captar, em filigrana, os detalhes de uma comunidade
feminina e que, em diversos momentos, proporciona um
testemunho ocular muito íntimo do mundo e da espiritualidade
das beguinas – nesse caso, Iacobus Peccator não passaria de um
copista. A Vida fornece tantos detalhes internos e cotidianos da
Casa das Damas de Roubaud, que seria praticamente impossível
que um homem externo, ainda que sob a assessoria de uma
interna, conseguisse demonstrar tamanha familiaridade com
a comunidade e com o jeito de ser e pensar de uma beguina
provençal. Em diversos momentos, a narração registra os
pronomes “nós todas” para tratar das Damas de Roubaud, o
que supõe que o narrador seja uma mulher e que pertença à
associação:

175 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

Disso nós temos um testemunho firme e uma garantia segura em


toda a vida da santa madre; (...) [Doucelina] nos prometia e nos
assegurava que nós estamos todas sob os cuidados de Deus,
que nosso estabelecimento inteiro estava sob a proteção da
Trindade Santa; e que sob as asas de São Francisco todas nós
seríamos salvas” (ALBANÈS 1879, p. 216, grifos meus).

Além do mais, não nos deve causar espanto que as


companheiras de Doucelina fossem capazes de redigir uma
biografia tão bem elaborada. As Damas de Roubaud eram
geralmente abastadas e, inclusive, aristocráticas, o que
tornava o aprendizado das letras e da escrita algo mais
comum e mais acessível. A própria Doucelina, que era bem
alfabetizada, previne suas co-irmãs do risco que o letramento
podia significar para uma beguina que, de resto, devia primar
pela humildade:

(...) ela recomendava que todas as suas filhas guardassem


esta virtude [a humildade] como o fundamento de todo o seu
instituto. E por isso, ela não tolerava que elas tivessem igreja
própria e nem outras dignidades; não admitia que tivessem a
sutileza das letras e nem cantassem o ofício (ALBANÈS 1879,
p. 30, grifos meus).

Na linguagem franciscana, própria da comunidade


beguinal de Marselha, a “sutileza das letras” não significava
o simples letramento prático, mas uma perícia literária que
homens, como São Francisco de Assis, ou mulheres, como
Doucelina de Digne, enxergavam como incompatível
com o pauperismo que professavam, pois indicava alta
dignidade e demonstração de vaidade. Por outro lado,
sabe-se que o apelo desses fundadores para a fuga da
‘sutileza das letras’ tornou-se inócuo desde a origem,
pois os religiosos e religiosas, sob uma capa de modéstia,
demonstravam, sim, uma ciência retórica não pequena, como
podemos comprovar nos relatos hagiográficos franciscanos
desde 1229.

176 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

Além disso, o fato de haver sido produzida apenas uma


versão manuscrita dessa Vida, caso isso seja verdade, não
torna o texto irrelevante ou pouco influente. Doucelina nunca
deixou de ser o que os historiadores da santidade chamam de
‘santa local’, cuja memória e culto permaneceram vinculados à
cidade que detinha seus espólios e que costumava ser aquela
em que a pessoa santa passou, se não boa parte de sua vida,
ao menos seus últimos anos, tendo lá falecido em fama de
santidade. Além disso, Doucelina era a fundadora de uma
comunidade de mulheres penitentes que seguiu sendo sempre
uma comunidade igualmente local, característica, aliás, que
marca a maioria das congregações e conventos femininos da
Baixa Idade Média.

O aspecto regional e local desse texto não lhe tira o efeito


historiográfico e nem a sua abrangência social. A maior parte
dos textos de história escritos no medievo era de história
local ou regional, seja por sua abordagem restrita a um lugar
específico, embora referente a várias temporalidades, seja por
seu alcance em termos de circulação e leitores. A Vida da bem-
aventurada Santa Doucelina contém, obviamente, a biografia
dessa santa, mas também, e de maneira notável, um relato
histórico da fundação e desenvolvimento da comunidade das
beguinas da Provença. Seja pelo fato de que se trata de uma
santa e de uma comunidade religiosa locais, seja porque as
beguinas nunca deixaram de estar entre as pessoas seculares e
de exercerem direitos e poderes na sociedade, a Vida apresenta-
se sob uma dupla perspectiva: a de crônica conventual e a de
história urbana.

É fato que a Vida é, em primeiro lugar, uma hagiografia, isto


é, um relato laudatório da trajetória existencial de uma pessoa
considerada heroicamente virtuosa e santa. A hagiografia, além
de pretender difundir o culto do santo biografado, também
propõe apresentar a vida desse santo como exemplo para
os devotos (finalidade de edificação) e para incitar os fiéis a
implorarem ao santo que Deus realize seus milagres (finalidade
de intercessão). Porém, uma observação deve ser feita, pois

177 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

o aspecto panegírico e, nesse caso, retórico-literário, quando


aplicados à hagiografia, não funcionam da mesma maneira
que funcionariam no elogio dirigido a um governante ou a um
poderoso qualquer.

A hagiografia é, sim, um panegírico, porém, como relato


da vida de um santo, que é uma referência moral para uma
comunidade de fé, opera a partir de compromissos análogos aos
da historiografia, ou seja, a busca e a demonstração da verdade
por meio de uma linguagem simples e pouco rebuscada. O
hagiógrafo, semelhantemente a um historiador, compromete-
se com a justeza de seus testemunhos, com a adequação de
seu relato ao que, de fato, ocorreu (os latinos chamavam isso
de res gestae) e com o dever de dar a conhecer aos presentes
e pósteros os feitos e os fatos daquele que ora se tornava
o objeto da narrativa, e que era um herói comunitário e um
parâmetro para todos os que o reconhecem como santo.

Isso é especial e particularmente aplicável à Vida da bem-


aventurada Santa Doucelina que, apesar de assumir a finalidade
de uma hagiografia, apresenta-se redigida dentro dos cânones
da historiografia medieval, conforme os apresenta Bernard
Guenée (1980, p. 44-76). A Vida de Doucelina se assemelha ao
que Guenée chama de “historiografia do claustro”, pois produzida
no interno de uma comunidade religiosa, cujos membros são
as testemunhas privilegiadas da história que se narra; além
disso, a Vida comporta a biografia da fundadora e a história
da fundação que são, igualmente, louvadas como expressões
concretas do agir divino, defende o modo de vida beguino e
os direitos da comunidade. A Vida também aproxima-se do
que Guenée chama de historiografia de corte, pois conhece
um patrono – a Casa das Damas de Roubaud –, está escrita
em língua vulgar, é uma literatura de propaganda e pretende
exaltar a memória de Doucelina.

Como essa Vida não vem precedida de um prólogo – lugar


em que os autores de histórias e de vidas costumavam declarar
suas intenções metodológicas –, fica mais difícil de verificar
como a autora empreendeu os processos de levantamento de

178 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

dados e de sua respectiva análise. De todo modo, percebe-se


que se trata de uma biógrafa que se esmera em fornecer muitas
e precisas informações sobre a história local, os monumentos,
as instituições e costumes da cidade de Marselha no século XIII
(cf. ALBANÈS 1879, p. 24; 134-139; 194-199; 218); a autora
também se ocupa também da história da Ordem franciscana na
Provença, da história religiosa (cf. ALBANÈS 1879, p. 9-11; 14-
20) e da espiritualidade (cf. ALBANÈS 1879, p. 119-125). Nem
mesmo a história política lhe é estranha, pois enfatiza a presença
de reis, condes, barões e senhores entre os frequentadores da
Casa de Roubaud e a cronologia do relato guia-se pelos tempos
políticos dos governantes locais (cf. ALBANÈS 1879, p. 33; 35;
37; 43; 81). Para avaliarmos o que a autora pretendia com o seu
texto, podemos recorrer ao epílogo da Vida. Ali encontramos o
propósito da biografia de Doucelina entremeado de, pelo menos,
três tópicas convencionais ao gênero biográfico e histórico: dar
a conhecer sua vida admirável e imitável; incitar as donas –
pois o público-alvo é, principalmente as beguinas – a seguir os
passos da fundadora (ALBANÈS 1879, p. 246). A Vida também
é um instrumento para impedir que o esquecimento obscureça
a memória de uma santa tão especial e tão cheia de virtudes
(ALBANÈS 1879, p. 251).

A necessidade de instaurar a historicidade do relato,


entretanto, parece mais forte quando a autora põe-se a
descrever os êxtases de Doucelina, no capítulo IX. A autora
narra esses eventos místicos com grandes detalhes, o que
torna o capítulo muito longo, talvez o mais extenso de toda a
Vida. Chama a atenção o fato de que, bem longe de acentuar o
aspecto extraordinário/sobrenatural do evento místico, a autora
prefira explicitar sua publicidade (os êxtases eram vistos pelos
cidadãos de Marselha) e sua autenticidade, confirmada, em
primeiro lugar, pelos experimentos que as testemunhas faziam
(alguns alfinetavam a santa durante seu transe ou colocavam
objetos quentes em seu corpo para ver se ela sentia dor, no
limite, para saber se ela não estava fingindo) (ALBANÈS 1879,
p. 80-81); em segundo lugar, a autenticidade se provava pelo
renome das próprias testemunhas: a autora anota nome, sexo,

179 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

condição social e profissão de cada um dos observadores, dando


especial realce para os observadores leigos e seculares. Em
terceiro lugar, e talvez mais importante, a autora prefere narrar
os fatos comprovadamente verídicos, que, segundo ela, são
aqueles colhidos por meio do juramento solene e público das
testemunhas, o que torna a investigação historiográfica algo
como um inquérito judicial (na Vida, encontra-se a descrição de
como os testemunhos juramentados eram colhidos). O conjunto
desses detalhes permite-nos perceber que essa hagiografia
está particularmente empenhada em adequar seu relato aos
procedimentos caracterizadores da ‘prática historiográfica’:
inventário das testemunhas, seleção das informações e
adequação das matérias à finalidade do escrito, procedimentos
que são controláveis pelo próprio historiador.

Mesmo quando se quer descrever os êxtases e transes,


a autora permanece no nível exterior do fato (circunstância
e local) e evita fazer sugestões sobre os estados da alma
da santa extática. Por exemplo: conta como Doucelina era
sensível às coisas que a cercavam (elementos naturais,
pessoas e situações); como tinha uma saúde frágil, incapaz
de suportar os arroubos e transes; e como seu corpo ficava
durante esses arrebatamentos. Ao procurar aprofundar a
descrição dos êxtases para além do visível, a autora lança
mão da tradição hagiográfica convencional, segundo a
qual, a união da alma com Deus leva ao aniquilamento do
sujeito, porém, não há nenhuma elocubração sobre isso.
Para todos os efeitos, a Vida, mesmo quando confere espaço ao
sobrenatural, o descreve a partir de eixos causais comprováveis
e controláveis, insistindo mais no testemunho de observadores
do que na fé dos devotos.

Entre os observadores qualificados, a autora concede maior


espaço às mulheres: há uma certa preferência por registrar as
falas das mulheres da sociedade civil que gravitam ao redor de
Doucelina. Nesses momentos, a autora não poupa detalhes:
“A mulher do senhor do castelo de Hyères, que possuía uma
parcela do senhorio do referido lugar, e que se chamava

180 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

senhora Huguette de Fos (...)” (ALBANÈS 1879, p. 122).


Reparem que esse tipo de informação não é comum e nem
mesmo necessário nos textos hagiográficos convencionais;
nas Vidas mais desenvolvidas e detalhistas do século XIII,
sobretudo na parte que se costumava intitular “tratado dos
milagres”, considerava-se suficiente declarar o nome da
testemunha e sua condição social; porém, aqui declara-se
também o fato de Huguette de Fos ser detentora do senhorio
em nome próprio. Qual seria a finalidade dessa informação?
As donas de Roubaud não eram mulheres poderosas como
Huguette? Com base nisso, sinto-me inclinado a concluir que
a Vida de la benaurada Sancta Doucelina contém elementos
claros de uma defesa da mulher na sociedade provençal e que
a autora, dadas as suas preferências narrativas, coloca-se na
perspectiva de uma historiadora local para quem as mulheres
são testemunhas qualificadas, agentes históricos à altura dos
homens e personalidades jurídicas capacitadas para exercer o
poder econômico, religioso e político.

O Memorial de Ângela de Foligno: a experiência


mística e a escrita de si como história da alma
Como Doucelina de Digne, Ângela de Foligno consagrou-
se a Deus sem entrar em mosteiro algum; ao contrário,
após uma forte experiência de eleição divina, ela encetou
um caminho espiritual próprio e independente, inspirada
pela obra de São Francisco de Assis (1181-1226), mas
sem depender de sua Ordem. Porém, ao contrário de
Doucelina, Ângela foi mulher casada e mãe de família. Nascida
em Foligno, na Úmbria (centro da Itália), por volta de 1248,
recebeu seu chamado místico antes do falecimento de seu
marido, nos primeiros anos da década de 1280, e, desde então,
decidiu-se pela castidade completa, pela pobreza no vestir
e no comer. Tal como Doucelina, Ângela tinha boa situação
econômica, como demonstra ela mesma, no Memorial, quando
narra seu gradativo depauperamento por amor a Cristo, porém,
diferentemente de sua colega provençal, Ângela não sabia ler

181 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

ou escrever e, ao que parece, também não o sabia sua discípula


anônima, pois, como foi dito, coube ao frater A. a redação de
suas memórias.

Essa devota leiga assumiu uma prática devocional e


espiritual muito intensa, embora não fosse a única a agir assim
no final do século XIII: naquela época, a Úmbria estava povoada
de fiéis leigos e leigas penitentes que, em suas próprias casas
ou em pequenas comunidades livres, intensificavam a sua fé
por meio da renúncia material, da oração frequente, dos jejuns
e do trabalho caritativo. O que talvez tenha particularizado
Ângela, como também Doucelina, era a intensidade com que
empreendia essas práticas de piedade e que as predispunham
para os êxtases, as revelações e os arrebatamentos. Mais uma
vez, foi a condição mística que colocou a mulher em evidência
e a tornou mestra de vida espiritual para a sociedade citadina
à sua volta.

Os críticos chamam de Memorial à primeira parte de um


relato mais extenso, geralmente denominado Liber Lelle ou, em
italiano, Il Libro (O Livro de Ângela, popularmente apelidada de
Angelella ou simplesmente Lella): à primeira parte corresponde
o relato autobiográfico, com ênfase para as experiências
psicológicas da santa que assumem a posição de objeto
central da narrativa – a divisão dos assuntos segue a lógica
de trinta ‘passos’ que, segundo a beata, são as etapas de sua
transformação interior; a segunda parte refere-se a conselhos
e instruções dadas por ela a seus discípulos e discípulas e,
como tal, não é uma narrativa e nem mesmo se propõe a ser
uma recordação, motivo que me levou a restringir o estudo ao
Memorial exclusivamente, cujo conteúdo recebeu a aprovação
eclesial em 1307, dois anos antes de sua morte.

Por infelicidade, o texto original do Liber Lelle não é


mais acessível; para alguns investigadores, o manuscrito
mais antigo, custodiado em Assis, seria uma cópia de outra
cópia anterior ou, para outros, uma cópia direta da versão
arquetípica. A tradição manuscrita é igualmente complicada,
pois contam-se 29 manuscritos agrupados em 8 famílias que

182 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

divergem, inclusive, no título oferecido ao livro; como afirma


Dino Cervigni (2005, p. 339), o nome Memorial (ou Memoriale)
dado à obra de Ângela é apenas uma conjectura.

Não obstante as dificuldades da tradição manuscrita, a


lógica interna do Liber está bem consolidada e as variantes não
comprometem a sua compreensão. As edições mais recentes
costumam priorizar o manuscrito mais antigo, o de Assis, e
como tal o Liber pode ser interpretado como um todo coerente.
Aqui o problema maior decorre da presença de um escriba
masculino que, não raro, apresenta-se também como editor
do texto angeliano; precisamos entender que esse escriba,
que não tenta ocultar a própria voz, também possibilitou
que a voz de Ângela fosse audível e que excedesse à sua.
Como afirma Cervigni (2005, p. 339), admito que a tradução
para o latim de um relato feito em vernáculo pode ter filtrado
aspectos imprescindíveis da narrativa oral. No entanto, é
forçoso constatar que frater A. foi pródigo em fornecer indícios
do procedimento de coleta dos relatos bem como do registro
das reações de Ângela ao ouvir a leitura do texto que o frade
produzia à medida em que ela lhe ditava. E as críticas da santa
podiam ser duras:

uma vez, após ter transcrito exatamente aquilo que pude captar
de sua boca, ao reler para ela aquilo que havia escrito a fim
de que ela pudesse completar alguma informação, ela me disse
admirada que não se reconhecia [naquilo que eu anotara]. Numa
outra ocasião, quando eu relia para ela a fim de que me dissesse
se estava bem escrito, respondeu-me que eu me expressava de
modo árido e sem sabor algum; e espantava-se com isso (SANTI
2016, p. 60).

É certo que o registro dessas reprimendas pode servir


de autenticação e até de legitimação do ofício de copista
assumido pelo frade, um recurso narrativo ou tópico discursivo
que aumentaria o grau de fidedignidade do relato. Porém, a
característica um tanto improvisada do texto e a espontaneidade
com que as falas vão sendo apresentadas – que também são

183 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

outros tantos recursos de validação – parecem-me apontar


numa outra vertente, aquela de conferir a Ângela o papel
autoral.

As marcas desse procedimento são visíveis no uso de


verbos no plural, quando se quer ressaltar a contribuição da
santa, contrastado com o singular para se referir a ele ou a
ela separadamente: “[...] Deus admiravelmente revelou-lhe
que tudo aquilo que havíamos escrito fora feito sem mentira
alguma” (SANTI 2016, p. 50 – grifo meu). Apesar disso, Ângela
lamentava-se de que o frade escritor, apesar de sua habilidade
literária, não lograva recolher o sentido primeiro de sua fala,
isto é, aquilo que se referia à interioridade da narradora ou
o seu significado místico; decorre daqui uma característica
ausente na Vida de Doucelina: a mística vivida – pois Ângela
é uma interlocutora presente e participativa – procura uma
linguagem mística que lhe corresponda, donde os escritos
místicos vão apelar para uma forma de narração que perscrute
mais o interior do que o exterior, em outras palavras, mais o
mundo dos sentimentos do que o mundo dos eventos. Daí que
ela podia dizer: “anotaste aquilo que tem menos valor, o que
não vale nada, e deixaste de fora aquilo que a alma sente de
mais precioso” (SANTI 2016, p. 62).

A insistência com que a penitente enfatiza a sua experiência


mística torna o relato de sua história uma narrativa psicológica,
pois a sua vida pública cede espaço ao que se passa em sua
alma contemplativa. Ao falar de si, Ângela fala do que lhe vai
dentro, daquilo que é invisível aos olhos, e pouca importância
conferia às situações de seu entorno. Ela narra, de fato, a sua
história, porém, em que medida essa narrativa constitui um
exercício de escrita da história?

Michel de Certeau afirma que os escritos místicos


(particularmente os modernos) fundam “uma nova forma
epistemológica”, que representam “uma maneira de praticar
a linguagem de forma diferente (“autrement”)” e que esses
escritos são um “conjunto de delimitações e de processos”
(CERTEAU 1982, p. 28-29). Sabemos que Certeau, em outra

184 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

obra sua, dedicou-se a pensar a escrita da história, uma escrita


que Antoine Lion (1987, p. 413) chamou de “conquistadora” e
que, como tal, seria o oposto da fábula, já que essa se mostra
mais como recepção do que como produção; desse ponto
de vista, o escrito místico, aparentemente, não poderia ser
entendido como prática historiográfica. No entanto, a fábula
também afirma-se como um discurso que diz o verdadeiro,
mesmo que não saiba o que diz. O relato místico igualmente
assume a temporalidade e as condições materiais dos sujeitos,
ainda que seu fito seja a transcendência. Como discurso sobre
uma experiência interior, a escrita mística narra uma história:
ela fala de sujeitos que elaboram a sua experiência em termos
de verdade do fato e de acontecimentos verídicos – a narrativa
mística propõe um relato de experiências humanas (passadas
ou presentes) que, embora destoe da historiografia política
ou militar, afirma-se pela evocação de uma memória que se
examina, que se organizava narrativamente e que se propõe
como escrita do vivido, muito embora a ênfase não seja a
comunidade, mas o indivíduo.

No caso do Livro de Ângela, o aspecto biográfico alcança


maior amplitude epistemológica pelo fato de se apresentar
como uma ‘autobiografia’, isto é, uma releitura consciente
daquilo que a narradora reputava mais importante em sua
trajetória biológica e espiritual. Kate Greenspan (1991, p. 157)
não é a única estudiosa a julgar que a autobiografia, no caso
das mulheres do período medieval, estava ligada à hagiografia,
como prática letrada, e que ‘autobiografia’ não designava
necessariamente um gênero particular, mas um atributo de
outros discursos femininos, como os tratados didáticos, as
cartas, as revelações e até os poemas (cf. FLAVIN, 2011, p.
158; FLEMING, 2014, p. 36-45; HOWE, 2015, p. 1-28). A
escrita de si certamente configura a autobiografia, no entanto,
para Greenspan, não haveria, portanto, preocupação com a
autoria e não se esperava por originalidade. Ainda segundo
Greenspan, as autobiografias femininas, ao contrário de textos
biográficos masculinos, não recorriam à autoridade da Bíblia
ou da Patrística para referendar o conteúdo; ao contrário,

185 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

as mulheres narradoras apelavam antes para a sua própria


experiência religiosa e, principalmente, para o seu respectivo
desejo de dar-se a conhecer, como o caso de Ângela de Foligno
o comprova.

Esses dados elevam a escrita feminina a uma prática


identitária expressiva para as mulheres autoras. No entanto,
Kate Greenspan parece pouco disposta a admitir que as
autobiografias de mulheres fosse uma prática de escrita da
história; segundo ela, tais textos não detalham os particulares
externos das personagens, evitam fornecer dados concretos,
como datas, nomes de pessoas ou lugares, mas adaptam, para
fins espirituais, os acontecimentos biográficos – a finalidade
parenética transcenderia a historiográfica; ademais, as
autobiografias emulam as vidas dos santos, não distinguem os
acontecimentos ‘naturais’ daqueles ‘sobrenaturais’ – e entre os
dois tipos, opta-se pelo segundo –, e enquadram toda a narrativa
dentro das expectativas do que se considerava santidade. A
autora não deixa de ter razão quando destaca a pouca precisão
temporal ou geográfica demonstrada, por exemplo, na Vida de
Doucelina e no Memorial de Ângela; porém, a caracterização
do que seja uma autobiografia feminina (e sobretudo mística)
não pode ser tão sumária, pois, o Memorial, por exemplo,
escapa da grade interpretativa de Greenspan justamente pelo
compromisso com a veracidade e com a sequência cronológica
– que corresponde à sequência das experiências místicas – que
a obra demonstra.

É o próprio Frater A. quem considera o relato angeliano


uma ‘história’ e que essa história organiza-se narrativamente
em seu texto: “Ângela começou a relatar-me um pouco da
história [historia] que, após a presente narração [presentem
narrationem], será posta por escrito [scribetur]” (SANTI 2016,
p. 58). O escriba referia-se a um evento curioso ocorrido com
Ângela, na cidade de Assis, quando ela visitou a Basílica de
São Francisco, em 1291. Durante o trajeto de vinda, a beata
havia experimentado uma doçura espiritual muito intensa que,
por desgraça, desapareceu tão logo ela adentrou a Basílica.

186 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

Sentindo-se abandonada por Deus, a penitente começou a


gritar descontroladamente e a chorar em soluços inconsoláveis,
o que chamou a atenção das pessoas presentes no santuário
que, obviamente, julgaram-na fora de si. O frade que, além de
seu parente e conterrâneo, era também seu confessor, sentiu-
se envergonhado ao presenciar aquele ataque histérico. Daí
que, tempos depois, quando foi a Foligno, procurou a beata para
saber dela o que havia se passado quando daquele rompante
inusual e inadequado. Portanto, podemos afirmar que o desejo
de saber as razões de um fato histórico ocorrido em público e
que poderia comprometer a credibilidade da própria devoção
de sua parente é a primeira motivação da escrita do Liber Lelle;
a segunda motivação é igualmente historiográfica: o frade
acreditava que o modo de vida de Ângela e a sua doutrina
espiritual precisavam das garantias de fidelidade à Igreja
romana – não nos esqueçamos de que o tempo de Ângela era
um tempo de acirramento inquisitorial –, o que levou o frade
a elaborar o Livro com a finalidade de provar que a vida e os
ensinamentos de sua conterrânea eram compatíveis com a fé
oficial da Sé Apostólica e que correspondia à história de outros
santos e santas desde a fundação da Igreja.

Ciente da tarefa que o interpelava, o frade escriba detalhou as


dificuldades encontradas para cumprir aquele encargo. Apontou
o fato de que, ao começar a escrever, não imaginava quanta
coisa Ângela teria a dizer e, por isso, não havia se preparado
para organizar tanta informação e nem dispunha, a princípio,
dos fólios suficientes para as notas que iam ficando demasiado
confusas (SANTI 2016, p. 56). A penitente lhe fornecia os
fatos – que ele insiste em chamar de ‘matéria’ – enquanto
ele organizava a ‘história’ segundo a ‘ordem conveniente’ dos
acontecimentos – é tentador pensar que o frade admitia uma
certa divisão do trabalho intelectual: a mulher trazia o material
para que o homem o transformasse em história. No entanto,
parece-me que não é isso que lhe ocorre, não de maneira
clara e consistente, pois ele faz notar que a responsabilidade
pela história que narra não era unicamente dele: “com grande
reverência e temor, escrevo [estas coisas] a fim de que nada

187 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

de meu fosse acrescentado, nem mesmo uma palavra, a não


ser precisamente o que pude recolher conforme a sua boca me
referia” (SANTI 2016, p. 60).

Ademais, o frade não assumia a condição de auctor e


preferia, o tempo todo, intitular-se scriptor, pois, para ele, a
sua fonte, isto é, Ângela, seria o auctor ou, no limite, Deus, já
que ele admitia que o escrito místico é sempre uma forma de
revelação. Assim é que a narradora também deva ser entendida
como historiadora, uma vez que era ela que, de fato, fazia a
seleção (como ela mesma declarara) daquilo que precisava ou
não precisava ser posto por escrito. Nota-se que ela expunha
certos acontecimentos místicos e explicava as condições em
que ocorreram, pensando ora na compreensão de seu primeiro
ouvinte – o frade escriba, ora em seus futuros leitores, mas
também e, talvez sobretudo, na sua própria necessidade de
se assegurar de que tudo o que lhe ocorria, particularmente
durante os arroubos extáticos, era real e não fruto de sua
imaginação.

Numa outra ocasião, ela disse ter visto Cristo na hóstia como
se fosse um menino. “E parecia que ele fosse grande e muito
poderoso, como alguém que possui o domínio [universal]. E
parecia que tinha nas mãos alguma coisa como um símbolo de
poder e assentava-se num trono; porém, não consigo descrever
o que ele segurava nas mãos. E eu vi essas coisas com meus
olhos corporais e foi com os olhos corporais que tive a visão da
hóstia. (...) E foi tão grande a alegria [dessa visão] que creio
que nem a eternidade me fará esquecê-la. E tanta foi a certeza
[obtida], que não me restou nenhuma dúvida de coisa alguma.
Por isso, não convém que tu escrevas sobre esse assunto (SANTI
2016, p. 80).

Nessa passagem, a seletividade de Ângela respeita as


condições de credibilidade e veracidade que ela mesma se
impõe naquilo que narra. O critério é histórico e ela esforça-
se por transmiti-lo a seu interlocutor. Em conexão com isso,
vê-se que a penitente lança mão do escrito para registro
daquilo que corre o risco de ser esquecido ou confundido.

188 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

O tempo histórico opõe-se à eternidade divina; é certo que


a beata considerava que o que pertence à eternidade não
carece de escrito, porém, a esmagadora totalidade de suas
memórias se colocava na perspectiva do tempo histórico
e com ele dialogava. Daí que a ‘história’ que o frade A.
procura organizar respeita as mutationes (as transformações)
que vão ocorrendo na vida de sua interlocutora – o uso
do vocábulo mutatio não é em vão, pois aponta para o
desenrolar de uma experiência temporal, o lento avanço de
uma vida no tempo rumo à eternidade: “Entenda [diz Ângela]
que todos esses passos demoram [a avançar] e que grande
pena e dor experimenta a alma que pode mover-se para Deus
apenas com grande esforço, com dor e com enorme peso”
(SANTI 2016, p. 32).

Os passos que Ângela fora elencando não formavam,


pois, um sistema ou método acabado e rigoroso que pudesse
servir imediatamente para outros devotos; ao contrário, eles
significavam antes uma recordação de seu próprio caminho: é
a sua vida que se vai desfilando em sua narrativa e essa, na
forma do Liber, é que deveria servir para a instrução dos fiéis.
A fidelis Christi – como a santa é chamada pelo frade – admitia
que Deus esperava fazer dela um testemunho público de seu
poder – ela tornar-se-ia um monumento da ação de Deus e,
por extensão, seu Liber aumentaria o alcance de sua fama e
a de Deus. No segundo passo suplementar (ou 21º passo),
ela enunciou o que lhe fora revelado interiormente: “Eu [isto
é, Deus] farei em ti [isto é, em Ângela] grandes coisas diante
dos povos e por meio de ti serei conhecido e por ti meu nome
será louvado por muitas nações” (SANTI 2016, p. 82). Desse
modo, o Memorial de Ângela não só foi redigido dentro das
expectativas de um escrito histórico, como também pretendia
ocupar um lugar nessa constelação de relatos: a história
autobiográfica informava ao mesmo tempo em que formava e
que transformava aqueles que se deixavam tocar pela força da
história.

189 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

Conclusão
Ao encerrar este estudo, confesso não ter tido a pretensão
de fazer crer que toda a escrita da história operada por
mulheres, no período medieval, resumia-se às biografias e
autobiografias, ainda que esse gênero literário tenha sido muito
praticado por mulheres e tenha constituído importante palco
de afirmação feminina (FLAVIN 2011, p. 90-91). Ao lado de
crônicas e histórias régias, dinásticas e conventuais, também
praticada por mulheres, as biografias e autobiografias de
místicas compõem um todo maior de expressão historiográfica
que precisa urgentemente ser mais bem investigado, para que
se aprofunde a nossa compreensão do fazer historiográfico no
período medieval.

Pela Vida de la Benaurada Sancta Doucelina mayre de las


Donnas de Robaut, verificamos como a historiografia feminina
obedecia às regras compositivas das crônicas e das histórias,
conferindo às mulheres um posto histórico destacado. Já o Liber
Lelle, aparentemente menos associado a uma obra de história,
mostrou-se um laboratório de escrita da história em que um
homem e uma mulher abraçaram a tarefa de conferir historicidade
a uma série de experiências místicas e transcendentais. A
linguagem mística, naquilo que tem de referente transhistórico,
não se furtou aos apelos da historiografia por veracidade,
seletividade e confiabilidade dos testemunhos arrolados. Ao
mesmo tempo, alargou para o âmbito psicológico a capacidade
heurística da história, conferindo legibilidade narrativa aos
eventos da alma. É notável como as obras místicas femininas
foram aumentando em número, entre os séculos XIV-XVI, em
estreita correlação com o crescimento do número de mulheres
engajadas numa espiritualidade combativa e ativa no âmbito
público. Assim, a mulher mística e o escrito místico (narrativo
ou não) demonstram que as mulheres não queriam apenas
escrever história, mas assumir um lugar na história contada e
controlada por homens, ao menos no Ocidente cristão latino
medieval.

190 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

Doucelina e Ângela, bem como suas respectivas narrativas,


ressaltam que a feminilidade que as constituía era, para elas,
um privilégio. Ângela particularmente o demonstrou com
força: jamais viu-se limitada ou incapacitada de agir em nome
próprio, ainda que isso lhe custasse suspeitas ou calúnias. Não
refutava a autoridade masculina que se impunha no interior de
sua comunidade de fé, mas não se vergava a ela, sem antes
negociar as condições que ela reivindicava, a fim de manter
o controlar sobre o seu próprio caminho. O frade escriba o
reconhecia bem, e Ângela não abriu mão desta prerrogativa de
ser ela mesma a mestra de sua história – ouso dizer que ela só
contou com a mediação de um homem para a tarefa de compor
o Memorial porque era analfabeta.

Alberto de Stade, ex-abade beneditino que entrou para


a Ordem franciscana em 1240, é o autor de uma história
universal, chamada Annales Stadenses, encerrada em 1256;
pensando em percorrer a história do mundo desde a criação
até o seu presente, o historiador acreditava que a finalidade da
história era a narração dos feitos (gesta) das pessoas, boas ou
más (função informativa), e era ao mesmo tempo a acurada
investigação desses feitos com o fito de propor exemplos de
bondade a serem praticados e de maldade a serem evitados
(função educativa ou moral). Também a Vida de Doucelina e o
Livro de Ângela são sensíveis a essas duas funções; entretanto,
creio que a função informativa se destaca mais e, nisso
encontramos a afirmação da voz feminina na história, pois
ambos os textos apresentam-se como escritos de mulheres que
narram a sua experiência no tempo e no espaço e registram
a memória desta experiência para uso de uma comunidade e,
nesse caso, funcionavam como qualquer outro texto de história
escrito no século XIII.

191 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

REFERÊNCIAS

ALBANÈS, Joseph (ed.). La Vie de Sainte Douceline


fondatrice des Béguines de Marseille. Marselha:
Étienne Camoin, Libraire-Éditeur, 1879.

BOUCHAUD, Pauline; FOUGRE-LEVEQUE, Mélanie


e WALLERICH, François. Introduction au dossier
Faire de l’histoire au Moyen Âge. Questes
Revue pluridisciplinaire d’études médiévales, n. 36,
p. 3-18, 2017.

CERTEAU, Michel de. L’absent de l’histoire. Paris: Maison


Mame, 1973.

CERTEAU, Michel de. La Fable Mystique (XVIe-XVIIe


siècle). Paris: Éditions Gallimard, 1982.

CERVIGNI, Dino S. Angela da Foligno’s “Memoriale”: The


Male Scribe, the Female Voice, and the Other. Italica, v.
82, n. 3/4, p. 339-355, 2005.

FLAVIN, Christopher Michael. The Self, the Church, and


Medieval Identities: The Evolution of the Individual in
Medieval Literature [tese de doutorado]. Carbondale:
Southern Illinois University Carbondale, 2011.

FLEMING, John V. Medieval European Autobiography.


In: DIBATTISTA, Maria; WITTMAN, Emily (org.). The
Cambridge Companion to Autobiography. Cambridge:
Cambridge University Press, 2014. p. 35-48.

GREENSPAN, Kate. The Autohagiographical Tradition


in Medieval Women’s Devotional Writing. A/B: Auto/
Biography Studies, v. 6, n. 2, p. 157-168, 1991.

GUENÉE, Bernard. Histoire et culture historique dans


l’Occident medieval. Paris: Aubier, 1980.

192 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

GUENÉE, Bernard. História. In: LE GOFF, Jacques e


SCHMITT, Jean-Claude (org.). Dicionário Temático
do Ocidente Medieval. v. 1. Tradução de Lênia Márcia
Mongelli. Bauru: EDUSC, 2006. p. 523-535.

HOWE, Elizabeth Teresa. Autobiographical Writing by


Early Modern Hispanic Women. Londres/Nova Iorque:
Routledge, 2015.

LEES, Jay T. David Rex Fidelis? Otto the Great, the Gesta
Ottonis, and the Primordia Coenobii Gandeshemensis. In:
BROWN, Ph., WAILES, St. (org.) A companion to Hrotsvit
of Gandersheim (fl. 960). Contextual and Interpretive
Approaches. Leiden/Boston, 2013. p. 201-234.

LION, Antoine. Le discours blesse sur le langage


mystique selon Michel de Certeau. Revue des Sciences
Philosophiques et Théologiques, v. 71, n. 3, p. 405-
420, 1987.

LOWE, K. J. P. Nuns’ Chronicles and Convent Culture


in Renaissance and Counter-Reformation Italy.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

MAYERS, Susan Lynne. Tradition and Transgression:


what we talk about when we talk about medieval women
mystics. [Tese de Doutorado]. University of Virginia, 1998.

McGINN, Bernard. As fundações da mística. Das origens


ao século V. Trad.: Luís Malta Louceiro. São Paulo: Paulus,
2012.

McGINN, Bernard. O florescimento da mística: homens


e mulheres da nova mística (1200-1350). Trad.: José
Raimundo Vidigal. São Paulo: Paulus, 2017.

MIATELLO, André. Iacopo de Varagine e a escrita da história


no século XIII. In: TEIXEIRA, I. S., BASSI, R. (org.). A
Escrita da História na Idade Média. São Leopoldo:
Oikos, 2015. p. 112-143.

193 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
André Luis Pereira Miatello

MOULINIER, Laurence. H comme Histoire: Hrotsvita,


Hildegarde et Herrade, trois récits de fondation au féminin.
Clio. Histoire, femmes et societies, v. 2, 1995. DOI: 10.4000/
clio.489. Disponível em: http://journals.openedition.org/
clio/489. Acesso em: 06 jun. 2019.

NAPOLI, Diana. La Fable mystique: une phenomenology


de l’écriture. Les Dossiers du Grihl, v. 2, 2018. DOI
10.4000/dossiersgrihl.6817. Disponível em: https://
journals.openedition.org/dossiersgrihl/6817. Acesso em:
06 jun. 2019.

NELSON, Janet L. The Frankish World, 750-900.


Londres: The Hambledon Press, 1996. p. 183-197.

SANTI, Francesco (ed.). La Letteratura Francescana. La


Mistica: Angela da Foligno e Raimondo Lullo. Volume V.
Roma: Mondadori, 2016.

SCALIA, Giuseppe (ed.). Salimbene de Adam da Parma


Cronica. Parma: Monte Università Parma, 2007.

SWAN, Laura. The wisdom of the beguines. The


forgotten story of a Medieval Women’s Movement. Nova
Iorque: Bluebridge, 2014.

TROCH, Lieve. Mística feminina na Idade Média.


Historiografia feminista e descolonização das paisagens
medievais. Revista Graphos, v. 15, n. 1, p. 1-12, 2013.

VAN HOUTS, Elisabeth. Women and the writing of history


in the early Middle Ages: the case of Abbess Matilda of
Essen and Aethelweard. Early Medieval Europe, v. 1, n.
1, p. 53-68, 1992.

194 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
A literatura mística feminina e a escrita da História na Baixa Idade Média ocidental

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

André Luis Pereira Miatello


andremiatello@ufmg.br
Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte
Minas Gerais
Brasil

A presente pesquisa contou com finaciamento


CNPq - Bolsa Produtividade em Pesquisa-PQ2.

RECEBIDO EM: 08/AGO./2019 | APROVADO EM: 13/ABR./2019

195 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 163-195 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1519
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

History and Historiography in Early Christian Ireland -


Muirchú’s ‘Vita Patricii’ and Tírechán’s ‘Collectanea’

História e Historiografia na Early Christian Ireland – a “Vita


Patricii”, de Muirchú, e a “Collectanea”, de Tírechán

Dominique Santos
https://orcid.org/0000-0002-0265-2921

ABSTRACT
Despite modern writers noticing the importance of
Premodern historiographical phenomena for a deeper RESUMO
comprehension of both Theory of History and History of
Apesar de alguns escritores modernos terem notado
Historiography, the Irish contribution to the subject is
a importância dos fenômenos historiográficos pré-
often left aside. Topics such as the Seanchas Tradition
modernos para uma maior compreensão tanto da
and Medieval Irish Classicism are not well integrated
Teoria da História quanto da História da Historiografia,
into such historiographical narrative. The Seanchaidh,
a contribuição irlandesa para o tema nem sempre
the Irish Artifex of the Past, for example, is broadly
é apontada. Tópicos como a tradição Seanchas e o
mentioned as not a historian, but a chronicler, antiquary,
Classicismo Medieval irlandês não estão integrados a
genealogist, hagiographer or pedigree systematizer. This
esse tipo de narrativa historiográfica. O Seanchaidh,
article addresses these issues and, more specifically, we
o Artifex irlandês do passado, por exemplo, é
focus on two Irish narratives produced in 7th century
frequentemente mencionado como não sendo um
by Muirchú and Tírechán. Since they belong to the
historiador, mas, ao invés disso, um cronista, antiquário,
world of orality and bilingual literacy of Early Christian
genealogista, hagiógrafo ou sistematizador de pedigrees.
Ireland, perhaps their works could be understood
Neste artigo, tais questões são endereçadas e, de
as bounded by the Seanchas Tradition and Medieval
forma mais específica, nos focamos em duas narrativas
Irish Classicism, hence, both could be considered
irlandesas do século VII produzidas por Muirchú e
as great examples of the producers of History and
Tírechán. Uma vez que os autores pertencem ao mundo
Historiography at the time.
da oralidade e do letramento bilíngue da Early Christian
Ireland, talvez suas obras possam ser compreendidas
como vinculadas à tradição Seanchas e ao Classicismo
Medieval irlandês, podendo, então, serem consideradas
como grandes exemplos das produções de História e
Historiografia daquele tempo.
KEYWORDS
Historiography; Medieval; Ireland
PALAVRAS-CHAVE
Writing of History; Event; Historical Time.

197 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

Introduction
On several occasions, Medieval historiography has received
a similar treatment to that reserved for Ancient historiography,
that is, its diverse experiences are brought together and
classified under generalizing concepts. If Roman historiography
has been synthesized as ‘Historia Magistra Vitae’ and the Greek
as one that produced a temporal narrative based on ‘cycles’,
for example, the Middle Ages would have had a historiography,
above all, ecclesiastical (SANTOS 2015, p. 7-18). In such
explanations, one commonly finds syntheses that bring
together names like Herodotus, Thucydides, and Polybius for
the Greek context; Tacitus and Dion Cassius for the Roman
one; while Augustine, Eusebius, and Gregory of Tours would be
the medieval representatives. After that, the books of Theory of
History and History of Historiography mention Vico, an author
from the 17th and 18th centuries. This is mainly because a
large portion of scholars who teach the theoretical subjects of
History courses have focused on themes linked to more recent
temporalities, mainly from the 19th century to the present.
Furthermore, they consider that what happened before Ranke,
Droysen or Gervinus, would not be professional historiography;
that is, premodern historiographies are evaluated with modern
eyes, including the Medieval ones (DELIYANNIS 2003, p. 1-16;
MOMIGLIANO 2004; MARINCOLA 2007).

Regardless of the historical shapes used to refer to the


temporalities involving the texts produced in Ireland between
the 5th century and the year 1169, ‘Ancient Ireland’, ‘Late
Antique Ireland’, ‘Medieval Ireland’, ‘Early Christian Ireland’,
among similar epithets, specificities are disregarded. When
mentioned among Medieval texts, they are classified as not
being sufficiently ‘historiographic’, and are not included in
History of Historiography manuals. Even in specific works of
Medieval Historiography, Irish texts do not usually appear; Irish
authors are often referred to as ‘chroniclers’, ‘antiquarians’,
‘genealogists’, ‘hagiographers’, or even ‘pedigree systematizers’.
Thus, the Irish contribution to both Theory of History and

198 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

the History of Historiography is lost (SANTOS 2015, p. 7-18;


SANTOS 2018). The very rich production developed between
the Seanchas tradition and Irish Medieval Classicism is no
longer integrated into historiographical narratives and the
task performed by Seanchaidh, the Irish Artifex of the past, is
ignored.

To contribute to this debate, the following works of two of


these Medieval Irish historians are approached: Vita Sanctii
Patricii, by Muirchú, and Collectanea, by Tirechán. From them,
we can see that old tales and stories, poetry, fiction, genealogy,
hagiography, law and traditional laws, and history and
historiography are hard to be considered apart, especially if we
observe the classification system of the time. Both Muirchú and
Tirechán, despite their differences, wrote their works in a world
that connected oral and bilingual literacy, dialoguing with Latin,
Greek, and Hebrew traditions in an Ireland that lived between
Christianity and Paganism (MILES 2011, p. 34). These authors
are great examples of History and Historiography producers
and their works allow us to elucidate issues that can enrich our
view of Early Christian Ireland.

Muirchú and Tirechán: life and work


As his name indicates, Muirchú Moccu Machteni was
probably a 7th century resident of Mochtaine, one of the Irish
Tuatha in the region of Mag Macha, plain of Armagh. We know he
was someone of relative importance, as he attended, together
with Bishop Áed, the Synod of Birr; a King-supported meeting
convened by Adomnán, abbot of Iona in the year 697, held
in the locality that would correspond to the modern county of
Offally. At the time, abbots, sages, teachers, poets, and kings
discussed important themes for that society; it was in Birr, for
example, that the Cáin Adomnáin, or Lex Innocentium (Law
of the Innocents, as it was also known) was enacted, a law
that defended women and children in vulnerable situations,
especially in times of war.

199 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

Áed was responsible for incorporating Armagh into a web


of ecclesiastical relations called Paruchia Patricii, i.e., those
churches that had or maintained some kind of relationship with
[Saint] Patrick and placed themselves under the tradition of
his name, invoking links with the one who, at that time, was
already considered important for Irish Christianity.

Then, Armagh was trying to establish itself as the center


of Irish religious connections and Patrick was at the center of
this propaganda based on a combination of three models of
authority, the abbot, the bishop and the comarbae. Paruchia
Patricii would be a model of jurisdiction, bringing together
several churches, as if in one family; the Familia Patricii, around
Armagh (ETCHINGHAM 1999). Muirchú was one of the writers
responsible for spreading these ideas in Early Christian Ireland
and this also helped him to project his name not only during his
own time, but beyond it. He is also related to the beginnings
of Irish hagiographic production and wrote a document entitled
Vita Sancti Patricii (Life of Saint Patrick), one of the first and
most mentioned hagiographic accounts of [Saint] Patrick,
considered the patron of Ireland.

Tírechán also lived in the 7th century and was a disciple of


Bishop Ultán moccu Conchobair. According to Terry O’Hagan,
if we consider information from the ‘Martyrology of Tallaght’
(a list of related saints and festivities) Ultán would come from
the Ardbraccan monastery, located in a territory corresponding
to the current county of Meath, in the province of Leinster
(O’HAGAN 2011). Tírechán would have studied there under
the care of Ultán, around the year 650, and was probably
responsible for continuing the work of his master after his
death. Tirechán, however, did not come from the region, but
belonged to a family from northern Connacht, another province
in Ireland. He is related to the Uí Amonngid dynasty, which
inhabited the region of Killala Bay, County Mayo. Among all
the locations explored in his work, this is the most detailed
and receives the most attention from the author, as pointed by
O’Hagan (2011). This means that Tírechán stood out among

200 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

others and received the necessary investment to leave the


north of Mayo, and spend several years acquiring the skills a
scribe of that time would have. He received his education in
Ultán, in Ardbraccan, County Meath, then, on the other side of
Ireland, which indicates that he was a member of a family with
conditions, that is, a high elite of the time (O’HAGAN 2011).

Both Muirchú and Tírechán produced important texts for


our knowledge about Ireland in the 7th century, but also about
the history of Christianity in that place. While the former wrote
Vita Sancti Patricii, the most well-known and cited work on the
life of [Saint] Patrick, the latter produced a work whose title we
do not know, but which became known as ‘Collectanea de Vita
S. Patricii’. It is a collection of memories also related to Patrick
and his activities in Ireland. Both works were written in Latin
and in the same period. In both cases, there is a link with the
thesis that the foundation of Armagh should be the monastic
house to obtain primacy over others in Ireland, rivaling, for
example, with potential Irish rivals such as Kildare, and even
from other locations, like Iona. However, it seems that Muirchú
directly defended this idea, while Tírechán was more concerned
with an apology in favor of the very notion of Paruchia Patricii.
Mentioning Patrick meant establishing a connection with an
ecclesiastical authority, who was probably already popular in
the 7th century and considered one of the pioneers of Irish
Christianity (SANTOS 2013a).

Both works appear in a document written in Latin called


Liber Ardmachanus (L.A.), or Book of Armagh, in English. It was
developed in the locality from which it was named, around the
year 807 of the Common Era. The oldest part of the manuscript
was produced by Ferdomnach of Armagh, who died in 845 or
846, and his scribes.

The work is catalogued as manuscript number 52 (Ms. 52)


from the Library of Trinity College Dublin (BOARD OF TRINITY
COLLEGE DUBLIN 2011). It is a Vellum, which originally had
222 leaves, however, of these, five are missing (the opening
folio: fol. 1; two bifolia from the second quire of the Gospel of

201 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

Matthew: foll. 42-45). Currently, then, the Book of Armagh has


217 foll. The text was written in double columns with insular
minuscule letters, the Irish minuscule, and has around 34-40
lines per folio; the quires are numbered. Its dimensions are
approximately 195x145 mm. The manuscript can be divided
into three parts: one that contains texts relating to Patrick
(foll. 2-24); another that presents us the only Irish copy to
survive from the time of the New Testament (foll. 25-191);
and a last one that contains the Life of St. Martin of Tours
(foll. 192-222) by Sulpicius Severus. The first part (foll. 2-24),
then, contains Vita Sancti Patricii, by Muirchú maccu Machteni,
which is located, more specifically, between the foll. 2ra-8vb,
and Collectanea de Vita S. Patricii, by Tírechán, covering the
foll. 9ra-15vb (BOARD OF TRINITY COLLEGE DUBLIN 2011;
GROENEWEGEN 2015).

If we look at both Muirchú’s and Tírechán’s works with a


modern perspective, ignoring the context and specificities of
the time, we will find in them a synthesis of various elements
that today, undoubtedly, we would classify as literature, fiction,
poetry, theology, geography, hagiography, history, jurisdiction,
among others. It is not by chance that the two works were
significantly depreciated, especially between 1961, due to the
interpretation of Daniel Binchy, author of the main synthesis
about Patrick back then (elaborated when many people in
Ireland believed to be celebrating 1,500 years of Patrick’s
death) (BINCHY 1962); and only recovered in much more
recent times, when new ideas were pointed out, mainly by
David Howllet (1994; 2006).

From this modern perspective, both Muirchú’s Vita and


Tírechán’s Collectanea were seen as carrying generalizations,
simplifications and anachronisms. Thus, they would not
only have little historiographical value, but they would also
be responsible for the mistaken image that we would have
of Patrick, a character more legendary than historical. The
recommendation was, at least between 1961 and 2006,
that, to be able to understand the ‘historical Patrick’ and

202 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

not the ‘legendary Patrick’, both works should be left aside,


abandoned. They would make references to the 7th century
itself and could say nothing about the 5th century, when Patrick
probably lived. Thus, it would be better if Muirchú and Tírechán
were understood, at most, as producers of hagiographies
(SANTOS 2013a).

Edward Arthur Thompson went even further on the issue.


He has interpreted the works of Muirchú and Tírechán as deeply
hagiographic, which we should read from a historical and
dialectical materialistic bias, ignoring the praise found in this
type of material (THOMPSON 1986). In other words, Thompson
practically developed an anti-hagiographic “antidote” (JONES
1987).

In general, then, texts produced in Ireland in those


times would not be seen as historiographies. The so-called
‘hagiographic works’ of Muirchú and Tírechán, much less, as
they would be full of fictionalities. Hagiography would have a
pejorative character (HOWLETT 1994).

Tírechán’s Collectanea seems to be more pragmatic than


Muirchú’s Vita. While the former prefers to focus on portraying
the daily tasks and activities carried out by Patrick, especially
the places he visited in Ireland, the latter represents several
actions that were interpreted as miraculous. However, the two
authors were associated and classified as fiction producers.
Thus, if an image was created of a ‘fictional’ Patrick, as opposed
to a ‘real’ and/or ‘historical’ one, this type of text would be to
blame, since this would have occurred as the works left by
these two authors were the most widely read (HOWLETT 1994;
2006).

Peter Brown showed that the cult of the saints emerged


in what he called Latin Christianity and functioned as an
agglutinating and structuring element, allowing people of
that time to build guidance and meaning for themselves
and their communities. In other words, this promoted social
interaction around sanctified figures and their respective cults

203 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

and traditions, a theme recently explored also by the ‘the Cult


of Saints’ project, led by Bryan Ward-Perkins at the Oxford
University (BROWN 1981; WARD-PERKINS, Cult of Saints,
2014-2019).

The works of Muirchú and Tírechán produced this support


of the necessary symbols for interaction and social life in
Ireland back then, and it is important to keep in mind that
the authors were successful only because, to insert Armagh
into a Patrician tradition, they needed to know and master
the methods used in such a context to represent the past.
The central characteristics of 7th century Irish historiography,
then, were brought together, organized and systematized as
plausible narratives, for the audience to which the two works
were destined.

‘Saí seanchasa’ or ‘Seanchaidhe’ was perhaps the term


used in that time for the individual who had the responsibility
to organize, produce and present the narratives about the
past, which, in turn, were part of Seanchas. During the long
chronological arc in which this tradition was in force, this
Medieval historian appears in the manuscripts performing the
most distinct tasks from the point of view of the narrative. In
some documents, he may appear as guardian of tradition, a
witness who is an expert in interpreting ancestral customs, a
genealogist; also as an interpreter of the law, an arbitrator to
resolve issues involving disputes that require knowledge of the
past, a mnemonic guardian of notary records; or even the holder
of knowledge about territorial divisions and borders, someone
who prepares the king’s speech, a master of eloquence and one
who writes or tells the story of a certain fact, circumstance,
king or people, whenever requested (SIMMS 1987; 1998).
According to Fergus Kelly, he was the one who should provide
evidence about the past whenever he was asked to solve any
type of dispute or controversy related to genealogical issues,
properties etc. (KELLY 1986, p. 93). The Seanchas has, then,
several developments and so that is how it must be thought
(SANTOS 2018).

204 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

Even if we decide that Muircú, and Tírechán, because he


lived in the 7th century, still cannot be called a ‘Saí seanchasa’
or a ‘Seanchaidhe’, we must not forget that they were part of
this tradition and had full knowledge of it. After all, Seanchas
can be defined as ‘the memory and narrative of Irish history
as preserved and written from the early medieval period to the
writing of histories of Ireland in the 17th century’ (BHREATHNACH
2007, p. 19). Seanchas must be taken, then, as a narrative
system that brought together history, myth and tradition (Ó
CRÓINÍN 2005; JOHNSTON 2013). Thus, the Seanchas are
keys to History in Medieval Ireland (BHREATHNACH 2013)
and ‘encompassed the collective consciousness of the Irish as
expressed by their historians’ (BHREATHNACH 2014, p. 2). In
this way, we propose to think of Muirchú, and Tírechán, as an
Artifex of the past, probably a Seanchaidhe, responsible for
the Irish Seanchas, or, at the very least, someone inserted
in such a tradition, even if it were perhaps still in formation.
Let us then proceed to the analysis of the two works and their
historiographic characteristics, considering the notions of
historiography of the period.

Historiographical notes on Vita Sanctii Patricii, by


Muirchú Moccu Machteni, and Collectanea de S.
Patricii, by Tírechán
In the prologue to his work, Muirchú states that his objective
is to narrate ‘these few of the numerous deeds of holy Patrick’
(Vita Sancti Patricii, Prologus, 1). In addition, he also states
that he writes ‘with little knowledge’, ‘on uncertain authority’,
‘from an unreliable memory’, as well as ‘feebly and in poor
style’ (Vita Sancti Patricii, Prologus, 3).

The first evidence of writing in Ireland that we have are


found in the Ogham Stones. After these monuments, we
have the two letters that Patrick himself wrote, Confessio and
Epistola, which are traditionally dated from the 5th century.
Only in the 6th century, perhaps in 597, it is believed that
Dallán Forgail, a poet friend of Colm Cille, wrote a text called

205 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

Amra Choluimb Chille, on the occasion of the Saint’s death


(BREATNACH 2005, p. 400; O’LOUGHLIN 2006, p. 468; CLANCY
2006, p. 557). Since that moment, we have in Ireland a tradition
that developed between literacy (in Latin and Irish, but with a
profound influence also from Greek and Hebrew) and orality.
Probably, Muirchú was referring to Seanchas, although these
were still in formation in the 7th century. When he comments,
for example, about writing ‘feebly and in poor style’, he wants
to show his readers that he knows Patrick’s literary style, who
also writes in his Confessio that he is a ‘peccator rusticissimus
et minimus omnium fidelium’/‘I am a sinner, a simple country
person, and the least of all believers’ (Patrick, Confessio, 1).
In other words, it is a rhetorical strategy; when writing a life of
Patrick, Muirchú shows the audience that he knows the texts
that preceded him. According to David Howllet, Muirchú must
have taken at least 100 of the 130 words he uses in his prologue
from Patrick’s Confessio (HOWLETT 2006, p. 30-34).

Narrating, for Muirchú, was something difficult and complex


that should be done carefully. For this reason, he uses the Latin
term ‘acutissimos carubdes’ (Vita Sancti Patricii, Prologus, 1)
to express this difficulty. In order to favor the reception of his
work and to be able to situate himself in those versions, which
should have existed at the time of Patrick’s life, nothing better
than being based on the writings of the character represented.
There is a process of mimesis directly attached to Patrician
work, which Howllet understood very well, and which we can
see by comparing the following two passages, put in parallel.
The first, by Patrick: ‘(1) Intermisi (2) hominem (3) cum (4) quo
(5) fueram (6) sex annis’ (Patrick, Confessio: 17). The second,
by Muirchú: ‘Etiam in sexto decimo (1) anno (2) aetatis (3)
captus (4) et (5) sex (6) annis seruiuit’ (Muirchú, Vita Sancti
Patricii, II, 15.2). This comparison, firstly suggested by the
Oxford professor, shows that in the Patrician text, the sixth
word in the line is ‘sex’, six. Its last letter is the sixth before
the end of the line. In Muirchú, ‘sex’ is the sixth word after
‘sixth’. It would be possible to think of ‘coincidence’, if these
two were the only fragments in which this occurs; however,

206 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

quite the contrary is true. As Howlett has pointed out, there


are hundreds of parallels, resignifications, and conscious
uses that Muirchú makes of Patrick’s text (HOWLETT 2006).
Historiography has accepted these are the criteria of veracity
and ‘source quotation’ used by the hagiographer, which is
related to the historiographic perceptions of the time (SANTOS
2013a; 2013b).

The battle between the ‘druids’ of King Lóegaire and


Patrick, in the province of Tara, cannot be left out either, since
the passage is one of the most quoted in Patriciology as a
negative example, i.e., that it would be no historiography and
to emphasize that Muirchú’s text is only fiction. After all, in this
fragment, in addition to the various magical conflicts, Muirchú
says that one of the Druids took flight like a bird and went to
meet Patrick. The problem is that only the modern audience
presents this interpretation. Readers at the time, familiar with
the Seanchas tradition, knew how to separate what was fun,
poetry, literature, fiction, from what was history, politics, moral
lessons and so on.

Muirchú writes, for example, that there was an attempt to


poison Patrick when ‘Caenatibus autem omnibus (...)’/‘while
they were all eating’ (Muirchú, Vita Sancti Patricii, I. 20.1).
According to O’Loughlin (2003), the passage is based on
Matthew 26:26: ‘Cenantibus autem eis accepit Iesus panem et
benedixit’, which can be translated as ‘And as they were eating,
Jesus took the bread, and blessed it’. In addition, we note that
there are no references by Muirchú to the ‘druids’, a kind of
Celtic priests, but to the magicians, the Persian equivalent, that
did not exist in Ireland. When the fear of the king is mentioned,
we have the following: ‘Et timuit rex uehimenter et commotum
est cor eius et omnis ciuitas cum eo’/‘And the king was in
great fear, his heart was trembling, and so was his entire city’
(Muirchú, Vita Sancti Patricii, I. 20.15). Again, another parallel,
says O’Loughlin, as the passage is related to Mark 1:27, which
reads, in Latin: ‘Et mirat sunt omnes ita ut conquirerent inter
se dicents quidram est hoc quae doctrina haec noua’ and can

207 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

be translated as: ‘And they were all amazed, insomuch that


they questioned among themselves, saying, what thing is this?
What new doctrine is this?’ (O’LOUGHLIN 2003; SANTOS 2014).

O’Loughlin (2003) has also pointed out that Muirchú was


based on the biblical Book of Daniel (3.1) too, in which we
have the figure of King Nebuchadnezzar (Nabuchodonosor
Rex). In the work of Muirchú (Vita Sancti Patricii, I. 10.1),
the equivalent is King Lóegaire (Lóegaire Rex), in addition
to Nebuchadnezzar himself being mentioned (Muirchú, Vita
Sancti Patricii, I. 15.2). If in the Book of Daniel events happen
in the countryside of a Babylonian province (In campo Duram
provuiciae Babylonis), in Muirchú that is true as well, but in
the great plain of Brega (In campo Breg maximo) (Muirchú,
Vita Sancti Patricii, I. 13.2). The most interesting thing, says
O’Loughlin (2003), is that if in the Book of Daniel (3.3) there
are satraps, in Muirchú’s work too: ‘congregates etiam regibus,
satrapis, ducibus, principibus’/‘there assembled the kings,
satraps, leaders princes’ (Muirchú, Vita Sancti Patricii, I. 15.2).
Just as there were no ‘magicians’, literally speaking, in Ireland,
but druids instead (and for this reason it is common for the
translators of Muirchú and Tírechán to translate ‘magus’ into
‘druid’), there were also no satraps. The Book of Daniel (3.8)
ends by saluting the ‘king who lives forever’, and Muirchú
does the same, in Latin: ‘rex, in aeternum uiue’ (Muirchú, Vita
Sancti Patricii, I. 15.5), evident parallels to the Old Testament
narrative (O’LOUGHLIN 2003; SANTOS 2013a; SANTOS 2014).

Historiography has already pointed out that Muirchú


used several texts available to seventh-century Irish scribes:
Audite Omnes Amantes, by Sechnall (Saint Secundinus);
Commonitorium, by Vicente de Lérins; Etymologiae, by
Isidoro de Sevilha; the apocryphal Actus Petri cum Simone;
Passio apostolorum Petri et Pauli; Historia Apostolica or
Uirtutes Apostolorum, by Pseudo-Abadias; Libri Miraculorum;
by Gregory de Tours; Dialogi, by Gregório Magno; Passio
Iohannnis Apostoli, by Pseudo-Mellitus; The Book of Ultán; De
Locis Sanctis, by Adomnán; possibly, Vita Sanctae Brigidae, by

208 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

Cogitosus; in addition to other books (BIELER 1949, p. 115;


O’LEARY 1996, p. 2; O’LOUGHLIN 2006, p. 121, p. 159) and, of
course, Confessio and Epistola ad Milites Corotici, by the very
own [Saint] Patrick, as we have already suggested.

When dialoguing with these texts, Muirchú, as we have


insisted, showed that he knew the Seanchas, and that he was
a writer ‘per cola et commata’ (by sentences and phrases), a
system used by Saint Jerome (HOWLETT 2006). The author
of Vita Patricii was a perpetuator of classical (and vernacular)
letters in Ireland. Thus, he can be understood as taking part
in what we call ‘Irish classicism’, a program or movement of
writers who copied, translated and interpreted classic works,
also creating their own versions (MILES 2011; SANTOS 2016,
p. 93-110). All of these were criteria that Muirchú knew and
appropriated, in dialogue with his peers, who knew how to
ascertain such forms of composition, recognizing historicity and
veracity in Muirchú’s narrative even if accompanied by fiction
and digression; in the period, it did not pose any problem.
We shall proceed to see how Tírechán also dialogued with the
same tradition.

The text contained in foll. 9ra-15vb, a section of the first


part (foll. 2-24) of the Book of Armagh, is a copy, produced
in the scriptorium of Ferdomnach, with the assistance of his
assistant scribes, at the beginning of the 9th century, of the
work of Tírechán, who lived in the 7th century. It was written
in Latin although it did contain numerous names and places in
Old Irish (much more than what we see in Muirchú). ‘Tírechán,
writing Latin, wrote and thought like an Irishman’, according to
James Carney (1961, p. 136). His work is unfinished and does
not have a defined title, but as it brought together a series of
memoirs about Patrick available at the time of its compilation,
it received the name Collectanea de Vita S. Patricii, probably
an attribution from Ferdomnach.

The work describes the countless trips Patrick would


have made in Ireland, in his initial missions of attempting to
Christianize the Irish and subsequent missionary activities,

209 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

listing names, ecclesiastical communities related to him, his


disciples, dynasties, places, relics, festivities and more. Tírechán
visited Armagh and several places in Connacht. He studied
with Ultán moccu Conchobair in Ardbraccan, around 650,
and traveled to various places in Ireland, despite the actions
mentioned taking place in Meath and Connacht. Tírechán’s
work can be understood, if not as belonging, at least in relation
to the dindschenchas branch of the Seanchas Tradition, as its
emphasis is undoubtedly geographic. Such dimension is one of
the most important factors of Collectanea (BYRNE 1974).

From the list of bishops, priests, deacons, exorcists; the


knowledge that Tírechán had about the stories related to the
Loegaire, as well as about his daughters, including how the
author quantifies the years of this king; the fact that he saw
Tara with his own eyes; of having addressed the text ‘to the men
of Meath’, regardless of who these people were; of belonging
to Paruchia Patricii; but, above all, because of his relationship
to dindschenchas, the literature of the field has interpreted
that Collectanea did not derive its geographical, onomastic and
genealogical knowledge of texts from the Annals tradition, such
as those of Ulster, Inisfallen, and Cambriae, despite similar
structures. According to J. B. Bury, if Tírechán had accessed
known textual sources, he would have mentioned them, as
this would have represented a guarantee of authenticity
(BURY 1902).

Thus, on the contrary, the author believes that the only


source that Tírechán may have had before him when writing
his work was the book of his master Ultán, which was also a
collection of acta based on Patrick’s Confessio, in addition to the
patrician work itself, that he may have handled or had second-
hand knowledge. Versions of biblical texts must also have
been consulted by him. Bury believes, however, that Tírechán
did not transcribe Patrick’s journey from old documents, but
visited the places founded by the evangelizer and wrote what
he heard from the elders of these communities. In other words,
Collectanea’s main source would be a gathering of memories

210 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

from information collected locally by Tírechán himself (BURY


1902, p. 259-260). We believe we can say that Collectanea
was composed from the crossing between information received
mostly orally, as Bury pointed out, but also some textual
sources, although difficult to identify.

According to Catherine Swift, Tírechán wrote his work


recognizing the importance of Armagh, but not as a propagandist
of his preeminence (like Muirchú); instead, his objective was to
defend Paruchia Patricii from possible rivals in the second half
of the 7th century, which is why there are so many references
to the places that Patrick and his followers had visited
(SWIFT 1994). It is possible to interpret, then, that Tírechán
elaborated a narrative exploring his knowledge of dindschenchas
to justify Paruchia Patricii from one of the traditions in force in
that time.

In addition to identifying, systematizing and presenting


these memories and achievements of Patrick, which Tírechán
collected from the places he visited, there are some mentions in
his work that also give it veracity, considering the requirements
of the context. Early on, we find a short introduction to
Collectanea, written by, perhaps, Ferdomnach or one of his two
assistant scribes. On it, we can read ‘Tirechan episcopus haec
scripsit ex ore uel libro Ultani episcopi, cuius ipse alumpnus uel
discipulus fuit’, i.e., ‘Bishop Tírechán has written this, based
on the words and the book of bishop Ultán, whose fosterling
and pupil he was’ (Liber Ardmachanus, 9rb I ff, III.I). Here,
‘alumpnus uel discipulus’ has a double meaning. While it
indicates that Ultán was a mentor of Tírechán and took care
of his spiritual and religious life, he was also his teacher, since
he taught him the arts of writing in Ardbraccan. On the other
hand, to relate his work with Ultán means to say that, just as
he had an autorictas narrative, Tírechán, as his disciple, would
also have it (O’LEARY 1996).

For this reason, he says, for example, that ‘Inueni quattuor


nomina in libro scripta Patricio apud Ultanum episcopum’/‘I
have found four names for Patrick written in a book in the hands

211 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

of Ultán’ (Tírechán, Collectanea, 1 (I)). Tírechán was based not


only on the book written by Ultán. Just as he inquired of the
people he passed by, in the sense pointed out by Bieler, he
also learned from the words and teachings of his master, which
can be confirmed later, when he writes that ‘mihi testante
Ultano episcopo’/‘as bishop Ultán testified to me’ (Tírechán,
Collectanea, 1 (6)). Furthermore, Tírechán also states, at the
end of this part, that ‘omnia autem quase euenierunt inuenietis
in plana illius historia scripta’/‘You will find all that happened to
him written in the straightforward story of his life’. (Tírechán,
Collectanea, 1 (7)). According to Ludwig Bieler (2004, p. 39),
it is possible that this ‘plana historia’ is some kind of Patrick’s
primitive ‘Life’, probably based on his Confessio, that is now
lost.

Another important reference is the counting of time, which,


regardless of whether it is correct or not, made sense to the
community that received the work. Tírechán himself believed
in the description made, which was probably drawn from what
was heard from his interviewees. According to him, 433 years
passed between the ‘Passion of Christ’ to the ‘Death of Patrick’.
Loiguire would have reigned two or five years after Patrick’s
death and the duration of his kingdom must have been around
36 years (Tírechán, Collectanea, 2). Tírechán makes use
of his knowledge of Christian chronology to give it an Irish
interpretation, linking events known elsewhere with events
allegedly taking place in Ireland.

The author also does this with important themes in


Christian narratives, explaining them from their Irish language
equivalents. That’s what happens in: ‘In nomine Domini Dei
Patris et Filli atque Spiritus Sancti. +Iesu Christi benigni+ Hoc
autem dicitur in Scotica lingua Ochen’/‘In the name of the Father
and of the Son and of the Holy Spirit’. +the benevolent Jesus
Christ+ who is called in the Irish language Ochen Ísu Crist’.
(Tírechán, Collectanea, 4). According to Máire Ní Mhaonaigh,
the duo between Latin and Irish was very important in Medieval
Ireland, so readers were prepared for texts elaborated from

212 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

this conception (NÍ MHAONAIGH 2008). After all, as Brent Miles


(2011) explains, from the beginning, Irish literacy and textual
tradition developed at the same time in Latin and Vernacular.

Another similar example occurs in the twelfth section of


Collectanea, when Tírechán says that the ‘gentiles in sepulcris
armati’/‘the pagans armed in their graves’ would have their
weapons prepared ‘usque ad diem erdathe’/‘until the day of
the erdathe’ (Tírechán, Collectanea, 12 (2)). Here, the Latin
passage contains the Irish word ‘erdathe’, which Ludwig Bieler
(2004 p. 132) preferred to italicize in his translation of the
Tírechán text in English. Collectanea’s own author explains
what the word means. According to him, ‘apud magos, id est
iudicii diem Domini (according to the magicians [druids], that
is, the day of the Lord’s Judgment) (Tírechán, Collectanea, 12
(2)).

Tírechán also explains that when Patrick was baptizing


a man named Erc, they went ‘ad fontem Loigles in Scotica,
nobiscum ‘Vitulus Ciuitatum’’/‘to the well of Loigles in Irish,
and in our language ‘Calf of the cities’’ (Tírechán, Collectanea,
13 (3)).

A last example is the use of the Irish word ‘Ferta’ as


equivalent to the Latin ‘Relic’, meaning a tomb containing
the remains, but which, in Ireland of the time, was related to
ancestry and territorial demarcation. The excerpt reports that
the so-called pagans made tombs in the form of ‘fertae, quia
sic faciebant Scotici homines et gentiles, nobiscum autem relic
uocatur’/‘fertae, because this is what the Irish pagans used to
do, we nevertheless call relic’ (Tírechán, Collectanea, 26 (20-
1)). Tírechán knew very well what his audience expected and
often made this transition between Latin and Old Irish in his
work.

Tírechán finishes the fifth part of his work mentioning


‘Benignus episcopus, sucessor Patricii in aeclessia Machae’
(Tírechán, Collectanea, 6). In English: ‘Bishop Benignus,
Patrick’s successor in the church of Armagh’. Thus, Tírechán

213 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

shows that Armagh, an important location for Paruchia Patricii,


was established by Patrick himself and that we can locate his
successors until the present work. In sections six and seven
he elaborates, in the part called ‘De episcopis’/‘Concerning
bishops’ a list with many bishops. Some names are repeated,
such as Olcanus, Bernicius and Hernicius, which, according
to Ludwig Bieler (2004), may be an indication that Tírechán
copied this list as he found it, but that it may have been the
result of a compilation, by someone or some group that tried
to systematize several lists into one. Tírechán’s intention is to
defend Paruchia Patricii by giving it ancestry in some form,
dating it to the 5th century (the time of Patrick himself), and
linking it to the Armagh of his own time.

The fifteenth section of Tírechán’s work contains a reference


to a treaty between Patrick and the sons of Amolngid, with their
vassals and bishops. The guarantee that the treaty would be
fulfilled is Loíguire, son of Níall, something common according
to the traditions of the time. What draws the most attention
in the passage, however, is that, according to Tírechán, this
information was taken from Patrick’s own work: ‘ut in scriptione
sua adfirmat’/‘as he states in his own writings’ (Tírechán,
Collectanea, 15 (4)). It is a theme that appears in other
moments of Tírechán’s work, mentioning the known fragments
of Patrick’s Confessio, such as, for example, the revelation
of Victor the Angel, showing how Patrick would escape from
captivity (Patrick, Confessio, 17; Tírechán, Collectanea, 1
(4-5); also present in Vita Sanctii Patricii, by Muirchú, I, i.4)
and the mention to ‘silua Fochloth’/‘Wood of Fochloth’ (Patrick,
Confessio, 23; Tírechán, Collectanea, 14 (I-6); Muirchú, Vita
Sanctii Patricii, I, 7).

In the eighteenth excerpt of his work, Tírechán dialogues


with the possible readers of the narrative. At this point, we can
also observe both the conscious use of these veracity criteria
and the author’s methodological intentions. First, he says that
everything he narrated took place ‘in uestris regionibus’/‘in your
own regions’ (Tírechán, Collectanea, 18 (I)) that is, the region

214 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

of possible readers of the work. When there was an exception,


that is, the facts narrated occurred elsewhere, Tírechán justifies,
stating that he used this resource because it was relevant to his
work: ‘in utilitatem laboris mei’ (Tírechán, Collectanea, 18 (I)).
In addition, all of these passages were learned from ‘senioribus
multis’/‘many elders’ (Tírechán, Collectanea, 18 (I)), probably
related to Paruchiae Patricii and interrogated by him and also
by Bishop Ultán Moccu Conchubair himself, who instructed him.
Again, Tírechán uses his master’s autorictas as a guarantor
that his narrative is trustworthy. He ends the passage saying
that ‘Omnia autem quae scripsi ab initio libri huius semplicia
sunt; omne autem quod restat strictius erit’/‘All the things that
I have written from the beginning of this work are unspecified;
all that remains will be more specific’. (Tírechán, Collectanea,
18 (5)). That way, Tírechán’s audience can follow him, knowing
exactly what to expect from his work.

The author continues to address similar aspects in the


following excerpts. At twenty-eight, he claims that between
the death of Patrick and the baptism of Cíarán, 140 years
have passed. As a guarantee of reliability, Tírechán says that
people can believe him because ‘ut peritissimi numerorum
aestimant’/‘those most expert [in chronology] estimate’
(Tírechán, Collectanea, 28 (3)). Another similar excerpt, of
conversation between Tírechán and his possible audience, is in
what he states that ‘Nomina quoque uirorum nolo dicere nissi
duo principes Bernicius et Hernicius episcopi, et sororis nomem
Nitria’/‘I do not intend to give the names of the men, except the
two most important ones, the bishops Bernicius and Ernicius,
and the name of their sister, Nitria’ (Tírechán, Collectanea, 29
(1)). Again, the audience has tools to follow Tírechán’s speech,
as he himself provides them.

In the next section, Tírechán says that Patrick went


to Selc together with several bishops and rested on the
spot among the stones. According to the author, these
are the stones ‘in quibus scripsit manus sua literas, quas
hodie conspeximus oculis nostris’/‘on which his hand wrote

215 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

letters, which (even) today we may see with our eyes’


(Tírechán, Collectanea, 30 (I-2)). He was referring, probably to
something that could be ascertained by the audience to which
the narrative was intended. Tírechán ends the section with a
new list of people who accompanied Patrick.

We shall investigate a final example of these references.


This is the fragment number thirty-eight. On it, Patrick would
have gone to Mount Egli to fast for ‘quadraginta diebus et
quadraginta noctibus, Mosaicam tenens disciplinam et Heliacam
et Christianam’/‘for forty days and forty nights, following the
example of Moses, Elijah and Christ’ (Tírechán, Collectanea, 38
(1)). In other words, Tírechán invokes known biblical examples
to the construction of the representation of the character object
of his narrative.

In ‘Notas suppletoriae ad Tirechanum’/‘Supplementary


notes to Tírechán’, the narrative form follows the same line of
reasoning as the rest of Tírechán’s work, which had also already
been adopted by Muirchú, presenting Patrick’s death in a similar
way to that of Moses (Ferdomnach, Liber Ardmachanus, Notae,
fol. 15vb/16ra, [III 3] 53). According to the text, Patrick would
have four things similar to Moses: 1) received a message
from an angel burning in a bush; 2) fasted 40 days and 40
nights; 3) lived 120 years; 4) nobody knows where his body is
(Ferdomnach, Liber Ardmachanus, Notae, fol. 15vb/16ra, [III
4] 54). He has gathered characteristics that made sense to the
audience receiving the work. There is no evidence that Tírechán
wrote these Notae, since the Collectanea text ends with Patrick
arriving in Cashel (Tírechán, Collectanea, 51 (4)). However, we
also have no reason to doubt it, since the language adopted
is similar. According to Bieler (2004, p. 45), Tírechán would
be the author of the passage. From philological evidence, he
concluded that the author of Collectanea would also be the
one who wrote Notae, [III 2] and [III 4], but not [III 7], which
may have been added by Ferdomnach himself or one of his two
scribes. In any case, it is possible that the relationship between
Moses and Patrick was something common in the tradition of

216 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

the period, so Muirchú and Tírechán adopted it and Ferdomnach


did not see any incongruence in that, despite the fictional age,
closer to the mythical narratives.

As we have already said, shortly after the Ogham Stones


were written, the first texts written in Ireland were the two
works by Patrick, Confessio and Epistola ad Milites Corotici, in
the 5th century, in Latin, and, in Irish, Amra Choluimb Chille, in
the final years of the 6th century. From that moment, several
narratives were developed in Ireland; according to Brent
Miles, ‘there was an Irish fascination with the tres linguae
sacrae’ [Hebrew, Greek, and Latin] (MILES 2011, p. 34).
Numerous works related to themes of the so-called classical
world have been reframed in Late Ancient and Medieval
Ireland: about Alexander the Great; one adaptation of Aeneid,
by Virgil; one based on Bellum Civille, by Lucano; another
on Historia adversum paganos, by Orosius; one based on
Metamorphoses, by Ovid; to name just a few examples
(O’CONNOR 2014, p. 1-24; MILES 2011; SANTOS 2016, p.
93-110). According to Elva Johnston, Ireland was ‘an island
of tradition and of innovation; its culture was a creative
synthesis of the old and new’ (JOHNSTON 2013, p. 28).
Irish literature would have flourished from a learning system
that had an oral culture as its basis. Thus, in Ireland, orality
and literacy were in continuous interaction (JOHNSTON 2013,
p. 157; SANTOS 2016, p. 93-110). The works of Muirchú and
Tírechán dialogued with this same tradition, which, as we have
seen, does not make a very clear distinction between Literature
and History.

Vita Sancti Patricii, by Muirchú, has a more explanatory


prologue than that of Tírechán’s Collectanea, in relation to
the historiographic procedures adopted. It is also possible to
state that Tírechán’s work is not a ‘Vita’, in the biographical or
hagiographic sense, as is the text by Muirchú. In hagiographic
terms, Muirchú’s work would be closer than expected to the
genre, with more emphasis on miracles and similar actions.
Tírechán’s, however, would be different not only from Vita Sancti

217 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

Patricii, but from other medieval hagiographies, as it would be


more ‘pragmatic’. According to O’Hagan (2011, section 3), the
main objective of the work would be concentrated on ‘bringing
Patrick into contact with named people and places rather than
on illustrating miracles’.

In Muirchú, there is a concern to emphasize Armagh’s


preeminence over other rival communities, while in Tírechán,
it is more to defend Paruchia Patricii from those who question
it as a legitimate tradition. Tírechán’s work, as we have
pointed out, is more geographic, genealogical, onomastic.
Muirchú emphasizes Patrick and his actions; in Tírechán,
however, Patrick gains meaning in association with the
places he visited. The Collectanea text is close to the
dindschenchas branch of the Seanchas Tradition, and at times
it recalls that of the great Irish epic, written later, Táin Bó
Cuainlge, in which this concern with a systematization of places
also appears. Despite the differences, however, both writers
mobilized the historiographic elements available at the time for
the elaboration of their works.

Final considerations
From the Greek-Latin-Hebrew triangulation, without
disregarding the development of writing in the Irish language
since the last years of the 6th century (especially the duo
formed between Latin and Irish, a characteristic that was
already present in the bilingual and bilateral Ogham Stones
from Wales, Cornwall and the Isle of Man) writers with different
skills produced many narratives in Early Christian Ireland,
mainly in the 7th century, like Muirchú and Tírechán. The
great historiography manuals, even those that offer some
space for premodern historiographies, have ignored this
Irish contribution (DELIYANNIS 2003, p. 1-16; MOMIGLIANO
2004; MARINCOLA 2007). Even among the patriciologists and
historians of Medieval Ireland, Muirchú and Tírechán were
classified as ‘fiction producers’, as it was believed that they
would not collaborate in the investigation and construction

218 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

of the image of a ‘Historic Patrick’, something that began to


be revised only in 1994, but certainly from 2006, due to the
contributions of David Howllet.

Thus, such works were seen as examples of a smaller


genre, or as having no historiographical value, since, for a
modern perspective, perhaps an empiricist historicist, texts like
these would be examples of an antiquarianism characteristic of
premodern writings, at most close to Historia Magistra Vitae,
a generic name used to refer to Ancient and, sometimes,
Medieval historiography, disregarding the thematic multiplicity
of what was produced in this specific chronological arc. This
way, Tírechán and Muirchú would not contribute much to
historical knowledge.

If it is true that Ireland never produced a Beda or a


Gregory of Tours, it had Muirchú and Tírechán (BYRNE 1974).
Both Vita Sancti Patricii and Collectanea are examples of the
historiography produced there. If modern writers have a problem
separating literary genres and subgenres within a text, if there
are nuisances generated by the presence of fictional elements
in historiographical texts, this concerns modernity itself and has
never been a problem for the writing tradition in which Muirchú
and Tírechán were inserted. The historiographical production
in Ireland took place in relation to it. There was no separation
between poetry and history; not even the dichotomy between
‘fact’ and ‘fiction’ was relevant. As Erich Poppe once said, if for
the modern audience these texts from Early Christian Ireland
may be ‘literary’, ‘medieval Irish writers considered then to be
history’ (POPPE 2014, p. 139).

The rules followed by Irish historiography of the time were


different from ours. If we have difficulties with fiction within
the historiographical discourse, with poetry along with the
facts, with the description of emotions, with digressions for
the purpose of entertainment, with the need for genealogies,
onomastic indices, specific rhetorical and aesthetic patterns,
related to the needs of the audiences of that context, this was
never a problem there. As Joan Rander pointed out, ‘what we

219 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

today might see as contradictory modes of thought and belief


[…]`, did not necessarily seem contradictory to the scholars
of Medieval Ireland’ (RANDER 1999, p. 325). This is how we
must understand both Muirchú’s and Tírechán’s work, after all,
they were responsible for the historiographical production of
the time and, as Francis Byrne (1974, p. 138) once said about
Ireland: ‘The muse of history here never escaped from the
swaddling bands of senchas’.

The Irish case, once it has been considered and respected


for its specificity, can serve as an example, or at least an
inspiration, for helping us to rethink and reevaluate other Late
Ancient, Medieval and Late Medieval historiographies, both
in Europe and elsewhere. The study of these conflicts, limits,
challenges and approaches based on the relationship between
facto and fictio, tradition and modernity, history and poetry,
can change the way we view pre-modern historiographies.

220 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

REFERENCE

BHREATHNACH, E. ‘Seanchas the key to history in


medieval Ireland’. Royal Irish Academy. 2013. Lecture
21 from Humanities Serie.

BHREATHNACH, E. Ireland in the Medieval World.


Ad 400-1000. Four Courts Press, Dublin, 2014.

BHREATHNACH, E. The Seanchas tradition in late medieval


Ireland. In: BHREATHNACH, E. & CUNNINGHAM, B. Writing
Irish History: The Four Masters and their World. Dublin,
2007.

BIELER, Ludwig. The Life and Legend of Saint Patrick.


Dublin: Clonmore & Reynolds, 1949.

BIELER, Ludwig. The Patrician texts in the book of


Armagh. Dublin, 2004.

BINCHY, Daniel. Patrick and his Biographers: Ancient and


Modern. Studia Hibernica, Dublin, n. 2, p. 7-173, 1962.

BOARD OF TRINITY COLLEGE DUBLIN, 2011. The Book


of Armagh: Dublin, Trinity College, MS 52. The Saint
Patrick’s Confessio Hypertext Stack Project. Royal
Irish Academy. Board of Trinity College Dublin. Available
on: www.confessio.ie. Accessed in: 21 july 2018.

BREATNACH, Caoimhín. ‘Rawlinson B 502’. In: Seán Duffy


(Ed.). Medieval Ireland. An Encyclopedia. Abingdon; New
York: Routledge, 2005. p. 400.

BROWN, Peter. The Cult of the Saints: Its Rise and


Function in Latin Christianity. Chicago: The University of
Chicago Press, 1981.

BURY, J. B. ‘Tírechán’s Memoir of St Patrick’. English


Historical Review, n. 17, p. 235–267, 1902.

221 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

BYRNE, Francis John. Seanchas: the nature of Gaelic


historical tradition. In: J. G. Barry (ed.). Historical Studies
9, Belfast, 1974. p . 137-59.

CARNEY, James. The problem of Saint Patrick. Dublin:


DIAS, 1961.

CLANCY, Thomas Owen. ‘Dallán Forgail’. In: KOCH, John


C (Ed.). Celtic Culture - A Historical Encyclopedia. Santa
Barbara; Denver; Oxford: ABC-CLIO, 2006. p. 557.

DELIYANNIS, Deborah Mauskopf. Historiography in the


Middle Ages. Leiden, Brill, 2003.

ETCHINGHAM, Colmán. Church Organization In Ireland


A.D. 650 to 1000. Maynooth: Lagin, 1999.

FERDOMNACH. Liber Ardmachanus. Edited and


Translated by GWYNN, J. (ed.). Liber Ardmachanus: The
Bookf of Armagh, with Introduction and Appendices.
Dublin, 1913.

GROENEWEGEN, Dennis (Project director). CODECS -


Online database and e-resources for Celtic Studies.
Última edição: 27 de Maio de 2015. Available on: http://
www.vanhamel.nl/codecs/Dublin,_Trinit y_College,_
MS_52. Accessed in: 21 july 2018.

HOWLETT, David. Muirchú Moccu Macthéni’s ‘Vita


Sancti Patricii’ Life of Saint Patrick. Dublin: Four Courts
Press, 2006.

HOWLETT, David. The book of Letters of Saint Patrick


the Bishop. Dublin: Four Courts Press, 1994.

JOHNSTON, Elva. Literacy and Identity in Early


Medieval Ireland. Wooldbridge, The Boydell Press, 2013.

222 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

JONES, Michael E. Reviewed work: Who was Saint Patrick?


By E.A. Thompson. The North American Conference on
British Studies, v. 19, n. 2, p. 209-210, 1987.

KELLY, Fergus. An Old-Irish text on court procedure.


Peritia, v. 5, 1986. p. 74-106.

MARINCOLA, John. A Companion to Greek and Roman


Historiography. Blackwell, 2007.

MILES, Brent. Heroic Saga and Classical Epic in


Medieval Ireland. Cambridge: DS Brewer, 2011.

MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da


historiografia moderna. Bauru; São Paulo: EDUSC,
2004.

MUIRCHÚ MOCUU MACTHÉNI. Vita Sancti Patricii. Edição


Latina e em Língua Inglesa do The Saint Patrick’s Confessio
Hypertext Stack Project. Royal Irish Academy. Available
on: www.confessio.ie. Accessed in: 30 oct. 2019.

MUIRCHÚ MOCUU MACTHÉNI. Vita Sancti Patricii.


Edited and translated by David Howlett. Muirchú Moccu
Macthéni’s ‘Vita Sancti Patricii’ Life of Saint Patrick. Dublin:
Four Courts Press, 2006.

NÍ MHAONAIGH, Máire. The literature of medieval Ireland,


800–1200: from the Vikings to the Normans. In: KELLEHER,
Margaret; O’LEARY, Philip (Eds.). The Cambridge History
of Irish Literature - Volume 1. Cambridge: Cambridge
University Press, 2008. p. 32-73.

Ó CRÓINÍN, Dáibhí (ed). A New History of Ireland -


Prehistoric and Early Ireland. Oxford: Oxford University
Press, 2005. p. 182-234.

223 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

O’CONNOR, R. ‘Irish narrative literature and the Classical


tradition, 900-1300’. In: O’CONNOR, R. (ed.). Classical
Literature and Learning in Medieval Irish Narrative.
D. S. Brewer, 2014. p. 1-24.

O’HAGAN, Terry. “Tírechán: biography and character


study”. In: HARVEY, Anthony [project leader], Jane Conroy
[principal investigator], and Franz Fischer [principal
researcher], Saint Patrick’s Confessio Hypertext Stack
Project. Online: Royal Irish Academy, 2011. Available on:
www.confessio.ie. Accessed in: 30 oct. 2019.

O’LEARY, Aideen. An Irish Apocryphal Apostle: Muirchú’s


Portrayal of Saint Patrick. Harvard Theological Review,
Massachusetts. v. 89, p. 2, 1996.

O’LOUGHLIN, Thomas. ‘Colum Cille, St’. In: KOCH, John


C (Ed.). Celtic Culture - A Historical Encyclopedia. Santa
Barbara; Denver; Oxford: ABC-CLIO, 2006. p. 468.

O’LOUGHLIN, Thomas. “Muirchú’s Tara-event within its


background as a biblical ‘trial of divinites’”. In: CARTWRIGHT,
Jane. Celtic Hagiography and Saint’s cult. Cardiff:
University of Wales Press, 2003.

O’LOUGHLIN, Thomas. Muirchú’s poisoned cup: a note on


its sources. Ériu, Dublin, v. 56, RIA, p. 157-162, 2006.

PATRÍCIO. Confessio e Epistola. Traduzido por


Dominique Santos. São Patrício por ele mesmo:
Confissão e Carta aos Soldados de Coroticus. The Saint
Patrick’s Confessio Hypertext Stack Project. Royal Irish
Academy. Available on: www.confessio.ie. Accessed in: 30
oct. 2019.

PATRICK. Confessio. Edited and translated by David


Howlett. The Book of Letters of Saint Patrick the Bishop.
Dublin: Four Courts Press, 1994.

224 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

PATRICK. Confessio. Edited and translated by Ludwig


Bieler. Libri Epistolarum Santi Patricii Episcopi, Royal Irish
Academy em Dublin, 1993. Available on: www.confessio.ie.
Accessed in: 30 oct. 2019.

POPPE, Erich. Narrative history and cultural memory in


medieval Ireland. Some preliminary thoughts. In: REKDAL,
Jan Erik; POPPE, Erich (eds). Medieval Irish Perspectives
on Cultural Memory. Münster: Nodus Publikationen,
2014. p. 135-176.

RANDER, Joan. Writing History: Early Irish Historiography


and the Significance of Form. Celtica, v. 23, p. 312-325,
1999

SANTOS, Dominique; SOUZA, Anderson de. Tempo,


Narrativa e História na Vita Alfredi Regis Angul Saxonum
do galês Asser (Séc. X). História e Cultura, v. 3, n. 5,
jan.-jun., 2015.

SANTOS, Dominique. ‘Apresentação ao Dossiê ‘A Escrita da


História na Antiguidade’’. Revista de Teoria da História,
ano 7, n. 13, p. 7-18, 2015.

SANTOS, Dominique. A Tradição Clássica e o


Desenvolvimento da Escrita Vernacular na Early Christian
Ireland: Algumas Considerações sobre a Matéria Troiana
e a Togail Troí. História e Cultura, Franca, v. 5, n. 1, p.
93-110, 2016.

SANTOS, Dominique. As elaborações retóricas da tradição


hiberno-latina: uma leitura da Confessio de São Patrício.
Rètor- Revista da Associação Argentina de Retórica, v. 3,
p. 86-106, 2013b.

SANTOS, Dominique. Patrício: A Construção da Imagem


de um Santo/How the Historical Patrick Was Transformed
into the St. Patrick of Religious Faith. 1. ed. New York;
Lampeter: The Edwin Mellen Press, 2013a.

225 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
Dominique Santos

SANTOS, Dominique. Seanchas - an important irish


tradition related to memory, history and historiography.
OPSIS, v. 18, p. 44-60, 2018.

SANTOS, Dominique.; FARRELL, Elaine. Táin Bó Cúailnge -


Um Épico Irlandês. In: Dominique Santos. (Org.). Grandes
Epopeias da Antiguidade e do Medievo. 1ed. Blumenau:
Edifurb, 2014. p. 220-241.

SIMMS, Katharine. Charles Lynegar, the Ó Luinín family


and the study of seanchas. In: BARNARD, T.; Ó CRÓINÍN,
Dáibhí; SIMMS, Katherine (eds). A miracle of learning:
studies in manuscripts and Irish Learning. Essays in honour
of William O’Sullivan. Aldershot, 1998. p. 266-83.

SIMMS, Katharine. From kings to warlords: the changing


political structures of Gaelic Ireland in the later Middle
Ages.Woodbridge: Boydell, 1987.

SWIFT, Catherine. Tírechán’s Motives in Compiling the


“Collectanea”: An alternative interpretation. Ériu, v. 45, p.
53-82, 1994.

THOMPSON, E.A. Who was Saint Patrick? New York: St.


Martin’s Press, 1986.

TÍRECHÁN. Collectanea. Edited and Translated by Ludiwg


Bieler. The Patrician Texts in the Book of Armagh. Dublin,
1979.

WARD-PERKINS, Bryan. The Cult of Saints. 2014-2019.


Online. Available on: http://cultofsaints.history.ox.ac.uk/.
Accessed in: 30 oct. 2019.

226 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
History and Historiography in Early Christian Ireland

ACKNOWLEDGMENT AND INFORMATION

Dominique Santos
dvcsantos@furb.br
Universidade de Blumenau
Blumenau
Santa Catarina
Brasil

This article is related to the research project


465/2019/Propex-FURB ‘Modelos de Santidade na
Antiguidade Tardia: uma análise das representações
de [São] Patrício na Tirechani collectanea de sancto
Patricio’.

RECEIVED IN: 30/OCT./2019 | APPROVED IN: 5/MAY/2020

227 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 197-227 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1548
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Historiography at the Crossroads: Eschatological


Expectations, Biblical Exegesis, and Astronomical
Cycles in the times of Charlemagne
Historiografia na encruzilhada: Expectativas escatológicas,
exegese bíblica e ciclos astronômicos nos tempos de Carlos
Magno
Dmitri Starostin
https://orcid.org/0000-0001-9448-834X

ABSTRACT
This article suggests that the Carolingian effort
in resetting the calendar of history at the time of RESUMO
Charlemagne’s coronation to the year 6000 from the
Este artigo sugere que o esforço carolíngio em redefinir
Creation and 801 from the Incarnation of Christ must
o calendário no momento da coroação de Carlos Magno
be considered as only one of the period in the cycle of
para o ano 6000 da Criação e 801 da Encarnação de
the processes of realigning, resetting and redeploying
Cristo deve ser considerado como apenas um dos
the calendar since the times of Augustine. During this
períodos no ciclo dos processos de realinhamento,
period, the calculations necessary for the construction of
redefinição e reimplantar o calendário desde os tempos
the calendars and timelines lead to concerns regarding
de Agostinho. A primeira vez em que estudiosos como
the end of history and the “end of times”. The first time
Jerônimo e Agostinho tiveram que abordar o final do
scholars like Jerome and Augustine had to address the
calendário da história sagrada universal foi durante
ending of the calendar of the universal sacred history
os séculos IV e V. O período carolíngio testemunhou a
that the Christians inherited from the Old Testament
segunda “época do acerto de contas”, quando a data de
was during the 4th and 5th centuries. The Carolingian
Eusébio para a Encarnação do Anno Mundi 5199 levou
period witnessed the second “time of reckoning” when
os estudiosos a reconsiderar o significado da regra
Eusebius’ date for the Incarnation of the Anno Mundi
carolíngia por volta do ano 801, ou seja, o Anno Mundi
5199 prompted scholars to reconsider the meaning of
6000.
the Carolingian rule around the year 801, that is, the
Anno Mundi 6000.

KEYWORDS
Eschatology; Carolingian historiography; Carolingian
culture
PALAVRAS-CHAVE
Historiografia carolíngia, escatologia, cultura carolíngia

229 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

Introduction
The investigation of the Carolingian historical worldview has
attracted scholars’ attention since they were shown to emphasize
history’s important position in the process of constructing
modes of communication between the rulers, the magnates and
the ruled (MCKITTERICK 2004, p. 104; REIMITZ 2012). It has
been argued that the knowledge of the past becomes critically
important for the self-representation of the educated elite who
was intentionally charged or unintentionally urged to write
about the Carolingians and to envision their place in European
affairs. The chronicles (like that of the Continuator of Fredegar,
for example) were organized and reorganized to address the
political aspirations of Pippin and Charlemagne (MCKITTERICK
2000, p. 165). History became part of the narratives of power
that were deployed to construct and maintain the Frankish
kingdom’s political identities (COLLINS 1994; MCKITTERICK
2000; BARNWELL 2005; GANZ 2005; INNES 2000). This article
approaches the problem of history as a way of communicating
the message of power from one standpoint: the close connection
between Christian exegesis, the science of constructing a
universal calendar of sacred history, and the concept of history
as it was expressed in traditional narrative stories. In this the
article further analyzes the Carolingian historical worldview
as one based on the concepts of the universal Christian
history with a strong foundation in the biblical exegesis. The
connection between the timescale of universal Christian history
and the ways of constructing self-identification within it will
be examined as part of thinking of the past in terms of the
balance between linearity and cycles, which were, as it will be
argued, the underlying mode of thinking and the algorithm of
constructing concepts and narratives of history.

230 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

Einhard and the time of sacred history


Main narrative historical sources like the “Vita Caroli Magni”
of Einhard and the stories of Thegan, Astronomer and Nithard
were shown to represent the “short-term” historical outlook that
was rooted in discussing only the events of the most recent past
despite the fact that the model for such writing was borrowed
from Suetonius and perhaps influenced by other Late Antique
Roman authors (THEGANUS 1995; ASTRONOMUS 1995; GANZ
2014; NOBLE 2009). Despite this widespread interest in the
Carolingian writings concerning history, themes and moments
that still warrant further investigation are scattered in the
well-studied texts. An excerpt in particular, namely the first
sentences of Einhard’s introduction, has been studied regarding
this worldview, but not its relation to the concepts of universal
Christian history and particularly the way in which it found its
expression in specialized calendars containing references to the
Creation and the Incarnation eras. Although Vita Caroli Magni
has been studied in various contexts, (LÖWE 1983; PATZOLD
2011; HOLDER-EGGER 1912; GLENN 2011; GANZ 2007,
2005; SCHERBERICH 2006) this short passage deserves to be
investigated once again in light of the new approaches to the
Carolingian sense of history that have appeared when scholars
began to look at them with grounds on the calendric knowledge
that in its own had received a significant boost during the rule
of Charlemagne (BORST 1998; MEYVAERT 2002; ENGLISCH
2010). This introductory passage is as follows:

I have been careful not to omit any facts that could come to my
knowledge, but at the same time not to offend by a prolix style
those minds that despise everything modern, if one can possibly
avoid offending by a new work men who seem to despise also
the masterpieces of antiquity, the works of most learned and
luminous writers. Very many of them, l have no doubt, are men
devoted to a life of literary leisure, who feel that the affairs of
the present generation ought not to be passed by, and who do
not consider everything done today as unworthy of mention
and deserving to be given over to silence and oblivion, but are
nevertheless seduced by lust of immortality to celebrate the

231 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

glorious deeds of other times by some sort of composition rather


than to deprive posterity of the mention of their own names by
not writing at all.

Since this excerpt raised the dichotomy of the recent events


and the events that had long passed, I argue for its relevance
in making it part of the practices required to reconcile the
Creation era and its interpretation to the count of years and the
meaning of the Incarnation era, and adjusting the theological
interpretation of them both to the predicaments that the Roman
empire faced in the 4th and 5th centuries and that the Frankish
kingdom faced in the world that had changed with the coming
of Islam.

The prologue of Einhard’s “Life of Charles the Great” is


remarkable for better understanding the structure of the sense
of the past that Carolingian scholars constructed and helped
proliferate during this period. The apology for writing recent
history that Einhard voiced in these sentences is notable for the
fact that one may sense in it a dichotomy that was subdued in
or uncommon to the writings of historians in both Late Antiquity
and the Middle Ages. This is the dichotomy of “modernity”
in the sense of contemporary affairs and the past that was
not as distant in terms of the era of Creation, but which was
nevertheless considered a different epoch by historians. This
earlier past might seem to us unworthy of being thought of as
far removed from contemporary affairs, but for Einhard it was
a distant matter that stood contrary to the affairs of his own
lifetime. It is interesting that in this passage the biographer
of Charlemagne clearly showed that he was aware of the long
history that preceded the emergence of the Frankish kingdom
and that it was likely that he kept in mind a long process of
historical events that had began, perhaps, with the history of
the Roman empire. It is likely because his attitude towards
Merovingians was openly critical and one might feel warranted
to argue that the Frankish history during the time of this
dynasty’s rule might not have been imagined by this author as
the model. This distinction can be seen as having two different

232 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

aspects, a traditionally reserved self-assessment in contrast


to the preceding classics of the genre that was common to
many early medieval historians and, in addition to it, the
assessment of the importance of peculiar historical periods to
the general sense and plan of history. While the first aspect
of this attitude to the writing of history has been noted and
studied by modern scholars, the second, I suggest, is not a
phantom of our understanding and it is indeed visible in the
background of his work. And in this case I am not just referring
to Suetonius as the classical example, which Einhard sought
to imitate. I suggest that, in this case, he might have referred
to the universal Christian history that he thought necessary to
have in mind at least virtually, even though he was writing the
history of recent events. It is, therefore, interesting, that in
undertaking a complex work, wherein he sought to capture an
important period in the history of the Frankish kingdom, Einhard
operated within two frames of reference, the idea of distant
history in general, which might have meant in practical terms
the history of the Mediterranean in the times of the Roman
empire, and current history, which was for him the history of
the Pippinids and that of Charlemagne in particular.

This suggests that further investigation is required regarding


this distinction between long-term history and the Carolingian
“now”. In this paper, by looking at the connection between
history and biblical exegesis related to the era of creation
and the “Anno mundi”, I will suggest two points. On the one
hand, I argue that the ability to manipulate the discussion of
the historical periods of universal history came from a very
specific skill to manipulate the biblical paradigms of time, the
skill that was constructed in the Carolingian period on the solid
foundation of Late Antique and early medieval scholarship. I
suggest that hidden in the preface of Einhard was a complex
science of biblical exegesis and time reckoning, furthering
the idea that the biography of Charlemagne was constructed
with grounds on sacred history (BECHT-JÖRDENS 2008). But
I will seek to connect this attitude regarding time in the Vita
of the Carolingian emperor not to the general perception of

233 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

the Christian history, but to the particular awareness and


the skill to calculate the length of time from the beginning of
sacred history and of the Creation, to the Incarnation and to
the Apocalypse. I argue that Einhard’s historical worldview was
correlated with the eschatological concerns and the search to
create the computus for which his time and his contemporaries
were known. My approach will pay more attention to the
specific computistic skills of measuring time of the sacred
history among the people surrounding Einhard rather than to
the general practice of reading the Bible. On the other hand, in
this preface the renewed interest towards the fashioning of the
Carolingian “today” by way of biblical metaphors was shown
to its maximum extent. In fact, I argue that not only were the
names of the biblical characters replayed in the narratives that
accompanied the rituals of the court, but also entire periods
associated with the beginning and the end of times.

This distinction between the time of Creation and the


“history of today” would have remained of interest only to the
specialists in the modes of writing history if it had no relevance
to the current affairs of the Carolingian kingdom. And, in light of
recent studies, the affairs that seemed contemporary to Einhard
were shown to be quite controversial from many standpoints.
The long-term processes of the construction of the Carolingian
monarchy were interspersed with short-term shortcomings.
The last decade of Charlemagne’s rule came to be considered
not as a success, but also as the ultimate failure of the Frankish
king’s rule, and the disenchantment experienced by magnates
with Charlemagne’s campaigns was acknowledged in studies
(GANSHOF 1971; BRUNNER 1979). Even if the claims of
significant “aristocratic opposition” to the Carolingian authority
are an overstatement, the clear fatigue of aristocrats and the
population cannot be denied. The pressure that the Frankish
king’s campaigns put on Frankish society was shown to be
considerable, as it might have led to a significant demographic
crisis among the free landowning Franks (REUTER 1990). Thus,
scholars noted that many stories contain signs of alternative
visions of the past that saw conflict rather than consensus in

234 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

the relations between the Frankish king and local magnates


(BRUNNER 1983, p. 22). During the beginning of his reign,
the first thing that the son of Charlemagne Louis the Pious did
was to discharge of all treasures his father had accumulated,
giving away the gifts the king of the Franks had gathered in the
course of his successful campaigns (THEGANUS 1995, Chap. 8).
Einhard, whose main prejudice was believed to be directed
towards the Merovingians, and even more so, Thegan, was
writing in a period when the image of Carolingians themselves
had not yet settled down (MCKITTERICK 2000; MCKITTERICK
2004). In other words, the history of Charlemagne had not yet
become part of the narrative built into the scheme of universal
sacred history. Although his treatment of Charlemagne was
considered uncontroversial, the matter of what picture of
“today” it showed may be reconsidered and investigated
again in light of the inconsistencies in the presentation and
continuous support for the Pippinids. Apologizing to his readers
for discussing the recent events, he might have implied that
they could have been interpreted as too contemporary. This
might have been an apology for the lack of balance between
the “history of today” and the schemes of universal history,
which by that day’s standards might have been assumed to
be played out in a way that implied the ability to manipulate
eschatological exegetics.

This suggests that the historical image of Charlemagne’s


rule had already stabilized by the time of Einhard. I propose
that that was due to the significant reshaping of calendars
in this period due to the old Easter tables running out and
due to the fact that the overall feeling of the historical epoch
was closely related to the expectations of the year 6000 AM.
The signs that had been discussed as indicating the upcoming
Millenial kingdom were widely used by the educated people in
the Frankish kingdom (PALMER 2011, p. 1317). The Admonitio
generalis in 789 warned of the pseudo doctores who would come
in the new times (tempora novissima) (BORETIUS 1883, c. 63).
Alcuin, in his Vita Vedasti, warned of the modern “dangerous
times” (tempora periculosa) and the new doctrines that the

235 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

“new sect” was attempting to impose on scholars of various


disciplines (ALCUIN 1844, col. 666; PALMER 2011, p. 1317).
This was not the discourse that could be employed by Einhard
in the life of Charlemagne. This passage suggests that Alcuin
was among those people who took the discussions of the year
800 as the Anno mundi 6000 seriously and replayed it in the
discourse that described the rituals of his own community. This
statement of the Anglo-Saxon correlated with the awareness of
the end of the 6th millenium since creation that some scholars
might have experienced in this period (LANDES 2000; HEIL
2000, p. 100–103; PALMER 2014, p. 130; REIMITZ 2004, p.
198; BORST 1972, 1992; WARNTJES 2018, p. 51; NELSON
2019, p. 381). The second mention of “false doctors” was also
interpreted as supporting the dominance or at least presence
of the eschatological framework in the minds of Carolingian
scholars, as eschatological concerns and the ways of thinking
about the end of times were critically important for the
Carolingian scholars’ self-perception and worldview. I would
argue that searching for the eschatological context in the second
case where Alcuin talks about the present times is proof of that.
Interestingly, in this way the subject of Apocalypse, which had
been constructed as the dramatic end for the longer periods
of sacred history, became present in the everyday life of an
intellectual. The issue was not the fact that this Apocalypse
was “now”, but the fact that the biblical history was drawn
closer to today and made part of today’s historical discourse.
In this fashion, sacred history was played out in front of the
eyes of Alcuin and the addressee of his letter, Charlemagne.

Chronology and Time Reckoning in Early Medieval


Europe
The process of constructing and conceptualizing the
calendar of universal history in the Carolingian period needs
to investigated further through the lens of its connection to
exegesis, since it heavily depended on Late Antique calendric
concepts and since the calendric science at this time was

236 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

inseparable from the works on the church’s doctrine. Irish


scholars were the ’bridge’ that carried over the methods and
approaches of biblical exegesis from Antiquity in its relationship
to the calculations of the time of sacred history and the annual
sacred holidays (STANSBURY 2016; WARNTJES 2016; MEEDER
2016). Critical to the construction of historical worldview in this
age was the common knowledge of early medieval scholars
that the symbols used in the Bible were a concession to human
weakness and their acknowledgment of the fact that they
needed to “read between the lines” to transform these symbols
into the concept of history (JAMES 2000).

Such an approach requires examining the traditions and the


cardinal shifts in scholarly analysis of the matters of chronology
and time reckoning. In addition to the classical works on
time reckoning (JONES 1934; JONES 1943; STROBEL 1977;
STROBEL 1984), studies on the calendar and the cycles of time
have recently attracted significant attention from scholars.
(See the overview in WARNTJES 2011a, 2017) The renewed
interest towards manuscripts such as the Munich computus
(BSB Clm 14456) and the Cologne Computus (Kölm Dom- und
Stadtbibliothek Hs. II-83) brought scholars in contact with the
treasure of calendric knowledge and spurred the appearance
of a large number of publications (WARNTJES 2012). The first
works that addressed this subject in the late 20th century after
a long break still operated within the dichotomy of the educated
and mathematical notions of counting time versus the legendary
and mythological representations thereof. (STEVENS 1985).
They insisted on the fact that these works contained truthful
representations of the concepts that were available to the
science of Late Antiquity, and thus vindicated early medieval
scholars (STEVENS 1972, 1979, 1993, 1995b,a; BERGMANN
1991; WARNTJES 2016). This need to prove the aptitude of the
latter in the matters of natural philosophy had been deemed
unnecessary by the works that appeared at the turn of the
millennium (SPRINGSFELD 2002, 2004, 2010). These works
showed the extent of the interest that scholars of the early
medieval age exhibited to the matters of time reckoning and

237 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

proposed that their calendric science needs no vindication


since it was believed to represent a true reform. These works
argued that in the Carolingian period a breakthrough was
made in the matters of producing a uniform table for calendric
calculations. Its creation, and then the wide expansion of it in
the large number of manuscripts seemed to suggest that in
the Carolingian age the significant advance was made in the
algorithms of counting time, in their simplification and in their
spread among the wide array of regions of Europe (BORST
1998). Other works, critical of the idea that the Carolingian age
represented a novelty in the matters of natural philosophy and
of time reckoning, brought to the attention the breakthroughs
of the previous ages, pointing out to the fact that the tables
used by “Carolingian calendars” were in fact from the circle of
Bede (MEYVAERT 2002). Many other works have shown that
the Carolingian advances were made on the solid foundation
of the methods and calendars that had been developed by
Victorius of Aquitaine, Dionisius Exiguus, Venerable bede and
many other nameless scholars of their age (PALMER 2018).
These works put the emphasis on the fact that time reckoning
had become so developed in the V–VIII centuries that the
“Carolingian advances” were in many ways a reshaping and
reconsideration in the new circumstances of the algorithms and
methods that were well know to those interested in construction
of the calendars. Digging even deeper, these scholars escaped
the simplistic idea of dividing the calendars by schools (the
Roman, Alexandrian or Irish tradition) and showed instead that
the matter was not so much in these labels, but rather in the
cycles used in these calendric systems, the 19-year and the 84-
year cycles, and in the ways the Easter limits were employed in
them. The discussion of the “Roman” and “Irish” Easters was
significantly reshaped by these studies and the understanding
began to take hold of the simultaneous awareness of early
medieval scholars of these different systems of counting
time and of calculating the date of Easter (WARNTJES 2010b,
2011b, 2005-2006, 2011a, 2013, 2007, 2010c, 2015). The
number of recent studies has grown significantly and they
suggested that the cycles that were considered different and

238 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

opposite by scholars of the 20th century in fact coexisted on


the manuscript level. In particular, it was shown that the cycle
of Victorius of Aquitaine had been popular until the 8th century,
that it coexisted with the cycle of Dionisius Exiguus, and that
it was only replaced by the latter in the times of Bede. It was
moreover suggested that this replacement took place because
all cycles that had been calculated in the 5th and 6th centuries
ended and the tables needed to be updated. These recent
studies suggested that one needs to stay away from employing
simplistic labels like “Irish”, “Roman” or others, and to face the
mathematical, or rather computational complexities of these
calendars that far transcended simple labeling practices. The
most important conclusions of these works lay in underlying
1. that the so-called “Irish” practices were in fact a collection
of time reckoning systems that included those of Victorius’
of Aquitaine, Dionysius Exiguus, and some other variations;
2. that Irish monasteries might be divided into the Northern
group (with a preference for the “Dionysian”, ”Roman” practice)
and the Southern group (with a preference for the Victorius’
methods of calculating the Easter); 3. that European scholars
did not so clearly distinguish between the different methods as
the scholars of the 20th century might have imagined, and were
in fact aware of all of them; 4. that calendar scholars thought
in terms of employing various cycles, on their coordination and
conjunction, rather than in terms of putting labels on them.

These were important breakthroughs, but what was missing


in these discussions was the importance of calendric cycles for
interpreting how the theological postulates of Christianity were
involved in these calculations during the early Medieval Europe
and for providing the basic for further exegesis. The pages of
calendars such as those of the Munich Computus (BSB Clm
14456) have no connection to Christian concepts of history
or terms of exegetical practice. One needs to keep in mind
that Christianity’s worldview was built on using the temporal
frameworks that scholars of the 20th century like Arnaldo
Momigliano believed to be linear, and thus different, from the
traditional Ancient world’s time perception, usually cyclical in its

239 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

organization and character. But this was only one aspect of the
calendars that had some relation to the system of categories
that the believers operated in the interpretation of the sacred
texts. The interest in theology by Irish calendar scholars,
of one of the critical persons in the field of time reckoning,
Bede, and of the Carolingian scholars, needs to be examined
against their own background as a specialists in practical time
reckoning. One needs to be aware that due to restrictions on
the article’s length the subject of the Irish monks’ contribution
to the field and to the thinking of Bede is only acknowledged,
but not developed in detail (CORNING 2016; MAC CARRON
2015, 2014). If we limit the discussion here to Bede as the tip
of the iceberg of Insular scholarship on the matter of calendars,
we will be able to assess and appreciate the ways in which the
answers to eschatological concerns given by Augustine were
reworked, rethought, incorporated into the educated lexicon
and adapted to the cultural context of early medieval Europe.

Bede established his viewpoint on the writings of Augustine


and used his “apparatus” to talk about the end of times. He
relied on Augustine’s main contribution to the eschatological
narrative, the main point of which was in describing the
preconditions for the end of times to take place. The basis
for all medieval discussions concerning the Last Judgment
was to be found in De civitate, 20.30. Augustine proposed
the following order of the Last Judgment events: the return
of prophet Elijah, the conversion of the Jews, and persecution
by the Antichrist (DARBY 2014, p. 119). This was obviously a
metaphor of some sequence of historical events from the first
millenium BCE that underlay the Bible and constituted the core
of the sacred text’s narrative. Augustine’s main strength as a
theologian and the “doctor of the church” was in incorporating
into a single narrative the Egyptian, Mesopotamian, Persian
empires and the Hellenistic kingdoms. The whole point of
his discussing the sequence of events leading up to the last
judgment was in sorting the matrix that had worked for Africa,
Asia [Mesopotamia], and Europe (as a metaphor of Hellenistic
kingdoms) during the Late Roman empire of Augustine that

240 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

was still a unified civilization. Bede was significantly influenced


by Augustine and devoted to this subject in chapters 61–71
of his De temporum ratione (AUGUSTINE s.d., 20.30; WALLIS
2013, p. 76; DARBY 2014, p. 118–119; THACKER 2006). Bede
added the following series of events to the scheme proposed by
Augustine: in addition to Elijah, Enoch will also come to preach
for three and a half years (DARBY 2014, p. 119). This was due
to the fact that Enoch 1 was one of the critical texts that set the
rituals and the calendars of Jewish communities (BECKWITH
2005, p. 8–10). Scholars showed how developed the exegesis
had become in the works of Bede, who significantly adapted
Late Antique readings in the Bible to the early medieval context
(PALMER 2014, p. 139). But most importantly, these modern
studies showed how the discussion of the end of times became
part of scholarly textbooks like those of Bede. When discussing
the Carolingian explorations in the exegesis of eschatological
events, one needs to keep in mind that Bede scholars operated
within a clear framework of knowledge that allowed to put the
complex matter of counting time till the end of the world on a
solid foundation of symbols that allowed to construct schemes
and narratives. In the works of Bede the exegesis and the
sacred calendar were joined in such a manner that set the
foundation for the Carolingian and medieval scholarship.

The approach of Bede to the matters of calculating time


needs to be examined against the fundamental fact that he was
not only a theologian or computist in theory, but might have
also been an author of the Easter tables (MEYVAERT 2002;
BULLOUGH,2004, p. 285). The importance of other significant
scholars of the 8th and 9th centuries like Alcuin, Hildebald of
Cologne and Hraban Maur for the merging of the Christian time
scale with the practical outlook on contemporary events of
history has also been well-studied (For example, one may note
STORY 2017; GASKOIN 1966; LOHRMANN 1993; BULLOUGH
1983, p. 37; O CRÓINÍN 1993; BULLOUGH 2004; WARNTJES
2012, 2017, 2016). Bede’s example suggests how the discussion
of universal sacred history built on the interpretation of texts
from the Old Testament not only had an immediate connection

241 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

to calculating the sequence of events leading to the end of


times but also used the yearly cycle to describe the day-by-
day approach of the Millenial kingdom. The “long-duration”
time of sacred history became both the distant future that was
to come in the end of times whose exact date nobody was
supposed to know and the foreseeable sequence of days that
could be calculated with the help of one of the computi. Further
in this article an attempt will be made to find and elucidate
the points of connection between the theology of time and the
actual excerpt in the historical work of Einhard that addressed
the events of much shorter length than the eras of Creation
and of the Incarnation.

Bede’s De temporum ratione employed standard reference


points from the Old Testament to talk about the end of times.
It employed excerpts from the books of Daniel and Isaiah,
the Synoptic Gospels and the Revelation, and relied on the
works of the early Christian exegetes Augustine, Jerome and
Gregory the Great. The De temporibus ended with a passage
stating that the end of the 6th age was known only to God, the
idea that Bede had earlier developed in the Expositio actuum
apostolorum (De temporibus 22, line 80, Expositio Actuum
Apostolorum, 1, 68-73; DARBY 2016, p. 96). In the Epistola ad
Ecgbertum (November 5th, 734), he mentioned that the day
of the last Judgment was unknown (Epistola ad Ecgbertum, 2;
DARBY 2016, p. 96). In his commentary on the Gospel of Luke,
he reiterated that the calculations and predictions concerning
the end of times were heretical and futile (In Lucae evangelium
expositio, 5, lines 810-822; DARBY 2016, p. 96). In chapter
68 of the De temporum ratione he developed the idea whose
origin he acknowledged to be that of Augustine, namely the
idea that expectations for the coming of the day of judgment
should never be espoused. He cited as an example the servant
in Matthew 24.48-51, who was diligently waiting for his master
even though he did not know whether he would return. The
importance of the signs of the end of times was reinforced by
Bede in a number of treatises (DARBY 2016, p. 102–103). In
general, Bede paid great reverence to Augustine’s definition

242 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

of allegory because it allowed to treat the Apocalypse as a


discussion point rather than a statement of fact (THACKER
2006, p. 15, 17). In his letter to Pleguin he made a note of
the fact that some heresiarch he had read in his early days
claimed that there had been 5500 years since the Creation
to the Incarnation, and that 300 years had passed after that,
leaving only 200 years to the end of times, the year 6000
AM (PALMER 2014, p. 144–145). He argued the computistical
’first book’, the chronicle, and the apocalypse chapters each
corrected different errors of his opponents, like Victorius of
Aquitaine or those in Lindisfarne, on different fronts (PALMER
2014, p. 159). Their studies in the recent period have paid
much attention to the importance of exegesis for the self-
identification of rulers and their retinues in the Carolingian
period. Having recognized that, scholars of the calendric
science have devoted attention to one of the critical aspects
of Christian time reckoning, the idea of the end of times that
was critical for the belief in Creation, for setting the framework
for the Incarnation of Jesus, for determining the importance of
his Reincarnation, and for defining the needs of the Christian
community in its wake and in the expectations for his second
coming (PALMER 2011, 2014; WARNTJES 2018).

The Carolingian developments need to be examined against


Bede’s work, which allows one to pick up both on the former’s
novelty and traditional character. Why did there exist such
interest towards the year 6000 in the Carolingian age that had
not been seen for quite some time? It was highlighted how in
the 8th century the manuscripts with the countdown to the end
of the 6th millenium appeared (WARNTJES 2018). This was a
realization of the idea that history was the unfolding of God’s
plan (CROUCH 1997, p. 17; GOFFART 1988, p. 153). Biblical
history became “now” at the court of Charlemagne where he was
“David” and was not just metaphorically represented as such.
Carolingian scholars used a great number of Biblical images
to describe their kings, although the angle of their outlook
was significantly different in each case. The image of Solomon
figured prominently in the Epitaphium Arsenii as the symbol for

243 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

the group of elite thinkers who sought to imagine the authority


without referring to the traditional scheme by Tacitus (JONG
2017, p. 112–113). An investigation of the main works of the
Carolingian exegesis illustrates how the themes from the Old
Testament were used in significant ways for defining not only
the discourse of power, but also the historical narrative and its
time frame where this discourse was deployed.

Scholars have emphasized the importance of biblical imagery


in the construction of the discourse of power in the Carolingian
Frankish kingdom. It has been shown how scholars like Hraban
Maur, Ratbertus or Dhuoda extensively used metaphors from
the Bible to construct the ideal image of kingship. Manipulations
with the images from the Scripture were done in the context
of courtly exchange where performativity, as it was shown,
was the key element of scholarly discussion and every symbol
acquired importance within the oral and written argument
(NELSON 2003, p. 52; SCHALLER 1970; MURRAY 1990, p. 14;
KNIGHT 2012, p. 7, 47). In their treatises they employed a
whole slew of biblical characters and stories that were meant to
express, by communication in the competition-riddled setting
of the educated court, Carolingian authority in its glory and
limitations. Charlemagne was not a metaphor of David, he
was David for those who knew the meaning of this name. The
pervasive recurrence of the pastoral motif in the Latin poetry
of the period shows that the cultural milieu of the Carolingian
court was built on the imagery of pastoral society that, in
addition to Virgil and other Latin poets, also owed its origin
in this particular setting to imagery from the Old Testament
(MURRAY 1990, p. 14; KNIGHT 2012, p. 47). Thus, the court
culture was predicated on the matters that helped construct
the discourse of power with the help of stories from the Old
Testament.

In the preface to his Chronicle, Hraban Maur wrote that


he fashioned his history from divine history, from a large
number of works from other historians such as Justinus,
Sulpicius Severus, Eusebius’ Ecclesiastical history, the

244 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

Chronicon of Eusebius/Rufinus and the Chronicon of Bede, and


the writings of Josephus (MAUR 1899, no. 19, p. 424-425, l.
30–32; JONG 2000, p. 217). Pippin III, Charlemagne and the
other Carolingians were perceived in terms that were highly
imbued with theology as the founder of the dynasty, the first
Arnulfing/Pippinid king of the Franks was equaled to Moses,
as were others (GARRISON 2000, p. 125). The comparison of
Charlemagne issuing the “Adminitio generalis” to Josiah (Kings
4:23) reminded of the ruler who not only established cultic
uniformity, but also demolished other cults (JONG 2015, p.
88). The offering of the commentary on the Maccabees to Louis
the German reminded of the king battered in the course of the
struggle within the family in 840–843 and the ruler who was
meant to restore the cultic unity by his uprising (JONG 2000, p.
216). Later on, Robert the Strong was imagined as a Maccabee
(JONG 2000, p. 216, n. 101). Carolingian scholars looked for the
entire spectrum of the patristic writings in addition to the Bible
to provide a reference framework for the envisaged Christian
society (JONG 2015, p. 88). The imagery was not static, but
dynamic, reminding not only of cultic unity, but of suppression
of extraneous cults. These cases speak of how the images of
particular biblical figures were used for narrating contemporary
history by way of making the Old Testament stories the Franks’
own history (JONG 2000, p. 216).

However, in addition to that imagery, the theological


musings of Alcuin and the commentaries on the books of the
Old Testament by Hraban Maur, I argue, possessed a number of
highlights that showed their authors’ interest not only towards
the matters of dogma, but also to calculating time and to setting
the chronological framework properly for history, both biblical
and secular. It has been shown that Hraban employed historical
criticism on the plots from the Old Testament (JONG 2000,
p. 218). At times he was dissatisfied with the Old Testament
narrative, concluding that the facts were omitted. The
beginning of the first book of the Maccabees was incongruous,
he argued, because it started with “et factum est”, which meant
a subjunctive clause. The narrative was for him the one where

245 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

the author descended directly in medias res, which suggests


the knowledge of classical texts like the “Iliad” of Homer. The
second book of the Maccabees was much shorter, but it did
not preclude this book from being as historically important as
the first one (JONG 2000, p. 219). Historical considerations
immediately emerged from exegesis and in fact were its critical
element. The choice of Old Testament books for commentaries
always focused on the biblical rulers; this was done to help
create the appropriate image for the kings and legitimize their
place in history (JONG 2000, 2015; CONTRENI 2015). These
biblical images highlighted these stories of contemporary
Carolingian rulers with all their approaches to what it meant to
have the “beginning and end” of time in the system of historical
coordinates. Narratives of this type, the intertwining of imagery
from the Old Testament and recent history, which required
calendrical awareness, were being constantly deployed to
support, in educated ways, the Carolingians’ legitimacy as the
rulers of the Christian Frankish kingdom and of the Empire. This
interest towards Old Testament stories as “current” or “recent”
history seems a bit more pronounced among the scholars of
the Carolingian age than it is in Bede’s works.

The “time of reckoning” and its traditional recurrence


in the history of Late Antiquity and the early Middle
Ages
In this section, I show how the interest in the correlation
between the universal moment of Christian history and the
current moment of short-term political events during the times
of Bede and the Carolingian period was predicated on the
longer time-scales that had their roots in the cycles of visible
astronomical phenomena. To highlight these cycles and their
importance I would like to propose as a hypothesis a scheme
that would allow to place the periods when the interest in
universal history and its beginning and end surged within the
parameters of visible celestial events. I suggest that the surge
of interest towards universal Christian history and biblical

246 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

events as those having relevance to the 8th or 9th-century


“now” can be related to one cycle that astronomers have long
been aware of. In imagining their place in universal Christian
history scholars in Europe went through three periods when
their interest towards the matters of the beginning and the end
of times seemed to fuel the development of biblical exegesis
and its application in their contemporary matters. During these
periods the calculations necessary for the construction of the
calendars and timelines brought up questions related to the
foundations of Christian theology and led to concerns about
the end of history and the “end of times” to appear (MARKUS
2001; PALMER 2014; LANDES 2000).

Scholars who in the early Middle Ages paid attention to


the eschatological meaning of the year 6000, the date when
the Thousand Years’ kingdom was to begin, relied on the
scheme of history that had originated in hellenistic times with
the educated people like Eupolemos (mid-2nd century BCE)
and Alexander Polyhistor (active 85-35 BCE) and that found its
development in the Late Antique Christian environment with
scholars like Theophilus (CE 115-181) and Julius Africanus (CE
200-245) (WACHOLDER 1968, p. 451–452; BICKERMAN 1980,
p. 73). Already since the times of Augustine scholars began to
adjust the year of the Creation era so as to move the coming
of Last Judgment to a later date that was significantly more
distant from their present (LANDES 1988; LANDES 1992, p.
377). Augustine warned against reading too much into the
signs that people began to notice after the sack of Rome in 410
and thus sought to tone down any coincidence with the year
6000 that could have originated from the era that attributed
the Incarnation to the year c. 5500 of Creation (Aug. no. 199,
36; LANDES 1992, p. 364). In his disbelief in eschatological
schemes, he differed from his contemporaries: just several
years later Hesychius wrote about the year 418-419 as the
miraculous year (Hesychius Letter 198; LANDES, 1992, p. 365);
The chronicles did the same. (Consularia constantinopolitata
(c. 448 CE). MGH AA 9:246. Hydatius (468 CE) 9:19-20;
ROUCHE 1977, p. 405–9). Hippolite, Eusebius and Jerome

247 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

agreed on the year of the Incarnation as the year 5900 since


the Creation. Then Augustine moved the date back to 5600,
Julian of Toledo took the middle way and ascribed it to the date
5850, Bede also followed Hippolite, Eusebius and Jerome, and
used the year 5950, Beatus of Liébana went with the similar
date of 5990, and Abbon of Fleury used the year 6000. Only
Boniface chose the date that was closer to the considerations
of Augustine rather than to the ideas of the three doctors of
the church. It was the year 5750, which meant that he saw a
large break between the coming of Christ and the coming of
the Thousand Year kingdom. This was an approach different
from that of Hippolytus, Eusebius and Jerome, because it was
more adequate for those Christians who from Late Antiquity
on provided for some time for the world to benefit from the
Incarnation (LANDES 1993, p. 8).

During the push of the Mediterranean civilization towards


the North in Late Antiquity, in the 4th and 5th centuries it was
the first time when scholars like Jerome and Augustine had to
address the ending of the universal sacred history calendar
that the Christians inherited from the Old Testament (MARKUS
1970, 1988; LANDES 2014). In this case, the main issue was
reconciling one calendar that had originated in the Ancient
society to the challenges of the Mediterranean civilization that
had to address the problem of open corridors leading into wide
open spaces in Europe and Eurasia (to the North Sea and, via
the Balkans, to the world of the steppes) (HEATHER 2006).
During this period, the foundations for the era of Incarnation
were laid by scholars like Dionysius Exiguus in the early 5th
century who were building upon the works of the previous
scholars and who were followed in the early Middle Ages by
Bede. (DECLERCQ 2000, p. 116).

The second “time of reckoning” came when Eusebius’ date


of the Incarnation in Anno Mundi 5199 prompted scholars
to reconsider the meaning of the rule of the Carolingians
around the year 801, that is, the Anno Mundi 6000 (LANDES
2000; HEIL 2000, p. 100–103; PALMER 2014, p. 130;

248 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

REIMITZ 2004, p. 198; BORST 1972, 1992; WARNTJES 2018,


p. 51; NELSON 2019, p. 381). Biblical history became “now” at
the court of Charlemagne where he WAS “David” and was not
just metaphorically represented as such. And the third period
when time reckoning had again raised such concerns about
the end of times was around the year one thousand, when the
theological construct of the thousand-year kingdom suddenly
became a reality (LANDES 1988, 1995, 2000). In each case,
the cause for concern was the date 6000 Anno Mundi, which
brought up the immediate association with the thousand-year
kingdom, but the actual construction of the time scales was
different. These cases have been well studied by scholars and
they have a considerable historiography.

The discussion of these subjects thus becomes deeper if


one considers all cases where the matter of the “end of times”,
of “now” as the period of uncertainty arose in a different and
much larger context of the Christian and Old Testament time
reckoning when, in addition to considering the times of the
beginning of times and the end of the 6th millenium, the
questions of how to envision their change “now” within the
peculiar context of a Christian community living in the particular
historical Late Antique or early medieval environment arose. It
was the question of how to adjust the historical descriptions
and predictions that originated from the historical tables of the
Eusebius-Jerome Chronicle to the pressing matters of everyday
history that were wrought with the events that went against the
temporary schemes of the Old Testament. The “triumphant”
imperial church that was to be the representation of heavenly
Jerusalem started to take shape in the times of maximum
barbarian onslaught (MARKUS 1988, p. 104–105). This problem
had been overcome after Augustine, his “students” Orosius and
Prosper of Aquitaine, and his distant intellectual heirs Hydatius,
Sulpicius Severus and Gregory of Tours, managed to channel
the realities of the Roman imperial church with the barbarians
at or even within the Empire’s borders into the narrative
constructed according to the biblical paradigm (For example
GOFFART 1988, p. 153). In a sense, the musings and attempts

249 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

to overcome these discrepancies produced a stable paradigm


of history by the Carolingian period, wherein historians did
not flounder in matters of eschatological nature as they had
become immune to the appearance among dates such as 6000
Anno Mundi, which were reminiscent of Apocalypse and implied
the coming of the Last Judgment.

Since the early modern age, astronomers began to pay


attention to changes in nodes of the Moon in addition to those
known by scholars of the Ancient world. They got accustomed,
by means of observation, to the idea of an inherent verifiability
of the mathematical formulae that describe the movement
of the planets and thus began to measure the position of
stars against those of the planets, in contrast to what had
been normal practice in astronomy since the Ancient period
(WŁODARZYK 2019, p. 152). A significant breakthrough in
the understanding of the principles that lay at the foundation
of celestial bodies movement was made by Pierre-Simon de
Laplace (1749-1827). The matter of lunar motions and the
precession of its nodes was developed in the controversies
between several European scholars of the 18th century. These
cycles relative to the precession of nodes were calculated with
great precision, but with a number of assumptions potentially
attributed to approximations by Clairaut (CLAIRAUT 1752).
His calculations and formulae were based on Newton’s law
of gravitation and were another proof of its validity, but he
overestimated the value of the precession of the Moon’s
perigee by a factor of about two (CALINGER 2007, p. 33).
He later had to concede to using the small parameters (the
quadratic members of the sequence in addition to the square
ones) to define the perigee’s precession (FITZPATRICK 2011).
But it is not clear what cycles of precession his formulae could
cover since Clairaut limited himself to proving the Newton
law’s unique precedence. He never aspired to going beyond
the first formulae to calculate the implications. In the course
of this controversy, Euler’s idea of imagining the orbit of the
Moon as a rotating ellipse was questioned and tested. Euler’s
contribution to the discussion of the Moon’s orbit may be found

250 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

in drawing attention to the need to including, theoretically,


the electromagnetic interaction between both celestial bodies
(CALINGER 2007, p. 33–34). Euler’s works on the problem
showed the underlying precession of the Earth’s own equinoxes
with greater mathematical precision, and they were shown to
be about 19 years long (EULER 1751). The longer precession
was first mathematically calculated by Leonard Euler (using
the formulae and the coefficients of Clairaut) in the mid-18th
century, and it was found to produce a shift of one degree of the
Moon’s apogee or perigee against a specific position on Earth
in 276,92 years (EULER 1934). This was a breakthrough in
contrast to the traditional views of the Moon’s motion because,
while the 8- and 19-year cycles had been observed and were
well-known, the 276,92-year cycle was not evident or in any
way known to the educated people. His calculations for the
Moon clearly picked up on the longer-term cycles.

Although one degree does not account for much, in the


periods of saltus lunae and in some cases when this saltus
fell on an eclipse, it could make a difference in observation.
Considering that the calendar that scholars from the Carolingian
age used was one degree behind the Moon’s positions in
around 525, when scholars began to reset the Easter tables,
this needs to be accounted for. In the 520s Dionisius Exiguus
sought various textbooks and information about the calculation
of Easter, which later let him compile a meaningful algorithm
for reconciling the Solar and Lunar cycles (DECLERCQ 2000,
p. 98, 116, 152; WARNTJES 2013, p. 50–52). Dionysius
only compiled the cycle for 95 years even though he had
reconciled the two cycles for 532 years (DECLERCQ 2000, p.
152; WARNTJES 2013, p. 56). The Easter tables run out in
616, 95 years after they had been set by Dionisius Exiguus,
and this required Felix of Squillace to produce a new one.
The same had to be done around the year 700. The Victorian
prologue of 699 synchronized the forthcoming year 703 with
the year AM 5203 (LIBER DE COMPUTO s.d., Ch. 83, at col.
1314; WARNTJES 2010a, p. 271–273). This suggests that Late
Antique scholars who based their knowledge on the Ancient

251 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

world’s experience were aware of the possible discrepancies


further on and did not venture into the unknown. The surge
in the interest to the calculations of the lunar calendar in the
letter exchange between Alcuin and Charlemagne might be
considered the illustration of the knowledge that early medieval
scholars possessed about the need to adjust the calendar to
the Moon’s actual movements that they could have sensed but
were unable to calculate precisely (ALCUIN 1895, Epp. 126,
143, 145). For the turn of the 9th century almost precisely
coincided with one period of lunar precession from the time
when Dionysius was making his tables. This suggests that they
must have posited that after a period of 95 years, for which,
as the scholars might have known, the calendar of the Moon’s
motions could be calculated precisely, there came the times
when the tables needed to be updated based on the actual
observations. The search of various scholars for the correct
methods including the works of Bede were a response to those
dark times. Interestingly, the period, as was to be calculated by
Euler later, ended about the time when Alcuin was explaining
to Charlemagne the complexities of the calendar and the need
to put on November 25th, 797, luna 1st and not luna 30th (even
though one need not impute that he need to subtract one day
was in this case caused by the precession of the Moon (ALCUIN
1895, Ep. 126). All this suggests that there was more correlation
between astronomical cycles and the bookish knowledge than
expected at the time. Interestingly, when there came the time
of the “end” of the standard moon cycle, the questions of the
beginning and the end of time emerged and in some cases
prompted a reconsideration of the current calendar in relation
to the age of the world and to its end. I suggest, therefore,
that one needs to notice how the same themes reappeared at
exactly the periods determined by the astronomical phenomena
and how Augustine became relevant in approximately 276.92
years for Bede and how the Easter table of Dionysius Exiguus
prompted people again to think about the end of time and
utilize both Augustine and Bede to find answers on how to
counter this problem.

252 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

Conclusion
The Carolingian efforts in reimagining the calendar of
universal history history and making it part of the educated
communication in regards to the current events and recent
history at the time of the coronation of Charlemagne at the
year 5999 since the Creation and 800 since the Incarnation of
Christ were successful. They were the result of the significant
adaptation of the framework created by Augustine and made
available by Irish scholars, Bede and his students not so
much to the conditions of Europe as opposed to those of the
Mediterranean, but to the situation in the universal calendar
when the count of years started to reach the maximum number
imagined by the scholars of the Ancient world. Carolingian
attempts at constructing the calendar of the historical epoch
themselves originated in the tradition of eschatological thinking
exemplified in the works of Augustine, practiced by the Irish
and continental European scholars in re-calculating the Easter
calendar, and in the works of historians, like Gregory of Tours
and then Einhard to connect the history since the Creation to
the historical narrative of the recent kings’ achievements. The
knowledge of how to work with and manipulate critical dates
from the sacred history and from the Easter calculations was
made meaningful in two periods of time, in the 520s and the
ca. 800, determined partly by the effects of the precession of
the Moon on the calendar, when the “final reckoning” became
a pressing need. One thing was novel in the development
of the ways to represent the long-term cycles of universal
history in the everyday ritual exchange of information among
scholars in the Carolingian age. Unlike Bede, whose writings
reminded more of textbooks, Carolingian scholars used the
stories related to measuring and imagining biblical chronology
in their exchanges, the primary aim of which was to confirm
their status and the status of the king within the group of
educated and knowledgeable people that measured up in
knowledge and their historical significance to the figures of the
Old Testament. This was not only mathematical knowledge but
also knowledge in terms of the “exegesis of numbers”. Studies

253 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

have indicated that the calculations of the Anno Domini and


of the Easter date often contained assumptions which might
be considered as extraneous or erroneous, but which make
sense as the tools of approaching the correct understanding
of one or another time reckoning scheme. In other words, I
argue for the importance of combinatorics with the lengths of
historical periods and the dates of events. The knowledge of
history in the Carolingian period was increasingly built on the
skills to manipulate numbers in ways that turned historical and
biblical narratives they represented into the descriptive and
simultaneously hierarchical mental constructs. This was due to
the fact that observable astronomic phenomena, which might
have also been known from the symbolism of numbers in the
Old Testament, made the need to adjust the book knowledge
and numbers to the real calendar. Not only the specific calendric
chronological schemes of universal history and the Easter
tables were reconsidered at this time: in fact, the rethinking
of the ways to connect chronology to the political project
took place because of the significant rethinking of universal
history’s periodization that was aided by the attention towards
the observable or known breaks in the regularity of the flow of
time.

254 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

REFERENCE

ALCUIN. Ep. 126. In: DÜMMLER, E. (ed.). Epistolae Karolini


aevi. Berlin: Weidmann, 1895. v. 2. (MGH Epistolae, 4). p.
185–187.

ALCUIN. Ep. 143. In: DÜMMLER, E. (ed.). Epistolae Karolini


aevi. Berlin: Weidmann, 1895.V. 2. (MGH Epistolae, 4). p.
224–227.

ALCUIN. Ep. 145. In: DÜMMLER, E. (ed.). Epistolae Karolini


aevi. Berlin: Weidmann, 1895.V. 2. (MGH Epistolae, 4). p.
231–235.

ALCUIN. Vita Vedasti. In: MIGNE, J.-P. (ed.). PL. [S.l.: s.n.],
1844. V. 101.

ASTRONOMUS. Vita Hludowici imperatoris. In: TREMP,


Ernst (Ed.). Theganus, Gesta Hludowici imperatoris –
Astronomus, Vita Hludowici imperatoris. Hannover: Hahn,
1995. (MGH Scriptores rerum germanicarum, 64). p. 280–
555.

AUGUSTINE. De civitate Dei. Edição: B. Dombart e A.


Kalb. [S.l.: s.n.]. (CCSL, 47, 48).

BARNWELL, Paul S.Einhard, Louis the Pious and Childeric


III. Historical Research, v. 78, n. 200, p. 129–139, 2005.

BECHT-JÖRDENS, Gereon. Biographie als Heilsgeschichte.


Ein Paradigmenwechsel in der Gattungsentwicklung:
Prolegomena zu einer formgeschichtlichen
Interpretation von Einharts Vita Karoli. In: JÖRDENS,
Andrea (Ed.). Quaerite faciem eius semper. Studien zu
den geistesgeschichtlichen Beziehungen zwischen Antike
und Christentum. Dankesgabe für Albrecht Dihle zum 85.
Geburtstag aus dem Heidelberger „Kirchenväterkolloquium“.
Hamburg: Kovac, 2008. (Studien zur Kirchengeschichte,
8). p. 1–21.

255 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

BECKWITH, Roger T. Calendar, Chronology and


Worship: Studies in Judaism and Early Christianity.
Leiden: Brill, 2005.

BERGMANN, Werner. Easter and the Calendar: The


Mathematics of Determining a Formula for the Easter
Festival to Medieval Computing. Versão alemã. Journal
for General Philosophy of Science / Zeitschrift für
allgemeine Wissenschaftstheorie, v. 22, n. 1, p. 15–41,
1991.

BICKERMAN, Elias. Chronology of the Ancient World.


2. ed. Ithaca: Cornell University Press, 1980.

Admonitio generalis. In: BORETIUS, Alfred (Ed.).


Capitularia regum francorum. Hannover: [s.n.], 1883.
V. 1. (MGH Leges in quarto, Legum sectio II). P. 54–62.

BORST, Arno. Die karolingische Kalenderreform.


Hannover: [s.n.], 1998. (Schriften der Monumenta
Germaniae Historica, 46).

BORST, Arno. Kaisertum und Namentheorie im Jahre 800.


In: WOLFF, Gunther (ed.). Zum Kaisertum Karls des
Grossen: Beiträge und Aufsätze. Darmstadt: [s.n.], 1972.
p. 216–39.

BORST, Arno. Karl der Grosse und die Zeit. In: RÖTTGEN,
Herwarth (ed.). Beiträge zur Zeit. Stuttgart: [s.n.],
1992.V. 42. p. 9–21.

BRUNNER, Karl. Auf die Spuren verlorener Traditionen.


Versão alemã. Peritia, v. 2, p. 1–22, 1983.

BRUNNER, Karl. Oppositionelle Gruppen im


Karolingerreich. Wien: Böhlau, 1979.

256 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

BULLOUGH, Donald. Alcuin and the Kingdom of Heaven:


Liturgy, theology and the Carolingian age. In: BLUMENTHAL,
Ute-Renate (ed.). Carolingian essays: Andrew W. Mellon
lectures in early Christian studies. Washington DC: The
Catholic University of America Press, 1983. p. 161–240.

BULLOUGH, Donald. Alcuin: achievement and reputation:


being part of the Ford lectures delivered in Oxford in Hilary
Term 1980. Leiden: Brill, 2004.

CALINGER, Ronald S. Leonard Euler: Life and Thought. In:


SANDIFER, C. Edward; BRADLEY, Robert E. (ed.). Leonard
Euler: Life, Work and Legacy. Amsterdam; Boston: Elsevier,
2007. p. 5–60.

CLAIRAUT, Alexis. Theorie de la Lune deduite du seul


principe de l’attraction reciproquement proportionelle
aux quarrés des distances. St. Petersbourg: Imprimerie
de l’Academie Imperiale des Sciences, 1752.

COLLINS, Roger. Deception and misrepresentation in early


eighth-century Frankish historiography: two case studies.
In: JARNUT, J.; RICHTER M.; NONN, U. (ed.). Karl Martell
in seiner Zeit. Sigmaringen: [s.n.], 1994. V. 37. (Beihefte
der Francia). p. 227–247.

CONTRENI, John. The Patristic legacy to c. 1000. In:


MARSDEN, Richard; MATTER, E. Ann (ed.). New Cambridge
History of the Bible. Cambridge: Cambridge University
Press, 2015. P. 505–535.

CORNING, Caitlin. Columbanus and the Easter controversy:


theological, social and political contexts. In: FLECHNER,
Roy; MEEDER, Swen (ed.).The Irish in early medieval
Europe: identity, culture and religion. London: Palgrave,
2016. p. 101–115.

257 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Dmitri Starostin

CROUCH, Jace T. Isidore of Seville on Time, Eternity,


Events, and History: The Unfolding of Salvation History.
1997. Tese (Doutorado) – Michigan State University.

DARBY, Peter. Bede and the End of Time. Farnham:


Ashgate, 2016.

DARBY, Peter. Bede’s history of the future. In: DARBY, Peter;


WALLIS, Faith (ed.). Bede and the Future. Farnham:
Ashgate, 2014. p. 115–138.

DECLERCQ, Georges. Anno Domini: The origins of the


Christian era. Turnhout: Brepols, 2000.

ENGLISCH, Brigitte. Karolingische Reformkalender und die


Fixierung der christlichen Zeitrechnung. In: WARNTJES,
Immo; Ó CRÓINÍN, Dáibhí (ed.). Computus and its
cultural context in the Latin West AD 300-1200..
Turnhout: Brepols, 2010. V. 5, p. 238–258.

EULER, Johannis Albertus. Theoria motuum Lunae.


Nova methodo pertractata una cum tabulis astronomicis
unde ad quodvis tempus loca Lunae expedite computari
possunt. Edição: Wolfgang Ludovicus Krafft e Johannis
Andreas Lexell. Leningrad: Typis et impensis academiae
scientiarum URSS, 1934.

EULER, Leonard. Recherches sur la precession des


equinoxes st sur la nutation de l’axe de la terre. Versão
francesa. Mémoires de l’Académie des Sciences et
des Belles-Lettres de Berlin, v. 5, p. 289–325, 1751.

FITZPATRICK, Richard. Newtonian Dynamics. [S.l.]:


Lulu, 2011.

GANSHOF, F. L. The last period of Charlemagne’s reign:


A study in decomposition. In: GANSHOF, F. L. The
Carolingians and the Frankish monarchy. Ithaca:
[s.n.], 1971. p. 240–54.

258 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

GANZ, David. Einhard’s Charlemagne: The characterisation


of greatness. In: STORY, Joanna (ed.). Charlemagne:
Empire and Society. Manchester: Mahchester University
Press, 2005. p. 38–51.

GANZ, David. Einhardus peccator. In: WORMALD, Patrick;


NELSON, Janet L. (ed.). Lay intellectuals in the
Carolingian world. Cambridge: Cambridge University
Press, 2007. p. 37–51.

GANZ, David. The Astronomer’s Life of Louis the Pious.


In: GARVER, Valerie L.; PHELAN, Owen M. (ed.). Rome
and religion in the medieval world: Studies in honor of
Thomas F. X. Noble. London: Routledge, 2014. P. 129–148.

GARRISON, Mary. The Franks as New Israel? Education for


an identity from Pippin to Charlemagne. In: HEN, Yitzhak;
INNES, Matthew (ed.). The uses of the past in the early
Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press,
2000. p. 114–161.

GASKOIN, C. J. B. Alcuin; his life and his work. New


York: Russell & Russell, 1966.

GLENN, Jason Kahn. Between Two Empires. Einhard and


His Charles the Great. In: The Middle Ages in text and
Texture. Toronto: Toronto University Press, 2011. p. 105–
118.

GOFFART, Walter. The narrators of barbarian history


(AD 550-800): Jordanes, Gregory of Tours, Bede, and
Paul the Deacon. Princeton: Princeton University Press,
1988. 491 p.

HEATHER, P. The Fall of the Roman Empire: A new


history of Rome and the barbarians. Oxford: Oxford
University Press, 2006.

259 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

HEIL, Johannes.Nos nescientes de hoc velle manere - “We


wish to remain ignorant about this”: Timeless end, or:
Approaches to reconceptualizing eschatology after A.D.
800 (AM 6000). Traditio, v. 55, p. 73–103, 2000.

HOLDER-EGGER, Oswald. Zur Überlieferung von Einhards


Vita Karoli Magni. In: NEUES Archiv der Gesellschaft
für Ältere Deutsche Geschichtskunde zur Beförderung
einer Gesamtausgabe der Quellenschriften deutscher
Geschichten des Mittelalters. Hannover: Hahn, 1912. V. 37.
p. 393–414.

INNES, Matthew. Teutons or Trojans? The Carolingian and


the Germanic past. In: HEN, Yitzhak; INNES, Matthew
(ed.). The uses of the past in the early Middle Ages.
Cambridge: Cambridge University Press, 2000. p. 227–249.

JAMES, Dominic. The world and its past as Christian


allegory in the early Middle Ages. In: INNES, Matthew;
HEN, Yitzhak (ed.). The uses of the past in the early
Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press,
2000. p. 102–113.

JONES, Charles W.The victorian and dionysiac paschal


tables in the West. Speculum,v. 9, n. 4, p. 408–421, 1934.

JONES, Charles Williams. Bedae opera de temporibus.


Cambridge, MA: Miedieval Academy of America, 1943.

JONG, M. de. Carolingian political discourse and the biblical


past: Hraban, Dhuoda, Radbert. In: GANTNER, Clemens;
MCKITTERICK, Rosamond; MEEDER, Sven (Ed.). The
Resources of the Past in Early Medieval Europe.
Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 87–102.

JONG, M. de. For God, king and country: the personal


and the public in the epitaphium Arsenii.Early Medieval
Europe, v. 25, n. 1, p. 102–113, 2017.

260 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

JONG, M. de. The empire as ecclesia: Hrabanus Maurus


and biblical historia for rulers. In: INNES, Matthew; HEN,
Yitzhak (ed.). The uses of the past in the early Middle
Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. p.
191–226.

KNIGHT, Gillian R. Talking Letter, Singing Pipe: Modalities


of Performance at the Carolingian Court. Versão francesa.
Archives d’histoire doctrinale et littéraire du Moyen
Age, v. 79, p. 7–47, 2012.

LANDES, R. Lest the Millennium Be Fulfilled: Apocalyptic


Expectations and the Pattern of Western Chronography,
100-800 C. E. In: VERBEKE, W. (ed.). The Use and Abuse
of Eschatology in the Middle Ages. Louvain: Katholieke
Universiteit te Leuven, 1988. p. 141–211.

LANDES, R. Sur la traces du Millenium: la «via negativa».


Versão francesa. Le Moyen Age,v. 99, n. 1, p. 5–26, 1993.

LANDES, Richard. «Millenarismus absconditus»:


L’historiographie augustinienne et le millénarisme du haut
Moyen Age jusqu’à l’an Mil. Versão francesa. Le Moyen
Age, v. 98, n. 3-4, p. 355–377, 1992.

LANDES, Richard. In the Fear of an Apocalyptic Year


1000: Augustinian Historiography, Medieval and Modern.
Speculum, v. 75, p. 97–145, 2000.

LANDES, Richard. Relics, apocalypse, and the deceits


of history: Ademar of Chabannes, 989-1034. Cambridge
Mass.: Harvard University Press, 1995. P. 404.

LANDES, Richard. The Silenced Millenium and the Fall of


Rome: Augustine and the Year 6000 AM I. In: DOODY,
John; KLOOS, Kari; PAFFENROTH, Kim (Ed.). Augustine
and Apocalyptic and the Fall of Rome: Augustine and
the Year 6000. Lanham: Lexington Books, 2014. p. 151–
176.

261 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

LIBER DE COMPUTO. In: PL. [S.l.: s.n.]. V. 129. p. 1273–


1372.

LOHRMANN, Dietrich. Alcuins Korrespondenz mit Karls


dem Grossen über Kalender und Astronomie. In: BUTZER,
Paul Leo; LOHRMANN, Dietrich (ed.). Science in Western
and Eastern civilization in Carolingian times. Basel:
Birkhäuser, 1993. p. 79–114.

LÖWE, Heinz. Die Entstehungszeit der Vita Karoli Einhards.


Versão alemã. Deutsches Archiv für Erforschung des
Mittelalters, v. 39, p. 85–103, 1983.

MAC CARRON, Máirín. Bede, Irish computistica and Annus


Mundi. Early Medieval Europe, v. 23,n. 3, p. 290–307,
2015.

MAC CARRON, Máirín. Christology and the future in Bede’s


Annus Domini. In: DARBY, Peter; Wallis, Faith (Ed.). Bede
and the Future. Burlington: Ashgate, 2014. p. 161–179.

MARKUS, R. A.Living within sight of the end. In: HUMPHREY,


Chris; ORMROD, W. M. (Ed.). Time in the Medieval World.
Rochester, N.Y.: York Medieval Press, 2001. p. 23–34.

MARKUS, R. Saeculum: History and Society in the Theology


of St Augustine. Cambridge: Cambridge University Press,
1970.

MARKUS, R. The Latin Fathers. In: BURNS, J. H. (Ed.).The


Cambridge History of Medieval Political Thought, c.
350 - c. 1450. Cambridge: Cambridge University Press,
1988. p. 92–122.

Maur, Hraban. Epistolae. In: DÜMMLER, E. (Ed.). MGH


Epistolae. Berlin: Weidmann, 1899. V. 3. p. 379–516.

MCKITTERICK, Rosamond. History and memory in the


Carolingian world. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004.

262 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

MCKITTERICK, Rosamond. Political ideology in Carolingian


historiography. In: HEN, Yitzhak; INNES, Matthew (ed.). The
uses of the past in the early Middle Ages. Cambridge:
[s.n.], 2000b. p. 162–174.

MCKITTERICK, Rosamond. The illusion of royal power


in the Carolingian annals. English Historical Review,
v. 115, n. 460, p. 1–20, 2000a.

MEEDER, Swen. The Irish and Carolingian learning. In:


FLECHNER, Roy; MEEDER, Swen (ed.). The Irish in early
medieval Europe: identity, culture and religion.
London: Palgrave, 2016. p. 179–194.

MEYVAERT, Paul. Discovering the Calendar (Annalis Libellus)


Attached to Bede’s own Copy of De temporun ratione.
Analecta Bollandiana, v. 120, p. 1–159, 2002.

MURRAY, O.The Idea of the Shepherd King from Cyrus


to Charlemagne. In: Latin Poetry and the Classical
Tradition. Essays in Medieval and Renaissance Literature.
Oxford: [s.n.], 1990. p. 1–14.

NELSON, Janet. King and Emperor: A New Life of


Charlemagne. Berkeley: University of California Press,
2019.

NELSON, Janet. Was Charlemagne’s court a courtly society?


In: CUBITT, C. (Ed.). Court Culture in the Early Middle
Ages: the proceedings of the first Alcuin conference.
Turnhout: [s.n.], 2003. p. 39–57.

NOBLE, Thomas F. X. (ed. and trad.). Charlemagne and


Louis the Pious: the lives by Einhard, Notker, Ermoldus,
Thegan, and the Astronomer. University Park, Pa.:
Pennsylvania State University Press, 2009.

263 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

Ó CRÓINÍN, Dáibhí. The Irish as mediators of Antique


culture on the continent. In: BUTZER, Paul Leo;
LOHRMANN, Dietrich (ed.). Science in Western and
Eastern civilization in Carolingian times. Basel: [s.n.],
1993. p. 41–52.

PALMER, James. Calculating time and the end of time in the


Carolingian world, c.740-820. English Historical Review,
v. 126, n. 523, p. 1307–1331, 2011.

PALMER, James. The Apocalypse in the early Middle


Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 2014.

PALMER, James. The adoption of the Dionysian Easter in


the Frankish kingdoms (c. 670-c. 800). Peritia, v. 28, p.
135–154, mar., 2018.

PALMER, James. The ends and futures of Bede’s De


temporum ratione. In: DARBY, Peter; WALLIS, Faith (Ed.).
Bede and the Future. Burlington: Ashgate, 2014. p. 139–
160.

PATZOLD, S. Einhards erste Leser: Zu Kontext und


Darstellungsabsicht der „Vita Karoli”. Viator, v. 42, p. 33–
55, 3, 2011.

REIMITZ, Helmut. Die Konkurrenz der Ursprünge in der


fränkischen Historiographie. In: POHL, Walter (ed.). Die
Suche nach Ursprüngen: Von der Bedeutung des
frühen Mittelalters. Wien: Osterreichische Akademie der
Wissenschaften, 2004. p. 191–210.

REIMITZ, Helmut. The Providential Past: Visions of Frankish


Identity in the Transmission of Gregory of Tours’ Historiae
(Sixth to Ninth Century). In: GANTNER, Clemens; PAYNE,
Richard; POHL, Walter (Ed.). Visions of communoty:
Ethnicity, religion and power in the early medieval Wrst,
Byzantium and the Islamic world. Farnham: Ashgate, 2012.
p. 109–36.

264 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

REUTER, Timothy.The end of the Carolingian military


expansion. In: GODMAN, Peter; COLLINS, Roger (ed.).
Charlemagne’s heir: New perspectives on the reign of
Louis the Pious (814-840). Oxford: Clarendon, 1990. P.
391–405.

ROUCHE, M. L’Aquitaine des Wisigoths aux Arabes


(418–781). 1977. Dissertation – Université Lille, Lille.
1977.

SCHALLER, D. Vortrags- und Zirkulargedichtung am Hof


Karls des Grossen. Versão alemã. Mittellateinisches
Jahrbuch, v. 6, p. 14–36, 1970.

SCHERBERICH, K. Zur Suetonimitatio in Einhards vita


Karoli Magni. In: KÉRY, L. (ed.). Eloquentia copiosus.
Festschrift für Max Kerner zum 65. Geburtstag. Aachen:
Thouet, 2006. p. 17–28.

SPRINGSFELD, K. Alkuins Einfluss auf die Komputistik


zur Zeit Karls des Grossen. Stuttgart: F. Steiner, 2002.

SPRINGSFELD, Kerstin. Eine Beschreibung der Handschrift


St. Gallen, Stiftsbibliothek, 225. In: Ó CRÓINÍN, Dáibhí;
WARNTJES, Immo (ed.). Computus and its Cultural
Context in the Latin West, AD 300-1200: Proceedings
of the 1st International Conference on the Science of
Computus in Ireland and Europe, Galway, 14-16 July, 2006.
Turnhout: Brepols, 2010.

SPRINGSFELD, Kerstin. Karl der Große, Alkuin und


die Zeitrechnung. Versão alemã. Berichte zur
Wissenschaftsgeschichte, WILEY-VCH Verlag, v. 27,
n. 1, p. 53–66, 2004.

STANSBURY, Mark. Irish biblical exegesis. In: FLECHNER,


Roy; MEEDER, Swen (ed.). The Irish in early medieval
Europe: identity, culture and religion. London: Palgrave,
2016. p. 116–130.

265 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

STEVENS, Wesley M. Bede’s scientific achievement.


Jarrow: [s.n.], 1985. p. 44.

STEVENS, Wesley M. Compotistica et astronomica in the


Fulda school. In: KING, M. H.; W. STEVENS, M. (ed.).
Saints, scholars and heroes: Studies in medieval culture.
Collegeville: Hill Monastic Manuscript Library, Saint John’s
Abbey and University, 1979. p. 27–63.

STEVENS, Wesley M. Computus-Handschriften Walahfrid


Strabos. In: BUTZER, Paul Leo; LOHRMANN, Dietrich
(ed.). Science in Western and Eastern civilization in
Carolingian times. Basel: [s.n.], 1993. P. 363–81.

STEVENS, Wesley M. Cycles of time and scientific


learning in medieval Europe. Aldershot, Hampshire,
Great Britain; Brookfield, Vt., USA: Variorum, 1995a.

STEVENS, Wesley M. Sidereal time in Anglo-Saxon England.


In: Cycles of time and scientific learning in medieval
Europe. Aldershot: Ashgate, 1995b. p. 125–152.

STEVENS, Wesley M. Walahfrid Strabo - A student at Fulda.


Historical papers 1971 of the Canadian historical
association, p. 13–20, 1972.

STORY, Joanna. Carolingian Connections: Anglo-Saxon


England and Carolingian Francia, c. 750–870. London:
Routledge, 2017.

STROBEL, August. Texte zur Geschichte des


frühchristlichen Osterkalenders. München:
Aschendorff, 1984.

STROBEL, August. Ursprung und Geschichte des


frühchristlichen Osterkalenders. Berlin: Akademie-
Verlag, 1977.

THACKER, Alan. Bede and Augustine of Hippo: history


and figure in sacred text. Jarrow: St. Paul’s Church, 2006.

266 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

THEGANUS. Gesta Hludowici imperatoris. In: TREMP,


Ernst (ed.). Theganus, Gesta Hludowici imperatoris
– Astronomus, Vita Hludowici imperatoris. Hannover:
Hahnsche Buchhandlung, 1995. p. 168–277.

WACHOLDER, Ben Zion. Biblical Chronology in the


Hellenistic World Chronicles. The Harvard Theological
Review, v. 61, n. 3, p. 451–452, 1968.

WALLIS, F. Bede: Commentary on Revelation. Liverpool:


Liverpool University Press, 2013.

WALLIS, Faith. Why Did Bede Write A commentary on


Revelation? Edição: Peter Darby e Faith Wallis. Farnham:
Ashgate, 2016. p. 23–45.

WARNTJES, Immo. A newly discovered Irish Computus:


’Computus Einsidlensis’. Peritia, v. 19-20, p. 61–64, 2005-
2006.

WARNTJES, Immo. A newly discovered prologue of AD 699


to the Easter table of Victorius of Aquitaine in an unknown
Sirmond manuscript. Peritia, v. 21, p. 254–283, 2010a.

WARNTJES, Immo. Computus as scientific thought in


Ireland and the early medieval West. In: FLECHNER,
Roy; MEEDER, Swen (ed.). The Irish in early medieval
Europe: identity, culture and religion. London: Palgrave,
2016. p. 158–178.

WARNTJES, Immo. Introduction: state of research on


late antique and early medieval computus. In: WARNTJES,
Immo; Ó CRÓINÍN, Dáibhí (Ed.). Late Antique Calendrical
Thought and its Reception in the Early Middle Ages.
Proceedings of the 3rd International Confererece on the
Science of Computus in Ireland and Europe. Turnhout:
Brepols, 2017. p. 1–42.

267 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

WARNTJES, Immo. Irische Komputisik zwischen Isidor


von Sevilla und Beda Venerabilis: Ursprung, karolingische
Rezeption und Forschungsperspektiven. Viator, v. 42, p.
1–32, 2011.

WARNTJES, Immo. Köln als naturwissenschaftliches


Zentrum in der Karolingerzeit: Die frühmittelalterliche
Kölner Schule und der Beginn der fränkischen
Komputistik. In: FINGER, Heinz; HORS, Harald (ed.).
Mittelalterliche Handschriften der Kölner
Dombibliothek. Edição:. Köln: Erzbischöfliche Diözesan-
und Dombibliothek, 2012. V. 38. p. 41–96.

WARNTJES, Immo. Seventh-century Ireland: the cradle


of medieval science? In: KELLY, Mary; DOHERTY, Charles
(ed.). Music and the stars. Mathematics in medieval
Ireland. Dublin: Four Courts Press, 2013. p. 44–72.

WARNTJES, Immo. The argumenta of Dionysius Exiguus and


their early recensions. In: Ó CRÓINÍN, Dáibhí; WARNTJES,
Immo (ed.). Computus and its Cultural Context in
the Latin West, AD 300-1200: Proceedings of the 1st
International Conference on the Science of Computus in
Ireland and Europe, Galway, 14-16 July, 2006. Turnhout:
Brepols, 2010b. p. 40–111.

WARNTJES, Immo. The Computus Cottonianus of AD 689:


A computistical formulary written for Willibrord’s Frisian
mission. In: WARNTJES, Immo; Ó CRÓINÍN, Dáibhí (ed.).
The Easter Controversy of Late Antiquity and the
Early Middle Ages: its manuscripts, texts, and tables.
Proceedings of the 2nd International Conference on the
Science of Computus in Ireland and Europe, Galway, 18-20
July 2008. Turnhout: Brepols, 2011. p. 173–212.

WARNTJES, Immo. The Final Countdown and the Reform


of the Liturgical Calendar in the early Middle Ages. In:
GABRIELE, Matthew; PALMER, James T. (ed.). Apocalypse
and Reform from Late Antiquity to the Middle Ages.
Abingdon, Oxon: Routledge, 2018. P. 51–75.

268 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

WARNTJES, Immo. The Munich Computus and the 84 (14)-


year Easter reckoning. Proceedings of the Royal Irish
Academy, v. 107C, p. 31–85, 2007.

WARNTJES, Immo. The Munich Computus: Text and


Translation. Irish computistics between Isidore of Seville
and the Venerable Bede and its reception in Carolingian
times. Stuttgart: Steiner, 2010c.

WARNTJES, Immo. Victorius vs. Dionysius: the Irish Easter


controversy of AD 689. In: MORAN, P´adraic; WARNTJES,
Immo (ed.). Early medieval Ireland and Europe:
chronology, contacts, scholarship. Turnhout: [s.n.],
2015. p. 40–96.

WŁODARZYK, Jarosław. Peripheral astronomy in the


Correspondence of Johannes Hevelius: A Case Study
of Maria Cunitia and Elias von Löwen. Versão polonesa.
Kwartalnik historii nauki i techniki, v. 64, n. 1, p. 147–
155, 2019.

269 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
Historiography at the Crossroads

ACKNOWLEDGMENT AND INFORMATION

Dmitri Starostin
d.starostin@spbu.ru
starostin.dmitry@gmail.com
University of Saint-Petersburg
Saint-Petersburg
Russian Federation

RECEIVED IN: 29/OCT./2019 | APPROVED IN: 7/MAY/2020

270 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 229-270 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1546
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Historia del tiempo presente: la triple frontera entre


pasado, presente y futuro. Un análisis desde la
historia oral y los marcos normativos
History of the present time: The triple border between past,
present and future. An analysis from the oral history and
normative frameworks
Diego S. Crescentino
https://orcid.org/0000-0002-0780-199X

Gonzalo Vitón
https://orcid.org/0000-0002-5723-2641
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo reflexionar en torno
a las posibilidades que ofrece la historia del tiempo ABSTRACT
presente como perspectiva historiográfica para
This article contemplates the possibilities offered by
conducir estudios críticos inmersos en la realidad que
the history of the present time as a historiographic
pretendemos analizar. A partir de numerosas fuentes
perspective to conduct critical studies immersed in the
secundarias y de nuestra experiencia investigadora,
reality one intends to analyze. From numerous secondary
sistematizamos las definiciones existentes en torno
sources and our research experience, we systematize
a la historia del tiempo presente abordando su
the existing definitions around this concept by
ontología, cuestionando su perspectiva epistemológica
addressing its ontology, questioning its epistemological
y dialogando con sus desafíos metodológicos. Tras ello,
perspective, and dialoguing with its methodological
nos enfocamos en el análisis de dos de sus fuentes,
challenges. Moreover, we analyze two of its sources,
escasamente integradas entre sí: las fuentes orales y
sparsely integrated among themselves in the debate
los marcos normativos. Partimos de la hipótesis de que
of this historiographical perspective: oral sources and
su integración a través de un diálogo interdisciplinar
normative frameworks. Our approach starts from the
posibilita superar las limitaciones propias de la historia
premise that an interdisciplinary dialogue between
del tiempo presente. Concluimos que, efectivamente,
these allows researchers to overcome the limitations of
esta perspectiva tiene esa posibilidad siempre y cuando
the history of the present time. We conclude that this
se haga un tratamiento riguroso de las fuentes y no deje
perspective is promising if researchers can rigorously
de considerarse la larga duración del tiempo histórico.
treat their sources, and if the long durée of historical
time is considered.

PALABRAS CLAVE
Historia del Tiempo Presente; Fuentes históricas;
Historiografía
KEYWORDS
History of the Present Time; Historical Sources;
Historiography

273 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

Introducción
Institucionalizada progresivamente desde la segunda mitad
del siglo XX1, la historia del tiempo presente nació para dar
respuestas a la necesidad —surgida fundamentalmente a partir
de la conmoción que supuso la Segunda Guerra Mundial— de
desentrañar las relaciones entre el pasado y el presente. Este
debate se dio a la luz de una producción historiográfica sensible
a la memoria y a los testimonios orales a fin de definir así el rol
1 Institut für Zeit-
de las historiadoras2 en la sociedad por medio de la comprensión geschichte (1947);
del presente. Autores como Aróstegui (2004, p. 144) la definen Institut d’histoire
du temps présent
como la transcripción de la historia vivida, entendida como (1978); Institute of
historización de la experiencia. Y es que tanto la historiadora Contemporary British
History (1986); déca-
como cualquier cientista social son prisioneras de su propio da de los 90 en Ibe-
tiempo (GUIRAULT 1998, p. 15). Para Rapoport (2014, p. 5), el roamérica con Cues-
ta, Fazio, Mudrovcic,
presente está condicionado por nuestra circunstancia e impone Aróstegui y el Labo-
con su urgencia la resolución de los problemas que vivimos y ratório de Estudos do
Tempo Presente.
las preguntas que nos hacemos: somos a la vez observadores
y actores. 2 A lo largo de este
documento nos he-
mos decantado por el
La historia del tiempo presente comprende, así, un “análisis uso del sustantivo en
histórico de la realidad social vigente, que comporta una relación femenino “historiado-
ra” para desafiar la
de coetaneidad entre la historia vivida y la escritura de esa hegemonía del mas-
misma historia, entre los actores y testigos de la historia y los culino como género
neutro.
propios historiadores” (CUESTA 1993, p. 11). Busca, además,
debatir las fortalezas y debilidades existentes en el análisis 3 Esto no implica una
objetividad axiomá-
de procesos históricos en los cuales el locus de enunciación tica, con la cual no
de la historiadora se encuentra inmerso en la realidad que creemos que cuente
ninguna perspectiva
pretende estudiar. Se trata, en otras palabras, de profundizar historiográfica desa-
el diálogo ante el debate epistemológico y llegar, así, a la raíz fía.

de la cuestión: ¿es posible realizar estudios históricos desde la


realidad que se pretende analizar?

Consideramos que, a pesar de las dificultades suscitadas,


como historiadoras podemos investigar desde nuestra propia
realidad en función de los problemas y desafíos actuales de
forma rigurosa y metódica3, siendo posible analizar los procesos
de un pasado reciente a partir de la lectura historiográfica que

274 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

supone la historia del tiempo presente. Ello desafía algunos


presupuestos historiográficos tradicionales, tal y como
analizamos en este artículo. Nuestro objetivo es formular los
factores y desafíos de la historia del tiempo presente por medio
del abordaje de dos fuentes primarias: fuentes orales y marcos
normativos. Trabajar con ambas en el marco de la historia del
tiempo presente nos permite integrarlas y complementarlas en
un diálogo que posibilita cubrir los silencios inherentes a cada
una de ellas.

Partimos de la premisa de que toda perspectiva historiográfica


comparte el mismo problema ontológico central: la definición
de su objeto de estudio. En la praxis, todo puede ser planteado
o declarado como objeto histórico (KOSELLECK 2010, p. 139).
Como indica Reus-Smit (2012, p. 70-71), “de entre la miríada
de hechos que podrían posiblemente constituir la historia,
es el historiador quien elige cuáles adquieren protagonismo,
esto es, cuáles se convierten en hechos históricos”. Todo
hecho histórico está, por tanto, sujeto “a la interpretación
y reinterpretación, pues —como diría Carr— ‘el presente no
tiene más que una existencia conceptual, como línea divisoria
entre el pasado y el futuro’. Nuestra lectura del pasado se hace
siempre con los parámetros del presente, con sus inquietudes
y sus interrogantes” (PEÑAS ESTEBAN, 2003, p. 78).

Tras plantear estas cuestiones previas, este artículo estará


estructurado en cuatro apartados. En primer lugar, abordamos
el debate ontológico en torno a las definiciones de la(s)
historia(s) del tiempo presente. En segundo lugar, debatimos
en torno a los principales desafíos a los que esa perspectiva
historiográfica hace frente en su quehacer académico. En
tercer lugar, nos enfocamos en el análisis de las fuentes orales
y los aportes metodológicos de la historia oral y los marcos
normativos. Ambas fuentes se encuentran muy relacionadas
con los cuatro grandes elementos que comprende la historia
del tiempo presente: el testigo, la memoria, la demanda social
y el acontecimiento (ARÓSTEGUI 2004, p. 56). Finalmente,
esbozamos las (in)conclusiones surgidas a partir de este

275 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

artículo. Pretendemos, así, contribuir al debate frente a las


posibilidades que tenemos como historiadoras de analizar
procesos actuales desde una perspectiva historiográfica, sin
dejar de realizar un estudio riguroso ni perder de vista el
método en nuestra investigación.

En torno a la definición de historia del tiempo


presente
Desde su institucionalización, múltiples autoras se han
comprometido con la tarea de definir y caracterizar la historia
del tiempo presente. Los trabajos de los franceses François
Bédarida (1998, p. 19-27) y François Hartog (2010), del
alemán Reinhart Koselleck (2010, p. 137-148), de la brasileña
Marieta Ferreira (2000), de las argentinas Beatriz Figallo y
Josefa García de Ceretto (2009) y María Mudrovcic (2013, p.
11-31), del colombiano Hugo Fazio Vengoa (2012, p. 149-170)
y de los españoles Julio Aróstegui (2004) y Josefina Cuesta
(1993) constituyen ejemplos de ello.

A partir de dichas definiciones, caracterizamos la historia del


tiempo presente como una perspectiva historiográfica que tiene
por objeto el estudio del espacio temporal entre la experiencia
vivida y el horizonte de expectativa. Como consecuencia, su
cronología queda definida de manera dinámica y móvil por
el periodo durante el cual la actividad de la historiadora es
coetánea tanto con la historia vivida como con sus actores y
testigos. Ello origina uno de sus mayores desafíos: el estudio
de procesos inconclusos.

Esta definición comprende cuatro factores: el carácter


historiográfico, el espacio temporal cognoscible —definido
por la experiencia vivida y el horizonte de expectativa—, la
coexistencia entre el locus de enunciación del sujeto y su objeto
de estudio y el desafío que supone el estudio de procesos
inconclusos.

276 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

En primer lugar, partimos de la concepción de la


historiografía como un modo en que los historiadores abordan
el pasado (JENKINS 2009, p. 8). La propuesta historiográfica
de la historia del tiempo presente se centra, entonces, en la
importancia del presente en la construcción del pasado4. Para
ello propone una serie de técnicas y métodos interdisciplinares
que tienen en cuenta la comprensión del pasado como una
construcción intersubjetiva desarrollada por medio de un 4 Jenkins (2009, p.
7), entre otros, en-
diálogo activo entre la historiadora y su realidad5. Empero, al
tiende la historia
mantener un compromiso ontológico con la comprensión de como un discurso,
una narración, un re-
procesos históricos no deja de pertenecer a la disciplina de la
lato o una escritura
Historia. sobre el mundo. Esto
conduce a la idea del
pasado como cons-
Ejemplo de ello son las variadas investigaciones en el seno trucción (MUDROVCIC
de diversas instituciones. En Francia, encontramos el Bulletin 2013, p. 17, 22-23).
de l’IHTP de Paris y la colección Histoire du Temps Present, 5 Realidad que está
publicada a partir de 1998. En Brasil, contamos desde 1994 compuesta, como
expresamos, por los
con el Laboratório de Estudos do Tempo Presente (TEMPO) cuatro grandes ele-
del Instituto de História (IH-UFRJ) o los dossiers específicos mentos que compren-
den la historia del
de la revista Tempo e Argumento, surgidos de los seminarios tiempo presente: el
internacionales sobre historia del tiempo presente organizados testigo, la memoria,
la demanda social y el
por la Universidad del Estado de Santa Catarina (UDESC) acontecimiento.
en 2011, 2014 y 2017. En España, podemos considerar la
6 Viéndose redefini-
revista semestral Historia del Presente, de la Asociación de do con relación a la
Historiadores del Presente, o el dossier específico coordinado historiadora que lo
registra (ARÓSTEGUI
por Julio Aróstegui Historia y Tiempo Presente. Un nuevo 2004, p. 55), y que se
horizonte de la historiografía contemporaneísta, publicado por asienta sobre “un te-
rreno movedizo, con
la revista Cuadernos de Historia Contemporánea en 1998 y periodizaciones (...)
surgido a partir del seminario sobre historia del tiempo presente elásticas, con aproxi-
maciones variables,
de 1997. En Alemania, el mejor ejemplo está constituido por con adquisiciones su-
las revistas trimestrales de historia del tiempo presente del cesivas” (BÉDARIDA
1998, p. 22).
Institut für Zeitgeschichte de Múnich.

En segundo lugar, es una perspectiva historiográfica


demarcada temporalmente por un espacio cognoscible dinámico
y móvil6. Su frontera temporal está definida, entonces, por dos
hitos oscilantes: “río arriba, la duración de una vida humana (la
de los testigos); río abajo, una frontera difícil de situar entre

277 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

el momento presente (la actualidad, la cara de la historia) y el


instante pasado” (SAUVAGE, 1998, p. 61). Dichos hitos son,
por un lado, la experiencia vivida y, por el otro, el horizonte de
expectativa. Estos constructos engloban su campo de estudio,
definido por la presencia de testigos y la capacidad de diálogo
con su memoria viva. Permiten entender las relaciones entre el
pasado, el presente y el futuro mediante el análisis de esta triple
interacción: “las experiencias determinan el comportamiento
presente y configuran así la posibilidad del futuro. Dicho de
otro modo, es debido a que aprendemos del pasado como el
pasado se hace presente y nos guía en nuestra acción futura”
(CHEIRIF WOLOSKY 2014, p. 96).

El horizonte de expectativa remite al nexo entre el pasado


y el futuro, ya que representa “la única empresa historiográfica
capaz de establecer lo histórico con un contenido, al mismo 7 El concepto de cisne
tiempo, de prospectiva” (ARÓSTEGUI 2004, p. 142). En ese negro hace referencia
a un suceso histórico
sentido, se trata de una línea que separa las experiencias impredecible a priori
vividas de las experiencias por vivir —las “expectativas”— que produce un gran
impacto y que, una
(CHEIRIF WOLOSKY 2014, p. 96). La experiencia vivida nos vez pasado, se justi-
remite, por su parte, al concepto de “espacio de experiencia” fica racionalmente a
posteriori para trans-
concebido por Koselleck (2010), pues todas las experiencias formarlo en explicable
pasadas conforman un mismo espacio que es, en último y predecible (TALEB
2008, p. 95-96).
término, la memoria. La experiencia vivida —entendida como
el tiempo histórico cognoscible— queda definida, entonces, a
partir de la tensión expuesta por Koselleck entre el espacio
de experiencias mediadas por la memoria y el horizonte de
expectativa, pues “no hay pasado ni porvenir sino a través del
presente” (BÉDARIDA 1998, p. 21).

De esta forma, si la experiencia vivida está más ligada al


testigo y a la memoria, el horizonte de expectativa lo está
a la demanda social y al acontecimiento, ese “algo” al que
hace referencia Cheirif Wolosky (2014, p. 96) y que evita que
podamos predecir la expectativa a partir de la experiencia
vivida, alejando la comprensión del proceso histórico como
cíclico. El acontecimiento se vuelve aquí crucial, dando
origen a la presencia de “cisnes negros”7 que pueden alterar

278 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

profundamente la visión del pasado y, por ende, lo que se


espera del futuro. Ahora bien, a pesar de que el espacio de
experiencia y el horizonte de expectativa no son categorías
propias de la historia, “son la condición de posibilidad de toda
historia posible” (CHEIRIF WOLOSKY 2014, p. 95-96). En estos
términos, podemos entender que el presente está constituido
por “el lapso de coincidencia y estabilidad entre el espacio de
experiencia y el horizonte de expectativa” (ONCINA COVES
2015, p. 103).

El hecho de ser una perspectiva historiográfica cuyo


espacio temporal está delimitado por una cronología dinámica
y móvil es lo que diferencia a la historia del tiempo presente
con respecto a otros conceptos como los de historia reciente
o historia del mundo actual. Estas últimas no son un modo de
abordar el pasado —perspectivas historiográficas—, sino que
referencian una cronología dinámica —aún abierta— pero no
móvil —pues su límite temporal de inicio es invariable: 1945—.

En tercer lugar, la coexistencia entre el locus de enunciación


del sujeto y su objeto de estudio se da tanto en el tiempo como en
el espacio. El establecimiento de prioridades políticas, sociales
y económicas tiene, en ese sentido, efectos inmediatos sobre
qué, cómo y cuándo se estudia un acontecimiento o proceso
histórico. Más aún, las prioridades investigadoras y el modo en
que las comunidades epistémicas abordan diversas cuestiones
también generan efectos en su realidad. Resulta esencial, por
ende, entender los efectos que la triple interacción entre la
propia investigación, la experiencia de la investigadora y la
sociedad tienen en el proceso de investigación.

Valiéndonos de los conceptos de Buzan y Lawson (2015,


p. 322), es hora de hacer consciente la elección de nuestras
“fechas de referencia” para, desde nuestro locus de enunciación,
comprender las limitaciones epistémicas que definen nuestro
relato. Consideramos, sin embargo, que cualquier historiadora
—independientemente del tiempo que estudie— debe ser
consciente de la necesaria deconstrucción de las narrativas que
impregnan su realidad. Para ello, debe valerse de la integración

279 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

de múltiples fuentes y métodos que le permitan alcanzar un


conocimiento que abarque los diferentes prismas de una
realidad compleja. Por esta tarea abogan autoras como Pereira
(2018) cuando se refieren a la necesidad de hablar sobre el
lugar social y el lugar epistémico en la teoría de la Historia.

En cuarto lugar, nuestra definición contempla uno de


los mayores desafíos de la Historia: el estudio de procesos
inconclusos. Aróstegui sostiene que “la historia del tiempo
presente tiene un carácter evolutivo, sin el carácter definido
de otros períodos historiográficos y sin otro comienzo ni fin
que el momento en que se escribe. Está siempre en desarrollo,
inacabada” (ARÓSTEGUI 2004, p. 330). Es un proceso continuo
que, al ser su objeto “ese pasado que no termina de pasar,
(...) desafía todos los preceptos temporales [positivistas]
sobre los que se había construido la historia como disciplina”
(MUDROVCIC 2013, p. 25).

Los desafíos principales de la historia del tiempo


presente
Tras reconocer la serie de factores que definen la especificidad
de la historia del tiempo presente, este segundo epígrafe
aborda sus desafíos principales. Para ello, lo hemos dividido
en tres subsecciones: desafíos ontológicos, epistemológicos y
metodológicos. Con este apartado pretendemos identificar sus
problemas y dificultades, dialogar tanto con otras corrientes
historiográficas de la Historia como con otras disciplinas y
contribuir al debate con propuestas y apreciaciones propias
que profundicen en esos desafíos.

280 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

Desafíos ontológicos
La historia del tiempo presente enfrenta dos grandes
desafíos ontológicos8 en su formalización como propuesta
superadora de las lecturas positivistas. Estamos hablando, por
un lado, del análisis de procesos inacabados y, por el otro, del
desafío que supone pasar de una cronología estática a una
comprensión dinámica y móvil de los límites temporales.

En primer lugar, destacamos la importancia que conceden


múltiples autores a la dificultad de interpretar y analizar un
tiempo histórico abierto e inacabado, del cual no se conocen
8 En línea con Kose-
los resultados más determinantes (BÉDARIDA 1998, p. 24). lleck (2010, p. 139),
La historia del tiempo presente se encuentra en permanente consideramos que la
imposibilidad de de-
desarrollo (GONZÁLEZ CALLEJA 2005, p. 331), construcción y finir la ontología de
reconstrucción (FAZIO VENGOA 2012, p. 169)9. Este abordaje la Historia deriva de
que nada escapa a la
propone un análisis dinámico y complejo, que supera los límites perspectiva histórica,
propios de la disciplina, mediante el empleo de herramientas ya que, en ese sen-
tido, todo puede ser
metodológicas novedosas, adquiridas a partir de un necesario declarado objeto his-
diálogo interdisciplinar (KOSELLECK 2010, p. 137-138; tórico.

MUDROVCIC 2013, p. 25). 9 Sin embargo, con-


sideramos que no
es una característi-
El diálogo interdisciplinar no es una especificidad de la ca únicamente del
historia del tiempo presente. En su abordaje de las relaciones tiempo presente por-
que, como indica Fa-
de poder y, fundamentalmente, de la configuración del Estado zio Vengoa (2012, p.
para el ordenamiento de las relaciones sociales, la Ciencia 160), también lo es
del pasado y del fu-
Política ha ofrecido una profundidad teórico-metodológica turo.
sumamente útil para la comprensión genealógica de las
sociedades. La disciplina de las Relaciones Internacionales, por
su parte, ha ampliado esa lectura al dedicarse a la compleja
red de relaciones existentes en el ámbito internacional.
Autores como Peñas (2018) han remitido al diálogo entre la
Historia y las Relaciones Internacionales y a cómo, a pesar de
sus diferencias, ambas pueden complementarse en dos vías:
el enriquecimiento de sus teorías y la realización de mejores
análisis sobre la realidad estudiada. Por su parte, al enfrentar
el estudio etnográfico y cultural de las relaciones simbolizadas
e instituidas entre individuos en contextos complejos

281 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

(AUGÉ 2007), la Antropología y la Sociología han propuesto


reflexiones autocríticas de observación y análisis que han
remitido grandes aportes a la lectura de la relación entre el
tiempo, el espacio y el ser de la Historia. Sin embargo, su
diálogo estuvo profundamente limitado por la percepción
que tenían de la disciplina: “Esa es quizá la diferencia
entre Sociología e Historia, que habla sobre gente muerta”
(BOURDIEU Y CHARTIER 2015, p. 4).

Ante las dificultades epistemológicas y metodológicas


de las historiadoras al abordar el periodo reciente debido a
su proximidad temporal, en el siglo XX se ha fortalecido la
percepción de las periodistas como las mejores cronistas
(MONTEIRO 2018, p. 530). Creemos que la historia del tiempo
presente es el puente para fomentar el diálogo interdisciplinar
entre las Ciencias de la Comunicación —que aportan a la propia
comprensión de la comunicación humana desde el presente— 10 Encontramos tam-
bién esta crítica, así
y la Historia, pues la historiadora del tiempo presente “no solo como una propuesta
entiende el presente como resultado del pasado, sino también diferente de perio-
dización del tiempo
el pasado como construcción del presente” (MONTEIRO 2018, histórico para el caso
p. 522). Esta experiencia puede replicarse en otros campos. africano, en el traba-
jo de Ferrán Iniesta y
Albert Roca (2006, p.
La propuesta teórica de los enfoques decoloniales puede 20-54).
también formular importantes aportes si se aplica al campo
historiográfico. Desde la Filosofía, tanto Enrique Dussel (2010,
p. 50-51) como Santiago Castro-Gómez (2005, p. 26-27) han
sido profundamente críticos frente a la construcción ideológica
que representa la periodización del tiempo histórico —en
síntesis, la división de la historia en Antigua, Media, Moderna
y Contemporánea—10. Tal construcción ha sido establecida a
partir de la universalización de la temporalidad europea —la
“historia universal hegeliana”—, legitimada por una división
ontológica entre la cultura racional/científica occidental y el
resto de las culturas “premodernas” —la colonialidad del saber—
y reproducida por los paradigmas historiográficos occidentales.

A partir de la propuesta que representa la historia del tiempo


presente, es tanto posible como necesario profundizar el debate
crítico en torno al rol que ha cumplido la construcción de una

282 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

periodización histórica universalista. La concepción cronológica


dinámica y móvil y la importancia del locus de enunciación
como dos de los factores de la historia del tiempo presente
hacen que esta sea capaz de integrar los desafíos planteados
por los enfoques decoloniales. En cuanto al primero de dichos
factores, porque permite escapar a periodizaciones históricas
estancas y al segundo, porque desafía el carácter universalista
de dichas periodizaciones. Consideramos posible, entonces,
colaborar con la construcción de una lectura historiográfica
que permita plantear y analizar construcciones temporales y
espaciales alternativas, conscientes y críticas de la presencia
de narrativas universalistas fomentadas por la colonialidad del
saber.

Ello está muy relacionado, en segundo lugar, con otro gran


desafío ontológico: al postular una concepción dinámica y
compleja del tiempo, la historia del tiempo presente escapa
a la definición de límites cronológicos fijos postulada por las
corrientes historiográficas tradicionales (ARÓSTEGUI 2004, p.
101). Como veremos a lo largo del siguiente apartado, postula
en su lugar una actitud epistemológica diferente a la hora de
abordar el tiempo histórico presente (GONZÁLEZ CALLEJA
2005, p. 330). En ese sentido, gracias a las ventajas que
tiene la historia del tiempo presente —como el beneficio de
enfrentarse a fuentes vivas—, consideramos necesario seguir
profundizando y enriqueciendo este debate sin perder de
vista la importancia de la larga duración para la comprensión
de procesos históricos. Y es que, como indica Frank (1992,
p. 123), “es esta consideración a largo plazo la que marca la
diferencia fundamental entre el trabajo sobre ‘historia actual’ y
aquel sobre ‘actualidad’ entre el historiador y el periodista”. El
enfrentar estos retos hace indispensable tratar a continuación
una serie de desafíos de carácter epistemológico.

283 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

Desafíos epistemológicos
Aun cuando la complejidad de afrontar los desafíos
previamente definidos requiere un esfuerzo analítico
importante, el abordaje de la historia del tiempo presente
conduce a una serie de desafíos epistemológicos que tienen
relación directa con la posibilidad de la historiadora de abordar
como objeto de estudio su propia experiencia. Son, en concreto,
las siguientes cuestiones: la tradicional necesidad de mantener
una distancia temporal con el objeto de estudio, la consiguiente
inteligibilidad de los procesos históricos recientes y la exigencia
de mantener una independencia científica en el quehacer
historiográfico.

La distancia temporal con el objeto de estudio, vista como


sinónimo de objetividad, ha sido —y continúa siendo— una
constante en las corrientes historiográficas mayoritarias (PEÑAS
ESTEBAN 2018, p. 205). Ante todo, es prioritario reiterar que
nuestra actividad es subjetiva y, por ello, no permite alcanzar
una verdad objetiva. Por ende, toda construcción historiográfica
“sigue siendo inevitablemente una construcción personal (…). El
pasado que ‘conocemos’ depende siempre de nuestros propios
puntos de vista, de nuestro propio ‘presente’” (JENKINS 2009,
p. 16). La historia del tiempo presente permite así repensar
la labor de la historiadora en la manera en que hace frente a
su objeto de estudio. Incluso, la cercanía temporal puede ser
también una ventaja para ella, dado que tiene acceso a una
variabilidad de fuentes que pueden completar las omisiones de
los documentos oficiales o de registros no oficiales.

En cuanto a la inteligibilidad de los procesos históricos


recientes, es importante destacar que el presente de la
historiadora juega un papel esencial en su interpretación
del pasado. Esta capacidad de interpretación tiene mucho
potencial, ya que, además del estudio de una gran cantidad
y variedad de fuentes, permite a la historiadora interactuar
con los acontecimientos y las protagonistas de su estudio. La
historiadora tiene de este modo el deber de transformar ese

284 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

pasado en un “pasado histórico”, darle un “sentido” a partir


de interrogar a las protagonistas y los documentos desde una
problemática y una lectura teórica específica y convertirlo, de
ese modo, en “pensable” (MUDROVCIC 2013, p. 19).

Uno de los cuestionamientos fundamentales dirigidos a


la historiadora presentista ha sido el relativo a la exigencia
de mantener una independencia científica en el quehacer
historiográfico. Su incapacidad en cuanto a ese requisito
sería resultado de su constante interacción con el objeto de
estudio y de su predisposición a analizar el pasado a partir
de sus propios intereses: “así, solo la distancia temporal
podría garantizar una distancia crítica” (FERREIRA 2002, p.
315). Sin embargo, lo que tenemos que preguntarnos es si
la independencia científica es un desafío epistemológico de la
historia del tiempo presente o si se trata de un reto de la propia
labor historiográfica: “en este asunto el problema es el mismo
para aquellos periodos distanciados que para el presente”
(BÉDARIDA 1998, p. 23). De esta manera, como fue referido
en lo relativo al locus de enunciación, la influencia del presente
en el abordaje del objeto de estudio afecta a la historiadora
en su observación sin importar a qué distancia temporal se
encuentra de él.

Pensamos que esta distancia temporal es en realidad una


espera lo suficientemente larga como para permitir que los
intereses políticos queden cristalizados en la narrativa imperante
al interior del régimen de historicidad vigente. Intereses que,
en el presente, aún se encuentran en proceso de cristalización,
lo que permite acceder con mayor facilidad a las distintas
versiones del acontecimiento que se pretende estudiar. Como
afirma Peñas, la lectura, los rasgos y las preguntas que le
hagamos al pasado deben mucho a “cómo vivamos el presente
y cómo intuyamos el futuro” (PEÑAS ESTEBAN 2003, p. 27).
Así, el punto de partida de la historiadora deberá comprender
siempre una lectura crítica consciente de su subjetividad en
la observación del pasado, desentrañando de este modo la
reproducción de narrativas históricas cristalizadas.

285 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

Por otra parte, si la independencia depende de la carencia


de fuentes —vinculada, sobre todo, a la incapacidad de
acceder a archivos tanto privados como públicos—, desde la
historia del tiempo presente es posible interactuar con fuentes
más cercanas al testigo, la memoria, la demanda social y el
acontecimiento, como analizaremos en el tercer apartado.
Ello conlleva implícitamente una reflexión metodológica de
la disciplina histórica. Por tanto, la interpretación del tipo de
fuentes a las que pueda acceder la historiadora continúa siendo
materia de dicha reflexión.

Desafíos metodológicos
Como afirmamos previamente, uno de los desafíos implícitos
a la actividad historiadora es la necesaria reflexión en torno
a las herramientas de las cuales puede valerse la disciplina
histórica. Ello se deriva del uso de fuentes —como las orales—,
de un enfoque comparativo y pluridisciplinario, de la voluntad
de reintroducir la larga duración en el tiempo presente y del
deseo por descubrir las complejas relaciones que se establecen
entre las rupturas y las continuidades (SAUVAGE 1998, p. 64).

Aunque, según Rioux (1998, p. 72), el desafío más grande


que conlleva en el plano metodológico no implica más que
acentuar la vigilancia de la historiadora en el empleo de las
técnicas históricas, consideramos necesario ampliar esta
definición. A fin de formular un diagnóstico que permita
generar técnicas analíticas para investigaciones futuras,
resulta crucial centrar el debate en torno a la multiplicidad
de retos metodológicos que encontramos en el quehacer
investigativo. En este sentido, dado que la historia del tiempo
presente se ha nutrido de herramientas propias de otras
disciplinas —como las ya aludidas en relación con las Ciencias
de la Comunicación o la Filosofía—, ello ha implicado importar
sus desafíos metodológicos, relacionados fundamentalmente
con el tratamiento de las fuentes. Dicho tratamiento enfrenta
dos grandes problemáticas: una, relacionada con el acceso
a las fuentes y la otra, con su abordaje e interpretación.

286 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

Por un lado, asistimos tanto a la carencia, ausencia o


imposibilidad de acceso a algunas fuentes tradicionales (por
ejemplo, las archivísticas), como a su superabundancia y
dispersión (las normativas, orales y digitales, entre otras).
Por otro lado, su abordaje e interpretación es fundamental si
se quiere mantener una rigurosidad investigativa, tal y como
planteamos en el apartado siguiente.

Por otra parte, otro de los grandes desafíos presentes


en el acceso a esas fuentes es su instrumentalización o
manipulación con fines específicos. Sin embargo, nuevamente
consideramos que nos encontramos ante un problema general
de todas las fuentes de la historia. Observadas a la luz de
una actualidad que establece prioridades sobre qué y cómo
observar, el escudriñamiento de fuentes históricas requiere
una actitud alerta y crítica sin importar a qué periodo histórico
pertenezcan. Frente a ello, saber enfrentarnos eficazmente a
la coexistencia con los objetos de estudio será central para
cualquier investigación historiográfica. Siendo conscientes de
la gran variedad de fuentes y de los diálogos que se establecen
entre ellas, en el siguiente apartado daremos continuidad a
ese debate mediante el análisis de los marcos normativos y las
fuentes orales como fuentes centrales en la historia del tiempo
presente.

Fuentes de la historia del tiempo presente: fuentes


orales y marcos normativos
Como observamos en la última subsección, los desafíos
de la historia del tiempo presente en el plano metodológico
son diversos, ya que comprenden múltiples herramientas y
técnicas con un largo recorrido tanto en otras ciencias sociales
y humanas como en la propia Historia. Como veremos a lo
largo de este apartado, si bien la forma en que esos desafíos
han sido afrontados en otras áreas de conocimiento pueden
ofrecer pistas sobre el modo en que estas pueden ser aplicadas
a la Historia, nos interesan particularmente dos de ellas: las
fuentes orales y los marcos normativos.

287 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

Se trata de dos fuentes que se potencian y complementan


profundamente a partir de su diálogo, tendiendo puentes
entre los cuatro grandes elementos de la historia del tiempo
presente. Mientras que las fuentes orales otorgan a la
investigadora la oportunidad de acceder a la fuente primaria
que representa el testigo y, por intermedio de él o ella, a la
memoria; los marcos normativos son resultado del diálogo
surgido entre el acontecimiento y la demanda social. Además,
al ser la historiadora coetánea a la formulación de esos últimos,
el análisis historiográfico puede ser enriquecido por una
multiplicidad de factores externos al contenido propiamente
legal del documento estudiado.
11 Este diálogo puede
ser entablado de dife-
rentes maneras. Ver,
Los debates en torno a las fuentes orales por ejemplo, las cinco
maneras de utilizar
las fuentes orales que
Entendemos la historia oral como una técnica de Vilanova (1998, p.
investigación que faculta el acceso a las fuentes orales. Por 66) recoge de la obra
de Alessandro Portelli.
medio del establecimiento de un diálogo directo con el objeto
de estudio11, es posible desmitificar el quehacer historiográfico 12 Como, por ejem-
plo, mediante la rea-
como un proceso objetivo y neutro, permitiendo así revalorizar lización de entrevistas
la labor de interpretación historiográfica (FRASER 1993, p. 80; en profundidad, una
excelente herramien-
VILANOVA 1998, p. 66). En ese sentido, si bien el concepto ta para acceder a la
“historia oral” es reciente, se trata en realidad del primer tipo memoria de los acto-
res participantes en
de Historia (THOMPSON 1988, p. 32). los procesos históri-
cos estudiados.
Dado que en las fuentes orales juegan un papel fundamental
los testigos y la memoria viva, estos son esenciales en la historia
del tiempo presente (BÉDARIDA 1998, p. 22). En este sentido,
podemos establecer tres grandes puntos de contacto entre la
historia del tiempo presente y la oral: “la urgencia de crear
fuentes nuevas, la necesidad de ayudar a construir la memoria
que es la base de nuestro oficio, y la importancia creciente
de las imágenes” (VILANOVA 1998, p. 61). Sin embargo, la
historia del tiempo presente no es ni una recuperación de la
memoria, ni historia oral (SOTO GAMBOA 2004, p. 112). Como
afirma Duroselle (citado por SAUVAGE 1998, p. 62), tenemos el
deber de interpelar a los actores vivos cuando tratamos hechos
recientes12. Pese a ello, la invisibilización que ha promovido la

288 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

historia positivista en torno a la validez de la memoria en la


investigación histórica ha sido una de las grandes limitantes
del desarrollo de las técnicas de recolección de datos derivadas
de la historia oral. Y es por ello mismo que, hasta que no se
superó el temor por la memoria, la historia del tiempo presente
no pudo formalizarse (ARÓSTEGUI 2004, p. 39).

Si bien encontramos los antecedentes más antiguos de la


historia oral en personajes como Heródoto, Tucídides, Voltaire o
Michelet, la historia oral reciente tiene su origen en la creación
del Columbia Oral History Office en 1948, desarrollándose
desde entonces diferentes escuelas en Estados Unidos,
Gran Bretaña, Francia, Italia o España (FOLGUERA 1994, p.
8-12). Probablemente lo novedoso del siglo XX sea “la labor
sistemática de recuperación, de utilización de la fuente oral”
(FOLGUERA 1994, p. 4) que conllevó su institucionalización y
la sistematización de la metodología asociada al trabajo con la
oralidad.

Desde que se renunció en el siglo XIX al uso de fuentes


orales, estas han sido muy criticadas. La crítica principal tiene
que ver con su subjetividad frente a la supuesta objetividad
de las fuentes escritas. Sin embargo, como ya hemos descrito
en el punto sobre desafíos metodológicos, nuestra actividad
como historiadoras es subjetiva y “la objetividad arranca de
una subjetividad explicitada exhaustivamente en cualquier
tipo de fuente producida” (VILANOVA 1998, p. 63). Frente a
las visiones que apuestan en que la labor de la historiadora
consista en la búsqueda de una verdad definitiva, la historia del
tiempo presente en general —y la historia oral en particular—
permite reivindicar la importancia de la labor de la historiadora
como intérprete más que como testigo, notario o juez (SOTO
GAMBOA 2004, p. 110). Como recoge Fraser, Portelli afirma
que la subjetividad es el premio y la maldición de la historia
oral (FRASER 1993, p. 80).

Concretamente vinculada a la historia oral y a las entrevistas


en profundidad, la importancia de la interpretación en la labor
histórica ha sido destacada por numerosas historiadoras, tal

289 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

como Vilanova (1998, p. 64). Adicionalmente, trabajar desde


la historia del tiempo presente permite a la historiadora una
mayor compresión de los códigos lingüísticos y culturales de la
sociedad en la que vive o, al menos, un diálogo directo con las
protagonistas del objeto de estudio. Ello le permite comprender
más profundamente el contexto estudiado y adquirir así una
mayor capacidad interpretativa de lo que está investigando.

Otra de las principales críticas está vinculada a su


escasa fiabilidad, derivada de las limitaciones de la memoria
humana (FOLGUERA 1994, p. 18). Aróstegui (2004, p. 158)
apunta que, más que una reproducción del mundo exterior,
la memoria es un aparato para interpretar dicho mundo.
Tanto él como Sauvage han trabajado las conexiones entre
memoria e historia del tiempo presente. El primero destaca
13 Historizar la me-
dos funciones de la memoria en la aprehensión de lo histórico: moria es “interpretar
la capacidad de reminiscencia de las vivencias en forma de la historia vivida a
la luz de la no vivi-
presente y la memoria como soporte de lo histórico además da”, siendo su condi-
de como vehículo de su transmisión (ARÓSTEGUI 2004, p. ción previa relativizar
temporalmente lo re-
161). El segundo hace referencia a la memoria como objeto memorado —raciona-
de la historia en tres aspectos: como fuente, en la manera lizarlo— “antes de su
inserción en un dis-
en que orienta las investigaciones de los historiadores y en curso histórico veri-
la medida en que actuamos en el presente en función de la ficable” (ARÓSTEGUI
2004, p. 166).
memoria que tenemos del pasado (SAUVAGE 1998, p. 67-
68). Volviendo a la obra de Aróstegui, el autor distingue
entre lo que es memoria escrita y memoria oral. Si bien la
memoria escrita ha sido considerada tradicionalmente como
fundamental en el estudio histórico, en la historia del tiempo
presente es la memoria oral la que desempeña un papel esencial
(ARÓSTEGUI 2004, p. 170).

En cualquier caso, la memoria no es una historia construida,


sino que es una “materia de historia” que debe ser historizada13
(ARÓSTEGUI 2004, p. 165). Debemos tener en cuenta, además,
que no hay fuentes orales “falsas”, sino que “las afirmaciones
equivocadas constituyen verdades psicológicamente ciertas”
(PORTELLI 1991, p. 43). Retomando la importancia de la
interpretación en la labor historiográfica, Fraser indica que la

290 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

problemática de la memoria hace que nos encontremos más


en el campo de la interpretación que en el de la explicación
(FRASER 1993, p. 91), ya que, como señala Portelli (1991, p.
45), “la memoria no es un depósito pasivo de hechos, sino un
activo proceso de creación de significados”. Son precisamente
esos significados creados por la memoria los que la labor
historiográfica debe interpretar.

Las entrevistas en profundidad son la herramienta


que mejor nos permite acceder a la memoria de quienes
protagonizan la historia y emplear, así, la historia oral como
técnica de investigación contemporánea14. Existen diversos
tipos de entrevistas y, sea cual sea el escogido, es necesario
llevar a cabo un trabajo previo de preparación. Ello implica,
a su vez, una labor tanto de conocer el contexto histórico y 14 Para un análisis
social como de tener claro cuáles son las hipótesis del trabajo de la relación entre
la labor historiográfi-
(FOLGUERA 1994, p. 44). ca y la periodística y
sus diferencias, ver el
Además de las normas básicas que hay que tener en cuenta artículo de Monteiro
(2018).
a la hora de formulación de las preguntas, Vilanova nos invita
a ir más allá de la historia oral tradicional15. Su propuesta 15 Aquella vinculada
a la entrevista clá-
contempla el acercamiento hacia nuevas formas de entrevistar sica que se reduce
que disminuyan los equilibrios de poder y tengan en cuenta a un “vaciado” de la
memoria de la entre-
los objetivos de las entrevistadas y que resulte, finalmente, vistada sin dar impor-
en un proceso de aprendizaje mutuo (VILANOVA 1998, p. 65- tancia al proceso.

66). Portelli también se sitúa en esta línea, recomendando


que se priorice lo que la entrevistada desea decir frente a lo
que la investigadora desea oír, ya que, en último término, la
entrevista es producida tanto por la narradora como por la
investigadora (PORTELLI 1991, p. 47). En ese sentido, las
entrevistas semiestructuradas en profundidad presentan una
serie de características que permiten alejarse de la entrevista
clásica. Ello se puede observar en el sentido de que, al ser
semiestructuradas, permiten mayor flexibilidad por parte de
la historiadora a la hora de priorizar a la persona entrevistada
y tener también en cuenta sus objetivos y de que, al ser en
profundidad, posibilitan que el proceso de aprendizaje sea
mutuo.

291 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

Si bien hemos descrito aquí algunas de las críticas de las que


son objeto, las fuentes orales también presentan importantes
ventajas y potencialidades. La primera es que funcionan como
una “denuncia social políticamente útil” (VILANOVA 1998, p.
70) al hacer posible explorar aquellos silencios mayoritarios
que encontramos en las fuentes escritas y buscar el porqué
de esos silencios (VILANOVA 1998, p. 65). Permiten valorizar,
así, testigos y testimonios que tradicionalmente no han sido
importantes para las narrativas históricas. Tales silencios existen
también en las fuentes orales y hay que saber escucharlos e
interpretarlos, pues el propio hecho de “ocultar” puede dar
más información que el hecho de “contar” (PORTELLI 1991,
p. 45). Estos factores, junto a las dudas, las repeticiones o las
asociaciones, conforman una parte fundamental del testimonio
(SAUVAGE 1998, p. 65).
16 Fraser entiende
que las fuentes orales
Otra de las ventajas que consideramos fundamentales son una representa-
es que la propia praxis de la historia oral puede servir para ción de las estructu-
ras al ser representa-
romper las barreras entre las disciplinas (FRASER 1993, p. 90). ciones de situaciones
Como afirma Sauvage (1998, p. 65), “al historiador le y que son represen-
taciones de las praxis
conviene inspirarse en procedimientos de otras disciplinas”, al ser representacio-
ya que la posibilidad de establecer nexos con la Psicología, nes de las reacciones
a dichas situaciones
la Antropología, las Relaciones Internacionales, etc., (FRASER 1993, p.
permite hacer uso de elementos propios de dichas 90).
disciplinas para recuperar esa “memoria” del pasado
que no podemos encontrar en las fuentes tradicionales
(FOLGUERA 1994, p. 90-91).

Finalmente, Fraser (1993) señala dos ventajas muy


importantes. La primera se refiere a que las fuentes orales,
al ser simultáneamente representaciones de las estructuras
y las praxis16, cuestionan que la realidad sociohistórica
sea concebida, por un lado, como resultado de estructuras
“objetivas” puras y, por otro lado, como resultado de la acción
subjetiva pura (FRASER 1993, p. 90). La segunda alude a que
las fuentes orales cuestionan también la historia teleológica
al permitir el restablecimiento tanto de contradicciones
como de ambigüedades —inherentes a cualquier situación

292 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

histórica— que son obviadas cuando las investigaciones se


enfocan exclusivamente en los orígenes y las responsabilidades
históricas (FRASER 1993, p. 90-91).

En este apartado sobre las fuentes orales, hemos buscado


relacionar las críticas más tradicionales que se les han dirigido
con las ventajas y posibilidades que ofrecen a la disciplina
histórica. Pretendemos mostrar la importancia de las fuentes
orales a la hora de hacer historia del tiempo presente y su
utilidad cuando estas son utilizadas junto con otro tipo de
fuentes. Además, procuramos poner de manifiesto los desafíos
a los que hacen frente y las reflexiones que suscitan tanto
su uso como su análisis, vinculadas con la memoria, la
subjetividad, los silencios mayoritarios, la interdisciplinariedad y
el cuestionamiento de narrativas historiográficas hegemónicas.

Escribe Portelli (2014, p. 14) que “la historia oral


comienza con el encuentro entre un sujeto que tiene una
historia (story) para contar y un sujeto con una historia
(history) para (re)construir”. Precisamente, pensamos que las
entrevistas semiestructuradas en profundidad, por sus propias
características, pueden ser ese lugar de encuentro.

Hemos comenzado este apartado buscando una definición


de lo que es historia oral. Nuevamente Portelli nos sugiere
que, más que una disciplina o una técnica, la historia oral es
un género: “En otras palabras, podríamos definir a la historia
oral como el género discursivo que la oralidad y la escritura
han creado para hablar entre sí de la memoria y del pasado”
(PORTELLI 2014, p. 12). Podríamos añadir que ese diálogo se
produce en un contexto del “presente” que pone de manifiesto
la importancia de las subjetividades y, por ende, de la labor
de interpretación a la que tiene que hacer frente el oficio de la
historiadora.

293 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

El uso de marcos normativos como fuente histórica


Las reflexiones metodológicas formuladas previamente
sobre las fuentes orales se integraron a los debates iniciados en
otras ciencias sociales y humanas en una pugna por la aceptación
de su validez como fuente. Mientras tanto, el uso de marcos
normativos como fuente de la historia del tiempo presente no
ha implicado una ruptura con la historia positivista. Y es que, en
realidad, la Historia ha acudido a ellos como fuente primaria con
cierta asiduidad debido principalmente a que no representan
un desafío epistémico para el abordaje analítico positivista,
que contempla una separación entre sujeto y objeto. Los
documentos serían, desde esta perspectiva, objetos “neutros”
de análisis que hablan por sí solos. En palabras de Braudel
(2007, p. 214), “el descubrimiento masivo del documento [hizo]
creer al historiador que en la autenticidad documental estaba
contenida toda la verdad”. Consecuentemente, hacer uso de
marcos normativos como fuente de investigación no implica
necesariamente poner en tela de juicio el rol que cumple la
historiadora al interpretarlos.

Ahora bien, al no representar su uso un desafío para la


historia positivista, las historiadoras del tiempo presente no han
centrado en exceso su atención en las consecuencias que tiene
su propuesta ontológica y epistemológica en la lectura de esa
fuente. En realidad, su utilidad escapa a los límites asignados
por el enfoque metodológico de la historiografía tradicional.
Y es que, como mencionamos previamente, en los marcos
normativos se encuentran entrelazados dos elementos de la
historia del tiempo presente: el acontecimiento y la demanda
social. Así, por un lado, el acontecimiento puede dar origen a
debates que tengan como resultado la formulación de marcos
normativos. Por su parte, la demanda social surge como
respuesta ante necesidades no reconocidas por esos debates
institucionales, suscitando nuevos acontecimientos.

Además, si bien no hay novedad en el uso de marcos


normativos como fuente primaria de la Historia, sí la hay en

294 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

la multiplicación de ese tipo de fuentes. Así, mientras que la


investigación histórica se ha apoyado en el estudio de todo tipo
de normativas jurídicas nacionales, regionales y locales, tales
como constituciones, leyes, decretos, reglamentos, ordenanzas,
entre otros; durante los siglos XX y XXI nacieron y se hicieron
fuertes un sinnúmero de organizaciones inter y supranacionales.
Como consecuencia del nuevo orden mundial post Segunda
Guerra Mundial, un amplio abanico de organismos generaron
infinitas normativas que se sumaron a las existentes en una
compleja pirámide jerárquica regulatoria. Hablamos, sin ir más
lejos, de resoluciones, decisiones, declaraciones, agendas y
tratados internacionales, tanto de organismos internacionales,
como la Organización de Naciones Unidas, como de organismos
supranacionales, como la Unión Europea o la Organización de
Naciones Suramericanas.

Estos documentos comprenden en sí, a su vez, las presencias,


intencionalidades, ausencias y omisiones en el discurso público
oficial y no oficial que la historiadora puede complementar tanto
con otras fuentes de la Historia como con un análisis profundo de
las circunstancias que rodean la elaboración de los documentos.
Nos encontramos en realidad ante una radiografía de un
momento histórico preciso: los marcos normativos contemplan
en su seno indicios del “horizonte de expectativas” del discurso
y la agenda política vigentes, pero también representan una
cristalización de la “experiencia vivida” por la sociedad.

Más aún, si ampliamos el espectro analítico, cuando


hablamos de marcos normativos, no hablamos sólo de la labor
de las legisladoras, sino de su interpretación y aplicación por
magistrados, políticos y funcionarios. Tanto legisladoras como
fiscales y juezas han cumplido un rol específico al “presentar
y construir la historia de maneras diferentes, deseables y
favorables, (…) y luego usado la ‘verdad’ construida de los
eventos para una variedad de proyectos políticos” (BAAZ, LILJA
y VINTHAGEN 2017, p. 186).

No obstante, una historia construida a partir de marcos


normativos nos enfrenta a uno de los mayores peligros de una

295 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

disciplina que, tradicionalmente, se ha valido de la historia


institucional para construir narrativas homogeneizantes: la
comprensión de la historia oficial como historia única. Si bien
en el análisis normativo están presentes silencios y omisiones
propias de toda historia oficial, la historiadora del presente se
encuentra en una posición privilegiada. La posibilidad de acceder
al debate generado en torno a la agenda pública se postula
como una posibilidad para llenar esos silencios y enriquecer
su análisis. Ello permite a la investigación enriquecerse del
estudio de los fundamentos y objetivos del documento oficial
en sí, por un lado, y del clima político externo en el cual éste
se formula —y al cual, en oportunidades, tiene acceso la propia
historiadora— por el otro. Para su análisis puede valerse,
además, de “la memoria fresca de los testigos y protagonistas,
17 Adoptamos este
las fuentes orales, [sus] vivencias (...) y su sensibilidad para concepto en un sen-
tido amplio, contem-
sentir la historia” (SOTO GAMBOA 2004, p. 111).
plando con ello el
Estado y sus compo-
Todo ello no puede dejar de lado el rol de la población en nentes, los organis-
mos internacionales,
la formulación, aplicación y derogación de marcos normativos. el tercer sector y el
Este proceso se da a partir de un complejo mecanismo de sector económico y fi-
nanciero, entre otros.
convergencia, negociación y confrontación entre instituciones17
y sociedad civil18. En este sentido, no hablamos sólo de los 18 Para una intro-
ducción al análisis del
mecanismos de democracia indirecta o directa existentes en concepto de sociedad
los sistemas representativos actuales, como son el proceso civil, véase Esquivel
Solís y Chávez Becker
electoral, por un lado, o los plebiscitos, las consultas vinculantes (2017, p. 207-222).
y no vinculantes, los referéndums, las iniciativas populares o las
revocaciones y avocaciones por el otro. Nos referimos, también,
al rol de la protesta social en la transformación del discurso
público y la agenda política y a la manera en que los medios
de comunicación alteran o enfatizan determinados aspectos de
esas con el objetivo de satisfacer o fortalecer determinados
intereses. Ese rol es llevado a cabo por todos los actores de la
sociedad civil, tanto en la formulación de las normativas, como
también al momento de su aplicación y derogación.

Esa participación puede ser observada, a su vez, a


través de distintas gafas teóricas. Por un lado, los enfoques
funcionalistas del derecho entienden que las construcciones

296 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

legales surgen a partir de cada realidad social. Ello tiene como


consecuencia que los conflictos sociales no sean más que
mecanismos útiles para el encauzamiento del derecho a esa
realidad (PARSONS et. al. 1961). Por el otro lado, las lecturas
sociológicas marxistas se orientan hacia la comprensión
de las normativas como instrumentos de configuración y
control social, garantes con ello de la dominación de una(s)
clase(s) sobre otra(s) (MARX y ENGELS 2011, p. 45).
En un intento por complejizar estas propuestas, los enfoques
foucaultianos entienden que el poder regulatorio actúa en la
formación y conformación de sujetos con efectos productivos
y subjetivantes (BUTLER 2006, p. 9). Como consecuencia,
las normativas no son más que dispositivos de regulación de
conductas en una microfísica del poder reproducida a lo largo
de toda la sociedad.

Sin negar el rol coactivo de los marcos normativos,


es importante remarcar que, por medio de ellos, pueden
ser abiertos espacios de participación, pues “el sistema
legal [también] representa el espacio donde los oprimidos
pueden ser legisladores para desarrollar estructuras
contrahegemónicas” (FIERRO 2018, p. 95). La misma dinámica
se reproduce en el ámbito internacional, donde la regulación
normativa puede manar de procesos de negociación infra,
inter y supraestatales frente a acontecimientos detonantes
de demandas sociales. Finnemore y Sikkink (1998, p. 888)
conducen un profundo análisis acerca del “ciclo de vida” que
transitan las normativas internacionales para alcanzar su
institucionalización. Este recorrido, añaden, tiene su origen en
la aparición de la necesidad de la norma, tras lo cual atraviesan
un umbral en el cual una masa crítica de actores estatales
relevantes la apoya, generando un “efecto cascada” que produce
el abordaje legal por parte de otros Estados y la consiguiente
presión internacional para su regulación. Finalmente, y con el
tiempo, la normativa es interiorizada por la sociedad y codificada
por el Estado, tras lo cual es, eventualmente, naturalizada y
normalizada.

297 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

Así, en este retorno de lo político al campo de las


investigaciones históricas (SAUVAGE 1998, p. 63), la
historiadora deberá hacer su mayor esfuerzo por interpelar y
a su vez comprender de la mejor manera tanto las demandas
sociales formuladas, socializadas y mediatizadas (RIOUX 1998,
p. 72) por la sociedad civil como el horizonte de expectativas
en el cual se ven inmersas. Ello sólo será desentrañable —
siempre de manera parcial e inacabada— a partir de la
instrumentalización de una gran variedad de fuentes y
metodologías complementarias, en un diálogo interdisciplinar
que permita entender con mayor profundidad y desde un
conocimiento situado los factores invisibilizados detrás de la(s)
historia(s) oficial(es).

En ese proceso tienen una especial importancia las fuentes


orales. Por un lado, permiten a la historiadora acceder a
testimonios de las principales protagonistas. Por el otro, ofrecen
un espacio de diálogo con el gran —y siempre mayoritario—
abanico de voces que no se ven reflejadas ni interpeladas por
los marcos normativos (VILANOVA 1998, p. 65). Creemos, de
esta manera, que en la interdisciplinariedad y la multiplicidad de
métodos esbozadas puede encontrarse un camino válido para
evitar la reproducción de las narrativas oficiales. Esta lectura
crítica de la coyuntura política y social que rodea la redacción
de las normativas, consciente de su locus de enunciación,
puede ser la clave que permita superar una historia limitada al
análisis de lo oficial.

(In)Conclusiones y futuros debates


Este trabajo tuvo como origen la reflexión en torno a las
posibilidades que ofrece la historia del tiempo presente para
conducir estudios historiográficos inmersos en la realidad
que pretendemos analizar. Dicho análisis hace necesario un
posicionamiento crítico desde nuestro locus de enunciación,
que debe nutrirse tanto del diálogo con otras corrientes
historiográficas y disciplinas como de los aportes metodológicos
que supone la aplicación de diversas técnicas vinculadas al

298 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

trabajo con fuentes primarias. En nuestra propuesta, nos hemos


centrado en la integración entre la historia oral y los marcos
normativos. Nuestro objetivo con ello fue formular los factores
y desafíos de la historia del tiempo presente por medio de esas
fuentes, abordando, así, un trabajo de complementariedad y
diálogo que permite cubrir los silencios de ambas.

Iniciamos este artículo con un breve estado de la


cuestión y una reflexión en torno a la definición de la historia
del tiempo presente, buscando sistematizar los factores
que consideramos fundamentales para su comprensión
como perspectiva historiográfica. En una segunda parte,
abordamos su ontología, cuestionamos su perspectiva
epistemológica y analizamos algunos de sus mayores
desafíos metodológicos. Teniendo en consideración tanto los
factores de nuestra definición como los desafíos que genera
nuestra propuesta, en una tercera parte nos enfocamos en
el análisis de las fuentes orales y los marcos normativos.
Estas fuentes resultan fundamentales, pues, como demostramos,
el diálogo entre ellas integra los cuatro elementos de la historia
del tiempo presente: el testigo, la memoria, la demanda social
y el acontecimiento.

Como postulamos en este trabajo, consideramos que esta


tarea es abordable únicamente por medio de un necesario
trabajo interdisciplinar. En este sentido, si bien es posible
encontrar algunas respuestas al interior de la Historia, resulta
central establecer un diálogo con otras Ciencias Sociales y
enriquecer así la investigación con fuentes primarias. A lo largo
de este artículo esbozamos algunos ejemplos. Por un lado y con
relación al locus de enunciación, consideramos interesante la
integración del debate en torno a la descolonización del tiempo
histórico propuesto por los enfoques decoloniales. Desde
su experiencia en el tratamiento del presente, las Ciencias
de la Comunicación también tienen mucho que enseñarnos.
Finalmente, en un momento en el que el análisis de procesos
internacionales y globalizados es cada vez más importante,
establecer un intercambio con las Relaciones Internacionales

299 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

puede ofrecer una serie de elementos que nos dé pistas en


términos teóricos y prácticos sobre la comprensión de los
fenómenos que trascienden lo local.

A modo de cierre, consideramos necesario entender la


historia del tiempo presente como un espacio de frontera. Una
frontera móvil, pues sus límites pueden ser tanto expandidos
como contraídos al trabajar con procesos inconclusos. Una
frontera que es un lugar de encuentro: por un lado, temporal,
entre pasado, presente y futuro; y por el otro, disciplinar.
Por último, como todo espacio de frontera, es un espacio de
coexistencia. No sólo coexisten la historiadora y su objeto
de estudio, sino también la memoria, el acontecimiento, la
demanda social y el testigo. Afirma Fazio Vengoa (1998, p.
48) que, si queremos consolidarla como un campo específico
de saber, “es menester trascender los márgenes en que se
ha movido la discusión y avanzar por nuevos derroteros”. Aún
resulta necesario continuar explorando este espacio fronterizo:
una triple frontera para repensar nuestra relación con el
tiempo en nuestra labor de historiadoras y nuestra relación de
coexistencia con los procesos y sujetos que buscamos historizar.

300 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

REFERENCIAS

ARÓSTEGUI, Julio. La historia vivida: Sobre la historia


del presente. Madrid: Alianza, 2004.

AUGÉ, Marc. El objeto de la antropología hoy.


Psicoperspectivas, vol. 6, n. 1, p. 7-21, 2007, Disponible
en: https://doi.org/10.5027/psicoperspectivas-Vol6-Issue1-
fulltext-42. Consultado el: 11 ene. 2020.

BAAZ, Mikael; LILJA, Mona; VINTHAGEN, Stellan.


Researching Resistance and Social Change: A Critical
Approach to Theory and Practice. Londres-Nueva York:
Rowman & Littlefield International, 2017.

BÉDARIDA, François. Definición, método y práctica de la


Historia del Tiempo Presente. Cuadernos de Historia
Contemporánea, n. 20, p. 19-27, 1998. Disponible en:
https://bit.ly/2lXj6LK. Consultado el: 16 sept. 2019.

BOURDIEU, Pierre; CHARTIER, Roger. The Sociologist &


the Historian. Cambridge y Malden: Polity Press, 2015.

BRAUDEL, Fernand. La larga duración en la historia y las


ciencias sociales, Capítulo 3, Alianza, Madrid, 1979 (4º
Edición). Relaciones Internacionales, n. 5, p. 209-244,
2007. Disponible en: https://bit.ly/2kkvlBI. Consultado el:
16 sept. 2019.

BUTLER, Judith. Regulaciones de género. Revista de


Estudios de Género. La ventana, n. 23, p. 7-35, 2006.
Disponible en: https://bit.ly/2kDhery. Consultado el: 16
sept. 2019.

BUZAN, Barry; LAWSON, George. The Global


Transformation: History, Modernity and the Making of
International Relations. Cambridge: Cambridge Studies in
International Relations, 2015.

301 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

CASTRO-GÓMEZ, Santiago. La poscolonialidad


explicada a los niños. Bogotá: Pontificia Universidad del
Cauca, 2005.

CHEIRIF WOLOSKY, Alejandro. La teoría y metodología de la


historia conceptual en Reinhart Koselleck. Historiografías,
n. 7, p. 85-100, 2014. Disponible en: https://doi.org/10.26754/
ojs_historiografias/hrht.201472433. Consultado el: 16
sept. 2019.

CUESTA, Josefina. Historia del Presente. Madrid:


Eudema, 1993.

DUSSEL, Enrique. Ética de la liberación en la edad de


la globalización y la exclusión. Madrid: Trotta, 2000.

ESQUIVEL SOLÍS, Edgar; CHÁVEZ BECKER, Carlos. La


sociedad civil. In: SÁNCHEZ DE LA BARQUERA Y ARROYO,
Herminio (ed.). Antologías para el estudio y la
enseñanza de la ciencia política. Volumen II: Régimen
político, sociedad civil y política internacional. México DF:
Instituto de Investigaciones Jurídicas, Universidad Nacional
Autónoma de México, 2017, p. 207-222. Disponible en:
https://bit.ly/2lYGtVa. Consultado el: 16 sept. 2019.

FAZIO VENGOA, Hugo. La globalización y la intensificación


del presente. In: GANDARILLA, José; RAMOS,
Ramón; VALENCIA GARCÍA, Guadalupe (coord.).
Contemporaneidad(es). Madrid: Seguitur, 2012, p. 149-
170.

FAZIO VENGOA, Hugo. La historia del tiempo presente:


una historia en construcción. Historia Crítica, n. 17,
p. 47-57, 1998. Disponible en: https://doi.org/10.7440/
histcrit17.1998.04. Consultado el: 16 sept. 2019.

FERRREIRA, Marieta de Moraes. História do tempo


presente: desafios. Cultura Vozes, vol. 94, n. 3, p. 111-
124, 2000.

302 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

FERREIRA, Marieta de Moraes. História, tempo presente e


história oral. Topoi, v. 3, n. 5, p. 314-332, 2002. Disponible
en: http://dx.doi.org/10.1590/2237-101X003006013.
Consultado el: 13 de ene. 2020.

FIERRO, Alberto. ¿Cooptación o resistencia?


Problematizando las estrategias legales y derechos de
los movimientos sociales en el dominio socioeconómico.
Relaciones Internacionales, n. 39, p. 81-101,
2018. Disponible en: http://dx.doi.org/10.15366/
relacionesinternacionales2018.39.005. Consultado el: 16
sept. 2019.

FIGALLO, Beatriz J.; GARCÍA DE CERETTO, Josefa. La


Historia del Tiempo Presente: Historia y epistemología
en territorios complejos. Buenos Aires: Universidad Católica
Argentina, Facultad de Filosofía y Letras, 2009.

FINNEMORE, Martha; SIKKINK, Kathryn. International


norm dynamics and political change. International
Organization vol. 52, n. 4, p. 887-917, 1998. Disponible
en: https://doi.org/10.1162/002081898550789. Consultado
el: 16 sept. 2019.

FOLGUERA, Pilar. Cómo se hace historia oral. Madrid:


Eudema, 1994.

FRANK, Robert. Questions aux sources du temps présent In:


TÉTART, Philippe; CHAUVEAU, Agnès (coord.) Questions
à l’histoire des temps présents. Bruselas: Complexe,
1992, p. 109-124.

FRASER, Roland. La historia oral como historia desde


abajo. Ayer, n. 12, p. 79-92, 1993.

GONZÁLEZ CALLEJA, Eduardo. Julio Aróstegui. La historia


vivida, sobre la historia del presente, Madrid, Alianza,
2004, 445 páginas. Historia Contemporánea, n. 30,
p. 327-334, 2005. Disponible en: https://bit.ly/2lXjmuc.
Consultado el: 16 sept. 2019.

303 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

GUIRAULT, René. Être Historien des Relations


Internationales. París: Publications de la Sorbonne, 1998.

HARTOG, François. El historiador en un mundo presentista.


In: DEVOTO, Fernando (Dir.) Historiadores, ensayistas
y gran público: La historiografía argentina 1990-2010.
Buenos Aires: Biblos, 2010.

JENKINS, Keith. Repensar la Historia. Madrid: Siglo XXI,


2009.

KOSELLECK, Reinhart. Sobre la necesidad teórica de la


ciencia histórica. Prismas: Revista de Historia Intelectual,
n. 14, p. 137-148, 2010. Disponible en: https://bit.
ly/2mkQRqI. Consultado el: 16 sept. 2019.

MARX, Carlos; ENGELS Federico. Manifiesto del partido


comunista. México DF: Centro de Estudios Socialistas
Carlos Marx, 2011.

MONTEIRO, José Fernando Saroba. Tempo presente:


entre os métiers do historiador e do jornalista. Tempo
e Argumento, v. 10, n. 24, p. 510-539, 2018. Disponible
en: http://dx.doi.org/10.5965/2175180310242018510.
Consultado el: 11 ene. 2020.

MUDROVCIC, María Inés. Regímenes de historicidad y


regímenes historiográficos: del pasado histórico al pasado
presente. Historiografías, revista de historia y teoría, n.
5, p. 11-31, 2013. Disponible en: https://doi.org/10.26754/
ojs_historiografias/hrht.201352457. Consultado el: 16
sept. 2019.

ONCINA COVES, Faustino. De la contracción a la dilatación


del tiempo: tiempos menguantes y crecientes. Historia
y Grafía, vol. 22, n. 44, p. 89-114, 2015. Disponible en:
https://bit.ly/2kpzBjy. Consultado el: 16 sept. 2019.

304 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

PARSONS, Talcott; SHILS, Edward; NAEGELE Kaspar D;


PITTS, Jesse R. (Ed.). Theories of society: foundations
of modern sociological theory. Nueva York: The Free Press
of Glencoe, 1961.

PEÑAS ESTEBAN, Francisco Javier. Hermanos y enemigos.


Liberalismo y relaciones internacionales. Madrid: Catarata,
2003.

PEÑAS ESTEBAN, Francisco J. Explicar, valorar, comprender


e influir: en torno a la “actuación” del historiador en la Historia
de las Relaciones Internacionales / Entrevistas a varios
autores - José Luis Neila. Relaciones Internacionales,
n. 37, p. 193-207, 2018. Disponible en: http://dx.doi.
org/10.15366/relacionesinternacionales2018.37.008.
Consultado el: 16 sept. 2019.

PEÑAS ESTEBAN, Francisco Javier. Clío y Palas Atenea:


Apuntes sobre el papel constitutivo de la Historia en la Teoría de
Relaciones Internacionales. Relaciones Internacionales,
n. 37, p. 59-93, 2018. Disponible en: http://dx.doi.
org/10.15366/relacionesinternacionales2018.37.003.
Consultado el: 12 ene. 2020

PEREIRA, Ana Carolina Barbosa. Precisamos falar sobre


o lugar epistêmico na Teoria da História. Tempo e
Argumento, v. 10, n. 24, p. 88-114, 2018. Disponible
en: http://dx.doi.org/10.5965/2175180310242018088.
Consultado el: 11 ene. 2020.

PORTELLI, Alessandro. Historia oral, diálogos y géneros


narrativos. Anuario Digital, n. 26, p. 9-30, 2014. Disponible
en: https://bit.ly/2kQ67LR. Consultado el: 16 sept. 2019.

PORTELLI, Alessandro. Lo que hace diferente a la historia


oral. In: SCHWARZSTEIN, Dora (comp.). La historia oral.
Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1991, p.
36-53.

305 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

RAPOPORT, Mario. Una contribución al estudio de la historia


de las relaciones internacionales en América Latina desde
fines del siglo XX. Horizontes LatinoAmericanos, vol. 2,
n. 1, p. 91-102, 2014. Disponible en: https://bit.ly/2kMVKs9.
Consultado el: 16 sept. 2019.

REUS-SMIT, Cristian. Leyendo la historia con una mirada


constructivista. Relaciones Internacionales, n. 20,
p. 63-83, 2012. Disponible en: https://bit.ly/2koXXdc.
Consultado el: 16 sept. 2019

RIOUX, Jean-Pierre. Historia del Tiempo Presente y demanda


social. Cuadernos de Historia Contemporánea, n. 20,
p. 71-81, 1998. Disponible en: https://bit.ly/2mlE8UL.
Consultado el: 16 sept. 2019.

ROCA, Albert; INIESTA, Ferrán. Raíces: ¿Por qué la historia


es un conocimiento vital en el África del siglo XXI? In:
SANTAMARÍA, Antonio; ECHART MUÑOZ, Enara (coord.)
África en el horizonte. Introducción a la realidad
socioeconómica del África Subsahariana. Madrid: La
Catarata, 2006, p. 20-54.

SAUVAGE, Pierre. Una historia del tiempo presente.


Historia Crítica, n. 17, p. 59-70, 1998. Disponible en:
https://doi.org/10.7440/histcrit17.1998.05. Consultado el:
16 sept. 2019.

SOTO GAMBOA, Ángel. Historia del Presente: Estado de


la cuestión y conceptualización. Historia Actual Online
HAOL, n. 3, p. 101-116, 2004. Disponible en: https://bit.
ly/2kkwF7D. Consultado el: 16 sept. 2019.

TALEB, Nassim. El cisne negro: el impacto de lo altamente


improbable. Barcelona: Paidós, 2008.

THOMPSON, Paul. La voz del pasado. La historia oral.


Valencia: Alfons El Magnànim, 1988.

306 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Historia del tiempo presente

VILANOVA, Mercedes. La historia presente y la historia


oral. Relaciones, balance y perspectivas. Cuadernos
de Historia Contemporánea, n. 20, p. 61-70, 1998.
Disponible en: https://bit.ly/2mkQXyA. Consultado el: 16
sept. 2019.

307 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
Diego S. Crescentino & Gonzalo Vitón

AGRADECIMIENTOS E INFORMACIÓN
Diego Sebastian Crescentino
diego.crescentino@uam.es
Universidad Autónoma de Madrid
Madrid
España

Gonzalo Vitón
gonzalo.viton.garcia@gmail.com
Universidad Autónoma de Madrid
Madrid
España

Esta investigación ha sido financiada por los


contratos predoctorales FPU-MECD (FPU15/05822)
y FPI-UAM 2017 del Departamento de Historia
Contemporánea.

La presente publicación se inserta en el marco


del proyecto SI1/PJI/2019-00257 (Las relaciones
de las dictaduras europeas y latinoamericanas en
clave transnacional: entendimiento, rivalidades y
conexiones con los Estados democráticos: 1930-
1980), financiado por la Consejería de Ciencia,
Universidades e Innovación de la Comunidad de
Madrid y la Universidad Autónoma de Madrid.

RECIBIDO EL: 17/SEP./2019 | ACEPTADO EL: 26/MAR./2020

308 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago, ano 2020, p. 273-308 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1529
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Un grano de arena en la inmensidad del mar: lo que


puede aportar la historia a la elaboración de pasados
traumáticos
A grain of sand in the immensity of the sea: how history can
contribute to the elaboration of traumatic pasts

Florencia Levín
https://orcid.org/0000-0002-1216-4710

RESUMEN
A partir de una preocupación por los efectos duraderos
de experiencias atroces ocurridas en pasados recientes, ABSTRACT
como la del terrorismo de estado en la Argentina, y por
Concerned with the lasting effects of atrocious
el problema de la transmisión intergeneracional de la
experiences in recent past –such as that of state terrorism
historia, el propósito de este trabajo consiste en proponer
in Argentina– and the problem of intergenerational
una conceptualización al mismo tiempo ontológica y
transmission of history, this work aims to conceptualize
epistemológica del problema del trauma. Tomando
trauma at both ontological and epistemological levels.
como punto de partida una polémica propiamente
Taking an Argentinean controversy as the starting point,
argentina, intentaré abordar de modo transversal
I will try to cross-sectionally address the epistemological
los problemas epistemológicos que se presentan en
problems that arise from the historization of traumatic
la historización de pasados traumáticos en un nivel
pasts at metadiscursive and methodological levels.
metadiscursivo y al mismo tiempo metodológico. A
From the idea that the problem does not come from
partir de la intuición de que el problema no resulta de
an ontological anomaly of the historical experience but
una anomalía ontológica de la experiencia histórica
from an epistemological limitation of the discipline, I
sino de una limitación epistemológica de la disciplina,
will propose an inquiry that seeks, at the same time,
propondré una indagación con vistas a conceptualizar
to historicize and conceptualize traumatic experiences.
y al mismo tiempo ubicar históricamente lo traumático.
My operative hypothesis is that trauma is not the
Propondré como hipótesis operativa que el trauma
antithesis of history but its remains. The redefinition of
constituye un resto de la historia y no su antítesis. Esta
the dilemma in terms of aporia will allow us to address
conceptualización me permitirá redefinir el dilema en
the implicit epistemological problems involved.
términos de aporía, lo que constituye una clave para
resolver los problemas epistemológicos implícitos
involucrados.

PALABRAS CLAVE
historia reciente; trauma; epistemología de la historia
KEYWORDS
recent history; trauma; epistemology of history

309 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

“Las condiciones de posibilidad de la historia real son, a la vez,


las de su conocimiento” (KOSELLECK 1993, p. 336) 1 El ensayo se titula
“Memorias traumá-
ticas de pasados re-
cientes. Políticas de
Preocupado por los efectos ocasionados en el sujeto
la memoria: ¿trans-
histórico-político por la memoria traumática de hechos misión o mandato?”
y fue publicado en un
ocurridos en un pasado reciente y, más específicamente, por
volumen colectivo a
los modos y resultados de la transmisión intergeneracional cargo de Mudrovcic,
dedicado al problema
de un legado inconcluso devenido artefacto cultural y objeto
de la representación
de políticas públicas, en un ensayo publicado en 20091 el de pasados en conflic-
to (Ver 2009a).
psicoanalista argentino Blas de Santos mostraba fuertes
reparos con respecto a la eficacia epistemológica y política 2 Utilizo la itálica para
destacar el carácter
de una flamante empresa historiográfica, la llamada historia
nativo del término.
reciente,2 que por entonces se consolidaba como subdisciplina Usaré el sintagma sin
itálicas para referir a
académica especializada en el estudio del terrorismo de estado
la epistemología de la
y la violencia política en la Argentina.3 Refiriéndose a una obra historia reciente, que
desborda ampliamen-
colectiva publicada dos años antes y que pronto se convertiría
te al campo y se ar-
en la “piedra de toque” de la nueva historiografía (FLIER ticula con otras redes
semánticas.
2014, p. 10),4 el autor cuestionaba la premura que advertía
en ella por anticiparse al advenimiento del pasado: “como si 3 Estos han sido sus
núcleos temáticos
el apuro llevara a historiar un pasado que no hubiera cesado
y problemáticas, no
de pasar, cuando está pasando, cuando aún es presente, como existiendo consensos
claros en cuanto a la
es el caso [decía] de la memoria del terror” en la Argentina
variable definitoria
(DE SANTOS 2009, p. 127). Sus preocupaciones se fundaban para la delimitación
de objeto: ontológica
en la apreciación de que tanto las políticas públicas de memoria
(trauma); cronológica
como asimismo la vorágine por hacer historia mostraban un (reciente/presente);
fenomenológica (la/s
resultado fallido, deshistorizante y despolitizador, tendiente a
violencia/s).
reforzar la enajenación de los sujetos con respecto a su propia
4 Se refería a Historia
experiencia histórica y, por lo tanto, a inhibir la posibilidad
Reciente. Perspecti-
de transmisión de un valioso legado.5 El riesgo era, desde su vas y desafíos para un
campo en construc-
perspectiva, el sacrificio del potencial de sentido yaciente en el
ción, compilado por
inacabado pasado para dejarlo atrapado en un único sentido: Marina Franco y Flo-
rencia Levín (Paidós),
el impuesto por lo traumático bajo la modalidad del mito
con aportes de Jelin,
(2009, p. 127). Visacovsky, Sabato,
Finochio, Pittaluga,
Carnovale, Lvovich,
Con respecto a la historia reciente específicamente, da Silva Catela, Kau-
el autor consideraba que su emergencia era coincidente fman y Traverso.
“con el automatismo —impertinente e incoercible— del (CONT.)
recordar compulsivo”, que, advertía, para el psicoanálisis es

310 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

“patognomónico de lo traumático” (2009, p. 126). Es por


ello que desacreditaba a la nueva empresa historiográfica,
considerándola “una vía de acceso al comportamiento social
(CONT.)
y político indiferente a la coalescencia de la metodología del
5 Aludía al auge de la
abordaje con la estructura del objeto a conocer” (2009, p. 126).
literatura testimonial
A pesar de que en el mencionado libro se definía la ontología y del periodismo de
investigación.
de su objeto de modo similar, como un “pasado abierto, de
algún modo inconcluso, (...) cuyos efectos se nos vuelven 6 En esa obra, Lvovich
hablaba de la natura-
presentes” (FRANCO; LEVÍN 2007, p. 31),6 y de que se ubicaba
leza traumática del
allí una relación genealógica entre trauma e historia, sellada en pasado (97), mien-
tras que, para Franco
la figura del dolor que introducía la obra,7 desde la perspectiva
y Levín, son momen-
de De Santos, la imposibilidad de asimilar la irrupción de tos de profundas rup-
turas y discontinui-
sentidos intraducibles terminaría, de todas maneras, “alojando
dades que amenazan
lo incomprensible en el registro de lo trágico” y aislando “al el mantenimiento del
lazo social (34).
discurso de toda interlocución rectificadora o confirmatoria”
(2009, p. 132): así, “la narración del pasado se hace signo y 7 “La historia de la
historia reciente es
su evocación se substrae a la dialéctica significante por lo que,
hija del dolor” (2007,
devenida en un significado tan unívoco como disponible prêt p. 15). Esta frase,
que inauguraba la in-
à porter, [da] por tierra su historización y así la subjetivación
troducción del libro,
política que le corresponda”, empujando al presente en un condensó lo que tenía
de contradictorio la
tobogán que conduce a un futuro sin sujetos de su tiempo
naciente historiogra-
(2009, p. 126-127). fía. Ver Alonso (2007
y 2010), Andújar y
D’Antonio (2008),
Han pasado ya 10 años desde esa fulminante intervención Águila (2012), Flier
crítica de Blas de Santos y lo cierto es que, desde entonces (2014), Águila y Alon-
so (2017).
a esta parte, la historia reciente no ha cesado de expandirse
hasta llegar a convertirse en una de las principales 8 Cabe destacar que
los años de confor-
novedades historiográficas de los últimos tiempos (ÁGUILA; mación del campo
ALONSO 2017, p. 13), lo que magnifica exponencialmente académico fueron
los del surgimiento
el alcance de sus inquietudes.8 Emergente de una y consolidación del
imparable pulsión vehiculizada preponderantemente por proyecto kirchnerista
(2003-2015), en cuyo
miembros de las primeras camadas de universitarios marco se produjo un
formados durante la posdictadura en las universidades vuelco importante en
la construcción públi-
nacionales del país, dicho emprendimiento encontró eco y se co-política de memo-
expandió rápidamente mediante una modalidad descentralizada ria (CRENZEL 2016).
y reticular de crecimiento, con una amplia participación de (CONT.)
las universidades del interior.9 Los indicadores cuantitativos
disponibles dan cuenta de un importante y veloz crecimiento

311 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

relativo dentro de la historiografía argentina a partir del nuevo


milenio. Así, por ejemplo, del total de ponencias presentadas
en las concurridas y periódicas Jornadas Interescuelas, las
(CONT.)
referidas al pasado cercano pasaron del 0 al 18% entre 1999
9 Como las de Rosa-
y 2015,10 observándose una tasa de expansión similar (de
rio, de La Plata, del Li-
entre el 8 y el 22%) en los temas de investigación de las tesis toral, de la Patagonia,
de General Sarmien-
de posgrado defendidas en algunas universidades púnicas
to, de Buenos Aires,
nacionales durante el mismo período.11 Hasta qué punto de La Pampa, de San
Martín, entre las pio-
esa emergente y expansiva historiografía se ajusta o no al
neras.
diagnóstico de Blas de Santos es algo que no soporta un juicio
10 Ver fuente en
rápido ni un resultado unívoco.
2017, p. 9. Otra series
de datos desplegados
En el marco de una antigua preocupación por los vínculos llegan a la misma cifra
(FRANCO; LVOVICH
entre ontología y epistemología de la historia, en las páginas 2017). Es de destacar
que siguen me gustaría demostrar que si Blas de Santos que este auge relativo
se enmarcó en el sos-
acertaba en su prejuicio acerca del carácter enajenante del tenido crecimiento del
conocimiento histórico de pasados traumáticos era porque, de conjunto del sistema
científico y académico
alguna manera, también estaba equivocado. Retomando los durante los primeros
aportes fundamentales de Francisco Naishtat (2009), quien años del gobierno de
N. Kirchner. Ver al-
ha aplicado el paradigma de los espacios controversiales de gunos indicadores en
Oscar Nudler —y, con él, las nociones operativas de sentido 2017, p. 5.
común, refocalización, inercia y generación de nuevos 11 Según Franco y
significados— al análisis de la historiografía contemporánea, Lvovich, las tesis re-
feridas a temas de
mi intensión en este trabajo consiste en abordar el historia reciente re-
problema de la irreductibilidad entre trauma e historia. presentan el 19% del
total en el doctorado
Para ello, en un primer momento me abocaré a analizar los de Historia de la Uni-
supuestos y los presupuestos que sustentan la construcción versidad Nacional de
la Plata, el 18%, en el
de la historia reciente argentina para interrogar sus silencios doctorado en Historia
y develar así lo que ella tiene en común con el planteo de de la Universidad Na-
cional de Rosario, el
Bals de Santos a pesar de las evidentes diferencias.12 Intentaré 22%, en el posgrado
demostrar a continuación que dicho sustrato común también IDES/UNGS; el 21%,
en el doctorado de
es trasversal a las principales posturas que se dirimen en Filosofía y Letras y el
la llamada controversia sobre la cognoscibilidad de pasados 8%, en el de Ciencias
Sociales de la Univer-
atroces13 o debate en torno a los límites de la representación sidad de Buenos Aires
(FRIEDLANDER 2007).14 Sospechamos que esta inercia (2017, p. 195).
constituye una pista importante que nos ayudará en la (CONT.)
resolución del problema. Dedicaré el resto del trabajo a
seguir sus huellas a partir de la intuición de que el mismo

312 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

no deviene de una anomalía ontológica de la experiencia


histórica —según el sentido común historiográfico—, sino de
una limitación epistemológica de la disciplina. En efecto, la (CONT.)
hipótesis que sostiene la presente indagación propone que el
12 El análisis de la
trauma no constituye la antítesis de la historia sino su resto. historia reciente se
realizó a partir de
Se espera que la fundamentación de esta idea nos permita
una pesquisa empíri-
redefinir el dilema como aporía y atender así a los desafios ca guiada por la no-
ción de “núcleo duro”
metodológicos implicados. Como una serpiente que se muerde
(es decir, el consti-
la cola, la conclusión del trabajo constituye, al mismo tiempo, tuido por la cúpula
piramidal de quienes
su condición de posibilidad.
concentran la mayor
cantidad de recursos
Es pertinente advertir que utilizo la noción de historiografía académicos y las ma-
yores tasas de impac-
de dos maneras distintas: en términos de campo (BOURDIEU to autoral).
2002) para referir a la producción que se auto identifica
13 Iremos viendo
mediante el sintagma “historia reciente”15 y, desde el punto que esta y otras ca-
de vista cognoscitivo, como “una compleja red de problemas tegorías se vinculan
onomasiológicamente
interconectados que se desarrolla por complejización, donde con los sentidos que
no quedan excluidos el retorno de temas en apariencia dejados el trauma adquirirá
en la historiografía a
atrás” (NAISHTAT 2009, p. 52). Es por ello que si bien la partir de los años ‘80
reflexión parte de una preocupación específica por la historia del siglo XX.
reciente argentina, su abordaje se abre más ampliamente a la 14 En este caso, como
dimensión de las controversias sobre la historización de pasados se verá, el acento del
trabajo no está puesto
traumáticos. Elegí partir por la citada intervención de Blas de en el recorte empírico
Santos no sólo por la inquietante actualidad y pertinencia de sino en la metodolo-
gía de abordaje, que,
sus señalamientos, ni por el hecho de que sin dudas me siento a su vez, lo desdobla
autoral y generacionalmente interpelada, sino también debido en dos variables y di-
mensiones de análisis
a la inmensa productividad que su orden de indagación propone teórico-metodológi-
al pensamiento sobre el pasado al inscribir lo traumático como cas diversas.
real y, por lo tanto, como punto de exterioridad absoluto. 15 Vale aclarar que
Guía mis reflexiones una obstinación por esperar, todavía, el campo guarda una
importante autono-
que la historia pueda servir para algo más que para repetir/ mía relativa con res-
representar. pecto a los estudios
sobre memoria social,
que lo antecedieron
en 10 años, y que la
interlocución con las
reflexiones de filóso-
fos y epistemólogos
es bastante escasa.

313 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

Matar al pasado vivo


Desde una perspectiva distinta pero arribando a similares
conclusiones, en un ensayo publicado en el mismo libro que
De Santos criticaba, el historiador italiano Enzo Traverso había
expresado sus reparos con respecto al proceso de objetualización
del pasado reciente por parte de la historiografía argentina.
Retomando el esquema de las etapas de la memoria que el
historiador francés Henry Rousso había esbozado para explicar
el “síndrome de Vichy” en Francia, y aplicando su hipótesis 16 Recuérdese que,
según la cual la historiografía tiende a seguir los trazos de los según el autor de El
síndrome de Vichy
procesos de la memoria social,16 Traverso afirmaba que en la (1987), después de
Argentina de entonces no estaban dadas las condiciones para un traumatismo suele
advenir una fase de
una historiografía científica puesto que no había habido allí represión, que será,
una separación con el pasado marcada por fuertes rupturas tarde o temprano,
seguida de una inevi-
simbólicas sino tan solo un alejamiento cronológico, lo que table anamnesis que
habría perennizado la fase de duelo (84-85). La escritura de puede convertirse en
obsesión (en TRA-
la historia, afirmaba el autor, “exige una toma de distancia, VERSO 2007, p. 81 y
una separación, incluso una ruptura con el pasado, al menos 82).

en la conciencia de sus contemporáneos, lo que es la condición 17 Hora (2001); Pit-


esencial que les permite proceder a una historización” (81). taluga (2007, 2017);
Franco y Levín
Recién después de ello, concluía, la historia podría ser capaz (2007), Águila (2008,
de constituirse como un discurso distinto al de la memoria, 2012). Sobre la in-
soslayable dimensión
con la cual, sin embargo, no puede no mantener una relación generacional, ver la
de intimidad (72). Resulta en sí mismo un dato revelador intervención del pro-
pio De Santos y, para
el hecho de que, a pesar de la contundencia de su opinión, una perspectiva más
el ensayo de Traverso haya sido canonizado como núcleo externa, Cattaruzza
(2012, p. 86); Figue-
teórico-metodológico habilitante de la nueva historiografía. roa Ibarra e Iñigo Ca-
rrera (2010, p. 13).
Desde luego, la historia reciente no era ajena a las
tensiones epistemológicas y políticas implicadas en la empresa
historiográfica. Sin embargo, tendió a interpretarlas en
términos de impedimentos conservadores y tradicionalistas
encauzados por historiadores de otra generación ya
consagrada.17 Con respecto al problema apuntado por Traverso,
en otros ensayos de esa misma obra se afirmaba que, “aunque
en el caso argentino la presencia de[l] pasado traumático
en la esfera pública resulta un dato casi permanente” no

314 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

habiendo mediado un período de silencio (LVOVICH 2007,


p. 98 y 115), la falta de distancia “no puede considerarse
un impedimento” para el abordaje del pasado cercano
(FRANCO; LEVÍN 2007, p. 52).18 Diez años más tarde, Franco
y Lvovich retomarían la discusión diciendo que “la transición
a la democracia, el juicio a los excomandantes [y] la crisis
de diciembre de 2001 pueden ser considerados como hitos
simbólicos que implican cierta forma de ruptura con los pasados
considerados cercanos” y, asimismo, que “la distancia temporal
no es un problema para quienes hacen historia reciente
desde otras tradiciones disciplinares como la sociología o la
antropología, siendo ese carácter interdisciplinario un rasgo
central del campo” (2017, p. 191).

Argumentaré que la recepción acrítica del marco teórico- 18 Pittaluga aboga-


metodológico brindado por Enzo Traverso contribuyó a la ría por un “distan-
ciamiento del propio
producción de un olvido que constituye, de algún modo, la presente, para aten-
condición de posibilidad de esa empresa historiográfica: el olvido der en él lo que tiene
de pasado ocluido”
del carácter traumático del trauma. Analizaré sintéticamente (2014, p. 117). Palti
dicho proceso en dos dimensiones diversas: en primer lugar, en apuntó que los inten-
tos por establecer un
la superficie discursiva de las reflexiones teórico-metodológicas límite temporal en-
elaboradas por la propia historia reciente y, a continuación, gendran la ilusión de
un punto de vista ex-
en un plano más profundo, a partir de la consideración de su terior que el autor de-
eficacia epistemológica. Hablaré en el primer caso de un olvido nomina arquidémico
(2010, p. 45).
semántico y, en el segundo, de un olvido metodológico, el cual
supone, en realidad, el olvido del olvido primero (lo no dicho
de lo dicho).

En relación con el olvido semántico, este se advierte en


el desplazamiento del trauma, que pasó de ocupar el lugar
de núcleo epistémico en las primeras autodefiniciones de la
historia reciente, como se ha visto, a tener un rol secundario
o marginal en el marco de una redefinición del campo en
términos de historia del tiempo presente. Se argumentó,
en relación con ello, que la identificación de la historia
reciente con el dolor y los acontecimientos traumáticos “no
alcanza a involucrar una multitud de dimensiones sociales
que se incluyen en otras definiciones”, por lo que “sería más

315 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

conveniente superar el trauma como elemento disciplinar


definitorio en pos de una definición más amplia de la disciplina
como historia actual o historia inmediata de la cual la historia
reciente sería una forma específica o sector especializado”
(ÁGUILA; ALONSO 2017).19 Incluso se ha afirmado que la
importancia que pueda revestir el trauma para la historia ya
es asunto de una decisión personal: “somos nosotros los que
lo definimos como tal” (ALONSO 2010, p. 55). Es así que,
19 La participación de
10 años más tarde de la aparición de aquel libro, se asevera colegas extranjeros
en el debate, como
que la historia reciente “está en condiciones de descentrarse
la de Allier Montaño,
de los objetos que configuraron inicialmente su ámbito de para quien lo defini-
torio debe ser “el pre-
desarrollo y avanzar hacia otros espacios definidos de manera
sente, y no el dolor, el
más amplia por un ‘régimen de historicidad contemporáneo’” trauma y la violencia”
(2018, p 108), de-
(FRANCO; LVOVICH 2017, p. 207), en clara consonancia con
muestran el impacto
una expansión interdisciplinaria del campo historiográfico. No regional de la redefi-
nición epistemológica
es un dato menor que todas las reflexiones de balance sobre
de la historia reciente.
el campo concuerden en que en definitiva la historia reciente
20 Ver particularmen-
no implica ni requiere ningún tipo de innovación, exista un
te Jelin (2002), que
consenso importante con respecto a que, en verdad, la historia tuvo gran repercusión
en la región.
reciente no implica ni requiere ningún tipo de innovación
(FRANCO; LVOVICH 2017, p. 191; ÁGUILA 2012, p. 73). 21 Para Mudrovcic
(2013), se trata de
“Al fin y al cabo, se concluye que si la historia reciente tiene
la historiografía que
algo diferente de otras formas de hacer historia es simplemente tiene por objeto fe-
nómenos que cons-
un plus de politicidad” (ALONSO 2010, p. 63).
tituyen recuerdos de
al menos una de las
Con respecto al olvido metodológico, advertimos que este tres generaciones que
comparten un mismo
se encuentra en la canonización de una conceptualización de presente histórico.
la memoria social de corte sociológico, que refiere a objetos La autora argumenta
que esa historiografía
tangibles y metodológicamente controlables —ya se trate de es correlativa del ré-
las memorias sociales o ya sea se trate de los recuerdos de gimen de historicidad
presentista (HARTOG
testigos y sujetos entrevistados en el marco de la historia 2007).
oral—,20 la historia reciente hizo como si la separación entre
pasado y presente —que, en los términos de Traverso estaría
impedida y, en los de De Santos, imposibilitada precisamente
por los efectos traumáticos del trauma— fuera un hecho
posible y objetivable en tanto que empíricamente observable,
lo que le permitió una rápida y “natural” adecuación
epistémica al paradigma de la historia del tiempo presente.21

316 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

Apuntemos que, para De Santos y más ampliamente para el


psicoanálisis, trauma y memoria representan dos funciones y
dinámicas psíquicas diversas y antitéticas,22 de modo que es la
des-des-identificación entre trauma y memoria lo que subyace 22 Según De San-
tos, ante el aconteci-
en la naturalización de la conceptualización sociológica de
miento traumático, la
memoria. Asimismo, se considera que el concepto operativo de función habitual de la
memoria (inscripción,
dicho paradigma, que vincula objeto y sujeto de conocimiento
codificación y conser-
en términos de coetaneidad (MUDROVCIC 1998/2000, vación de las viven-
cias) sale de la ges-
p. 4),23 logró garantizar la “vigencia” epistémica del constructo
tión del sujeto y, así,
científico de la historia basado en la preexistencia e inalterabilidad de la posible disposi-
ción del conocimien-
de su diferencia a partir de un gesto tan elemental como el “de
to de lo vivido (2009,
poner aparte, de reunir, de convertir en ‘documentos’ algunos p. 125).
objetos repartidos de este modo” (DE CERTEAU 2010, p. 85).24
23 En efecto, como
observa Mudrovcic,
Se advierte entonces que, mediante la adopción de ese esa definición de his-
toria del presente re-
paradigma, la historia reciente logró fagocitar todas las plantea la relación
dimensiones de aquello otro de la historia, que ya no sería entre sujeto y objeto
de conocimiento al
el pasado convertido en tradición sino su incrustación/ definir a este último
invaginación en el presente, aislable, reconocible y manipulable como aquel pasible de
ser recordado por una
en tanto que “memoria”. Así, violentando la naturaleza de las generaciones
indomeñable del trauma, la historia reciente logró “matar” vivas que comparten
un mismo presen-
al pasado vivo “garantizando” el a priori de “la distinción te histórico, a la que
entre el aparato explicativo, que es presente, y el material puede o no perte-
necer el historiador
explicado, los documentos, que se refieren a curiosidades de (1998/2000, p. 4).
los muertos” (Ibid.). Aun cuando la muerte es precisamente
24 Y aclara: “El gesto
lo que está imposibilitado en la historia reciente argentina. consiste en ‘aislar’ un
Ontológicamente, la definición del desaparecido es la de aquel cuerpo, como se hace
en física, y en ‘des-
que ha sido privado de su propia muerte (SCHMUCLER 1996). naturalizar’ las cosas
para convertirlas en
Pero lo traumático insiste en diversos planos de la piezas que llenan las
lagunas de un conjun-
realidad y, en lo que hace a la historia reciente, la amenaza to establecido a priori
de su retorno se manifiesta en la recurrencia en la literatura [(...) de modo que]
las destierra de la
erudita de algunos significantes y tópicos, comenzando por práctica para conver-
la imposibilidad tanto de incluir como de descartar el término tirlas en objetos ‘abs-
tractos’ de un saber”.
mismo, el “plus de politicidad” de la historia reciente,25 el
peligro de sesgar la mirada y el problema de la neutralidad (CONT.)

valorativa26, el llamamiento a la “vigilancia epistemológica”27 o


el metatópico de la conciencia de sí.28

317 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

En cuanto al rol social de la historia y su utilidad para


la elaboración de pasados traumáticos, es destacable que
la aplicación de ese paradigma supuso una importante
redefinición de la deontología disciplinar, contenida ya como
mandato en la fórmula: si bien la historia “nace de la memoria”, (CONT.)
debe emanciparse de ella pasándola “por el tamiz de una
25 Además de Alonso
verificación objetiva, empírica, documental y fáctica” y dando (2007 cit.), ver tam-
bién Carnovale (2007,
cuenta, si es necesario, de sus “contradicciones y trampas”
p. 172); Jelin (2007,
(TRAVERSO 2007, p. 76). En efecto, y a pesar de que se p. 329); Águila (2012,
p. 75); Águila y Alon-
observa la presencia de importantes diferencias en cuanto a
so (2017); Chama y
las funciones que se espera que la historia cumpla con respecto Sorgentini (2011).
a la memoria (por ejemplo, corregirla y complejizarla,29
26 “Nuestros inevi-
protegerla y brindarle audibilidad30 o encontrar el punto justo tables juicios de va-
lor deben ser (...)
entre distancia crítica y compromiso ético31), ellas han confluido
controlados por la
en la configuración de novedosas formas de intervención producción de un co-
nocimiento metodo-
pública de la historia, como, por ejemplo, la difusión de
lógicamente orienta-
solicitadas en las cuales lxs historiadores del campo se do” (ALONSO 2010,
p. 63). Para Lvovich,
pronuncian en calidad de colectivo profesional autorizado para
“hay empatía y explí-
brindar a la ciudadanía la verdad de la historia y aclarar la cito compromiso ético
pero al mismo tiempo
correcta interpretación del pasado buscando incluso
conciencia y distancia
adhesiones mediante firmas. Algunos de estos manifiestos, crítica” (2014, p. 11).
publicados en los momentos más álgidos de la conflictividad
27 Ver Franco y Le-
política de los últimos años, visibilizaron tensiones al interior vín (2007, p. 24 y
33); Alonso (2010, p.
de la historia reciente32 que cristalizaron en algunas rupturas
63); Flier (2014, p.
dentro de su “núcleo duro” (entre ellas la de quien suscribe), 15); Franco y Lvovich
(2017, p. 192).
hasta entonces aunado confraternalmente en torno a un
nosotros generacional.33 28 “Nos sentimos
agentes de algo nue-
vo...” (ALONSO 2010,
A pesar de lo sucinto del recorrido expuesto hasta aquí, p. 63). Lvovich refiere
estamos en condiciones de decir que lo traumático (o más a una “conciencia por
vincular [el] saber con
específicamente, el carácter traumático de lo traumático) ciertas políticas de la
constituye lo no inscribible de la operación histórica de la memoria, con ciertos
modos de interven-
historia reciente argentina, el hueco que esconde lo no dicho ción social” (2014, p.
de lo dicho. Hemos visto que tanto en la superficie textual de 110).
las autodefiniciones del campo como en la capa más profunda (CONT.)
de la operatoria metodológica propiamente dicha, la historia
reciente tendió a resolver los desafíos que lo traumático
impone al conocimiento mediante la producción de un doble

318 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

olvido, semántico y metodológico, que le permitió normalizar lo


(CONT.)
inasimilable y tratar al pasado “reciente” como la historiografía
29 Para Águila, “la
trata habitualmente a cualquier pasado histórico. Llegados
historia tiene que
a este punto, estamos en condiciones de advertir que el aportar a una confi-
guración de memoria
consenso implícito entre la historia reciente y la postura de
despojada de prejui-
Blas de Santos radica en la consideración de que la historia cios y mitos, ofrecien-
do “explicaciones más
únicamente podrá ser escrita cuando se encuentre desprendida
densas y complejas,
de la memoria traumática, es decir, cuando el pasado se haya rigurosamente funda-
mentadas” (2012, p.
separado del presente. Lo que cambia es, en primer lugar, la
75-76).
noción de memoria implicada y, en segundo, el modo en que
30 Para Oberti y Pi-
se resuelve en cada caso la ecuación: o bien impugnando el
ttaluga, “el pasado
carácter científico de la historia, o bien negando el carácter tiene sus propias de-
mandas, que requie-
traumático del trauma.
ren ser escuchadas”
(2004/2005, p. 10),
afirmación que esti-
mula una apertura a
Lo que todavía no es mientras sigue siendo la idea de una escri-
tura dialógica o hí-
brida entre historia y
Advertimos que el presupuesto compartido por Blas de
memoria (PITTALUGA
Santos y la historia reciente argentina también atraviesa 2014; OBERTI; PIT-
TALUGA 2016).
transversalmente las principales posturas que se enfrentan
en la controversia internacional sobre la cognoscibilidad de 31 Para Lvovich, se
trata de “la búsqueda
sucesos límite o extremos, desatada en los primeros años
de un balance entre
de la década de 1990 y que constituye uno de los aspectos empatía y distancia-
miento para hacer
vinculados con lo que Naishtat denominó refocalización
algo que no es sólo
historiográfica en torno a las tensiones entre la historia procesar o ser por-
tadores de una voz
y la memoria. Se trata de eventos que se vinculan con con
que no es la nuestra”
la brutalidad deliberada, empleada a escala masiva, y que (2014, p. 112).
suelen adquirir el rango de imprescriptibilidad jurídica al ser
32 El fin del kirchne-
considerados crímenes de lesa humanidad, lo que configura rismo y la consolida-
ción de la derecha
la matriz jurídica de la historia del tiempo presente
(2015-2019) dieron
(2009, p. 64).34 Como se sabe, las principales posturas paso a “la grieta”,
que ha capturado la
en ese debate se dirimieron entre la defensa de la
escena como tópico
cognoscibilidad de tales eventos por medio de los y como marco orga-
nizador de las iden-
métodos de representación y análisis establecidos y la
tidades y dinámicas,
consideración de que esos mismos hechos no podrían ser catalizando procesos
más o menos espon-
conocidos o eventualmente sólo podrían serlo bajo regímenes
táneos de extrema
radicalmente nuevos de conocimiento o representación. violencia.
Según María Inés Mudrovcic, lo que difiere es el estatuto
(CONT.)

319 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

ontológico que los distintos posicionamientos otorgan al


acontecimiento extremo: “mientras que los primeros lo
inscriben en un continuo con otros eventos, los segundos
lo instalan en una ruptura radical, reclamando su unicidad”
(CONT.)
(2009b, p. 105). No obstante, si recurrimos nuevamente
al concepto de sentido común, advertimos que pese a la 33 Para una mirada
en perspectiva de los
radicalidad de las posturas todas ellas formulan el problema
manifiestos y las res-
en términos de im-posibilidad de inscripción del trauma en puestas que suscita-
ron, ver acha (2017);
la historia. Intentaremos develar algunas de las operatorias
devoto (2017) y kwia-
que intervienen en la repelencia entre trauma e historia y tkowski (2017). Un
análisis exhaustivo de
ensayaremos el bosquejo de un aparato teórico metodológico
la coyuntura política,
que nos permita redefinir el problema en otros términos. Hemos en hilb (2018).
adelantado nuestra hipótesis de lectura según la cual el trauma
34 Explica que esas
no constituye la antítesis de la historia sino su resto. Un resto tensiones habían per-
manecido negadas
al mismo tiempo histórico y no histórico, que demarca ese más
por el sentido común
allá desde el cual algo puede irrumpir, quebrando el continuum historiográfico, que
coincidía, más allá
sobre el que se asienta —o se presupone que se asienta— la
de las diferencias, en
experiencia histórica de la historia. que la memoria no
pertenece a la histo-
ria. El nuevo protago-
Comenzaré señalando algunos presupuestos teórico- nismo de la memoria
metodológicos transversales a las principales posiciones dentro abriría según el autor
una brecha entre una
de la referida controversia que se expresan también en los narrativa científica y
presupuestos que guían gran parte de las investigaciones otra de corte testimo-
nial (2009, 63).
empíricas, al menos de la historia reciente argentina:35
a) la confusión y/o indiferenciación entre el valor heurístico y el 35 Es pertinente acla-
rar que estoy toman-
valor referencial de la categoría “trauma” en claro detrimento do de modo esquemá-
del segundo (la confrontación con el psicoanálisis y la discusión tico lo que conforma
una gran variedad y
sobre los usos políticos del trauma y, más ampliamente, de la amplitud de miradas
figura de la víctima concitan gran parte de los debates); y/o que no se dejan re-
ducir fácilmente a un
b) la extrapolación ipso facto del concepto psicoanalítico de esquema. Sin embar-
trauma, por demás polisémico, a la historia,36 del cual se go, mi intención no es
profundizar en la dis-
deduce naturalmente, dada la imposibilidad de memoria, la cusión sino intentar
imposibilidad de historia: donde hay trauma, no hay historia; producir un desplaza-
miento.
donde hay historia, no hay trauma37. Existe una variante en
esta disputa y es la variante pragmática del psicoanálisis (CONT.)
como necesidad heurística: donde hay trauma, puede haber
historia si y solo si operan la teoría y el método psicoanalíticos,
que, de otra manera (una manera interdisciplinaria),

320 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

reproducen la repelencia entre trauma e historia.38


Consideramos que estas recurrencias iluminan algunos de los
mecanismos que intervienen en la compleja operatoria que
deja siempre, de un modo u otro, a lo real traumático en una
relación contrafactual con respecto a sus propias posibilidades (CONT.)
de conocimiento histórico. (Llegamos en este punto, pero desde
36 Existen dos gran-
el reverso de su mirada, a una conclusión similar a la que había des conceptualizacio-
expresado Blas de Santos en términos de coalescencia entre nes en Freud: como
efecto retardado (o
objeto y método). Nachträglichkeit) de
algo inconciliable que
Intentaremos salir del atolladero a partir del valor de real permanece separado
de la conciencia me-
absoluto y punto de exterioridad con respecto a la historia diante la represión; y
que, retomando la intervención de Blas de Santos, habíamos como instante de in-
cremento económico
asignado a lo traumático en la introducción del trabajo. Ello y compulsión a la re-
nos habilita, dadas las herramientas de la epistemología de la petición (SANFELIPPO
2018).
historia, a avanzar a partir de dos movimientos indisociables:
por un lado, presuponer con fundamentos que el concepto 37 Ver por ejemplo
esta postura en Mu-
reviste un valor heurístico privilegiado dado el orden más drovcic (2003, p. 114
allá del cual proviene;39 y, por otro lado, en un segundo y 124).

movimiento, asignarle al término el valor indiciario de una/s 38 Tal como hace, por
experiencia/s perdida/s, proveniente/s de ese más allá cuya ejemplo, la línea de
investigación de Do-
existencia atestigua. De ese modo, construimos al mismo minick LaCapra.
tiempo un objeto de estudio y una clave de lectura, lo que nos
39 Un valor que con-
permite trazar las coordenadas de una indagación semántica sidero hermenéutico
y hermenéutica del trauma cuyos resultados son, al mismo y no “científico”, en
los términos que re-
tiempo, sus condiciones de posibilidad. clamaba Blas de San-
tos.
Avanzamos en esa dirección considerando, con Reinhart
40 Retomo del autor
Koselleck, que los conceptos permiten integrar experiencias la consideración de
nuevas y almacenar el pasado en el lenguaje (2004, 28). que la instancia del yo
se sitúa en una línea
Ahora bien, se considera que el orden semántico expresa de ficción que sólo
sólo fallidamente la dimensión de la experiencia, en tanto tal asintóticamente toca-
rá el devenir [históri-
siempre perdida (JAMESON 1995).40 Específicamente en el caso co] del sujeto (1995,
de lo traumático, se considera que, por su peculiar ontología, p. 20).

no es posible encontrar sus huellas en el orden semántico,


sino, eventualmente, tan solo el registro de su pérdida. Eso
equivale a decir que la huella de la experiencia perdida está
perdida. Por ello es tan difícil —cuando no imposible— para

321 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

la historia correlacionar sus fuentes primarias con fenómenos


traumáticos “observables” y es por ello mismo que acotamos
que los propósitos de esta indagación no son demostrativos
41 Anteriormente ha-
sino eventualmente verificativos.
bíamos diferenciado
el evento primigenio
En términos metodológicos, nuestros presupuestos nos del conjunto de epi-
fenómenos derivados
conducen a indagar en los vínculos entre el valor indiciario y (2016). Incorporamos
el valor heurístico del trauma a partir de la consideración de ahora la considera-
ción del orden discur-
dos series de análisis que se despliegan en tiempos y espacios sivo del cual deriva la
diversos: por un lado, la de los usos del término en el marco diferenciación entre
procesos primarios
de lo que denominamos procesos primarios de semantización y secundarios de se-
de la historia (el valor indiciario asignado al trauma mantización de la his-
toria.
marca el contexto de su originalidad) y, por otro, la de los
comportamientos de la categoría en los procesos secundarios 42 En trabajos ante-
riores hemos concep-
de semantización, entre ellos los de la historia misma como tualizado la historia
disciplina, que son propios de una temporalidad “a posteriori” reciente como un as-
pecto del fenómeno
característica de los sucesos considerados traumáticos.41 que estudia (LEVÍN
De modo que estamos asignando un valor de primariedad a lo 2013), por lo que he-
mos propuesto que
que habitualmente se denomina fuentes secundarias, lo que debería ser tomada
nos permite estudiar las categorías eruditas de la historia en como un aspecto de
su propio objeto de
la dimensión de su propia natividad42 o, en los términos de estudio (LEVÍN 2016).
De Certeau, de su propio idiotismo.43 Confiamos en que tal
43 “Ciertamente, no
decisión nos permita sortear las trampas de nuestros propios hay consideraciones
puntos ciegos. (...) capaces de bo-
rrar la particularidad
del lugar desde don-
De origen quirúrgico, ámbito en el que había sido de hablo y del ámbi-
utilizado para referir a lesiones corporales ocasionadas por to donde prosigo mi
investigación. Esta
accidentes, el término trauma fue incorporado a fines del marca es indeleble.
siglo XIX al dominio de la psicopatología para designar un tipo En el discurso donde
escenifico cuestiones
de afección imposible de localizar en el cuerpo siendo así su globales, tendrá la
moderno significado inescindible de la concepción teórica de forma de un idiotis-
mo” (1985, p. 67).
la psiquis.44 Vale la pena destacar la correspondencia histórica
entre dicho proceso sociosemántico y la crisis de la escuela 44 Utilizo la noción de
“moderno significado”
historicista y posterior profesionalización de la disciplina en para señalar específi-
tanto ciencia social (NOIRIEL 1997). La valiosa investigación camente ese uso his-
tóricamente situado y
de Luis Sanfelippo advierte que en la Europa finisecular diferenciarlo de ante-
(se refiere particularmente a Alemania, Gran Bretaña y riores usos y sentidos.

Francia) el concepto traspasó rápidamente el espacio de la

322 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

psicopatología para ingresar al ámbito judicial, donde


comenzó a ser utilizado para dar cuenta de la realidad de los
daños ocasionados por los llamados accidentes tecnológico
(particularmente de ferrocarril) y para validar, por tanto,
las demandas judiciales asociadas (2011, p. 130 y 132).
Años más tarde, durante el transcurso de la Primera Guerra
Mundial, el concepto sería vinculado con las neurosis de
guerra que afectaban a los soldados que volvían del frente
de batalla. La aplicación del término con fines judiciales
siguió su curso y, luego de Vietnam, fue utilizada en los
Estados Unidos como herramienta para viabilizar el reclamo
de los veteranos de guerra (Ibid.: 133). El desarrollo de la
teoría del inconsciente y el surgimiento del psicoanálisis, por
su parte, dieron lugar a un constante proceso de redefinición
conceptual del trauma, aun cuando sus usos jurídicos, políticos,
culturales y luego incluso los específicamente historiográficos,
se mostraron relativamente autónomos con respecto a esos
desarrollos.

Si atendemos a los procesos secundarios de semantización


de la historia, es decir, a aquellos que refieren a ella mediante
distintas formas de evocación, lo primero que se observa
es que la historiografía tardó aproximadamente un siglo en
incorporar al trauma como categoría científica y que, cuando
lo hizo de la mano del auge de los llamados Holocaust Studies
promovidos por la academia norteamericana en los años ‘80
del siglo pasado (SANFELIPPO 2011, s/p; FRANCO; LVOVICH
2017, p. 130), la disciplina histórica se encontraba ya en plena
“crisis”, de la que, por cierto, nunca se habría recuperado. Por
entonces, la interdisciplinariedad como respuesta comenzaba
a borrar (y continúa) la pregunta por lo específicamente
histórico de la historia. Es preciso advertir que su ingreso al
ámbito de la historiografía se produjo en el marco de procesos
epistémicos, intelectuales, culturales y políticos mucho más
amplios, vinculados con la llamada crisis de la modernidad,
de la que también forma parte el boom de la memoria y el
surgimiento del paradigma presentista. En tercer lugar, habría
que retomar de la obra de Sanfelippo la consideración de que

323 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

el ingreso del concepto de trauma en la historia implicó una


importante innovación semántica en la medida en que comenzó
a ser ampliamente utilizado para referir a sucesos colectivos.45
(Es importante advertir que tal consideración es válida también
para otros procesos, no eruditos, de semantización secundaria
del pasado).

Más allá de que sería pertinente profundizar en un estudio


exhaustivo sobre el comportamiento lingüístico del término
trauma, se considera que la relativa facilidad con la que el
mismo se expandió (el significante más su nuevo significado)
45 Como explica San-
a partir de entonces por espacios epistémicos y geográficos felippo (2018, p. 285-
distintos a los de su origen, posiblemente se vincule con el 306), con excepción
de Freud y su texto
hecho de que para entonces hacía ya varios lustros que sobre Moisés, has-
otros términos vinculados onomasiológicamente con el ta entonces nunca se
había afirmado que
nuevo significado de “trauma” (por ejemplo, catástrofe)46 una experiencia pu-
venían siendo empleados por la historiografía europea de diera devenir traumá-
tica para un colectivo
la posguerra. Se observa además que, para esos mismos en cuanto tal.
años, comenzaba a expandirse una conceptualización
46 Ver Lorenz (s/f),
fenomenológica del trauma como pasado que no pasa, que ofrece un estudio
acuñada por el historiador conservador Ernst Nolte en del modo en que los
historiadores alema-
los orígenes del llamado debate de los historiadores (o nes contemporáneos
Historikerstreit) en Alemania (1986). Más todavía, podríamos han lidiado con el fe-
nómeno nazi.
ubicar en esta perspectiva, más allá de cuáles sean o hayan
sido sus autodefiniciones y recortes de objeto propios, 47 He podido profun-
dizar en las implican-
todo el proceso de surgimiento de nuevas historiografías cias metodológicas de
específicamente orientadas a pasados atroces: Zeitgeschichte, esta perspectiva en
Levin (2020, en pren-
Histoire du Temps Présent, Current History, Historia sa).
Coetánea, Historia de Nuestro Tiempo, Historia Vivida,
Historia Inmediata, Historia Actual, Historia Reciente....

A pesar de lo sucinto del recorrido presentado en


este artículo, es posible advertir que la fractura entre
experiencia y orden semántico (en el sentido de pérdida de
la huella de la experiencia perdida) es de alguna manera
replicada por la historia, lo que se aprecia, entonces,
no sólo en las resistencias explícitas o implicadas en las
metodologías de análisis47, sino asimismo en el desfasaje

324 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

observable entre la historia del concepto, la historia de


la disciplina y la epistemología de la historia. Todo esto
confirma, por otro lado, la hipótesis de la indecibilidad de la
experiencia histórica que el concepto de trauma acopia, acorde
con su forma de existencia que es la de ser, precisamente, un
resto, es decir, algo que no encaja en ningún orden semántico
y mucho menos en ningún sentido que esté “garantizado”,
como lo están los sentidos históricos construidos por la
historiografía. Por ello, el valor heurístico de la noción de resto
reside en su capacidad para introyectar dentro del dispositivo
historiográfico el carácter indecible e intransferible de ese tipo
de experiencia histórica, que en el caso del pasado reciente
argentino ha sido asimilada con lo incomponible y lo irreparable 48 Me refiero a Los
Rubios, de Albertina
del sinsentido en el marco de otros dispositivos de mediación
Carri, Mi vida des-
entre pasado y presente.48 pués, de Lola Arias,
y Campo de Mayo, de
Félix Bruzzone. Tam-
Llegados a este punto, creo oportuno y posible bién al trabajo acadé-
conceptualizar históricamente el trauma como una mico de Gatti sobre
la desapareición de
experiencia de disolución (o aniquilamiento) de la personas (2011). So-
experiencia histórica.49 El hecho de que, conforme al concepto bre las primeras ver
Noriega (2009), Arias
psicoanalítico, el trauma anule la capacidad del sujeto de (2016) y Bruzzone
ejercer soberanía con respecto a su propia experiencia (2019) respectiva-
mente.
(DE SANTOS 2009, p. 125 y 142) no implica, de ninguna
manera, que esa experiencia no sea una experiencia 49 Específicamente
en el sentido en que
propiamente histórica y que no cuente con su propia ésta fue concebida
fenomenología. Es así que consideramos que, como por la moderna disci-
plina histórica.
experiencia de aniquilamiento, lo traumático es al mismo
tiempo agente y efecto de una modalidad desdoblada
y fracturada de subjetivación de la historia en la que
el pasado es articulado como retrospección y no como
anterioridad, conforme a una expectativa que ha permanecido
invisible por detrás del sentido común historiográfico. Es por
ello que el referente de la noción no debería correlacionar
únicamente con un acontecimiento extremo o atroz,
históricamente situado -como es el caso del terrorismo de
estado en Argentina- sino específicamente con un fenómeno
que articula la experiencia colectiva de esa historia a partir
del dislocamiento o hiato ocasionado por el choque de

325 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

sentidos provenientes de tiempos y procesos de semantización


diversos, lo que interrumpe el continuum imaginario sobre el
que se presupone se desenvuelve la experiencia de la historia.

Advertimos entonces que los múltiples, complejos y


heterogéneos procesos de semantización de los que resultan
las identidades subjetivas e intersubjetivas de la historia
podrían estar atravesados por la colisión invisible (pero
rastreable) de sentidos provenientes de procesos de
semantización incomponibles entre sí: los ligados a la 50 Para el sustento fi-
dimensión prospectiva del tiempo histórico, orientado al losófico de estas con-
sideraciones ver Ben-
futuro por la modalidad de realización de la acción violenta jamin ([1921] 1999)
(en cualquiera de sus manifestaciones), cuyos resultados y la relectura que De-
rrida (1999) realizara
habrán de juzgarse conforme a un orden de cosas todavía sobre ese ensayo.
inexistente,50 y aquellos otros propios de un tiempo vuelto
51 Me refiero al con-
hacia atrás, que como el “Angelus Novus” de Paul Klee referido cepto koselleckiano
por Walter Benjamin, avanza de espaldas al futuro petrificado vinculado a la teoría
del Sattelzeit. Desta-
por el horror. (Es por ello que lo traumático en sí no tiene co la relevancia de la
cronología; porque no tener inscripción cronológica sin poder crítica de Elías Palti
(2004) a esta formu-
no tenerla es precisamente lo traumático). lación, ya que permi-
te distinguir entre lo
Se ha señalado abundantemente que el origen del referido y lo denotado
por dicho concepto.
problema de la repelencia entre historia y trauma reside
en la irreductibilidad de la estructura temporal éste a la de 52 No pongo duda el
valor heurístico del
aquella. Intuyo, sin embargo, que en su origen subyace una concepto, sino que
incompatibilidad menos abstracta que la del tiempo: se trata le asigno un valor de
meta-paradigma den-
de la incompatibilidad entre la ontología del sujeto del trauma tro del cual lo traumá-
y la ontología presupuesta del sujeto de la historia, que se tico sería un elemento
que opera con impor-
traduce en la no correspondencia entre experiencia e historia. tantes niveles de au-
Es que, a diferencia de la experiencia “moderna” de experiencia, tonomía relativa.

conceptualizada en tanto impresa sobre las ideas de evolución


y progreso,51 el trauma perenniza el pasado a la luz de sus
futuros ya perdidos, que se presentan bajo la forma del pasado
que no termina de pasar, desbordando y desordenando la
dinámica presentista propia del llamado presentismo.52

Creo que estaríamos así en condiciones de redefinir el dilema


del trauma y la historia en términos de aporía, siendo, entonces,
la historia reciente una disciplina orientada al conocimiento de

326 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

lo que todavía no es mientras sigue siendo. (Están implícitas


en este mismo recorrido las consecuencias metodológicas que
se desprenden de esta reconceptualización).

Producir el presente
Llegados a este punto, retorna la preocupación de Blas
de Santos por el carácter enajenante de la historización de
pasados traumáticos y por la in-utilidad de la historia reciente.
A lo largo del recorrido realizado hemos visto que existe
una suerte de inercia transversal a la controversia sobre la
representación de acontecimentos límite sustentada en el
presupuesto de que el trauma constituye la antítesis de la
historia. Hemos explorado la hipótesis de que no se trata de su
antítesis sino de su resto, lo que nos ha permitido conceptualizar
el trauma como una experiencia de disolución de la experiencia
de la historia y, asimismo, redefinir el dilema entre trauma e
historia en términos de aporía: la aporía del conocimiento de lo
que todavía no es mientras sigue siendo...

Por todo lo anterior considero que cualquier intento


de solucionar “el problema” por vías representacionales,
metarrepresentacionales, pararrepresentacionales o
antirrepresentacionales sólo alcanza a desplazarlo pero no a
resolverlo. En este sentido, se considera que ni la producción
de representaciones “más fieles”, “más verdaderas”,
“metodológicamente controladas” y/o “más complejas” que
hemos visto predominan en la historia reciente argentina,
como así tampoco la extrapolación de conceptos y métodos
psicoanalíticos a la historia como modalidad de abordaje
(LACAPRA 2005, 2009) o la innovación en cuanto a estrategias
narrativas —como es el caso de la escritura intransitiva y la voz
media que propone Hayden White para los eventos modernistas
(WHITE 2007) o la réplica de la estructura dislocada del
trauma en las estrategias discursivas de la historia que plantea
Andrew Benjamin (2000, en MACON; TOZZI 2005)— parecen
ser respuestas atinadas. Ni siquiera el silencio como modalidad
deliberada de resistencia. Porque, si es cierto que lo traumático

327 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

es incompatible con cualquier régimen representacional, de


ello no se deduce que la suspensión de la representación o
la réplica de su dislocamiento resuelvan el problema, como
querría, por ejemplo, Claude Lanzmann en Shoa (1985).
Por el contrario, diríamos, luego de Blas de Santos, que lo
replican, lo re-representan de un modo u otro mientras sus
restos subsisten por fuera del sistema de significación.

Es por todo ello que la clave del problema no radica ni


en la forma ni en el contenido, sino en el hiato insalvable
entre real y lenguaje que lo traumático desnuda y
esconde al mismo tiempo. Ello nos lleva a reconsiderar los
fundamentos y los propósitos de esta historia reciente,
redefinida como dispositivo para una historización reflexiva
de la experiencia de la historia, en la cual se hisotrizan al
53 Esta modalidad
mismo tiempo el pasado y las condiciones de (im)posibilidad se apropia del espa-
de su conocimiento, dando lugar, como resultado, a la cio concebido para el
despliegue del apara-
producción de una diferencia entre historia y memoria. to erudito a los efec-
Podríamos considerar que la producción de tal diferencia tos de habilitar y ve-
hicular la expresión
debiera ser siempre el objetivo último de la historia. Aun cuando de los pensamientos,
siempre se esté hablando de otra cosa. Es decir, de historia. preguntas y reflexio-
nes que surgen a pos-
teriori de la entrevista
Me gustaría, como último punto, volver al epígrafe de y en un registro para-
Koselleck que encabeza esta escritura para agregar que si, lelo al del objeto de
estudio.
como él dice, “las condiciones de posibilidad de la historia real
son, a la vez, las de su conocimiento”, es preciso considerar
que las condiciones de posibilidad de su conocimiento son
también las de la historia real. Esto equivale a decir que ese
conocimiento tiene consecuencias prácticas insoslayables.
Con la esperanza de que la historia pueda servir para algo
más que para repetir/representar, me gustaría concluir este
escrito con las palabras de Lucas Suárez (2018), estudiante del
Seminario de Investigación sobre Pasados Traumáticos
que dicto en la Universidad Nacional de General Sarmiento
(UNGS), quien se abocó a indagar en los vínculos entre
dictadura y sociedad a partir de su historia familiar mediante la
realización de una “entrevista participante”53 a su padre,
miembro activo de al Gendarmería Nacional (fuerza que, como

328 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

se sabe, tuvo en su momento importantes vinculaciones,


sinergias y connivencias con respecto al terrorismo de estado
y otras actividades represivas ejecutadas en democracia):54

Saber que las palabras de mi padre dañan las percepciones


académicas que fui construyendo en mi experiencia por la
universidad no [fue de] total agrado [para] mi subjetividad.
Sin embargo, encuentro en el escrito ideas que nunca hubiera
reflexionado, [y] pensamientos que me ayudarán a constituirme
como persona, [por lo que] sin nitidez veo la inmensidad de la
misma historia reciente, que nos abraza desde nuestras propias
historias de vida... Sólo quiero confirmar que saber de uno mismo
formando parte de las percepciones del pasado compartido con
otros sujetos ayuda a sentir humildemente la capacidad de lo
que podría aportar. Un grano de arena en la inmensidad del mar.

54 El padre de Lu-
cas, músico, ingresó
como miembro de la
orquesta de Gendar-
mería Nacional en los
primeros años de la
transición democráti-
ca.

329 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

REFERENCIAS

ACHA, Omar. Políticas de la historia e historia reciente en la


Argentina actual. Futurs Passés: École de Hautes Etudes
en Sciences Sociales, n. 2, 2017. Disponible en: https://
www.politika.io/en/notice/politicas-historia-e-historia-
reciente-argentina-actual. Consultado: 29 jun. 2018.

ÁGUILA, Gabriela y Luciano ALONSO. Presentación al


dossier «La historia reciente en la Argentina: problemas
de definición y temas de debate». Ayer, 107/2017 (3), p.
13-19, 2017.

ÁGUILA, Gabriela. La dictadura militar argentina.


Interpretaciones, problemas y debates. Página: Revista
Digital de la Escuela de Historia, v. 1, n. 1, p. 9-27, 2008.

ÁGUILA, Gabriela. La Historia Reciente en la Argentina:


un balance. Historiografías, n. 3, p. 62-76, enero- jun.,
2012.

ALLIER MONTAÑO, Eugenia. Balance de la historia del


tiempo presente. Creación y consolidación de un campo
historiográfico. Revista de Estudios Sociales, n. 65, p.
100-112, 2018.

ALONSO, Luciano. Definiciones y tensiones en la formación


de una historiografía sobre el pasado reciente en el campo
académico argentino. In: BRESCIANO, Juan Andrés.
Tiempo presente como campo historiográfico.
Ensayos teóricos y estudios de caso. Montevideo: Ediciones
Cruz del Sur, 2010. p. 41-64.

ALONSO, Luciano. Sobre la existencia de la historia


reciente como disciplina académica. Reflexiones en torno
a Historia reciente, perspectivas y desafíos para un campo
en construcción compilado por Marina Franco y Florencia
Levín. Prohistoria, año 11, n. 11, p. 191-204, 2007.

330 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

ANDÚJAR, Andrea y Debora D’ANTONIO. De genealogías,


rupturas y excepcionalidades: el campo de la llamada
Historia Reciente en Argentina. Memoria académica:
Primer Encuentro Latinoamericano de Metodología de
las Ciencias Sociales, 2008. Disponible en: http://www.
memoria.fahce.unlp.edu.ar/trab_eventos/ev.8524/ev.8524.
pdf. Consultado: 20 nov. 2018.

ARIAS, Lola. Mi vida después y otros textos. Buenos


Aires: Reservoir Books, 2016.

BENJAMIN, Andrew. Architectural Philosophy. Londres:


The Arthlone Press, 2000.

BENJAMIN, Walter. Para una crítica de la violencia. Ensayos


escogidos. México DF: Ediciones Coyoacán, [1921] 1999.

BOURDIEU, Pierre. Campo de poder, campo intelectual.


Buenos Aires: Montressor, 2002.

BRUZZONE, Flélix. Lo peor que le puede pasar a cualquier


obra es que a todos les parezca bien. Entrevista. Revista
Polvo, 10-10-2019. Disponible en: http://www.polvo.com.
ar/2019/10/felix-bruzzone-campo-de-mayo/. Consultado:
20 jul. 2020.

CARNOVALE, Vera. Aportes y problemas de los testimonios


en la reconstrucción del pasado reciente en la Argentina.
In: FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. Historia reciente.
Perspectiva y desafíos para un campo en construcción.
Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 155-181.

CATTARUZZA, Alejandro. Dimensiones políticas y cuestiones


historiográficas en las investigaciones históricas sobre la
memoria. Storiografía, n. 16, p. 71-91, 2012.

331 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

CHAMA, Mauricio y Hernán SORGENTINI. Momentos,


tendencias e interrogantes de la producción académica
sobre la memoria del pasado reciente argentino. Nuevo
Mundo Mundos Nuevos: Questions du temps présent,
puesto en línea el 30 noviembre 2011. Disponible en:
https://journals.openedition.org/nuevomundo/62176.
Consultado: 9 agosto 2020.

CRENZEL, Emilio. Entre la historia y la memoria. A 40 años


del golpe de estado en la Argentina. Historia. Questoes &
Debates, v. 64, n. 2, p. 39-64, 2016.

DE CERTEAU, Michel. La operación historiográfica. In: DE


CERTEAU, Michel. La escritura de la historia. México:
Universidad Iberoamericana, 2010. p. 97-118.

DE SANTOS, Blas. Memorias traumáticas de pasados


recientes. Políticas de la memoria: ¿transmisión o mandato?
In: MUDROVCIC, María Inés (ed.). Pasados en conflicto.
Representación, mito y memoria. Buenos Aires: Prometeo,
2009. p. 125-143.

DERRIDA, Jacques. Nombre de pila de Walter Benjamin.


In: DERRIDA, Jacques. Fuerza de ley. El “fundamento
místico de la autoridad”. Madrid: Tecnos, 1994. p. 69-151.

DEVOTO, Fernando. Transiciones y derechos humanos:


historiografía y contextos. Futurs Passés: École de
Hautes Etudes en Sciences Sociales, N. 2, 2017. Disponible
en: https://www.politika.io/en/notice/politicas-historia-e-
historia-reciente-argentina-actual. Consultado: 30 jun.
2019.

FIGUEROA IBARRA, Carlos y Nicolás IÑIGO CARRERA.


Reflexiones para una definición de Historia Reciente. In:
LÓPEZ, Margarita; FIGUEROA IBARRA, Carlos; RAJLAND,
Beatriz (ed.). Temas y procesos de la Historia Reciente
de América Latina. Santiago de Chile: Editorial Arcis,
2010. p. 13-34.

332 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

FLIER, Patricia. Introducción. In: FLIER, Patricia


(comp.). Dilemas, apuestas y reflexiones teórico-
metodológicas para los abordajes en Historia
Reciente. La Plata: Universidad Nacional de La Plata,
2014. p. 7-17.

FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. El pasado reciente en


clave historiográfica. In: FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia
(comps.). Historia Reciente. Perspectivas y desafíos para
un campo en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p.
31-61.

FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. Historia Reciente.


Perspectivas y desafíos para un campo en construcción.
Buenos Aires: Paidós, 2007.

FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. Introducción. In:


FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia. (comps.), Historia
Reciente. Perspectivas y desafíos para un campo en
construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 15-27.

FRANCO, Marina; LVOVICH, Daniel. “Historia Reciente:


apuntes para un campo de investigación en expansión”.
Boletín del Instituto de Historia Argentina y
Americana Dr. Emilio Ravignani, Tercera Serie, n. 47,
p. 190-217, 2017.

FRIEDLANDER, Saul (comp.). En torno a los límites de


la representación. El nazismo y la solución final. Buenos
Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2007.

GATTI, Gabriel. Identidades desaparecidas. Pelea por el


sentido de los mundos de la desaparición forzada. Buenos
Aires: Prometeo, 2011.

HARTOG, François. Regímenes de historicidad.


Presentismo y experiencias del tiempo. México: Universidad
Iberoamericana, 2007.

333 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

HILB, Claudia. Una escena común del interés público, o las


dificultades del debate sobre el pasado reciente. La mesa.
com, 2018.

HORA, Roy. Dos décadas de historiografía argentina.


Punto de Vista, Nº 69, 2001.

JAMESON, Fredric. Imaginario y Simbólico en Laca.


Buenos Aires: El Cielo por Asalto, 1995.

JELIN, Elizabeth. La conflictiva y nunca acabada mirada


sobre el pasado. In: FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia.
Historia reciente. Perspectivas y desafíos para un campo
en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 308-340.

JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid:


Siglo XXI, 2002.

KOSELLECK, Reinhart. Historia de los conceptos y conceptos


de la historia. Ayer 53, p. 27-45, 2004.

KWIATKOWSKI, Nicolás, La vida de los muertos está en


la memoria de los vivos. Futurs Passés: École de Hautes
Etudes en Sciences Sociales, N. 2, 2017. Disponible en:
https://www.politika.io/en/notice/politicas-historia-e-
historia-reciente-argentina-actual. Consultado: 26 jun.
2018.

LACAPRA Dominick. Historia y memoria después de


Auschwitz. Buenos Aires: Prometeo, 2009.

LACAPRA, Dominick. Escribir la historia, escribir el


trauma. Buenos Aires: Nueva Visión, 2005.

LEVÍN, Florencia. Escrituras de lo cercano. Apuntes para


una teoría de la historia reciente (argentina). Nuevo
Mundo Mundos Nuevos. Cuestiones del tiempo presente,
puesto en línea el 6 de junio de 2017. Disponible en: http://
nuevomundo.revues.org/70734. Consultado: 9 agosto
2020.

334 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

LEVÍN, Florencia. Historia reciente. La historia antes de


la historia. La Universidad interviene en los debates
nacionales. UNGS- Página/12, 14 de noviembre de
2013. Disponible en: https://www.riehr.com.ar/archivos/
Investigacion/Suplemento_UNGS_13.pdf. Consultado: 9
agosto 2020.

LEVÍN, Florencia. On the potential usefulness of recent


history for the historical present. 2º Conference of the
International Network for Theory of History, Ouro
Preto, 2016.

LEVÍN, Florencia. Trauma e historia. Reflexiones desde


la trastienda. In: HAIDAR Victoria; RUBINZAL Mariela;
SCHENQUER Laura (Coords.). Conversación sobre los
usos de la historia. Sociohistórica, 2020 (en prensa).

LORENZ, Chris (s/f). ¿Historia o trauma? Algunas reflexiones


acerca de los debates alemanes sobre la historia nazi,
mimeo.

LVOVICH, Daniel. Definir y nombrar el campo de estudios


de la historia reciente. VII Jornadas de Trabajo sobre
Historia Reciente. Universidad Nacional de La Plata,
2014.

LVOVICH, Daniel. Historia reciente de pasados traumáticos.


De los fascismos y colaboracionismos europeos a la
historia de la última dictadura argentina. In: FRANCO,
Marina; LEVÍN, Florencia (comps.). Historia Reciente.
Perspectivas y desafíos para un campo en construcción.
Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 87-124.

MACON, Cecilia; TOZZI, Verónica. El acontecimiento


extremo: experiencia traumática y disrupción de la
representación histórica. In: BRAUER, Daniel; CRUZ,
Manuel (ed.). La comprensión del pasado. España:
Herder, 2005. p. 111-132.

335 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

MUDROVCIC, María Inés (ed.). Pasados en conflicto.


Representación, mito y memoria. Buenos Aires: Prometeo,
2009a.

MUDROVCIC, María Inés. Alcances y límites de la perspectiva


psicoanalítica en la historia. Diánoia, v. XLVIII, n. 50, p.
111-127, 2003.

MUDROVCIC, María Inés. Algunas consideraciones


epistemológicas para una “historia del presente”. Hispania
Nova, n. 1, 1998/2000.

MUDROVCIC, María. Regímenes de historicidad y regímenes


historiográficos: del pasado histórico al pasado presente.
Historiografías, n. 5, enero-jun., 2013, p. 11-31.

MUDROVCIC, María Inés. Trauma, memoria e historia. In:


BRAUER, Daniel. La historia desde la teoría. Una guía
de campo por el pensamiento filosófico acerca del sentido
de la historia y del conocimiento del pasado. Vol. 2. Buenos
Aires: Prometeo, 2009b. p. 105-116.

NAISHTAT, Francisco. Refocalización historiográfica y


cambio de régimen de historicidad. La controversia
de la representación del pasado y las catástrofes
históricas contemporáneas. In: NUDLER, Oscar y equipo
multidisciplinar. Espacios controversiales. Hacia un
modelo de cambio filosófico y científico. Buenos Aires:
Niño Dávila, 2009. p. 51-84.

NOIRIEL, Gérard. Sobre la crisis de la Historia. Madrid:


Frónesis, Cátedra Universitat de València, 1997. Ver
particularmente capítulo 2: “La formación de una disciplina
científica”, p. 51-91.

NORIEGA, Gustavo. Estudio crítico sobre los rubios:


entrevista a Albertina Carri. Buenos Aires: Picnic, 2009.

336 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

NUDLER, Oscar y equipo disciplinar. Espacios


controversiales. Hacia un modelo de cambio filosófico y
científico. Buenos Aires: Niño Dávila, 2009.

OBERTI Alejandra; PITTALUGA, Roberto. Temas para una


agenda de debate en torno al pasado reciente. Políticas
de la memoria. Anuario de información e investigación,
CeDInCI, n. 5, verano 2004/2005. p. 9-14.

OBERTI, Alejandra y Roberto PITTALUGA. Apuntes para


una discusión sobre la memoria y la política de los años
60/70 a partir de algunas intervenciones recientes.
Sociohistórica, n. 38, 2016.

PALTI, Elías. Koselleck y la idea de Sattelzeit. Un debate


sobre modernidad y temporalidad. Ayer, 53/2004 (1), p.
63-74, 2004.

PALTI, Elías. Panel inaugural del ciclo Historia para qué. In:
CERNADAS, Jorge; LVOVICH, Daniel (comps.). Historia,
¿Para qué? Buenos Aires: Ediciones UNGS, 2010. p. 38-
45.

PITTALUGA, Roberto. Ideas (preliminares) sobre historia


reciente. Ayer, n. 107, 2017 (3), p. 21-45, 2017.

PITTALUGA, Roberto. Miradas sobre el pasado reciente


argentino. Las escrituras en torno a la militancia setentista
(1983-2005). In: FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia.
Historia reciente. Perspectivas y desafíos para un campo
en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 125-152.

PITTALUGA, Roberto. Qué queremos que sea la historia


reciente. VII Jornadas De Trabajo Sobre Historia
Reciente, Universidad Nacional de La Plata, 2014.

ROUSSO, Henry. El síndrome de Vichy de 1944 hasta


hoy. Paris: Seuil, 1990.

337 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Florencia Levín

SANFELIPPO, Luis. El trauma en la historia. Razones


y problemas de una importación conceptual, Usages
publics du passé, 2011.

SANFELIPPO, Luis. Trauma. Un estudio histórico en torno


a Sigmund Freud. Buenos Aires: Miño y Dávila, 2018.

SCHMUCLER, Héctor. Ni siquiera un rostro donde la muerte


hubiera podido estampar su sello. Reflexiones sobre
desaparecidos y memoria. Confines, n. 3, septiembre
1996.

SUÁREZ, Lucas. Memoria familiar, memoria militar. Un


diálogo generacional. Primeras Jornadas de Estudiantes
del Seminario de Investigación en Historia: Cuando
los estudiantes se convierten en autores, campus de la
Universidad Nacional de General Sarmiento en Agosto de
2018. Disponible en: www.riehr.com.ar.

TRAVERSO, Enzo. Historia y Memoria: Notas sobre un


debate. In: FRANCO, Marina; LEVÍN, Florencia (comps.).
Historia Reciente. Perspectivas y desafíos para un campo
en construcción. Buenos Aires: Paidós, 2007. p. 67-96.

WHITE, Hyden. El entramado histórico y el problema de la


verdad. In: FRIEDLANDER, Saúl. En torno a los límites
de la representación. El nazismo y la solución final.
Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2007.
p. 69-91.

338 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
Un grano de arena en la inmensidad del mar

AGRADECIMIENTOS E INFORMACIÓN

Florencia Levín
florencia.levin@gmail.com
Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
Universidad Nacional de General Sarmiento
Ciudad Autónoma de Buenos Aires
Argentina

Este trabajo se financió con fondos del Proyecto


de Investigación Científico-Técnico, Agencia
Nacional de Promoción Científica y Tecnológica
(PICT-2014-1817), Fondo para la Investigación
Científica y Tecnológica, FONCyT, dirigido por
Silvina Jensen. Diciembre 2015-diciembre 2018.

El presente trabajo es producto de un muy largo


proceso de aprendizaje y reflexión epistemológica.
Dedico y agradezco la posibilidad de estos
pensamientos a los (mis) estudiantes del Seminario
de Investigación en Historia de la Universidad
Nacional de General Sarmiento.

RECIBIDO EL: 18/JAN./2020 | ACEPTADO EL: 18/MAYO/2020

339 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 309-339 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1578
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

La historia universal de Cesare Cantú en


América Latina

The universal history of Cesare Cantú in Latin America

Hernán G. H. Taboada
https://orcid.org/0000-0002-5769-693X

RESUMEN
El historiador italiano Cesare Cantú (1804-1895) gozó
de gran prestigio en América Latina desde mediados ABSTRACT
del siglo XIX hasta las primeras décadas del XX. Ello
Italian historian Cesare Cantú (1804-1895) was held
es particularmente cierto de su Historia universal (obra
in great regard in Latin America from the middle 19th
que empezó a publicar desde 1838), un trabajo basado
century until the first decades of the 20th. This was
en el esquema cristiano de la historia que carece de
particularly true for his Universal history (that began
gran originalidad, pero que, en contrapartida, es rico
appearing from 1838), devoid of originality but full of
en información. En este artículo se explora su amplia
information and based on the Christian interpretation of
presencia en las bibliotecas particulares, el carácter de
history. This article explores its widespread presence in
modelo que revistió, su función como fuente principal
personal libraries, its model character, its function as a
de información y de opiniones y algunos de los juicios
chief source of historical facts and opinions, and some of
que mereció de parte de historiadores, escritores o
the opinions given by historians, writers or politicians,
políticos, sobre todo católicos, pero no en su totalidad.
mostly – but not only – Catholic. The work’s popularity
Desde los años finales del siglo XIX, la popularidad de
began to fade by the final years of the 19th century,
Cantú empezó a decaer, en parte debido al aumento
in part due to the growth of historical information and
de la información histórica y sofisticación historiográfica
historiographical sophistication among Latin Americans
de la intelectualidad latinoamericana. Se presentan
intellectuals. Some examples of this loss of prestige are
también algunos ejemplos de esa pérdida de prestigio.
also presented.

PALABRAS CLAVE
Historiografía del siglo XIX; História universal;
Catolicismo
KEYWORDS
19th century historiography; Universal history;
Catholicism

341 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

Introducción
En mis recorridos por librerías de ocasión en Buenos Aires,
hace ya muchos años, todavía alcanzaba a ver colecciones o
tomos sueltos, algunos ya deteriorados, de la Historia universal
de Cesare Cantú, en su traducción al castellano. Nunca se me
ocurrió hojearlos y sólo lo he hecho últimamente tras percatarme
de que el historiador lombardo gozó de gran fama y prestigio en
España y en América Latina durante muchas décadas. Fueron,
en efecto, muchas, porque él vivió entre 1804 y 1895 y aquella
obra era, por ende, ya veterana cuando se hizo popular. Y, más,
no fue la única con que logró prestigio entre nosotros, como
resultado de la circulación de sus ideas, como fui comprobando
al encontrarme con citas, referencias, elogios y paráfrasis de la
obra de Cantú en páginas de los autores latinoamericanos más
heterogéneos en cuanto a época, lugar y tendencia. Tal cuantía
me llevó a pensar que no sería mala idea rastrear las etapas
de la marcha triunfal por nuestros países de aquel monumental
repertorio decimonónico desde sus inicios de fama y prestigio
hasta su crepúsculo y posterior olvido en el siglo xx, cuando los
saldos de una bodega o la venta de una biblioteca lo arrojaban
a esperar desde los estantes de alguna librería la llegada de un
incauto cliente.

Vida, gloria y escritos


Estuvo Cesare Cantú rodeado de una fama de genialidad
emanada de su incesante producción de libros, que llegaron
a alcanzar la cifra de unos 500, sobre asuntos históricos,
literatura italiana, memorias sobre Alessandro Manzoni,
sobre el Concilio Vaticano, incluyendo una guía turística,
poemas, novela histórica, biografías y relatos edificantes,
materiales que, además, individualmente, a veces sumaban
varios volúmenes. Escribir no fue su única tarea: se
hizo cargo de sus 10 hermanos desde temprana edad,
daba clases ya a los 18 años, fue parlamentario y periodista,
organizó una tertulia erudita, tradujo a historiadores

342 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

extranjeros, proyectó colecciones, dirigió el Archivio di Stato


de Milán. Viajaba, se carteaba con personajes de vario fuste.
Es obvio que trabajaba mucho y eso atestiguan quienes lo
visitaban. No se casó y vivía en Milán con las familias de sus
hermanos.

Entre tan vasta labor sobresale la mentada Historia


universal, de aparición oportuna en una Europa firmemente
encaminada a la hegemonía mundial y que empezaba a
manifestar su preferencia por los panoramas generales. Estos
habían estado ausentes largo tiempo de la historiografía, pero
reaparecieron cuando, en el siglo xviii, se redactó en Inglaterra
una Historia del mundo, con la colaboración de varios eruditos, 1 Bastante convencio-
y otras se escribieron durante las décadas siguientes en nales: “Gasta siempre
una moneda menos
Alemania y Francia (FLORESCANO 2012; HARBSMEIER 1989; de lo que ganes”,
MELO ARAÚJO 2018; PASAMAR 2008; STUCHTEY; FUCHS “Uno no se hace gran-
de más que midiendo
2003). No era, por ende, Cantú el primero que acometía la la pequeñez de su do-
empresa de contar toda la historia humana desde sus inicios lor”, “El pan más sa-
broso y la comodidad
y él mismo cita numerosos antecedentes en su introducción más agradable son
general. las que se ganan con
el propio sudor”, “La
peor prodigalidad es
Sin embargo, su obra fue la primera de su tipo ideada la del tiempo” (muy
en la Italia moderna, donde ya se habían traducido varias acorde con su carác-
ter), “Cuantas menos
historias universales alemanas, lo que demuestra que el necesidades sintáis,
tema suscitaba interés. Por otro lado, constituía obra unitaria más libres seréis”, “El
destino de la humani-
y no compilación de diversos autores, sus dimensiones la dad es progresar pa-
hacían más completa que otras y su hacedor tenía talento deciendo”.

comercial, interés en los derechos de autor, amor al dinero y


sagacidad, junto con su editor Pomba, para aprovechar el
creciente mercado de las clases medias ofreciéndoles el
panorama de los siglos en un estilo ameno, ilustrado con
abundancia de anécdotas, agregándole cierto tono moralista y
católico, pero mezclado con su liberalismo italiano y su creencia
en el progreso, valores expresados en máximas que todavía
circulan.1 El McGuffey de Italia, así se lo llamó. Concluidos
en italiano entre 1838 y 1846, los primigenios 35 volúmenes
se sometieron posteriormente a revisiones y agregados y
aparecieron en ediciones y traducciones numerosas al francés,

343 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

inglés, alemán, lenguas escandinavas, húngaro, polaco,


catalán, portugués y castellano (BERENGO 1975; FINCH 1886;
MAZZONI 1930).

Estas últimas traducciones nos acercan al tema ya


tocado de su popularidad en nuestros países, confirmada por
sus vicisitudes editoriales. La Historia universal fue vertida al
castellano por Antonio Ferrer del Río y publicada entre 1847 y
1850, es decir, inmediatamente, aunque parece que de forma
descuidada, con libertades y agregados frecuentes (GONZÁLEZ
SUÁREZ 1892). Una segunda traducción —cuya existencia nos
habla de las posibilidades comerciales que se le veían a la
obra— estuvo a cargo de Nemesio Fernández Cuesta (amigo y
socio del venezolano Rafael María Baralt, residente en España).
Le siguieron 21 ediciones: seis de un compendio y 13 de la obra
2 “Acompanhada da
completa hasta 1927 (y contando sólo las legales). En general, la versão das citações
obra se editó en España, pero, entre 1851 y 1853, la traducción gregas e latinas e con
alguns accrescenta-
de Ferrer del Río apareció en México como parte principal de mentos relativos aos
un vasto proyecto editorial. He visto también pies de imprenta feitos dos portugue-
ses”, por Manuel Ber-
de Buenos Aires. Las sucesivas ediciones se presentaban con nardes Branco, Lis-
continuaciones, con complementos para nuestros países. Había boa: 1875-1879.
impresiones en gran formato, con tapas duras, papel satinado, 3 Cf. infra en torno a
grabados a fuego, guardas, marcadores de seda e ilustraciones las relaciones entre
Cantú y el emperador
de Gustave Doré; y otras más pequeñas, en rústica y sin de Brasil.
grabados. Entre las primeras destacó la de la editorial Garnier,
muy activa en América Latina, con la traducción de Fernández
Cuesta. En portugués, la História universal fue vertida a partir
de la edición francesa de 1867.2 Aunque estuvo a cargo de un
reconocido escritor y diplomático, embajador portugués en Río
de Janeiro, se trató de una edición pirata o por lo menos no
aprobada por el autor, no obstante lo cual circuló por Portugal y
Brasil.3 Otras obras de Cantú, que en cierto modo continuaban
la Historia universal, fueron también traducidas: además del
compendio que ya cité, obras menores que destacan (ya se
verá por qué) son la Historia de cien años (1852) y Los últimos
treinta años (1882) (MILLÁN DE BENAVIDES 2010). Hasta los
versos de Cantú hallaron traductor.

344 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

Abundan las noticias sueltas sobre la circulación de


la Historia universal, las que empezaron a alertarme sobre
la utilidad de rastrearlas: “tan conocida y tan justamente
apreciada en las repúblicas hispano-americanas”, comprobaba
el padre Federico Suárez González, acucioso historiador del
Ecuador, aunque también suponía que, con sus volúmenes
lujosos, grandes e inmanejables, las editoriales españolas,
conocedoras de la índole de sus compatriotas, las habían hecho
más para adornar bibliotecas que para ser leídas (GONZÁLEZ
SUÁREZ 1892). Su publicación fue prevista en los iniciales
proyectos editoriales mexicanos; figuraba en las bibliotecas de
artesanos de Bogotá (LOAIZA CANO 2009, p. 47). En dicha
ciudad, “apenas hay casa donde no suene un piano y donde no
se vea un ejemplar de Cantú”, aunque cueste 30 o 40 pesos,
decía Miguel Antonio Caro, para contrastar con los libros del
impío Ernest Renan, baratos pero que no se vendían (según
decía) (CARO [1882] 1962, p. 963). “En las viejas casonas
criollas abundan los estantes con obras de Courcelle Seneuil,
de Leroy Beaulieu, de César Cantú, revueltos con tratados de
lechería, veterinaria, derecho internacional y hacienda pública.
Añorando esos textos y esos tiempos aún viven muchas gentes”
(LATCHAM 1930, p. 149). “Era algo como el retrato de familia y
figuraba en las bibliotecas privadas junto al Año Cristiano y la
Historia general de España de Lafuente” (REYES [1918] 1958).
Se encuentra entre los libros que el arrepentido prestador de
libros de cierta crónica de Juan León Mera ya no vuelve a ver:
“mira ese andamio, no hace mucho que estaba lleno con la
Historia universal de César Cantú” (MERA [1862] 1903).

Y llegaba lejos: recordaba Alfonso Reyes que su padre,


el coronel Bernardo Reyes, había aprovechado sus ocios
en Monterrey “nada menos que para reunir de un rasgo los
incontables volúmenes de la Historia de la Humanidad de César
Cantú. Toda empresa habría de ser titánica para contentarlo y
estimularlo” (REYES [1930] 1990, p. 32). Significativo fue el
hallazgo del italiano Giovanni Pelleschi cuando exploraba el Gran
Chaco en el norte argentino: allí encontró, en la nutrida biblioteca
de otro coronel, destinado a Fuerte Sarmiento y como único

345 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

autor italiano, a César Cantú, representado por su Historia


universal en bella traducción. Y agregaba con satisfacción el
explorador que la obra de su compatriota se hallaba en todos
los rincones de la Argentina gracias a la red de bibliotecas
públicas establecida por Domingo Faustino Sarmiento
(PELLESCHI 1886, p. 198-199).

Tal ubicuidad la convirtió en referencia de la cultura de


las clases medias y como tal aparece en la tragicomedia
chilena titulada precisamente La historia universal de César
Cantú (1890) (SUBERCASEAUX 1992, p. 45). En muchas
casas oficiaba de adorno, de acuerdo, pero también hay
muestras de que la obra era leída, de que era autoridad para
las noticias más dispares, fuente para una argumentación
sobre terrenos baldíos, sobre la decadencia de Roma, para un
elogio del poeta Lucano, del sánscrito o de la lengua árabe
(DIHIGO y MESTRE 1932, p. 13; KURBAN 1933, p. 161;
MOLINA ENRÍQUEZ [1909] 1978, p. 208); y aun se creía
que Cantú podía ser un maestro de método (LARRAINZAR
1992, p. 152, 156 y 159). Se lo adoptó como tal en intentos
historiográficos criollos, como el del venezolano Juan Vicente
González, autor de un Manual de historia universal para cuya
elaboración utilizó como fuente a distintos autores europeos,
“poco satisfecho con Cantú, aunque vasta enciclopedia histórica”
(GONZÁLEZ 1863, p. vii). Otro venezolano, Felipe Larrazábal,
de amplia obra, dejó al morir en un naufragio en 1873 el
manuscrito de una historia universal “según el plan de la de César
Cantú, con quien había estado en constante correspondencia”
(CORTÉS 1875).

Cantú era mencionado en discursos, figuraba en la prensa


diaria, se colocaban frases suyas como epígrafe o simplemente
se disfrutaba de su lectura: “felices quienes tienen la gloria
de leer a Thiers, a Michelet, a Cantú, a Luis Blanc, a Prescott,
a Lamartine” (José María Samper); “uno de mis gratos
entretenimientos fue siempre la lectura; el primer mueble
que tuve fue un estante para libros. Chateaubriand, César
Cantú, Thiers, Madame de Stael eran mis autores favoritos”

346 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

(Vicente Restrepo). Nótese por quiénes estaba acompañado


en estos recuentos. Semejantes apreciaciones se encuentran
en Soledad Acosta de Samper o Juan Montalvo. Era típica
lectura de juventud: estaba en la peruana biblioteca del
abuelo de Víctor Andrés Belaunde (BELAUNDE 1967, t. 1, p.
152 y 202); lo leía el chileno Francisco A. Encina (1954, p. x);
aburrió, cuando niño en Torreón, a Julio Torri (CARBALLO 1986,
p. 169); en cambio, tras haberlo frecuentado en sus años
mozos, José de la Riva-Agüero “sabía de memoria páginas
enteras de César Cantú, historiador italiano entonces en boga”
(RIVA AGÜERO [1905] 1962, v. 1, p. 251; GARCÍA CALDERÓN
[1949] 2003, p. 197).

También servía en los programas escolares, en planes


de difusión de la lectura: en las bibliotecas populares de
Sarmiento, donde Pelleschi lo halló, en los cursos de Historia
Universal en Nicaragua (MOLINA ARGÜELLO 1953, p. 114), en
Ecuador, México y Bolivia. Desde este último país, confesaba
Alcides Arguedas cómo, abrumado ante la encomienda
escolar de disertar sobre la historia, “resolví por primera vez
en mi vida aprender de memoria los pasajes salientes de la
introducción de César Cantú, seleccionando a mi arbitrio, es
decir, las partes más vistosas y de más brillante hojarasca. La
recitación resultó pasable, pues la hice de un tirón, como un
papagayo”; el maestro lo felicitó y le auguró (acertadamente)
que sería historiador (ARGUEDAS 1959, t. 1, p. 630-631). Años
antes, el niño Federico González, el que después acusaría a las
familias criollas de comprar al Cantú como adorno, lo había
leído ávidamente, en su totalidad, a pesar de que un maestro
jesuita lo había calificado de obra mediocre, de mera consulta:

Cuando Cantú pudo escribirla, les repliqué yo, ¿por qué no he


de poder leerla yo? ¡Y la leí, y la estudié, y recibí una impresión
profunda con la lectura y con el estudio de semejante obra! César
Cantú me hizo comprender lo que convenía que fuera la Historia,
considerada como una ciencia de moral social (GONZÁLEZ
SUÁREZ 1969, p. 157-158).

347 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

Es decir que el lombardo influyó poderosamente sobre la


posterior obra del eclesiástico ecuatoriano (valiosa). También
lo hallamos en la introducción que Mariano Felipe Paz Soldán
antepuso a su libro sobre el Perú independiente, donde es
citado como autoridad en cuanto a método y reflexión histórica,
al lado de Tácito, Michelet o Sismondi (PAZ SOLDÁN 1868, p.
iv y siguientes). El mismo carácter de modelo tuvo para la
Historia eclesiástica, política y literaria de Chile (1850), de José
Ignacio Víctor Eyzaguirre, para el Bosquejo de la historia militar
de Venezuela (1855), de José de Austria, para la historia del
golpe contra Santa Anna de Anselmo de la Portilla (1856), para
Pedro Francisco de la Rocha en su “Estudio de la historia de la
revolución de Nicaragua” (1874) y para la Historia de Colombia,
de Jesús María Henao y Gerardo Arrubla (1911). En muchísimos
trabajos más, esté o no mencionado, suministraba el decorado
de fondo. Componiendo un alegato sobre el doctrinarismo y
la libertad, el colombiano Felipe Pérez, para no perder tiempo
en asunto fútil como los datos de base, “ha tomado la Historia
universal de César Cantú, la ha abierto sobre su pupitre y, pluma
en mano, la ha extractado, y a veces la ha copiado al pie de la
letra sin citarla”, comprobaba ser un adversario ofreciendo de
ello evidencia clarísima (MERCHÁN 1886).

Tales lectores se deshacían en elogios a veces disparatados:


“el más grande de los historiadores modernos”, escribía el chileno
Benjamín Vicuña Mackenna, cuya apreciación compartieron
muchos: “el primer historiador del mundo, César Cantú” (el
colombiano José Manuel Groot); “el ilustre Cantú”, “figura
acaso la más eminente entre contemporáneos, en el orden
literario y científico” (el también colombiano Miguel Antonio
Caro); el “doctísimo historiador César Cantú” (el mexicano
Ignacio Ramírez); “el gran Cantú”, para Benjamín Sánchez, que
en la provincia argentina de San Juan escribía hacia 1899 sobre
filosofía de la historia (CARO [1882] 1962, p. 963; GROOT
1876, p. 70; RAMÍREZ [1905] 1988, v. 6, p. 215; ROIG 1970,
p. 179; VICUÑA MACKENNA 1856, p. 284-285).

348 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

Un público latinoamericano
Se habrá visto que, entre los seguidores, plagiarios o
panegiristas citados, abundan los católicos: Federico González
era sacerdote y Eyzaguirre también; católicos moderados eran
Acosta de Samper, Montalvo y Sánchez y furibundos, Groot
y Caro. El italiano ofrecía en efecto un panorama acorde con
sus creencias: el mundo tenía cuatro mil años de edad, su
historia iniciaba con la Creación, sobre Jesucristo exponía
una versión que podía utilizarse contra la de Ernest Renan (y
una réplica colombiana contra éste se basó en Cantú, junto
a otras autoridades), así como también ofrecía argumentos
contra páginas irrespetuosas de Edward Gibbon y se explayaba
sobre vidas de santos que debieron de ser populares.
La Inquisición había sido para él un “verdadero progreso” y
defendía a la Iglesia católica en asuntos como la Reforma o el
juicio a Galileo.

De esa forma, suministraba un sustituto aumentado y


puesto al día de la vieja historia universal de Bossuet (1681),
que había gozado de mucho prestigio en nuestra América
desde la Colonia hasta bien entrado el siglo xix como síntesis
comprensiva. Cuando ya era evidente que la cobertura
cronológica y geográfica del obispo francés era estrecha y,
sobre todo, que había sido superada por el aumento de la
información y las nuevas visiones del mundo, apareció la obra
del lombardo, cuyo carácter confesional, muy fácil descubrir,
se señalaba a menudo y llegó a provocar una respuesta
protestante.

Sin embargo, en otro parecido con Bossuet, Cantú gozó de


un público que fue más allá del católico y tuvo seguidores de
tendencia liberal y laica, como ciertos nombres de admiradores
dejan ver. Ello debido a que fue también, repito, liberal y
patriota italiano y, como tal, tuvo diferencias con el Vaticano
en relación con la anexión de Roma por el Estado italiano y con
otros asuntos menores. Reiteraba su equidistancia en cuanto
a esas tendencias y, si bien se le criticaron ciertos remilgos

349 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

religiosos, cuando apareció la edición mexicana de 1851 de la


Historia universal (producto de una editorial conservadora, por
lo demás), las suscripciones fueron abundantes.

Contribuían a su éxito atractivos adicionales: su amplitud,


su extendida fama, sus dotes de expositor y cierto carácter
acomodaticio, así como el hecho de que, a diferencia
del cerrado exclusivismo eurocéntrico de otras historias 4 “Simón Bolívar imi-
tó a Washington en el
universales, la de Cantú dio lugar a los pueblos orientales vencer y organizar,
(SCHWAB 1950, p. 134), en tratamiento que hoy vemos sin más ambición que
la de libertador”; “Si
disparejo pero que, para la época, era excepcional en una Bolívar tenía el genio
obra para el gran público. Complementaba esto con otro de la guerra, no po-
seía el de la legisla-
mérito análogo que le dio gran prestigio en nuestros países: ción”. El venezolano
también a diferencia de la mayoría, Cantú prestó atención a Rufino Blanco-Fom-
bona retomaba con
España y al mundo hispanoamericano. Podríamos ver aquí otro satisfacción la tra-
ejemplo de su indiscriminado almacenamiento de toda fuente ducción francesa de
Cantú en la que el
que encontraba al paso, pero había también alguna tradicional autor afirmaba que
atención a nosotros en el liberalismo italiano (FILIPPI 1986) el liberalismo, derro-
tado en Europa, era
y él personalmente tenía en ello intereses confesionales y salvado en América
editoriales. Leía el castellano, como varias otras lenguas, y, por Bolívar (véase el
comentario a la vida
al parecer, también lo hablaba, ya que viajaba a menudo a de Bolívar de Felipe
España. Larrazábal en Blanco
Fombona (1981, p.
407)); en relación con
Se las ingeniaba de este modo para allegar bibliografía, el famoso artículo de
exhibida en notas al pie que acá y allá revelan títulos sobre Marx sobre Bolívar, se
ha notado el descono-
nuestros asuntos, aprovechados en páginas y capítulos en cimiento general que
torno al origen del hombre americano, las civilizaciones imperaba entonces en
Europa, con excepcio-
precolombinas, el descubrimiento, la evangelización y la nes entre las cuales
administración colonial, algunos desarrollos políticos recientes se cuentan Humboldt,
Goethe, Carlyle y las
y, tema especialmente grato, las luchas de independencia. historias universales
No sólo daba información que en otras partes no se hallaba, de Gervinus y Cantú
(véase ARZE 1998, p.
sino que lo hacía en un tono que nos era agradable: elogioso 130-131).
de las civilizaciones azteca e inca y de nuestras riquezas y
progreso, crítico del gobierno español y portugués, pero en
tono de ecuanimidad que podía agradar a hispanistas y
antihispanistas. Al hablar de Bolívar, y aunque no con completo
encomio,4 le daba un espacio que era raro encontrar entonces
(CANTÚ 2005).

350 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

Él advertía que “poco nos aventuramos en hablar de


unos países que no nos son mejor conocidos de lo que lo
fueron los germanos en tiempo de Tácito”. Prueba de dicha
ignorancia ambiental es el trozo de cierta presentación suya “A
los lectores”: “Las adiciones hechas en las ediciones españolas
y portuguesas publicadas en Europa y en América son tan
escasas que no han podido servirme, ni como auxiliares, en la
nueva obra”. También se quejaba de que esos textos no habían
seguido su método,

según el cual, la manera de fijarse sobre las particularidades


características de los hechos se amalgamaba con la ciencia de
las miras completivas, y se seguían todas las manifestaciones de
la actividad humana, teniendo siempre en cuenta el progreso de
la humanidad, considerada como una sola familia (CANTÚ 1881,
p. 109; CANTÚ 1879, Introducción “A los lectores”).

Tales palabras nos dan idea de su estilo y del de sus


traductores, pero no convencen de sus dotes de síntesis:
plenamente se exhiben los defectos de los métodos de búsqueda
y escritura de Cantú en las páginas que nos dedica. Nos topamos
con información dispareja, vaga, errónea, amontonamiento
desordenado de nombres, fechas, datos estadísticos, juicios
y comparaciones, nombres mal escritos, falta absoluta de
perspectiva. La bibliografía que cita es errática, evidentemente
la que le llegaba a mano, no vemos algunos grandes nombres
de las historiografías nacionales, que ya existían, y vemos
muchos otros que nada nos dicen. De fuentes originales,
carencia absoluta.

Pese a todo, cierto orgullo debía suscitar que nos


mencionaran en libros provenientes de la culta Europa y
Cantú llegó a sernos fuente de conocimientos sobre nosotros
mismos: José Antonio Páez, caudillo de la independencia
y presidente de Venezuela, al hablar del Congreso de
Panamá, lo hacía reproduciendo varias páginas de Cantú
(PÁEZ s.f., p. 298 y ss.). La versión que atribuye a los incas
los principios de “no robes, no seas ocioso, no mientas”, que

351 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

probablemente se originó en el siglo XIX, se difundió gracias


a Cantú, que la incluyó en su panorama de la civilización
inca y la siguen repitiendo hasta hoy los indigenistas
(CERRÓN-PALOMINO 2011; VEGA 2012). Al componer
su novela María hacia 1865, Jorge Isaacs introdujo en
varios capítulos la historia de los africanos Nay y Esther
en sus desgracias por África y Colombia, apuntalando su
narración con citas de la Historia universal de Cantú que
le habían sido proporcionadas por Miguel Antonio Caro
(HENAO RESTREPO 2005, p. 21).

César Cantú: el nombre españolizado, de acuerdo con las


normas de entonces, nos llegó a ser familiar; subsisten calles
que lo recogen (en Ciudad de México, Guadalajara, Ambato,
São Paulo, Valparaíso, Montevideo, Buenos Aires). El apellido
Cantú, originado en una aldea del valle de Como en la alta
Italia, llegó en algún momento a México y me ha parecido,
por las entradas de Internet, que varios de sus portadores le
antepusieron el nombre de César para recordar en sus vástagos
a tan ilustre tocayo. Todo reitera la amplia fama e influencia de
un historiador hoy poco conocido.

Contactos, correspondencia y polémica


La inclusión de aquellas noticias y opiniones sobre nosotros
podía deberse al fino olfato de Cantú para el público, se dirá,
al deseo de agradarnos e impulsar la venta de las tempranas
traducciones castellana y portuguesa, pero había un interés
más de fondo. El catolicismo de Cantú lo llevaba a observar
con interés ciertos desarrollos en América Latina. Aquí llegaron
algunos que lo habían tratado: José María Le Gohuir Raud
(1871), jesuita bretón que se instaló en Ecuador y sentó plaza
entre los historiadores conservadores; el español José Román
Leal, que polemizó con él (ya lo veremos), pero con orgullo
contaba haberse cruzado en su camino. En Buenos Aires y
zonas aledañas residió un tiempo Gustavo Minelli, hacia los
años de 1860, que había conocido a Cantú en Italia, y enseñó
entre nosotros historia universal, sobre la cual publicó un libro,

352 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

aunque de tono ateo, ajeno por ende a la enseñanza del maestro.


También en Buenos Aires desembarcó en 1893 Clemente Ricci,
antiguo alumno del Instituto Histórico dirigido por Cantú en
Milán (CAVRIANI 2010; DEVOTO 2006, p. 301; GUIANCE
2011, p. 29), quien impartió historia antigua y medieval y
desarrolló amplia obra sobre historia de las religiones (aunque
también se apartó de Cantú por tener una tendencia más bien
racionalista). El abuelo materno de la historiadora mexicana
Ida Rodríguez Prampolini había sido, antes de llegar a México,
ayudante de Cantú, motivo adicional para que también en su
biblioteca familiar figurara la Historia universal (RODRÍGUEZ
PRAMPOLINI 2003).

En otros casos, eran autores latinoamericanos los que


lo buscaban, le escribían, le mandaban sus obras y algunas
citas a pie de página de su obra puede deberse a tales
favores (sus títulos aluden a publicaciones muy locales, como 5 La frase es de Víctor
compendios estadísticos o ciertos Ensayos sobre la historia Eduardo Caro, hijo de
Miguel Antonio (1877-
de Bolivia, de Manuel José Cortés). Él a veces contestaba y 1944), en su autobi-
hay testimonio orgulloso de ello de Felipe Larrazábal, cuando ografía Bajo el alero
(1964) y está citada
preparaba su historia universal. Luis Desteffanis, catedrático en Moreno (1983, p.
de Historia Universal en Uruguay, italiano de origen, mantenía 92).

correspondencia con Cantú, al que elogiaba pese a remarcar


sus diferencias (ODDONE 1959, p. 20; DESTEFFANIS, 1885,
p. 460). El chileno José Victorino Lastarria hacía notar que su
obra había sido descuidada por sus coterráneos a pesar de
la aprobación europea de Quinet y Cantú (LASTARRIA [1843]
1909, p. 6), quien en efecto lo citaba.

Hasta había encuentros personales en los que, astutamente,


Cantú aprovechaba para inquirir: cuando Benjamín Vicuña
Mackenna lo fue a ver en Milán, el italiano evitaba las menciones
a su labor historiográfica y, en cambio, “se empeñaba
solamente en obtener de mí algunas noticias sobre el estado
de la naciente literatura de mi país” (VICUÑA MACKENNA
1856, p. 285). Hay por lo menos otros tres nombres que
cuentan entre aquellos que fueron impulsados por la manía
latinoamericana de visitar a los hombres célebres: “En Milán

353 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

conversé con César Cantú, en París compartí un pan con Verdi,


y en Roma fui acariciado por León XIII”.5 “Un señor chileno
me contó hace poco, en Lima, que estando en Italia fue a
visitar a Cesare Cantú (cuya Historia Universal lo ha convertido
en el escritor moderno italiano más conocido en Perú y en
el resto de América Latina), para expresarle su admiración”
(PEROLARI MALMIGNATI 1882, p. 8). Lo visitó también otro
chileno, Abdón Cifuentes, historiador católico.6

El más ilustre conocido suyo fue el emperador Pedro II de


Brasil. Durante sus recorridos por Europa, éste recorrió Milán
acompañado por Cantú, quien fue a buscarlo a la estación
de trenes y le presentó a Alessandro Manzoni. Al compilar
sus reminiscencias del novelista, Cantú dejó constancia
de ese encuentro. En Los últimos treinta años, llamó a Don
Pedro II “el más antiguo y el más culto e instruido entre los
príncipes reinantes” y tuvo intercambio epistolar con él, de
la cual ha quedado un lote de siete cartas: el historiador le 6 Larios Mengotti
(2011); revisé las Me-
manifestaba su admiración, agradecía las atenciones recibidas morias de Cifuentes,
(hasta una medalla imperial) y, posteriormente, acusó a los que incluyen noticia
de sus viajes por Ita-
militares que lo habían destronado. Entre una cosa y otra lia, pero no encontré
aprovechó para criticar la traducción portuguesa no autorizada lo de la visita a Cantú.

de su obra, que circuló de todos modos en Portugal y Brasil


(OSIO 2005, p. 106).

Otro ilustre fue el ecuatoriano Juan Montalvo, católico, quien


envió a Cantú sus Siete tratados, gesto bastante usual entre
escritores latinoamericanos que buscaban el reconocimiento de
las lumbreras europeas, pero, en este caso, a diferencia de otros,
Cantú le contestó (22-ix-1883) de forma humilde y elogiosa:
ningún título tenía para recibir el regalo precioso de los Siete
tratados, obra conocida en Italia, así como El buscapié, que
había sido traducido al italiano. Y sobre la historia de América
y su tema principal, el de los héroes de la emancipación,
reconocía Cantú la autoridad de Montalvo, en cuyo escrito “se
puede beber como en fuente de gran caudal y que abundan
en él hechos y conceptos pertenecientes a los últimos sucesos
de América”; remataba aseverando que Montalvo “honra a la

354 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

patria y al género humano” (Véase la carta en MONTALVO ANTE


SUS ADMIRADORES EXTRANJEROS 1911, p. 27-28). Tras este
intercambio, Montalvo visitó a Cantú en Madrid, donde también
encontró a Edmondo De Amicis, y recordaba en sus escritos la
valoración recibida (MONTALVO s.f., p. 27-28). Hoy Montalvo
es justamente celebrado por su estilo y ciertas ideas, pero a
nadie se le ocurriría darle un puesto como historiador, lo cual
nos instruye sobre los criterios de Cantú para elegir fuentes.

Otro caso del que se pueden extraer enseñanzas es el del


colombiano José María Torres Caicedo. En varios de sus libros
hay prólogos de Cantú;7 y éste asentaba, en Los últimos treinta
años, que, “si las Repúblicas de la América española enviaran
siempre como sus representantes diplomáticos hombres tan
eminentes como el Sr. Torres Caicedo, adquirirían prontamente
el crédito y estimación que merecen entre los pueblos civilizados
de Europa”. Los maldicientes de la época nos dicen que Torres 7 Tratándolo de arri-
bista, un enemigo
Caicedo era un oportunista hábil en relacionarse con gente denostaba sus libros
de renombre en Europa; a ello se pueden deber, entonces, “precedidos de car-
tas con abstractos y
los prólogos y elogios. Pero hay más: si por algo trascendió vagos encomios de
el nombre de este colombiano es por haber sido uno de los César Cantú” y otros.
Véase GARCÍA ORTIZ
primeros en hablar de “América Latina” (1862), término que 1932, p. 27.
Cantú tempranamente usa y que nos acerca al episodio saliente
de su relación con nuestros países.

Explicando mucho de su interés erudito, su abordaje


giraba en torno de la invasión francesa a México y remontaba a
cierta adhesión suya al proyecto de crear un virreinato italiano
dependiente del imperio austriaco, que estaría bajo el gobierno
del archiduque Maximiliano de Habsburgo (ORSI 1895;
BERENGO 1975, p. 340). No prosperó el esquema, pero Cantú
se convirtió en profesor y amigo personal de Maximiliano, y
a éste, años después, las circunstancias lo llevaron a ser no
virrey, sino emperador, no de Italia, sino de México. Desde un
principio vemos a Cantú involucrado en la empresa, descubrimos
su firma en el prólogo a la edición italiana de México antiguo y
moderno (1863), de Michel Chevalier, obra considerada como
instrumento ideológico de la invasión y con la cual se muestra

355 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

Cantú conforme (CANTÚ [1864] 1878). Luego siguió los


acontecimientos, posiblemente apoyado por información que
le era enviada directamente desde México y, cuando el imperio
fracasó, Cantú escribió una versión justificativa que apareció
en su ya citada Historia de treinta años, suerte de continuación
de la Historia universal.

Ello debía suscitar la respuesta del gobierno mexicano.


Primeramente fue la pluma de Benito Juárez Maza, hijo del
prócer y delegado mexicano en París, quien publicó en Le
Nouveau Monde una carta donde denunciaba epítetos y
calumnias como las de que su padre era jefe de una cuadrilla de
bandoleros, que había querido vender a Estados Unidos el Istmo
de Tehuantepec y hasta puesto precio a la entrega del cadáver
de Maximiliano. Agregó detalles y ciencia el liberal español
José Román Leal, residente en México, en artículos que después
recogió en libro, donde descargaba ahí a Juárez y a los liberales
de las acusaciones: “Sepa el señor Cantú que México no es un
pueblo de bandoleros ni anarquistas ni siquiera demagogos”.
Envolvía su argumentación en extensos comentarios políticos
y filosóficos, le exigía “el juicio y el método que enseña en los
teoremas de sus discursos, de cuya aplicación se olvida, sobre
todo, al ocuparse de la historia de México”. No sin recordar que
había encontrado a Cantú en Europa (LEAL 1886, p. 278, 187).

Más tarde fue el mismo gobierno mexicano quien encargó


a Pedro Santacilia una refutación de mayor peso en la forma
de un folleto que fue publicado en castellano, francés, inglés
y portugués. No se dejaban de reconocer méritos: “las altas
dotes que distinguen y recomiendan al historiador César Cantú
le han valido de justicia la merecida reputación de que goza
en el mundo civilizado; y nosotros que fuimos siempre sus
sinceros admiradores, somos hoy los primeros en reconocer
ese juicio universal”. No le enrostraba mala fe, pero “es
importante hacer constar que César Cantú fue amigo personal
y profesor de Maximiliano, que obtuvo de éste nombramientos
honoríficos y comisiones para un trabajo de instrucción pública
y que no estaba por lo mismo en condiciones de completa

356 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

independencia”; por lo demás, era conservador y admitía que


escribía sobre hechos cercanos en el tiempo “sin pruebas”
(JUÁREZ Y CÉSAR CANTÚ 1885).

Respuesta insuficiente, de estilo demasiado cortesano,


alegaba un crítico más severo, que no podía tolerar los cargos
hechos a Benito Juárez de traidor a la patria, vulgar ambicioso
y jefe de bandidos, expresados por “un hombre de letras que,
mala o legítimamente, goza de nombradía como historiador y
aun como filósofo”. Con mala fe,

compilador más paciente y perseverante que entendido, desde


el tomo II de su Historia universal hasta sus últimos trabajos
historiólogos, toda su filosofía y todo su ideal consisten en hacer
resaltar las sublimidades del catolicismo, para concluir que
el papado es la institución más adecuada a la realización del
progreso humano.

De opiniones incoherentes, liberal y papista, “jesuita


disfrazado de liberal; escribe y trabaja para su Orden; pero
con tan corto alcance que si falsea los principios de la escuela
liberal, no por eso afirma los dogmas de la ortodoxia”. Áulico de
Maximiliano, lo llama en otra parte (SÁNCHEZ MÁRMOL 2011,
t. 3, p. 317 y 379 y ss., discurso de 1865 y “Ave Patria”, de
1889).

Tuvo Cantú que defenderse; mandó al citado Desteffanis,


que enseñaba en Uruguay, una carta para que hiciera publicar,
donde se justificaba alegando que se trataba de hechos recientes
para los cuales había elegido fuentes que le habían parecido
confiables, aduciendo que era necesario que se calmaran
las pasiones (DESTEFFANIS, 1885). El episodio no le restó
admiradores, pero algunas frases de la polémica muestran que ya
para entonces su obra, que nunca había sido indiscutida, hallaba
críticos entre un público latinoamericano que paulatinamente se
había hecho más conocedor del mundo y de los libros.

357 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

El ocaso
El prestigio de Cantú entre los estudiosos europeos nunca
había alcanzado altos niveles y no sobrevivió a su siglo, como
puede verse en los panoramas de historia de la historiografía
8 Gubernatis (1943)
que comenzaron a aparecer. Por italiano, por escribir [es el tomo xi de su
tempranamente y quizás porque cojeaba de la misma pata, Historia de la litera-
tura, 1883-1885], p.
el conde, cantor, poeta y sanscritista Angelo de Gubernatis 215-216: “se apresta
lo incluyó con elogio en la sección sobre historiografía de a redactar su Historia
universal, nueva por
su amplia Historia de la literatura universal (1882-1885),8 su concepto y ejecu-
también traducida al castellano y también frecuentada entre ción, y amplia al par
que rápida, en cuyas
nosotros aunque no tanto como la de Cantú. Compilada páginas, si bien se
bajo el fascismo, la Enciclopedia Italiana lo alaba ya con han advertido muchos
errores, tres genera-
reservas,9 pero el muy meticuloso suizo Eduard Fueter ciones de italianos y
(Historia de la historiografía moderna, 1913) ni lo nombra; el muchos extranjeros
han sacado preciosas
inglés Gooch algo dice, pero es esto: “no era un gran erudito enseñanzas”.
ni un artista. Era prolijo y superficial, y demuestra poca
9 “Ingiusto non rico-
penetración histórica; pero poseía un talento nada común noscergli, ed erroneo
para la popularización” (GOOCH [1913] 1942, p. 438-439). sarebbe negare ad
ogni suo libro un va-
Otro recuento, el de su coterráneo Benedetto Croce, fue más lore anche scientifico,
feroz, lanzándole, entre otros denuestos: todo repite, mejor oppure letterario”, “di
gran lunga superiore
dicho eructa veloz y afanosamente, en nada se detiene, de a quello dei volgari
todo charla, confuso e incoherente, reaccionario disfrazado compilatori” “vi è as-
sai d’imprecisione, di
de liberal, y ni siquiera eso, un vanidoso, un enojón, autor tendenze personali, di
de un cambalache.10 No lo quería, evidentemente, pero no se malizie, volontarie o
involontarie che fos-
muestra injusto. sero, contro i vivi a
proposito dei morti, e
Siguieron pasando las décadas. El estadounidense contro i morti a pro-
posito dei vivi”; méri-
Harry Elmer Barnes incluía su obra en una apretada lista tos aunque “non è un
de historias universales, nombrándolo entre quienes pensatore profondo
ne uno storico accu-
popularizaron la historia de Italia; también divulgador de rato” De esta forma,
poco mérito lo consideraban Thompson y Holm (“Scholars Mazzoni (1930), ma-
tiza los juicios.
may look for the little accuracy and less originality in a
work of such compass, but it was widely known and long (CONT.)

a popular book of reference for Italians […] in general


superficial, written with an eye to the public, and an
occasional spurt of venom”) (BARNES 1962, p. 172, 191, 221;
THOMSON; HOLM 1942, v. 2, p. 612). Percibo un ligero desdén

358 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

en estos viejos repertorios anglosajones: podía servir para


italianos como mucho.11 Después, el silencio, fuera de las obras
de inspiración católica.12

Tales juicios necesariamente refluirían sobre nuestros (CONT.)


autores, que ya habían venido señalando cautamente las
10 Croce (1947),
deficiencias de la obra de Cantú. Al compilar su Historia universal donde rehace artícu-
de 1865, Juan Vicente González no mostraba entera satisfacción los publicados previa-
mente en La critica
con Cantú, lo vimos. Otros se concentraron en cuestiones entre 1915-1920. No
locales, donde la pifia era evidente: al publicar Felipe Tejera, en resisto la tentación de
dar a probar el sabor
París, su Venezuela pintoresca e ilustrada (1875), justificaba de las propias pala-
el esfuerzo aduciendo los incomprensibles errores hallados en bras de Croce en el
original: “tutto egli
la bibliografía europea: “El más célebre historiador moderno, ripete, anzi erutta ve-
Cantú, en su Historia universal hace nacer al Libertador Simón locemente e affanno-
samente, dottrine e
Bolívar en 1780” (TEJERA 1875, t. 1, p. vi). Alejamiento critiche di dottrine, e
prudente que también manifestaba Rafael María Merchán: “la in niente si ferma, di
nessuna cosa scorge
Historia universal de César Cantú tiene gran reputación y no se le difficoltà o conside-
debe hablar de ella sino con respeto pero, como en otra ocasión ra i particolari, e sem-
bra che abbracci tut-
lo dijimos, contiene errores” (MERCHÁN 1886). to e il vero è soltanto
che egli tutto tocca e
Otros apuntaban al lado religioso, cuando ya muchas di tutto chiacchiera, e
non istringe mai nu-
críticas en ese sentido habían dejado de ser peligrosas y se lla di suo proprio” (p.
podía afear a “un autor que a pesar de su talento y erudición, 198); “guazzabuglio”
(p. 200), “confusiona-
no tiene inconveniente en dar principio a su Historia universal rio e incoerente” (p.
con la creación del mundo conforme al Antiguo Testamento” 201), “reazionario in
maschera di liberale
(GARCÍA GRANADOS [1910] 1992, p. 323-324). Podían estar (Francesco de Sanc-
semejantes ataques, en realidad, dirigidos a otros trabajos: su tis)”, “vanitoso, iroso,
puntiglioso, bisbetico”
libro Gli eretici d’Italia, “obra parcial y mediocre que envenenó (p. 201).
las fuentes de la investigación en España y en Hispanoamérica
11 Otro dice, más
durante medio siglo”, había inspirado los Heterodoxos españoles cautamente: “Ge-
de Menéndez Pelayo (SANÍN CANO [1912] 1987, p. 160), por lo nerations of Italians
were to derive their
cual la polémica en torno a la obra del santanderino involucró historical knowledge
al lombardo, defendido por católicos como Gómez Restrepo, from it” (FITZIMONS;
PUNDT; NOWELL
que no consideraba tan malos los Eretici (GÓMEZ RESTREPO 1954 p. 193).
2001, p. 24 y 27).
(CONT.)

Después, las observaciones ya se dirigieron al conjunto de


la obra, empezando por el estilo: una inteligencia criolla cada
vez más enterada podía señalar que en América se leía poco y

359 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

sólo libros al estilo de “la pomposa y falsa erudición de Cantú”.13


Continuando su ataque contra Menéndez y Pelayo, Sanín
Cano veía mal que éste recomendara “el entusiasmo verbal de
César Cantú como desiderátum de estilo” “en una época en que
escribieron Renan, Ruskin, Turgueniev, los Goncourt, Flaubert
y Walter Pater”. Después embistieron contra su método:
“organizadores de datos históricos de mediana inteligencia pero
de voluminosa erudición como César Cantú”, clasificaba Justo
Sierra (1948, p. 32). Al hacer la crónica de unas conferencias
de Cantú en Milán, José Martí hablaba del numeroso público que
iba a oír al “trabajador maravilloso, que ha puesto en forma
bella todos los trabajos de los hombres, al narrador fluidísimo,
que pone magia y brillo en cuanto narra”, elogio habitual al que
sin embargo agregaba que su libro, “con haber parecido obra
(CONT.)
de investigador pasmoso ha medio siglo, parece ahora en uno y
otro trecho obra de estudiante adornado o de poeta perezoso, 12 No tiene su entra-
da en los repertorios
que cree que lleva el mundo en sí y dado el regalo de mirarse,
como Boyd (1999) o
no ve el mundo” (MARTÍ [1882] 1975). Cannon (1988); no
lo mencionan Bre-
isach (1994); Bu-
Para entonces ya había estallado la polémica en torno a rrow (2007); Iggers,
Juárez. Como fue dicho, fueron obras posteriores a la Historia Wang, Mukherjee
(2017); Woolf (2011).
universal el objeto de escándalo y tales obras no tuvieron el
peso de ésta: el Compendio es árido, los Treinta años, de vigor 13 Prólogo de Manuel
Murillo Toro que cita,
menguado, juzgaba el padre Federico González, cuya gran para refutarlo, Caro
admiración por Cantú ya fue apuntada (GONZÁLEZ SUÁREZ ([1882] 1962).
1892). Los epítetos de Benedetto Croce se abrieron camino
hasta nuestras letras: Alfonso Reyes se hacía eco y, al recordar
la presencia del italiano en la biblioteca de su padre, expresaba
alguna concesión a sus máximas, a la amenidad de sus escenas,
pero agregaba que “el conjunto es un torbellino en el vacío” y
“en todo caso, ha llegado para éste la hora del olvido”, cuando
en las ferias de libros su historia se arrumba “entre esas cosas
que nadie compra” (REYES [1918] 1958, p. 363-364).

Parecería que Reyes trasunta como otros nostalgia por esa


época en que obligadamente figuraba Cantú en las bibliotecas
hogareñas, pero también hay en él cierta burla de la ingenuidad
historiográfica de aquellas familias de antaño. Se había

360 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

convertido el viejo monumento en el refugio de las medianas


inteligencias que buscaban un recurso fácil para entender la
marcha de los siglos: en cierto cuento de Horacio Quiroga hay
un indio correntino que aprende a leer y progresa de forma
autodidacta: “tenía una cierta cultura adquirida a hurtadillas,
bastante superior a la que demostraba, y en los últimos tiempos
había comprado la Historia universal de César Cantú. Pero esto
lo supimos después, en razón del sigilo con que ocultaba de
las burlas ineludibles sus aspiraciones a doctor” (QUIROGA
1981, p. 199). Pretensiones como las del hacendado y general
ecuatoriano que “se sabía de memoria el célebre discurso a
la juventud italiana” de Cantú, cuyos libros aplastaban a los
demás en los estantes “con su hidropesía numérica” (TERÁN
[1940] 1964, p. 60).

Referencias en clave destinadas a individualizar a lectores de


gustos e información envejecidos, que se dejaban impresionar
por el aparato de la edición. Atrás de la colección de Cantú
encuentra la mayorala Elmira una tosca bomba de fabricación
casera destinada al pretencioso dictador tropical de la novela El
recurso del método, ambientada en torno a la primera Guerra
Mundial (CARPENTIER 1974, p. 182). Años más, años menos,
son también el escenario del cuento de Quiroga, de la novela
de Terán y de las aventuras del druso Abenjaldún, protagonista
de uno de los cuentos de Bustos Domecq, quien tiene “una
biblioteca fenómeno” donde figura Cantú en su traducción de
1927; sin embargo el elenco de los otros títulos revela al lector
de la época que la tal biblioteca fenómeno era en realidad un
amasijo informe de libros insignificantes o anticuados.

A hurtadillas, como el indio correntino, quizás lo seguían


leyendo; en todo caso porque no había otra cosa para allegar
cierta documentación y la obra de Cantú se mantenía como
la bibliografía más asequible: hace poco se la ha citado como
ejemplo de la desactualización de las bibliotecas públicas
de Río de Janeiro y de otras ciudades brasileñas, que sobre
historia general sólo albergaban traducciones portuguesas de
colecciones con muchos volúmenes pero de valor discutible,

361 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

como las de Cantú y Wilhelm Oncken (aunque a esta última, de


varios autores, se le reconocían colaboraciones importantes,
como la de Eduard Meyer) (CARDOSO 2011, p. 452). Mala,
pero por lo menos estaba; por ello, aunque se burlaran,
Borges y Bioy Casares usaron a Cantú para ciertos datos de
su Libro del cielo y del infierno.14 Vemos que lo cita Ezequiel
Martínez Estrada y que lo cita la bestia negra de los tres,
Juan Domingo Perón (éste y otros ejemplos dados me hacen
pensar que debía de gustar a los militares), quien con toda
seriedad documentaba su afición a los clásicos, a Plutarco, que
había conocido primeramente por medio de Cantú, a quien
confesaba deberle “el sentido universalista y antidogmático
de ese aprendizaje. Muchas veces he releído con emoción los
comentarios marginales que puse sobre los diez gruesos tomos
de pasta española que componen su Historia y que recibí como
legado de mi padre” (PAVÓN PEREYRA 1986, p. 61).

14 Varias páginas,
en efecto, sobre la
Consideraciones finales escatología de diver-
sos pueblos (BOR-
GES; BIOY CASARES
El recuento de casos particulares podría ampliarse.
[1955] 1999, p. 112
Bastaría incluir las muchas notas a pie de página; buscando y ss).
más, ejemplificaciones históricas que tienen su fuente en
Cantú. Faltarían, para mayor seguridad, más datos duros
para demostrar su influencia: junto a la cantidad de ediciones
que se mencionó, también los tirajes, la enumeración de
bibliotecas públicas que lo incluían, su inclusión en planes
de estudio. Creo sin embargo que es hora de recapitular: se
trataba de mostrar la influencia de un autor hoy poco conocido
y nunca demasiado estimado por la academia. Se pudieron
extraer algunas conclusiones, hasta aquí desmigajadas y en
los párrafos siguientes resumidas.

Llegó Cantú a ofrecer una de las muchas historias


universales que se estaban ofertando desde Europa. A diferencia
de otras quizás más confiables —por ejemplo las que del
alemán se estaban traduciendo al italiano en esos tiempos—,
la suya contenía una interpretación adecuada al momento
latinoamericano: con abundancia de información que en otros

362 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

sitios no encontrábamos, especialmente en lo referente a


áreas extraeuropeas, con inclusión de la historia precolombina,
colonial y hasta moderna de nuestros países, con reflexiones
que nos halagaban, todo envuelto en una exégesis que podía
complacer tanto a los liberales como a los conservadores.

A los primeros a pesar del episodio ligado a Benito Juárez,


que los ofendió pero no tanto como para negar la admiración.
Los conservadores tuvieron un poco más de preferencia y
ésta les duró más tiempo. Con los años, sin embargo, se vio
que la ciencia del piamontés no era tanta como se decía, ni
tan exacta, ni mesurada. Como señal de la mayor seguridad
latinoamericana en conocimientos universales, empezaron a
oírse críticas y hasta burlas. En parte era por la mayor conciencia
de que el admirado Cantú no era tomado muy en serio por los
autores más respetados, los del norte de Europa. En parte,
reflejo de críticas que sus mismos coterráneos le dirigieron.

Estas últimas críticas se habían ya formulado desde


el comienzo: no existe en su obra investigación sobre
fuentes primarias, prima una recopilación indiscriminada,
con pretensiones infundadas de erudición que los expertos
desenmascaran fácilmente; hay desequilibrio, parcialidad,
entendimiento equivocado, apresuramiento y generalización
indebida y, de ahí, errores numerosos.

Bajó de categoría Cantú, al nivel de un divulgador para


legos. Aunque siguió siendo referencia de mucho escrito
erudito, ya por pudor se lo citaba menos. Tampoco critiquemos
demasiado: se está yendo, pero, si en las librerías de viejo
todavía se agazapan sus volúmenes, en las de nuevo pululan
otros cantúes bajo la forma de manuales, de colecciones. Hay
programas culturales, páginas de Internet, que han tomado
el relevo suministrándonos la vieja historia eurocéntrica,
moralista y prejuiciada en tomos bien encuadernados, en
programas amigables, con ilustraciones fascinantes, con datos
y con la apariencia del rigor, dirigiéndose especialmente a
nuestro público latinoamericano.

363 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

REFERENCIAS

ARGUEDAS, Alcides. La danza de las sombras: literatura


e historia. In: ARGUEDAS, Alcides. Obras completas.
Preparación, prólogo y notas de Luis Alberto Sánchez.
Madrid-México-Buenos Aires: Aguilar, 1959, t. 1, p. 630-
631.

ARZE, José Roberto. Análisis crítico del “Bolívar” de


Marx. Carta-prólogo del dr. Ángel Francisco Brice. La Paz:
Anthropos, 1998.

BARNES, Harry Elmer. A history of historical writing.


Second and rev. ed. New York: Dover, 1962.

BELAUNDE, Víctor Andrés. Trayectoria y destino:


memorias. Estudio preliminar de César Pacheco Vélez. Lima:
Ediventas, 1967.

BERENGO, Marino. Cesare Cantú. In: Dizionario


biografico degli italiani. Roma: Istituto dell’ Enciclopedia
Italiana, 1975, v. 18. p. 336-344.

BLANCO FOMBONA, Rufino. Ensayos históricos. Prólogo


Jesús Sanoja Fernández, sel. y cronología Rafael Ramón
Castellanos. Caracas: Biblioteca Ayacucho, 1981.

BORGES, Jorge Luis; BIOY CASARES, Adolfo. Libro del cielo


y del infierno (1955). Buenos Aires: Emecé, 1999.

BOYD, Kelly (org). Encyclopedia of history and historical


writing. London & Chicago: Fitzroy Dearborn, 1999.

BREISACH, Ernst. Historiography: ancient, medieval &


modern. Chicago: University of Chicago Press, 1994.

BURROW, John. Historia de la historia: de Heródoto al


siglo xx. Barcelona: Crítica, 2007.

364 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

CANNON, John et al. The Blackwell dictionary of


historians. Oxford: Basil Blackwell, 1988.

CANTÚ, César. Los últimos treinta años: continuación


de la Historia Universal. Trad. D. G. Aguado de Lozar,
aprobada por el autor. Paris: Garnier, 1881.

CANTÚ, Cesare. Prefazione all’edizione italiana (marzo


1864). In: CHEVALIER, Michele. Il Messico. Milano:
Corona e Caimi, 1878.

CANTÚ, Francesca. ‘America’ e ‘Spagna’ nella Storia


universale. In: Cesare Cantú e “L’età che fu sua”.
Giornata di studi, Milano, Biblioteca Ambrosiana, 2005,
interventi, a cura di Claudia Crevenna. Disponible en:
http://www.cesarecantu.it/cesare-cantu-e-leta-che-fu-
sua-2004-2005/. Consultado en: 9 agosto 2020.

CARBALLO, Emmanuel. Protagonistas de la literatura


mexicana (1965). México: sep-Ediciones del Ermitaño, 1986.

CARDOSO, Ciro Flamarion. Brazilian historical writing


and the building of a nation. In: MACINTYRE, Stuart;
MAIGUASHCA, Juan; PÓK, Attila Pók (orgs.). The Oxford
history of historical writing. New York etc: Oxford University
Press, 2011, vol. 4, 447-462.

CARO, Miguel Antonio. Recuerdos y rectificaciones (a La


América de Madrid) (1882). In: CARO, Miguel Antonio.
Obras, tomo 1. Estudio preliminar por Carlos Valderrama
Andrade. Bogotá: Instituto Caro y Cuervo, 1962. p. 958-
972.

CARPENTIER, Alejo. El recurso del método. México:


Siglo xxi, 1974.

CAVRIANI, Marco. Antonio Minelli. In: Dizionario


biografico degli italiani. Roma: Istituto dell’ Enciclopedia
Italiana, 2010. v. 74.

365 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

CERRÓN-PALOMINO, Rodolfo. Sobre el carácter espurio


de la trilogía moral incaica. In: REGALADO, Liliana;
HERNÁNDEZ, Francisco (orgs). Sobre Los Incas. Lima:
Instituto Riva Agüero/Pontificia Universidad Católica del
Perú, 2011. p. 67-87.

CORTÉS, José Domingo. Diccionario biográfico


americano. Paris: Lahure, 1875, s.v.

CROCE, Benedetto. Storia della storiografia italiana nel


secolo decimonono. Terza edizione riveduta. Bari: Gius.
Laterza e Figli, 1947.

DESTEFFANIS, Luis D. Cesare Cantú. In: Anales del


Ateneo del Uruguay, año 4, t. 9, 1885.

DEVOTO, Fernando. Historia de los italianos en


Argentina. 2ª ed. Buenos Aires: Biblos, 2006.

DIHIGO Y MESTRE, Juan M. Un orientalista cubano:


Francisco Mateo de Acosta y Zenea, discurso … 1932. La
Habana: El siglo xx, 1932.

ENCINA, Francisco A. Resumen de la historia de Chile.


Redacción, iconografía y apéndices de Leopoldo Castedo.
Santiago: Zigzag, 1954.

FILIPPI, Alberto (Dir.). Bolívar y Europa en las crónicas,


el pensamiento político y la historiografía. Caracas:
Presidencia de la República, 1986.

FINCH, James Austin. Cesare Cantù. In: Catholic World,


v. 43, n. 256, p. 525-534, 1886.

FITZSIMONS, Matthew A.; PUNDT, Alfred G.; NOWELL,


Charles E. The development of historiography.
Harrisburg, penn: The Stackpole Company, 1954.

FLORESCANO, Enrique. La función social de la historia.


México: fce, 2012.

366 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

GARCÍA CALDERÓN, Francisco. Riva Agüero, compañero de


generación (1949). In: HAMPE MARTÍNEZ, Teodoro (org.).
América Latina y el Perú del Novecientos: Antología
de textos, compilación, introducción y notas de Teodoro
Hampe Martínez. Lima: Universidad Mayor de San Marcos,
2003.

GARCÍA GRANADOS, Ricardo. El concepto científico de


la historia (1910). In: ORTEGA Y MEDINA, Juan A. (org.).
Polémicas y ensayos mexicanos en torno a la historia.
Notas bibliográficas e índice onomástico por Eugenia W.
Meyer [1970]. 2ª. edición. México: unam, 1992. p. 315-370.

GARCÍA ORTIZ, Laureano. Las viejas librerías de Bogotá


en 1883. In: GARCÍA ORTIZ, Laureano. Discursos
académicos, Bogotá: Biblioteca de la Presidencia de la
República, 1932. p. 21-39.

GÓMEZ RESTREPO, Antonio. Epistolario de Antonio


Gómez Restrepo con escritores españoles. Ed., pres.
y notas de Mario Germán Romero. Bogotá: Instituto Caro
y Cuervo, 2001.

GONZÁLEZ SUÁREZ, Federico. César Cantú: una lección en


la clase de historia. Anales de la Universidad de Quito,
serie 6, n. 43 p. 131-145, 1892.

GONZÁLEZ SUÁREZ, Federico. Memorias íntimas.


Discurso de Mariana de Jesús. Manifiesto a los
ecuatorianos. Intr. de Carlos Manuel Larrea, Puebla: José
M. Cajica, 1969.

GONZÁLEZ, Juan Vicente. Manual de historia universal,


Caracas: Rojas Hermanos, 1863.

GOOCH, George P. Historia e historiadores en el siglo


xix (1913), México: fce, 1942.

GROOT, José Manuel. Réplica al ministro presbiteriano


H. B. Pratt. Bogotá: Imprenta de El Tradicionista, 1876.

367 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

GUBERNATIS, Ángel de. Historia de la historiografía


universal. Pról. de Rómulo Carbia y epílogo de Juan F.
Turrens. Buenos Aires: cepa, 1943.

GUIANCE, Ariel. La historiografía española y el medievalismo


americano: Sánchez-Albornoz, Américo Castro y la
construcción de la identidad nacional a través de la Edad
Media. In: GUIANCE, Ariel (org.). La influencia de la
historiografía española en la producción americana.
Valladolid: Instituto Universitario de Historia Simancas/
Marcial Pons Historia, 2011. p. 25-58.

HARBSMEIER, Michel. World histories before domestication.


Culture and History, 5, p. 93-131, 1989.

HENAO RESTREPO, Darío. El mundo de Nay y Ester.


Poligramas, 3, p. 9-28, 2005.

IGGERS, Georg G.; WANG, Q. Edward; MUKHERJEE, Supriya


(orgs.). A global history of modern historiography. 2nd
ed. London/New York: Routledge, 2017.

JUÁREZ Y CÉSAR CANTÚ: refutación de los cargos que


hace en su última obra el historiador italiano contra el
Benemérito de América. México: Imprenta del Gobierno
Federal en Palacio, 1885.

KURBAN, Taufik. Os syrios e lebaneses no Brazil. São


Paulo: Libraria Freitas Bastos, 1933.

LARIOS MENGOTTI, Gonzalo. Abdón Cifuentes en Europa.


Anuario de Historia de la Iglesia en Chile, v. 29, p. 85-
109, 2011.

LARRAINZAR, Manuel. Algunas ideas sobre la historia


y manera de escribir la de México (1865). In: ORTEGA
Y MEDINA, Juan A. (comp.). Polémicas y ensayos
mexicanos en torno a la historia. Notas bibliográficas e
índice onomástico por Eugenia W. Meyer [1970]. 2ª edición.
México: unam, 1992. p. 142-255.

368 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

LASTARRIA, José Victorino. Investigaciones sobre la


influencia social de la conquista i del sistema colonial de los
españoles en Chile (1843). In: LASTARRIA, José Victorino.
Estudios históricos. Santiago: Imprenta, litografía y
encuadernación Barcelona, 1909. v. 7.

LATCHAM, Ricardo A. Psicología del caballero chileno (1930).


In: Ricardo A. Latcham (1903-1965), Santiago: Atenea,
1903. p. 146-150.

LEAL, José Román. México constitucional: refutación


fundamental ante la razón de la historia, de los errores
vigentes de César Cantú y de las injurias y calumnias
levantadas contra México por los libelistas. México:
Imprenta de Mena y Vilaseca, 1886.

LOAIZA CANO, Gilberto. La expansión del mundo del


libro durante la ofensiva reformista liberal: Colombia,
1845-1886. In: ACOSTA PEÑALOZA, Carmen Elisa; AYALA
DIAGO, César Augusto; CRUZ VILLALOBOS, Henry Alberto
(orgs.). Independencia, independencias y espacios
culturales: Diálogos de historia y literatura. Bogotá:
Universidad Nacional de Colombia, 2009. p. 25-64.

MARTÍ, José. Escenas europeas: Italia. In: MARTÍ, José.


Obras completas. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales,
1975. v. 14,.p. 393-400.

MAZZONI, Guido. Cesare Cantú. In: Enciclopedia


Italiana di Scienze, Lettere ed Arte. Roma: Istituto per
l’Enciclopedia Italiana, 1930. v. 8. p. 809-810.

MELO ARAÚJO, André de. Tradução ilustrada: imagens da


História Universal inglesa e de suas edições europeias no
século XVIII. História da Historiografia, n. 26, p. 69-
100, 2018.

369 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

MERA, Juan León. Libros prestados (1862). In: MERA, Juan


León. Tijeretazos y plumadas: artículos humorísticos,
precedidos de una carta-prólogo de José de Alcalá Galiano.
Madrid: Est. Tip. de Ricardo Fé, 1903. p. 99-111.

MERCHÁN, Rafael M. La política en la historia. In: MERCHÁN,


Rafael M. Estudios críticos. Bogotá: Imprenta de la Luz,
1886. p. 291-368.

MILLÁN DE BENAVIDES, Carmen. Anacronismos y


persistencias: la Historia universal de Cesare Cantú. In:
RINCÓN, Carlos Rincón; MOJICA, Sarah de; GÓMEZ, Liliana
(orgs.). Entre el olvido y el recuerdo: iconos, lugares
de memoria y cánones de la historia y la literatura en
Colombia. Bogotá: Pontificia Universidad Javeriana, 2010.
p. 239-253.

MOLINA ARGÜELLO, Carlos. La enseñanza de la historia


en Nicaragua. México: ipgh, 1953.

MOLINA ENRÍQUEZ, Andrés. Los grandes problemas


nacionales [1909] [y otros textos, 1911-1919]. Prólogo de
Arnaldo Córdova. México: Era, 1978.

MONTALVO ANTE SUS ADMIRADORES EXTRANJEROS.


Ambato: Imprenta y Encuadernación Nacionales, 1911.

MONTALVO, Juan. Mercurial eclesiástica. Libro de las


vanidades y un vejestorio ridículo. Madrid: Editorial
América, sf.

MORENO, Ezequiel. Epistolario del beato … y otros


agustinos recoletos con Miguel Antonio Caro y su
familia. Compilación, introducción y notas de Carlos
Valderrama Andrade. Bogotá: Instituto Caro y Cuervo,
1983.

ODDONE, Juan Antonio. La historiografía uruguaya en el


siglo xix: apuntes para su estudio. Revista Histórica de
la Universidad de Montevideo, núm. 1, p. 3-37, 1959.

370 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

ORSI, Pietro. Cesare Cantú. Revue Historique, t. 58,


fasc. 2, p. 382-384, 1895.

OSIO, Bernardino. Le lettere di Cesare Cantù a Pedro II


imperatore del Brasile. In: Cesare Cantú e “L’età che
fu sua”. Giornata di studi, Milano, Biblioteca Ambrosiana,
2005, interventi, a cura di Claudia Crevenna. Disponible
en: http://www.cesarecantu.it/cesare-cantu-e-leta-che-fu-
sua-2004-2005/. Consultado en: 9 agosto 2020.

PÁEZ, José Antonio. Memorias, autobiografía. Madrid:


Editorial América, s.f.

PASAMAR, Gonzalo, Formas tradicionales y formas


modernas de la “historia del presente”. Historia Social,
n. 62, p. 147-169, 2008.

PAVÓN PEREYRA, Enrique. Perón tal como fue. Buenos


Aires: ceal, 1986.

PAZ SOLDÁN, Mariano Felipe. Historia del Perú


independiente, Primer periodo 1819-1822. Lima:
s.ed., 1868.

PELLESCHI, Giovanni. Eight months on the Gran Chaco


of the Argentine Republic. London: Sampson Low,
Marston, Searle & Rivington, 1886.

PEROLARI MALMIGNATI, Pietro. Il Peru e i suoi tremendi


giorni (1878-1881): pagine d’uno spettatore. Milano:
Fratelli Treves, 1882.

QUIROGA, Horacio. La cámara oscura. In: QUIROGA,


Horacio. Cuentos. Selección y prólogo de Emir Rodríguez
Monegal, cronología de Alberto F. Oreggioni. Caracas:
Biblioteca Ayacucho, 1981.

371 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

RAMÍREZ, Ignacio. Geografía elemental del estado


de Guanajuato (1905). In: RAMÍREZ, Ignacio. Obras
completas. México: Centro de Investigación Científica Ing.
Jorge L. Tamayo, 1988, vol. 6.

REYES, Alfonso. César Cantú (1918). In: REYES, Alfonso.


Obras completas. México: fce, 1958. t. 7. p. 363-364.

REYES, Alfonso. Oración del 9 de febrero (1930). In: REYES,


Alfonso. Obras completas, México: fce, 1990. t. 24. p. 25-
52.

RIVA AGÜERO, José de la. Carácter de la literatura del


Perú independiente (1905). Intr. general de Víctor Andrés
Belaunde... . In: RIVA AGÜERO, José de la. Obras completas.
Lima: Pontificia Universidad Católica del Perú, 1962. v. 1.

RODRÍGUEZ PRAMPOLINI, Ida. La historia y sus dones.


Crónica, 13-ix, 2003.

ROIG, Arturo Andrés. La filosofía de la historia de Benjamín


Sánchez. Cuyo, Mendoza, v. 6, p. 177-181, 1970.

SÁNCHEZ MÁRMOL, Manuel. Obras completas. Tabasco:


Universidad Juárez Autónoma de Tabasco, 2011.

SANÍN CANO, Baldomero. Menéndez Pelayo (1912). In:


SANÍN CANO, Baldomero. El oficio de lector. Compilación,
prólogo y cronología Gustavo Cobo Borda. Caracas: Biblioteca
Ayacucho, 1987. p. 157-161.

SCHWAB, Raymond. La Renaissance orientale. Paris:


Payot, 1950.

SIERRA, Justo. Historia de la Antigüedad. In: SIERRA,


Justo. Obras completas. Tomo 10, ed. establecida por
Edmundo O’Gorman. México: UNAM, 1948.

372 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
La historia universal de Cesare Cantú en América Latina

STUCHTEY, Benedikt; FUCHS, Eckhardt. Introduction.


Problems in writing of world history: Western and non-
Western experiences, 1800-2000. Apud. Writing world
history 1800-2000. Oxford/New York: German Historical
Institute London, 2003. p. 1-44.

SUBERCASEAUX, Bernardo. La cultura en la época


de Balmaceda (1880-1900). In: VVAA, La época de
Balmaceda. Santiago de Chile: Dirección de Bibliotecas,
Archivos y Museos, 1992.

TEJERA, Felipe. Venezuela pintoresca e ilustrada.


Paris: Librería Española de E. Denné Schmitz, 1875.

TERÁN, Enrique. El cojo Navarrete (1940). Quito: Casa


de la Cultura Ecuatoriana, 1964.

THOMPSON, James Westfall; HOLM, Bernard J. A history


of historical writing. New York: Macmillan, 1942.

VEGA, Juan José. Historia y evolución del ‘ama sua’. In:


VEGA, Juan José. Páginas de la historia del Perú. 2012.
Disponible en: http://batiburriloacg.blogspot.com/2012/09/
historia-y-evolucion-del-ama-sua.html. Consultado en: 9
agosto 2020.

VICUÑA MACKENNA. Benjamín, Pájinas de mi diario


durante tres años de viajes 1853-1854-1855.
Santiago: Imprenta del Ferrocarril, 1856.

WOOLF, Daniel. A global history of history. Cambridge


University Press, 2011.

373 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
Hernán G. H. Taboada

AGRADECIMIENTOS E INFORMACIÓN

Hernán G. H. Taboada
haroldo@unam.mx
Universidad Nacional Autónoma de México
Centro de Investigaciones sobre América Latina y el Caribe
Ciudad de México
México

RECIBIDO EL: 10/OCT./2019 | ACEPTADO EL: 27/MARZO/2020

374 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 341-374 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1534
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Tirano, louco e incendiário: BolsoNero. Análise da


constituição da assimilação entre o Presidente da República
do Brasil e o Imperador Romano como allelopoiesis
Tyrant, madman and arsonist: BolsoNero. Analysis of the constitution
of assimilation between the President of the Republic of Brazil and the
Roman Emperor as allelopoiesis

Fabio Faversani
https://orcid.org/0000-0002-3464-1020

RESUMO
O imperador Nero foi se constituindo, ao longo de séculos
e com o uso de múltiplas linguagens produzidas por ABSTRACT
diversas culturas, num símbolo bastante universalizado
Over the centuries and with the use of multiple languages
de tirania. Associado, sobretudo, com a loucura e a
produced by various cultures, Emperor Nero became
destruição, serviu para a crítica dos mais diversos
quite the universal symbol of tyranny. Mainly associated
governantes que o seguiram e cometeram crimes que
with madness and destruction, remembering Nero has
pudessem, de algum modo, ser ligados àqueles que
served to criticize various rulers who lived after him
foram atribuídos a Nero. Tais aproximações, muito
and committed crimes that could somehow be linked to
variadas ao longo do tempo e espaço, permitiram a
those attributed to Nero. Such approaches varied a lot
constituição de um amplo e multifacetado repertório de
over time and space and allowed the constitution of a
Neros produzidos na política, na literatura, no cinema,
broad and multifaceted repertoire of Neros produced in
na música etc. Esse repertório gerou uma tradição
politics, literature, cinema, music, etc. This repertoire
composta da associação do Nero “original” com os
fostered a tradition composed of the association of the
diversos personagens e contextos dos “novos” Neros.
“original” Nero with the various characters and contexts
Essa tradição permitiu ao mesmo tempo uma nova
of the “new” Neros. This tradition allowed both a new
interpretação do passado e uma leitura original do
interpretation of the past and an original reading of the
presente. Nesse sentido, há uma construção recíproca
present. Thus, there is a reciprocal and simultaneous
e simultânea do(s) passado(s) e do presente, gerando
construction of the past(s) and the present, generating
o processo de allelopoiesis, produzindo Neros que
an allelopoiesis process, producing Neros that do not
não pertencem exclusivamente ao(s) passados ou ao
belong exclusively to the past or the present, but
presente, mas mesclam e confundem inextricavelmente
inextricably merge and confuse these temporalities.
essas temporalidades em diferentes sínteses que se
This process originated different syntheses that
comunicam através de uma tradição com a forma de
communicate ideas through a tradition in the form of
repertório a ser reapropriado e modificado. Esse artigo
repertoire to be appropriated and modified multiple
tem por foco o caso do Presidente da República do
times. This article focuses on the case of the President
Brasil, Jair Bolsonaro, apelidado de BolsoNero.
of the Republic of Brazil, Jair Bolsonaro, nicknamed
BolsoNero.
PALAVRAS-CHAVE
Nero; Bolsonaro; usos da história
KEYWORDS
Nero; Bolsonaro; uses of history

375 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

Introdução
A ligação entre Nero e Bolsonaro que analisaremos nesse
artigo não se fez de forma direta e pressupõe a vinculação
entre esse Imperador Romano e uma tradição multissecular
e transcultural que começa a se constituir após sua morte,
especialmente com os imperadores Flávios. Um bom marco
inicial é a tragédia togata Octavia, muito provavelmente escrita
já no início do governo de Vespasiano (69-79).1 Um momento
importante na construção da imagem de Nero como tirano 1 Miriam Griffin afir-
ma que a peça es-
exemplar se estabelece com a biografia escrita por Suetônio tabelece Nero como
no início do século II d. C., assim como os livros neronianos “the proverbial tyrant,
robbed of any perso-
(XIII a XVI) nos Anais, de Tácito, escritos mais ou menos pela nal characteristics, a
mesma época, que será complementada pela contribuição de mere incarnation of
the will to evil, una-
Dião Cássio, cerca de um século depois, mas transmitida por ffected by advice or
epitomadores dos livros neronianos (XLI-LXIII) dos séculos XI influence.” (GRIFFIN
1984, p. 100). Para
e XII.2 Desde a morte de Nero e ao longo de gerações, foi uma apresentação da
se reforçando uma imagem desse imperador como tirano, que obra e texto com co-
mentários e notas, cf.
exerceu o poder de forma desmedida, a ponto de matar sua FERRI 2003.
própria mãe ou colocar fogo em Roma. As tradições judaicas e
2 Champlin afirma,
cristãs também tiveram um peso fundamental na construção com razão, que “Cer-
de uma tradição negativa para a imagem de Nero. Foi sob Nero ca de vinte e cinco
autores antigos, não
que teve início a guerra que levaria à destruição do Templo cristãos, tem algo de
e à diáspora. Já no século I, os Oráculos Sibilinos retratam valor a dizer sobre
Nero, mas o grosso
Nero como o imperador que deixou Roma e se uniu aos Partos, da imagem que temos
prevendo que ele voltaria dali à frente de dezenas de milhares vem de apenas três
deles: os historiado-
de homens para destruir Roma e o mundo (4, 119-124; 4, res Tácito e Dião Cás-
138-139; 5, 137-152; 5, 362-385). Na tradição judaica, logo sio e o biógrafo Sue-
tônio”. (CHAMPLIN
após a destruição do Templo e o saque de Jerusalém por Tito, 2003, p. 37).
Nero é associado com um apocalipse militar, mesmo que ele
nunca tenha se ligado em vida às atividades militares. Ele
era, inclusive, criticado por não se importar com o comando
dos exércitos. Isso não importa muito para as tradições
que foram sendo criadas na composição de diferentes
contextos com referência a Nero. Ele não era um comandante
militar, mas fazia monstruosidades. Monstruosidades
são cometidas frequentemente com força militar. Então,
ele se torna um comandante militar sem nunca ter sido.

376 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

Nero, assim, não é um legado que nos é dado pelo passado


3 Cf. MAIER 2013, p.
nem é um personagem construído livremente pelas demandas
385-404.
do presente. Ele mescla e recompõe passado e presente
4 Cf. WINTERLING
através de uma tradição que estabelece limites para o uso do
2012.
passado e, por várias reinterpretações, constrói um repertório.
A tradição cristã também lhe foi manifestamente desfavorável
5 Muitos dos traba-
por Nero ter incriminado os seguidores de Cristo como os lhos mais recentes
têm promovido uma
culpados pelo incêndio de Roma. Nero é acusado de ser o
revisão dessa vi-
primeiro grande perseguidor de cristãos e um antiCristo.3 são do artista-louco
e procurado dar um
sentido à atividade
Nero foi transmitido para a posteridade como um dos do imperador nesse
imperadores loucos (a par de Calígula, Domiciano, Cômodo e campo como sendo de
grande importância
Heliogabalo, entre outros), mas com características específicas.4 e alcance. Um exem-
Além de incendiário e matricida, também era um artista sem plo dessa reavaliação
pode ser encontrado
talento, que era reconhecido apenas em função da adulação em Leigh (2017, p.
daqueles que queriam se beneficiar dos favores do poder.5 A 21-33). Essa perspec-
tiva de reavaliação
representação imagética de Nero se dará repetidamente com o de Nero é mais geral
Imperador empunhando a lira e tendo fogo ao fundo.6 Diversos e bem contextualiza-
da por Miriam Griffin
governantes ou, de forma mais geral, pessoas que detenham em sua contribuição
muito poder que se sucederam no tempo foram sendo (GRIFFIN 2013).
associados com os defeitos de Nero e, assim, sendo criticados 6 Pode se encontrar
como novos Neros. Sempre que, por alguma razão, opositores uma boa coletânea
de representações
puderam associar governantes a Nero, fizeram isso como uma de Nero ao longo do
maneira de desqualificá-los de forma irremediável. Os motivos tempo no catálogo da
exposição dedicada
para gerar essa associação foram muito variados. Um bastante a esse imperador em
geral e que pode ser empregado a muitos governantes é a Roma em 2011 (TO-
MEI; REA 2011).
acusação de serem vaidosos em demasia e, para piorar, sem
muita percepção de que lhe faltam talentos que os aduladores 7 Nos tempos mais
recentes, um bom
lhe atribuem, produzindo, assim, um governante com o ego exemplo dessa repre-
demasiadamente inflado.7 Outra acusação comum que leva sentação de Nero é o
desempenho de Peter
a uma associação a Nero é o ataque ao governante por ser Ustinov no clássico fil-
responsável pela destruição material ou abstrata de patrimônios me Quo vadis (1951),
que foi a forma de
ou valores (cabendo a ideia de que esse governante queimou contato com o impe-
algo literal ou metaforicamente). Por fim, em alguns casos, a rador Nero para um
público muito vasto
lembrança de Nero se dá simplesmente pela associação com a que assistiu ao filme,
tirania, ou pela combinação desta com algum dos “crimes” de mas jamais leu Tácito
ou Suetônio.
Nero.8
(CONT.)

377 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

Assim, a imagem do Nero histriônico, incendiário e


louco, capaz de atos abomináveis como o matricídio ou
o incêndio de Roma, começou a ser criada na Antiguidade,
mas foi sendo retomada por gerações, quer através de
representações artísticas (que foram passando pela literatura
e artes plásticas, música e ópera e chegando ao cinema
e os quadrinhos, mais modernamente9), quer através do
debate político e da produção de materiais tão diversos como
panfletos ou cartazes e textos da imprensa em suas diferentes (CONT.)
modalidades. Essas reaproximações com Nero geração após
8 Para uma breve
geração fazem dele íntimo de um público amplo que pode apresentação geral do
Principado de Nero,
reconhecê-lo facilmente quando exposto em sua individualidade
cf. JOLY; FAVERSANI
ou quando associado a outros personagens.10 Nas imagens, 2019, p. 79-95.
basta colocar alguém em vestimentas que lembrem vagamente
9 Para o caso do ci-
a toga romana com uma lira em suas mãos e fogo a sua volta nema, no catálogo da
exposição “Nerone”
que imediatamente o público reconhecerá o Nero original ou,
citada anteriormen-
mudadas as feições ou feita menção também a algum fato te, temos um estudo
bastante interessan-
recente ligado aos muitos governantes que foram acusados
te, inclusive com a
de tiranos, ególatras ou destruidores, e se reconhecerá listagem da extensa
filmografia que tem
prontamente mais um desses muitos novos Neros. Nesse
Nero como protago-
artigo, analisamos apenas mais uma dessas associações que nista, cf. PUCCI 2011,
p. 62-75.
não deve ser entendida isoladamente, mas como parte de uma
longa tradição. 10 Champlin sintetiza
bem esse elemento,
ao afirmar que: “ele
[Nero] foi o único
Nero no Brasil: dois exemplos romano que (...) foi
uma presença viva
por séculos após sua
Essas aproximações entre Nero e a nossa realidade morte, alguém cujo
retorno foi aguardado
cotidiana podem ser feitas através de personagens com poder,
com esperança e com
ou simplesmente como retomadas do Nero da Antiguidade. medo.” (CHAMPLIN
2003. p. 235).
Darei dois exemplos dentro do ambiente brasileiro como mostra
dessa amplitude. O primeiro deles vem de um dos maiores
clássicos de nossa literatura, o brilhante Dom Casmurro, de
Machado de Assis. A casa de Bento Santiago, protagonista e
narrador do romance, tinha a figura de Nero decorando sua
sala, que replicava o que se tinha na casa anterior, em Mata-
Cavalos. Ele nos diz no capítulo 2:

378 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

Na principal destas [salas], a pintura do tecto e das paredes é


mais ou menos igual, umas grinaldas de flores miúdas e grandes
pássaros que as tomam nos bicos, de espaço a espaço. Nos
quatro cantos do tecto as figuras das estações, e ao centro das
paredes os medalhões de César, Augusto, Nero e Massinissa, com
os nomes por baixo... Não alcanço a razão de tais personagens.
(ASSIS 2004, p. 810).
11 Tal representação
com os recursos su-
Os nomes por baixo asseguram que sejam identificadas as blinhados por Macha-
do de Assis está em
personagens, sem que seja necessária outra ajuda, uma vez linha com muitas das
que a qualidade técnica da execução e a distância do observador figurações que nos
foram legadas pela
para a pintura (quer física, quer intelectual) poderiam dar Antiguidade, quer
lugar a alguma confusão.11 Ainda que indique não atinar para no suporte cerâmico
quer como elemen-
a razão, no mesmo capítulo 2 o Casmurro faz nova menção a to de composição ar-
essas figuras, esclarecendo uma das razões pelas quais elas quitetônica domésti-
ca. Para um exemplo
estavam ali. O personagem decidiu que escreveria um livro. particular, serão úteis
Cogita várias matérias e gêneros, mas se afasta deles porque os diversos estudos
realizados por Regi-
lhe parece que todos dariam muito trabalho. Então, chega a na Maria Bustaman-
uma resolução: te sobre os mosaicos
norte-africanos, e.g.:
http://www.angelfire.
com/planet/anpuhes/
Sim, Nero, Augusto, Massinissa, e tu, grande César, que me regina4.htm.
incitas a fazer os meus comentários, agradeço-vos o conselho,
e vou deitar ao papel as reminiscências que me vierem vindo. 12 Cf. LANGLANDS
2018; ROLLER 2018.
Deste modo, viverei o que vivi, e assentarei a mão para alguma
obra de maior tomo. (ASSIS 2004, p. 811). 13 Uma excelen-
te abordagem des-
se tema para o caso
de Machado de Assis
César ali está, a par dos demais, como modelo de conduta a pode ser encontra-
ser imitada (ou evitada), como exemplum. E como é próprio dos da no filme Um ca-
nibal nos trópicos
exempla desde a Antiguidade, eles não são modelos prescritivos, (2019), dirigido por
mas estão abertos à interpretação e são repensados a partir Edson Martins. Cf. ht-
tps://www.youtube.
daquele que os toma e do contexto em que os toma.12 Assim, com/watch?v=xA-
César, que escreveu os Comentarii sobre as Guerras Civis e fdP8_2lOU. Acesso
em: 22 dez. 2019.
sobre as Guerras Gálicas, é tomado pelo nosso Bento Santiago
como autor a ser emulado. Os antigos foram transmitidos para
diferentes sociedades ao longo dos séculos como modelos a
serem imitados (ou evitados) e, desde a Antiguidade, isso foi
gerando um repertório e tradições interpretativas associados
a eles.13 No caso da imitação de César pretendida por Bento,

379 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

o autor antigo, um grande gênio literário, transforma-se em


modelo acabado de autor que pouco se esforça para compor
sua obra, um autor modelo para os preguiçosos. Nero não lhe
servia, pois se tornou conhecido pelo seu grande esforço e
dedicação à arte, indecoroso para um governante. Nero era
um mau modelo, mas Bento Santiago necessitava de outro
do repertório clássico. Há limites para o uso do passado. O
uso do passado transforma o passado, gerando um novo César
que se liga com a tradição já construída e a modifica a cada
nova apropriação que se faça. Mas, ao mesmo tempo, delimita
e qualifica as interpretações que se possa ter do tempo
presente, que não se faz senão a partir desse mesmo passado
retomado, que dá elementos para compreender e comunicar
essa compreensão do presente para os seus contemporâneos.14
14 Mamede Queiroz
O outro exemplo, mais breve para a felicidade do(a) leitor(a), Dias analisa esse pro-
blema com foco no
retiro de uma música que fez grande sucesso em todo Brasil: a processo de comuni-
Dança da Manivela. Esse hit da banda Ásia de Águia continuou cação, que opera em
diversos meios e se
sendo cantado em muitos carnavais e bailes, além de ser reproduz na diacro-
executada extensamente em rádios depois de seu lançamento nia e na sincronia,
partindo das refle-
em 1997, recebendo versões diferentes em regravações. A xões teóricas de Ni-
música original trazia uma introdução com a sonoridade que klas Luhmann para
o entendimento das
remetia a temas militares romanos do cinema e o intérprete sociedades estratifi-
Durval Lelys declamava um texto inicial que dizia: “Deus criou cadas. (DIAS 2019, p.
60-91).
Roma, Roma criou Nero e Nero criou a Dança da Manivela.” A
canção começa, portanto, colocando em linha de continuidade
o início dos tempos, a Criação, e o tempo presente, através
de Nero. O Imperador Romano é usado aqui como símbolo
de um tempo passado elevado e festivo, que liga a Criação,
Roma e o Carnaval da Bahia. Nero, por tantas e tortuosas
vias, vai sendo retomado e sendo feito presente geração após
geração nos mais diferentes registros e modalidades. Nero não
é associado apenas àquilo que ele fez, mas a muitas e infinitas
coisas que “alguém como Nero” seria capaz de fazer. Nesse
sentido, parece verossímil que o louco e festeiro Nero poderia
ter criado a “Dança da manivela”. Isso faz com que Nero seja
um personagem da Antiguidade e um tipo “multitemporal”.

380 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

Qualquer um que faça algo que, aos olhos de um grande


público, seja próprio de Nero se torna um. Não é preciso repetir
15 Esse debate se
algo que Nero tenha feito efetivamente. Basta fazer algo que tornou particular-
mente vivo no Brasil
Nero poderia ter feito. Assim, cada novo Nero vai realizando
por ocasião da exclu-
novas ações que se acrescentam ao repertório ligado a esse são da História An-
tiga do componente
Nero, mescla de todos os tempos. Por esse modo, o grande
curricular História na
público reconhece e reinterpreta esse novo Nero, que se primeira proposta
da Base Nacional Co-
faz presente e múltiplo a cada nova apropriação que amplia
mum Curricular. Uma
e fortalece o repertório ao qual ele está associado. Estudar vasta e interessante
produção surgiu des-
Nero é, assim, poder compreender em mais profundidade não
se debate com não
apenas o passado romano, mas também as várias sociedades especialistas, defen-
dendo a inclusão da
que se apropriaram, reinterpretaram e transformaram a
História Antiga por
tradição e o repertório associado a Nero. Nesse sentido, Nero ser “nossa origem” e
sua exclusão por não
faz parte do que alguns chamam de “nossa História” tanto
ser “nossa história”.
quanto algum Presidente da República Velha, ou até mais, Ambas abordagens,
absurdamente super-
por mais retomado e mais presente na vida das pessoas. A
ficiais e sem nenhum
“nossa história”, assim, pode ser entendida de uma forma contato com os rumos
da produção concreta
estanque e paroquial, afastada do cotidiano real das pessoas,
e efetiva da área, fo-
como o conjunto de eventos ocorridos em território nacional ram contrapostas por
uma produção de es-
(arbitrariamente imaginado) que precisam ser lembrados de
pecialistas debaten-
forma desencarnada, ou, como os historiadores da antiguidade do o lugar da Histó-
ria Antiga no campo
têm defendido em debates recentes, como uma história viva e
do ensino e na nossa
conectada com as múltiplas e amplas relações que as pessoas cultura histórica de
forma mais geral. Um
hoje constroem entre passado(s) e presente, e que permitem
bom exemplo dessa
às pessoas pensar a “nossa história” como parte de uma produção pode ser
encontrado no dossiê
história global, que nos permita refletir sobre a nossa inserção
publicado na revista
no mundo e nas diferentes temporalidades envolvidas nos Mare nostrum, v. 8,
n. 8, de 2017: http://
processos de integração que compomos e dos quais somos
www.revistas.usp.br/
compostos.15 marenostrum/issue/
view/10208 Uma con-
tribuição importante
sobre a formação do
A (lenta e multilinear) criação do BolsoNero campo História Antiga
na longa duração e as
implicações das novas
A presença de Nero passou a ser evocada mais uma vez no perspectivas ligadas à
globalização para a
cenário brasileiro recente, após a posse de Jair Bolsonaro como
nossa concepção da
Presidente da República no Brasil. Uma das chaves para essa disciplina pode ser
encontrada em Guari-
aproximação é a associação entre os nomes dos personagens,
nello (2014).
que produziu uma mescla de Bolsonaro com Nero: o BolsoNero.

381 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

A primeira menção pública a essa associação entre Nero e


Bolsonaro com grande repercussão que pudemos localizar foi
feita pelo ex-Presidente Luis Inácio Lula da Silva em entrevista
dada para a revista alemã Der Spiegel e publicada em 24
de maio de 2019. A associação Bolsonaro-Nero deu título à
matéria que trazia a entrevista: “Bolsonaro gleicht Nero: Er
setzt das ganze Land in Brand”.16 A entrevista foi repercutida
por vários veículos no Brasil, traduzida para o português e
publicada no site lula.com.br.17 O título das matérias aqui no
Brasil seguiram repetindo a publicação original: “Bolsonaro é
como Nero: ele incendeia o país inteiro”. Nos vários veículos
que publicaram ou repercutiram a entrevista, foram numerosos
os comentários do público, mostrando afinidade com a
16 https://www.
comparação ou opinando que ela seria mais adequada para os spiegel.de/plus/
lula-da-silva-bol-
governos do PT. De todo modo, a tecla era sempre a mesma:
sonaro-gleicht-ne-
seja com Bolsonaro, seja com o PT, temos uma tirania que ro-er-setzt-das-gan-
ze-land-in-brand
destruiu o Brasil, temos Nero entre nós, inclusive incendiando-o
-a-00000000-
com greves e distúrbios, no caso dos que acusavam o PT. 0002-0001-0000-
000164076199. Aces-
Cada leitor se apegava a uma forma de redesenhar Nero que
so em: 22 dez. 2019.
melhor se ajustasse a suas convicções políticas para atacar
17 https://lula.com.
seu adversário. Nero se fazia instrumento para compreender o
br/traducao-da-en-
presente e o presente se fazia um mecanismo para compreender trevista-editada-pa-
ra-a-der-spiegel-bol-
quem foi esse Nero do passado. O Nero do passado é
sonaro-e-como-ne-
monstruoso sempre (como os seus espelhos no presente), mas ro-ele-incendeia-o-
-pais-inteiro/. Acesso
são ambos diversos, conforme as leituras do presente e do
em: 22 dez. 2019.
passado esgrimidas pelos intérpretes. O aspecto da adulação,
que faria o governante crer que é aquilo que manifestamente
não é, gerando o ridículo dos egos inflados, por exemplo, foi
decalcado no Bolsonaro que é sempre recebido com o grito de
“mito, mito, mito”, mas não no PT. O PT colocou fogo no país, é
desonesto e queria se perpetuar no poder, nessa aproximação
com Nero. Nesse sentido, a relação entre passado e presente
não se dá pelo mero uso deste pelos contemporâneos para
desenhar livremente o passado e tanto menos como legado que
nos chega e determina o que somos pelo que fomos. Há uma
relação de mútua construção entre passado e presente nessas
construções dos Neros, com ênfases diversas, lembranças,
esquecimentos e acréscimos, através de um processo que

382 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

cremos ser melhor compreendido como sendo uma construção


mútua desses Neros que pertencem ao(s) passado(s) e ao
presente como allelopoiesis.18

Em uma das representações do BolsoNero, publicada para


ilustrar a matéria do blog “Conversa afiada”, há uma releitura
do cartaz do filme Quo Vadis (1951), com a substituição das
feições de Nero pelas de Bolsonaro e com a inserção de uma
colunada nas laterais. Infelizmente, não é dado crédito para a
autoria da ilustração. A matéria dá destaque à destruição da
empreiteira Odebrecht e repercute a entrevista de Lula. Na
entrevista, contudo, Lula não faz esse elo entre a destruição
da Odebrecht e Bolsonaro – Nero. O destaque em subtítulo é 18 Allelopoiesis de-
dado pelo autor da matéria, Paulo Henrique Amorim. Mesmo riva do grego allelon
(recíproco) e poie-
que por vias tortas, em uma nova recomposição, a noção sis (fazer/criar) e foi
de destruição da Odebrecht é colada à imagem de Nero. A proposto como uma
possibilidade de aná-
destruição, independente do agente moderno, remete a Nero.19 lise para a compreen-
No mecanismo já apresentado para a “Dança da manivela”, são das concepções
imperiais produzidas
temos que Nero é quem é capaz de destruir a grande modernamente a par-
empreiteira Odebrecht para satisfação de sua loucura. Quem tir da leitura das ex-
periências antigas.
destruiu a Odebrecht nessa leitura proposta pelo jornalista foi Cf. HAUSTEINER;
a força-tarefa da operação Lava-Jato e o juiz Sérgio Moro. Mas HUHNHOLZ; WALTER
2010, p. 15.
o monstro que surge dessa ruína é Bolsonaro, que se torna o
destruidor por sua associação a ela. 19 https://www.con-
versaafiada.com.br/
politica/lula-bolsona-
ro-e-um-nero. Acesso
em: 22 dez. 2019.

383 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

Contudo, antes dessa entrevista de Lula, já no início do


governo de Bolsonaro, Nani publicou uma charge associando
o Presidente da República, que tinha assumido o mandato
há cerca de um mês e meio, ao Imperador Romano. A
caracterização é mínima, com símbolos usuais: a toga romana,
a coroa de louros que remete ao poder dos Césares, a lira que
o vincula à música e à loucura que o levou a destruir Roma,
representada por sua vez pelo fogo que domina toda a cena.
No alto, a mescla de nomes do Presidente e do Imperador faz
indicar que Bolsonero é um louco que tudo destruirá. Como em

384 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

Machado, a legenda garante a identificação. Nesse momento


inicial, a associação se dá sobretudo por duas razões. Uma
delas é a crítica ao governo de uma pessoa manifestamente
despreparada para o governo da República, bem representada
pela sua assumida ignorância completa dos temas econômicos,
que gerou o apelido de “Posto Ipiranga” para o futuro Ministro
da Fazenda, Paulo Guedes, ainda na campanha.20 Outra razão 20 Cf. https://www1.
folha.uol.com.br/
para a aproximação entre Bolsonaro e Nero já nesse início é a
poder/2018/09/
remissão à tirania e à violência, uma vez que o Presidente da criadores-da-cam-
panha-do-posto-ipi-
República sempre adotou uma postura negacionista dos crimes
ranga-comemoram-
da Ditadura Militar21 e afirmava total desprezo pela democracia, -apelido-de-guru-
-de-bolsonaro.shtml.
afirmando, inclusive, que não era possível governar nesse
Acesso em: 22 dez.
regime.22 2019.

21 Para o tema do ne-


gacionismo no perío-
do anterior à eleição
com o foco no com-
bate em torno da Co-
missão da Verdade,
cf. PEREIRA 2015.

22 Cf. https://politica.
estadao.com.br/noti-
cias/geral,familia-bol-
sonaro-critica-a-de-
mocracia-do-brasil-
-desde-1990-relem-
bre,70003004404.
Acesso em: 22 dez.
2019.

23 https://reinal-
doazevedo.blo-
gosfera.uol.com.
br/2019/08/17/bol-
sonero-e-sao-ser-
gius-morus-unidos-
-na-destruicao-de-
-orgaos-de-estado/.
Acesso em: 22 dez.
2019.

Um semestre depois, a charge é publicada no blog de


Reinaldo Azevedo que designa que o Presidente e “Sergius
Morus” teriam, como lenha do incêndio, os órgãos de Estado.23
Com o avanço do governo, os críticos de Bolsonaro vão ter cada

385 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

vez mais elementos para associar o Presidente à destruição.


A destruição da estrutura e da organização do Estado, de
investigações contra pessoas próximas a ele, de direitos, de seu
próprio Partido – o PSL – da liberdade de ensinar e aprender –
e mais particularmente das Ciências Humanas, as destruições
se sucedem em ritmo acelerado, como em um grande incêndio.

Nessa linha de associação, podemos citar como bom


exemplo a entrevista dada pelo jurista Miguel Reale Júnior
para a Rádio Guaíba. O entrevistado foi Ministro da Justiça no 24 https://
governo Fernando Henrique Cardoso e também um dos autores g u a i b a . c o m .
br/2019/07/29/e-ca-
do pedido de impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. so-de-interdicao-con-
Após afirmar que o caso de Bolsonaro seria de interdição, e não sidera-miguel-reale-
-jr-sobre-bolsonaro/
de impeachment, aludindo à loucura do Presidente, ele avança Acesso em: 22 dez.
mais na sua avaliação ligando-o ao Fascismo e à queima. O 2019.

argumento está pronto para unir Bolsonaro a Nero. É esse 25 https://www.ter-


passo que ele dá ao dizer que: “Isso é fascismo cultural. O que ra.com.br/noticias/
brasil/entenda-a-po-
não estiver de acordo, com sua rasa compreensão, tem que ser lemica-envolvendo-
queimado por isso que eu digo, ele é um ‘Bolsonero’.”24 Louco, -bolsonaro-e-o-inpe,-
f7e27aa4a276cd32e-
“fascista” e “incendiário”, ainda que seja uma queima abstrata, 5 9 9 7 8 7 0 4 d -
é Nero. O anacronismo de ligar Nero ao Fascismo não é um 2794194z00o4g1.
html. Acesso em: 22
problema. Pelo contrário, pelo processo de alellopoiesis, essas dez. 2019.
temporalidades se mesclam e uma é explicada e construída
26 https://www12.
pela outra. Torná-las indistintas as torna mais fortes, pois já senado.leg.br/
conhecidas e familiares com as diferentes formas de Nero, que noticias/mate-
rias/2019/11/04/
deve ser, portanto, fortemente rejeitado em sua expressão bolsonaro-ja-fez-
particular por via do silogismo: Nero é ruim, o que é ruim deve -99-ataques-a-im-
prensa-brasileira-
ser rejeitado, logo quem atua como Nero deve ser rejeitado. -aponta-fenaj. Acesso
em: 22 dez. 2019.

BolsoNero Amazônico
Contudo, a destruição mais marcante – e que gerou uma
forte associação entre Nero e Bolsonaro – foram os incêndios
na Amazônia. Incapacidade para governar, perseguição (bem
representada pelos ataques ao INPE - Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais, especialmente ao seu presidente)25, postura
fortemente autoritária frente à imprensa (acusada de criar o
problema)26, portando-se como um louco ao fazer declarações

386 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

desconexas com a realidade e com sua posição de Presidente


da República27 e enlouquecido pelos aduladores gritando “mito,
mito, mito” e, acima de tudo, associado às imagens de fogo,
muito fogo dos enormes incêndios da floresta, impulsionaram
fortemente os ataques a Bolsonaro em associação com Nero.
Até mesmo a tentativa de Bolsonaro de culpar as ONGs ou o ator
Leonardo de Caprio pelos incêndios gerou uma aproximação
fácil com Nero, acusando falsamente os cristãos pelo incêndio
de Roma e os perseguindo injustamente.28 Todos esses fatores
somados colocaram “BolsoNero” de vez na pauta.

Um bom exemplo dessa associação que foi feita 27 https://opiniao.


massivamente é a matéria de capa da revista Isto É, em sua estadao.com.br/noti-
cias/notas-e-informa-
edição 2592 de 30 de agosto de 2019. A preocupação era não coes,quebrando-lou-
só com o incêndio da Amazônia, mas também com a reputação cas,70002747286.
Acesso em: 22 dez.
nacional que teria sido totalmente “queimada” pelo Presidente 2019.
da República com suas declarações desastrosas, bem
28 https://susten-
exemplificadas na grosseria cometida contra a Primeira-Dama tabilidade.estadao.
da França naquela mesma semana.29 A matéria de capa tinha com.br/noticias/
geral,bolsonaro-a-
como manchete “Bolsonaro queima o Brasil para o mundo”, cusa-leonardo-dica-
associando os incêndios na Amazônia e a perda de reputação prio-de-pagar-para-
-tacar-fogo-na-ama-
internacional como elementos para a piora da economia. Essa zonia,70003107321.
edição traz um editorial intitulado “O abominável Bolsonaro das Acesso em: 22 dez.
2019.
queimadas”, em alusão à monstruosidade, e, nas entrevistas
dessa edição, temos o ator Pedro Cardoso, que trata do 29 https://istoe.com.
br/edicao/2592/.
“fascismo brasileiro”, e Fernando Henrique Cardoso, que Acesso em: 22 dez.
ressalta a incompetência de Bolsonaro para tratar com a crise 2019.

ambiental, além de dizer que o regime adotado se aproxima de


uma “monarquia”, por conta de ser o governo de uma família
(em alusão ao poder de mando dos filhos do Presidente),
e, por fim, acusa o mandatário de se afastar totalmente do
decoro exigido para sua posição. Bolsonaro e Nero se unem
em um mosaico de loucura, monstruosidade, “fascismo”,
“monarquia”, incêndios (aquele concreto da Amazônia e tantos
outros metafóricos, como o de nossa reputação internacional)
e problemas econômicos derivados destes: vemos BolsoNero
de imediato e ele ilustra a capa da revista. A qualidade das
aproximações, no sentido de sua precisão frente ao que se tem

387 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

na documentação antiga ou no uso dos conceitos não é, como


usual, uma fragilidade desse processo de construção que, por
ter pouco rigor, permite ao público ver vários elementos que
compõem um quadro que “vem de longe” e, por isso, se torna
mais verossímil. A mistura de temporalidades atua como uma
forma de lançar luz a esses passados, relidos pelo presente, e,
ao mesmo tempo, gerar uma nova compreensão do presente.
Os diversos tempos envolvidos na revista geram um processo de
alellopoiesis. No caso da revista Isto É, como usualmente ocorre
na imprensa brasileira, a falta de um mínimo de erudição produz
confusões interessantes. O instrumento que normalmente é
associado com Nero, a lira, é trocada no texto e legenda da
matéria de capa pela harpa. Aparentemente, a harpa pareceu
mais familiar, ainda que tenha diferenças nada desprezíveis
com a lira. O jornalista preferiu retirar a lira e temos um novo
Nero, tocador de harpa para acompanhar poesia épica. Inédito,
sem muito sentido, mas acaba ampliando e fortalecendo o
repertório, gerando uma nova forma de aproximar Nero do
público. A ilustração da capa traz, contudo, uma lira. Não
importa. Algumas associações poderão ser incorporadas à
tradição e outras, por esdrúxula como Nero tocando harpa,
serão esquecidas. Talvez o jornalista não saiba diferenciar os
dois instrumentos. Possivelmente, uma parte dos leitores da
revista também não. Multiplicam-se os Neros com base no que
as pessoas sabem e também no que elas ignoram. Alguns vão
se manter; outros desaparecerão. A tradição os liga, mas o
repertório não é fixo.

388 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

30 https://trends.
Após o ápice do uso do termo BolsoNero com os incêndios
google.com/trends/
da Amazônia, temos um retorno ao uso esporádico. O termo explore?geo=BR&-
q=bolsonero. Acesso
passa a ser mais usado com a entrevista de Lula a Der Spiegel,
em: 22 dez. 2019.
como se pode notar nesse gráfico do Google Trends30. O pico de
interesse, contudo, vem na época em que fica claro pelos dados
do INPE que os incêndios na Amazônia atingem patamares
muito elevados com várias retomadas menores a seguir:

389 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

Um desses retornos ao uso de BolsoNero apareceu


quando finalizamos a última revisão do artigo para publicação.
Com a eclosão da pandemia de coronavírus, Bolsonaro adota
uma postura negacionista e manifesta sua pouca preocupação
com a possibilidade de haver a perda de vidas no Brasil. O
seu descolamento com a realidade que se apresentava com
grande gravidade em diferentes partes do mundo e o desprezo
pelas vidas, especialmente dos mais velhos, fez as menções
a BolsoNero serem retomadas com mais força. Um exemplo
importante desse momento é representado pela matéria da
tradicional revista The economist, de 26 de março de 2020. O
título da reportagem era “BolsoNero - Brazil’s president fiddles
as a pandemic looms.”31
31 “BolsoNero - Bra-
zil’s president fiddles
as a pandemic looms”.
Conclusões The economist. Lon-
don. 26th March 2020.
https://www.econo-
A construção das diferentes noções de um BolsoNero mist.com/the-ame-
tem servido às disputas políticas do presente com base na ricas/2020/03/26/
brazils-president-fid-
releitura que se faz do presente e do passado, articulando dles-as-a-pandemic-
reflexões que têm por base a conjuntura com aquelas mais -looms. Acesso em:
28 mar. 2020. Esse
estruturais, dadas por uma pretensa visão de longa duração pico não aparece no
que permite a retomada da imagem de Nero. Nero serve gráfico acima, gerado
na versão inicial do
para iluminar o debate particular com uma reflexão universal artigo, em dezembro
sobre o que é capaz de fazer um governante louco, ignorante de 2019.
e arrogante, com o ego inflado pela adulação de apoiadores
inconsequentes. Nesse contexto brasileiro do governo
Bolsonaro, o Nero original fica associado, sobretudo, à ideia de
um governo autoritário e que se sustenta pela perseguição de
seus opositores e aos incêndios, quer seja ele muito concreto
na Amazônia quer seja metafórico, referindo-se a tudo que
se alegue estar sendo destruído por esse governo. BolsoNero,
como tentamos demonstrar, representa sínteses que reúnem
diversas temporalidades em um processo de allelopoiesis. Há
uma construção recíproca e simultânea do(s) passado(s) e do
presente, gerando o processo que chamamos de allelopoiesis,
produzindo Neros que não pertencem exclusivamente
ao(s) passados ou ao presente, mas mesclam e confundem

390 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

inextricavelmente essas temporalidades em diferentes sínteses


que se comunicam através de uma tradição com a forma de
repertório a ser reapropriado e modificado.

Não se trata, portanto, apenas de um uso do passado.


BolsoNero é claramente relido e recriado de forma a se separar
do passado. Fica claro que traços constituintes fundamentais 32 Para outra asso-
ciação que está sendo
do personagem são novos e originais. Mesmo assim, sua construída no nosso
compreensão só pode se dar em uma perspectiva de duração tempo entre um go-
vernante e Nero, con-
mais longa, em que Nero cumpre um papel não como legado tudo com elementos
que recebemos, mas como elemento que ocupa as diversas muito diversos, ge-
rando outro Nero bem
temporalidades da história humana. Nero representa um tipo distinto, podem ser
de governante que as reinterpretações ao longo do tempo lembradas as alusões
a Trump-Nero. Uma
fazem ser novo e antigo, ao se basear em uma tradição que rápida busca na in-
vem desde a Antiguidade, mas sem se limitar a ela, e ganha ternet trará inúmeros
exemplos tanto ima-
força entre um público amplo por se construir com base em um géticos quanto tex-
repertório de muitos Neros criados pela história. Isso faz com tuais desse par. Mas,
como toda retomada
que ele seja um velho conhecido de todos, mesmo que tenha de Nero, há uma mes-
menos relação com o Nero que viveu no século I d.C. do que cla original entre pas-
sado (representado
com aqueles que o sucederam como novos Neros com crimes pelas muitas imagens
sempre novos, cometidos não por Nero, mas por alguém que é de Nero construídas
ao longo do tempo e
como Nero32. Neros são muitos, são pouco ou nada ajustáveis não aquele “original”
ao que a documentação nos traz e prometem ainda serem apenas) e a inter-
pretação, negativa,
muitos... Enquanto houver tiranos, incendiários, ególatras, destaque-se, do con-
assassinos no poder, Nero estará entre nós. Seja lá quem ele texto presente. Para
um exemplo de boa
for, será lembrado por lutadores e lutadoras contra as tiranias análise dessas asso-
e destruição dos patrimônios que pertencem à humanidade em ciações produzidas já
na época da posse,
seus mais diferentes formatos. O uso de Nero permite colocar Cf. FREUDENBURG,
as lutas locais em uma esfera universal e transgeracional contra Kirk. “Donald Trump
and Rome’s Mad Em-
a tirania e a opressão. Estudar e compreender essa luta será perors” . Common
sempre superficial, se não impossível, em uma perspectiva dreams, 29 de abril
(2018).
paroquial e de curta duração. É o que devemos evitar, caso
queiramos que a História tenha valor para a sociedade. (CONT.)

391 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

REFERÊNCIAS

(CONT.)
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. In: COUTINHO,
Afrânio (org.) Obra completa de Machado de Assis. Mencionamos aqui,
para efeito de exem-
V. 1. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004. plificação dessa asso-
ciação ainda existindo
“BolsoNero - Brazil’s president fiddles as a pandemic looms”. em tempos atuais, o
livro que será lança-
The economist. London. 26th March 2020. Disponível em: do no ano que vem,
https://www.economist.com/the-americas/2020/03/26/ mas já em pré-venda,
cujo título é American
brazils-president-fiddles-as-a-pandemic-looms. Acesso Nero: The History of
em: 28 mar. 2020. the Destruction of the
Rule of Law, and Why
Trump Is the Worst
CHAMPLIN, Edward. Nero. Cambridge: Harvard University Offender. Cf.: https://
Press, 2003. www.amazon.com/
American-Nero-Mat-
ters-Donald-Trump/
DIAS, Mamede Q. Imperador ou tirano: Comunicação dp/1948836017,
acesso em 19 dez.
e formas sociopolíticas sob(re) o Principado de Domiciano 2020. Os exemplos
(81-96). Tese (Doutorado em História). Mariana: Programa não se limitam a am-
bientes políticos co-
de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de
nectados de forma
Ouro Preto, 2019. reiterada com o “le-
gado” do Império Ro-
mano. Esse ó caso,
FERRI, Rolando. Octauia. A play attributed to Seneca. até certo ponto sur-
Cambridge: Cambridge University Press, 2003. preendente, da as-
sociação que foi feita
por um desertor do
FREUDENBURG, Kirk. “Donald Trump and Rome’s regime Norte-Corea-
Mad Emperors”. Common dreams, 29 de abril de no entre Kim Jong Un
e... Nero! O fato des-
2018. Disponível em: https://www.commondreams. se “Nero” ter matado
org/views/2018/04/29/donald-trump-and-romes-mad- seu meio-irmão, en-
tre outros familiares,
emperors. Acesso em: 22 dez. 2019. e ter destruído obras
de outros por ciúmes
de seu sucesso ou
GRIFFIN, Miriam T. “Nero from zero to hero”. In: BUCKLEY,
desconfiar da fideli-
Emma; DINTER, Martin T. A companion to the Neronian dade de todos que o
age. London: Blackwell, 2013. cercam e até mesmo
se sentir culturalmen-
te deslocado são lem-
GRIFFIN, Miriam T. Nero: The end of a dynasty. London: brados para dizer que
Kim Jong Un seria um
Routledge, 1984. Nero do século XXI.
Cf. SHIM 2017.
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. Campinas:
Contexto, 2014.

392 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

HAUSTEINER, Eva Marlene; HUHNHOLZ, Sebastian;


WALTER, Marco. Imperial interpretations: The imperium
romanum as a category of political reflexion. Mediterraneo
Antico. Roma: Fabrizio Serra Editore, 2010, anno 12,
fascicolo 1-2, p. 11-15.

JOLY, Fábio Duarte; FAVERSANI, Fábio. “Os Júlio-Cláudios”.


In: BRANDÃO, José Luís; OLIVEIRA, Francisco. História
de Roma. V. II. Coimbra: Imprensa da Universidade de
Coimbra, 2019. p. 79-95.

LANGLANDS, Rebecca. Exemplary ethics in Ancient


Rome. Cambridge: Cambridge University Press, 2018.

LEIGH, Matthew. “Nero the Performer.” In: BARTSCH,


Shadi; FREUDENBURG, Kirk, LITTLEWOOD, Cedric A. J.
(eds.). The Cambridge companion to the age of Nero.
Cambridge: Cambridge University Press, 2017. p. 21-33.

MAIER, Harry O. “Nero in Jewish and Chistian tradition


from the first century to the Reformation”. In: BUCKLEY,
Emma; DINTER, Martin T. A companion to the Neronian
age. London: Blackwell, 2013. p. 385-404.

PEREIRA, Mateus Henrique de Faria. “Nova direita?


Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade
(2012-2014)”. Varia Historia, Belo Horizonte, v. 31, n. 57,
set./dez., p. 863-902, 2015. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/0104-87752015000300008. Acesso em: 22
dez. 2019.

PUCCI, Giuseppe. “Nerone superstar”. In: TOMEI, Maria


Antonieta; REA, Rossella (cur.) Nerone. Roma: Electa;
Ministero per i beni e le attività culturali; Spoprintendenza
speciale per i Beni archeologici di Roma, 2011. p. 62-75.

ROLLER, Matthew B. Models from the past in Roman


culture: a world of exempla. Cambridge: Cambridge
University Press, 2018.

393 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Fabio Faversani

SHIM, Elizabeth. “Defector compares North Korea’s Kim


Jong Un to Roman emperor Nero”. UPI (United Press
International), world news, de 7 de março de 2017.
Disponível em: https://www.upi.com/Top_News/World-
News/2017/03/07/Defector-compares-Nor th-Koreas-
Kim-Jong-Un-to-Roman-emperor-Nero/6951488911017/.
Acesso em: 21 abr. 2020.

TOMEI, Maria Antonieta; REA, Rossella (cur.) Nerone.


Roma: Electa; Ministero per i beni e le attività culturali;
Spoprintendenza speciale per i Beni archeologici di Roma,
2011.

WINTERLING, Aloys. “Loucura imperial na Roma Antiga”.


História. Franca: Unesp, v. 31. n. 1, jan. jun. 2012.

394 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
Tirano, louco e incendiário

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

Fabio Faversani
faversani@ufop.edu.br
Universidade Federal de Ouro Preto
Mariana
Minas Gerais
Brasil

Esse artigo foi escrito como parte do


desenvolvimento do projeto “Rome our Home:
(Auto)biographical Tradition and the Shaping of
Identity(ies) (PTDC/LLT-OUT/28431/2017)”.

RECEBIDO EM: 23/DEZ./2019 | APROVADO EM: 1º/MAR./2020

395 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 375-395 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1573
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Entre a tradição e a inovação: o IHGB e a escrita


biográfica nas primeiras décadas republicanas

Between tradition and innovation: the IHGB and biographical


writing in the early republican decades

Alexandre de Sá Avelar
https://orcid.org/0000-0002-1441-2087

RESUMO
Ao longo de todo o período imperial, o gênero biográfico
exerceu um expressivo papel na operação historiográfica ABSTRACT
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB),
The biographical genre was crucial in the historiographical
cujos sócios viam nas narrativas dos indivíduos ilustres
operation of the Brazilian Historical and Geographical
não apenas guias exemplares para o presente e para o
Institute (IHGB) during Brazil’s imperial period. The
futuro, mas também uma modalidade de preservação
Institute’s members members saw in the narratives of
do que era considerado relevante no passado nacional.
illustrious individuals not only exemplary guides for their
Esses objetivos se alteraram sensivelmente com o
present and future, but also a way to preserve what was
advento do regime republicano? A queda da Monarquia
considered relevant in the national past. Did these goals
redefiniu o estatuto do gênero biográfico entre os sócios
change significantly with the advent of the republican
da velha instituição? O presente artigo, ao analisar
regime? Did the fall of the Monarchy redefine the status of
uma parte da produção biográfica do IHGB, nas duas
the biographical genre among the members of the old IHGB?
primeiras décadas republicanas, tem como principal
This article seeks to answer these two questions through the
objetivo responder a essas questões.
analysis of part of the biographical production of IHGB in the
first two republican decades.

PALAVRAS-CHAVE
Biografia; Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro;
História
KEYWORDS
Biography; Brazilian Historical and Geographic Institute;
History

397 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

O tempo desorientado: a proclamação da


República e o IHGB
Ao tomar a palavra na sessão de 29 de novembro de 1889,
o presidente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
Joaquim Norberto de Souza Silva, elevou-se diante de quinze
presentes. O número era bastante reduzido, se comparado aos
momentos áureos da agremiação, quando várias dezenas de
letrados discutiam entusiasticamente uma grande quantidade
de assuntos, procediam à leitura de inúmeras obras de
história e geografia, homenageavam sócios recém-falecidos
e celebravam o ingresso de novos. Aos ouvintes, certamente
consternados, Souza e Silva anunciou:

Senhores! Imperiozo dever do meo cargo me força a annunciar-


vos que jamais n´essa cadeira se assentará aquelle que durante
quarenta anos desempenhou verdadeiramente o título de
1 As passagens extra-
protector de nossa associação, elevando-a à face das nações ídas das páginas da
mais cultas a grande consideração, que goza actualmente. Das Revista do Instituto
actas das sessões dos nossos trabalhos e das nossas sessões Histórico e Geográfico
magnas, celebradas na sua caza, com todo o esplendor e Brasileiro foram cita-
das respeitando-se a
solenidade, consta e constara sempre, o que foi o Imperador grafia original.
D. Pedro II para com o Instituto Histórico, que lhe retribuio
numerozos favores com a maior gratidão, por consideral-o como
seo primeiro alumno, e por tel-o sempre como seo desvelado
protector.

Os que têm acompanhado a marcha dos trabalhos do Instituto


Histórico durante meio seculo não podem deixar de reconhecer
que so por amor da patria e da gloria aqui nos reuniamos sob
o exemplo da assiduidade de quem foi entre nós o primeiro. Ao
transpor aquelle limiar desaparecia o monarca, e vinha o alumno
sentar-se n´esse throno da democracia e tomar parte em vossas
suadas lucubrações (...) (REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E
GEOGRÁFICO BRASILEIRO 1889, p. 534)1.

A destituição de D. Pedro II – que estivera presente na


sessão anterior, do dia 7 de novembro – parecia sugerir, de
forma melancólica, a interrupção de uma marcha, de um
fluxo temporal ordenador da experiência de todos aqueles

398 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

que, por mais de seis décadas, se dedicaram ao penoso e


delicado trabalho de dar sentido e forma a um certo discurso
sobre a nação.1 A mudança de regime político significava o
rompimento com o fio da história, o sentimento de que tudo
estava jogado para “fora do tempo”. Souza Silva esforçava-
se por deslocar o Instituto das “necessidades intransigentes
da política” e resguardar, talvez já pensando nas dificuldades
a serem enfrentadas dali em diante, a obra indispensável
conduzida por sócios abnegados e de incontestável patriotismo.
Em um mesmo movimento, o discurso presidencial ratificava
o mecenato do imperador, expressando profunda gratidão, e
afirmava o papel ativo do IHGB, que transformava até mesmo
a autoridade real em um atento aluno. Se havia reverência à
figura de D. Pedro II, os trabalhos desenvolvidos pelos letrados
2 Concordo com as
fundavam uma vida intelectual autônoma a serviço de objetivos observações de Te-
místocles Cézar, para
que transcendiam os destinos individuais. Era em nome dessa
quem a nação, como
obra de gerações inteiras que os sócios do IHGB, apesar de sua articuladora do dis-
curso sobre a história
confessa gratidão ao imperador deposto, não desejavam, nas
no século XIX brasi-
palavras de Souza Silva, leiro, não esgota as
possibilidades da vida
intelectual desse pe-
ríodo, pois “um sem-
se antepor de modo algum à ordem das novas couzas estabelecidas
-número de projetos,
e a que nos curvamos, certos de que o governo do povo pelo ideias, ações, são
povo será uma realidade para a terra à qual Deos outorgou dissimulados ou obs-
por símbolo a cruz de sua redempção, e a quem imploramos, curecidos pela gran-
diosidade da Nação”
que a republica seja tão livre como o foi o imperio de Pedro II
(CÉZAR 2018a, p. 5).
(REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
BRASILEIRO 1889, p. 535).

Apesar dos incontornáveis lamentos, a sessão prosseguiu


e toda a ordem do dia foi cumprida, com nomeação de novos
sócios, homenagens aos falecidos, prestação de contas, leitura
de ofícios diversos. A continuidade dos trabalhos demonstrava
que a instituição se mantinha firme nos seus mais nobres
propósitos de produzir conhecimentos históricos úteis à
nação que, agora, deveria ser reinventada. As vicissitudes
da política, as turbulências e paixões advindas das ruas
constituíam justamente esse outro ao qual os sócios lutavam
permanentemente para se opor. Honrar os antepassados que

399 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

tanto tinham feito para a escrita da nossa história significava,


sobretudo, traduzir uma expectativa de futuro: se ela não mais
podia estar ligada à continuidade do Império, que, ao menos,
perpetuasse o gosto pelo conhecimento do nosso passado.

O discurso do presidente da velha agremiação não disfarçava


a preocupação com os rumos vindouros. Ao relembrar os
grandes feitos e a vocação para a posteridade dos grandes
sócios, Souza Silva procurava assegurar o futuro do IHGB
diante das incertezas que o momento despertava, o que talvez
explique ainda o tom moderado e conciliador com qual o novo
regime era tratado. Ao tomar a palavra, o sócio João Severiano
da Fonseca, nessa mesma perspectiva, afirmou que

o advento da Republica Brazileira trouxe-nos uma perda


immensa e um immenso pezar: o afastamento do nosso
augusto e venerando imperador. Sahio –, mas o Instituto
sabe que sua retirada não foi um castigo; foi a consequencia
imperiosa, imprescindivel, fatal, da nova ordem de couzas;
foi uma necessidade inevitavel; foi a garantia, não só para a
estabilidade da nação, como para a individualidade do imperador.
E com elle seguiram todo o respeito, a estima e a veneração
que os Brazileiros devem e têm a esse grande e virtuoso varão.
Sahio, porque não podia ficar. Não é um decahido; é antes um
aposentado; retirando-se com todas as honras e distincçoes
(REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
BRASILEIRO 1889, p. 537).

A República, como inevitabilidade histórica e desfecho


estabilizador da conturbada situação política do país, não
apagava, por outro lado, a grandeza da figura imperial
que deixava o cargo sob as bênçãos eternas dos sócios
do IHGB. Se sua decadência era irreversível, o regime
monárquico, entretanto, não se apresentava como um
passado morto e a “aposentadoria” do monarca simbolizava
apenas um afastamento sem a perda da memória de sua
atuação como mecenas do Instituto. A submissão à nova
ordem, defendia João Severiano da Fonseca, era mais uma
demonstração do zelo do Instituto pelos interesses nacionais.

400 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

Havia, por outro lado, divergências a respeito de uma


aproximação mais efetiva em relação à República recém-
proclamada. Na sessão posterior, de 6 de dezembro de 1889,
foi rejeitada uma proposta de nomeação de uma comissão
encarregada de saudar o governo provisório republicano,
o que sugere o desejo de conservar certa distância política
em relação ao novo regime (REVISTA DO INSTITUTO
HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO 1889, p. 546).
Sob a República, de todo modo, o IHGB lutaria tenazmente
pela sua sobrevivência e expressar, a todo o momento,
a relevância de sua existência intelectual era uma das estratégias
mais acionadas.

Ciosos dos impactos provocados pelas transformações


políticas pós-1889, os integrantes do IHGB não se mostravam
dispostos apenas a aceitarem – sem maiores resistências, mas
também sem demonstrações entusiasmadas de assentimento
– os rumos do novo regime recém-instaurado, incorporando,
em suas fileiras, republicanos entusiasmados, simpatizantes
e adesistas de última hora. Estavam também propensos
a reavaliarem os sentidos do conhecimento histórico que
produziam, adaptando-o ao turbulento presente. Como bem
assinala Hugo Hruby, “as concepções sobre a História e as
atividades do historiador se fragilizaram perante a alteridade
de reflexões oriunda da heterogeneidade do quadro social”
(HRUBY 2012, p. 266). A força do passado não bastava para
alimentar as demandas de uma consciência histórica que
precisava se ajustar a um momento visto, simultaneamente,
com apreensão e expectativa. O horizonte de realização de
uma escrita historiográfica capaz de promover coesão nacional
e sentido patriótico não desaparecera. Como autoridade
e tradição, o discurso da história continuava a modular as
apreensões do tempo e se inscrevia como fonte de múltiplos
usos nos quadros da vida política de um país que se via às
voltas com a tarefa de dar novos sentidos à nacionalidade.
Assim, o IHGB reafirmava seu compromisso em solidificar uma
consciência cívica através das formas disponíveis de figuração
do passado, mas essas, por outro lado, pareciam instáveis diante

401 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

dos rumos dos acontecimentos. Sem uma revisão dos métodos,


problemas e procedimentos, o IHGB escaparia da temível
obsolescência? Seria possível que os fundamentos teóricos
e epistemológicos que nutriam a operação historiográfica do
Instituto permanecessem inteiramente isolados da volúpia dos
acontecimentos? O que era preciso fazer para que a história
continuasse sendo esse facho a iluminar o presente e a assegurar
os recursos morais para as ações dos homens em prol da
nação? Como revitalizar a função magistral do conhecimento
do passado, tópico recorrente desde os primórdios do Instituto?
Quais discursos e concepções deveriam ser incitados para que
se preservasse a autonomia da prática historiadora? Essas
questões transfiguravam-se em disputas intelectuais em torno
das noções de história e de historiador, ao mesmo tempo
em que procuravam fundar novos elementos da identidade
nacional. Assim,

a concepção de história e o tipo de narrativa histórica que estariam


sendo elaborados no período, portanto, decorriam, em parte,
das novas exigências políticas desse novo regime. Um regime
que precisava se legitimar, produzindo tanto um “passado” no
qual se pudesse reconhecer e ser reconhecido, como “futuros”
que pudessem ser projetados e nos quais se pudesse acreditar
(GOMES 2009, p. 24).

Neste artigo, a tarefa primordial será oferecer alguns


elementos que possam configurar respostas razoáveis para
essas perguntas, as quais, por si mesmas, são bastante
genéricas e demandam algum eixo orientador para se efetuar
a análise. Desse modo, o foco será concentrado no papel da
escrita biográfica entre os sócios do IHGB nas duas primeiras
décadas republicanas. Tal escolha decorre do próprio papel
da biografia como uma questão epistemológica e política
decisiva entre os sócios do Instituto. Desde sua fundação, o
IHGB inscreveu seu projeto historiográfico nos marcos de uma
construção intelectual, com base na qual o passado, lido como
exemplaridade, deveria coexistir com a percepção do novo, ou
seja, da nação que surgia como o horizonte dos homens e das

402 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

mulheres daquele tempo. Os esforços dos letrados do velho


Instituto instituíam os contornos e sentidos de uma retórica da
nacionalidade, compreendida como

um conjunto de estratégias discursivas que, malgrado a natureza


dispersiva dos seus elementos constituintes, foi utilizada para
persuadir os brasileiros de que, a despeito da natureza heterógena
e compósita da sua formação social, compartilhavam um
passado comum e, consequentemente, igual origem e identidade
(CEZAR 2018b, p. 20).

As biografias apresentavam homens ilustres que


encarnavam os valores coletivos celebrados pela sociedade
política monárquica em consonância com seu projeto de
edificação de um sentimento nacional em sintonia com os
tempos novos pós-1822. A construção dessa galeria de
notáveis afinava-se ainda com os anseios de objetividade e
de rigor documental que moviam os literatos na elaboração
de uma operação historiográfica lastreada pelas perspectivas
mais gerais da história magistra vitae. Assim, “a possibilidade
de se atribuir à nação uma identidade original, um espírito
próprio e irredutível ao das demais, serviria de fundamento
para a historiografia romântica e nacionalista do Oitocentos e,
por conseguinte, para a criação de grandes galerias biográficas
nacionais” (OLIVEIRA 2011, p. 20).

Inseparável dessa função uniformizadora, as biografias


oitocentistas do IHGB ambicionavam alcançar um estatuto de
verdade que não diferia, em essência, das expectativas de uma
moderna escrita da história. Talvez seja prudente observar que
essa escrita biográfica se realizava sob a confluência de dois
regimes de historicidade. Simultaneamente, o gênero biográfico
fundava-se sob a perspectiva magistral – já salientada – de
funcionar como elemento moral de educação dos homens,
devendo também fornecer contornos históricos à nação, cuja
emergência prenunciava uma ruptura e uma abertura ao
futuro. Em relação a essa segunda função, a modernidade da
biografia oitocentista, como praticada pelo IHGB, referendava

403 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

as transformações da disciplina histórica no século XIX que,


por obra de diversos historiadores e eruditos, tornava-se um
saber submetido a determinadas regras e operações. Seus
protocolos de veracidade deveriam ser acompanhados da
crítica metódica e da análise rigorosa dos documentos. As
narrativas dos indivíduos ilustres, apesar de sua dimensão
pedagógica, próxima do registro magistral, não escapavam a
essas regras. As ações humanas deveriam, além de narradas,
ser documentadas. Além disso, os historiadores tornar-se-iam
responsáveis por inserir a escrita de biografias no movimento
da história universal, ou seja, as vidas individuais só seriam
plenamente compreensíveis, se conciliadas com o estudo das 3 O trabalho indispen-
sável de Lúcia Gui-
forças coletivas que, sob um momento de aceleração e expansão,
marães constitui-se,
explicavam o destino da humanidade. Aqui reside a vitalidade ainda em nossos dias,
na referência central
da reflexão sobre a nação: o elo que vinculava, de modo mais
para a compreensão
expressivo, a narrativa biográfica a uma “noção específica de da vida institucional
e intelectual do IHGB
temporalidade como uma qualidade de desenvolvimento geral,
durante as primeiras
intrínseca e imanente à realidade (OLIVEIRA 2015, p. 278). décadas republicanas.
Esses primeiros mo-
mentos foram, como
As biografias constituíam, portanto, uma das múltiplas se poderia imaginar,
molduras intelectuais existentes pelas quais o passado da de crescentes dificul-
dades, provocadas
nação foi lido e relido ao longo de todo o século XIX (SOUSA deliberadamente pelo
2012, p. 16). Diante do que fora experimentado como a perda novo governo com o
intuito de sufocar fi-
do futuro e como dissolução de uma utopia nacional que se nanceiramente a tra-
imaginava preenchida e realizada pelo regime monárquico, dicional instituição
através da sensível
convém interrogar a respeito dos usos dessa “moldura redução das subven-
biográfica” nos primeiros anos da República. Ela poderia ções públicas (GUI-
MARÃES 2007).
ainda ser mobilizada de modo efetivo, como repositório de
exemplos, agora que o seu velho destinatário – o II Reinado
como síntese da nação – não mais existia? As mesmas formas
de compreensão das experiências dos indivíduos de outros
tempos poderiam continuar sendo instrumentalizadas para dar
sentido ao presente que, ademais, parecia, aos letrados do
IHGB, ameaçador e incerto?2

Algumas das questões que emergiram ao longo do século


XIX ganhavam uma decisiva atualização. Os movimentos de
uma transformação temporal que parecia indicar uma nova

404 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

aceleração poderiam ser efetivamente representados na escrita


biográfica? A narração de vidas individuais ainda configurava
formas de entendimento de realidades sociais mais amplas
e complexas? Se as biografias publicadas nas páginas da
RIHGB permitiam traçar uma galeria de homens ilustres que
demonstravam certa continuidade entre passado e presente –
a herança positiva da presença portuguesa –, quais as razões
para que elas continuassem a ser escritas em uma época que
se caracterizava justamente por uma ruptura na ordem do
tempo?

Feitas essas perguntas, obviamente introdutórias aos


desdobramentos das investigações aqui desenvolvidas,
gostaria de formular a hipótese da centralidade do gênero
biográfico na revitalização da operação historiográfica do IHGB
pós-1889, bem como nos modos pelos quais a experiência de
aceleração histórica, “a aguda percepção da finitude” (ARAÚJO
2008, p.187), foi sentida, avaliada e traduzida em seus
escritos. A moldura biográfica foi peça decisiva na preservação
do ethos do IHGB como um local de homens distintos (que
biografavam outros distintos), reforçando as expectativas de
separação em relação ao mundo de “fora” da instituição. A
biografias continuavam a ser formas discursivas fundamentais
para narrar o passado não apenas pelo volume em que ainda
eram publicadas, mas, sobretudo, por disponibilizar temas que
expressavam boa parte das inquietações dos letrados em relação
ao futuro da escrita da história após a derrocada do mecenato
imperial. A noção de “moldura” é aqui usada para refletir sobre
as formas de nomeação e de unidade do que é narrado, ou
seja, dispositivos que são acionados para configurarem um
vocabulário e uma semântica úteis ao conhecimento do passado
(SOUSA 2012, p. 22).

A continuidade da tradição acadêmica do Instituto, ou seja,


a manutenção de uma ambiência marcada por certos ritos
tanto quanto por certos preceitos científicos, não se realizaria a
partir da repetição acrítica e pouco zelosa do regime biográfico
anterior. Aqui reside outra questão central: para assegurar sua

405 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

sobrevivência como um lugar de distinção historiográfica, o


IHGB realizou uma depuração do gênero biográfico em que
alguns elementos vitais (a função magistral, o senso ético de
justiça com os mortos, a acuidade metodológica) constituíram
uma moldura que, por outro lado, não aprisionava inteiramente o
novo quadro de produção intelectual que se abria para reflexões
que levassem em conta, por exemplo, novos personagens
para além dos grandes homens, críticas aos modelos antigos,
inspirados em Plutarco, ou mesmo algumas discussões mais
sofisticadas sobre as relações entre indivíduo e meio social.

A “moldura biográfica” do IHGB: entre


permanências, tensões e inovações
No contexto da vida intelectual oitocentista, as narrativas
biográficas tinham lugar assegurado na clássica seção Biografias
4 Os trabalhos de na-
dos brasileiros distintos por letras, armadas e virtudes, que tureza biográfica do
IHGB possuíam ca-
passou a figurar nas páginas da Revista do Instituto Histórico
racterísticas diversas:
e Geográfico Brasileiro (RIHGB) a partir de 1839, estendendo- eram necrológios, en-
saios biobibliográfi-
se até o final do regime monárquico. Apenas nos dez primeiros
cos, artigos do tipo “a
anos de publicação da seção, foram produzidas 72 biografias, biografia de”, home-
nagens etc.
o que sugere, mais uma vez, a importância do gênero para
a construção das bases de uma história nacional. Há um
declínio sensível entre os anos 1850-1860, quando somente
18 trabalhos biográficos surgiram nas páginas da Revista.
No período compreendido entre 1861 e 1882, as biografias
totalizam 53 estudos, e até o final do século XIX, verifica-se
uma nova retração, com o aparecimento de 25 outras. Ao todo,
entre os anos de 1839 e 1899, os sócios e literatos do IHGB
foram responsáveis pela publicação de 168 biografias.

Nas duas primeiras décadas republicanas, foram


produzidos 40 trabalhos biográficos3, queda relativamente
baixa, se comparada aos anos 1869-1889, quando os sócios
do Instituto apresentaram 50 biografias nas páginas da sua
principal publicação. Nos dois períodos examinados – as
duas décadas anteriores à queda da Monarquia e as duas
posteriores –, verificou-se a ausência de textos biográficos

406 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

nas páginas da RIHGB durante apenas três anos. Esses dados,


em conjunto, sugerem que, para os letrados do IHGB, o
gênero biográfico constituía ainda um problema historiográfico
de primeira ordem, que mobilizava dezenas de autores no
desafio de compreender as diversas formas de experiência
do tempo. A biografia permanecia como fornecedora de uma
semântica e de uma linguagem que sintetizavam questões
decisivas para a escrita da história. Percebe-se aqui, deste
modo, que uma certa herança biográfica se tornava disponível
aos literatos que viveram a transição para a República.
Os usos dessa moldura existente, com seus conceitos, formas
de compreensão e modos de escrita, constituem um tópico de
inegável importância.

Os textos publicados na RIHGB não eram especialmente


zelosos com o estabelecimento de contornos teóricos mais
claros ou de reflexões epistemológicas mais fundamentadas.
Na maior parte das biografias do período aqui abordado, a
narrativa abria-se diretamente nos momentos iniciais da vida do
personagem (predominantemente ainda um “homem ilustre”),
sem quaisquer prenúncios introdutórios. A herança intelectual
legada pelas gerações anteriores parecia justificar-se por si
mesma e os novos trabalhos biográficos reatualizavam, a seu
modo, objetivos, premissas e pressupostos já estabelecidos.
Assim, em um artigo sobre o Visconde de Mauá, J. C. de Souza
Ferreira afirmava:

Ao recordar nestas modestas paginas os factos principaes da


vida deste homem illustre – de quem ser orgulhara ser mãe
qualquer das nações mais adiantadas – levantam-se ante nosso
espírito, rompendo o véo sombrio do passado, que hoje parece
remoto, os varões notaveis e os grandes acontecimentos que
constituem a historia do Brazil em sua phase luminosa.

Effectivamente a existencia de Irinêo Evangelista de Souza


estendeu-se pelo longo periodo que vae de 1813 a 1889, e seu
nome ficou ligado, não só ao desenvolvimento economico do
Brazil, mas tambem a alguns problemas de natureza politica
em que seu grande prestigio e sua força real foram elementos
preponderantes.

407 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

Descrever, posto que perfunctoriamente, quadro tão grandioso,


fora, para quem traça essas linhas, ardua tarefa ainda out´ora,
quando a penna lhe era amiga e socia fiel; hoje, porém, a mão já
incerta e os olhos escurecidos mal podem dar pallido esboço da
vida de um homem, que bem merecêo da pátria e da humanidade
e que, por ter sido tão grande e bom, nos dias da opulencia,
como na noite da adversidade, conquistou a estima e o respeito
dos contemporaneos e fez jus à gratidão dos pósteros.

A geração de hoje, ouvindo contar a vida tão útil e nobre de


Irinêo Evangelista de Souza, Visconde de Mauá, procura
em vão, nas praças do Rio de Janeiro, o monumento
que ateste a gratidão nacional a este heroe do trabalho
(FERREIRA 1900, p. 74-75; 136).

Como gênero discursivo, a biografia deveria fixar a


memória dos homens ilustres, tornar-lhes monumentos dignos
de serem recordados pela posteridade. Ela se impunha como
um imperativo ético, como um dever dos vivos em relação aos
mortos, como uma modalidade de realização da justiça. Esse
programa se perpetuou, em seus aspectos fundamentais, após
a proclamação da República, fundamentando, por exemplo, o
reaparecimento da seção Biografias dos brasileiros distintos por
letras, armadas e virtudes em 1900. A iniciativa não prosperou,
mas merece menção pelo fato de ter ressurgido sem qualquer
alusão ao empreendimento pioneiro de 1839. Nenhuma
palavra remetia à antiga filiação, como se a republicação da
seção falasse por si mesma. As duas biografias publicadas (de
Francisco Manoel Chaves Pinheiro, por Moreira de Azevedo; e
de Basílio Carvalho Daemon, por seus filhos, capitão Ticiano
Corregio Daemon e tenente Daemon) receberam uma única
justificativa: elas retirariam do esquecimento personagens
de grande importância no período imperial (REVISTA DO
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO BRASILEIRO 1900, p.
165-186). Nesse novo contexto letrado, a dimensão magistral
das narrativas individuais não perdera o sentido e continuava
informando as intenções éticas e morais de muitos textos.
Do mesmo modo, mantinham-se as expectativas de que a
escrita biográfica pudesse dizer algo a mais do que a vida de
um indivíduo. Ela deveria ser, igualmente, capaz de lançar

408 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

luz sobre toda uma época, sublinhando seus aspectos mais


importantes e seus sistemas normativos mais expressivos. Em
outras palavras, o estudo biográfico demandava a articulação
com a temporalidade ampliada de uma história universal que
impunha movimentos que moldavam a experiência no tempo.
No discurso de comemoração pelos 53 anos da agremiação,
pronunciado em 15 de dezembro de 1901, o presidente do
IHGB, Olegário Herculano d’Aquino Castro, apontava para essa
linha de continuidade que subsistia no gênero biográfico:

Ides ouvir o elogio biographico dos consócios que finaram-se,


proferido pelo eloquente orador do Instituto com o brilho e
erudição que realçam as suas bellas orações, e podereis por ahi
avaliar quão justo e intenso é o pezar que nos contrista.

O elogio dos homens bons que da sua vida nos deixaram honrosa
e veneranda memoria não é um simples obsequio; é um rigoroso
dever sempre cumprido com profundo e respeitoso affecto; uma
justa homenagem tributada em nome da patria ao verdadeiro
merito: é ainda uma licção sempre opportuna de doutrina e
de experiencia com que educamos o nosso espírito e poderoso
estímulo a que sejam seguidos os exemplos que nos foram dados
(D´AQUINO E CASTRO 1901, p. 327).

A referida herança era marcada não apenas pelas formas


discursivas de elaboração biográfica já conhecidas e atualizadas
pelos sócios do Instituto, mas também, ao menos nos primeiros
volumes da RIHGB publicados no regime republicano, por certas
interdições que atestavam a força do passado monárquico da
instituição. No relatório das atividades de 1889-1890, Teixeira
de Mello relembra que, em 26 de abril de 1889, o Instituto,
em sessão ordinária, aprovou a realização de uma solenidade
de comemoração do centenário da morte do poeta Cláudio
Manoel da Costa. Como se poderia esperar, o documento
mencionava diversas virtudes do inconfidente que mais do que
justificavam a celebração: seu amor pela liberdade, seu ávido
patriotismo, seu talento literário que teria precedido Bocage,
sua condição de mártir de uma revolução, entre outras que
demonstravam que o Instituto sabia “honrar a memória dos

409 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

nossos mortos ilustres”. O republicanismo de Cláudio Manoel


da Costa, porém, não foi celebrado – sequer mencionado –
como uma de suas qualidades cívicas. Entre os modelos de
conduta que deveriam ser perpetuados como elementos de
uma genuína educação patriótica, o apreço à República era
ainda um tema sensível e mesmo evitado por muitos sócios
(REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO
BRASILEIRO 1899, p. 565-566).

Por outro lado, essa herança não era assumida sem certo
esforço de adequação aos desafios do presente. Um deles residia
no crescente papel desempenhado pelo pan-americanismo,
desdobramento do próprio movimento republicano que sinalizou
uma maior aproximação em relação aos vizinhos continentais.
Gabriela Correa da Silva, em tese de doutorado, abordou as
formas pelas quais a biografia de Alexandre Gusmão (1658-
1753) foi reapropriada – e republicada – pelo Instituto como
forma de subsidiar as investidas políticas do Estado brasileiro
em relação à complexa questão pan-americana (SILVA 2019,
p. 229). A atuação do conhecido diplomata passou a ser objeto
de interesse entre os letrados do IHGB e alguns textos ilustram
significativamente esse movimento de ressignificação biográfica
em função de disputas do presente e da conformação de uma
ideologia pan-americana. Em 1902, é republicado o longo
artigo de José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de São
Leopoldo, intitulado “Da vida e feitos de Alexandre Gusmão
e de Bartholomeu Lourenço de Gusmão”. O texto apareceu
inicialmente em 1841, quando o seu autor era presidente do
IHGB, e destaca, sobretudo, o papel que o conhecido diplomata
exerceu na delimitação das fronteiras territoriais, especialmente
a atuação na assinatura do Tratado de Madri, de 1735.

Hum serviço da maior transcendencia, que alcançará seu nome


nos Fastos do Brasil, foi o primeiro gisamento geral das nossas
raias no Tratado de Limites de 13 de Janeiro de 1750. De ha
muito era sentida a necessidade de huma Linha Geografica,
que, prevenindo futuras querelas, estremasse os dous Dominios
limitrophes, os mais extensos da America Meridional; precisavão-
se para isso superar cumulos de difficuldades; erão ainda mal

410 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

explorados os sertões, não bem conhecidos os rios, os montes,


e todas essas balisas naturaes e indeleveis, pelas quaes convêm
traçar a demarcação; nem ao menos era liquida e determinada
a extensão, que do lado – Oeste – tinham as possessões
Portuguezas (PINHEIRO 1902, p. 386-388).

O texto do Visconde de São Leopoldo inaugurou uma


asserção bastante recorrente nas representações de
Alexandre de Gusmão produzidas pelos sócios do IHGB: a do
precursor da moderna diplomacia brasileira. Neste sentido, a
participação exitosa no Tratado de Madri era celebrada como
a demonstração de uma brasilidade nascente, antecipadora
do pan-americanismo, conforme se percebe em um texto de
1914, assinado por Helvécio Carlos da Silva, originalmente
apresentado no I Congresso de História Nacional.

O fato mais notável de sua vida pública foi incontestavelmente


o tratado que concluiu com a corte de Espanha em 13 de
Janeiro de 1750, pelo qual foram pela primeira vez demarcados
regularmente os limites do nosso território, e que serviu de
guia precioso para os que o Brasil veio a concluir com as nações
vizinhas após a sua independência, como por mais de uma vez
declarou publicamente o nosso saudoso chanceler Barão do
Rio Branco, que chegou até a salientar que se não fossem os
bem elaborados trabalhos de Alexandre de Gusmão o Brasil
ainda estaria a braços com dificuldades bastante assustadoras
para regular as suas fronteiras [...]. Como se vê daí, os dois
memoráveis laudos arbitrais – o de Cleveland e o de Berna – que
puseram termo às nossas pendengas de limites com a Argentina
e a França foram baseados no ipsis litteris na letra do tratado
de 13 de janeiro de 1750, tão brilhantemente elaborado por
Alexandre de Gusmão (Apud SILVA 2019, p. 230).

A modulação biográfica de Gusmão não apenas postulava


uma origem para a moderna diplomacia brasileira, como investia-
lhe de sentido e densidade histórica a partir da introdução de
uma matriz americanista. Sincronizava-se, desse modo, o
tempo da vida do biografado com o tempo do novo regime
republicano, uma operação que, se não estava livre dos riscos
do anacronismo, permitia que Gusmão habitasse o presente.

411 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

O “avô dos diplomatas brasileiros” tornava-se, assim, disponível


como moldura e herança, fornecendo referências exemplares
para o republicanismo pós-1889. Ainda que escapando ao
escopo cronológico deste artigo, um texto de Rodrigo Octávio
Langgaard Menezes escrito em 1930 – e republicado em
1941, na RIHGB – merece registro especial, por indicar um
traço a mais dessa releitura da biografia de Gusmão. Aqui, o
diplomata não é apenas o precursor da política americanista
desenvolvida pelos governos republicanos, mas também do
próprio monroísmo. O celebrado Tratado de Madri deixa de
ser exclusivamente um marco do nosso precoce sentimento
nacional e se torna também “a carta política da América
independente”.

E eu vos pergunto: – não é evidente que neste velho texto


desconhecido se encontram definidos generosos princípios de
alta política internacional que ultrapassam o sentimento do
seu tempo? Não está nele fixado o sentimento de fraternidade
americana sob os princípios de uma paz perpétua? Não se vê
neles o mesmo espírito que meio século mais tarde inspirou
Washington e os gloriosos formadores da grande nação norte-
americana e se cristalizaram na palavra nítida e precisa de
Monroe? [...]. Não se pode desconhecer, assim, que do dispositivo
do Tratado de 1750 se desprendem os princípios fundamentais
da mensagem americana de 1823: – a solidariedade continental
pela concórdia e o alheamento da América das consequências
das intrigas da política europeia, princípios fundamentais
de onde decorreu o lema – A América para os Americanos
(MENEZES 1941, p. 31-32).

A atuação destacada de Alexandre de Gusmão no interior


desse momento precursor do monroísmo demarcava um
modelo histórico que não apenas deveria ser seguidamente
rememorado – Menezes menciona, mesmo equivocadamente,
que Gusmão fora esquecido pelos historiadores –. mas usado
como guia moral e diplomático para os homens da República. O
último item do artigo, não por acaso, denomina-se “glorificação
de Gusmão”:

412 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

Alexandre de Gusmão, em cujas veias, por sua mãe, corria


o sangue americano, e cujos primeiros anos se passaram na
liberdade da terra infinita da América, ante a perspectiva do mar
infinito, não adaptado às tortuosidades da política européia de seu
tempo, ferido e maltratado pelas intrigas da Corte, comprimido
pela estreiteza do espírito clerical, tão absorvente no seu tempo
que tornava irrespirável o ar fora das igrejas ou dos conventos,
amando essa terra sua natal, que os azares das competições
políticas e da pequenez de destino não lhe permitiu (sic) que
volvesse a ver, e desejando preservá-la da desgraça das guerras,
das competições políticas, e da pequenez de sentimentos que não
se explicavam na liberdade e na vastidão dos seus horizontes,
procurou, com o tratado de 1750, pondo termo às discórdias
presentes, pela solução mais conveniente dos casos concretos
que as haviam criado e mantido, preservar o futuro de suas
consequências, imprimindo ao desenrolar da vida desses povos,
o sentimento de fraternidade e de independência que cria e
mantém o respeito recíproco e o espírito de solidariedade.

(...) Certamente, com a intenção desses princípios num


tratado, dando-lhes relevo universal e eficácia real, Alexandre
de Gusmão traçou, no que entende como os mais naturais e
legítimos interesses da América, a diretriz segura e vitoriosa de
sua política internacional.

(...) Acentuando o verdadeiro e benéfico significado do


Panamericanismo, exaltando-lhes os fecundos resultados, não
esqueçamos, entretanto, de proclamar bem alto o nome do seu
mais remoto propugnador, Alexandre de Gusmão, filho do Brasil
(MENEZES 1941, p. 33-34; 39).

A elevação de Alexandre de Gusmão a predecessor da


política republicana americanista foi o resultado da intervenção
de diversos intelectuais ligados ao IHGB, que mantiveram a
aposta biográfica como uma modalidade de escrita da história
capaz de se adaptar às novas condições políticas e intelectuais
abertas a partir de 1889. Os usos da biografia permitiriam,
mais uma vez, reconfigurar as dimensões da nacionalidade,
sinalizando para suas feições republicanas em meio a
impasses, crises e incertezas quanto ao futuro. Assim como
nas biografias oitocentistas publicadas pelo IHGB, esboçava-
se um passado que pudesse ser assimilado e compartilhado,
revelando a “marcha das forças coletivas e a identificação

413 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

dos seus protagonistas” (OLIVEIRA 2015, p. 278). Essa


força homogeneizante da biografia não significava, por outro
lado, a inexistência de nuances ou diferenças de pontos de
vista, ainda que sutis, entre os sócios do IHGB a respeito do
tratamento que deveria ser conferido a Alexandre de Gusmão.
Um exemplo interessante é o parecer que uma comissão emitiu
a respeito da publicação de um texto de Cesar Feliciano Xavier,
originalmente proferido na assembleia inaugural do Instituto
Pan-Americano de Geografia e História em 1933. Em posição
semelhante à de outros autores, Xavier identifica no Tratado
de Madri o “apanágio do adiantado da civilização americana”,
antecipando em um século a Doutrina Monroe. Assim, era
também adequado atribuir ao Brasil “a primazia daquilo que se
chamou depois espírito pan-americano”. Como por sua atuação
destacada na assinatura do tratado, Gusmão era exaltado como
um “insigne Estadista Americano”, um precoce formulador da
política americanista que se tornaria o registro definidor da
identidade continental. De acordo com o parecer, Alexandre de
Gusmão foi

(...) incontestavelmente, no cenário da política americana,


o primeiro estadista em cujo cérebro luziram as ideias
panamericanistas, com acentuado espírito de brasilidade, com
relação ao Império Lusitano. Precursor de Monroe e Bolívar,
na política americanista “foi provavelmente no mundo e
seguramente na América, o estadista que por inigualável política
de fraternidade não só adjudicou à sua pátria cerca de cinco
milhões de quilômetros quadrados [...] como também, assim
agindo, ao mundo civilizado irrecusável prova deu, de que se o
continente colombiano é o hemisfério da paz, como preconizara
o nosso grandíloquo Joaquim Nabuco, pan-americanista
fulgurante, irrecusavelmente é o Brasil o pioneiro máximo
dessa glória ímpar na política dos povos [...]”. Fez, pois, obra
meritória o autor da tese em estudo, trazendo novamente à
baila a figura empolgante de Alexandre de Gusmão, que nunca
é demais lembrar e louvar e cuja efígie por feliz inspiração do
Barão de Rio Branco, figura na galeria dos grandes americanos,
no Palácio do Itamaraty. Pelos motivos expostos, a contribuição
do Sr. Comandante Cesar Feliciano Xavier, delegado do
Club Naval, é digna do melhor acolhimento por parte desta
douta Assembleia. Rio de Janeiro, 28 de dezembro de 1932.

414 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

– A. Tavares de Lyra, presidente. – Rodrigo Octávio Filho, relator


(Delegado da República Dominicana. Membro efetivo do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro) – Octavio N. Brito – Felix M. P.
Sampaio – Rodolfo Garcia – Souza Docca – Alcides Bezerra –
Alfredo Ferreira Lage – Mucio Vaz – Vanderley Pinho – Vicente
Valdés Rodrigues – H. A. Torres (Apud SILVA 2019, p. 232).

Para a comissão, Gusmão certamente tinha lugar cativo


na galeria dos grandes pan-americanistas em função do
papel desempenhado no Tratado de Madri. Por outro lado, a
realização de uma política que transformasse o continente
em um “hemisfério da paz” é mais o resultado do “acentuado
espírito de brasilidade” do diplomata do que um conjunto de
iniciativas pensadas deliberadamente a priori. Se o Brasil foi “o
pioneiro máximo dessa glória ímpar na política dos povos”, isso
se deveu à identificação antecipadora de uma ideia de nação e
à consequente defesa dos seus interesses. Assim, os usos da
biografia de Gusmão, nessa chave de leitura, se deram “mais no
sentido de nacionalizar a história pan-americana – porquanto é
oferecida uma posição de imenso destaque ao Brasil –, do que
de pan-americanizar a história nacional” (SILVA 2019, p. 233).

A consagração de Gusmão operava ainda no registro do


varão ilustre, sujeito heroicizado pelos feitos realizados e
que eram transformados, através das narrativas biográficas,
em exemplos capazes de inspirar e orientar os homens.
Entretanto, essa moldura biográfica não era tão rígida. Tristão
de Araripe, líder republicano, escrevendo em 1894, alertava
para a necessidade de a instrução pública ser guiada pelo
“doutrinamento da história”. Assim, os homens teriam condição
de compreenderem “o que a pátria é e o que pode ser”. Apesar
da reafirmação da função da biografia (o historiador dever dar
“os traços característicos do verdadeiro herói, oferecendo à
imaginação do leitor as feições íntimas da alma do homem
egrégio”), Araripe se esforçava, por outro lado, para contrapor
um modo “moderno” de escrever a história a outro, “antigo”,
sendo o primeiro uma história dos povos e o segundo uma
história atenta aos feitos de reis e generais. A autoridade dos
antigos passava assim a ser relativizada, pois haviam deixado

415 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

narrativas incompletas, “sem os elementos da crítica e sem


a soma das experiências da Idade Moderna” (ARARIPE 1895,
p. 264). O modelo plutarquiano, capaz de oferecer lições e
paradigmas de conduta moral, era ainda incomparável na tarefa
de produzir o sentimento patriótico. A nobre inspiração que a
composição de biografias poderia suscitar não impediu Araripe
de ver em Plutarco a reprodução do equívoco comum aos
antigos, o de considerar heróis somente aqueles que haviam se
tornado célebres nos campos de batalha. Além disso, o gênero
biográfico deveria obedecer escrupulosamente aos critérios de
verdade objetiva e distanciada que a pesquisa moderna em
história lograra construir, ainda que muitas fossem as pressões
para que os temas contemporâneos – mais suscetíveis à
subjetividade do historiador – também fossem objeto do
labor historiográfico. Como se poderia esperar, evitavam-se
as biografias de personagens cuja proximidade temporal em
relação aos biógrafos pudesse colocar em risco a interpretação
imparcial e acurada dos seus atos.

Mas quais eram os “verdadeiros” heróis? A fixação da


memória dos atos dos homens beneméritos do passado não
estava ou não deveria estar em descompasso com a concepção
moderna de história que os novos tempos impunham. Se
os antigos enfatizavam as individualidades, especialmente
aquelas dos heróis (os “falsos”?), das guerras e dos reis, os
modernos preocupavam-se com os destinos coletivos, com
a história dos povos e não apenas dos indivíduos. Se havia
heróis a serem celebrados, estes eram os “da paz” (estadistas,
sábios, industriosos), cujas ações se conformavam mais ao
desenvolvimento geral das sociedades (ARARIPE 1895, p.
285). Essa percepção afinava-se, no geral, com a conversão
de Araripe, agora um dedicado defensor da causa republicana.
Obedecendo às leis da história, a proclamação da República
era o efeito visível já nas disputas em torno da preservação
de nossas normas constitucionais em 1831. A passagem dos
acontecimentos revelava, assim, um destino, um desfecho
para o qual tudo parecia concorrer e se explicar. A ação da
história, era, desse modo, a força que imperava sobre as

416 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

ações individuais. Os homens e seus feitos só ganhavam


seus contornos e sentidos mediante as forças inelutáveis do
desenvolvimento histórico. Esse raciocínio aproximava Araripe
de outro importante letrado do IHGB, Pedro Lessa, para quem
“antes que um grande homem possa refazer a sociedade, é
preciso que a sociedade o faça”. Embora Lessa tenha sido um
crítico das concepções mais romantizadas do heroísmo, que
ainda alimentavam muitas biografias produzidas no interior do
IHGB, sua ênfase em fatores sociais como explicativos das ações
humanas não significava nenhuma adesão a alguma forma de
determinismo fatalista ou a “uma física da história”. Tampouco,
por outro lado, elas podem ser facilmente discerníveis mesmo
a partir da observação rigorosa. As limitações colocadas ao
homem interferem em sua responsabilidade como indivíduo
que atua no mundo, mas não o freiam inteiramente.
Natureza e agência se influenciam e se modificam mutuamente
sem que tenhamos a exatidão absoluta dessas interações. Para
Lessa,

(...) a observação quotidiana dos factos nos arrasta a confessar


que os homens são resultantes dos tempos e dos logares em que
vivem, estreitamente solidarios com tudo que os cerca, os precede
e os segue. A hereditariedade, ou meio interno, determina-lhes
o caracter e o temperamento. O meio cosmico, o meio individual
e o social actuam sobre o caracter e o temperamento e os
modificam.

(...) Em ultima analyse, a unica liberdade que tem o homem é


a de agir (liberdade dos actos) de accordo com a sua vontade,
suas predilecções, suas inclinações, de conformidade com os
seus móveis e motivos. E, sendo assim, o determinismo não
destróe a individualidade, a personalidade, o conjuncto das
qualidades peculiares a um individuo, e o que distinguem dos
outros individuos da mesma especie. Exactamente por haver
uma riqueza admiravel de factores que distinguem a constituição
psychica dos individuos, e uma grande abundancia de idéas e
sentimentos, de inclinações e paixões, que actuam como forças
propulsoras da vontade, e por não conhecermos previamente
quaes os factores e os motivos que hão de predominar em um
determinado caso, é que não podemos prevêr com segurança os
phenomenos voluntarios, excepto dentro de certos limites.

417 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

(...) O determinismo não nega a individualidade, a personalidade;


pelo contrario, explica scientificamente por que a constituição
physica dos individuos varia, e distingue cada homem dos seus
semelhantes. Ninguem ainda se lembrou, observa Schopenhauer,
de se desculpar da pratica de um acto condemnavel,
atribuindo exclusivamente aos motivos: todos estão certos de
que a imperfeição do seu caracter contribuiu para a producção
do acto censuravel. Cada um de nós está convencido de
que, sob a pressão dos mesmos motivos que o levaram
a practicar um ato imoral, outro individuo de mais aperfeiçoada
organisação mental, de melhor educação e de intelligencia
mais esclarecida e capaz de reflexão, teria procedido
diversamente. As acções voluntarias de um indivíduo
decorrem do seu caracter, do conjuncto de attributos que
o distinguem, e consequentemente lhe são imputaveis.
Lançam-se na conta de cada um de nós. Não devemos responder
por esses actos? (LESSA 1906, p. 228; 232; 234).

A atenção cada vez maior conferida aos elementos


coletivos e aos sistemas normativos que, se não anulavam,
impunham limites às ações individuais, traduziram-se, em
alguns autores, em elaborações mais sofisticadas sobre a
noção de povo. Em um livro destinado ao ensino básico,
publicado em 1890 e intitulado A história do Brasil ensinada
pela biografia dos seus heróis, Sílvio Romero – tornado sócio
do IHGB em 1901 – reposicionou a escrita biográfica como
instrumento de uma pedagogia nacional, agora republicana,
capaz de indicar os caminhos para “o aprendizado das virtudes
cívicas e da história de um povo” (GOMES 2009, p. 111). A
mobilização do preceito magistral da biografia vinculava-se
ao velho intento de arrancar do esquecimento as vidas dos
indivíduos notáveis. João Ribeiro, autor do prefácio do livro,
destacava que as modulações biográficas defendidas por
Romero supunham que o uso do gênero se baseava numa
proeminência do geral sobre o particular, o que explicava a
pertinência de uma instrução cívica ministrada por meio de
exemplos de indivíduos que “fertilizavam a história da pátria”.
O livro se estruturava em uma ordem cronológica que se
iniciava no descobrimento, deixando visível uma perspectiva
evolucionista que era sintetizada pelas ações de alguns “heróis”

418 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

cuidadosamente selecionados. Os capítulos não informam


apenas a respeito dos personagens que formam esse panteão,
como também avançam em direção a sínteses interpretativas,
concedendo a cada século um sentido no conjunto da
evolução da nação. Numa chave analítica em alguma
medida destoante daquela exercitada pelos letrados do IHGB
durante o período imperial, Romero defendia a ideia de que
a maior contribuição que o Brasil poderia oferecer ao mundo
ocidental residia na novidade do seu povo, profundamente
miscigenado e que encarnava o “cosmopolitismo do futuro”
(ROMERO 1890, p. 3).

Ao formular a tese de um “povo novo” e mestiço, Sílvio


Romero produzia fissuras numa concepção do fazer biográfico
que valorizava o voluntarismo dos grandes homens como
agentes quase solitários na história do país. Ainda que esses
sujeitos não estivessem ausentes da obra de Romero – lá
estão narrativas biográficas sobre José Bonifácio, Hipólito da
Costa, Gonçalves Dias, Deodoro da Fonseca, entre outros
–, dois aspectos apresentavam-se como contrapesos que
relativizavam a força dos destinos individuais. O primeiro deles
era a importância conferida aos fatores que tensionavam as
relações entre os indivíduos e os sistemas normativos. As vidas
dos biografados eram introduzidas ao leitor por intermédio da
menção ao “tempo” no qual eles haviam atuado. Esse terreno
contextual não ignorava a vitalidade das ações humanas e
Sílvio Romero não cansou de exaltá-las em um estilo muito
próximo de Carlyle e seus heróis. Por outro lado, os indivíduos
sofriam com os determinismos existentes, sobretudo aqueles
ligados à força da natureza. O segundo aspecto, decorrência do
primeiro, considerava a importância das “criações anônimas/
populares” que as abordagens clássicas da biografia deixavam
em segundo plano. Essas formas criadoras definiam-se em
função do trabalho coletivo de sucessivas gerações e não
poderiam mais ser desconsideradas em qualquer estudo que
tivesse o propósito de especificar o papel e as ações de sujeitos
individuais, porque:

419 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

A hero-worship de Carlyle tem o defeito de desconhecer o valor


das criações populares e dar um culto por demais exagerado e
sobrehumano a alguns tipos de privilegiados. Um sistema de
história que não dá conta das criações anônimas é perfeitamente
incompleto e falso; hoje só os espíritos retardatários desconhecem
que os mais imponentes produtos da atividade humana, como a
linguagem, as mitologias, as religiões, os contos, as legendas,
as grandes epopeias, não são obra dos heróis, são produções
anônimas. Carlyle, diante de Buckle, faz uma figura apoucada
(ROMERO 1951, p. 147).

Em Sílvio Romero, a consideração do povo como sujeito


histórico era um passo importante em direção a uma apreensão
mais crítica das relações entre indivíduo e meio, graças a
qual alguns dos pressupostos da herança biográfica do IHGB
passaram a ser problematizados de forma mais densa. Embora
a operação historiográfica do Instituto reforçasse a convicção
de que os grandes personagens podiam elucidar melhor o
desvendamento dos nexos lógicos entre os acontecimentos e
a marcha progressiva da civilização, novos elementos críticos
foram acrescentados a esse pressuposto fundamental. Em um
artigo de 1892, escrito com o objetivo de traçar a trajetória
histórica da Sociedade Amante da Instrução, criada no
Rio de Janeiro e destinada ao cuidado de crianças pobres e
órfãs, seu autor, Alfredo do Nascimento Silva, alertava para a
emergência de uma multiplicidade de novos atores na “arena
da história”, sendo eles “os honrados operários, onerados de
numerosa prole [...]; as legiões de filhos sem pais [...]; os
filhos da pobreza; [...]; todos esses desgraçados que a doença
invalidou; [...] finalmente, os náufragos do mundo que não
puderam lutar contra os temporais” (SILVA 1892, p. 99). Esse
grande contingente de indivíduos inteiramente ausentes dos
grandes relatos históricos conseguira, finalmente, irromper na
cena política, tornar-se visível, exigindo do historiador novas
formas de compreensão do passado:

Longe vai o tempo em que a historia, deixando-se illudir pelas


apparencias e fascinar pelas pompas de grandeza e pelo fausto
dos potentados, limitou-se a ser a chronica dos reis, dos nobres

420 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

e dos vultos mais salientados pelos seus títulos de gloria. Nesse


tempo visava-se o throno aureolado de grandeza [...], mas não
se olhava para o gigante que o sustenta em seus hombros, para
esse colosso que vale tudo e a que nenhuma importancia se
ligava, isto é, o povo, cuja soberania no emtanto agora se impõe
(SILVA 1892, p. 102).

Essa soberania significava, sobretudo, a demanda por


um outro olhar, deslocado, dos historiadores, acostumados a
vislumbrar a “ostentosa riqueza (..) que no primeiro plano e
mais salientado depara sua vista” (SILVA 1892, p. 97). Não era
mais possível contemplar apenas “os apaniguados da sorte”,
os integrantes dos grupos socialmente mais favorecidos, que
concentravam riquezas e privilégios de toda ordem. Atrás de
toda essa opulência, “sente-se um turbilhão confuso do povo
acotovelando-se nas praças” em busca da sobrevivência e
de “um equilibrio eternamente irrealisavel” (SILVA 1892, p.
98). Essa massa abriga todos os tipos de caracteres, vícios e
virtudes, e o estudioso que quiser compreendê-la precisa ir
ao seu encontro, já que nada parece claro e nítido à primeira
vista.

A multidão dos inválidos e dos necessitados opera uma força


capaz de impulsionar a história que, até então, os ignorava
tristemente. Os novos tempos demandavam dos historiadores
a exata compreensão das tragédias desse povo que se perdia
em meio à degradação, à infâmia e ao crime. Sem a intervenção
decidida dos especialistas nos estudos históricos, estávamos
condenados a reproduzir incessantemente nossas mazelas e
a perder todas as virtudes que os pobres e miseráveis ainda
teimavam em carregar. A linguagem de Nascimento e Silva
não mascarava a feição higienista do seu pensamento: à
higiene individual, saneadora do corpo, deveria corresponder
uma higiene social, capaz de vigiar de perto a “podridão”, de
“queimar as pustulas sociaes, (...) fortificando os espíritos,
difundindo-lhes a instrucção, e pregando-lhes a moral” (SILVA
1892, p. 101).

421 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

Sem se desfazer da crença na existência de uma elite


ilustrada capaz de regenerar o povo miserável e sofrido,
Nascimento Silva instaura uma reflexão essencial sobre os
personagens ignorados da história que eram, entretanto,
dignos de figurarem nos livros e nos textos dos historiadores.
Sob um ponto de vista evolucionista e tributário de um certo
biologismo, o autor redimensiona os lugares das entidades
coletivas, sobretudo do povo e dos indivíduos na configuração
dos sistemas sociais.

Crescendo pouco a pouco e de mais a mais accentuando o seu


poder, essa massa popular sacudío um dia as espaduas herculeas
e os thronos tremeram em seus alicerces. Os despotas calcaram
o jugo, sofreiaram o fogoso corse, e elle soffreu algum tempo,
mas sempre lembrando, n´um vosear confuso, que nelle é que
palpita o coração da patria.

(...) Do rapido exposto, se deduz que a verdadeira historia


é o estudo da civilisação do povo, isto é, da evolução da
humanidade e da physiologia social. Organismo complexo,
ella fórma um todo que deve ser individualmente estudado;
as raças, os povos, as tribus e as familias são os apparelhos
e os orgaos deste gigantesco conjuncto, cujo ultimo termo
analytico é o individuo homem, a cellula viva da sociedade.
Assim como a vida do individuo é a resultante final da
somma das vidas de seus componentes cellulares, assim
a vida da humanidade tambem representa a somma das
vidas de seus componentes, isto é, dos individuos que
se congregam em familias, tribus e povos, outros tantos
orgaos e apparelhos elaboradores da civilisação. A cellula é o
atomo do individuo, este é a cellula da humanidade, e ella uma
diminuta parcella do mundo, que por sua vez é apenas um atomo
do universo!

(...) Assim tambem a biographia de um vulto, a chronica de


uma época, a narrativa de um episodio, os commentarios de um
facto ou o estudo de uma instituição, não formam certamente a
historia , mas são os seus elementos componentes, os materiaes
que ella coordenará para apreciar, julgar e formar a synthese,
incorporando em doutrinas as deducções que tirar; e quando
escrevemos a historia ou qualquer sciencia, vamos beber nessas
fontes, vamos haurir nesses mananciaes a materia prima para
taes trabalhos. (...) Como o biologista, o historiador precisa
agora aplicar o microscopio para analysar a cellula social, assistir

422 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

ao trabalho dos orgãos, apreciar a civilisação em seus fócos,


como aquelle aprecia a vida em seu berço (SILVA 1892, p. 102-
103; 105-107).

A expressividade da ação individual, para Nascimento e


Silva, só adquire pleno sentido e inteligibilidade como elemento
de uma engrenagem social superior, a história, composta por
forças que conduzem a humanidade segundo leis precisas e
inapeláveis. Compreender esse todo é, portanto, o trabalho
do “historiador-biologista”, munido dos diversos elementos –
tidos como fontes – conformadores da civilização. Essa posição
estava ainda longe de ser majoritária dentro do IHGB, mas
se mostrava como portadora de um potencial crítico capaz
de tensionar a moldura biográfica existente, alicerçada na
concepção de “grande homem”, segundo a qual, em consonância
com o pensamento do filósofo francês Victor Cousin, alguns
indivíduos poderiam ser considerados a síntese moral dos povos
e das coletividades e também representariam aqueles que não
eram visíveis na história (OLIVEIRA 2015, p. 277-278).

O estabelecimento das relações entre as dimensões


coletivas da história e as ações dos indivíduos mantinha-se
como uma questão historiográfica de primeira ordem para
os letrados do IHGB. Nascimento e Silva introduzia uma
dose de ceticismo quanto à função civilizatória que poderia
se vislumbrar em certas trajetórias individuais. As glórias da
nação e o sentimento patriótico não eram, agora, incompatíveis
com a percepção de que o povo, e não apenas os “grandes
homens”, desempenhava um papel decisivo na marcha dos
acontecimentos. As vidas daqueles sujeitos que supostamente
encarnariam as grandes virtudes nacionais não constituíam
mais modalidades de exemplaridade nem adquiriam valor
pleno por si mesmas, mas apenas como elementos ou formas
constituintes de uma totalidade.

423 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

Considerações finais

Senhores: – Achamo-nos em um campo neutro, onde não


entra a política com as suas tergiversações e subtilezas. Lá fora
esbraveja de noite e de dia o ruido dos interesses desencontrados
e antagonistas; o sorriso que mascára o rancor e o despeito; a
phrase assucarada que encobre o pensamento; o patriotismo,
que é santo e nobre, encarado por prismas diversos. Aqui o
silencio de que medito; a paz e a serenidade de animo do que
se afadiga por honrar o renome nacional, zelando o renome
de seus filhos illustres e archivando os fatos memoraveis da
história patria. Lá fora a paixão doudejante correndo atraz de
phantasmas illusorios que a razão fria desvanece. Aqui a calma
dos desambiciosos, que tudo antempõem ao conhecimento da
verdade para a transmittir intacta (MELLO 1890, p. 561).

Essas palavras foram pronunciadas pelo sócio José Alexandre


Teixeira de Mello, responsável pelo relatório das atividades
da RIHGB no biênio 1889-1890, ainda sob o impacto do fim
do regime monárquico e do exílio de D. Pedro II. A política
vinda das ruas, associada à desordem e ao irracionalismo,
configurava uma alteridade a ser evitada, se o Instituto
desejasse se manter como o guardião desinteressado dos
estudos históricos e do conhecimento do passado. O presente
não era apenas temido porque ameaçava, com seus ruídos e
paixões, a força da objetividade e da imparcialidade exigidas
ao zeloso estudioso das experiências dos homens de outros
tempos. O ardor político do espaço público destruía as próprias
condições de possibilidade do estudo da história, as formas
de uma razão historiográfica tão duramente conquistada. Não
obstante as reivindicações de clareza, de rigor desapaixonado
e de um quase ascético espírito científico, as palavras de Mello
estavam carregadas de arrebatamento e furor, talvez explicáveis
pelo seu monarquismo convicto e em luto. Os anos seguintes
demonstrariam, também, o equívoco de tais reivindicações.

A queda da Monarquia foi recebida pelos sócios do IHGB


com um misto de temor, incertezas e desorientação. Era
impreciso o que significariam esses novos tempos para

424 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

uma instituição ainda tão arraigadamente presa ao passado


imperial. Não parecia provável que o IHGB, mesmo sem aderir
explicitamente ao republicanismo, pudesse fechar suas portas
à colaboração de indivíduos identificados ao novo regime. Mas
isso, apenas, não bastaria. Seria possível que as molduras
historiográficas disponíveis, e tão laboriosamente constituídas
desde 1838, servissem para normalizar a vida intelectual da
velha agremiação? A aposta dos letrados do IHGB foi a de
uma sistemática reafirmação da história como ciência moral,
magistral, capaz de instruir os homens do presente e abri-los
ao futuro. No entanto, como se tentou demonstrar ao longo
deste texto, não se tratava de escutar acriticamente as vozes
do passado. A exemplaridade e os ensinamentos que poderiam
ser absorvidos do estudo detido, rigoroso e objetivo de outros
tempos eram molduras a serem postas em confronto com o
presente. A escrita biográfica praticada pelos sócios do IHGB
não escapou a esses dilemas. Por um lado, ela remetia a um
conjunto claro e estabelecido de princípios que deveriam
permitir o enquadramento das trajetórias de sujeitos e varões
ilustres: os grandes feitos, a dedicação à pátria, a força da
exemplaridade. Por outro, assistiu-se a um adensamento
epistemológico e analítico em torno de certas noções, tais
como as de herói, grande homem, indivíduo, contexto, entre
outras, que antes eram acionadas de maneira naturalizada. O
turbulento mundo da política e da rua, com seus personagens
anônimos e suas forças quase irrefreáveis, desejava entrar. E
não se pode dizer que não tenha conseguido.

425 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

REFERÊNCIAS

ARARIPE, Tristão de Alencar. Indicações sobre a História


Nacional. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, t. 57, parte II, p. 259-290, 1895.

ARAÚJO, Valdei Lopes de. A experiência do tempo:


conceitos e narrativas na formação nacional brasileira
(1813-1845). São Paulo: Hucitec, 2008.

CÉZAR, Temístocles. O que fabrica o historiador quando


faz história hoje? Ensaio sobre a crença na história (Brasil,
séculos XIX-XXI). Revista de Antropologia, v. 61, n. 2, p.
78-95, 2018a. DOI: 10.11606/2179-0892.ra.2018.148933.
Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ra/article/
view/148933/146996. Acesso em: 16 jul. 2019.

CÉZAR, Temístocles. Ser historiador no século XIX: o


caso Varnhagen. Belo Horizonte: Autêntica, 2018b.

D´AQUINO E CASTRO, Olegario Herculano. Discurso.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
t. LXIV (2), p. 319-328, 1901.

FERREIRA, J. C. de Souza. Visconde de Mauá (esboço


biographico). Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, t. LXII, p. 74-136, 1900.

GOMES, Ângela de Castro. A República, a História e o


IHGB. Belo Horizonte: Fino Traço, 2009.

GUIMARÃES, Lúcia Maria Paschoal. Da Escola Palatina


ao Silogeu: Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1889-1938). Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.

426 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

HRUBY, Hugo. O século XIX e a escrita da história:


diálogos na obra de Tristão de Alencar Araripe (1867-
1895). Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

LESSA, Pedro. Reflexões sobre o conceito de História.


Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
t. 69, v. 114, p. 193-285, 1906.

MELLO, José Alexandre Teixeira. Relatório dos trabalhos


annuaes de 1889 e 1890. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, t. LXIII, parte II, p. 561-565,
1890.

MENEZES, Rodrigo Octávio Langgaard. Alexandre de


Gusmão e o Monroísmo. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro, volume 175, 1941, p 5-69.

OLIVEIRA, Maria da Glória. Biografia e historia magistral


vitae: sobre a exemplaridade das vidas ilustres no Brasil
oitocentista. Anos 90, v. 22, n. 42, p. 273-294, 2015.

OLIVEIRA, Maria da Glória. Escrever vidas, narrar a


história: a biografia como problema historiográfico no
Brasil oitocentista. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2011.

PINHEIRO, José Feliciano Fernandes. Da vida e feitos de


Alexandre de Gusmão e de Bartholomeu Lourenço de
Gusmão. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, t. LXV, parte I, p. 377-423, 1902.

REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO


BRASILEIRO, LII, parte II, 1889, 580p.

REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO


BRASILEIRO, t. LXII, 1900, 490p.

427 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Alexandre de Sá Avelar

ROMERO, Sílvio. A história do Brasil ensinada pela


biografia de seus heróis. Rio de Janeiro: Livraria Alves
e Cia., 1890.

ROMERO, Sílvio. Da interpretação filosófica na evolução


dos fatos históricos. Studia, Rio de Janeiro, n. 2, Ano II,
p. 143-154, 1951.

SILVA, Alfredo do Nascimento. Um átomo da História Pátria:


histórico da Sociedade Amante da Instrucção. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 55,
parte II, p. 97-140, 1892.

SILVA, Gabriela Correa. Dos passados heterogêneos


ao mosaico continental: pan-americanismo e operação
historiográfica no IHGB republicano (1889-1933). Tese
(Doutorado em História) – Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2019.

SOUSA, Francisco Gouveia de. Proclamação e revolta:


recepções da República pelos sócios do IHGB e a vida
da cidade (1880-1900). Tese (Doutorado em História) –
Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2012.

428 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
Entre a tradição e a inovação

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

Alexandre de Sá Avelar
alexandre.avelar@uol.com.br
Universidade Federal de Uberlândia
Uberlândia
Minas Gerais
Brasil

Este artigo recebeu apoio do CNPq – Bolsa


Produtividade.

RECEBIDO EM: 20/FEV./2020 | APROVADO EM: 12/ABR./2020

429 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 397-429 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1585
HISTÓRIA DA
HISTÓRIA DA Ouro Preto / MG - Brasil
HISTORIOGRAFIA

Filosofia da existência, existencialismo e o problema


do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

Philosophy of existence, existentialism and the problem of


sense in Paul Ricoeur’s philosophy of history

Breno Mendes
https://orcid.org/0000-0001-6408-4117

RESUMO
O problema do sentido na filosofia da história de Paul
Ricoeur é o tema central deste trabalho. A interpretação ABSTRACT
é desenvolvida a partir da hipótese segundo a qual
The problem of sense in Paul Ricoeur’s philosophy of
existiria uma dialética entre existência e linguagem
history is the focus of this research. The interpretation
na constituição de sentido. O caminho escolhido para
is developed from the hypothesis in which would exist
a investigação foi a leitura estratégica de obras que
a dialectic between existence and language in the
recobrem a primeira parte da trajetória filosófica do
constitution of sense and meaning. The strategy chosen
autor. Nesse sentido, focalizamos a leitura de Ricoeur
in the investigation was the reading of works that cover
sobre a filosofia da existência de Karl Jaspers e o seu
the first part of Ricoeur’s philosophical path. Thus, we
contraponto com o existencialismo de Sartre. Durante
focus on Ricoeur’s reading of Karl Jasper’s philosophy of
o decorrer da pesquisa, procuramos compreender os
existence and its opposition to Sartre’s existentialism.
contornos do entendimento de Ricoeur sobre a dialética
Throughout the research, our purpose is to understand
entre ontologia e epistemologia presente na filosofia da
Ricoeur’s comprehension of the dialectic between
história.
ontology and epistemology in philosophy of history.

PALAVRAS-CHAVE
Filosofia da História; Sentido; Paul Ricoeur
KEYWORDS
Philosophy of History, Sense, Paul Ricoeur

431 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

O problema do sentido, a dialética entre existência


e linguagem e a filosofia da história
“A História tem um sentido” ou será que os acontecimentos
se sucedem no devir temporal de forma caótica, contingente,
sem quaisquer conexões ou propósitos que os reúnam? O
questionamento colocado com clareza pelo filósofo tcheco Jan
Patočka ([1990] 1999) em um de seus Ensaios heréticos sobre
a filosofia da história continua a trazer angústia e inquietação
para aqueles que o levam a sério. Sem dúvida, são essas
mesmas perguntas que alimentam algo como uma filosofia
da história. A reflexão sobre o significado e a finalidade do
processo histórico singulariza esse campo de estudos em
relação à Teoria da História e à História da Historiografia. Em
uma primeira abordagem, poderíamos dizer que a Teoria da
História ocupa-se das particularidades da ciência histórica,
seus fundamentos epistemológicos e metodológicos, sem se
questionar detidamente sobre a coerência de todo o processo
histórico ou mesmo sobre o sentido da existência histórica. A
filosofia da história, por seu turno, fundamentalmente, ocupa-
se do problema do sentido da história e seus desdobramentos.
Dessa forma, Jörn Rüsen nos dirá: “a questão sobre o que é a
história transforma a teoria da história em filosofia da história”
(RÜSEN 2015, p. 33).

O artigo que apresentamos coloca-se a tarefa de investigar


o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur
(1913-2005), especialmente em seus escritos publicados entre
as décadas de 1950 e 1960. A elaboração de nossa hipótese
central começou a ganhar corpo quando em nossa pesquisa
buscamos entender melhor qual o lugar ocupado por Paul
Ricoeur na cena intelectual francesa no século XX. Aliás, desde
sempre nos causava estranheza o fato de Ricoeur não ser
figura carimbada nos panoramas mais abrangentes da filosofia
francesa (Cf. FERRY, RENAULT 1988; PETIT 2009), apesar de ser
considerado como um filósofo reconhecido, sobretudo a partir
da segunda metade dos anos 1980. Em vista disso, acreditamos
que, se nos colocarmos na trilha aberta pela hipótese sugerida

432 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

por Michel Foucault ([1984] 2005), posteriormente reelaborada


por Alain Badiou, poderemos jogar novas luzes sobre o problema
do sentido na filosofia de Ricoeur. Em um dos últimos textos
que escreveu antes de morrer, em 1984, Foucault sugeriu que
seria possível traçar a seguinte linha divisória no pensamento
francês: de um lado, estaria a filosofia da experiência, do sentido
e do sujeito, ao passo que, do outro, estaria uma filosofia do
saber, da racionalidade e do conceito. No primeiro, estariam o
existencialismo de Sartre e a fenomenologia de Merleau-Ponty;
enquanto, no segundo, estaria a chamada Escola Epistemológica
Francesa, que faz epistemologia na extensão da história da
ciência, como podemos perceber em Alexander Koyré e George
Canguilhem. Quase vinte anos depois da morte de Foucault,
Alain Badiou, no prefácio ao seu livro A aventura da filosofia
francesa no século XX, retomou essa hipótese (sem mencionar
o autor de A história da loucura!), dessa vez tomando como
fio condutor a questão do sujeito: “temos, pois, no início do
século o que eu chamaria de uma figura dividida e dialética
da filosofia francesa. De um lado, uma filosofia da vida; de
outro, para abreviar, uma filosofia do conceito” (BADIOU 2015,
p. 10). Grosso modo, os autores distinguem uma filosofia
mais preocupada com o sentido e com a existência, abrindo o
caminho para uma ontologia e outra que se detém na análise
histórica da formação dos conceitos científicos, colocando em
primeiro plano não apenas a epistemologia, mas também a
relação entre as palavras e as coisas.

A partir desse background da história intelectual e de nossa


inquietação quanto ao sentido da história, propomos, então, o
seguinte argumento central ou hipótese de trabalho: o problema
do sentido na filosofia ricoeuriana poderia ser interpretado a
partir da combinação dialética entre um pensamento sobre a
existência e uma filosofia da linguagem. Trocando em miúdos,
a compreensão da existência humana demanda a mediação
pelos significados produzidos pela linguagem, assim como os
significados produzidos pelo discurso ganham seu verdadeiro
sentido quando trazem orientação para a experiência. Assim,
o sentido opera uma mediação entre existência e linguagem

433 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

sem desembocar em uma síntese final ou saber absoluto;


uma dialética imperfeita, aberta e fragmentária sob o signo
do inacabamento. Ora, tal hipótese parece-nos ser ainda mais
adequada para entendermos o problema do sentido da história
na fenomenologia-hermenêutica de Ricoeur, uma vez que, como
se sabe, o próprio conceito moderno de história carrega em si
uma polissemia similar, ao se referir tanto à experiência da
história como ao seu conhecimento científico ou, para usarmos
os termos de Reinhart Koselleck (2006, p. 48), “o sentido do
acontecimento [experiência] e de sua representação narrativa
[linguagem] se encontram no termo alemão Geschichte”.

Sendo assim, para fundamentarmos melhor nossa proposta


interpretativa, lançamos mão do próprio percurso filosófico de
Ricoeur. Nesse sentido, tem destaque um texto publicado pelo
autor em 1973, o qual procurava dar conta dos deslocamentos
de seu pensamento nos últimos dez anos e conta com um título
sintomático: do existencialismo à filosofia da linguagem. Ora,
mais do que apenas reproduzir a interpretação que o filósofo
tinha sobre si mesmo, nosso objetivo é, de algum modo,
problematizá-la. Em primeiro lugar, na contramão do título
do artigo que citamos e em par com Jérôme Porée (2017),
defendemos a tese de que Ricoeur jamais deixou de ser um
pensador da existência, mesmo sem nunca ter se confundindo
com um existencialista na linha de Sartre. Ou seja, em nossa
leitura, o problema do sentido na filosofia ricoeuriana, de modo
geral, e em sua filosofia da história de modo particular, não pode
ser desconectado do plano da experiência e da historicidade.
Ademais, um esclarecimento: ser um pensador da existência não
significa adesão a uma escola de pensamento existencialista,
mas, sobretudo, implica perceber que a historicidade humana
é ambígua, contraditória e paradoxal. Isto é, há espaço para
a produção de sentido e significado, mas também para aquilo
que é completamente desprovido de sentido e propósito.

No que diz respeito à relação entre ontologia e epistemologia,


a discussão sobre o nascimento da chamada filosofia crítica da
história é importante para nossos objetivos, já que Ricoeur

434 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

procurou dialogar com essa vertente, deixando transparecer


sua influência kantiana. Se, na Crítica da Razão Pura, Kant
pretendera erigir uma filosofia dos limites do saber, o filósofo
francês se mantém “nos limites de uma crítica da pretensão do
saber de si da história a se erigir em saber absoluto, reflexão
total” (RICOEUR 2000, p. 386). Nas palavras do próprio
autor, “a filosofia contemporânea da história se propõe, mais
modestamente, a refletir sobre esse ofício do historiador, a fim
de extrair seus objetivos e meios, seus entraves e ambições”.
(RICOEUR 1994, p.139). Todavia, ele salienta que, em sua
perspectiva, “seria um erro acreditar que, por falta de uma
filosofia da história de tipo especulativo, há lugar apenas para
uma epistemologia da operação historiográfica” (RICOEUR
2000, p. 385. Grifo nosso). Na seara em que o filósofo se
embrenhou, há espaço também para as relações de sentido
numa análise sobre a experiência da história. Trocando em
miúdos, para ele não há filosofia da historiografia sem filosofia
da história.

No presente artigo, nossa proposta é focalizar o início do


primeiro período da obra ricoeuriana, que teve início em 1947
com a obra Karl Jaspers e a filosofia da existência, escrita em
parceria com Mikel Dufrenne, e vai até 1960, ano em que foi
publicada A simbólica do mal. O método adotado por Ricoeur
na primeira fase de seu pensamento é a fenomenologia
husserliana, ou, para sermos mais precisos, uma espécie de
fenomenologia existencial, cujo principal objetivo era descrever
o sentido da experiência vivida. Segundo Ricoeur, em artigo
publicado na década de 1960, a fenomenologia existencial não
deve ser tratada apenas como um subcampo que se justapõe
à fenomenologia transcendental. Mais do que isso, para ele
a fenomenologia existencial é um estilo de pensamento que
toma a fenomenologia como método e o coloca a serviço das
questões concernentes à existência (RICOEUR 1967). No texto
em questão, são mapeadas três matrizes que evidenciariam
uma “fenomenologia implícita” presente na filosofia da
existência. A primeira delas remonta a Husserl e a virada em
seu pensamento rumo à investigação sobre os aspectos da

435 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

existência humana no mundo. A segunda fonte refere-se a


correntes filosóficas originadas com Kierkegaard e Nietzsche.
No caso do filósofo da Dinamarca, o principal aporte é a
categoria filosófica de existência, que remete àquilo que é
individual, ao que não é incluído pelo sistema e escapa às
pretensões objetificadoras do método. Do estilo do “filósofo
do martelo”, a fenomenologia existencial herdou a rejeição
aos sistemas filosóficos. Além disso, mesmo antes de Husserl
sistematizar a redução eidética, Nietzsche, segundo Ricoeur,
teria adotado uma atitude redutiva e genética perante os
sistemas morais, em sua célebre Genealogia da moral, indo
do derivado ao originário. A terceira fonte da fenomenologia
existencial diz respeito aos pensadores franceses, como Sartre,
situados na confluência da herança do método fenomenológico
1 “Não que tudo seja
de Husserl com os problemas existenciais da filosofia pós- linguagem, como é
dito às vezes,(...) nas
hegeliana (RICOEUR 1967).
concepções em que a
linguagem perdeu sua
O grande problema de Ricoeur com a fenomenologia referência ao mun-
do da vida, àquele
existencial diz respeito ao plano da linguagem. Não é segredo da ação e comunica-
para ninguém que, nos anos 1960, o chamado giro linguístico1 ção entre as pessoas.
Mas, se nem tudo é
teve importante impacto no cenário intelectual francês. Foi linguagem, tudo, na
nesse contexto que Ricoeur realizou o enxerto da hermenêutica experiência, não ad-
quire sentido senão
na fenomenologia, inaugurando a segunda fase de sua filosofia, sob a condição de ser
de acordo com a periodização que estamos propondo. O ponto levado à linguagem.
(RICOEUR 1996b,
de inflexão é precisamente a obra A simbólica do mal, que p. 209).
realiza uma notável mudança no método de sua filosofia A
abordagem mais puramente conceitual e fenomenológica
cede espaço à interpretação hermenêutica dos símbolos e
mitos que narram a origem do mal existente no mundo. No
já citado artigo Do existencialismo à filosofia da linguagem
(1973), Ricoeur aponta que a fenomenologia existencial se
prendia excessivamente ao uso da linguagem ordinária, mas o
problema do mal colocava novas “perplexidades linguísticas”,
as quais demandavam o uso dos símbolos em uma linguagem
mais elaborada. Dizendo de outro modo, nossa experiência
humana é suscetível ao mal, àquilo que desafia o sentido e
demanda a mediação da linguagem e suas estratégias de
significação mais complexas. Não por acaso, em seu prefácio aos

436 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

Ensaios heréticos de filosofia da história de Patočka, Ricoeur


sintetizou sua lógica do sentido, sustentando que: “a perda do
sentido não é a queda no ‘não sentido’, mas o acesso à qualidade
de sentido implicada na busca ela mesma” (RICOEUR 1999,
p. 16). Em resumo, a mediação da linguagem simbólica para
enfrentar a experiência do mal evidencia a problematicidade do
sentido e inviabiliza seja o dogmatismo, seja o niilismo. Nessa
chave de leitura, a tarefa do filósofo instruído pelos símbolos é
romper com o privilégio concedido à reflexão imediata sobre si
mesmo, elevando a dimensão simbólica à esfera dos conceitos
existenciais. Isso significa, inclusive, um questionamento à
transparência do cogito. A abertura à dimensão simbólica da
experiência acarreta pensar que o sujeito não conhece a si
mesmo de modo intuitivo e transparente, mas pela mediação
dos signos transmitidos pela cultura e pela história. A entrada
de Ricoeur no domínio da hermenêutica filosófica se deu pela
via dos símbolos culminando em uma aposta do sentido.

O terceiro período da filosofia ricoeurianas – cujas obras


escapam ao recorte cronológico do presente texto, destaca
as conexões entre os temas narrativa, identidade e memória.
Nessa perspectiva, uma releitura sobre o círculo hermenêutico
ou tripla mímesis contidos em Tempo e narrativa pode ser um
excelente mote para tematizar uma última característica do
problema do sentido a ser apontada ainda nessa introdução,
qual seja, a ubiquidade do sentido. Retomando o nosso
argumento central ou a hipótese de trabalho, poderíamos
formular a seguinte pergunta: afinal de contas, qual o lugar
do sentido: a experiência ou a linguagem? Levando em
consideração a tese central de Tempo e narrativa, somos
conduzidos a pensar em uma ubiquidade do sentido, ou seja,
o sentido é produzido e circula tanto no plano da ação e da
existência quanto no da linguagem e de suas articulações
narrativas. O pressuposto ricoeuriano é que entre a dimensão
temporal da experiência humana e a atividade de narrar uma
história existe uma correlação necessária e transcultural. Para
Ricoeur, a tessitura da trama narrativa pressupõe uma pré-
compreensão dos sentidos imanentes à ação humana, os quais

437 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

são reelaborados e configurados em um enredo e retornam


ao plano da experiência quando são apropriados pelo leitor
que refigura sua existência com novos sentidos e significados
(RICOEUR 1991a).

A filosofia da existência de Karl Jaspers e o


problema da historicidade
Como já dissemos, o ponto de partida de nossa jornada do
sentido é o livro Karl Jaspers e a filosofia da existência (1947),
escrito por Paul Ricoeur em parceria com Mikel Dufrenne.2
Tendo em vista a hipótese apresentada na introdução, visamos
compreender, em um primeiro momento, como o problema do
sentido e a questão da história começaram a se configurar
no pensamento ricoeuriano como uma filosofia da existência
antes mesmo de uma filosofia da linguagem e de uma filosofia 2 Mikel Dufrenne
(1910-1995) foi um
da história. Os autores, Ricoeur e Dufrenne, conheceram-se no
filósofo francês que
campo de prisioneiros da Pomerânia durante a segunda guerra se dedicou, principal-
mente, à “fenomeno-
mundial, quando tiveram acesso à totalidade dos textos de
logia da experiência
Jaspers editados até então. A obra em questão contou com estética”, que, inclu-
sive é o título de uma
um prefácio escrito pelo próprio Karl Jaspers, que era uma
de suas principais
das figuras de proa da filosofia da existência. Na entrevista obras.
Aguardo o renascimento (1988), Ricoeur confessa que havia
sido bastante impactado com os primeiros estudos em
língua francesa sobre Jaspers publicados por Gabriel Marcel
antes da Segunda Guerra. Diga-se de passagem: o estudo
de filósofos alemães era um mecanismo encontrado por
Ricoeur e Dufrenne para evitar a recusa da cultura alemã,
que, segundo eles, ocorrera durante a primeira guerra:
“Nós pensávamos que os alemães verdadeiros estavam nos
livros e essa era uma forma de negar os alemães que nos
aprisionavam. A Alemanha verdadeira éramos nós e não eles”
(RICOEUR 1988, p. 2). Jean Grondin ressalta, ainda, que em
um contexto intelectual no qual o existencialismo “fazia furor’
na França, a publicação desse livro cooperou para que Ricoeur
fosse nomeado como professor de filosofia em Estrasburgo no
ano de 1948 (GRONDIN 2015).

438 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

Ao longo de nossa pesquisa, interpretamos Ricoeur como


um pensador da existência, algo que é muito mais do que
uma questão de filiação à escola filosófica ou à adoção de
procedimentos metodológicos bem delimitados. De maneira
similar, Jérôme Porée (2017) aponta que Ricoeur é um pensador
da existência não apenas por ter dedicado o seu primeiro livro
à interpretação de Karl Jaspers, mas também, sobretudo,
pelos temas que abordou ao longo de sua reflexão filosófica,
os quais, via de regra, giram em torno da “apropriação do
nosso esforço por existir e do nosso desejo de ser”. Mesmo
sendo mais uma atitude do que um método, acreditamos
que a inclinação existencial do pensamento ricoeuriano pode
ganhar novos sentidos quando compreendida à luz de sua
interpretação da filosofia da existência de Jaspers. Desse
modo, nossa pesquisa procura explorar caminhos ainda 3 Nessa mesma cole-
tânea, destaque para
pouco visitados pela recepção da obra ricoeuriana. No Brasil,
os textos de Jeffrey
por exemplo, podemos destacar a notável coletânea Pensar Barash (2016) a res-
peito da influência
Ricoeur: vida e narração (NASCIMENTO, WU 2016). Conquanto
da epistemologia de
o livro apresente estudos que tratem do tema da “existência”, Collingwood e da on-
tologia de Heidegger
em nenhum momento há uma abordagem sobre a relação de
nas reflexões de Rico-
Ricoeur com Jaspers, Sartre e Camus, nem tampouco uma eur sobre “a realidade
do passado histórico”;
investigação pormenorizada sobre a relação entre filosofia
e de Noeli Rossato
da existência e filosofia da linguagem no que diz respeito ao (2016) sobre a apro-
priação de Agostinho
problema do sentido da história.3
feita por Ricoeur.

Seguindo os rastros do pensamento existencial de Søren


Kierkegaard, Jaspers sustentava que a existência humana está
no limite do saber e da razão a tal ponto, que compreendê-
la é elaborar uma crítica do conhecimento. Aqui, a existência
não se confunde com o indivíduo biológico ou mesmo com
um modelo universal de homem, que geralmente é entendido
como um ser racional e dotado de uma essência intemporal.
A existência remete para a singularidade individual irredutível
aos sistemas filosóficos e científicos; o ser humano é sempre
mais do que aquilo que aparece em um discurso. Não obstante,
a filosofia da existência jasperiana não se traduz em uma
postura hostil à ciência, mas procurar criticar o excesso e o
fracasso do saber, isto é, quando ele se torna um obstáculo

439 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

ao encontro da existência consigo mesma, uma vez que “a


filosofia da existência tem por ambição unir razão e existência”
(RICOEUR 1947, p. 25). Por um lado, a orientação fornecida
pelas ciências precisa da filosofia para ultrapassar os limites
de cada ciência particular; por outro, a compreensão sobre
o ser não pode prescindir do saber particular aportado
pelos ramos do conhecimento científico (CARVALHO 2016).
Dessa forma, percebemos que, na perspectiva de Jaspers,
a reflexão sobre a nossa situação existencial não descarta,
mas, de certa forma, demanda a reflexão epistemológica.
Tal aspecto parece ter sido importante para o modo
como Ricoeur concebe a relação entre ontologia e
epistemologia em sua obra.

Manter os olhos fixos na exceção. Tal seria uma das


principais lições da filosofia da existência de Kierkegaard,
segundo Ricoeur, cuja implicação resulta numa redescoberta da
relação íntima do trabalho filosófico com a não filosofia. Mesmo
que seja responsável por seu ponto de partida, por seu método
e acabamento, a filosofia tem suas fontes fora de si mesma: “A
filosofia sempre tem a ver com a não filosofia, porque a filosofia
não tem objeto próprio. Ela reflete sobre a experiência, sobre
toda a experiência, sobre o todo da experiência: científica,
ética, estética, religiosa” (RICOEUR 1996a, p. 34). Ecoando
Jaspers, o filósofo francês defende que entre a ciência e a
filosofia não haja um combate hostil, mas uma “luta amorosa”.
O saber científico serve à filosofia, interditando-lhe o anseio
de ser tomada como ciência e lembrando que sua vocação
mais própria é interpretar o desenvolvimento da existência; ao
passo que a filosofia serve à ciência, quando lhe revela seus
limites, livrando-a do dogmatismo de ser tomada como saber
absoluto (RICOEUR 1947).

Do que foi dito até agora, podemos sopesar alguns


argumentos que nos ajudam a entender melhor nosso problema.
Primeiramente, parece-nos que essa abertura da filosofia em
direção à não filosofia foi fundamental para que Paul Ricoeur
refletisse sobre a história e dialogasse com a historiografia,

440 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

mesmo que, como ele mesmo diz, tenha feito isso com pontos
de partida e métodos filosóficos. Ademais, para nós, parece
que, ao longo de sua carreira, Ricoeur incorporou a proposição
de Jaspers – de inspiração kantiana, segundo a qual a filosofia
deve realizar uma reflexão sobre os limites do conhecimento.
É nesses termos que ele define sua filosofia da historiografia
em A memória, a história, o esquecimento (2000), embora o
jargão existencial tenha recebido o acréscimo do hermenêutico-
ontológico. Seu projeto, então, é enunciado como sendo
uma “filosofia crítica da história” que não se limita a uma
epistemologia da operação historiográfica:

Na vertente crítica, a reflexão consiste numa imposição de limites


a qualquer pretensão totalizante ligada ao saber histórico (...).
Na vertente ontológica, a hermenêutica dá-se como tarefa a
exploração das pressuposições que podem ser ditas existenciais
tanto do saber historiográfico efetivo quanto do discurso crítico
anterior. São existenciais no sentido de que estruturam a forma
própria de existir, de ser no mundo, desse ser que cada um de
nós é.” (RICOEUR 2000, p. 373, grifos nossos).

Diante disso, como a historiografia poderia contribuir para


a compreensão da existência na história? A resposta a essa
questão não pode contornar a categoria da historicidade. A
existência nunca se manifesta como algo pronto e acabado,
mas se efetiva passo a passo mediante as decisões que toma
no curso do tempo e da história (JASPERS [1932] 1958). Na
obra de 1947, Ricoeur e Dufrenne sustentam que “a história,
através das ideias, reflete as vicissitudes da existência, seus
desenvolvimentos e decadências” (RICOEUR 1947, p. 91).
Portanto, o historiador poderia almejar dar um passo em
direção à leitura da existência na história; entretanto, ao fazer
isso, ele ultrapassaria os limites estritos da objetividade de
seu ofício. Essa tarefa é decisiva, porém facultativa. Isto é,
o filósofo não pode obrigar o historiador a proceder dessa
maneira; no entanto, quando isso ocorre, a ciência corrobora
para a compreensão do sentido. Quando o historiador renuncia
a essa empreitada em nome de uma objetividade que se

441 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

restringe ao domínio dos “acontecimentos brutos”, ele está


reduzindo as ciências do espírito ao âmbito das ciências da
natureza (RICOEUR 1947).

A noção de historicidade é uma preciosa pedra de toque


no diálogo da filosofia da existência com a historiografia. Na
filosofia de Karl Jaspers, a questão da historicidade é abordada
com base na ideia de situação-limite, sendo compreendida como
um índice da existência, “a situação (...) dá a existência uma
profundidade histórica” (RICOEUR 1947, p.174). As situações
são modificáveis; no entanto, sempre conduzem a outras
situações, de tal modo que existir é sempre ser em situação, 4 Esquematicamen-
te, as características
é estar submetido a um conjunto de situações concretas e da historicidade em
históricas. As situações-limites são uma espécie de baliza da Jaspers são: 1) União
da existência e do ser
existência, um limiar inultrapassável e sobre o qual não temos empírico; 2) União da
total controle. São situações que não podemos transpor nem liberdade e da neces-
sidade; 3) União do
alterar. Nessa perspectiva, a historicidade4 aparece como uma tempo e da eternida-
situação-limite que é sofrida como estreiteza e assumida como de (RICOEUR 1947).
profundidade, pois a condição histórica que parece limitar o ser 5 A propósito, no ju-
humano é também a que lhe apresenta as possibilidades de ízo de Ricoeur e Du-
frenne (1947), a
concretização da sua liberdade. A historicidade é a característica palavra francesa his-
de tudo aquilo que é concreto, opondo-se ao intemporal, toricité não traduz
todos os sentidos do
abstrato e universal. conceito alemão de
Geschichtlickeit, pois
Se situarmos essa discussão sob o pano de fundo da na França a História
seria uma disciplina
relação entre a filosofia e a ciência, a questão que surge é: sem pretensões me-
de que modo a historicidade se articula com a historiografia, tafísicas, ao contrário
do que acontece do
ou, em outras palavras, como a ontologia se relaciona com outro lado do Reno.
a epistemologia?5 Sob a ótica jasperiana, a historicidade não
deriva do conteúdo das ciências históricas, sendo inseparável
da história do ser no mundo. Por meio dela, a existência se
manifesta como temporal e eterna. Para o filósofo alemão,
“a existência não é intemporalidade nem temporalidade em si,
mas uma e a outra e não uma sem a outra” (JASPERS 1958,
p. 533). Aqui, a eternidade deve ser conectada à noção de
“Transcendência” que não é compreendida como um plano
separado do mundo empírico, mas como os modos não
objetivos de ser. Do mesmo modo que sem o mundo não há

442 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

transcendência, existe uma dimensão da realidade que não


pode ser objetificável, pois transcende os contornos empíricos
(PEACH 2006).

Segundo Ricoeur e Dufrenne, Karl Jaspers estende a


historicidade da existência à historicidade da realidade. Assim,
a realidade é concebida como sendo única, temporal e concreta,
não devendo ser compreendida a partir de generalizações.
Acreditamos que, em seu labor filosófico, Paul Ricoeur também
assumiu a historicidade da existência e da realidade, uma
vez que renunciou à ilusão de um sistema de conhecimento
que pudesse totalizar, de maneira definitiva, os sentidos da
realidade. Diga-se de passagem, em nossa leitura, o acento
sobre a dimensão existencial da historicidade humana é um
dos principais fatores que o levaram a não erigir uma filosofia
especulativa da história. Para Ricoeur, assim como para o autor
de A culpabilidade alemã, a ação histórica não se deixa fixar
em uma máxima universal ou se integrar, totalmente, em um
rígido sistema moral de meios e fins.

Alguns comentadores, como Filiz Peach, apontam para a


dificuldade de explicar o conceito de historicidade em Jaspers,
em virtude de o filósofo não ter oferecido muitas definições claras
sobre o termo. Entretanto, é possível perceber que, em sua
filosofia da existência, a historicidade toca mais diretamente no
aspecto individual e pessoal da existência humana; enquanto o
conhecimento histórico anela compreender assuntos públicos.
Por exemplo, uma das marcas da existência humana é sua
liberdade para fazer suas próprias decisões. Todavia, essa
liberdade sempre é limitada pelas circunstâncias históricas.
Além disso, a historicidade envolve a apreensão de nossa
própria história e a interpretação de nossas ações passadas
(PEACH 2006).

Entendemos que um dos pontos fundamentais do viés


existencial da historicidade para Ricoeur é, justamente, sua
função de limite, mas limitar seria sinônimo de restringir?
Ao refletir sobre o emprego da noção de limite à existência
humana, em História e verdade, o filósofo francês apontou

443 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

para uma dupla acepção do termo: por um lado, o limite


designa o “estar-lá limitado enquanto perspectiva”. Por outro,
ele indica a possibilidade de significação (RICOEUR 1955). Se
a historicidade manifesta os limites do ser, evidenciando sua
não atemporalidade, ela também possibilita a concretização do
sentido do ser. Em outros termos, conforme está mais bem
desenvolvido em História e verdade, para Ricoeur o limite tem
como função tanto a negação quanto a afirmação, sendo que a
última, inclusive, precede a primeira.

O existencialismo de Sartre, a náusea e a falta de


sentido da história
Levando em conta que o nosso estudo se propõe a
6 A mais completa e
compreender contextualmente o conceito de sentido na filosofia atualizada discussão
sobre filosofia da exis-
ricoeuriana, uma questão instigante se apresenta em nosso
tência, existencialis-
caminho: por que Ricoeur escolheu dialogar com a filosofia mo e fenomenologia é
o volume da prestigio-
da existência de Jaspers e não tanto com o existencialismo
sa coleção de Oxford
francês de matriz sartreana?6 Para melhor respondermos a “Blackwell Companion
to Philosophy”, tra-
essa pergunta é necessário realizarmos uma rápida discussão
duzida no Brasil pela
terminológica. De acordo com Udo Tietz (2012), a filosofia da Editora Vozes com o
título Fenomenologia
existência é anterior ao existencialismo francês capitaneado
e existencialismo (cf.
por Sartre. Nesse sentido, o ponto de inflexão seriam as críticas DREYFUS, WHRA-
THALL 2012).
de Kierkegaard ao idealismo alemão e ao ‘panlogicismo’ de
Hegel. Portanto, a filosofia da existência pode ser interpretada
como um estilo de pensamento cujas origens remontam ao
pensamento germânico, sendo uma espécie de continuação e
radicalização da filosofia da vida. Em termos de filosofia da
história, defendemos que a principal contribuição da filosofia
da existência em diálogo com a fenomenologia é a ênfase na
categoria de “historicidade” como o fundamento ontológico do
fenômeno histórico, ao passo que o existencialismo enfatiza
o absurdo e a ausência de sentido da experiência histórica
humana (MENDES 2018). A relação entre os autores da
chamada filosofia da existência e o existencialismo francês
não costuma ser nada amistosa. Além da célebre desavença
entre Heidegger e Sartre, em uma carta enviada a Jean

444 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

Wahl em 1937, Karl Jaspers chega ao ponto de afirmar


que “o existencialismo é a morte da filosofia da existência”
(JASPERS apud DOSSE 2017, p. 33).

Na segunda metade da década de 1940, Jean-Paul Sartre já


figurava como uma estrela cujo brilho irradiava para além dos
confins filosóficos na França, a tal ponto que, de acordo com
Dosse (2008), havia se tornado uma importante expressão da
sede de viver após “os longos anos negros da guerra”. O sucesso
da vaga existencialista no pós-guerra pode ser interpretado
à luz das circunstâncias históricas, pois naquele momento
a sensação era de perda de significação objetiva do mundo
(essência) e consciência da insensatez da existência (absurdo)
(RODRIGUES DA SILVA 2002). Todavia, é preciso ressaltar que
“a variedade francesa de existencialismo na versão defendida
por Jean-Paul Sartre não é a única que se encaixa sob o termo 7 “Gabriel Marcel é de
longe a pessoa com
existencialismo” (TIETZ 2012, p. 155). Paul Ricoeur, por quem tive a relação
exemplo, aproximou-se mais de Gabriel Marcel7, considerado mais profunda, desde
o meu ano de agrega-
como o expoente do existencialismo cristão na França. ção, em 1934-1935,
e mais tarde ainda,
Mais do que isso, Dosse (2008) aponta que o sucesso de maneira episódica
até à sua morte, em
de Sartre no cenário francês teve como contrapartida o 1973”. (RICOEUR
ocultamento de dois fenômenos correlacionados: 1) O 1997, p. 40).

pluralismo de correntes filosóficas que reivindicavam a noção


de “existência”; 2) A precedência das “filosofias da existência”
que remontam ao período anterior à segunda guerra como a de
Jaspers e Kierkegaard. Na nossa interpretação, a compreensão
acerca do problema do sentido é um dos fatores que melhor
explicam a distância da filosofia da existência de Ricoeur em
relação ao existencialismo de Sartre. Como se sabe, o absurdo
figura como um componente notável da filosofia sartreana,
sobretudo em sua primeira fase. A ideia de absurdo presente
tanto em Sartre, como em Albert Camus, contrapõe-se à
crença, típica das filosofias especulativas da história, segundo
a qual existe uma racionalidade subjacente aos fenômenos cujo
desenvolvimento histórico estaria caminhando em direção ao
aperfeiçoamento progressivo (WICKS 2012). Sob os efeitos da
experiência de duas guerras mundiais, a leitura da filosofia e da

445 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

literatura de orientação existencialista evidencia o absurdo8 da


condição humana e a falta de sentido da história. Vale retomar
aqui a distinção apresentada por Koselleck (2013) segundo a
qual a ausência de sentido é uma espécie de suspensão do
juízo, nos moldes do ceticismo, quanto a existência do sentido
da história.9

Considerando que a nossa proposta procurará mostrar


como o existencialismo apresenta uma perspectiva antagônica
ao pensamento existencial que Ricoeur desenvolveu sobre
8 “‘O absurdo’ geral-
o sentido e a história, subscrevemos a leitura de Hayden mente refere-se à ex-
White em O fardo da história (1966), para quem a literatura periência de ausência
de base, de contin-
existencialista estava inserida em um contexto cultural gência ou de super-
de hostilidade a uma certa concepção de história. Como os fluidade com relação
aos aspectos básicos
estudos históricos ocupavam papel de destaque na visão de da ‘condição humana’
mundo humanista da belle époque, eles se tornaram um dos que, aparentemente,
deveriam estar aber-
alvos mais vilipendiados por aqueles que perderam a fé na tos para a justificação
capacidade humana de compreender e melhorar sua situação racional” (SHERMAN
2012, p. 256).
(WHITE 2014).
9 Para Koselleck
Seguiremos, então, a trilha proposta por White quando ele (2013, p. 79) existe
uma diferença entre
afirma que a hostilidade à história tornava-se manifesta no modo as categorias de au-
como a figura do historiador era representada nos romances sência de sentido e
sem sentido: “ausên-
para exprimir algo como uma “sensibilidade reprimida”. Ora, cia de sentido’ é uma
o protagonista de A Náusea (1938) de Jean-Paul Sartre é o expressão neutra que
evita a questão do
solitário historiador Antoine Roquentin que evidencia, para ‘sentido”, ao passo
nós, a incredulidade da primeira fase do pensamento sartreano que o “‘sem sentido’,
enquanto negação de
diante do sentido e da história. Roquentin é um intelectual sentido, fica referido
com cerca de trinta anos de idade imerso em uma profunda ao âmbito daquilo que
tem sentido”.
angústia e perplexidade diante da ausência de sentido da vida.
No enredo, ele está a se dirigir para Bouville com o objetivo
de escrever a biografia do Marquês de Rollebon. Sua crise
existencial é inseparável de suas dúvidas em relação ao ofício
historiográfico. À medida que a narrativa avança, Roquentin se
depara com o sabor azedo da pesquisa, que, de modo nenhum,
está ligado à falta de documentação. Ao contrário, é a própria
natureza do discurso histórico que parece incerta e carente de
significado (SARTRE 2015).

446 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

Durante sua estadia na pequena cidade francesa de Bouville,


Roquentin começa a ter uma experiência de estranhamento
com o mundo, a náusea. Este mal-estar se expressa em
uma sensação aguda de que as coisas não vão nada bem e
conduz à desorientação existencial. Para nossos desígnios
interessa a interpretação segundo a qual a náusea tem em seu
horizonte um hiato entre existência e aventura, cujo corolário
é a contradição entre história e narrativa. Donde surge a
questão “como é possível que a existência seja contraposta
à narrativa que se pode fazer dessa mesma existência”?
(SILVA 2010, p. 70). Roquentin se ressente, então, de ter
vivido apenas histórias, incidentes sem significado intrínseco
e não aventuras. A aventura, aliás, parece existir tão somente
no mundo das letras. Portanto, ele conclui:

Para que o mais banal dos acontecimentos se torne uma aventura,


é preciso e basta que nos ponhamos a narrá-lo. É isso que ilude
as pessoas: um homem é sempre um narrador de histórias,
vive rodeado por suas histórias e pelas histórias dos outros, vê
tudo o que lhe acontece através delas; e procura viver sua vida
como se a narrasse. Mas é preciso escolher: viver ou narrar
(SARTRE [1938] 2015, p. 50).

Nem sempre o caminho mais curto leva a um bom lugar. Nesse


momento, ficamos tentados a desenvolver aquilo que Quentin
Skinner (2005) enunciou como mitologia das consequências de
prolepse, isto é, buscar o sentido do texto nas consequências
que suas ideias geraram. Neste atalho, a contraposição entre
as filosofias de Jean-Paul Sartre e de Paul Ricoeur ficaria fácil,
pois o fenomenólogo-hermeneuta, sobretudo a partir da década
de 1980, passou a defender a existência de uma narratividade
incoativa na experiência humana, ou seja, a vida humana não
seria totalmente desprovida de sentido, mas uma história em
estado nascente. Por enquanto, ressaltaremos somente que,
na perspectiva ricoeuriana, não há uma oposição entre a
existência e a elaboração de sentido produzida pela linguagem
narrativa.

447 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

Como se sabe, na década de 1980, o debate sobre


a continuidade/descontinuidade entre o mundo real e a
narrativa ganhou evidência, sobretudo, a partir das reflexões
de David Carr. A abordagem ontológica existencialista de
acordo com a qual a existência humana é um absurdo, um
amontoado de contingências sem qualquer significado, tem
como corolário epistêmico uma dicotomia entre existência
e linguagem, entre a experiência temporal e a narrativa,
pois, nessa lógica, “é preciso escolher: viver ou narrar”
(SARTRE [1938] 2015, p. 50). Em contrapartida, na teoria da
ação ricoeuriana existe uma potencialidade de sentido que
confere inteligibilidade à ação, graças ao simbolismo imanente
à experiência: “se, com efeito, a ação pode ser narrada, é
porque ela já está articulada em signos, regras, normas: está
desde sempre simbolicamente mediatizada” (RICOEUR 1991a,
tomo 1, p. 100-101). Quanto a isso, destacamos que o desejo
de conciliar o caráter epistemológico da operação narrativa na
escrita da história com o seu alcance ontológico aproxima Paul
Ricoeur de David Carr. À primeira vista, ambos parecem ter um
inimigo comum, a saber, aquelas perspectivas que advogam
uma insuperável descontinuidade entre experiência e narrativa,
tal como Louis Mink para quem: “estórias não são vividas,
mas narradas. A vida não possui inícios, meios ou fins” (MINK
1970, p. 557). No entanto, a equivalência entre o approach
fenomenológico de Carr e o fenomenológico-hermenêutico
de Ricoeur é apenas aparente. De modo um tanto quanto
surpreendente, Carr apresenta sua leitura de Tempo e narrativa,
afirmando que o livro de Ricoeur, apesar de pretensamente ser
contrário à abordagem standard caracterizada pela cesura entre
narrativa e mundo real, estaria mais próximo da perspectiva
de Mink e White do que o filósofo francês gostaria.

Em uma mesa redonda ocorrida na Universidade de


Otawa em 1985, por ocasião do lançamento do primeiro volume
da trilogia ricoeuriana, Carr demonstrava certa hesitação
ao tratar dos argumentos de Ricoeur, pois esses pareciam
escapar ao modo como ele formulara a questão sobre a
continuidade ou a descontinuidade entre narrativa e mundo

448 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

real. No entanto, a divergência entre as teses de Carr e de


Ricoeur parece ser menos de conteúdo do que de método. Não
obstante ambos compartilhem dos alicerces fenomenológicos
assentados por Husserl, cada um tem suas próprias
idiossincrasias. Carr parece ser mais afeiçoado à variante
eidética da fenomenologia, ao acreditar na possibilidade de
um acesso imediato aos fenômenos sem a necessidade de
um desvio linguístico pela semântica da ação. Ricoeur, por
seu turno, mostra-se afinado com o enxerto hermenêutico na
fenomenologia e investe com afinco na mediação linguística
como possibilidade de compreensão e de aumento dos sentidos
da experiência (Cf. CARR, RICOEUR, TAYLOR 1991).

Em vez de trilhar o atalho da prolepse, preferimos seguir


por outra vereda. Sendo assim, procuraremos deslindar o
pressuposto subjacente à filosofia sartreana enunciada pelas
palavras de Roquentin: o abismo entre existência e aventura,
história e narrativa, os quais parecem, no fim das contas,
reverberar uma dicotomia entre existência e linguagem. Sob
o nosso ponto de vista, essa fenda repousa no pressuposto da
ausência de sentido da vida e da história. A existência é entendida
como um amontoado de contingências sem significado, posto
que não há um projeto que permita delimitar o início ou fim de
uma experiência. Todos os dias são igualmente enfadonhos:

Quando se vive, nada acontece. Os cenários mudam, as pessoas


entram e saem, eis tudo. Nunca há começos. Os dias se
sucedem aos dias, sem rima, nem razão: é uma soma monótona
e interminável. De quando em quando se procede a um total
parcial, dizendo: faz três anos que viajo, três anos que estou
em Bouville. Também não há fim. (...) Depois disso, o desfile
recomeça, voltamos a fazer as contas das horas e dos dias.
Segunda, terça, quarta. Abril, maio, junho. 1924, 1925, 1926.
(SARTRE 2015, p. 51)

A implicação ontológica dessa reflexão se configura


como uma objeção contra a teleologia no plano da existência
humana. A contingência e a falta de sentido da vida impedem
que haja começos e fins reais na experiência; apenas no plano

449 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

epistemológico-narrativo a existência pode ser configurada


como uma aventura em que há um desígnio desde o princípio a
se realizar na história, conduzindo-a para um fim significativo.
A fissura entre a história como processo dos acontecimentos
humanos e a narração revela a gratuidade da existência: não
há nenhuma necessidade que ligue o anterior ao posterior, não
existe algum enredo preestabelecido para a história, não há
razão de ser para nada.

John Davenport, em sua pesquisa Narrative identity:


autonomy and mortality, frisa que a posição de Sartre e de
outros existencialistas contribuiu para que as histórias de vida
fossem concebidas como “ficções”, visto que as vidas reais
seriam mais fragmentadas, episódicas e descontínuas do que as
narrativas mostram. Para Davenport, a perspectiva sartreana
está na base do “construtivismo ficcionalista”, no que diz
respeito ao problema da identidade (DAVENPORT 2012). Nessa
perspectiva, a descontinuidade entre a narrativa e a realidade
se traduz no adágio: as histórias não são vividas, mas narradas
(Stories are not lived, but told) repetido no século XX por nomes
da envergadura de Hayden White, Lévi-Strauss e Louis Mink.
O construtivismo entende que a estrutura formal da narrativa
que contém: início, meio, fim, enredo, narrador e personagens
não teriam nenhuma correspondência com o modo como as
experiências são vividas. Por ora, importa-nos salientar que
o existencialismo sartreano interdita a presença de algum
sentido no plano ontológico da experiência, acantonando-o ao
plano epistemológico da reflexão e da linguagem.

No romance em questão, há uma corrosão da História


como uma aventura plena de heróis e palco das grandes ações
em favor de uma história imersa na contingência com muito
mais dúvidas do que certezas. Na medida em que Roquentin
se defronta com a vertiginosa descoberta da contingência do
mundo, ele também se depara com a ausência de conexão
lógica entre os fatos históricos. Sintomaticamente, esse
processo acarreta uma importante mudança de planos: no
exercício da sua liberdade, o protagonista abandona o projeto

450 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

inicial de uma escrita historiográfica da vida de Rollebon – que


agora se mostrava carente de sentido, e abraça a prosa ficcional
(SOUZA 2009). Assim, Roquentin descobre que tentar conferir
sentido à vida do marquês e escrever um romance ficcional
eram a mesma coisa, porque sempre que tentamos narrar um
evento já estamos alterando a sua forma: “os acontecimentos
ocorrem num sentido e nós os narramos em sentido inverso”
(SARTRE [1938] 2015, p. 51).

Já está claro que o levante de Sartre não se dirige contra


a história em si, mas contra uma das formas pelas quais ela
foi entendida: um processo racional, cheio de sentido, bem
encadeado e desprovido de contingências; um enredo que
tecia elogios aos grandes homens de ação (SOUZA 2009).
A náusea nos permite compreender, ainda, que, para Sartre, a
ausência de sentido da existência impede qualquer possibilidade
de totalização na história, afinal a existência mostra que o
essencial é a contingência. Para ele, a máxima “a existência
precede a essência” presume que, antes de tudo, o ser humano
é nada. Isso significa que, primeiramente, o homem existe,
está aí lançado no mundo. Qualquer definição ou predicamento
antropológico só podem ser realizados a posteriori.
Por não ser nada, a priori, por não ter uma natureza humana
fixa, o homem nada é além do que ele faz consigo mesmo
(SARTRE [1946] 2010, p. 25).

Conforme dissemos há pouco, durante o período de maior


prestígio do existencialismo sartreano, Ricoeur mantinha
estreitas relações com outro existencialista, Gabriel Marcel,
participando, inclusive dos seminários filosóficos que esse
promovia em seu apartamento parisiense às sextas-feiras.
Mais do que uma questão de mera afinidade pessoal, parece-
nos que uma opção filosófica explica certas aproximações e
distanciamentos intelectuais. Marcel procurou articular o
existencialismo à metafísica cristã e não estava fechado às
possiblidades de sentido existencial. Ao que parece, as relações
entre Marcel e Sartre eram tensas. Segundo Ricoeur, “Sartre
(...) o desprezava, ao passo que Gabriel Marcel o admirava

451 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

apesar de com ele se escandalizar” (RICOEUR 1997, p.41).


Para nós, a vivência nesse ambiente cultural é um dos motivos
que ajudam a entender a dissonância velada entre Ricoeur e o
autor de O ser e o nada:

Sartre era um assunto permanente de escândalo, não somente


por causa do seu ateísmo, mas também porque professava
a ideia de que o homem é o nada das coisas. Gabriel Marcel
não podia de modo algum admitir isso. Talvez o meu fraco
interesse por Sartre se deva um pouco a Gabriel Marcel,
apesar de o atribuir à minha preferência por Merleau-Ponty
(RICOEUR 1997 p. 41, grifos nossos).

Em vez de aprovar a distinção sartreana entre


“existencialismo cristão e ateu”, Paul Ricoeur – que, certa
feita, conforme destacado por Dosse (2008, p. 20), teria
recebido de Sartre a alcunha “um padre que se ocupa de
fenomenologia” prefere defender que o existencialismo jamais
deixou de se mover sobre o terreno da problemática religiosa,
já que seria uma ilusão postular uma filosofia “neutra” da
existência. Para Ricoeur, “não existe existencialismo puro, isto
é, existencialismo puramente descritivo, mas existencialismos;
e estes existencialismos, em sua grande parte, refletem as
diferenças de atitudes religiosas” (RICOEUR 1949, p. 51).
Bem entendido, a proposta ricoeuriana de maneira nenhuma
implica em uma espécie de “síntese preguiçosa”, ou mesmo,
justaposição homogeneizante entre um pensamento cristão
e um pensamento ateu (DOSSE 2008). Um exemplo disso,
de acordo com o próprio filósofo, seria o teólogo que faz da
filosofia existencial uma espécie de “preparação negativa” para
suas conclusões a tal ponto, que o pensamento de Sartre, por
exemplo, se limitasse a uma expressão da miséria do homem
sem Deus. No entendimento ricoeuriano, esse “sincretismo
frouxo” merece ser criticado severamente.

Em relação ao distanciamento entre Ricoeur e Sartre,


subscrevemos a assertiva de Dosse, quando ele afirma que as
reservas ricoeurianas eram de diversas ordens. Discordamos,

452 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

porém, quando ele arrola entre os motivos o caráter mais literário


que conceitual do autor da Náusea. Ora, desde a Simbólica do
mal ([1960] 2013), Ricoeur se mostra bastante à vontade com
o uso de fontes literárias para o exercício filosófico. Além disso,
em 1951, ele publicou uma análise sobre a peça de teatro O
diabo e o bom Deus de autoria sartreana. Como tentamos
apresentar anteriormente, o contraponto entre os filósofos se
explica por razões de ordem filosófica articuladas com questões
de afinidade intelectual. Com efeito, Ricoeur não coaduna
com a valorização do nada como a dimensão fundamental da
condição humana. No último capítulo da segunda edição de
História e verdade, por exemplo, ele expõe claramente suas
ressalvas em relação às filosofias que, depois de Hegel, fizeram
“da negação o eixo da reflexão ou chegam mesmo a identificar
a realidade humana à negatividade” (RICOEUR 1955, p. 378).
O principal mérito dessas filosofias seria a proposta de uma
filosofia do ser sem lançar mão de essências.

Basicamente, neste artigo “Negação e afirmação originária”,


o filósofo francês irá propor que o ser tem prioridade sobre
o não ser; a afirmação precede a negação. Mais do que
isso, nele podemos constatar uma premissa que perpassa o
pensamento ricoeuriano: é possível alcançar algum sentido no
plano da existência, isto é, sempre há algum sentido a ser
encontrado seja na existência individual, seja na realidade
histórica. Apesar da presença do absurdo, subsiste o sentido.
Portanto, a negação está subordinada à afirmação
originária: “a afirmação é a convicção de que a totalidade
da vida e da realidade não são absurdas e sem sentido”
(VAN LEEUWEN 1981, p. 33). Nessa perspectiva, o
principal problema da ontologia fenomenológica de
O ser e o nada residiria em uma concepção de “ser”
por demais pobre, posto que iguala o “ser em si” a um
dado bruto, uma essência sempre idêntica a si mesma.
O corolário dessa leitura é o questionamento da oposição:
liberdade (existência/nada) versus essência. Uma concepção
mais rica de ser leva em conta a negatividade, sem
incorrer em essencialismos metafísicos, nem, tampouco,

453 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

na nadificação ontológica. O ponto cego na ênfase sobre


o nada seria, precisamente, a alteridade: “o momento de
redução do dado ao nada (néantisation) é sempre obscurecido
por uma vontade culposa de aniquilação de outrem”
(RICOEUR 1955, p. 400).

No campo da história intelectual, precisamos destacar, uma


vez mais, que Jean-Paul Sartre e Paul Ricoeur pertenciam a
espaços de sociabilidade bem distintos. O primeiro grassava
na cena parisiense; ao passo que o segundo estava instalado
em Estrasburgo. Não chegaram a se conhecer pessoalmente.
A única ocasião na qual, segundo Ricoeur, ambos poderiam
ter travado uma relação mais próxima foi um sonoro
desencontro. Entre 1963 e 1964, ele e Dufrenne haviam
dedicado um ano de discussão sobre o Questão de método
de Sartre no grupo de filosofia da revista Esprit. Ao fim
desse período, o autor da Náusea foi convidado para
uma sessão de debate para a qual foram preparadas
previamente doze questões. O desfecho indica bem o tom do
desentendimento. Vejamos o relato do ocorrido do ponto de
vista ricoeuriano:

Tínhamos, portanto, convidado Sartre e preparado doze questões.


Para responder à primeira, ele falou durante duas horas e meia;
nunca podemos, portanto, apresentar-lhe a segunda! (...) Nas
controvérsias que o opuseram a Camus e, depois, a Merleau-
Ponty, coloquei-me do lado deles (RICOEUR 1997, p. 44, grifos
nossos).

O absurdo, o niilismo e a crítica às filosofias da


história de Camus
A obra que marcou a desavença entre Sartre e Camus, O
homem revoltado (1951) também foi objeto de apreciação da
parte de Ricoeur. A tônica desse texto, (originalmente publicado
em 1956) que leva o mesmo título do livro em análise, recai
sobre o sentimento de absurdo em estreita ligação com o

454 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

niilismo e, portanto, diz respeito, diretamente, ao problema


do sentido. Em termos estritamente etimológicos, o niilismo
poderia ser identificado como um pensamento obcecado pelo
nada (nihil – nada, em latim). Em termos filosóficos, ele remete
a uma situação histórica de desnorteamento provocada pelo
declínio dos valores e das referências tradicionais, que traziam
respostas para orientar e prover sentido para a experiência
humana. Em poucas palavras, “quando falta um sentido, quando
o porquê não obtém resposta, o niilismo certamente aparece”
(VOLPI 2012, p. 16-17, grifos nossos). Para o existencialismo,
a ausência de uma transcendência ou essência lança o homem
em sua liberdade, mas também na angústia e no absurdo.
Como conceito, o niilismo não aparece explicitamente na
filosofia sartriana, não obstante seu realce sobre o tema do
nada e da negatividade. Já em Camus, a démarche niilista
caminha de mãos dadas com a existencialista, como podemos
ver logo na introdução do seu Homem revoltado: “Se não
se acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos
afirmar nenhum valor, tudo é possível e nada tem importância”
(CAMUS 2010, p. 15, grifos nossos).

A ausência de sentido está no coração do sentimento


de absurdo definido por Camus como o confronto entre a
interrogação humana e o silêncio do mundo. Quanto a isso,
Ricoeur observa que o homem revoltado está à margem da
consolação experimentada por Jó, personagem bíblico que,
em sua interpretação, também conheceu o absurdo, porém
não deixou de descobrir o seu sentido oculto. Na sua leitura, a
temática da revolta expressa a tentativa de Camus em não se
isolar na negatividade como seria o caso de Sartre. O homem
revoltado é alguém que diz não, mas também diz sim, porque
a revolta não ocorre sem o sentimento de que se tem razão,
de que se tem direito a alguma coisa. O próprio movimento
de revolta envolve um juízo de valor e, porque não dizermos,
de sentido, embora a recíproca não seja verdadeira: nem todo
juízo de valor se configura em uma revolta. A revolta metafísica
é uma contestação do homem contra sua condição e contra a
criação. “Assim Camus tenta passar do sentimento subjetivo do

455 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

absurdo à descoberta de um valor positivo comum; a revolta


seria essa experiência decisiva que vai de um “eu sofro” a um
“nós valemos” (...) (RICOEUR 1996a, p. 83).

Para nossos objetivos o mais importante é avaliar as


implicações desses raciocínios para o problema do sentido e
da filosofia da história. Na concepção de Camus, existe uma
“potência assassina nas filosofias da história”. Esse aspecto,
aliás, é apontado por Ricoeur como o ponto central de todo o
livro. No contexto da Guerra Fria, o alvo da crítica camusiana
incidia sobre as esperanças messiânicas depositadas na história
como uma espécie de salvação para toda a humanidade.
Assim, a transcendência vertical teria sido trocada por uma
religião horizontal; o paraíso celeste por um futuro utópico.
A “divinização da história” aparece em O homem revoltado
como sendo complacente com a história dos vencedores. Ou
seja, nessa perspectiva, a tese central da filosofia da história
hegeliana de que o desenvolvimento histórico é governado pela
razão seria uma legitimação do rumo que os acontecimentos
tomaram. “O vencedor tem sempre razão, esta é uma das
lições que se pode tirar do maior sistema alemão do século
XIX” (CAMUS 2010, p. 165). Esta “lógica da história” justificaria
mesmo as atrocidades mais violentas do processo histórico,
pois elas seriam um “mal necessário” para o avanço da marcha
do espírito em direção à liberdade.

Agora, importa-nos pensar as implicações deste debate


para a nossa investigação. Em primeiro lugar, não podemos
deixar de observar que o ambiente histórico da Guerra Fria foi
importante para o clima de suspeita em relação às filosofias
especulativas da história e sua associação direta ao terror.
O homem revoltado veio a lume ainda sob o impacto da
descoberta dos campos de extermínio e dos gulags stalinistas.
Sem dúvida, esse ambiente contribuiu para que Ricoeur não
tenha aderido estritamente a essa modalidade de filosofia da
história. Em segundo lugar, cabe perguntar: quais foram as
ressonâncias existenciais na filosofia ricoeuriana da história?
Quanto a isso, a importância da contingência, certamente, não

456 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

pode ser esquecida; a possibilidade de o homem, enquanto um


ser histórico, criar sentidos para a sua experiência temporal
talvez seja uma das heranças existenciais mais significativas,
conquanto, Ricoeur nunca tenha subscrevido a cisão sartriana
entre vivência e narração. Na esteira dos pensadores da
existência, Paul Ricoeur também se manteve de sobreaviso
contra as filosofias que pretenderam sistematizar de modo
absoluto o sentido da história. Nos últimos parágrafos de
seu comentário ao Humanismo e terror de Merleau-Ponty
encontramos, em límpidas palavras, suas reservas em relação
aos sistemas:

É possível que atualmente seja preciso renunciar a englobar a


história num único sistema. O fanatismo também se encontra
no final desse caminho dos sistemas que se fecham muito
rapidamente. (...) Talvez seja verdade que na história existam
visões parciais e múltiplas que não constituem sistema. (...) E,
sobretudo, existem outras maneiras de ‘compreender’ diferentes 10 Em ensaio publi-
cado recentemente,
do modo hegeliano-marxista. (RICOEUR 1996b, p.115-116).
sintetizamos em cinco
tópicos as implicações
da filosofia da exis-
tência para a filosofia
da história, (cf. MEN-
Considerações finais: existencialismo, filosofia da DES 2018).
existência e historiografia
Por fim, após percorrermos esse trecho do caminho surge
uma nova questão: de que maneira a onda existencialista afetou
a historiografia?10 Verdade seja dita, a bibliografia que associa
diretamente as duas áreas está longe de ser extensa. Ainda assim,
o que mais nos interessa no momento é a relação dos historiadores
com o paradigma existencialista durante o seu apogeu na
França nas décadas de 1940 e 1950. O principal historiador
a tocar no tema é historiador Henri-Irene Marrou (1904-1977),
à memória de quem, diga-se de passagem, Ricoeur dedicou o
primeiro tomo de Tempo e narrativa. Nas reflexões contidas em
Do conhecimento histórico (1954), Marrou alerta para os riscos
da ênfase excessiva no caráter existencial da história. Desse
modo, percebemos que existiam disputas teóricas e intelectuais
em torno das reflexões sobre a temática do existencialismo

457 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

no contexto francês. Isso nos ajuda a compreender, inclusive,


um dos motivos pelos quais Ricoeur, não obstante seja um
pensador da existência, não tenha incorporado as premissas
de Sartre em sua filosofia da história, especialmente no que diz
respeito ao problema do sentido.

Outro ponto levantado pelo historiador francês é que a


ênfase excessiva no plano existencial e nas preocupações do
presente do historiador podem comprometer a “realidade da
história” que, para ele consiste na “saída de nós mesmos”,
no enriquecimento do ser pelo encontro com o outro. Ricoeur
apresenta uma compreensão semelhante em História e
verdade, mas com um vocabulário fenomenológico. Isto é, a
“realidade da história” não depende apenas do encontro da
existência consigo mesma, mas de uma orientação centrífuga,
uma abertura para a alteridade, que exige, segundo Marrou,
uma contenção de nossas preocupações existenciais. Aliás, em
uma nota de rodapé da obra História e verdade, Ricoeur remete
ao seu próprio artigo Da lógica à ética em História, afirmando
que nele expressa sua “substancial concordância com o livro de
H. I. Marrou, Do conhecimento histórico, ed. du Seuil, 1954”
(RICOEUR 1955, p. 38, nota 1).

Entretanto, conhecer os limites de uma abordagem não


é sinônimo de diminuir a sua pertinência; pelo contrário, o
próprio Marrou, em sua filosofia crítica da história, sustentava
que a utilidade da história para a vida reside em seu sentido
existencial: “o passado só pode ser conhecido se, de alguma
maneira, se encontra em relação com a nossa existência”
(MARROU s.d., p. 225). De modo semelhante, Paul Ricoeur,
especialmente em uma obra que escapa ao recorte cronológico
do presente artigo, Tempo e narrativa, sublinha que a conexão
entre a narrativa e a experiência temporal implica que os sentidos
produzidos narrativamente podem iluminar e enriquecer a
existência de sentido e inteligibilidade. Portanto, ao contrário
do que afirmava Sartre em A náusea, para Ricoeur, a narrativa
é mais do que um expediente linguístico que produz significado
para uma existência desprovida de qualquer sentido.

458 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

REFERÊNCIAS

BADIOU, Alain. As aventuras da filosofia francesa no


século XX. Tradução de Antônio Teixeira, Gilson Iannini.
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015.

BARASH, Jeffrey Andrew. Paul Ricoeur e a questão


concernente à realidade do passado histórico.
In: NASCIMENTO, Cláudio Reichert; WU, Roberto. Pensar
Ricoeur: vida e narração. Porto Alegre: Clarinete, 2016.

CAMUS, Albert. O homem revoltado. Tradução de Valerie


Rumjanek. 8ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2010.

CARVALHO, José Maurício de. Karl Jaspers: as bases da


orientação científica para viver. Um diálogo com Kant.
Haser. Revista Internacional de Filosofia Aplicada, n.
7, p. 111-144, 2016.

DAVENPORT, John. Narrative identity, autonomy and


mortality. From Frankfurt and MacIntyre to Kierkegaard.
New York: Routledge, 2012.

DOSSE, François. Paul Ricoeur: Les sens d’une vie (1913-


2005). Paris: La Découverte, 2008.

DOSSE, François. Paul Ricoeur: um filósofo em seu


século. Tradução de Eduardo Lessa Peixoto de Azevedo.
Rio de Janeiro : FGV Editora, 2017.

FERRY, Luc; RENAULT, Allain. Pensamento 68: ensaio


sobre o anti-humanismo contemporâneo. São Paulo:
Ensaio, 1988.

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos: arqueologia das


ciências e história dos sistemas de pensamento. Volume
2. MOTA, Manoel Barros da (org). 2ª edição. Tradução de
Elisa Monteiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.

459 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

GRONDIN, Jean. Paul Ricoeur. Tradução de Sybil Safdie


Douek. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

JASPERS, Karl. La filosofia. Tomo 1. Madrid; San Juan;


Puerto Rico: Ediciones de la Universidad de Puerto Rico,
1958.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado – contribuição


à semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma
Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro:
Editora PUC-Rio/Contraponto, 2006.

KOSELLECK, Reinhart. Sentido y repetición en la


historia; con prólogo de Reinhard Mehring. Buenos Aires:
Hydra, 2013.

MARROU, Henri. Do conhecimento histórico. Lisboa:


Editorial 233Aster, S/D.

MENDES, Breno. Existência e linguagem: o problema


do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur.
Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2019.

MENDES, Breno. Existencialismo, filosofia da existência e


filosofia da história. In: CARVALHO, Augusto de; MENDES,
Breno; RAMALHO, Walderez. (Org.). Sete ensaios sobre
história e existência. 1 ed. Porto Alegre: Editora Fi, 2018.

MINK, Louis. History and Fiction as Modes of Comprehension.


New Literary History, v. 1, n. 3, 1970.

NASCIMENTO, Cláudio Reichert; WU, Roberto. Pensar


Ricoeur: vida e narração. Porto Alegre: Clarinete, 2016.

PATOČKA, Jan. Essais heretiques sur philosophie


de l’histoire. Preface: Paul Ricoeur. Postface: Roman
Jakobson. Traduction by Erika Abrahms. Lagrasse: Verdier,
1999.

460 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

PEACH, Filiz. Phenomenology, history and historicity in Karl


Jasper’s Philosophy. Analecta husserliana. The yearbook
of phenomenological research, v. LXXXX, p. 45-64, 2006.

PETIT, Jean-François. Histoire de la philosophie


française au XXe siècle. Paris: Desclée de Brouwer,
2009.

PORÉE, Jérôme. L’existence vive: douze études sur


la philosophie de Paul Ricoeur. Strasbourg: Presses
Universitaires de Strasbourg, 2017.

RICOEUR, Paul; CARR, David, TAYLOR, Charles. Discussion:


Ricoeur on Narrative. In: WOOD, David (Org.). On Paul
Ricoeur: narrative and interpretation. London: Routledge,
1991b. 

RICOEUR, Paul. A crítica e a convicção. Trad. António


Hall. Lisboa: Edições 70, 1997.

RICOEUR, Paul. A simbólica do mal. Tradução de Hugo


Barros e Gonçalo Marcelo. Lisboa: Portugal, 2013.

RICOEUR, Paul. Existential phenomenology. In: RICOEUR,


Paul. Husserl. An analysis of his phenomenology. Evanston:
Northwestern University Press, 1967.

RICOEUR, Paul. From existentialism to the philosophy of


language. Philosophy Today, v. 17, i. 2, Summer, 1973.

RICOEUR, Paul. Histoire et verité. Paris: Éditions du


Seuil, 1955.

RICOEUR, Paul. J’attends la renaissance. Entretien


avec Paul Ricoeur. In: ROMAN, Joel; TASSIN, Etienne.
A quoi pensent les philosophes? Paris: Autrement,
1988. Disponível em: http://www.fondsricoeur.fr/photo/
ATTENDS%20LA%20RENAISSANCE.pdf. Acesso em : 8
abr. 2019.

461 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

RICOEUR, Paul. Karl Jaspers et la philosophie de la


existence. En collaboration avec Mikel Dufrenne. Paris:
Éditions du Seuil, 1947.

RICOEUR, Paul. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris:


Éditions du Seuil, 2000.

RICOEUR, Paul. Le renouvellement du problème de la


philosophie chrétienne par les philosophies de l’existence.
In: BOISET, Jean (org.). Le problème de la philosophie
chrétienne. Paris: Presses Unversitaires de France, 1949.

RICOEUR, Paul. Leituras 1. Em torno ao político. Tradução


de Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 1996a.

RICOEUR, Paul. Leituras 2. A região dos filósofos. Tradução


de Marcelo Perine e Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo:
Edições Loyola, 1996b.

RICOEUR, Paul. Na escola da fenomenologia. Tradução


de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2009.

RICOEUR, Paul. Philosophies critiques de l’histoire:


recherche, explication, écriture. In: FLOISTAD, Guttorm
(Ed.?). Philosophical Problems Today. Boston: Kluwer
Academic Publishers, 1994.

RICOEUR, Paul. Préface. In: PATOČKA, Jan. Essais


heretiques sur philosophie de l’histoire. Préface: Paul
Ricoeur. Postface: Roman Jakobson. Traduction: Erika
Abrahms. Lagrasse: Verdier, 1999.

RICOEUR, Paul. Temps et récit. 3 tomes [1983-1985].


Paris: Éditions du Seuil, 1991a. (Collection Points Essai).

RODRIGUES DA SILVA, Helenice. Sartre e as


metamorfoses intelectuais. In: RODRIGUES DA SILVA,
Helenice. Fragmentos da história intelectual: entre
questionamentos e perspectivas. Campinas, SP: Papirus,
2002.

462 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

ROSSATO, Noeli Dutra. Existência e narração: Agostinho


na leitura de Ricoeur. In: NASCIMENTO, Cláudio Reichert;
WU, Roberto. Pensar Ricoeur: vida e narração. Porto
Alegre: Clarinete, 2016.

RÜSEN, Jörn. Teoria da história: uma teoria da história


como ciência. Tradução de Estevão Rezende Martins.
Curitiba: Editora UFPR, 2015.

SARTRE, Jean-Paul. A náusea. Tradução de Rita Braga.


Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015.

SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo.


Petrópolis: Vozes, 2010.

SHERMAN, David. O absurdo. In: DREYFUS, Hubert


L. e WHRATHALL, Mark A. Fenomenologia e
existencialismo. Tradução de Cecília Camargo Bartaloti e
Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

SILVA, Luciano Donizetti da. A filosofia de Sartre entre


a liberdade e a história. São Paulo: Claraluz, 2010.

SKINNER, Quentin. Significação e compreensão na história


das ideias. In: Visões da política: sobre os métodos
históricos. Algés-Portugal: DIFEL, 2005.

SOUZA, Thana Mara de. A presença da história no “primeiro”


Sartre: Roquentin e a náusea frente a ilusão da aventura
histórica. Princípios, Natal, v. 16, n. 26, jul-dez, p. 87-
105, 2009.

TIETZ, Udo. A filosofia da existência alemã. In: DREYFUS,


Hubert L e WHRATHALL, Mark A. Fenomenologia e
existencialismo. Tradução de Cecília Camargo Bartaloti e
Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2012. p. 155-
176.

463 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Breno Mendes

VAN LEEUWEN, Theodoor Marius. The surplus of


meaning. Ontology and eschatology in the philosophy of
Paul Ricoeur. Amsterdam: Editions Rodopi, B.V., 1981.

VOLPI, Franco. O niilismo. São Paulo: Edições Loyola,


2012.

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre


crítica da cultura. Tradução de Alípio Correia de França
Neto. 2ª edição. São Paulo: Edusp, 2014.

WICKS, Robert. Existencialismo francês. In: DREYFUS,


Hubert L e WHRATHALL, Mark A. Fenomenologia e
existencialismo. Tradução de Cecília Camargo Bartaloti
e Luciana Pudenzi. São Paulo: Edições Loyola, 2012.

464 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
Filosofia da existência, existencialismo e o problema do sentido na filosofia da história de Paul Ricoeur

AGRADECIMENTOS E INFORMAÇÕES

Breno Mendes
mendes.breno@gmail.com
Universidade Federal de Goiás
Goiânia
Goiás
Brasil

Pesquisa financiada pela CAPES/Proex.

Agradeço aos pareceristas anônimos da História


da Historiografia, cujos apontamentos contribuíram
significativamente para a melhoria do artigo.
Agradeço também aos professores Douglas Attila
Marcelino e Ivan Domingues, respectivamente,
orientador e coorientador da pesquisa de doutorado
que originou o presente artigo.

RECEBIDO EM: 13/NOV./2019 | APROVADO EM: 16/JUN./2020

465 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020, p. 431-465 - DOI https://doi.org/10.15848/hh.v13i33.1563
HISTÓRIA DA
467 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

1) As colaborações poderão ser feitas sob as


seguintes formas

1.1. Artigo inédito e original (entre 28.000 e 70.000


caracteres com espaço, incluindo as notas e as referências
bibliográficas).

1.2. Artigos de debate historiográfico que resenhem


criticamente publicações recentes pertinentes aos temas
relacionados com as áreas de conhecimento que configuram o
escopo da publicação. (entre 28.000 e 70.000 caracteres com
espaço, incluindo as notas e as referências bibliográficas). Os
artigos de debates devem ter título, seguido pela referência
bibliográfica completa da obra.

1.3. Resenhas de livros devem ser enviadas para a HH


Magazine - http://hhmagazine.com.br.

2) Informações sobre a submissão

2.1. A História da Historiografia: International


Journal of Theory and History of Historiography não
cobra taxa de submissão, assim como também não cobra taxa
de processamento de artigo (APC).

2.2. Os arquivos enviados deverão estar em formato *.doc


ou *.docx, ou seja, compatíveis com Word.

2.3. Todos os trabalhos submetidos à revista são analisados


por software anti-plágio - Política contra o plágio.

3) Normas de apresentação dos textos

3.1 Os artigos devem conter, no início, resumo (de 700 a


1.050 caracteres com espaço) e três palavras-chave, ambos
seguidos de traduções para língua inglesa. Caso o texto original

468 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

seja em inglês, o artigo deverá ter um resumo em português


ou espanhol.

3.2. Recomenda-se que os autores dividam os artigos


em seções, que devem consistir em títulos explicativos, em
negrito e com maiúscula apenas no início (ou, se nele houver,
substantivo próprio). Em hipótese alguma será aceita a divisão
de seções por algarismo.

3.3. Serão aceitos artigos de debate historiográfico que


resenhem criticamente publicações que tenham sido publicados,
no máximo, há três anos ou então títulos há muito esgotados e
com reedição recente.

3.4. A contribuição deve ser original e inédita, não estar sendo


avaliada por outra publicação e não ter indicação de autoria. Caso
o texto da submissão seja derivado de tese e/ou dissertação, o
autor deverá indicar essa informação no campo ‘Comentários ao
Editor’. Além disto, espera-se que o trabalho traga um avanço
substancial com relação ao que já foi apresentado na tese ou
dissertação, especial, mas não unicamente, em suas conclusões.
Os autores devem excluir todas as informações do arquivo que
possam identificá-los como tal.

3.5. Quando houver financiamento da pesquisa, o autor


deve indicar, em nota de rodapé ligada ao título da contribuição,
a instituição financiadora. E no campo específico no momento
da submissão.

3.6. Os artigos passarão por uma pré-seleção do Conselho


Editorial que avaliará sua pertinência com relação à temática
do periódico. Uma vez aprovados na pré-seleção, serão
encaminhados para pareceristas.

3.7. Todos os artigos, inclusive os submetidos para publicação


em dossiê, serão analisados por, pelo menos, dois membros do
Conselho Consultivo ou assessores ad hoc, que podem, mediante
consideração da temática abordada, seu tratamento, clareza da
redação e concordância com as normas da revista, recusar a

469 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

publicação ou sugerir modificações. Além disso, informamos que


poderão ocorrer mais de uma rodada de avaliação. Os pareceres
têm caráter sigiloso. Ao Conselho Editorial fica reservado o
direito de publicar ou não os textos enviados de acordo com a
pertinência em relação à programação dos temas da revista.

3.8. As palavras-chave devem ser retiradas do banco de


palavras-chave elaborado pelos editores da revista – Banco de
palavras-chave.

3.9. As colaborações devem ser enviadas em Times New


Roman, corpo 12, espaçamento 1,5 e com margens de 3 cm. As
citações com mais de três linhas devem ser recuadas da margem
esquerda (1,5 cm), sem aspas, em corpo 11 e espaçamento
simples.

3.10. Todos os textos deverão ser apresentados após


revisão ortográfica e gramatical. A revista publica contribuições
em português, espanhol e inglês.

3.11. Desde o seu terceiro número a revista História da


Historiografia adotou a nova ortografia estabelecida no Novo
Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Recomenda-se
aos colaboradores a adoção da nova ortografia nos materiais
enviados para avaliação e publicação na revista.

3.12. As notas de rodapé devem ser apenas de caráter


estritamente explicativo, com o tamanho máximo de 260
caracteres com espaço. No geral, recomenda-se a não utilização
de notas e incorporação da informação, da melhor maneira
possível, no corpo do texto.

3.13. As referências devem vir em corpo de texto tendo o


seguinte formato: (ABREU 2005, p. 36). Os links vinculados às
notas devem ser reduzidos com “encurtadores de links”.

3.14. A referência a textos clássicos também deve ser feita


no corpo do texto, com indicações do nome do autor, da primeira
palavra do título da obra (em itálico) e da seção e/ou as linhas

470 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

citadas, tal como nos seguintes exemplos: Aristóteles, Poética


VII; Tucídides, História IV, 49. A referência completa à obra
citada deve aparecer ao final do texto, na lista da bibliografia
utilizada.

3.15. Somente devem ser listadas referências utilizadas no


texto. E a partir de maio de 2019, as submissões deverão ser
apresentadas utilizando a ABNT NBR 6023:2018.

4) Informações sobre a submissão

4.1. Livro

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título da obra em negrito: subtítulo


sem negrito. Tradução de Nome do tradutor. Cidade: Editora,
Ano.

SOBRENOME, Nome. Título da obra em negrito: subtítulo


sem negrito. Tradução de Nome do tradutor. Cidade: Editora,
Ano. DOI XXXX. Disponível em: URL do site. Acesso em: Dia
mês (abreviado) ano.

Exemplos:

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à


semântica dos tempos históricos. Tradução de Wilma Patrícia
Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto;
Editora PUC-Rio, 2006.

RIGNEY, Ann. The Rhetoric of Historical Representation:


three narrative histories of the Frenh Revolution. Cambridge:
Cambridge University Press, 1991. DOI 10.1017/
CBO9780511549946. Disponível em: http://ebooks.cambridge.
org/ref/id/CBO9780511549946. Acesso em: 19 jul. 2012.

471 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

4.2. Livro eletrônico (tipo e-book)

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título da obra em negrito: subtítulo sem


negrito. Cidade: Editora, Ano. E-book. DOI XXXX. Disponível
em: URL do site. Acesso em: Dia mês (abreviado) ano.

Exemplo:

BAVARESCO, Agemir; BARBOSA, Evandro; ETCHEVERRY, Katia


Martin (org.). Projetos de filosofia. Porto Alegre: EDIPUCRS,
2011. E-book. Disponível em: http://ebooks.pucrs.br/edipucrs/
projetosdefilosofia.pdf. Acesso em: 21 ago. 2011.

4.3. Capítulo de livro

Estrutura:

SOBRENOME, Nome (orgs.). Título do capítulo. In:


SOBRENOME2, Nome2 (orgs.). Título da obra em negrito:
subtítulo sem negrito. Cidade: Editora, Ano.

SOBRENOME, Nome (orgs.). Título do capítulo. In: SOBRENOME,


Nome. Título da obra em negrito: subtítulo sem negrito.
Cidade: Editora, Ano.

Exemplos:

LÖWY, Michael. Carga explosiva: o surrealismo como movimento


romântico revolucionário. In: GUINSBURG, J; LEIRNER, Sheila
(orgs.). O surrealismo. São Paulo: Perspectiva, 2008.

RICOEUR, Paul. Fase Documental: a Memória Arquivada. In:


RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento.
Tradução de Alain François. Campinas: Editora da Unicamp,
2007. p. 155–192.

472 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

4.4. Coletânea

Estrutura:

SOBRENOME, Nome (orgs.). Título da obra em negrito:


subtítulo sem negrito. Cidade: Editora, Ano.

Exemplo:

CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.).


Representações: contribuições a um debate transdisciplinar.
Campinas: Papirus, 2000.

4.5. Artigo de periódico

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome do periódico:


subtítulo sem negrito, v. X, n. Y, p. pp-pp, Ano.

Exemplo:

RIGOLOT, François. The Renaissance Crisis of Exemplarity.


Journal of the History of Ideas, v. 59, n. 4, p. 557-563,
1998.

4.6. Artigo de periódico on-line

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome do periódico:


subtítulo sem negrito, v. X, n. Y, p. pp-pp, Ano. Disponível em:
URL do site. Acesso em: Dia mês (abreviado) ano.

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome do periódico:


subtítulo sem negrito, v. X, n. Y, p. pp-pp, Ano. DOI XXXX.
Disponível em: URL do site. Acesso em: Dia mês (abreviado)
ano.

473 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

Exemplo:

ASDAL, Kristin; JORDHEIM, Helge.Texts on the Move: Textuality


and Historicity Revisited. History and Theory, v. 57, n. 1, p.
56-74, 2018. DOI 10.1111/hith.12046. Disponível em: https://
onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/hith.12046. Acesso
em: 9 abr. 2019.

4.7. Texto disponível na internet

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome do Site, dia, mês


(abreviado), Ano. Disponível em: URL do site. Acesso em: Dia
mês (abreviado) ano.

Exemplo:

BENTIVOGLIO, Julio. “Precisamos falar sobre o currículo de


História”. Café História, 15, maio, 2017. Disponível em:
https://www.cafehistoria.com.br/curriculo-de-historia/.
Acesso em: 18 abr. 2018.

4.8. Artigo publicado em anais eletrônico

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO


(EM MAIÚSCULO), número do evento, ano, cidade. Anais [...].
Cidade: Editora, ano, p. pp-pp.

SOBRENOME, Nome. Título do trabalho. In: NOME DO EVENTO


(EM MAIÚSCULO), número do evento, ano, cidade. Anais [...].
Cidade: Editora, ano, p. pp-pp. DOI XXXX. Disponível em: URL
do site. Acesso em: Dia mês (abreviado) ano.

Exemplo:

ARAÚJO, Rodrigo Cardoso Soares de. O polêmico Corsário,


um pasquim da Corte Imperial (1880-1883). In: SEMINÁRIO
DIMENSÕES DA POLÍTICA NA HISTÓRIA: ESTADO, NAÇÃO,

474 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

IMPÉRIO, I, 2007, Juiz de Fora. Anais [...]. Juiz de Fora: Clio


Edições, 2007, p. 500-501.

4.9. Tese acadêmica

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título da tese em negrito: subtítulo sem


negrito. Ano. Tese/Dissertação (Grau em Área do programa) -
Nome do Programa, Universidade, Cidade, Ano.

SOBRENOME, Nome. Título da tese em negrito: subtítulo sem


negrito. Ano. Tese/Dissertação (Grau em Área do programa) -
Nome do Programa, Universidade, Cidade, Ano. Disponível em:
URL do site. Acesso em: Dia mês (abreviado) ano.

Exemplo:

RIBEIRO, Tatiana O. A apódexis herodotiana: um modo de


dizer o passado. 2009. Tese (Doutorado em Letras Clássicas) -
Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.

4.10. Artigo de Jornal

Estrutura:

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome do Jornal, dia


mês (abreviado) Ano. Caderno p. pp-pp.

SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Nome do Jornal, dia


mês (abreviado) Ano. Caderno p. pp-pp. Disponível em: URL
do site. Acesso em: Dia mês (abreviado) ano.

Exemplos:

GLEISER, Marcelo. Newton, Einstein e Deus. Folha de S.Paulo,


13 jun. 2010. Ilustrada, p. A23.

RODRIGUES, Artur. Obra de ficção cria “liminar” e vira


alvo de investigação da PF. Folha.com.br, São Paulo, 11

475 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928
Normas de Publicação

set. 2015. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/


cotidiano/2015/09/1680327-obra-de-ficcao-cria-liminar-e-
vira-alvo-de-investigacao-da-pf.shtml. Acesso em: 11 set.
2015.

4.11. Observações sobre a apresentação das referências:

4.11.1. O In, utilizado na apresentação de capítulos de


livros, é em itálico;

4.11.2. Sempre que utilizar uma referência consultada on-


line, deve-se inserir a URL na parte ‘Disponível em:’ e ‘Acesso
em:’, e caso o documento possua DOI, esta informação deve
ser inserida;

4.11.3. URL de artigos de jornais e textos da internet


devem ser encurtadas, recomenda-se o encurtador https://
bitly.com;

4.11.4. A ABNT NBR 6023:2018 não utiliza mais “______.“


e omite o nome de um autor, o nome deve ser repetido.

4.11.5. Não deve ser utilizado aspas (simples ou duplas)


em títulos de lívros, capítulos ou artigos a menos que o título
tenha, efetivamente, este símbolo.

4.11.6. Caso o tipo de documento que você queria citar


não esteja listado acima, pedimos que consulte a ABNT NBR
6023:2018, caso a dúvida persistir, entre em contato com a
secretaria da revista historiadahistoriografia@hotmail.com.

476 Hist. Historiogr. v. 13, n. 33, maio-ago., ano 2020 - ISSN 1983-9928

Você também pode gostar