A Quimbanda & o Caminho Da MÃ o Esquerda

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FERNANDO DE LIGÓRIO

A QUIMBANDA & O CAMINHO


DA MÃO ESQUERDA
A TRADIÇÃO DAS SOMBRAS
TEXTO 1

O caminho da mão esquerda é um fenômeno religioso, filosófico e es-


piritual presente em muitas culturas desde tempos imemoriais. É
possível encontrá-lo em tradições heterodoxas ou oculto no seio de
muitas tradições ortodoxas. O caminho da mão esquerda ou o cami-
nho sinistro, como modernamente é conhecido, ou a tradição das sombras,
designação que tenho mais carinho e apresso, tem oferecido respostas práti-
cas à emancipação espiritual ou deificação da alma a parte dos métodos or-
todoxos por séculos. Em verdade e tecnicamente, quando usamos expres-
sões como os caminhos da mão esquerda ou direita estamos nos referindo
mais a técnicas de emancipação espiritual do que a doutrinas. O caminho da
mão esquerda, no entanto, oferece perigos reais aos praticantes, porque ne-
gando a participação na engrenagem demiúrgica dos cosmos seus adeptos
podem contar apenas consigo mesmos, com a força do propósito interior ou
vontade para sondar a Escuridão e arrancar de dentro dela a Luz.
Eu tenho jornado pela tradição das sombras desde o início de minha
carreira iniciática. Estive envolvido com o tantrismo vāmācāra da Caxemira
e produzi algum material de valor sobre o tema;1 estive envolvido com um
sistema moderno de mão esquerda, a filosofia de thelema, sobre a qual pro-
duzi livros e vídeos. Pratiquei rituais obscuros envolvendo as qliphoth da
Árvore da Morte e sondando os Túneis de Set através da magia sexual. Tam-
bém produzi bastante material de estudo sobre essa prática espiritual.2 Com
quase trinta anos de envolvimento com a arte negra da tradição das sombras
fui atraído à Quimbanda, um sistema genuíno de feitiçaria tradicional brasi-
leira e o único culto genuíno de mão esquerda do Brasil. O que é o tantra
vāmācāra para os indianos, o culto de Set para os egípcios, o mito de Prome-
teu para os gregos, o culto de Shaitan para os yezides, o culto do diabo para
as feiticeiras, o zoroastrismo para os iranianos etc. é a Quimbanda para os
brasileiros.
Eu repito continuamente que a Quimbanda não se trata de um culto
novo e não contem ou produziu fórmulas mágicas novas. Desde eras pri-
mordiais o homem tem venerado mortos deificados, realizando a eles sacri-

1 Veja srikulacara.blogspot.com.br.
2 Veja os livros de Fernando de Ligório no Clube de Autores.
fícios propiciatórios e oferendas diversas. A Quimbanda, portanto, trata-se
de uma versão brasileira de fórmulas mágicas que são de escopo universal,
utilizadas por inúmeras culturas arcaicas da magia. É por isso que a Quim-
banda funciona, porque ela está alinhada ou contem fórmulas de emancipa-
ção espiritual que são utilizadas por feiticeiros de todas as partes e culturas
há séculos.
Nestes textos da série A Tradição das Sombras, vamos explorar o cami-
nho da mão esquerda, compreende-lo em culturas variadas, criando pontes
que explicam e contextualizam as técnicas de feitiçaria da Quimbanda como
uma genuína arte brasileira de mão esquerda.
Para iniciar essa discussão vamos começar a definir o que são as duas
mãos ou vias de iniciação. Estas definições, no entanto, são de caráter uni-
versal: elas compreendem tanto a Tradição Ocidental de Mistérios quanto a
Tradição Oriental. É difícil em meia dúzia de parágrafos conseguir expressar
o escopo total das filosofias de mão direita e mão esquerda. Dentro desses
dois caminhos de iniciação existem interpretações distintas, umas bem prá-
ticas e outras completamente filosóficas. Desse modo, me proponho a tecer
algumas linhas abordando um plano geral, sem adentrar em especificidades
distintas das escolas dessas tradições.
1. O Caminho da Mão Direita trata-se do alinhamento espiritual com
o/um plano demiúrgico cosmológico. Um adepto da mão direita deseja en-
contrar o seu lugar na grande engrenagem cosmológica do demiurgo criador.
Existe um plano estabelecido e delineado para cada alma encarnada no reino
da geração. Nessa jornada constitui uma tarefa fundamental descobrir qual é
o seu lugar na grande engrenagem do cosmos e cumprir o seu destino. Aqueles
que possuem a fagulha do despertar espiritual e que compreendem a neces-
sidade de um trabalho íntimo sobre a alma, buscam alimentá-la com as vir-
tudes de criaturas espirituais divinas, deuses, anjos, arcanjos e bons daimo-
nes, regências com funções específicas na demiurgia do cosmos.
Em textos anteriores foi esclarecido como a alma se alimenta através
do ochēma.3 Por meio desse mecanismo natural da alma, o adepto da mão
direita invoca as potencias celestiais para carregar seu ochēma de luz, até
que ele se torne reluzente. Na tradição da magia cerimonial, um símbolo per-
feito do ochēma carregado de luz, quando ele se torna um augoeides e deifi-
cador da alma, é a Lamparina Mágica cuja luz nunca pode se apagar dentro
do templo. A luz que a Lamparina Mágica transmite é secreta e trata-se de
uma força oculta geradora. Sobre a Lamparina Mágica Aleister Crowley es-
creveu em LIVRO 4: Esta Lâmpada é a luz da alma pura; ela não tem
necessidade de combustível. Ela é a Sarça Flamejante inconsumível que Moisés
viu, a imagem do Altíssimo. [...] Esta Lâmpada não é feita pela mão humana;
ela existe sozinha para sempre; não tem partes, ou personalidade; é antes do
«Eu Sou». Poucos podem contemplá-la; no entanto está sempre ali. Para ela
não há aqui e nem ali, nem então nem agora todas as partes da linguagem
estão abolidas, a não ser o substantivo; e este substantivo não é encontrado

3 Ochēma, Exu & Sagrado Anjo Guardião, texto presente na coleção O ESPÍRITO DE SÃO CIPRIANO.
quer na fala humana, quer na fala divina. É a Palavra Perdida, cujo sétuplo eco
IAO e AUM são a música moribunda. Sem esta Luz o Magista não poderia
trabalhar; no entanto poucos são os Magistas que souberam dela, e menos
ainda aqueles que contemplaram seu brilho. Infere-se pelas palavras de
Crowley que o augoeides vibra no tom energético de IAO e AUM. Essas são
fórmulas mágicas que representam ou expressam a harmonia perfeita do
cosmos. Fica fácil saber porque o augoeides deifica a alma: porque ela se
harmoniza perfeitamente, nestas condições únicas, a toda estrutura do
cosmos. Então o adepto encontra seu lugar e cumpre com seu destino
derradeiro.4
A característica indelével do caminho da mão direita é sua dependência
das leis divinas e regentes do cosmos. Constitui a tarefa de um adepto da
mão direita se submeter a essas leis para que possa conquistar a harmonia
perfeita com o cosmos. Esse plano divino e determinante do destino de cada
alma pode ser encontrado nas tradições judaicas, cristãs, islâmicas, budista e
bramânica, suas escolas, subescolas e seitas tradicionais, embora seja possí-
vel encontrar grupos de mão esquerda dentro de todas essas tradições.
2. O Caminho da Mão Esquerda trata-se da independência espiritual do
plano demiúrgico cosmológico. O adepto da mão esquerda não está interes-
sado em se alinhar a um plano demiúrgico divino. Ele leva em consideração
a posição do homem e seu impulso inato em direção à liberdade e indepen-
dência para se tornar o Senhor e Regente de seu universo. Essa é a busca
central do adepto de mão esquerda, adquirir independência total do plano
divino de criação.
É o caminho do adversário, uma via de oposição e como tal, o caminho
da mão esquerda é rotulado como maligno, diabólico e macabro. Diferente
do adepto de mão direita, o adepto de mão esquerda não está interessado
em ser o bom moço que mora ao lado, o bom moço para se casar, o filho de
deus, o bom moço de família. Ele não adere ao programa estabelecido e impe-
lido por uma força genuína de seu interior, se rebela contra o sistema.
Seguindo esse ímpeto genuíno de seu interior, o adepto de mão es-
querda segue os impulsos individuais e dinâmicos de sua consciência, abra-
çando completamente o mundo com regozijo e prazer, nos fracassos ou nas
vitórias, nas tristezas ou nas alegrias, nas dores ou no conforto; a existência
humana é aceita como é, às vezes perfeita, às vezes não; às vezes desperta,
às vezes não; às vezes selvagem, às vezes não. Um tântrico vāmācāra na Ín-
dia ou um feiticeiro-kimbanda no Brasil são treinados na sutil arte da adap-
tação, o Solve et Coagula estampado no ícone máximo da tradição de Quim-
banda, a deusa Baphomet. Só os fortes sobrevivem a Natureza, só àqueles
que se adaptam aos seus ciclos em um constante e intenso processo de
transmutação e renovação.

4 Um dos mecanismos utilizados para o despertar da Lamparina Mágica por Aleister Crowley foi a magia sexual
e este é o tema da instrução secreta do VII° Grau da O.T.O.: DE NATURA DEORUM. Veja o meu O OLHO DE HOOR, Vol.
I, No. 10. Disponível no Clube de Autores.
O caminho da mão esquerda é a via da desunião com o cosmos. Um ca-
minho de independência e, portanto, de solidão. Esse é um mecanismo fun-
damental de aprimoramento espiritual. Na solidão o adepto de mão esquer-
da procura refinar e aperfeiçoar suas qualidades paranormais inatas, desen-
volver o Logos (Lúcifer) em condições muito superiores a maioria das pes-
soas. É um caminho de aperfeiçoamento espiritual e despertar das potências
da alma através do trabalho individual para separá-la completamente do
plano demiúrgico de criação em um processo de autodeificação, quer dizer, a
deificação da alma através do despertar da Chama (Luz) Negra ou despertar
do Dragão. Duas características fundamentais fazem do adepto um mago
negro, quer dizer, um mago do caminho da mão esquerda:

1. Autodeificação: o esforço pessoal para deificar a alma, conquis-


tando independência espiritual e uma qualidade desperta ou ilumina-
da do Intelecto, quer dizer, o Logos (Lúcifer). O trabalho de autodeifi-
cação envolve:
Individualismo: a conquista de um intelecto desperto separa o adep-
to de mão esquerda do corpo coletivo de indivíduos engajados na par-
ticipação da demiurgia do cosmos.
Iniciação: a busca permanente pelo aperfeiçoamento e refinamento
das capacidades da alma como meio de evolução e despertar espiritu-
al; a superação das falhas de caráter do Ego corrompido, o equilíbrio e
purificação das emoções e estados mentais. Uma busca contínua pela
evolução e empoderamento pessoal.
Magia: o que envolve o contato com espíritos e a manipulação de
energia (feitiçaria) para fins de evolução e aperfeiçoamento pessoal e
a transformação da realidade conforme a vontade do mago.
Psicurgia: o que envolve o diligente trabalho de aperfeiçoamento
das capacidades psíquicas da alma. O adepto de mão esquerda está
comprometido com o despertar de sua paranormalidade. Nessa jor-
nada, o exercício da psicurgia é fundamental para o desenvolvimento
total do universo subjetivo do mago, garantindo sua independência es-
piritual.
2. Antinomianismo: são práticas espirituais e hábitos pessoais que con-
trariam o status quo cultural mágico-religioso e as normas convencio-
nais morais de bem e mal da sociedade. O adepto da mão esquerda se
identifica – e tem coragem de assumir – com práticas culturalmente
tidas como malignas e impuras. Eles se envolvem geralmente com o
tipo de exercício espiritual culturalmente temido pela grande maioria
das pessoas como, por exemplo, a necromancia ou necrurgia, o conta-
to com espíritos ancestrais, ou a magia sexual.
O termo draconiano se aplica ao adepto de mão negra, geralmente
um expurgo social devido as suas escolhas pessoais, um forasteiro
dentro da própria família. E é preciso que seja assim: na intenção de
adquirir independência espiritual através da iniciação, ele necessita se
isolar; parte de sua conduta antinomiana onde o feio se torna belo, o
mal se torna bom, o impuro se torna puro, as trevas se tornam luz etc.,
lhe serve para cultivar essa separação.
Tecnicamente falando, o antinomianismo é o exercício da quebra de
regras sócio-religiosas de uma cultura. O adepto da mão esquerda é
um criminoso, não no sentido corrente da palavra, mas porque ele tem
coragem de assumir posicionamentos heterodoxos dentro da ortodo-
xia cultural. Da mesma maneira que ele é destemido em quebrar as
leis cósmicas, também o é para quebrar as regras comportamentais de
uma sociedade. Mas nessa jornada quebrando todas as regras sociais
e demiúrgicas, ele busca cultivar um refinado senso de justiça baseado
em fatos naturais, conhecimento e poder. Isso produz um rigoroso có-
digo de ética pessoal que o capacita estar além do corrente bem e mal.
Esse código de ética pessoal, diferente dos códigos de ética dos adep-
tos de mão direita, é baseado no entendimento óbvio e na lucidez so-
bre fatos observáveis, que é o trabalho do Logos (Lúcifer), e não se
trata de seguir cegamente mandamentos cravados em pedra no alto
de uma montanha.

As práticas espirituais tradicionais do caminho da mão esquerda, por exem-


plo, são a necromancia ou necrurgia, o contato com ancestrais para fins de
divinação ou ação de magia, a magia e/ou o misticismo sexual e o uso de
plantas de poder.5 Mas uma característica indelével do caminho da mão es-
querda é sua abordagem pragmática de suas práticas espirituais. Para ser
claro, no caminho da mão esquerda, se um exercício espiritual funciona para
o mago, então não importa sua origem, ele será incorporado no leque de
práticas que o mago executará dali para frente.
Existe também uma profunda discussão sobre magia branca e magia
negra dentro desses dois caminhos. Sobre isso discutiremos em outro mo-
mento. Aqui me refiro a mago negro como o típico adepto da mão esquerda.
E já que definimos concisamente essas duas vias de iniciação, vamos ver
quais elementos da Quimbanda estão em sincronia com o caminho da mão
esquerda.
Antes de iniciarmos é preciso esclarecer: kimbanda é uma arte sacerdo-
tal de cura africana da cultura bantu. O termo vem de kibundo, utilizado para
designar um agente social, um sacerdote-curandeiro que utiliza o poder das
ervas e dos espíritos para o exercício de suas funções. Um kimbanda da cul-
tura bantu tem o mesmo papel de um pajé ou xamã. A Quimbanda é uma sis-
tematização ou codificação brasileira de religião e magia muito distante de
sua fonte ancestral africana e divide-se em grupos distintos com cosmovi-
sões também distintas. Como um conjunto de grupos diversificados, a Quim-
banda teve seu nascimento a partir de elementos culturais diversos como a

5Nem todas as escolas do Caminho da Mão Esquerda concordam com o uso de plantas de poder. A alegação de
suas posturas filosóficas é que o uso dessa tecnologia espiritual mais entorpece a capacidade e refinamento do
Logos (Lúcifer) do que o auxilia a despertar.
cultura crioula africana, a cultura aborígene ameríndia, a magia popular ibé-
rica de profunda influência cipriânica, a tradição dos grimórios e demonolo-
gia europeia. A Quimbanda é o fruto de um intenso cruzamento cultural e de
uma tensa perseguição religiosa escravocrata do período colonial. Mesmo
que a organização do culto tenha sido historicamente recente, a essência do
culto estava nos atos de resistência e nas práticas onde a máscara com chifres
e dentes pontiagudos aterrorizava os algozes. [...] Praticar a Quimbanda é re-
criar a despertar a resistência dentro de nossas almas. [...] A verdadeira Quim-
banda tem estrutura para absorver novos conceitos e evoluir segundo esses.6 A
Quimbanda é a religião da liberdade, pois dentro de seus espaços as pessoas
podem usufruir da Sabedoria, agregar conhecimentos e expandir a mente. Cer-
tamente os temerosos tradicionalistas irão tentar afastar as pessoas [...], pois
nenhum manipulador deseja pessoas com o senso crítico em seus terreiros.
Uma «gota do veneno da serpente» pode contaminar milhares de pessoas fa-
zendo com que se tornem ferozes buscadores, opositores, combatentes e por
vezes arautos de numa nova era e isso certamente destruiria toda estrutura de
uma instituição estagnada.7 A Quimbanda não é nossa, nem de ninguém! Reli-
gião não tem dono! Somos apenas mais um instrumento nas mãos de V.S. Mai-
oral.8 A natureza inconformista e o caráter opositor da Quimbanda pode ser
inferido através da Lenda do Exu da Mata:

Nós resistimos tudo o que pudemos...


Lutamos pela continuidade de nossos antepassados,
pela pureza de nossas veias,
pelo canto dos pássaros do dia e da noite.
Escondemos as trilhas das serpentes,
camuflamos os ninhos e desarmamos as armadilhas de caça.
Passamos frio e fome,
mas escondemos nosso povo
da raça desgraçada que vinha em nossa direção
guiada pelos traidores de nossa própria mata!9

A característica indelével da Quimbanda que a conecta ao caminho da mão


esquerda é sua via de oposição e rebelião luciférica contra o sistema em to-
das as camadas ou níveis socioculturais. A Quimbanda é a religião da liber-
dade não por seu caráter eclético fundamentalmente, mas porque se trata de
um caminho iniciático de emancipação e independência espiritual, pois não
está alinhada ao planejamento demiúrgico típico das religiões convencio-
nais. Os adeptos da genuína e boa Quimbanda não estão interessados em
fugir da expiação do inferno para viverem em planos de luz e perfeição. Na-
da disso! Os adeptos da Quimbanda almejam a participação nas legiões de
V.S. o Maioral através de um profundo processo de cura e transformação es-

6 Danilo Coppini, QUIMBANDA: FUNDAMENTOS & PRÁTICAS OCULTAS, Vols. I & II. Via Sestra, 2019.
7 Danilo Coppini, QUIMBANDA: O CULTO DA CHAMA VERMELHO & PRETA. Via Sestra, 2019.
8 Danilo Coppini, QUIMBANDA: FUNDAMENTOS & PRÁTICAS OCULTAS, Vols. I & II. Via Sestra, 2019.
9 Danilo Coppini, QUIMBANDA: FUNDAMENTOS & PRÁTICAS OCULTAS, Vols. I & II. Via Sestra, 2019.
piritual e trabalham para expansão do seu reinado. Não espere de um adep-
to da Quimbanda a típica conduta ética e moral escravocrata dos adoradores
do deus dos escravos. O trabalho que os Exus e Pombagiras operam na alma
dos adeptos da Quimbanda é uma alquimia de libertação das amarras inter-
nas e externas, dos obstáculos subjetivos e objetivos da vida. Da mesma ma-
neira que lutam contra os nós da alma, os adeptos da Quimbanda também
lutam contra os nós socioculturais: ética conformista escravocrata, moral
condicionante, influências familiares nocivas ao espírito de liberdade, pactos
ou compromissos de amizade vampirísticos ou infrutíferos. A alquimia de
Exu e Pombagira destrói zonas de conforto mentais, emocionais ou físicos.
Qualquer tipo de estagnação energética é logo dissolvida pelo poder dinâmi-
co de Exu e Pombagira.
Como falei acima, duas são as características fundamentais dos lordes
do caminho da mão esquerda: a busca pela autodeificação e a prática do an-
tinomianismo. O adepto da Quimbanda está profundamente preocupado
com a deificação de sua alma, pois disso depende sua admissão às legiões de
V.S. o Maioral. Trata-se de um processo de autodeificação porque o adepto
de Quimbanda procura empreender um profundo trabalho de cura de sua
alma para despertar sua Chama Negra, quando suas potências inatas afloram
completamente. É nisto que V.S. o Maioral está interessado, pois na frente de
seu trono e reinado o título de Exu e Pombagira não é dado a qualquer alma
desencarnada, mas a magos negros que despertaram a Chama Negra da al-
ma.
Por outro lado, todas as práticas espirituais da Quimbanda são antino-
mianas; o exercício da magia Quimbanda é tido como uma prática obscura-
mente primitiva, fetichista e diabólica pela grande maioria das pessoas, por
vezes condenada como marginal e criminosa. A magia e o misticismo sexual
da Quimbanda, um dos pilares desta Arte Negra de necromancia e necrurgia,
trata-se de um dos componentes mais antinomianos de nossa prática onde
Exus e Pombagiras cruzam tridentes e saias para atos de magia ou de alqui-
mia na alma dos adeptos. Este tipo de prática espiritual é tido como radical e
espúria até mesmo entre os adeptos tradicionais de Quimbanda. Com todos
esses elementos sobre a mesa fica fácil inferir o caráter de mão esquerda da
Quimbanda.
A Quimbanda é um culto aberto que assimila gnoses distintas e assim o
é deste sua gênese. Negar isso é negar a própria fundação da Quimbanda.
Finalmente, sob o ponto de vista de V.S. o Maioral, é tecnicamente incorreto
atribuir a Quimbanda a alcunha de mão esquerda, pois V.S. o Maioral e o Im-
pério Infernal que dele provem não contém apenas o polo negativo da ener-
gia, mas ambos, negativo e positivo. Isso é tema para outro texto, no entanto.

Laroyê Exu é Mojuba!

Fernando de Ligório
© 2020 Fernando Liguori

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