PROBLEMAS FILOSÓFICOS - Uma Introdução À Filosofia
PROBLEMAS FILOSÓFICOS - Uma Introdução À Filosofia
PROBLEMAS FILOSÓFICOS - Uma Introdução À Filosofia
UmaIntroduçãoàFilosofia
RodrigoCid
LuizHelvécioMarquesSegundo
(Organizadores)
PROBLEMAS FILOSÓFICOS
UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
Série Dissertatio Filosofia
PROBLEMAS FILOSÓFICOS
UMA INTRODUÇÃO À FILOSOFIA
Rodrigo Cid
Luiz Helvécio Marques Segundo
(Organizadores)
Pelotas, 2020
REITORIA
Reitor: Pedro Rodrigues Curi Hallal
Vice-Reitor: Luís Isaías Centeno do Amaral
Chefe de Gabinete: Taís Ullrich Fonseca
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Prof. Dr. Giuseppe Lorini (UNICA/Itália)
Prof. Dr. Massimo Dell'Utri (UNISS/Itália)
DIREÇÃO DO IFISP
Prof. Dr. João Hobuss
A Série Dissertatio Filosofia, uma iniciativa do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Filosofia (sob o
selo editorial NEPFIL online) em parceira com a Editora da Universidade Federal de Pelotas, tem
por objetivo precípuo a publicação de estudos filosóficos relevantes que possam contribuir para
o desenvolvimento da Filosofia no Brasil nas mais diversas áreas de investigação. Todo o acervo
é disponibilizado para download gratuitamente. Conheça alguns de nossos mais recentes
lançamentos.
NEPFil online
Rua Alberto Rosa, 154 – CEP 96010-770 – Pelotas/RS
Introdução 16
Rodrigo Reis Lastra Cid
Luiz Helvécio Marques Segundo
1. Lógica 21
Éderson Safra Melo
Marcio Kléos Freire Pereira
2. Metafísica 79
Rodrigo Alexandre de Figueiredo
3. Epistemologia 111
Delvair Custódio Moreira
4. Ética 152
Bruno Aislã Gonçalves dos Santos
Rafael Martins
5. Estética 252
André Luiz Alves Pereira
AUTORES
20
1
Lógica
Éderson Safra Melo
Marcio Kléos Freire Pereira
2A anedota acima pode ser encontrada no documentário sobre Lógica produzido pela
BBC intitulado The Joy of Logic. O documentário com legendas em português pode ser
encontrado através do seguinte link:https://www.youtube.com/watch?v=dr1PO-AOeFY.
23
2. Argumentos
2.1. O que é um argumento?
3Na filosofia da lógica há uma discussão sobre qual entidade é um portador de verdade
por excelência, em que se discute qual entidade (sentenças, proposições, enunciados)
veicula ou porta primariamente a verdade. Neste texto não discutiremos a questão dos
portadores de verdade e também não faremos um uso técnico dos termos ‘sentenças’,
‘afirmações’, ‘proposições’ e ‘enunciados’, tomando tais termos como intercambiáveis.
Para uma discussão sobre portadores de verdade, ver HAACK, 2002, cap. 6.
25
desejada. Podemos usar a conclusão de um determinado argumento como pre-
missa de outro argumento. Considere, por exemplo, o seguinte argumento:
26
qualquer posição do argumento. Isso pode dificultar um pouco o nosso trabalho
de identificar o que é premissa e o que é conclusão de um dado argumento.
Felizmente, há alguns indicadores que podem ajudar a determinar as
expressões que desempenham o papel de premissa ou de conclusão. Por
exemplo, no argumento de Descartes apresentado acima, temos expressões que
indicam premissas e conclusões. Especificamente, o trecho “daí, é bastante
evidente que” indica que a afirmação logo após o mesmo é a conclusão do ar-
gumento. Depois dessa conclusão, aparece a expressão “posto que”, prenunci-
ando uma razão ou justificativa para sustentar a conclusão. Essas expressões
são chamadas de marcadores ou indicadores de premissas ou conclusão. Nos
quadros abaixo, há alguns exemplos de indicadores de premissas e de indicado-
res de conclusão.
Indicadores de premissa: pois, posto que, porque, já que, uma vez que,
ora, desde que, em virtude de, sabemos que, a razão é que, etc.
27
2.2. Validade e correção de argumentos
28
Uma conclusão é consequência lógica de um conjunto de premissas se
não é possível ter uma situação em que todas aquelas premissas sejam
verdadeiras e a conclusão em questão seja falsa.
30
tratar desse ponto, consideremos a forma do argumento que acabamos de exa-
minar:
Se 𝛼 , então, 𝛽
𝛼
∴𝛽
Ou 𝛼 , ou 𝛽 .
Não é o caso que 𝛼 .
∴𝛽
Se 𝛼 , então, 𝛽
𝛽
∴𝛼
a)
P1: Fumantes compulsivos tendem a desenvolver algum tipo de câncer.
P2: Fulano é fumante compulsivo.
C: Logo, fulano provavelmente desenvolverá algum tipo de câncer.
36
b)
P1: Todos os indivíduos daquela espécie observados até agora
pelos cientistas apresentaram tal comportamento.
C: Portanto, todos os indivíduos daquela espécie apresentam tal
comportamento.
c)
P1: As estatísticas mostraram uma relação diretamente proporcional
entre o aumento do desemprego e o aumento da violência nos
centros urbanos.
C: Nos casos observados, o desemprego pode, pois, ser
considerado uma causa para a violência urbana.
Uma abdução (ou retrodução) é uma inferência que remonta dos efeitos
às suas (prováveis) causas, selecionando a melhor explicação disponível
37
Em outras palavras, quando você precisa explicar um fato B, já bemsa-
bido e estabelecido, e dispõe de uma hipótese explicativa A (ou um conjunto
consistente de hipóteses) que explica suficientemente bem o fato B, e, além
disso, se A for verdadeira, seria a melhor explicação disponível para B, você
pode considerar A como verdadeira (pelo menos até que se disponha de uma
explicação ainda melhor, ou até que novas informações acerca de B nos obri-
guem a encontrar outra explicação).
É importante mencionar que a abdução, como toda inferência, é um
procedimento para obtenção de novas informações a partir das informações
disponíveis. Por isso, abduções dependem de verificações independentes, por-
que, assim como as induções, também podem produzir conclusões equivocadas.
Por exemplo, suponha que você seja um estudante e divida o aparta-
mento com um colega, apenas os dois têm as chaves do lugar e nenhum dos
dois costuma receber visitas sem avisar ao outro. Suponha, além disso, que
você tenha passado o dia fora, chegou tarde da noite e encontrou a metade de
uma pizza guardada no forno (e não foi você quem comprou a dita cuja). Qual
sua conclusão mais natural? Foi seu colega quem a comprou. Isso foi uma ab-
dução. Poderia ter acontecido outra coisa? Sim, mas dadas as circunstâncias e
hábitos dos moradores, essa era a explicação mais plausível para o aconteci-
mento. Para ter certeza, você poderia fazer uma verificação independente acerca
de sua conclusão e procurar outros indícios, ou – melhor ainda – perguntar ao
seu colega! Mas essa verificação independente precisou que você primeiro fi-
zesse a abdução, para ter um direcionamento investigativo (uma direção para a
qual olhar em busca de respostas).
As abduções desempenham um papel muito importante na investigação
científica. O cientista se defronta com uma determinada classe de fenômenos e,
apoiado no conhecimento que possui sobre seu objeto de estudos, emprega sua
criatividade para elaborar modelos explicativos para aqueles fenômenos. Daí, ele
escolhe o modelo explicativo que melhor se aplica e busca evidências novas que
o corroborem. Exemplos muito interessantes de abduções podem ser encontra-
dos em ciências como a biologia evolucionista e a cosmologia (parte da Física
que estuda a estrutura e origem do universo), mas não são fáceis de serem
descritos em poucas palavras, porque envolvem modelos bastante complexos.
38
Porém, dê uma olhada nesses exemplos simples de abduções, para
ilustrar melhor o assunto:
a)
P1: Nesta floresta é muito comum encontrar onças.
P2: Essas pegadas são compatíveis com felinos de grande porte.
C: Logo, essas pegadas (provavelmente) são de onça.
b)
P1: Em um depósito de alimentos, cada espécie de cereal está
armazenada em um saco diferente.
P2: Encontrei alguns feijões espalhados pelo chão.
C: Esses feijões no chão (provavelmente) estavam no saco de feijões.
c)
P1: Está havendo uma epidemia de conjuntivite na escola de meu filho.
P2: Meu filho apresentou sintomas de conjuntivite após voltar da aula.
C: Logo, ele (provavelmente) contraiu conjuntivite em sua escola.
39
Outro ponto interessante: pela sua forma, os argumentos abdutivos se
assemelham a um tipo bastante comum de falácia (ver próxima seção), denomi-
nada como “afirmação do consequente”, cuja estrutura já foi usada na seção
precedente como exemplo de estrutura inválida:
Se 𝛼 , então, 𝛽
𝛽
∴𝛼
Porém, essa semelhança pode ser contestada com uma análise mais
aprofundada. De qualquer maneira (e para evitar complicações desnecessárias
nesta exposição introdutória), é preciso enfatizar o caráter heurístico (investigati-
vo) das abduções – como em nosso exemplo da pizza encontrada no forno.
Afinal, elas não provam efetivamente que algo aconteceu – no caso, que o cole-
ga de quarto comprou a pizza –, mas direcionam a pesquisa em determinada
direção com o objetivo de coletar mais e mais evidências, fazer predições testá-
veis a partir da conclusão obtida etc. (Mas, esse assunto nos leva para fora da
Lógica e na direção da Filosofia da Ciência.)
Finalmente, para encerrar esta seção, indicaremos, em linhas gerais,
quando um argumento deve ser considerado bom para uma discussão racional.
Isso depende de se estamos diante de argumentos válidos (dedutivos) ou inváli-
dos (indutivos e abdutivos).
Se o argumento em questão for válido, para ser um bom argumento, ele
precisa ser correto (na acepção explicada anteriormente) e suas premissas pre-
cisam ser mais garantidas, por assim dizer, do que sua conclusão. Em outras
palavras, a conclusão não pode ser redundante em relação às premissas.
Consideremos o seguinte exemplo de um argumento correto (válido
com premissas verdadeiras), porém, inútil para uma investigação ou discussão
visando aprimorar nosso conhecimento:
40
Por sua vez, quando devemos considerar argumentos indutivos e abdu-
tivos como bons argumentos(já supondo que suas premissas sejam verdadeiras)?
É claro que argumentos inválidos, em geral, não garantem necessariamente sua
conclusão; porém alguns são considerados melhores do que outros. No caso dos
indutivos, isso depende da força com que a conclusão é obtida. Em outras pala-
vras: quanto mais provável for a conclusão do argumento indutivo, tanto mais
forte ele é. O problema maior é determinar essa probabilidade, e isso depende
de cada situação (o que é provável em um contexto ou a partir de certo conjunto
de dados pode ser altamente improvável em outro contexto).
E no caso das abduções? O que ocorre é que, como explicamos, estas
funcionam como um procedimento heurístico (investigativo) para escolher a
melhor explicação para um fenômeno. Contudo as conclusões obtidas abdutiva-
mente precisam ser confrontadas com verificações independentes; assim, sua
importância consiste principalmente em fornecer boas direções investigativas, ao
longo das quais você coletará mais dados experimentais, fará novas predições
indutivas, etc.
41
O erro fundamental de todas as falácias é sempre o mesmo: suas pre-
missas são irrelevantes para a conclusão, mesmo quando pareçam ser relevan-
tes. Em outras palavras, a conclusão simplesmente não é consequênciado que é
afirmado nas premissas. Porém nem sempre é fácil diagnosticar essa falha em
uma leitura superficial ou quando estamos distraídos por algum motivo (por
exemplo, estando sob intensa emoção ou se temos algum forte interesse pesso-
al no assunto debatido).
Nem sempre uma falácia é empregada com má-fé. A má-fé acontece
somente quando aquele que enuncia o argumento falacioso sabe que está co-
metendo um erro argumentativo, mas espera mesmo assim enganar sua plateia.
Também pode acontecer de uma falácia ser usada sem que se tenha consciên-
cia disso, apenas por descuido, limitação cognitiva ou simples ignorância. Porém,
uma vez que o erro argumentativo foi percebido ou denunciado, é inaceitável que
ele continue sendo sequer considerado.
Qualquer indivíduo com habilidades cognitivas e lógicas medianas con-
segue perceber o problema com a maioria das falácias, desde que elas sejam
examinadas com a devida atenção. Conhecer e estudar antecipadamente uma
lista razoável de tipos de falácias é, portanto, muito útil para qualquer pessoa,
visto que todos nós precisamos em algum momento defender ou criticar racio-
nalmente uma posição, seja nossa, seja de terceiros.
Outro ponto importante que você deve entender é que, ao diagnosticar
uma falácia, não importa se a conclusão obtida é verdadeira ou falsa, porque é a
maneira como ela foi obtida que está errada. Aquela conclusão pode até ser
verdadeira (independentemente da falácia usada para defendê-la), mas não tem
como ser sustentada daquela maneira, cabendo ao seu proponente construir
outro argumento, desta vez legítimo, para sustentar sua posição.
Por esse motivo, desde que Aristóteles sistematizou pela primeira vez o
estudo da lógica, há cerca de 2.400 anos, até os nossos dias, as falácias têm
sido estudadas e catalogadas para garantir uma boa argumentação na Filosofia
e nas ciências. Assim, dezenas e dezenas de tipos e estruturas falaciosas dife-
rentes vêm sendo listadas nos manuais especializados, com nomenclaturas
tradicionais e modernas, para facilitar uma rápida identificação em um contexto
prático.
Devido à limitação de espaço, apresentaremos apenas alguns tipos fa-
mosos de falácias, selecionando-as entre as que são empregadas com bastante
42
frequência em conexão com a pesquisa científica. Para um estudo mais abran-
gente, recomendamos as leituras listadas no final deste capítulo.
Algumas falácias podem ser reconhecidas tão somente observando a
estrutura do pseudoargumento. Observe os dois seguintes exemplos:
a)
P1: Caso a data em questão caia num sábado, não haverá aula.
P2: Não haverá aula naquela data.
C: Logo, a data cairá em um sábado.
b)
P1: A música popular tem características inferiores à música erudita.
C: Logo, a música erudita é claramente superior à música popular.
43
Caso a data em questão caia num sábado, não haverá aula.
A → B
Na letra (b), temos outro caso de falácia que pode ser reconhecida tão
somente examinando sua estrutura, que é ainda mais simples:
c)
Deve existir alguma verdade na astrologia, porque milhões de
pessoas em todo o mundo acreditam em horóscopos e pautam suas
decisões assim!
d)
Nunca se conseguiu mostrar que existe vida fora da Terra. Portanto,
não existe tal coisa.
e)
Não levo a sério essas regulações do Ministério da Saúde contra o
tabagismo. Certamente são falsas. Meu avô fumou a vida inteira e
morreu de causas naturais com quase cem anos de idade!
45
Os pseudoargumentos acima são, respectivamente, casos típicos das
seguintes modalidades de falácias (tente perceber a correspondência):
A falha por trás desse raciocínio deveria ser óbvia: não é quantidade de
aderentes a uma tese que faz com que essa tese seja verdadeira, nem a quanti-
dade de pessoas que a rejeitam que faz com que ela seja falsa. Fatos científicos
não dependem de que se acredite neles para serem cientificamente bem estabe-
lecidos. Em certo momento (por volta do século XV), praticamente toda a huma-
nidade acreditava que o Sol girava em torno da Terra, e todos estavam errados,
como hoje sabemos!
46
e) A falácia da evidência anedótica ocorre sempre que se pretende
defender uma posição baseando-se em relatos pessoais isolados, sem
atender a critérios objetivos de verificação.
47
3.1. A Linguagem do CPC
49
expressões como, por exemplo, ‘𝐹 ∧ 𝑀’, ‘𝑈 ∨ 𝑃’, ‘𝐴 ∨∨ 𝐵𝑈 ↔’ ou ‘¬𝑃𝑃 ∧’.
Nesses exemplos, apenas as duas primeiras expressões, como veremos,
contam como expressões gramaticalmente bem formadas de L. As duas últimas
do exemplo violam regras de formação de L. As expressões bem formadas são
chamadas simplesmente de fórmulas. Vejamos, então, a definição de fórmula a
partir das regras de formação da linguagem L.
50
cláusulas precedentes, seja construída. Além de impedir que expressões de L
como ‘𝐴 ∨∨ 𝐵𝑈 ↔’ e ‘¬𝑃𝑃 ∧’ sejam consideradas fórmulas, a cláusula de
fechamento é um componente importante para o tipo de definição que foi dada.
A definição de fórmula acima é uma definição recursiva. O conjunto de
fórmulas de L foi definido recursivamente: primeiro, foram identificados os ele-
mentos iniciais (as fórmulas atômicas de L dadas pela cláusula (i) da definição);
depois, foram listadas as condições que permitem que certas expressões sejam
consideradas como pertencentes ao conjunto, se elas satisfazem as condições
para tanto; por fim, a cláusula de fechamento impede que alguma expressão
possa pertencer ao conjunto sem que sua inclusão seja exigida pelos passos
anteriores da definição. A partir de tal definição recursiva, é sempre possível
determinar, de maneiraexata, para qualquer expressão de L, independentemente
da complexidade da expressão, se ela pertence ou não ao conjunto das fórmulas
de L.
Uma vez definida a linguagem para o CPC, nos ocuparemos com o for-
necimento de uma semântica para essa linguagem. De maneira breve, chama-
mos de semântica o estudo da interpretação das expressões de uma linguagem.
Estamos usando aqui o termo ‘interpretação’ em um sentido mais pontual ou
técnico (em vez do sentido mais amplo adotado, por exemplo, na semântica
filosófica), com a acepção de regras para associar cada unidade significativa da
linguagem-objeto (aquela que está sendo estudada) com alguma referência (um
objeto, uma propriedade, um conjunto de objetos, etc.).
A semântica padrão usada para o CPC é extremamente simples (por
considerar apenas duas referências para as fórmulas: ‘1’ ou ‘0’ – intuitivamente:
o verdadeiro ou o falso), e nos diz como calcular a referência (ou ‘valor’) de cada
fórmula a partir de uma valoração para a linguagem. Intuitivamente, cada valora-
ção para a linguagem faz algo bem preciso: atribui a cada fórmula atômica (ou
51
seja, cada variável proposicional) da linguagem exatamente um valor no conjunto
{1,0}. A partir daí, a semântica clássica determina como calcular o valor de qual-
quer fórmula que contenha aquelas fórmulas atômicas. Vejamos rapidamente
como isso é feito.
Primeiro, definimos o que é uma valoração:
52
(Ou seja, todas as fórmulas atômicas são verdadeiras na valoração 𝑣0 .)
Com base em 𝑣0 , conseguimos saber o valor de qualquer fórmula de L. Como
exemplos de aplicação das regras acima, vejamos como calcular o valor das
seguintes duas fórmulas i)¬¬¬𝐴 e ii)¬(𝐴 → ¬𝐵):
𝐴 ¬𝐴 ¬¬𝐴 ¬¬¬𝐴
1 0 1 0
0 1 0 1
𝐴 𝐵 ¬𝐵 𝐴 → ¬𝐵 ¬(𝐴 → ¬𝐵)
1 1 0 0 1
0 1 0 1 0
1 0 1 1 0
0 0 1 1 0
54
DEFINIÇÃO:
Uma fórmula 𝛼 é uma tautologia se e somente se, para toda valoração
𝑣,𝑣(𝛼) = 1.
Uma fórmula 𝛼 é uma contradição se e somente se, para toda valoração
𝑣,𝑣(𝛼) = 0.
Uma fórmula 𝛼 é uma contingência se e somente se não for tautologia,
nem for contradição.
𝐴 ¬𝐴 ¬¬𝐴 𝐴 ↔ ¬¬𝐴
1 0 1 1
0 1 0 1
𝐴 ¬𝐴 𝐴 ∧ ¬𝐴
1 0 0
0 1 0
55
ficas fascinantes, frequentemente levando à elaboração de cálculos proposicio-
nais bem diferentes do CPC (e muitos até mesmo incompatíveis com este).
Alguns esquemas tautológicos:
56
dada fórmula representando sua conclusão. Assim, a definição anteriormente
fornecida para consequência lógica pode ser assim reformulada:
Ou seja, toda valoração que seja modelo de 𝛤 também deve ser mode-
lo de 𝛼 . (Recomendamos comparar com a definição mais informal, fornecida
antes, para perceber a equivalência entre elas!)
Para averiguar formalmente essa relação de consequência lógica, po-
demos empregar o método das tabelas de verdade, explicado acima. Basta
construir uma tabela que compare, para cada valoração possível, os valores de
cada premissa em 𝛤 e o valor da conclusão 𝛼 . Por exemplo, retomemos o ar-
gumento seguinte, já analisado anteriormente:
Uma simbolização bem intuitiva para esse argumento pode usar a se-
guinte convenção para fazer corresponder as seguintes fórmulas atômicas de L
com sentenças atômicas do português:
𝐴 𝐵 𝐴 ∨ 𝐵 ¬𝐵 𝐴
1 1 1 0 1
0 1 1 0 0
1 0 1 1 1
0 0 0 1 0
58
𝐴 𝐵 𝐴→𝐵 𝐵 𝐴
1 1 1 1 1
0 1 1 1 0
1 0 0 0 1
0 0 1 0 0
𝐴 ∨ 𝐵, 𝐵 → 𝐶 , 𝐶 → 𝐷, ¬𝐴, 𝐷 → 𝐸 ⊨ (𝐸 ∧ 𝐵) ∨ 𝐹
4Há apresentações sintáticas do CPC que são feitas através de sistemas que assumem
axiomas (ver MENDELSON, 2010, seção 1.4.)
60
regra de inferência (ou ainda axiomas, caso o sistema seja axiomático). Esse
caminho é chamado de dedução (que será apresentado de maneira mais rigoro-
sa ainda nesta subseção).
Tome, por exemplo, 𝐴 ∨ 𝐵 , ¬𝐵 ⊨ 𝐴 . Conferimos, na última seção,
que esse argumento curto é válido. Poderíamos postular a forma desse argu-
mento como uma regra de inferência esquematicamente da seguinte maneira:
𝛼∨𝛽
¬𝛼
𝛽
61
+∧ -∧
(Introdução da conjunção) (Eliminação da conjunção)
𝛼
𝛼∧𝛽 𝛼∧𝛽
𝛽
𝛼 𝛽
𝛼∧𝛽
+∨ -∨
(Introdução da disjunção) (Eliminação da disjunção)
𝛼 𝛼 𝛼∨𝛽 𝛼∨𝛽
¬𝛼 ¬𝛽
𝛼∨𝛽 𝛽∨𝛼
𝛽 𝛼
+↔ -↔
(Introdução da bi-implicação) (Eliminação da bi-implicação)
62
+→ -→
(Introdução da implicação) (Eliminação da implicação)
𝛼
. 𝛼→𝛽
. 𝛼
.
𝛽 𝛽
𝛼→𝛽
+¬ -¬
(Introdução da negação) (Eliminação da negação)
𝛼
. ¬¬𝛼
.
. 𝛼
𝛽 ∧ ¬𝛽
¬𝛼
63
papel de eliminação da disjunção, alguns sistemas de dedução natural trazem a
regra conhecida como prova por caso:
𝛼∨𝛽
𝛼→𝛾
𝛽→𝛾
𝛾
Bom, mas como não há a regra de prova por casos dentre as regras do
sistema de dedução natural apresentado acima, essa regra não ficaria faltando?
Isto é, será que há algum argumento que é válido, mas que não poderia ser
provado pela falta da regra de prova por casos? A resposta é não, pois essa
regra pode ser derivada (demostrada ou deduzida), a partir das regras de infe-
rências primitivas, apresentadas no quadro acima. Para demostrar isso, pode-
mos tomar um argumento que instancia o esquema metalinguístico da prova por
caso em que derivamos 𝐶 a partir do seguinte conjunto de premissas:
𝐴 ∨ 𝐵 , 𝐴 → 𝐶 , 𝐵 → 𝐶. (Deixaremos essa demonstração para o leitor fazer
depois de terminar de ler esta subseção).
Vamos agora definir com um pouco mais de rigor as noções de dedução
e consequência lógica (sintática) que estamos tratando aqui:
65
1. 𝐴 ∨ 𝐵p
2. 𝐵 → 𝐶 p
3. 𝐶 → 𝐷 p
4. ¬𝐴p
5. 𝐷 → 𝐸 p
6. 𝐵 1,4 / -∨
7. 𝐶 2,6 / -→
8. 𝐷 3,7 / -→
9. 𝐸 5,8 / -→
10. 𝐸 ∧ 𝐵6,9 / + ∧
11. (𝐸 ∧ 𝐵) ∨ 𝐹 10 / + ∨
66
Simbolizando o argumento para a linguagem proposicional L, temos a
fórmula ¬𝐸 como conclusão do argumento com as seguintes premissas: 𝐸 →
𝐶 , ¬𝐶 . Para verificar se a conclusão é consequência lógica sintática das pre-
missas, considere a seguinte dedução:
1. 𝐸 → 𝐶 p
2. ¬𝐶 p
3. 𝐸 h
4. 𝐶 1, 3 / -→
5. 𝐶 ∧ ¬𝐶 2, 4 / + ∧
6. ¬𝐸 3–5/+¬
Temos, portanto, {𝐸 → 𝐶 , ¬𝐶 } ⊢ ¬𝐸 .
Apenas alguns comentários rápidos sobre a dedução acima: após as
premissas, foi colocada a fórmula 𝐸 como hipótese h (para denotar a hipótese).
Grosso modo, a ideia da regra de RAA, usada como introdução da negação, é
de que, se a hipótese levar à contradição (uma fórmula da forma 𝛽 ∧ ¬𝛽 ),
estamos autorizados, através da regra em questão, a fechar a hipótese (denota-
do pela barra vertical na demostração) e inferir a negação da fórmula que apare-
ce na hipótese.5 O argumento em questão é uma instância de uma forma de
argumento conhecida como modus tollens: 𝛼 → 𝛽 , 𝛽 ⊢ ¬𝛼 . 6 Uma vez de-
monstrada, essa forma de argumento pode entrar como uma regra de inferência
fazendo com que as demonstrações fiquem mais curtas e, com isso, podemos
ter várias regras desse tipo no sistema de dedução natural. Para dar mais um
exemplo, a regra por casos, mencionada acima, também pode entrar como uma
5 Considerando o que foi dito na introdução, que o presente texto não pretende
desempenhar o papel de um curso básico de lógica, não vamos tratar de expor o
funcionamento de todas as regras de inferência. O objetivo aqui é apresentar de maneira
sucinta o CPC como um sistema de lógica. Idealmente esse texto pode servir como uma
motivação para o leitor proceder com um estudo mais detalhado através dos manuais de
lógica indicados no final deste texto.
6 Confira, no capítulo ‘Filosofia da Ciência’ incluído neste volume, uma aplicação do
Uma vez que, à primeira vista, pode parecer um pouco estranho uma
fórmula ser consequência lógica do conjunto vazio, vamos colocar um exemplo
simples de teorema do CPC: ¬¬𝐴 ↔ 𝐴. Se, até então, as deduções começa-
vam com as premissas do argumento, como fazer para deduzir uma fórmula a
partir do conjunto vazio de premissas? Para tanto, no sistema de dedução natu-
ral aqui apresentado, temos que iniciar com regras hipotéticas. Neste caso espe-
cífico, com a fórmula, ¬¬𝐴 ↔ 𝐴, vamos fazer uso da regra de prova condicio-
nal (a introdução da conjunção no sistema de dedução natural aqui apresentado)
e aproveitar para ver o funcionamento desta regra:
68
1. ¬¬𝐴 h
2. 𝐴 1 / -¬
3. ¬¬ 𝐴 → 𝐴 1–2/+→
4. 𝐴 h
5. ¬𝐴 h
6. 𝐴 ∧ ¬𝐴 4, 5 / + ∧
7. ¬¬𝐴 5–6/+¬
8. 𝐴 → ¬¬𝐴 4–7/+→
9. ¬¬𝐴 ↔ 𝐴 3, 8 / +↔
69
metalógica, lógicas e filosofia da lógica a fim ampliar um pouco mais o horizonte
da Lógica, oferecendo algumas sugestões para o leitor interessado.
Vimos algumas noções gerais de argumentos e evidenciamos que, co-
mo um conjunto de teorias sobre a relação de consequência, a Lógica pode lidar
com argumentos. Neste capítulo, exploramos a relação de consequência do CPC
em uma perspectiva semântica, através do método das tabelas de verdade, e em
uma perspectiva sintática, através de um sistema formal de dedução natural.
Vimos que a noção teórica de consequência lógica semântica, em certo aspecto,
captura a ideia intuitiva, ou pré-teórica, de validade como preservação de verda-
de. Já na parte sintática, como vimos, embora um sistema formal possa ser visto
de um ponto de vista estritamente formal, sem nenhuma semântica pretendida, o
sistema de dedução natural tratado aqui captura a ideia de preservação de ver-
dade.
Podemos perceber que as noções semântica e sintática de consequên-
cia lógica do CPC, mesmo sendo distintas, podem apresentar conexões interes-
santes. Particularmente, quando o sistema formal apresenta propriedades meta-
teóricas interessantes, como a correção e a completude. Grosso modo, quando
dizemos que um sistema formal é correto e completo, as duas relações de con-
sequência lógica, sintática e semântica, coincidem em um certo sentido (extensi-
onal).
Um sistema formal é correto sempre que, se uma fórmula 𝛼 for conse-
quência lógica sintática de um conjunto 𝛤 de fórmulas (em símbolos, 𝛤 ⊢ 𝛼 ),
𝛼 será também consequência lógica semântica de 𝛤 (em símbolos, 𝛤 ⊨ 𝛼). Um
sistema formal é completo sempre que uma fórmula 𝛼 for consequência lógica
semântica de um conjunto 𝛤 de fórmulas (em símbolos, 𝛤 ⊨ 𝛼 ), 𝛼 será conse-
quência lógica sintática de 𝛤 (em símbolos, 𝛤 ⊢ 𝛼 ). Colocando a correção e a
completude juntas, temos o seguinte: 𝛤 ⊢ 𝛼 se e somente se 𝛤 ⊨ 𝛼.
Um caso particular da correção e da completude é quando o conjunto 𝛤
é vazio. Assim, em um sistema formal correto e completo, uma fórmula 𝛼 é teo-
rema (em símbolos, ⊢ 𝛼 ), se e somente se 𝛼 é válida (⊨ 𝛼 ). Um sistema for-
mal correto demonstra somente as fórmulas válidas, enquanto um sistema formal
completo demonstra todas as fórmulas válidas. Especificamente, o sistema de
dedução natural apresentado neste capítulo é correto e completo. Não cabe
neste pequeno texto apresentar a prova de correção e completude para um
70
sistema do CPC (para isso, ver MENDELSON, 2010 e FEITOSA & PAULOVICH,
2005).
Em um sistema formal, como vimos, podemos provar, dentre outras coi-
sas, que certas sentenças são consequência lógica de certos conjuntos. Mas,
quando nos ocupamos depropriedades gerais sobre o sistema, como, por exem-
plo, se ele é correto ou completo, estamos em um campo da Lógica conhecido
como metalógica, e as ditas propriedades e resultados são também chamados
de metalógicos. Há várias outras propriedades e resultados importantes na
metalógica (como decidibilidade, consistência, etc.); porém, os exemplos acima
devem bastar como ilustração de resultados metalógicos.
Mencionamos, em diversos momentos, a existência de várias lógicas
(i.e., teorias da relação de consequência). O CPC visto brevemente aqui pode
ser expandido para uma teoria mais forte, o Cálculo Quantificacional Clássico
(CQC). O CPC é entendido como um subsistema do CQC no sentido de que
tudo que pode ser expresso e provado no CPC pode ser expresso e provado no
CQC. A teoria lógica do CQC tem mais princípios e sua linguagem tem um poder
expressivo maior que a do CPC. Tradicionalmente o CQC, que inclui o CPC, é
chamado de lógica elementar (para uma apresentação bastante didática do CQC,
indicamos MORTARI, 2016).
Todavia, além das teorias lógicas clássicas, há teorias (ou lógicas) não
clássicas. Podemos classificar as lógicas não clássicas em dois grupos: as lógi-
cas que estendem a lógica clássica, adicionando um vocabulário distinto do
vocabulário clássico (como operadores que não são funções de verdade, por
exemplo), chamadas de lógicas ampliadas, e lógicas que derrogam algum prin-
cípio importante da lógica clássica (como o princípio da bivalência, terceiro exclu-
ído, não contradição), que são chamadas de lógicas heterodoxas ou alternativas.
É importante destacar que essa classificação de lógicas não clássicas não está
isenta de discussão. Há vários entendimentos e classificações sobre lógicas não
clássicas que não serão mencionados neste texto (para tanto, indicamos BUR-
GESS, 2009; DA COSTA, 2008; HAACK, 2002).
Um exemplo de lógicas não clássicas ampliadas são os numerosos sis-
temas de lógicas modais que incluem a lógica clássica. Entretanto, há inúmeros
outros sistemas modais que são ampliados a partir de lógicas não clássicas
heterodoxas tomadas como base (daí percebemos que a classificação entre
lógica não clássicas ampliativas e heterodoxas tem algumas ressalvas). Grosso
71
modo, lógicas modais são lógicas que contém operadores modais (que não são
funções de verdade) que podem ter interpretações aléticas, (‘é necessário que’,
‘é possível que’), temporais (‘será sempre o caso que’, ‘foi o caso que’), deônti-
cas (‘é obrigatório’, ‘é permitido’). Há vários sistemas de lógicas modais normais
(como K, T, D, B, S4, S5) e não normais (como S1, S2, S3, E, E2, E3). (Para
saber mais sobre lógica modal, veja SIDER, 2010, caps. 6 e 7 e MORTARI, 2016,
cap. 18).
Como exemplo de lógicas alternativas, cabe mencionar rapidamente
três exemplos: lógicas polivalentes, lógicas intuicionistas e lógicas paraconsis-
tentes. Como vimos neste capítulo, as fórmulas do CPC são bipartidas; ou são
verdadeiras ou são falsas. Para o princípio da bivalência, o importante é a bipar-
tição do conjunto das fórmulas, independentemente da natureza dos valores de
verdade em questão. Embora falemos de valores de verdade, a lógica clássica
não está comprometida com a interpretação de seus valores como sendo o ver-
dadeiro ou o falso. Podemos, por exemplo, dar uma interpretação para os valo-
res do CPC através de circuitos eletrônicos, preservando ainda o princípio clás-
sico da bivalência (ver FEITOSA & PAULOVICH, 2005, cap. 4). Todavia, há lógi-
cas que derrogam o princípio da bivalência. Essas são chamadas de lógicas
polivalentes ou multivaloradas. No geral, lógicas polivalentes são lógicas com
nvalores de verdade, com n > 2. Como exemplo de lógicas polivalentes, pode-
mos citar a lógica L3 de Łukasiewicz, que assume três valores de verdade: o
verdadeiro, o falso e o indeterminado. (Para saber mais sobre lógicas polivalen-
tes, veja HAACK, 2002, cap. 11; PRIEST, 2008, cap. 7).
A lógica clássica também é regida pelo princípio do terceiro excluído
que pode ser enunciado da seguinte maneira: dada uma proposição, 𝛼 , e sua
negação, ¬𝛼 , ao menos uma é verdadeira. Como vimos na subseção 3.2, este
princípio pode ser formulado sintaticamente na lógica proposicional clássica da
seguinte forma: 𝛼 ∨ ¬𝛼 . Todavia, há lógicas, como as lógicas intuicionistas,
que derrogam o princípio clássico do terceiro excluído. Em linhas gerais, para a
perspectiva intuicionista, o que torna uma fórmula verdadeira é uma prova cons-
trutiva dessa fórmula. Assim, uma regra de inferência como a de redução ao
absurdo, que vimos na subseção 3.3, não vale na lógica intuicionista. Uma das
motivações vem do fato que há problemas na matemática que, até então, não
foram resolvidos. Tome, por exemplo, a conjectura de Goldbach, que diz que
todo número inteiro e par maior do que dois é igual à soma de dois primos. Va-
72
mos chamar a proposição que expressa essa conjectura de 𝐺 . Até hoje os ma-
temáticos não encontraram nenhuma prova construtiva para 𝐺 , nem uma a pro-
va para¬𝐺 . Assim, de um ponto de vista intuicionista, não estamos autorizados
a afirmar 𝐺 ∨ ¬𝐺 , e nem 𝛼 ∨ ¬𝛼 em geral. (Para apresentações de lógica
intuicionista, veja PRIEST, 2008, cap. 6 e RODRIGUES, 2011, pp. 70 – 79).
Na lógica clássica vale também o chamado princípio da explosão, que,
intuitivamente, diz que de uma contradição pode ser inferida qualquer sentença.
Podemos formular sintaticamente tal princípio da seguinte maneira: 𝛼 ∧ ¬𝛼 ⊢
𝛽. É fácil mostrar que esse princípio vale na lógica clássica (como exercício,
deixamos para o leitor a demonstração de tal princípio no sistema de dedução
natural apresentado em 3.3). Lógicas que violam o princípio clássico da explosão
são chamadas de lógicas paraconsistentes. Há várias lógicas paraconsistentes
como, por exemplo, as lógicas Cn de da Costa e a lógica do paradoxo (LP) de
Priest. Vamos falar um pouquinho sobre essa última. Além de paraconsistente,
LP pode ser vista como uma lógica de três valores, tendo sentenças que são
verdadeiras, sentenças falsas e sentenças verdadeiras e falsas. A motivação
para assumir sentenças que são verdadeiras e falsas vem da doutrina conhecida
como dialeteísmo, a visão de que há contradições verdadeiras. Um exemplo de
contradição verdadeira dada pelos dialeteístas, como Priest, é o paradoxo do
mentiroso que pode ser alcançado através de uma sentença que afirma a sua
própria falsidade (conhecida como sentença do mentiroso): esta sentença é falsa.
A questão é: qual é o valor de verdade da sentença do mentiroso? Se, por um
lado, ela for verdadeira, ela é falsa. Se, por outro lado, ela for falsa, ela é verda-
deira. Para os dialeteístas, como Priest, o paradoxo do mentiroso mostra que há
contradições, 𝛼 ∧ ¬𝛼 , verdadeiras. Como o dialeteísmo é a visão de que algu-
mas contradições são verdadeiras, e não que todas as sentenças são verdadei-
ras, o princípio de explosão não pode ser válido. (Para uma apresentação da
lógica paraconsistente LP e algumas noções sobre o dialeteísmo, veja PRIEST,
2008, cap. 7). Cabe mencionar aqui que, embora o dialeteísmo (uma visão sobre
a verdade) leve à paraconsistência (uma teoria sobre a relação de consequên-
cia), a paraconsistência não está comprometida com o dialeteísmo. As lógicas de
Da Costa, por exemplo, não estão comprometidas com a verdade de contradi-
ções (veja Da Costa, 2008). Há outras interpretações da paraconsistência que
rejeitam a visão dialeteísta, de que contradições podem ser verdadeiras, e inter-
73
pretam a contradição em termos de evidência, e não em termos de verdade (Cf.
CARNIELLI & RODRIGUES, 2017).
A questão sobre a interpretação de uma lógica, como a paraconsistente,
está no campo da filosofia da lógica. A filosofia da lógica pode ser entendida
como uma área da filosofia que, grosso modo, discute questões levantadas pela
lógica. Uma questão interessante que levantamos aqui, no começo deste texto, é
a questão sobre a natureza da Lógica. O que é Lógica? Responder a essa per-
gunta é um trabalho de reflexão filosófica acerca da Lógica (ver COHNITZ &
ESTRADA GONZALES, 2019, cap. 1).
A filosofia da lógica também trata de paradoxos como o paradoxo do
mentiroso, que surge a partir da noção de verdade (ver HAACK, 2002, cap. 8;
CARDOSO, 2018) e paradoxos sobre a implicação material (ver READ, 2016,
cap. 3). Os paradoxos sobre a noção de verdade também contribuem para a
discussão filosófica sobre a natureza da verdade (ver HAACK, cap. 7) dando
espaço para o surgimento de teorias formais da verdade (ver BEALL, GLANZ-
BERG, RIPLEY, 2018). Paradoxos e outros fenômenos que surgem na Lógica
também colocam em questão se a Lógica pode ser revisada (COHNITZ & ES-
TRADA GONZALES, 2019, cap. 6 e PRIEST, 2014).
Outra reflexão filosófica interessante no campo da filosofia da lógica é
sobre se há apenas uma lógica correta que corretamente codifica a relação de
consequência (monismo) ou há uma pluralidade de lógicas que codificam corre-
tamente a relação de consequência (pluralismo) (ver COHNITZ & ESTRADA
GONZALES, 2019, cap. 6; HAACK, 2002, cap. 12). Além dessas questões ape-
nas mencionadas aqui, há outras reflexões filosóficas sobre a Lógica. Frente aos
vários problemas filosóficos sobre a Lógica, percebe-se que essa ciência não é
importante apenas como um conjunto de teorias sobre a relação de consequên-
cia que podem ter distintas aplicações, como em análise de argumentos, mas
que ela por si só é uma disciplina viva e rica do ponto de vista filosófico.
Esperamos que estas considerações preliminares sobre a Lógica te-
nham oferecido um panorama de algumas características dessa importante área
de estudos, tradicionalmente estudada dentro da Filosofia, por suas múltiplas
aplicações (metafísicas, epistemológicas, semânticas, etc.), bem como pelas
provocações filosóficas que oferece.
74
Questões para revisão:
1. Se nem todo argumento válido é bom para uma discussão racional, qual
seria a importância ou relevância do estudo da Lógica, enquanto análise de
argumentos?
2. É fácil mostrar que qualquer premissa tem como consequência lógica ela
própria. Isso não seria um caso da falácia do círculo vicioso?
3. Com base no presente capítulo, reflita sobre a relação entre a noção pré-
teórica de consequência lógica e as concepções teóricas do CPC (sintática
e semântica).
4. O operador de implicação corresponde (aproximadamente) à construção
condicional “se..., então, ....” da linguagem natural. Quais as limitações
75
dessa correspondência? Em outras palavras, a semântica (clássica)
fornecida para fórmulas construídas com a implicação consegue capturar a
relação de condição e consequência usada em nossos argumentos
cotidianos? Justifique sua posição.
5. Considerando que há várias teorias lógicas (i.e., várias teorias sobre a
relação de consequência lógica) incompatíveis entre si, podemos dizer que
há mais de uma lógica correta? Disserte um pouco a respeito.
MORTARI, Cezar A. Introdução à lógica. 2. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
COPI, I. M. Introdução à lógica. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Mestre Jou,
1978.
FEITOSA, H. A.; PAULOVICH, L. Um prelúdio à lógica. São Paulo: Editora
Unesp, 2005.
SMULLYAN, R. Lógica de primeira ordem. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
76
Sugestões de leitura em português: metalógica
Referências
77
KNEALE, W; KNEALE, M. O desenvolvimento da lógica. Lisboa: Fundação Gul-
benkian, 1980.
MENDELSON, E. Introduction to mathematical logic. 5a Ed. Boca Raton-London-
New York: CRC Press, 2010.
MORTARI, Cezar A. Introdução à lógica. 2. Ed. São Paulo: Editora Unesp, 2016.
PRIEST, Graham. An introduction to non-classical logic: from if to is (2nd ed.).
Cambridge University Press, 2008.
_____. ‘Revising logic’. In P. Rush, The Metaphysics of Logic (pp. 211-223).
Cambridge: Cambridge University Press, 2014.
READ, S. Repensando a lógica: uma introdução à filosofia da lógica. Trad. Abílio
Rodrigues. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2016.
RODRIGUES, A. Lógica. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
SHAPIRO, Stewart. ‘Lógica Clássica’. Trad. Danilo Oliveira e Rodrigo Cid. In.
CID, R; DANTAS, D (orgs). Textos selecionados de lógica (série investiga-
ção filosófica). Pelotas: NEPFIL, 2020.
SIDER, T. Logic for philosophy. United Kingdom: Oxford University Press, 2010.
WALTON, Douglas. Logica Informal. Trad. Ana Lúcia R. Franco, Carlos A. Al.
Salum. 2 ed. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2012.
78
2
Metafísica
Rodrigo Alexandre de Figueiredo
Introdução
1. O que é a metafísica?
80
Aristóteles intitulado Categorias 7 . Algumas metáforas são comumente usadas
para falar dessas disputas sobre categorias ontológicas; por exemplo, uma delas
diz que ao fazermos uma teoria das categorias queremos “cortar a realidade nas
juntas”, outra é a de que estamos em busca do “alfabeto do ser”.
Mas será que a metafísica é uma disciplina que tem esses dois
objetivos diferentes? Será preciso ter uma concepção não unívoca da disciplina?
Há uma tensão aqui entre essas duas concepções? Aristóteles pensa que essa
tensão entre as duas concepções é meramente aparente. Ele afirma que a
ciência das causas primeiras identificará as causas subjacentes às
características primárias das coisas. Assim, a ciência que estuda as causas
primeiras é simplesmente a ciência que estuda o ser enquanto ser. Além disso,
Aristóteles parece defender que, uma vez que a disciplina examina todas as
coisas enquanto seres existentes, estará Deus ou o Motor Imóvel entre as coisas
que merecem ser caracterizadas8 (Meta. Ε.1).
Nesse contexto da metafísica de Aristóteles, surge um conceito muito
importante para a disciplina: essência. O conceito é importante, juntamente com
outros conceitos metafísicos, na medida em que podemos pensar que a tarefa
da metafísica é a de descobrir a essência dos seres ou das coisas, o que eles
são em si mesmos, independentemente de nosso pensamento e linguagem.
Essa perspectiva aristotélica da metafísica foi em grande parte abraçada pelos
filósofos medievais. Eles buscaram defender que a metafísica era uma disciplina
preocupada a natureza ou essência da substância divina e, ao mesmo tempo,
uma disciplina cujo objetivo é estabelecer as categorias ontológicas mais
fundamentais.
Os filósofos racionalistas modernos – a partir do séc. XVI – buscaram
ampliar o âmbito da metafísica. Muitos assumiram a distinção entre a metafísica
geral e a metafísica especial. A metafísica geral, posteriormente conhecida por
ontologia, tem por objetivo estabelecer quais são as categorias ontológicas, no
sentido aristotélico do termo. Entretanto, a metafísica especial vai tratar de três
82
haja alguma conexão necessária entre eventos que são causas e eventos que
são efeitos. Hume é sem dúvida um dos filósofos mais influentes entre os
filósofos contemporâneos. Tanto que ainda hoje temos teorias humeanas sobre a
causalidade, sobre as leis da natureza e sobre tópicos relacionados. As teorias
humeanas podem ser vistas como uma posição metafísica, mas uma posição
metafísica deflacionária, na medida em que evita compromisso com certos tipos
de entidades; em particular, com entidades ditas “intensionais”11.
Kant vem após Hume e sob a sua influência. Kant foi o primeiro filósofo
a fazer a interessante pergunta: a metafísica é possível? Em sua principal obra,
a Crítica da razão pura (1781, 1787), Kant tem por objetivo mostrar em que
medida a metafísica é possível 12 . Ele se afasta completamente da tradição
aristotélica e racionalista: o conhecimento da essência do ser, da coisa-em-si,
não é possível. Podemos conhecer apenas os fenômenos nos quais figuram tais
coisas, não as coisas em si mesmas. A tarefa da metafísica, de acordo com Kant,
não é a de estabelecer as categorias mais gerais da realidade, mas delinear os
conceitos inatos da faculdade cognitiva humana, a partir dos quais apreendemos
os fenômenos. A ideia básica é temos certos dados dos sentidos que são de
alguma forma organizados por esses conceitos inatos. Assim, quando estamos
em contato com uma coisa, não apreendemos a coisa mesma, mas uma
representação dessa coisa; representação essa que é mediada por aqueles
conceitos inatos. A metafísica busca estabelecer aquilo que Kant chamou de
“verdades sintéticas a priori”.
filósofo relativista.
84
por exemplo. Podemos falar de “relativismo local”, que seria o relativismo restrito
a uma área específica, à ética, por exemplo, mas esse não é relevante para
colocar objeção à metafísica. Aqui será relevante o relativismo que recusa a
própria noção de verdade objetiva. Isso porque, tanto a metafísica aristotélica
quanto a metafísica racionalista pressupõem uma noção de verdade objetiva,
não relativa. Acredito que o relativismo é profundamente incoerente, ou o
suficiente para não recusarmos a metafísica baseados nessa posição. A tese do
relativismo global pode ser expressa pela frase “Não há verdades absolutas”.
Podemos nos perguntar: aquilo que essa frase expressa é uma verdade absoluta?
Se é, há verdades absolutas (há pelo menos essa!). Se não é, segue-se que o
relativismo é incorreto e, que é no mínimo possível haver verdades que sejam
absolutamente verdadeiras. Em ambos os casos as coisas estão más para o
relativista.
Sobre o cientificismo, gostaria também de falar algumas palavras15. A
tese do cientificismo pode ser resumida do seguinte modo: “a única metafísica
legítima é aquela que está em continuidade com a ciência empírica”. Podemos
dizer também que defendem que o que há é aquilo que a nossa melhor ciência
diz que há. Buscando ser breve aqui também, podemos perguntar: mas essa
tese está em continuidade com a ciência empírica? Parece que não: não há
testes empíricos ou observações possíveis que sugiram que essa tese seja
empiricamente adequada. Ela simplesmente não é empírica, está além da
ciência empírica. E nesse sentido deveria ser recusada pelos próprios critérios. A
conclusão aqui é a de que parece possível fazer metafísica de uma forma
genuína sem estar em continuidade com a ciência empírica – ou melhor, há
domínios da metafísica que não dizem respeito à ciência empírica. Um exemplo
óbvio é a discussão sobre entidades abstratas16. Saber se existem ou não tais
entidades é uma questão completamente não empírica.
Ainda uma outra posição antimetafísica é o neokantismo. A ideia básica
15 Os positivistas lógicos do Ciclo de Viena podem ser vistos como defensores dessa
posição.
16Entidades abstratas se opõem a entidades concretas, e uma discussão importante é
entender que tipo de coisa são essas entidades, tanto as concretas quanto as abstratas.
A distinção é por vezes entendida no sentido espaciotemporal: entidades concretas são
aquelas que estão no espaço e no tempo, enquanto as abstratas são aquelas sem
localização espaciotemporal.
85
desses filósofos é de que a metafísica não tem por objetivo caracterizar as
categorias mais gerais da realidade, mas de delinear nossos esquemas
conceituais por meio dos quais compreendemos o mundo. A diferença aqui com
o próprio Kant, é que para os filósofos nessa vertente pode haver vários
esquemas conceituais, e não apenas um, como parece supor Kant. Um bom
exemplo desse tipo de investigação é Strawson (1959). Ele busca fazer o que ele
chama de “metafísica descritiva”, cujo objetivo é justamente delinear aqueles
conceitos mais gerais. Alguns críticos pensam que Strawson vem com essa
conversa sobre a metafísica descritiva, mas o que ele de fato faz é uma
metafísica aristotélica pura e simples. Era um metafísico escondido no armário.
A partir dos anos 70 do século XX houve o que podemos chamar de
uma “virada ontológica”. Por influência de filósofos como Saul Kripke e Hilary
Putnam. Kripke (1980) argumentou a favor da existência de verdades
necessárias conhecidas a posteriori. Desde a filosofia moderna tanto
racionalistas quanto empiristas tinham uma tendência a identificar, por um lado,
aquilo que é uma verdade necessária com as verdades que são conhecíveisa
priori e com as verdades analíticas; e por outro lado, identificavam verdades
contingentes, com verdades a posteriori e verdades sintéticas. Kant foi o primeiro
filósofo a questionar essa identificação, propondo que existiam verdades
sintéticas a priori. Mas o que Kripke fez foi bastante revolucionário: buscou
mostrar que as modalidades necessário/contingente, a priori/a posteriori e
analítico/sintético, são modalidades diferentes, metafísicas, epistêmicas e
semânticas, respectivamente. Dessa forma, procurou mostrar que há verdades
que são necessárias e são conhecidas a posteriori, e que também há verdades
que são contingentes que são conhecidas a priori.
A ideia de que há verdade necessárias a posteriori é de grande
importância para a ciência empírica: mostra que nem todo conhecimento
empírico, baseado na experiência, é contingente. Um exemplo de verdades
científicas que parecem necessárias são certas identificações teóricas como “a
água é H2O”, ou “Sócrates é da espécie humana”. Se essas frases são de fato
verdadeiras, segue-se, de acordo com Kripke, que são necessariamente
verdadeiras. Isso quer dizer que não há mundos (metafisicamente) possíveis17
17Anoção de mundo possível foi proposta por Leibniz. Com ela queremos falar como o
mundo é, e como poderia ser. Hoje é muito utilizada na lógica modal e na metafísica
86
nos quais temos água e não temos H2O, por exemplo. Os mundos nos quais
temos água, mas não temos H2O seriam mundos meramente logicamente
possíveis, e não mundos realmente possíveis. E parece que nem tudo que é
logicamente possível é de fato possível: é logicamente possível, por exemplo,
Sócrates ser um chinelo, mas ninguém que esteja fora de um hospício por mérito
diria que Sócrates, ao invés de ser uma pessoa, poderia ter de sido de fato um
chinelo. Pensamos que Sócrates poderia não ter sido um filósofo, mas parece
obviamente errado pensar que ele poderia não ser da espécie humana.
A ideia de que há verdades contingentes que são conhecidas a priori
não é relevante para a ciência, mas nos ajuda a mostrar que não podemos
identificar, por um lado, as noções de verdade necessária e verdade a priori e,
por outro lado, as noções de verdade contingente e verdade a posteriori. Um
exemplo de uma verdade contingente e a priori seria aquela expressa no cogito
cartesiano: “Eu existo”. Essa é uma verdade a priori, na medida em que a
descubro apenas pelo raciocínio (quando digo a frase não posso estar errado!);
mas a frase expressa uma verdade contingente, na medida em que eu não
existo necessariamente – existo mas poderia não ter existido, o que teria sido
uma coisa bem triste.
Com essa virada ontológica, os metafísicos puderam sair do armário.
Deixou de ser visto como um absurdo fazer metafísica e ela voltou a ser uma
disciplina respeitada nos departamentos de filosofia de influência analítica,
principalmente. Isso não foi o fim das posições antimetafísicas, mas sim o
florescimento de muitas teorias de influência aristotélica, da metafísica como a
ciência do ser enquanto ser, que gozava de pouca popularidade até o momento.
Hoje, devido às especificidades que foram tomando as disciplinas da
filosofia, a metafísica já não é uma disciplina tão ampla como era para os
racionalistas modernos. A questão sobre a existência de Deus, por exemplo, é
debatida na filosofia da religião, que reúne questões metafísicas,
epistemológicas e morais relacionadas à religião. A relação entre o corpo e a
88
2. O problema dos universais
genuína. Usei e usarei o exemplo por simplicidade. Entretanto, tenha em mente que
alguns filósofos, como Armstrong (1978b, 1989), defendem que a última palavra sobre
quais universais realmente existem é da ciência, especialmente a física. Para essa teoria
dos universais, o universal da sabedoria não existe, mas existe, por exemplo, o universal
de ter carga -1, instanciado por todos os elétrons.
89
Nesse último caso, vamos precisar de alguma noção que substitua
adequadamente os atributos. Além disso, há uma relação desse problema sobre
os atributos com outros tópicos filosóficos e que merecem ser considerados: a
predicação, a referência a termos abstratos singulares, as proposições, a
natureza dos particulares concretos, os eventos, a causalidade, as leis da
natureza, a natureza dos mundos possíveis, entre outros. Na verdade, a
depender da resposta que se dá ao problema dos universais, haverá muitas
consequências para as teorizações posteriores nesses diversos tópicos. Talvez
por isso seja interessante começarmos com o problema dos universais, apesar
de não haver uma obrigação de assim fazer.
Mas como surge o problema dos universais? Acredito que o problema
surge da necessidade de se explicar certos fatos sobre o mundo: o fato do
indivíduo Sócrates ser sábio, o fato do indivíduo Platão ser sábio, o fato de
Sócrates ser mestre de Platão, o fato de Platão ser mestre de Aristóteles, o fato
dos elétrons terem todos eles carga negativa (-1), entre uma infinidade de fatos
que poderíamos incluir aqui nessa lista, mas que não seria conveniente. O ponto
central é que temos indivíduos (ou quase-indivíduos, no caso dos elétrons e
outras partículas subatômicas) exibindo certos atributos; queremos saber afinal
de contas o que são esses atributos e qual a natureza deles. Falar algo sobre a
natureza dessas supostas entidades nos ajuda a entender em parte os fatos que
levantaram o problema. Além disso, falar algo sobre a natureza e utilidade
dessas entidades envolve um vasto conjunto de problemas metafísicos, lógicos e
epistemológicos. De modo que, novamente, falar do problema dos universais
pode ser errôneo, pois parece haver um problema específico, quando na
verdade envolve muitos problemas relacionados entre si.
Sem dúvida, um dos problemas mais relevantes que se levanta é o
problema do um sobre muitos. O problema do um sobre muitos gira em torno da
pergunta sobre como são possíveis conjuntamente fatos como Sócrates é sábio,
Platão é sábio, Aristóteles é sábio etc. Não estamos questionando a existência
desses indivíduos (Sócrates, Platão e Aristóteles), mas queremos saber como
eles podem ao mesmo tempo ter essa mesma propriedade de ser sábio –
tomando o termo “propriedade” em um sentido pré-teórico, sem avançar em
alguma teoria sobre propriedades. O que é essa propriedade? É a mesma
propriedade que ocorre nos três fatos? Serão diversas propriedades particulares,
uma para cada caso? Será que temos que falar de propriedades em um sentido
90
substancial do termo, ou podemos ter uma noção menos substancial, ou mesmo
deflacionista sobre as propriedades? As mesmas perguntas valendo para os
demais atributos.
Os filósofos realistas defendem que para solucionarmos o problema do
um sobre muitos e outros problemas relacionados, precisamos de uma
concepção substancial de atributos. Temos que entender essas entidades como
propriedades e relações sui generis, irredutíveis a outros tipos de entidades mais
básicas. Em outras palavras, temos que entender essas entidades como
compondo uma categoria ontológica fundamental. Os realistas pensam ainda
que temos que entender essas entidades como sendo universais. Na literatura
sobre o tema, parece que uma condição suficiente para uma entidade ser
universal é essa entidade poder ter múltiplas instâncias ao mesmo tempo. Nesse
sentido, a propriedade da sabedoria será uma propriedade universal que tem
como instâncias Sócrates, Platão, Aristóteles, e os demais sábios.
Historicamente, o realismo dos universais tem a sua origem nos
filósofos Platão 21 e Aristóteles 22 . As concepções desses filósofos podem ser
chamadas de “realistas”, mas são essencialmente diferentes. Essa diferença é
notada ainda hoje entre as teorias platônicas (ou platonistas, como preferirem) e
aristotélicas. Platônicos e aristotélicos divergem sobre quais universais
realmente existem23, sobre a natureza dos universais, sobre como conhecemos
tais entidades, entre outras divergências mais pontuais. É preciso ter cuidado ao
falar de teorias platônicas e aristotélicas, na medida em que não estamos
falando especificamente das teorias defendidas por Platão e Aristóteles, mas de
teorias que foram defendidas e que em traços gerais e relevantes se
assemelham às teorias daqueles filósofos.
Podemos destacar aqui algumas divergências que há entre as teorias
21Para saber mais sobre o modo como Platão trata os universais (ou as formas), ver
principalmente o diálogo Parmênides, onde ele expõe a teoria das formas e são
levantadas várias objeções a essa teoria, como o famoso argumento do terceiro homem.
Ele se refere a essas entidades em outros diálogos (e.g., A República), mas apenas no
Parmênides elas são o foco da discussão.
22Obras importantes de Aristóteles nas quais eles trata do tema são As Categorias e
AMetafísica.
23Há tipos diferentes de teorias platônicas e aristotélicas, que vão divergir internamente
25Istoé, atributos que parecem diferentes, mas são instanciados pelos indivíduos objetos
no mundo atual. Se falamos apenas de classes do mundo atual, dada a extensionalidade
dos conjuntos, teremos que tomar esses atributos como sendo os mesmos atributos,
ainda que isso contrarie a nossa intuição de que são atributos diferentes.
93
assemelham ou pertencem ao conjunto dos sábios, que eles são sábios; mas
antes, o fato de eles serem sábios é que explica o fato deles se assemelharem
ou de pertencerem ao conjunto dos sábios.
Mas cada lado da discussão tem também intuições que o favorecem.
De um lado, o realismo pode satisfazer o nosso desejo por uma análise mais
profunda, mas recorrendo a entidades “duvidosas” e que talvez expliquem as
coisas apenas aparentemente. De outro lado, o nominalismo parece não explicar
muito bem as coisas, ou deixar muitas delas intencionalmente sem explicação,
mas tem uma ontologia26 simples e com entidades intuitivamente mais aceitáveis
do que os realistas. A escolha aqui é difícil, e dependerá da ideologia de cada
um e do quanto estará disposto a pagar, ao assumir uma ontologia. Afinal, não
existe almoço grátis.
26Há uma distinção entre ontologia e ideologia que está por trás de toda teoria ontológica:
por um lado temos uma ontologia, que são as entidades que a teoria diz que existe, com
as quais está comprometida. Por outro lado, temos uma ideologia, que são certos
compromissos com determinadas ideias que essas teorias também têm; por exemplo,
podemos ser materialistas, o que terá grande influência sobre nossa teoria ontológica e
mesmo com o tipo de entidade que estamos dispostos a admitir como existentes nessas
teorias.
94
universais terá reflexos aqui nessa discussão, uma vez que um dos pontos aqui
é saber qual é a relação entre os indivíduos e os atributos que eles exibem.
A resposta dos filósofos nominalistas das classes e da semelhança
parece fácil: dirão simplesmente que os indivíduos são entidades brutas, não
passíveis de uma análise ontológica em termos de entidades mais básicas.
Dessa forma, o debate sobre a natureza dos particulares concretos termina
prematuramente, se estamos dispostos a aceitar alguma teoria nominalista que
não admite a existência de atributos como entidades sui generis. Mas como
vimos brevemente, há um tipo de teoria nominalista que admite a existência de
atributos: a teoria dos tropos.
Os filósofos que postulam atributos como entidades sui generis
precisam dizer de que maneira esses atributos se relacionam com os seus
portadores. Uma teoria platônica também tende a não analisar os particulares
em termos de suas propriedades. Acredito que há duas opções aqui: tomar os
particulares concretos como primitivos e mostrar que há algum tipo de relação
ontológica desses particulares com os universais abstratos – relação de
participação, ou de exemplificação –; ou analisar esses particulares em termos
de feixes de tropos – o que veremos mais adiante –, e dizer que esses tropos
têm alguma relação ontológica com os universais platônicos.
Um realista aristotélico tem opções de teorias sobre particulares
concretos. Em uma das opções, eles podem entender tais entidades, ou pelo
menos uma parte considerável delas, como substâncias aristotélicas, que são
entidades sui generis, irredutíveis a outros tipos de entidades, e das quais todas
as demais entidades que existem dependem para as suas existências. Os
atributos dessas substâncias constituem outras categorias ontológicas também
fundamentais, mas todos eles dependentes da substância para as suas
existências. Algumas teorias vão distinguir pelo menos quatro tipos de entidades
fundamentais e irredutíveis: substâncias, atributos (propriedades e relações
universais), espécies naturais e acidentes (tropos). Uma teoria com quatro
categorias fundamentais é defendida por Lowe (2006). É argumentável que
Aristóteles nas Categorias tenha uma teoria das quatro categorias.
A outra opção para o aristotélico é analisar os indivíduos em termos de
substratos e propriedades intrínsecas27, tomando essas entidades como básicas.
27Uma propriedade intrínseca é aquela que um indivíduo tem em virtude de sua natureza
95
Consideremos o indivíduo Sócrates. Ele seria uma entidade redutível, pelo
menos em tese, a um substrato mais suas propriedades. O substrato seria uma
espécie de sustentáculo dos atributos, o que está debaixo dos atributos, sendo
que ele próprio não tem qualquer atributo. Por isso são por vezes conhecidos
como “particulares nus”, os particulares despidos de todas as suas propriedades.
As propriedades aqui podem ser entendidas como universais (aristotélicos) ou
como tropos. Se entendemos as propriedades como universais, uma das
funções do substrato é conferir a particularidade aos indivíduos – se fossem
constituídos apenas de universais, seria metafisicamente possível haver dois
indivíduos indiscerníveis 28 . Esse é o problema sobre a particularidade dos
indivíduos. A teoria que postula substratos resolve facilmente esse problema, a
troco de postular uma entidade que não sabemos exatamente o que é – quando
conhecemos algo, conhecemos as suas propriedades e relações, o que os
substratos, por definição, não têm. Uma teoria mais ou menos nesses moldes foi
defendida por Armstrong (1978b, 1989), tomando as propriedades como
universais aristotélicos. Tomando as propriedades como tropos, o que é menos
comum, temos filósofos como Martin (1980) e Heil (2003).
Outra estratégia é a da teoria dos feixes. Essa teoria é a defesa de que
um particular concreto como Sócrates não seria algo além de um feixe de suas
propriedades intrínsecas. A ideia de um feixe é uma metáfora. Pensem em um
feixe de lenha; agora substitua a lenha por propriedades e a amarração do feixe
por alguma relação ontológica fundamental, por vezes chamada “copresença”:
temos assim um particular concreto. Uma teoria dos feixes pode entender as
propriedades que compõem o feixe como universais ou como particulares.
Russell, que defendeu de tudo na vida, em algum momento defendeu uma teoria
dos feixes que entende as propriedades como universais (1940) – que parece
não evitar o problema que os substratos evitam, isto é, o problema sobre a
particularidade dos indivíduos. Entender as propriedades como particulares evita
apenas, ou em virtude daquilo que ele é (a massa de um cão, por exemplo), enquanto
uma propriedade extrínseca é aquela que um indivíduo tem devido à sua relação com o
mundo (o peso do cão).
28Indivíduos que, por terem exatamente os mesmos atributos universais, diríamos que
são o mesmo indivíduo. Parece uma consequência dessa teoria admitir essa ideia um
tanto quanto estranha.
96
esse problema e é a estratégia mais comumente utilizada; dois grandes
defensores dessa posição são Williams (1953) e Campbell (1990). Ambos
defendem que as únicas entidades fundamentais existentes são os tropos – é
uma ontologia que postula apenas uma categoria ontológica fundamental.
Como podemos perceber o problema dos universais e o problema dos
particulares concretos têm muitas relações entre si. Acredito que esses dois
problemas podem ser vistos como os dois principais problemas em ontologia, na
medida em que estamos tentando dizer quais são as entidades mais básicas que
compõem a realidade. E como podemos perceber, há grande desacordo entre os
filósofos na tentativa de oferecer a lista adequada dessas entidades básicas.
Muitas vezes esses problemas não são explicitamente distinguidos, e os filósofos
os tratam conjuntamente como o problema de determinar as categorias mais
gerais e fundamentais da realidade, o que não constitui um erro, mas uma
estratégia diferente de abordagem dos problemas.
Seja como for, os problemas dos universais e dos particulares, como
qualquer problema filosófico, estão longe de ter uma solução final. Constituem
ainda uma estimulante fonte de pesquisa em metafísica. Os filósofos, em geral,
depois de determinar quais as entidades mais básicas que admitem, buscam, na
sequência, fazer uma análise metafísica das demais noções que “eliminamos”,
usando essas entidades básicas. Por exemplo, podemos querer dizer que
noções como eventos, mundos possíveis, proposições, leis da natureza, entre
muitas outras, são algum tipo entidade composta por aquelas entidades mais
básicas. Avaliar o poder das teorias de dar uma solução para aqueles tópicos,
nos ajuda a avaliar adequadamente o valor de cada teoria, e o valor das teorias
confrontadas entre si.
98
1. O tempo envolve mudança.
2. A mudança só é possível na série A
3. Se o tempo envolve mudança e a mudança só é possível na série
A, então a série A é fundamental para o tempo.
c. Logo, a série A é fundamental para o tempo.
Alguns filósofos vão contestar (1), que é a ideia de que o tempo envolve
mudança (Shoemaker, 1993), outros contestam (2), que é a ideia de que não há
mudança na série B (Russell, 1937). Mas precisamos que (1) e (2) sejam
conjuntamente verdadeiras para podermos extrair, juntamente com (3), a
conclusão de que a série A é fundamental para o tempo. Em geral, os filósofos
que contestam a primeira parte do argumento de McTaggart assumem uma
teoria B sobre o tempo; teoria essa que toma a série B como suficiente para a
existência do tempo. Não entrarei nos detalhes dessa discussão aqui, mas passo
a falar sobre a segunda parte do argumento de McTaggart, na qual ele defende
que a série A é contraditória.
A segunda parte do argumento é conhecida como o “paradoxo de
McTaggart”. Para mostrar que o tempo não existe, McTaggart procura
argumentar a favor da ideia de que a série A é contraditória, e que a tentativa de
eliminarmos essa contradição leva-nos a uma regressão infinita. Assim, ele
afirma que as determinações da série A são incompatíveis entre si. Isso quer
dizer que um evento não pode ser passado, presente e futuro. Contudo,
McTaggart afirma que os eventos têm todas essas determinações: são passados,
presentes e futuros. De modo que chegamos à contradição. Essa segunda parte
do argumento pode ser colocada como se segue:
99
Há uma objeção óbvia ao argumento que é antecipada pelo próprio
McTaggart. Um evento E não é passado, é presente e é futuro. Suponha que E é
um evento presente. Assim, ele será passado e foi futuro. Se E é um evento
futuro, ele será presente e passado. Se E é passado, ele foi presente e futuro.
Dessa forma, não teríamos uma incompatibilidade entre as atribuições temporais,
uma vez que os eventos não têm essas atribuições simultaneamente, mas
apenas sucessivamente.
McTaggart procura responder a essa objeção do seguinte modo. Para
evitarmos a contradição que é colocada inicialmente – E é passado, é presente e
é futuro –, invocamos posições de nível secundário da série A – e.g. E é presente,
foi futuro e será passado. Contudo, quando consideramos todas as posições no
nível secundário, observamos que há nove posições: é passado, é presente, é
futuro, foi passado, foi presente, foi futuro, será passado, será presente, será
futuro. McTaggart pensa que todos os eventos ocupam cada uma dessas nove
posições da série A. E entre essas posições vai haver aquelas que são
incompatíveis, como é presente e é passado. Uma solução para o novo
problema é passar para um terceiro nível da série A – e.g. o evento E é presente
no presente, é passado no futuro, e é futuro no passado, etc. Esse nível terá
vinte e sete posições, ao exaurirmos todas as possibilidades. Mas alguma das
combinações possíveis serão novamente incompatíveis, como é presente no
passado e é futuro no presente, e todos os evento ocupam cada uma das
posições da série A. Aqui, parece que caímos em uma regressão infinita viciosa,
e a única maneira de evitá-la é não dar o primeiro passo. E evitar o primeiro
passo é aceitar que a série A é contraditória.
Defensores da teoria A forneceram respostas ao argumento de
McTaggart. Um deles, Dummett (1980), em um artigo relativamente complexo,
como a própria discussão sobre o tempo, procurou argumentar que McTaggart
faz uma suposição duvidosa na segunda parte do argumento contra a irrealidade
do tempo. Segundo Dummett, McTaggart supõe que podemos ter uma descrição
completa e consistente da realidade. Mas Dummet argumenta que o que foi
mostrado com o argumento da irrealidade do tempo é que a teoria que toma a
série A como fundamental é incompatível com essa suposição. Assim, ao
tentarmos especificar todas as verdades da série A, e opondo-as às verdades a
partir da perspectiva atual do sujeito, caímos em contradição. Dummett
argumenta que, se for o caso da teoria A ser verdadeira, segue-se que é
100
impossível essa descrição completa da realidade.
Contudo, supondo que essa descrição seja possível, e que dessa forma
a série A é contraditória, podemos tentar admitir uma teoria B, que não é
contraditória, mas é incompleta, de acordo com o argumento de McTaggart. Uma
boa estratégia para um defensor da teoria B é mostrar que de alguma forma é
possível a mudança na série B. Nesse sentido, um teórico da série B pode estar
de acordo com essa segunda parte do argumento de McTaggart, a favor da ideia
de que a série A é contraditória.
Um último detalhe sobre as teorias B e A sobre o tempo é o seguinte. As
teorias B são chamadas de “eternistas” ou de “eternalistas”, na medida em que
admitem que todos os momentos do tempo são igualmente reais, não havendo
uma prioridade ontológica do presente (que é um conceito da teoria A) em
relação aos demais momentos. Já na teoria A, teremos algumas variantes, mas a
mais comum é o chamado “presentismo”: a ideia de que há uma prioridade
ontológica do presente em relação ao passado e ao futuro, ou em outras
palavras, apenas o presente é real – o que é bastante intuitivo para nós que
vivemos no presente.
29Essa terminologia se deve a Lewis (1986). Essas palavras veem do inglês “endurantism”
e “perdurantism”, respectivamente.
30Uma entidade é numericamente idêntica a outra, se elas são exatamente a mesma
105
Conclusão
106
Leituras recomendadas
Referências
110
3
Epistemologia
Delvair Custódio Moreira
1. Análise do conhecimento
113
para muitos epistemólogos essas condições ainda são necessárias. Por isso, em
muitas discussões epistemológicas é pressuposto que conhecimento é pelo menos
crença, verdadeira justificada. Ainda que a questão sobre quais são as condições
necessárias e suficientes para o conhecimento ainda seja uma questão em aberto
para epistemólogos.
2.1. Evidencialismo
116
2.2. A Estrutura da Justificação: Fundacionismo e Coerentismo
118
– Mas talvez também há algum homem para
quem não são amargas.
– Queres cansar-me? Por acaso eu disse que são
amargas para todos? Disse que são amargas
para mim, e não afirmo que isso é sempre assim.
Não acontece que por uma causa ou outra, a
mesma coisa uma vez tem gosto doce, outra vez
amargo? Afirmo o seguinte: quando um homem
saboreia alguma coisa, pode jurar de boa-fé que
sabe que tal coisa é suave ou não ao seu paladar
e não há sofisma grego que possa retirar-lhe esse
conhecimento (p. 78).
119
básicas. Por exemplo, a minha crença de que o café está amargo seria uma
crença básica, para essa concepção de fundacionismo, porque é formada
diretamente da sensação de amargo que experimento ao tomar o café. O leitor
pode estar se perguntando se esta noção de crença básica não é a mesma
apresentada anteriormente quando falamos de crenças de aparências. A
resposta a essa questão, no entanto, é: não. Recorde que, para o fundacionismo
cartesiano, crenças básicas são crenças que formamos sobre nossos estados
mentais, que incluem crenças de aparência, ou seja, crenças sobre as nossas
experiências sensoriais. Já para o fundacionismo empírico, crenças básicas são
crenças formadas com base nas experiências sensoriais, mas não são crenças
sobre essas experiências. Para tornar clara a diferença considere as seguintes
crenças de S: (a) S acredita que o céu é azul; (b) S acredita que o céu lhe
parece azul. A crença (a) é uma crença básica para o fundacionista empírico,
uma vez que é uma crença formada com base na experiência de azul que S tem
ao ver o céu. Mas (a) não é uma crença básica para o fundacionista cartesiano,
uma vez que é uma crença sobre o mundo externo a S. Ou seja (a) é uma
crença perceptiva e não uma crença introspectiva, i.e., uma crença sobre um
estado mental de S. A crença (b), por outro lado, seria uma crença básica para o
fundacionismo cartesiano por se tratar de uma crença de S sobre um estado
mental, a saber, de S estar experienciando a cor azul ao olhar para o céu.
Tendo elucidado a diferença entre o fundacionismo empírico e o
fundacionismo cartesiano, passemos para uma importante questão que o
primeiro tem de responder. Como a experiência sensorial pode justificar uma
crença? Para compreender a relevância dessa questão, considere que a noção
de crença básica envolve duas características. Primeiro, uma crença básica é
uma crença cuja justificação não deriva de outras crenças. Até aqui, não há
problema, pois o fundacionista empírico alega que crenças perceptivas não
dependem de outras crenças, para serem justificadas. Porém a segunda
característica de uma crença básica é que ela é uma crença justificada. O
fundacionista cartesiano explica essa segunda característica, sugerindo que
crenças básicas possuem uma propriedade autojustificante (a infalibilidade,
como vimos é a melhor candidata a essa propriedade), mas o fundacionista
empírico toma um caminho diferente defendendo que a justificação de uma
crença básica deriva da experiência sensorial. Assim, para o fundacionismo
empírico ter uma resposta satisfatória para a questão “o que é uma crença
120
básica?”, é preciso explicar por que a experiência sensorial é uma fonte de
justificação para uma crença. Sellars (1997) apresenta uma dura crítica a ideia
de que a experiência sensorial pode contar como justificação: “ao caracterizar
um episódio ou estado como o de conhecer (...) estamos colocando-o no espaço
lógico das razões, da justificação e de ser capaz de justificar o que se diz”. O
ponto de Sellars é que a justificação possui um caráter conversacional: se S esta
justificado em acreditar que p, então S deve ser capaz de apresentar as razões
para sua crença em p. Mas a experiência sensorial pura não pode ser
apresentada como uma razão para acreditar em algo, uma vez que se trata de
uma experiência privada e não-conceitualizada. Em outras palavras,
experiências sensoriais são incomunicáveis, portanto, não podem ser
apresentadas como uma razão para se acreditar em algo. Uma forma de
contornar o problema colocado por Sellars é a chamada “solução de
compromisso” (STEUP, 2004): a ideia é a de que a experiência sensorial seja
uma fonte de justificação para uma crença básica quando acompanhada de
alguma razão que indique que essa experiência seja confiável. Por exemplo,
tenho uma razão para acreditar que minha experiência perceptível é confiável
para me mostrar objetos próximos e suas propriedades, porque, no passado,
esse tipo de experiência me levou a formar crenças verdadeiras sobre objetos
próximos. A razão que tenho para confiar em minhas experiências perceptivas
pode ser usada no “espaço lógico das razões”, para apresentar a justificação
para minhas crenças. Isso evita a objeção de Sellars, mas descaracteriza a
motivação inicial do fundacionismo, isto é, a ideia de que há crenças básicas,
que são justificadas sem recurso a outras crenças. Uma vez que a justificação
para crenças perceptivas dependeria, além da experiência sensorial, de uma
crença de que essas experiências são confiáveis, a solução de compromisso não
é uma alternativa consistente com o fundacionismo, para evitar a objeção de
Sellers (de fato, a solução de compromisso tem esse nome, por se tratar de um
compromisso entre o fundacionismo e a sua tese rival, o coerentismo)
Mas se o problema com as experiências sensoriais for apenas a
questão de não serem passíveis de serem apresentadas como razões que
justifiquem uma crença, porque então não podemos conceitualizar ou descrever
essas experiências e, assim, as tornar comunicáveis? Se optarmos por essa
alternativa, retornamos ao fundacionismo cartesiano: ao descrever minha
experiência de azul, ao ver o céu, eu diria coisas como “o céu me parece azul”, o
121
que torna nossa posição muito próxima daquela sobre as crenças de aparência,
descritas anteriormente. Além de nos colocar face aos mesmos problemas
enfrentados pelo fundacionismo cartesiano, Sellars também apresenta uma
crítica adicional contra essa estratégia:
3. Individualismo Epistêmico
125
(...) opiniões de outrem em nossas mentes não
nos fazem saber nem um pouco a mais, mesmo
que verdadeiras. O que neles era ciência, em nós
não passa de opinião, porque apenas demos
assentimento à sua autoridade e não
empregamos, como eles fizeram, nossa própria
razão para compreender essas verdades (1975,
i.iv, p.23).
128
4. Epistemologia do Testemunho
132
1. T testifica a O que p;
2. A experiência passada mostrou a O que testemunhos do tipo T
geralmente são confiáveis.
3. Então O está justificado por (2) em acreditar que testemunhos do tipo
T geralmente são confiáveis.
4. Portanto, O está justificado por (3) em acreditar que p.
133
em geral não confirmamos a veracidade. Se RP for entendida em termos de
experiência individual, então, em geral, não podemos acreditar justificadamente
em muitos tipos de testemunho. Na literatura, chama-se a esse problema de
“problema da pouca base empírica”, uma vez que diz respeito à pouca
quantidade de confirmação empírica que temos para assegurar a confiabilidade
de testemunhos em geral.
Outro problema também relacionado à pouca base empírica para
assegurar a confiabilidade de testemunhos, que podemos chamar de “problema
do testemunho em fase infantil”, é que crianças dificilmente ganhariam
justificação por testemunho nesta interpretação da RP. Por terem pouca
experiência, é plausível pensar que crianças confirmaram a veracidade de um
número ainda menor de testemunhos, mesmo dos tipos mais básicos. Uma vez
que crianças, em princípio, aprendem muito sobre o mundo a sua volta através
do testemunho de seus pais, familiares e professores, a abordagem humeana de
RPse torna ainda mais implausível. Note que o problema da pouca base empírica
e o problema do testemunho em fase infantil sugerem que RP, entendida nos
termos humeanos, é falsa. Uma vez que RP não diz apenas que é possível para
O obter razões para acreditar que certos tipos de testemunhos geralmente são
confiáveis. mas que é frequentemente possível para O fazer isso. Além disso,
uma vez que o reducionismo admite RN, as objeções de Coady a RP, se
funcionarem, nos conduzem ao ceticismo quanto ao conhecimento obtido por
testemunho. Se quisermos evitar o ceticismo, sugere Coady, devemos também
negar RN, aceitando o testemunho como uma fonte legítima de justificação. Antes
de investigamos, no entanto, se temos boas razões para aceitarmos ou
rejeitarmos RN, veremos outra abordagem de RP que, em princípio, evita as
dificuldades colocadas por Coady.
Em uma série de trabalhos, Elizabeth Fricker (1987, 1994, 1995, 2002,
2004) defende uma interpretação menos exigente de RP, a qual ela denomina de
“redução local” (em contraste com o que ela chama de “redução global”, para se
referir ao reducionismo do tipo humeano que vimos anteriormente). A diferença
entre o reducionismo local e o reducionismo humeano é que a justificação para
acreditar em um testemunho não depende de uma crença de que testemunhos
ou tipos de testemunhos são geralmente confiáveis, mas que uma testemunha
em particular é confiável quanto a um relato em particular. Por se referir a razões
para acreditar em um testemunho em particular, a confiabilidade de uma
134
testemunha pode ser justificada por outros testemunhos sem incorrer em
circularidade (como ocorria no caso da redução humeana). Por exemplo, posso
estar justificado em acreditar que um mecânico em particular é confiável para me
informar sobre qual é o defeito no motor de meu carro, com base no testemunho
de meu pai de que este mecânico, que trabalha para a família há anos, é
confiável. Uma vez que o testemunho de outras pessoas podem ser usados para
justificar a crença na confiabilidade de um testemunho em particular, em princípio,
podemos dizer que essa versão de RP contorna também o problema da pouca
base empírica, enfrentado pelo reducionismo humeano, uma vez que a base
para estabelecer que um testemunho em particular é confiável seria maior por
incluir outros testemunhos.
Porém, o reducionismo local ainda enfrenta problemas semelhantes ao
reducionismo global. Considere, por exemplo, que em muitos casos de
testemunhos não temos conhecimento prévio algum sobre a testemunha em
particular. Quando pergunto a um estranho acerca da localização de um hotel eu
não tenho qualquer crença que indique que essa testemunha particular é
confiável para esse tipo de relato. Ainda assim, parece plausível pensar que
estou justificado em acreditar naquilo que o desconhecido informante de rua me
diz sobre a localização do hotel. Mesmo nas situações onde a confiabilidade de
alguém pode ser justificada com base no testemunho de outra pessoa, em algum
momento na cadeia de justificação, o sujeito teria que tomar um testemunho
como confiável sem ter outras razões que assegurem isso. O problema do
testemunho em fase infantil também se mantém para esta versão de RP, já que o
escopo de crenças que assegurem a confiabilidade de instâncias particulares de
testemunho seria muito pequeno para crianças e jovens. Fricker está ciente
desses problemas em sua elaboração de RP, mas a solução que ela apresenta é
no mínimo curiosa. Em relação ao testemunho em fase infantil, Fricker afirma
que “nós temos de aceitar (o anti-reducionismo) com respeito à fase de
desenvolvimento, mas não precisamos e não devemos aceitar com respeito à
fase madura” (1995, p. 403), e também o mesmo com respeito a demais
situações, onde ouvintes não têm qualquer razão que assegure a confiabilidade
da testemunha: “(a palavra de alguém) teria papel ativo (na justificação) somente
em circunstâncias incomuns onde alguém não sabe nada exceto que outro está
testemunhando que p” (2002, p. 382). Fricker então parece admitir que, em
casos de testemunho em fase infantil e em casos onde o ouvinte não tem
135
alguma razão para acreditar que a testemunha é confiável (que não seja o
próprio relato da testemunha), a declaração de uma testemunha de que p
fornece justificação para um ouvinte acreditar que p. Ou seja, Fricker parece
admitir que RN é falsa. Se esse for o caso, então a posição de Fricker não
confere suporte a uma tese reducionista. Conforme visto, o reducionismo é a
conjunção de RN e RP e, uma vez que Fricker parece rejeitar RN em algumas
situações não claro que sua posição seja de fato reducionista. Colocando em
outros termos: se, para o reducionismo local, a palavra de alguém é o bastante
para acreditarmos nela em algumas circunstâncias, então por que o
reducionismo local é um reducionismo?
136
engana dessa forma; sua linguagem é sempre
verdadeira, e somente quando é má interpretada
é que nós caímos em erro (REID, 1764, p. 123).
137
livres para mentir ou dizer a verdade, não se segue que não podemos prever se
elas irão dizer a verdade ou não. O comportamento pode ser previsível, mesmo
supondo que seres humanos são livres para agirem. Quando nos dirigimos ao
supermercado, por exemplo, consideramos que os funcionários do
supermercado, apesar de serem livres, se comportam de forma previsível: eles
abriram o supermercado no horário usual e estão atendendo de maneira usual.
Agimos no mundo com relação a outras pessoas, prevendo que estas se
comportarão de certa maneira, mesmo julgando que elas são livres para agir de
muitas outras maneiras. Assim, argumenta o anti-reducionista, podemos
presumir que as pessoas dirão a verdade, mesmo sendo livres para mentir,
quando não há razões que indiquem o contrário.
Outro argumento em favor de NR é o argumento contra a credulidade
(FRICKER, 1994). A estratégia reducionista aqui tem dois passos: primeiro
argumenta-se que a credulidade é uma atitude epistemicamente viciosa e, assim,
incompatível com a noção de justificação epistêmica. Depois, mostra-se que se
aceitarmos o anti-reducionismo, isto é, se admitirmos que a declaração T de que
p fornece justificação para O acreditar que p na ausência de razões contrárias,
estaríamos sancionando a formação de crenças crédulas. Portanto, não pode ser
o caso que a declaração T de que p fornece justificação para O acreditar que p
(mesmo na ausência de razões contrárias), exatamente como afirma NR.
Vejamos o primeiro passo.
Há várias maneiras de formulamos a noção de credulidade como uma
atitude epistemicamente viciosa. Para fins de argumentação, consideraremos
apenas a credulidade quanto à crença em testemunhos (cf., GOLDBERG e
HENDERSON, 2005). Podemos dizer que O é crédulo quanto a testemunhos se
(a) O acredita em qualquer coisa que lhe dizem ou (b) O frequentemente ignora
razões que indicam que a testemunha não é confiável. Porque a credulidade,
assim entendida, seria um vício epistêmico? Porque alguém crédulo, neste
sentido, plausivelmente formaria muitas crenças falsas com base em testemunho.
Desta forma, a credulidade viola a meta epistêmica que, conforme vimos, é a de
acreditar em verdades e evitar falsidades. Mas para que isso conte como uma
razão em favor de NR, o reducionista deve mostrar que, se admitirmos que, na
ausência de razões contrárias, a palavra de alguém de que p fornece justificação
para O acreditar que p, estaríamos sancionando a credulidade. Para sustentar
essa ideia Fricker afirma que “em uma abordagem reducionista, mas não em
138
uma abordagem anti-reducionista, o ouvinte deve sempre estar monitorando
criticamente a testemunha” (1994, p.143). Assim, apenas o reducionismo evitaria
a credulidade. No entanto, o que Fricker parece sugerir é que o anti-
reducionismo é a tese de que temos justificação para confiar cegamente em
testemunhos, mas tal interpretação não faz justiça aquilo que o anti-reducionista
defende. Como aponta Coady:
Leitura recomendada
Referências
151
4
Ética
Bruno Aislã Gonçalves dos Santos
Rafael Martins
1. Introdução
34“O conceito de justiça (…) [é] definido, então, pela sua função de [estabelecer] seus
princípios na atribuição de direitos e deveres e na definição da divisão apropriada das
vantagens sociais. [ou seja, o conceito formal de justiça é definido por sua função de
estabelecer direitos, deveres e dividir vantagens sociais.] Uma concepção de justiça é
uma interpretação deste papel” [ou seja, qualquer teoria que partilhe de forma
157
geral de justiça e várias teorias substanciais da justiça. A concepção geral de
justiça estabelece a priori as propriedades que toda teoria substancial da justiça
precisa ter, para ser considerada como tal. Rawls acreditava que, por exemplo,
todas as teorias substanciais da justiça têm como forma a função distribuir
direitos, deveres e vantagens sociais, diferindo apenas na forma como interpreta
esses conceitos e como os distribui. Uma teoria normativa incompatível com
essa função não respeita a concepção geral de justiça e, portando, não é uma
teoria da justiça substancial genuína.35
Como vimos acima, existem diversos domínios normativos para se
avaliar ações e as teorias morais não são as únicas. Claro que ações podem ser
morais ou imorais, mas também podem ser prudentes ou imprudentes,
desportivas ou antidesportivas, legais ou ilegais, a assim por diante. Logo, surge
a questão: o que distingue a avaliação moral em particular das outras categorias
de avaliação? Certamente a prudência, o desporto, a lei, assim como a culinária
e a música são categorias de avaliação e, portanto, esferas normativas. Mas o
que especificamente distingue a moralidade destas outras esferas normativas?
Para responder esta pergunta, seria necessário apontar não apenas qual ou
quais as suas características necessárias, mas também características que só a
investigação moral possui, pois, do contrário, estaremos identificando
características comuns a mais de uma esfera, e não características distintivas.
Além disso, estas propriedades agiriam como critérios de entrada, ou seja, uma
teoria moral só contará como tal, se possuir tais características distintivas, como
no caso da justiça, citado acima.
Mas porque tentar definir os contornos formais distintivos da moralidade
preliminarmente? Já não basta dizer que a moralidade se refere a avaliação de
ações e códigos de conduta? Uma razão popular é a aparente necessidade de
se estabelecer critérios de participação. Para se entender essa necessidade,
note que para determinarmos qual das teorias morais rivais é a correta,
substancial direitos, deveres, e vantagens sociais qualifica-se como uma teoria de justiça.
Portanto, para uma teoria substancial ser qualificada como teoria da justiça, ela precisa
distribuir direitos, deveres e vantagens.] John Rawls, “Theory of Justice”, p. 9.
35Inclusive Rawls utiliza esta distinção como parte de seu argumento de que o utilitarismo
não é uma teoria substancial da justiça genuína, por não exibir algumas características
formais que, segundo ele, deveriam configurar qualquer concepção de justiça.
158
precisamos testar a coerência dessas teorias contra as nossas convicções
morais mais seguras sobre o que fazer em tipos de casos mais ou menos
específicos. Mas para desempenhar esse teste, precisamos distinguir nossas
convicções morais de outros tipos de convicção. Além disso, ao tentar
determinar a teoria moral correta, nós também comparamos várias teorias
normativas substanciais entre si e seus veredictos particulares sobre o caso em
análise. Porém nós não testamos teorias morais contra juízos que não possuem
conteúdo moral. Por exemplo, nós não comparamos uma conclusão moral
substancial qualquer sobre aborto com nossas convicções culinárias ou musicais.
Para não incorrermos nesse erro, precisamos saber o que distingue um juízo
moral de um juízo sem conteúdo moral, pois do contrário chegaríamos a
resultados normativos distorcidos e não genuinamente morais. Por isso,
precisamos de uma definição de ética preliminar que atue como critério de
entrada, ou o projeto de investigação moral não poderia sequer começar.
Quais características formais inerentes a toda teoria moral substancial
poderiam desempenhar esse papel? Existem muitas teorias sobre a distinção da
moralidade e, logo, sobre qual seria a correta definição de ética. Para o propósito
deste capítulo podemos nomear: a teoria do conteúdo moral (CM), a teoria da
justificação moral (JM), a teoria reativa-atitudinal (RA), a teoria da motivação
moral (MM) e a teoria do prevalecimento racional da ética (PR).
De acordo com CM, é o conteúdo substancial da ética que lhe provê
sua distinguibilidade. Teóricos-CM acreditam que o conteúdo da moralidade é
sempre preenchido por avaliações sobre ações estritamente públicas ou
interpessoais em oposição a ações estritamente privadas ou intrapessoais, que
por sua vez podem pertencer à esfera da prudência, da estética, da culinária e
assim por diante. Ou seja, o conteúdo da moralidade é sempre relacionado aos
interesses de todas as pessoas, menos o agente. No sentido normativo, o
conteúdo da moralidade são obrigações que devemos uns aos outros, mas não a
nós mesmos (pois estas seriam obrigações pertencentes a outros domínios
normativos). Um primeiro problema aqui é que seria dificílimo decidir se uma
infinidade de ações é genuinamente interpessoal ou meramente intrapessoal.
Note que uma ação estritamente intrapessoal poderia até produzir
externalidades 36 morais. Mas seria difícil defender que um agente seja
37Bernard Williams, Utilitarianism: For and Against, 2008, Cambridge University Press, p.
93.
160
independente de suas consequências interpessoais. Se a barreira de entrada for
alta demais, teorias morais bastante plausíveis, pelo menos inicialmente, ficam
de fora da investigação moral substancial sobre casos concretos. Um outro
exemplo de como a interpessoalidade pode ser uma barreira de entrada muito
alta é a questão sobre o que devemos fazer com os mortos. Muitas teorias
morais interpessoais são baseadas no valor da racionalidade ou do bem-estar
das pessoas. Ou seja, essas teorias geram obrigações morais de acordo com
esses valores. Porém, os mortos não são racionais, nem possuem bem-estar,
não são pessoas. E, ainda assim, muitos de nós acreditamos ter obrigações
morais em relação aos mortos, ou seja, obrigações não-pessoais e ainda assim
morais. Portanto definir a interpessoalidade como conteúdo da ética excluiria
qualquer teoria moral que, baseada num valor qualquer, gere obrigações em
relação aos mortos.
Note que não estamos dizendo que não há possível definição da ética
ou que não existem verdades formais ou a priori sobre a moralidade.
Provavelmente existem, mas não podemos dizer que CM é uma delas, dado que
ela sofre do problema de ser um critério de entrada muito ruim.
Vejamos outras possibilidades. Para JM o que distingue os juízos
morais de outros tipos de juízos normativos é o tipo de coisa que pode ser
mobilizado como justificação destes juízos. Embora exista enorme dissenso
sobre que tipo de coisas podem atuar como justificação de juízos morais, pode
ser que a justificação moral seja distinta de todas as outras esferas normativas,
como as citadas acima por exemplo, justamente nesse aspecto.
Que tipos de coisas podem justificar proposições morais? Temos por
exemplo métodos justificatórios baseados em contrato hipotético, natureza da
racionalidade humana ou autonomia, perspectiva da segunda-pessoa, psicologia
emocional, platonismo conceitual, para dizer os mais populares. Porém perceba
que qualquer outro domínio avaliativo pode ser justificado da mesma maneira. A
psicologia emocional explica nossos juízos estéticos e o platonismo conceitual é
utilizado em matemática. Pior ainda para JM é que podemos fazer ética
normativa a partir de uma posição completamente agnóstica da perspectiva
justificatória. Mas perceba que fazemos ética normativa, ou seja investigação
moral substancial, sem ter certeza última sobre qual é a mais fundamental
justificação das proposições morais. Podemos estar incertos sobre se o que
realmente justifica a incorreção do aborto são considerações sobre a estrutura
161
senciente dos envolvidos ou considerações sobre sua autonomia, e nem por isso
deixamos de fazer investigação moral substancial e tomar decisões sobre aborto.
Mais fácil de entender é que não precisamos estar certos sobre que tipo de coisa
justifica um juízo moral, para emitirmos um juízo moral, assim como inicialmente
não sabemos o que justifica o céu ser azul quando concluímos que o céu é azul.
Portanto JM não é uma boa teoria da distinção da ética. Portanto, a JM não é
suficiente para distinguir a moralidade.
Para a RA, proposições morais são justificadas em função das reações
emocionais negativas ou positivas que temos, ao vivenciar situações de todos os
tipos – negativa quando, por exemplo, vemos alguém jogar lixo no chão, ou
positiva frente a atos de filantropia desinteressada. Novamente, veja que essas
reações emocionais ocorrem em qualquer outra ocasião, em qualquer outro
contexto. Claro que nossas reações emocionais são as piores possíveis quando
vemos nosso time favorito perder uma final de campeonato, mas isso não
justifica qualquer proposição moral. O mesmo com a estética. Portanto. RA tem
um problema de subdeterminação extrema, ou seja, seu critério de entrada é
muito leniente e confunde milhares de domínios avaliativos, deixando a
investigação moral substancial praticamente inviável.
MM, por sua vez, credita a distinguibilidade da ética à sua força
motivacional especial. Segundo MM, nenhum outro domínio normativo possui
uma conexão tão forte entre um juízo e a motivação correspondente como a
moralidade. A teoria MM sobre a distinção da moralidade argumenta que a
moralidade, diferentemente de outras esferas normativas, é a única cujos juízos
necessariamente motivam o agente que os endossa a agir de acordo. Se nós
acreditamos que doar nossas roupas sem uso para os desabrigados é bom,
então, necessariamente nós estamos motivados a fazê-lo, ou então alguma
coisa está errada conosco. Podemos estar mentindo para nós mesmos para nos
sentirmos melhores, ou podemos ter alguma desordem mental que nos ceifa a
vontade de viver. Mas em condições normais de racionalidade, pessoas
normalmente estão mais fortemente motivadas a agir de acordo com suas
convicções morais do que de acordo com outras convicções normativas. Por
exemplo, imagine que eu seja um ávido apreciador de jazz. Fico sabendo que
hoje à noite haverá uma apresentação de jazz perto da minha casa. Eu estou
convicto que eu devo ir a esse show. Claro que estou motivado para ir ao show.
Mas também estou convicto que devo terminar a minha série favorita. A noite
162
está fria. Resolvo ficar em casa. Mas agora imagine que no caminho para sua
entrevista de emprego, você se depara com uma criança se afogando num lago
próximo a você. Claro que você está motivado para sua entrevista, muito
motivado na verdade. Porém, é muito mais forte a sua motivação correspondente
à sua convicção de que é seu dever salvar a criança. Você perde a entrevista e
pula na água. Porém outros juízos normativos igualmente motivam agentes.
Posso me sentir igualmente motivado a agir de acordo com meus juízos
prudenciais, bem como de acordo com meus juízos estéticos, e assim por diante.
Portanto a última tentativa de refinar MM é dizer que a moralidade possui uma
força racional maior do que todos os outros domínios normativos.
Repare que em todos os momentos em que uma decisão é requerida,
avaliamos a situação de acordo várias perspectivas normativas, como prudência,
moral, estética, profissional, político, paternal, e assim por diante. Cada uma
dessas esferas avaliativas gera razões para agir, num sistema de input/output,
onde o input é o objeto avaliado e o output é a razão para agir. Dessa forma, em
todo momento em que uma decisão é requerida temos diversas razões, por
exemplo estéticas, morais, prudenciais, legais, políticas, civis, familiares e assim
por diante, “competindo” pela ação do agente, ou seja, aquela que vencerá a
decisão tomada. Mas de acordo com PR as razões morais sempre vencem todas
as outras razões, até mesmo as razões prudenciais mais rigorosas como a
própria sobrevivência. Aristóteles ilustra PR com eloquência:
164
1.3. As Subdivisões da Filosofia Moral
165
Então, em metaética, tratamos, por exemplo, de problemas da
semântica moral, da metafísica moral, da epistemologia moral, da fenomenologia
moral, da psicologia moral etc. E do que trata a ética normativa, então?
A ética normativa trata do estudo dos critérios, procedimentos,
princípios, modos de ser que nos permitam separar e avaliar aquilo que é bom
e/ou correto daquilo que é mau/incorreto. Há três grandes modelos teóricos em
ética normativa, quais sejam: (a) Éticas das virtudes: defendem, grosso modo,
que o que devemos fazer em uma dada circunstância é o que uma pessoa
virtuosa faria; (b) Ética deontológicas: defendem que há um princípio ou norma
cuja validade é autoevidente ou justificada pela razão e que devemos seguir tal
norma, já que ela revelaria o que é moralmente correto/bom e incorreto/mau, por
fim; (c) Éticas consequencialistas: são aquelas teorias que defendem que
devemos produzir as melhores consequências – em outros termos, uma ação,
regras, instituição, motivo, etc. é correto/bom ou incorreto/mau dependendo das
consequências que gera. Temos duas grandes teorias que assumem o
consequencialismo em seu corpo teórico, quais sejam, (c1) O egoísmo ético38:
tese segundo a qual uma ação é correta/boa se, e somente se, gera as melhores
consequências para o tomador de decisão e; (c2) o utilitarismo: tese segundo a
qual uma ação é correta/boa se, e somente se, gera as melhores consequências
para todos os indivíduos de forma imparcial. As melhores consequências são
aquelas que geram o máximo de bem-estar.
Por fim, temos a ética aplicada (por vezes chamada de ética prática)
que, como o nome sugere, lida com a aplicação das normas e princípios da ética
normativa a problemas existentes na realidade. É um tanto quanto comum dividir
a ética aplicada em algumas áreas como, por exemplo: (i) a Bioética; (ii) A Ética
Ambiental; (iii) A Ética Animal; (iv) A Ética Econômica; (v) A Infoética (vi) As
Éticas Profissionais etc. Esta subdivisão não é estanque nem exaustiva, pode
haver mudanças dado as nossas transformações sociais e o aparecimento de
38 Importante notar que, quando falamos de egoísmo, temos que nos atentar para
diferença entre egoísmo ético e egoísmo psicológico. O egoísmo ético é uma teoria
normativa, ou seja, ela nos diz o que fazer. No caso do egoísmo ético devemos fazer o
que é melhor para nós. Já o egoísmo psicológico é uma teoria descritiva sobre a
motivação humana. A teoria sustenta que as pessoas são sempre motivadas por razões
egoístas. Aqui estamos nos ocupando da primeira e não da segunda.
166
novas tecnologias e as mudanças das relações entre seres humanos e o mundo.
Apesar da grande área da Ética se dividir nestas quatro subáreas há
uma ligação profunda entre elas. Mas, não se engane, manter separados os
problemas que cada subárea trata não é apenas um expediente de organização
da disciplina de Ética. É um expediente de organização dos nossos
pensamentos e argumentos. Afinal, você pode oferecer bons argumentos
metaéticos para sustentar algo dentro da ética normativa, assim como oferecer
argumentos acerca da aplicabilidade de um modelo normativo para tentar
mostrar a plausibilidade de tal modelo. Todavia, não misture as coisas, os
problemas de cada subárea demandarão instrumentais teóricos distintos, apesar
de serem inter-relacionados.
Considerada esta distinção em subáreas, iremos abarcar em linhas
gerais o que há de mais relevante em cada uma delas. Começamos pela
axiologia e iremos discutir os três principais modelos de como entendemos o
bem-estar. Depois, consideramos, em linhas gerais, as principais teorias
metaéticas. Seguindo, iremos considerar os três grandes modelos normativos: a
ética das virtudes, o consequencialismo e o deontologismo. Por fim, faremos
algumas considerações sobre ética aplicada, indicando algumas de suas
subáreas e os problemas pertencentes a elas.
39Esta parte do capítulo é uma versão do artigo de SANTOS, B.A.G. Três Teorias sobre o
Bem-estar. In. Crítica. London, 2017. Disponível em
https://criticanarede.com/fil_felicidade.html
167
mesmas. Por exemplo, o conhecimento é algo que é bom por si mesmo, uma
vez que nos faz viver na verdade e não na falsidade, mas também nos serve
para fazer outras coisas, como, por exemplo, curar doenças, construir casas,
entender o mundo etc. E, por fim, há (iii) coisas valiosas por si mesmas, ou seja,
que são boas e que não servem como instrumentos para nós, ou seja, que
possuem somente valor intrínseco. Quando nos perguntamos o que é o bem-
estar, geralmente estamos procurando quais as coisas que o constituem. Mas
também estamos interessados em saber se o próprio bem-estar é um bem do
tipo (iii). Aqui, nos preocuparemos em expor as teorias que estão interessadas
em responder o que constitui o bem-estar. Assim, sempre que nos perguntarmos
o que é o bem-estar, estamos preocupados em saber quais tipos de bens (e que
bens) que o constituem e nos beneficiam não instrumentalmente, ou seja, aquilo
que possui valor intrínseco. É relevante sabermos o que é o bem-estar, porque
há muitas teorias morais que dependem de tal concepção.
Para algumas teorias normativas a relação entre o que é o bem-estar e
o que devemos fazer é bem estreita. Por exemplo, para um utilitarista40, a força
“justificacional” de todo e qualquer raciocínio moral recai sobre o bem-estar. Mas,
o que é bem-estar? Há, pelo menos, três teorias amplas acerca do bem-estar.
Parfit (1984) dividiu as três principais teorias acerca do bem-estar e seu valor do
seguinte modo: (a) teorias da experiência (sendo a principal o hedonismo); (b)
teoria das preferências (sendo a principal a teoria das preferências informadas) e;
(c) teorias objetivas (sendo a principal a teoria da lista objetiva). Cada uma delas
defende um tipo de propriedade que faz do bem-estar valioso por si mesmo e
que identifica do que o bem-estar é composto. Teorias como o hedonismo e a
das preferências informadas são teorias subjetivistas a respeito da concepção de
bem-estar. Já teorias como a teoria da lista objetiva podem aceitar vários
elementos como componentes do nosso bem-estar, mas defendem que aquilo
que compõe nosso bem-estar não precisa nos afetar subjetivamente41.
40Relembre que utilitaristas defendem que uma ação é moralmente correta se, e somente
se, gera como consequência a maior soma de bem-estar para todos os envolvidos de
forma imparcial.
41Apesar de a teoria da lista objetiva poder ser objetivista quanto a concepção de bem-
estar, ela também pode ser mista, mesclando tanto elementos subjetivistas quanto
elementos objetivistas que compõem o bem-estar, como defendi em Santos (2015).
168
Teorias hedonistas são subjetivistas no tocante a que elas defendem
que o que faz da nossa vida valiosa é a fruição de estados mentais prazerosos –
mais sobre isso adiante. Hedonistas explicam, geralmente, o valor dos estados
mentais recorrendo a uma propriedade que faz deles bons, qual seja a
propriedade de ser “aprazível”. Então, é uma condição necessária e suficiente
para que algo seja bom para nós a instanciação da propriedade de ser aprazível.
Apenas estados mentais que instanciam tal propriedade podem possuir valor
intrínseco. Todo o resto (atividades, estado de coisas, capacidades, traços de
caráter etc.) possuem valor extrínseco (ou seja, não tem valor por si mesmo)
enquanto provocam em nós tais estados mentais. Já teorias da lista objetiva, por
exemplo, são objetivistas, pois defendem que o que faz da nossa vida valiosa
são estados de coisas objetivos, independentemente de se eles causam em nós
estados mentais prazerosos. Por exemplo, se a beleza é boa por si mesma,
então não importa se há alguém para desfrutar de estados prazerosos de sua
fruição. Assim algo é bom por si mesmo, ou seja, possui valor intrínseco, se
instancia a propriedade de ser belo. Sendo assim, as teorias hedonistas podem
ser consideradas subjetivas e puramente pessoais, enquanto as teorias da lista
objetiva podem ser consideradas puramente impessoais e objetivas.
Considerando o que foi dito, nesta seção, ofereceremos, primeiramente,
uma exposição geral do hedonismo clássico de Bentham e Mill como exemplo de
teoria do tipo (i) e indicamos seus problemas. Escolhemos oferecer as teorias de
Bentham e Mill, pois elas são casos paradigmáticos de teorias hedonistas. Em
um segundo momento, eu ofereçeremos uma explicação da chamada teoria da
satisfação de preferência (ou desejos), como exemplo de teoria do tipo (ii) e
indicaremos alguns de seus problemas. Faremos uma apresentação geral de tal
teoria sem a pretensão de apresentar todas as suas variações. Por fim,
apresentaremos a caracterização geral da teoria da lista objetiva, como exemplo
de teoria do tipo (iii) e indico seus problemas. Mas antes de passarmos a
explorar essas teorias, vamos deixar mais clara a classificação entre teorias
subjetivas e objetivas do bem-estar.
Pensamos que (a) seja a tese aceita pela maioria dos defensores de
teorias subjetivas do bem-estar. Além disso, (b) implica em uma espécie de
relativismo que não parece ser aceito por defensores de teorias subjetivistas do
bem-estar. Então, suponho para fins argumentativos que a tese (a) é a que
melhor se aplica a todas as teorias subjetivas e é a que deve ser debatida.
Dessa forma, passo a discutir a teoria de Bentham tendo em mente a tese (a).
O hedonismo foi defendido em sua forma mais clara, primeiramente por
Jeremy Bentham43 e, em seguida, por John Stuart Mill. Bentham é conhecido por
170
oferecer uma teoria hedonista mais simples que a de seu sucessor. Sua visão
acerca do que seria a felicidade consistia em afirmar que os seres humanos
foram colocados (pela natureza) sob dois senhores, quais sejam, o prazer e a
dor (hedonismo psicológico) (BENTHAM, 1979, p.10), sendo essa a base de
toda a moralidade (hedonismo ético). Assim, chamamos de hedonismo
psicológico a tese segundo a qual os seres humanos são motivados pelo prazer
e pela dor e chamamos de hedonismo ético a tese segundo a qual toda a
moralidade deve se basear em promoção de prazer e redução da dor. Nossas
ações deveriam ser julgadas com base nessa ideia simples de felicidade. Se elas
(as ações) produzem ou tendam a produzir mais prazer e evitar a dor, então
deveríamos executá-la. Bentham entendia “utilidade” como:
174
tema de grande debate até hoje, pois há diferentes interpretações acerca dela46.
Ao contrário de Bentham, Mill tentou oferecer uma visão do que seria a felicidade
mais robusta e que respondesse a crítica de Carlyle e seus contemporâneos.
Assim sendo, passo agora a expor a teoria do valor de Mill. Primeiramente,
abordo a sua visão substantiva de felicidade. Depois exponho e discuto o critério
dos “juízes competentes”. Exponho rapidamente a concepção de Mill sobre os
direitos morais. Por fim, apresento alguns problemas que a teoria de Mill enfrenta.
A concepção de Mill acerca do que é a felicidade pode ser colocada,
pelo menos, em duas chaves interpretativas. Na primeira, felicidade é igual à
presença de prazer e ausência de dor. Na segunda, felicidade é igual presença
de prazer, ausência de dor, cultivo da autonomia, individualidade e virtudes47. No
que tange à primeira interpretação, seus defensores argumentam que Mill
oferece claramente o conteúdo do conceito “felicidade”, quando afirma, “Por
felicidade se entende o prazer, e ausência de dor; por infelicidade a dor, e a
privação do prazer” (MILL, 2000, p. 187). Nessa interpretação, Mill parece
oferecer uma visão claramente hedonista de felicidade, assim como fez Bentham.
Já a segunda interpretação pode ser defendida como uma teoria
multicomponente 48 (apesar de haver sérias dificuldades em atribuir a Mill tal
interpretação). A felicidade seria composta não apenas por estados mentais, mas
46Uma discussão sobre a interpretação da teoria do valor de Mill pode ser encontrada,
por exemplo, em CRISP, 2006b, pp.19 – 62.
47Para uma visão de que Mill aceitava as virtudes em sua concepção de vida feliz ver, por
composto por dois ou mais elementos. Tais elementos podem ser tanto subjetivos (como
estados mentais ou satisfação de preferências) quanto objetivos (como realizações,
conhecimento, autonomia etc.), ou ainda ser um conjunto de elementos subjetivos e
elementos objetivos. Ao passo que teorias que envolvem apenas uma componente
(como, por exemplo, o hedonismo) podem ser chamadas de “teorias de componente
único”. Para uma interpretação objetivista da teoria de Mill sobre o bem-estar, ver BRINK,
D. ‘Mill’s Deliberative Utilitarianism’, Philosophy and Public Affairs, 21, 1992, pp. 67–103.
A classificação entre teorias multicomponentes e de componente único é usada por
Alexander F. Sarch em: SARCH. A. Multi-Component Theories of Well-Being and Their
Struture. Pacific Philosophical Quarterly 93, pp. 439-471, 2012.
175
também por outros elementos que não são redutíveis a estados mentais, como,
por exemplo, virtudes. Aparentemente, há uma ampla gama de interpretações
acerca da visão de Mill no que tange a felicidade. Todavia, se considerarmos a
primeira interpretação como a correta, Mill defende uma teoria subjetivista da
felicidade, seguindo os passos de Bentham.
Supondo que Mill seguiu os passos de seu antecessor, sua tese
consistiria na defesa de que os prazeres são constitutivos da felicidade; portanto
haveria uma relação de identidade entre felicidade e prazer. Porém podemos nos
questionar se a teoria de Mill também não implica uma concepção de felicidade
que seja digna de porcos, como a Bentham parece implicar. A resposta é que a
concepção de Mill possui uma especificidade que afasta a crítica de que
concepção de felicidade é digna de porcos. Como Mill era ciente de tal crítica,
ele defendeu que há uma diferença não só quantitativa entre os prazeres, como
também há uma diferença qualitativa entre eles. Mill diferenciou dois grupos de
prazer em termos de qualidade: (i) prazeres superiores e; (ii) prazeres inferiores.
Todavia, qual é o critério para separarmos os prazeres do tipo (i) dos de tipo (ii)?
O filósofo inglês faz essa diferenciação recorrendo ao chamado critério dos
“juízes competentes”. Para sabermos quais prazeres são superiores e quais são
inferiores, deveríamos recorrer ao juízo feito por indivíduos que experimentaram
ao longo de suas vidas diversos tipos de prazer. Tais indivíduos, tendo
experimentado uma ampla gama de prazeres, sempre hão de escolher certos
prazeres em detrimento de outros. Tais prazeres que sempre seriam escolhidos
pelos competentes seriam os prazeres superiores. Assim, os prazeres superiores
possuiriam um maior valor em comparação com os prazeres inferiores. Mas,
quais os prazeres superiores?
Os prazeres superiores estão relacionados às capacidades humanas
não compartilhadas por outros animais não humanos, como, por exemplo, a
intelecção, a virtuosidade, a contemplação etc. Ao passo que os prazeres
inferiores estão relacionados às necessidades mais imediatas que
compartilhamos com os outros animais não humanos, como, por exemplo, a
necessidade de comer, beber, dormir, o desejo sexual etc. Os prazeres
superiores seriam escolhidos pelos juízes, porque eles são mais aprazíveis do
que os prazeres inferiores, não importando quão intensos sejam estes últimos.
Uma crítica à diferenciação de prazeres pela sua qualidade é a de que ou a
diferenciação é inconsistente com o hedonismo ou que Mill abandona seu
176
hedonismo em favor de outra teoria acerca da felicidade (como referi acima,
pode haver mais de uma interpretação da teoria do valor de Mill)49. Então, ao
contrário de Bentham, Mill considerava a fonte do prazer como relevante para o
seu valor, uma vez que as diferenças qualitativas dos prazeres dependem de
suas fontes. Prazeres causados pelo exercício intelectual são mais valiosos do
que aqueles causados por sensações corpóreas.
Com a diferenciação explicitada acima, Mill livra-se da objeção de que a
teoria do valor do utilitarismo é digna de porcos, pois leva em consideração as
diferenças qualitativas entre prazeres; todavia o critério dos juízes competentes
não está livre de problemas. Como podemos eleger alguém como juiz
competente? Deve haver sempre unanimidade entre os juízes competentes a
respeito do que seja um prazer superior? O teste dos juízes pode ser circular?
Se admitirmos os juízes competentes, temos de admitir que o prazer não seja o
único bem, já que os juízes podem valorizar outras coisas como fim em si?
A despeito de tais dificuldades, Mill consegue oferecer uma visão mais
robusta do que seja a felicidade quando comparado com seu antecessor. Sua
teoria parece acomodar nossa intuição de que o prazer de ler um bom livro ou
ouvir uma boa música é mais valioso (em algum sentido) do que o prazer
auferido quando saciamos nossa fome. Assim, seguindo a visão de Mill, uma
vida mais feliz seria aquela com mais prazeres superiores do que inferiores50. Há
outros problemas acerca da distinção entre prazeres superiores e inferiores. Um
deles é acusação de que a distinção tem implicações elitistas/paternalistas.
Repare que alguém pode dizer que a visão de Mill sobre a natureza do bem-
estar implica em certo paternalismo. Mas o que isso quer dizer? Que Mill
defende uma teoria que nos diz o que é bom para nós independentemente do
que pensamos sobre isso. Seria como um pai dizendo a um filho o que ele (o
filho) deve escolher fazer e que ele não tem outra opção a não ser seguir o que o
pai diz. Isso implicaria que nossa autonomia não é relevante para a visão de Mill
49Esta crítica pode ser encontrada, por exemplo, em BRADLEY, F.H. Ethical Studies, 2nd.
London: Oxford University Press, 1962.
50 Podem-se encontrar referências a essa crítica em SKORUPSKI, J. The Place of
52Uma resposta hedonista para a objeção de Nozick e para a objeção de Carlyle pode
ser encontrada em CRISP (2006a, p.100-117)
180
2.2. Satisfação de Preferências
181
que temos agora que parecem não ser bons para nós, se forem satisfeitos. Por
exemplo, imagine um fumante. Agora ele deseja/prefere fumar um cigarro e, se
ele de fato fumar, então o bem-estar dele seria incrementado. Mas, a longo prazo
a satisfação desta preferência corrente vai trazer mais mal-estar do que bem-
estar. Assim, a TSP do tipo (1) não parece nos informar com precisão o que
compõe/incrementa nosso bem-estar, pois se a seguirmos, podemos ter muito
mais mal-estar (intuitivamente) do que bem-estar. Se esta crítica fizer sentido,
nós podemos nos mover para as TSPs do tipo (2).
Teorias do tipo (2a) evitam o problema indicado acima defendendo que
o bem-estar de alguém é composto pela satisfação de seus desejos/preferências
como um todo, ou seja, analisada a vida como um todo. Isso quer dizer que, por
exemplo, a satisfação do desejo/preferência de fumar não contribui para o bem-
estar do fumante, analisada sua vida como um todo. Dessa forma abrangente, o
bem-estar é entendido como a satisfação dos seus desejos/preferências de
forma que as satisfações de alguns deles permitam a satisfação de outros deles.
No caso do fumante, a satisfação do desejo/preferência não permitiria a
satisfação de outros desejos/preferências importantes como, por exemplo,
satisfazer a preferência de não morrer por um câncer de pulmão. Assim, a
satisfação da preferência/desejo de não morrer tem certa prioridade quando
comparada com a satisfação da preferência de fumar. Uma crítica que se avança
para este modelo teórico é que não conseguiríamos saber se alguém está com o
bem-estar alto ou baixo em certo momento da sua vida. Como o que conta é a
satisfação das preferências/desejos de forma abrangente, teoricamente, nós
apenas conseguiríamos dizer se a vida de alguém teve alto (ou baixo) grau de
bem-estar depois que sua vida toda foi considerada. Assim, nossas avaliações
de bem-estar apenas incidiriam quando a vida do indivíduo terminasse, mas se
assim for, não conseguimos usar a teoria para, por exemplo, fazer avaliações
morais ou mesmo avaliações econômicas (sim! Teorias econômicas utilizam
teorias do bem-estar para avaliar se um sistema econômico é bom). Do ponto de
vista avaliativo a teoria seria inócua, ou seja, não nos informaria adequadamente
quem está com bem-estar e quem não está com bem-estar em certo momento
do tempo. Sendo assim, temos razões para nos mover, novamente, entre as
TSPs e aceitar uma do tipo (2b).
Em linhas gerais, a TSP (2b) é a tese segundo a qual o que compõe o
bem-estar do indivíduo é a satisfação de suas preferências/desejos informados.
182
Dessa forma, o defensor da TSP considera que a satisfação de nossas
preferências é uma consideração necessária e suficiente para o bem-estar. A
diferença entre o hedonismo de preferências e a TSP (2b) é que, no primeiro
caso as preferências funcionam como indicativo daquilo que trará prazer ao
indivíduo, enquanto na segunda teoria as preferências constituem o bem-estar.
Repare que, para o defensor da TSP (2b)55, o que conta são as preferências do
agente e não de terceiros, ou seja, o que conta para o seu bem-estar são suas
preferências. Dessa forma, a satisfação das preferências de um sujeito S é
condição necessária e suficiente para o seu bem-estar neste tipo de teoria.
A TSP tem algumas vantagens sobre o hedonismo como, por exemplo,
as preferências são mais simples de serem medidas, pois elas são reveladas
nas tomadas de decisão. Se for dado a escolha a um sujeito S entre as opções x,
y e z e ele escolhe y, então podemos inferir que S prefere y a x e z. Esse tipo de
característica fez com que a TSP fosse (e seja) amplamente utilizada em
economia, como falamos acima. Em teorias como as teorias da decisão e
desenvolvimentistas, a TSP é uma importante ferramenta de avaliação de
estados de coisas. Outra vantagem da TSP é que ela responde melhor ao
experimento da máquina de experiências de Nozick, uma vez que se conectar ou
não à máquina de experiências vai ser bom para o indivíduo dependendo das
preferências do sujeito. Se um sujeito S prefere viver no mundo real com uma
vida com menos prazeres, então não se conectar à máquina incrementará o seu
bem-estar. Por outro lado, se S prefere se conectar à máquina, então conectar-
se a ela incrementa o bem-estar de S.
Algumas questões surgem ao considerarmos a TSP. Por exemplo,
parece haver alguns desejos que se forem satisfeitos não trazem bem-estar nem
para o indivíduo que o deseja e nem para seus pares. O problema é que a
satisfação de algumas preferências não nos afeta, mesmo que ela ocorra.
Imagine que o Antônioestá em um voo entre o ponto São Paulo e Recife e
sentado ao seu lado está o sujeito José. Durante a viagem, Joséconta a Antônio
como a sua vida vai mal e como as coisas estão piorando para ele. Antônio, um
bom sujeito, se compadece profundamente ao ver a péssima situação em que se
encontra José e deseja, sinceramente, que José tenha uma mudança em sua
vida e que ela melhore. Ao chegarem a Recife, Antôniopega a suas malas e se
55Daqui em diante, vamos apenas chamar de TSP a teoria TSP (2b), para simplificarmos.
183
despede de José, nunca mais voltando a vê-lo. O problema é que o desejo de
Antônio de ver a vida de Josémelhor, mesmo que satisfeito, parece não
incrementar o bem-estar dele. Se elenão sabe se sua preferência foi satisfeita,
não há como ela incrementar seu bem-estar.
Alguns filósofos podem desejar que todos os problemas da filosofia
tenham solução, um físico pode desejar que o universo seja compreendido em
sua totalidade, um educador pode desejar que todas as pessoas do mundo
saibam ler e escrever, mas tais desejos são muito distantes de suas vidas. Os
objetores da TSP argumentam que ela falha ao cumprir o que pode ser chamado
de ‘requerimento de forte ligação’56. O requerimento de forte ligação estabelece,
grosso modo, que para uma teoria do bem-estar ser bem-sucedida na descrição
do que é bom para nós não instrumentalmente, ela não pode aceitar que o bem-
estar de alguém seja incrementado por um evento qualquer, se o evento não
estiver fortemente ligado à pessoa. Dessa forma, o incremento em nosso bem-
estar apenas pode ocorrer, se houver alguma mudança em nossas vidas (ou em
nossos estados mentais, estado de coisas que nos cercam, ou estados
relacionais). Ao que parece, uma mudança no bem-estar de uma pessoa sugere
mudanças ou em seu corpo ou em sua mente e que, em alguma medida, o bem-
estar deva ser experienciável. Se o defensor da TSP aceita que o bem-estar é
experienciável e deve envolver algum tipo de mudança no sujeito, então ele deve
rejeitar que desejos externos 57 contem para o bem-estar individual. O que
chamamos de “desejos externos” são aqueles desejos que podemos ter, mas
que não dizem respeito a nós mesmos, como os citados acima. Porém, como o
defensor da TSP pode rejeitar os desejos externos?
Para cumprir com o “requerimento de forte ligação”, um defensor da
TSP poderia restringir as preferências que contam apenas àquelas que estão
fortemente ligadas ao sujeito, ou seja, apenas àquelas que impactam
diretamente a vida dele. Todavia, mesmo que aceitemos tal movimento, ainda
podemos perguntar: será que todas as preferências que temos sobre nós
mesmos contam para o nosso bem-estar? Por exemplo, um fumante que está há
56 No próximo tópico, discutiremos mais afundo essa objeção, pois afeta também o
defensor da Teoria da Lista Objetiva.
57Para mais sobre esta crítica ver DWORKIN, R. Levando dos Direitos a Sério. São Paulo:
59 Ao tentarmos responder (a), podemos ter que nos comprometer a responder (b)
primeiro. Por exemplo, podemos defender que os elementos que compõem a lista que
descreve o bem-estar são aqueles que possuem uma propriedade fazedora-de-bondade
X. Porém não é necessário responder (b) para responder (a). Podemos apenas assumir
uma teoria enumerativa do bem-estar e teremos uma resposta à (a), mas, ao fazermos
isso, assumimos que não há resposta a (b). Uma teoria substantiva daria uma resposta a
(b) e através dela uma resposta a (a).
188
impossível oferecer) uma resposta a (b). Porém, há um tipo de TLO que
consegue oferecer uma resposta para (b), qual seja a TLO perfeccionista. A título
de esclarecimento, Lauinger (2013) divide as TLO em dois grupos, quais sejam,
(i) Teoria da Lista Objetiva de lista-bruta e, (ii) Teoria da Lista Objetiva
perfeccionista. Segundo ele (2013, p.955)
3. Metaética
195
sinônima a qualquer expressão que represente o conceito ao qual o conceito a
ser analisado é reduzido (SANTOS & MERLUSSI, 2013). Assim, a análise “X é
solteiro se, e somente se, é não casado” satisfaz o critério de sinonímia. Mas o
que isso tem a ver com a análise dos conceitos morais em termos não morais?
Segundo Moore, nenhuma análise de um conceito moral em termos não morais
satisfaz a sinonímia. Por exemplo, imagine que queremos analisar o conceito de
“bom” em termos de “prazer”, então definimos que “algo é bom se, e somente se,
algo é prazer”. Reparem que os dois lados da análise (separados pelo conectivo
lógico “se, e somente se”) não são sinônimos, então, segundo Moore, esta não é
uma análise bem-sucedida. Para testar isso, nós poderíamos perguntar: “será
que prazer é bom?”. Essa pergunta faz sentido (ou seja, parece ser uma
pergunta legítima). Mas se ela faz sentido então quer dizer que a nossa definição
falha. Pois, segundo o critério de sinonímia, a pergunta deveria não fazer sentido
(ou seja, não ser legítima); seria como perguntar algo como “será que prazer é
prazer?”. Este argumento de Moore ficou conhecido como “argumento da
questão em aberto”. Se a pergunta que fazemos demanda uma resposta
substantiva (está aberta a diferentes respostas), então nossa análise não obteve
sucesso e, portanto, não é possível definir um conceito moral através de um não
moral. Por outro lado, se a nossa pergunta não assume respostas além da
constatação do significado dos conceitos que encerra, então nossa análise foi
bem-sucedida, já que respeita o critério de sinonímia66. Se é impossível reduzir
propriedades morais a não morais, então o estatuto ontológico delas deve ser sui
generis. Sendo assim, Moore defendia que a Ética exprime proposições, ou seja,
que os juízos morais podem ser verdadeiros ou falsos em virtude de fatos morais
de natureza platônica67.
Adicionalmente, Moore acusava aqueles que pretendiam fazer uma
análise de conceitos morais em termos não morais de cometerem uma falácia, a
chamada falácia naturalista:
66Para ver que a concepção de análise bem sucedida de Moore é falha, consultar, por
exemplo, HARTMAN, R.S. The Definition of Good: Moore's Axiomatic of the Science of
Ethics. In Proceedings of the Aristotelian Society New Series, Vol. 65 (1964 - 1965), pp.
235-256.
67Um defensor contemporâneo deste tipo de posição é McDowell. MCDOWELL, J. Mind,
68Ao que parece, Mackie estaria apenas aplicando a Navalha de Ockham e oferecendo a
melhor explicação da realidade. Neste caso, a explicação mais econômica em termos de
entidades.
69Para mais da Teoria do Erro de Mackie, ver MACKIE, J. Ethics: Inventing Right and
Agora nos resta saber algumas coisas como, por exemplo, que tipo de
estados psicológicos os juízos morais expressam. Há alguma variedade de
entendimento do que os juízos morais realmente expressam.
Ayer (1936) defendeu que os juízos morais expressam nossos
sentimentos e/ou emoções. Como dissemos, se expressões de
emoções/sentimentos têm a verdade variante, então elas não podem portar valor
de verdade, não expressam, efetivamente, proposições morais. Na verdade,
Ayer defendia que o valor de verdade de uma proposição deve poder ser
verificada e, como não há como verificar o conteúdo dos juízos morais, então
eles não possuem valor de verdade71. Assim, segundo Ayer, os juízos morais
nada referem e, portanto, não possuem significado literal. O que queremos dizer
70Pensamos que a melhor interpretação da expressão “os juízos morais não expressam
crenças” é a de que as crenças são sempre expressas por proposições e que as
proposições são as portadoras de valor de verdade, em última instância. Então, o que
está sendo dito por Miller aqui é: “os juízos morais não expressam proposições, portanto
não possuem valor de verdade”.
71 Para mais entre emotivismo e o princípio de verificação de Ayer, ver MILLER, A.
Emotivism and the Verification Principle In:Proceedings of the Aristotelian Society New
Series, Vol. 98, pp. 103-12, 1998
201
quando expressamos um juízo moral? Os juízos morais, na verdade, seriam
assim:
72Paramais acerca da posição de Ayer, ver AYER, A. J. Language, Truth, and Logic.
Nova York: Penguin Books, 2001 (fisrt edition 1936), principalmente, capítulo VI.
202
Blackburn chama de “propriedades avaliativas”) são projeções de nossas
emoções, ou sentimentos, ou atitudes etc. (MILLER, 2013). Dessa forma, ele
pretende explicar por que nossa linguagem moral tem aqueles ares realistas que
já comentamos. Reparem que Blackburn, além que querer dizer o que os juízos
morais expressam, também quer explicar a aparência realista de nossa
linguagem moral. Devido a essa característica é que a tese de Blackburn é
chamada de quase-realismo, ou seja, analisada a fundo a linguagem moral não é
realista, apesar de parecer, e expressa certas disposições humanas.
Isso posto, para quase-realistas: os juízos morais expressam coisas
como:
O grande problema para este tipo de visão (na verdade para todas as
visões não-cognitivistas) é o chamado problema Frege-Geach, que discutiremos
mais adiante, pois ainda temos mais uma proposta para expor, qual seja, o
expressivismo de normas de Alan Gibbard. A sua posição foi desenvolvida em
seu Wise Choices, Apt Feelings: A Theory of Normative Judgment de 1993.
Nessa obra, Gibbard defende que os juízos morais são na verdade atitudes (este
é o elemento não-cognitivo) de aceitação de normas que irão governar nossas
condutas e emoções. Assim,
203
Assim, de acordo com Gibbard expressar que “o assassinato é errado”
seria o mesmo que “dar anuência às normas que proíbem esse tipo de ato” e;
podemos entender isso como: S é racional ao pensar que o assassinato é errado,
se S aceita as normas de proibição de tal tipo de ato; e S seria irracional, se
aceitasse uma norma de proibição, mas não seguisse tal norma ou não
expressasse desaprovação com relação a quem a viola. Passemos ao problema
Fregre-Geach. Afinal, do que se trata o problema?
O ponto central do problema de Frege-Geach é que “o expressivista não
pode dar uma explicação do significado das sentenças condicionais que
envolvem predicados morais (bom/mau, correto/incorreto etc) e da validade dos
argumentos que envolvem sentenças morais” (D’Aversa, 2018, p. 1). Dado que a
validade implica que, seja o que for que está sendo expresso nas premissas e na
conclusão de um argumento, deve haver um valor de verdade possivelmente
associado. Sendo assim, como podemos explicar a validade de um argumento
que possua “expressões de nossos sentimentos”, como defendem os não-
cognitivistas? O ponto é: se as expressões morais não possuem valor de
verdade, como podemos formular [como formulamos, de fato] argumentos
válidos, mas com conteúdo moral? Vamos a alguns exemplos:
204
morais não possuam valor de verdade?73.
Apesar de breve, nossa exposição oferece uma visão acerca das
principais teses metaéticas atuais. Agora que temos uma ideia mais geral do que
seja a metaética e seus problemas, assim como as suas teses, vamos passar a
explorar os três grandes modelos da ética normativa, quais sejam: as éticas das
virtudes, o deontologismo e o consequencialismo.
4. Ética Normativa
1. O bom para algo em geral, para o que quer que tenha uma função e
ação característica, depende de sua função, e o mesmo parece ser
verdade para um ser humano (Livro 1, cap. 7, linha 25, 1097b)
2. [A função dos seres humanos] é algum tipo de vida de ação da parte
da alma que possui razão. A função humana é a atividade da alma de
acordo com a razão. (1098a5)
3. Virtude (o bem para alguma coisa) é exercer a própria função "bem e
com perfeição" (1098a10-15)
4. Se a função dos seres humanos é raciocinar, então ser um ser
humano virtuoso é raciocinar bem. (1098a10-15)
Conclusão: O bem humano é a atividade da alma de acordo com a
virtude. (1098a15-20)
751097b16.
76Para mais informações sobre a imprecisão semântica de “eudaimonia”, consulte Kraut,
Richard, "Aristotle's Ethics", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2018
Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = https://plato.stanford.edu/entries/aristotle-ethics/
seção 2: “Aristóteles pensa que todos concordarão que os termos “eudaimonia”
(“felicidade”) e “eu zên”(“viver bem”) designam tal fim. O termo grego “eudaimon” é
composto de duas partes: “eu” significa “bem” e “daimon” significa “divindade” ou
“espírito”. Portanto, significa estar vivendo de uma maneira que é favorecida por um deus.
Mas Aristóteles nunca chama atenção para essa etimologia em seus escritos éticos, e
ela parece ter pouca influência em seu pensamento. Ele considera o “eudaimon” um
mero substituto para “eu zên” (“viver bem”). Esses termos desempenham um papel de
avaliação e não são simplesmente descrições do estado de espírito de alguém.
77Aristóteles, Ética a Nicômaco, (1100a-1100b, linha 35)
208
saber o que algo é, é saber qual é a sua função.78 Depois que estabelecermos
qual é a função de algo, passa a ser até intuitivo que este algo ter valor, ele
precisa exercer bem a sua função. Quando algo exerce bem sua função,
dizemos que é virtuoso.
Saber a função de algo nem sempre é tão óbvio quanto a de uma faca,
uma flauta ou mesmo um soldado. E se quisermos fazer uma investigação mais
generalizada e tentar dizer o que seria função única e universal de todo e
qualquer ser humano, assim como a função de toda e qualquer faca? De acordo
com teoria da individuação de Aristóteles, para saber a função de algo,
precisamos determinar o que essa coisa faz de maneira única e nada mais pode
fazer de maneira igualmente adequada. Aristóteles então conclui que a função
dos seres humanos é ser racional, uma vez que a razão é o que os separa de
tudo o mais, ou seja, sua singularidade. Da mesma forma, se a função dos seres
humanos é ser racional, então, fazer bem é raciocinar bem. Agora, o que
significa raciocinar bem para os humanos na prática? Isto jamais fica claro na
obra de Aristóteles. Embora ele discurse sobre várias virtudes intrapessoais e
interpessoais, não sabemos ao certo quais virtudes exercer em casos de conflito.
Sugerimos lembrar que o estado de eudaimonia é transitório. Então, o
que nós podemos fazer é aquilo que está sob nosso controle, argumenta
Aristóteles, que é permanecer em busca desse estado de vida. Neste ponto, ele
conclui que a vida boa é o provável desdobramento de nossa busca constante
pela virtude, a "vida ativa da virtude" em suas palavras. Portanto, em resumo,
temos: 1. Ser virtuoso é exercer bem a própria função; 2. A função dos seres
humanos é ser racionais. 3. Portanto, ser um ser humano virtuoso é um ser que
raciocina bem. 4. Se nós raciocinarmos bem, “viveremos bem”.
Note que junto com o argumento da função, há um argumento em favor
do dinamismo da virtude: a boa vida requer exercício constante. Se os
momentos que compõem uma boa vida são transitórios e tendem a flutuar,
ficamos naturalmente interessados em saber como fazer esses bons momentos
durarem mais. Na verdade, diz Aristóteles: “as mais honradas entre as próprias
virtudes são mais duradouras do que outras virtudes” e segue-se que “as
78 Aristóteles,
Política, (1253a): “todas as coisas derivam seu caráter essencial de sua
função e capacidade; e segue-se que se eles não estão mais aptos para cumprir sua
função, não devemos dizer que eles ainda são as mesmas coisas.”
209
pessoas que continuamente dedicam suas vidas a elas mais do que qualquer
outra coisa” têm algum tipo de “estabilidade” (1100b15). Porque essa busca é
uma atividade constante, a pessoa passa a construir e manter um certo caráter
pessoal ao longo do tempo, cuja continuidade simplesmente é a vida boa. Mas
como definiríamos “virtude” (areté, transliterado do grego)?
Aristóteles (1106b36-1107a3) defende que “a virtude/excelência é, pois,
uma escolha deliberada relacionada a mediania, determinada pela razão e como
faria alguém prudente”. Bem, já falamos sobre a importância da razão, agora é
necessário falar sobre a “mediania” ou o justo meio. De acordo com Aristóteles, a
virtude seria a mediania entre dois vícios – reparem que o nome pode nos
enganar haja visto que não é um “meio” no sentido do meio do caminho entre
dois pontos A e B. Há um componente particular relativo a nós: depende de
nossa racionalidade encontrar o ponto mediano entre dois vícios. Não somos
autorizados – se quisermos viver bem – a escolher um dos extremos. Vamos a
um exemplo. Imagine um soldado que seja extremamente bravo e à hora da
guerra corre à frente de seu pelotão. Segundo Aristóteles, ele sofre do vício da
imprudência ou da temeridade, ato não recomendável. Imagine agora um
soldado que, ao contrário do primeiro, deixa seu pelotão ir à frente e fica para
trás, por temer a morte. Segundo a linha de raciocínio desenvolvida aqui, ele
também possui um vício, qual seja, a covardia. A verdadeira virtude seria encarar
a batalha com o seu pelotão, pois a união de todos os soldados em uma força
tem mais sucesso na empreitada do que se houver apenas um tentando
enfrentar seus inimigos ou do que se houver menos um para enfrentar tais
inimigos. Então, uma pessoa verdadeiramente corajosa, seria aquela que lutaria
com seus colegas ombro a ombro. Em resumo, agir seguindo o justo meio é
seguir o modo correto de agir.
A última passagem da caracterização de virtude é o ponto de vista de
Aristóteles de que nós aprendemos a ser virtuosos por modelos, seguindo, em
última instância, o que um ser prudente faria, isto é, o que um ser que possui
sabedoria prática faria – tal como denominado por Aristóteles79. Mas o que isso
4.3. O Consequencialismo
212
Poderíamos, dessa forma, formular um princípio (regra geral através do qual
todas as ações podem ser avaliadas como corretas/boas e incorretas/más), tal
como o seguinte:
82A teoria do valor intrínseco que o egoísmo ético aceita pode ser qualquer uma, a nível
teórico. Os egoístas podem aceitar que o bem-estar é o que possui valor, eles podem
aceitar que o perfeccionismo é a tese correta acerca daquilo que possui valor, entre
outras. O importante notar é que o egoísmo ético possui uma forte inclinação a defender
que seja o que for que seja bom em si, as pessoas devem ter a liberdade garantida para
buscar tais coisas e que serem obrigadas a ajudar terceiros, pode interferir nesta
liberdade.
213
podermos prejudicar terceiros, ao tentarmos ajudá-los, tal ajuda seria, em última
instância, uma intromissão ofensiva nestas vidas. Se nós tentarmos ajudar as
outras pessoas, vamos desrespeitar a autonomia dos indivíduos em buscar seu
autointeresse, e isso parece ser ofensivo. Seria como se alguém dissesse a nós
o que fazer, mesmo que nós não desejássemos fazer. Isso nos degradaria
enquanto seres que podem fazer escolhas e que são capazes de fazê-las
(Rachels & Rachels, 2013). Obviamente, essa conclusão parece inaceitável,
afinal como estaríamos autorizados a nos intrometer na vida de outras pessoas,
dizendo o que elas devem fazer? Isso seria de uma pretensão epistemológica
enorme, ou seja, é como se disséssemos “eu sei o que é bom para você, mas
você não sabe o que é bom para você mesmo”. Se supusermos que as pessoas
são geralmente capazes e informadas, então a nossa pretensão de ajuda é, na
verdade, uma pretensão implausível e, talvez, imoral.
Essa linha de raciocínio parece convincente, mas como apontam
Rachels & Rachels (2013) o fundamento da linha de raciocínio acima não está
no egoísmo, ou seja, o que está por detrás do argumento é uma preocupação
outra que não a egoísta. Ao invés de uma preocupação egoísta temos,
antes,uma preocupação acerca da melhor maneira de promover os melhores
interesses de todos os indivíduos. Sendo assim, poderíamos nos comportar de
modo egoísta, mas tal comportamento deve ser seguido não pelo princípio do
egoísmo ético, mas pelo princípio da beneficência, ou seja, não interferir na vida
das pessoas as beneficia mais do que o contrário. Veja como, claramente, o
princípio muda. Tínhamos no começo a preocupação de apenas buscar a
realização do nosso autointeresse, mas a linha argumentativa acima assume que
não devemos intervir na vida alheia, porque, ao fazê-lo, estaríamos prejudicando
outras pessoas. Portanto, tal linha argumentativa pode falhar para à defesa do
egoísmo ético. Porém esta não é a única linha argumentativa. Ayn Rand tentou
desenvolver, em seu The Virtue of Selfishness, de 1964, uma linha adicional que
se foca na liberdade humana e no seu florescimento.
De acordo com o ponto de vista de Rand, a própria obrigação de ajudar
terceiros prejudica não somente quem é ajudado, mas também que ajuda. Mas
como isso seria possível? O primeiro ponto é simples. Viver sob a égide da
vontade de terceiros, ou seja, da sua ajuda, é ser relegado a um estatuto de
“coisa” e a uma espécie de “escravidão”. Isto degradaria o indivíduo a níveis de
torná-los não livres ou, em outros termos, torna-os coisas que podemos
214
manipular, dada a situação em que foram colocadas. Todavia esse não é o
principal problema. O problema principal é que as pessoas que são “obrigadas” a
ajudar também são prejudicadas enquanto serem que desejam desenvolver e
usufruir de sua individualidade. Mas, como? Ora, se fossemos obrigados a
ajudar os outros, então seríamos obrigados a abrir mão de algo que não
estávamos dispostos a abrir mão, como, por exemplo, nosso tempo, nossos
bens materiais, nossos interesses etc. (Rachels & Rachels, 2013). Imagine a
seguinte situação: um agente A decide junto a seu parceiro terem um filho e,
adicionalmente, criar o filho dispendendo seus recursos para dar-lhe a melhor
vida. Isso faz parte dos planos individuais dos dois. Assim, criar o filho com todos
os recursos que eles possuem faz parte do autointeresse de ambos. Mas,
imagine que, por alguma razão, eles são obrigados a ajudar terceiros, de tempos
em tempos, ou seja, ajudar terceiros não faz parte dos interesses de ambos.
Assim, quando da ajuda a terceiros, ambos terão que sacrificar algo para tanto,
como, por exemplo, o tempo deles que poderia ser gasto com o seu filho ou os
recursos materiais que poderiam ser gastos na criação da criança etc. Este é
ponto de Rand: se somos obrigados a ajudar os outros, isso nos prejudicaria em
realizar nosso autointeresse no fim das contas. E, para egoístas éticos como
Rand, tal coisa é inaceitável, haja visto devermos permitir que cada pessoa
julgue a sua vida como sendo um valor último (isso é um princípio egoísta
genuíno), levando o indivíduo a sério e que isso significa não os obrigar a abrir
mão daquilo que lhes interessa. Todavia essa linha argumentativa possui
problemas.
O problema central que podemos elencar é o seguinte: Rand parece
defender que temos duas opções de escolha, ou nós somos pessoas
benevolentes e acabamos com a nossa individualidade no processo, ou nós
somos egoístas éticos (Rachels & Rachels, 2013). Da forma como ela coloca as
opções, soa quase irracional tentar ajudar os outros, uma vez que estaríamos
escolhendo ou viver como santos morais, ou não presaríamos por nossa própria
vida, sujeitando-nos à “servidão moral”. Mas reparem, há uma terceira opção,
qual seja, poderíamos ajudar terceiros, abrindo mão de algo supérfluo a nós (por
exemplo, se temos itens demais de um mesmo produto, os itens adicionais
acabam sendo supérfluos porque nós não utilizaremos de todo em todo), mas
que terá impacto na vida do ajudado. E mais, o ajudado não será um mero
“objeto”, se aquilo que empregarmos para ajudá-lo o faz sair de uma situação de
215
vulnerabilidade, tal que ele possa, posteriormente, abrir mão da ajuda. Assim,
parece que Rand utiliza uma falácia do falso dilema para provar seu ponto contra
quem defende que devemos ajudar os outros; e, ao fazê-lo, ela cometeria uma
segunda falácia, qual seja, a do espantalho, uma vez que uma defesa mais
plausível do dever de ajudar terceiros teria a forma de “devemos abrir mão do
que é supérfluo” ao invés de “devemos abrir mão daquilo que é essencial para
levarmos a cabo nossos interesses”. Desta forma, a posição de Rand, se as
críticas forem válidas, não se sustenta. Isso posto, vamos considerar, de forma
brevíssima, a posição de Thomas Hobbes a quem atribuem também uma visão
egoísta.
Hobbes é conhecido por muitos como o defensor da tese de que os
seres humanos podem ser (não quer dizer que serão)83 um mal para os próprios
seres humanos – quem nunca ouvi a frase “o homem é o lobo do homem”, não é
verdade? Segundo Hobbes (2015), deveríamos seguir as regras morais, porque,
ao segui-las, seríamos beneficiados ou, pelo menos, não seríamos prejudicados.
O pensamento é o seguinte: se fizermos o que é demandado, as outras pessoas
podem nos ver com bons olhos, ou nos favorecerem de algum modo, ou não nos
prejudicarem, ou ficarem em dívida conosco etc. Isso iria de encontro com um
interesse fundamental de não ser prejudicado (Rachels & Rachels, 2013). Essa
pode ser considerada uma visão egoísta, uma vez que estaríamos olhando
apenas para nós ou, em outros termos, estaríamos apenas preocupados com a
nossa vida. Seguindo essa linha de raciocínio, Hobbes defendeu (2015) que o
pensamento egoísta levaria à própria regra de ouro, que diz que não devemos
fazer aos outros aquilo que não gostaríamos de fizessem a nós (Rachels &
Rachels, 2013). Dado que se fizéssemos algo aos outros, eles, provavelmente,
fariam o mesmo contra nós. Bem, mas é plausível a posição de Hobbes?
Primeiramente, poderíamos colocar em causa a verdade da espécie de
egoísmo psicológico que Hobbes supõe existir, mas não precisamos começar daí.
83Por mais que Hobbes tenha, em alguma medida, a visão de que as pessoas seriam
inclinadas ao egoísmo (ao que parece Hobbes defendia uma espécie de egoísmo
psicológico), ele não descartava a possibilidade de que houvesse altruísmo, mesmo na
situação hipotética do “estado de natureza”. Este “altruísmo limitado” poderia ser uma
das razões para pensarmos que devemos seguir as regras morais/políticas com a
finalidade de não sermos prejudicados.
216
A primeira observação que podemos fazer, aceitando a linha argumentativa dele
é que é possível haver, pelo menos logicamente e metafisicamente, situações
nas quais agir seguindo as regras morais não nos traz qualquer benefício
(Rachels & Rachels, 2013). Dessa forma, se há esta possibilidade, então o
argumento de Hobbes não funciona, porque, em última instância, as razões para
seguirmos regras não seriam exclusivamente egoístas. O segundo ponto é que
mesmo que aceitemos que somos movidos por razões egoístas em várias
circunstâncias, isto não quer dizer que sempre ou apenas somos motivados por
essas razões (Rachels & Rachels, 2013). Defender a tese da motivação egoísta
exclusiva é, no mínimo, interpretar a psicologia motivacional humana de modo
simplista e irrazoável, dado que, se alguém ajudar outra pessoa sem estar
motivado por razões egoístas, a tese é refutada. Dessa forma, a posição de
Hobbes não parece muito atraente.
Um problema mais geral que afeta o egoísmo ético é de que ele elege o
tomador de decisão como um ser moralmente especial. O que isso quer dizer?
Se defendemos que o interesse de um indivíduo sempre deve ser satisfeito
independentemente dos efeitos em terceiros e o que conta para a moralidade
são, portanto, as consequências para aquele indivíduo, temos o desafio de
justificar porque os interesses individuais são os portadores de valor e os
interesses alheios não são. Se não conseguirmos gerar uma boa justificação
para tanto, estaremos sendo arbitrários e defendendo uma tese do tipo “os meus
interesses é que importam, porque são meus”. Isso parece, do ponto de vista
filosófico, inaceitável. O fato de certos interesses serem interesses de uma
pessoa, ao invés de outra, não torna esses interesses especiais. Adicionalmente,
este tipo de raciocínio é muito parecido com o raciocínio defendido por
supremacistas raciais ou sexistas etc. A defesa de que alguém é moralmente
especial (sejamos nós mesmos, ou um grupo específico) quebra um dos
princípios mais caros à filosofia moral, qual seja, o princípio de igualdade de
tratamento (Rachels & Rachels, 2013), que estabelece que não há uma razão a
priori para tratarmos as pessoas de modo não igualitário quando estamos
fazendo considerações morais. Defender que os interesses egoístas são
especiais é defender que a priori alguém é melhor que alguém. Será, então,
possível defender o egoísmo ético?
Deixamos, assim, essa reflexão aos leitores e passamos ao utilitarismo.
217
4.3.2. Utilitarismo
84Talvez a defesa utilitarista mais influente dos direitos dos animais seja a de Peter Singer,
em Libertação Animal (Animal Liberation, 2001) e Ética Prática (2012). Singer defende
que a atitude de pensarmos que somos especiais do ponto de vista moral, em
comparação com os animais não humanos, apenas por sermos humanos é uma espécie
de discriminação arbitrária com os animais não humanos análogo ao ato de
discriminação baseada em raça (racismo). A este tipo de discriminação chama-se de
especicismo/especismo.
219
todos os utilitaristas clássicos e contemporâneos, algumas teses variam. Por
exemplo, apesar de (ii) ser aceita também por todos os utilitaristas, há diferentes
formulações do modelo teórico. A primeira variação é sobre o que deve recair a
nossa avaliação, ou seja, devemos avaliar como correto ou incorreto dadas as
consequências dos atos particulares de indivíduos particulares? Ou deveríamos
avaliar como correto ou incorreto atos de acordo com regras que, se seguidas
por quase todos, gerariam as melhores consequências? Dependendo de nossa
resposta, temos ou utilitarismo de atos ou um utilitarismo de regras85. É sobre
estas variações que nos focaremos. Mas do que se trata cada uma desta
formulações diferentes? Comecemos por explorar o utilitarismo de atos.
Numa concepção bem simples, o utilitarismo de atos aceita uma
espécie de consequencialismo chamado de consequencialismo individual.
Segundo esta visão, para sabermos se uma ação é correta deveríamos nos
perguntar: o que resultaria de uma ação particular qualquer se um indivíduo
particular a executasse? Se resultaria o maior agregado possível de felicidade,
então a ação estaria correta. Aceitando o consequencialismo individual, podemos
gerar a seguinte formulação do princípio utilitarista
85Aqui cabe um adendo sobre a nomenclatura para se referir às teses utilitaristas que
serão explicadas. A nomenclatura pode variar dependendo do enfoque que damos ao
critério de correção e ao processo decisório. Ao utilizarmos a nomenclatura utilitarismo
de atos ou de regras, estamos olhando para o critério de correção da teoria. Dessa forma,
estamos olhando o objeto a ser avaliado como correto ou incorreto, ou seja, se são atos
ou se são regras. Porém, se nosso enfoque for dado ao processo decisório – como um
indivíduo deve tomar suas decisões em situações morais - nós temos que mudar a
nomenclatura e seguir a sugerida por Smart (1973). Smart chama o utilitarismo de atos
de ‘utilitarismo direto’ uma vez que o processo decisório é o mesmo que o critério de
correção, e chama o utilitarismo de atos que aceita regras de ‘utilitarismo indireto’, pois o
critério de correção é diferente do processo de decisão – veremos mais sobre isso
adiante. Então, do ponto de vista do critério de correção, as duas teorias podem ser
reunidas sob o nome de ‘utilitarismo de atos’, enquanto se considerarmos apenas o
processo decisório, teremos uma diferenciação entre o utilitarismo de atos (ou como
refere Smart, utilitarismo direto) e o utilitarismo indireto. Os utilitaristas indiretos podem
aceitar uma variedade de processos decisórios. Porém nós iremos discutir, mais adiante,
apenas um, qual seja, o de que o melhor processo decisório é seguir regras práticas ou
“aconselhativas”.
220
Princípio Utilitarista de Atos:uma ação qualquer é moralmente correta se,
e somente se, executá-la gera como consequências o maior agregado
de felicidade/bem-estar entre os indivíduos envolvidos.
86Há vários tipos de consequencialismo que são aceitos por teorias utilitaristas de regras,
como, por exemplo, o consequencialismo de regras de generalização,
consequencialismo de regras institucional (GOODWIN, 1995), consequencialismo de
regras do código moral vigente (BRANDT, 1992), consequencialismo de regras do código
moral Ideal (HOOKER, 2000, SANTOS, 2017) etc.
225
somente desempenham papel no processo de decisão, ou seja, elas são
aconselhativas. No utilitarismo de atos simples, elas não desempenham papel
algum. Já no utilitarismo de regras, elas desempenham papel central, não
apenas no processo de decisão, mas também no critério de correção. O que isso
quer dizer? Que para o utilitarismo de regras uma ação é moralmente correta se,
e somente se, ela respeita uma regra que, se todos seguissem, geraria a
maximização de felicidade/bem-estar. Assim, podemos expressar um princípio do
utilitarismo de regras como se segue:
87Antes que se pense que a teoria do URCMV não é adequada, por não ser universal no
sentido de que o que ela estabelece como correto não é válido para todas as sociedades;
uma vez que os códigos irão variar de sociedade para sociedade, uma observação pode
ser feita: a teoria não tem essa pretensão. Por exemplo, a teoria da justiça de Rawls
apresentada em Uma Teoria da Justiça, por exemplo, não pode ser acusada de não ser
universal, uma vez que ela é construída tendo como objeto apenas as sociedades
democráticas. O fato de a teoria não ser universal ou ser restrita não é um problema em
si.
229
maximização da felicidade/bem-estar, mesmo que nele ocorra várias regras
ideais. Os passos que devemos dar são, portanto, (i) selecionar o código dentre
todos os alternativos que gerará o máximo de felicidade/bem-estar e; (ii) avaliar
as ações como corretas ou incorretas em termos de conformação delas as
regras. O principal motivo para aceitarmos essa estratégia é a ideia de que os
códigos vigentes são falhos em termos de produzir as consequências que
esperamos que deles se produza. Além disso, o URCMI implica algo como o
melhoramento moral, ou seja, somos capazes de avaliar as regras existentes,
identificar aquelas que parecem indesejáveis e substituir por aquelas que nos
parecem melhores. Portanto, em comparação com o URCMV, nós temos essas
características como positivas: podemos ter regras melhores em termos de
maximização do bem-estar e alguma ideia de progresso moral.
Como em toda teoria filosófica, também há perdas, se aceitamos o
URCMI. Por exemplo, os problemas dos custos de internalização são
gigantescos, pois se exigirmos que as pessoas que vivem agora internalizem o
código, elas terão que mudar suas vidas, nos termos que explicamos acima, e
isso diminui nosso montante final de bem-estar. Outro problema, este mais
abstrato, é o de saber quais os possíveis códigos disponíveis. Como os códigos
podem assumir regras ideais, deve haver um grande número de códigos a serem
considerados e, portanto, a nível prático, parece não ser possível considerar
cada um deles. Há vários outros problemas 88 que afetam esta versão do
88São três os conjuntos de objeções que já são consideradas clássicas contra o URCMI,
quais sejam: (1) A objeção do Colapso: o consequencialismo de regras do código moral
ideal colapsa no consequencialismo de ato; então o consequencialismo de regras do
código moral ideal é descartável, pois não nos apresenta uma teoria distinta do
consequencialismo de ato do nível simples ou do consequencialismo de ato de nível
múltiplo; (2) A objeção da adoração à regra:o consequencialismo de regras defende que
devemos avaliar as regras por sua capacidade de produzir as melhores consequências e
requer que a sigamos, mas, ao nos depararmos com uma situação particular na qual
seguir a regra não produz as melhores consequências, ele demanda que abandonemos
a regra (o que faz a teoria incoerente) ou nos diz para seguir a regra (o que torna a teoria
implausível, dado os maus resultados que seriam gerados).(3) Objeção da Aceitação
Parcial: se o consequencialismo de regras do código moral ideal estabelece que nós
possuímos responsabilidades compartilhadas e que a maximização apenas ocorre
230
utilitarismo, mas teremos que deixá-los de lado, para passarmos à próxima teoria
normativa considerada.
Agora que conhecemos um pouco sobre o consequencialismo, o
egoísmo ético e as variações do utilitarismo, podemos passar a apresentar e
considerar uma das teorias morais mais influentes, qual seja, o deontologismo
kantiano. Immanuel Kant é tão influente, que até hoje suas ideias principais são
amplamente defendidas. De um modo curioso, o deontologismo kantiano deve
ser o modelo teórico mais popular na academia brasileira. Sendo assim, vamos
passar a apresentar o modelo desenvolvido por ele.
quando todos os indivíduos do grupo aceitam e cumprem tais obrigações, quais seriam
as nossas responsabilidades se grande parte dos indivíduos não aceitam o código de
regras ideal? Para mais sobre a objeção do colapso ver LYONS, D. Forms and Limits of
Utilitarianism. Oxford: Oxford University Press, 1965, p.119s.
231
intrínseco e deve ser respeitada – analogamente a utilitaristas que defendem que
a felicidade/bem-estar possui valor intrínseco. O valor fundamental da ética
kantiana seria a nossa dignidade. Ela pode ser entendida como dando a nós
valor intrínseco, em outros termos, cada pessoa possuidora de racionalidade e
autonomia tem valor em si e não pode ser desrespeitada, nem mesmo para a
produção da felicidade/bem-estar de todos os indivíduos. Seres humanos são
passíveis de consideração moral, dado possuírem autonomia e racionalidade.
Pelo menos do ponto de vista kantiano, a comunidade moral apenas é formada
por seres que são autônomos e racionais, portanto a deontologia kantiana deixa
de fora da comunidade moral todos os animais não humanos. A ênfase kantiana
nesta propriedade moral relevante, como veremos ao final desta seção, trará o
problema de que a tese kantiana implica que animais não humanos não são
passíveis de consideração moral direta, mas deixemos isto para o final de nossa
apresentação.
Kant tentou estabelecer seu princípio moral fundamental a partir da
análise do discurso moral cotidiano, fazendo notar que há duas maneiras, pelo
menos, em que utilizamos o termo “deve/dever”. Assim, temos que diferenciar
entre dois “sentidos” de dever: (a) Um uso baseado em nossos desejos e; (b) Um
uso nunca baseado em nossos desejos. Sobre (a), Kant defendeu que temos
certos “deveres” dado nossos desejos específicos, a tal teste de deveres deu o
nome de Imperativo Hipotético (I.H.). O nome parece esquisito, mas faz todo o
sentido, por exemplo, dado a hipótese de que você deseja X, então você deve
procurar pelos meios relevantes para alcançar X (Imperativo/ordem). Assim,
dado um desejo específico, temos uma ordem (ordem no sentido de mando)
específica. O teste do Imperativo Hipotético estabelece o que “devemos” fazer
dado um desejo prévio, mas não estabelece qualquer dever (obrigação moral) no
sentido forte, uma vez que o que devemos fazer dado o I.H. depende de nossos
desejos. Troque o desejo, trocará o que se deve fazer. O I.H. segue o que,
comumente, se chama de racionalidade pragmática: se objetiva fazer X, então
use os melhores meios para fazê-lo.
Já sobre (b), Kant defendeu que nossas obrigações morais não
dependem nunca do que desejamos. A forma de pensamento não é mais: “se
quiser X, então deve fazer Y”. Os deveres morais são categóricos, e o
pensamento expresso é: você deve fazer assim e de nenhuma outra maneira,
independente do que você deseja”. Ao analisar este uso do conceito de “dever”,
232
Kant fez notar que deveria haver um princípio fundamental da moralidade que,
através do uso da nossa racionalidade, nos permitiria definir todos os nossos
deveres. Ele chamava de Imperativo Categórico (I.C). O filósofo pensava que o
I.C revelava sempre o que era racional de se fazer, portanto nossos deveres
estariam baseados em exigências da racionalidade e não em qualquer entidade
divina. Ele argumentava que poderíamos decidir quais eram nossos deveres,
usando o raciocínio moral, através de um teste, usando o I.C. Como dito acima,
Kant defendia que os seres humanos são os únicos possuidores de valor
intrínseco, isso quer dizer que nós nunca deveríamos tratar as pessoas como
“objetos”, ou seja, nós nunca deveríamos utilizar as pessoas como meros meios
para realizarmos aquilo que desejamos 89 , dado que isso seria um profundo
desrespeito àquilo que é valioso por si mesmo e, segundo Kant, dado que nós
somos tão valiosos, a moralidade requereria que sempre fossemos respeitados.
Assim sendo, Kant cunhou seu princípio moral fundamental, o Imperativo
Categórico (há várias formulações diferentes do princípio na obra kantiana,
portanto utilizaremos apenas uma) 90 que em sua formulação geral, pode ser
89É importante fazer uma distinção sobre como devemos entender “utilizar uma pessoa
como um mero meio” e “utilizar as pessoas como meio de modo respeitoso”. Usar uma
pessoa como um mero meio é tomá-la como um objeto, ou seja, não se importar com as
escolhas autônomas delas; assim, se enganamos uma pessoa para ganho próprio
estamos utilizando-a como mero meio; se restringimos a sua liberdade de ação de modo
arbitrário, sem o consentimento dela, também estamos utilizando-a como mero meio etc.
e, segundo Kant, isso é imoral. Por outro lado, é comum utilizar as pessoas como meio.
Por exemplo, um aluno utiliza um professor para obter conhecimento, um paciente utiliza
uma médica para obter o reestabelecimento de sua saúde etc., porém isto não é imoral
dado que tanto o professor como a médica decidiram autonomamente e de forma
racional entrarem nestas profissões e sabiam de antemão que teriam alunos e pacientes,
por exemplo. Assim, usar como mero meio é não considerar as escolhas autônomas ou
prejudicar tais escolhas (com ludibriação, por exemplo); usar como meio é respeitar as
escolhas autônomas dos indivíduos que racionalmente e livremente decidiram por fazer o
que fazem.
90As outras formulações que podem ser encontradas na Fundamentação da Metafísica
dos Costumes (Grundlegung zur Metaphysik der Sitte (GMS), em alemão) são as que se
seguem: (a) “Age como se a máxima de tua ação se devesse tornar, pela tua vontade,
em uma lei universal da natureza” (GMS 4:421) – chamada pelo estudiosos da obra de
Kant de “formulação da lei da natureza”; (b) “Age de tal maneira que uses a humanidade,
233
expressa da seguinte forma:
Vamos tentar entender cada elemento teórico que está presente nesta
formulação tais como “máxima” e “lei universal”.
Uma “máxima” é uma regra subjetiva de ação, ou seja, é uma regra de
ação que um indivíduo autônomo particular segue em sua vida particular. Então,
por exemplo, se um indivíduo I segue a regra “não devo mentir” em sua vida,
esta é uma máxima. Simples assim. Já uma “lei universal” é uma regra que é
válida a todos os indivíduos em todos os lugares e em todos os tempos. Sendo
assim, o “teste” do imperativo categórico nada mais é do que uma regra que nos
permite avaliar se regras subjetivas podem ser regras universais e, portanto,
definir deveres. O teste do I.C. estipula se é racional aceitarmos que uma
máxima X, possa ser aceita racionalmente como guia de ações, universalmente.
Com todos os seres humanos racionais podem utilizar o teste e constatar se uma
máxima pode ser aceita como lei universal, teríamos como resultado um dever
que pode ser aceito de forma racional por todos.
Façamos um teste: tomemos a regra da proibição da mentira. Será que
ela pode ser aceita universalmente, dada a consideração de que as pessoas são
seres valiosos por si mesmos, pela sua dignidade? Pensem da seguinte forma:
“e se fosse permitido às pessoas mentir, o que resultaria em termos de respeito
aà autonomias?”. Ao que parece, quando mentimos para alguém, estamos
interferindo em suas escolhas autônomas, dado que a escolha do indivíduo será
baseada agora em uma informação falsa, que pode ter como objetivo levar esta
pessoa a pensar e escolher o que o mentiroso deseja. Isso parece um claro
(i) A Bioética: lida com questões como o início e o fim da vida, com o
que as profissionais da saúde devem fazer, como devemos investir os
recursos em saúde etc. Sendo assim, são problemas pertencentes a
bioética:
(ii) A Ética Ambiental: lida com questões das relações entre os seres
humanos e a Natureza de forma geral; São problema da ética ambiental:
240
Novamente, este é apenas um recorte sobre os problemas que se lida
em ética ambiental.
(iii) A Ética Animal: lida com os problemas das relações entre animais
não humanos e animais humanos;
a. Será que tudo está à venda como, por exemplo, órgãos humanos,
o sexo, a privacidade etc.?
b. Qual é o dever das empresas para com os seus funcionários?
c. O que os funcionários devem as empresas?
d. Quais os deveres que as empresas têm com relação ao meio
ambiente e à sociedade como um todo?
e. Qual sistema econômico é justo?
241
f. Deveria a economia se preocupar em como os recursos materiais
são distribuídos na sociedade?
g. Qual o papel que as empresas deveriam ter no processo político?
Se é que devem ter algum?
h. Seria moralmente correto que empresas patrocinassem
campanhas de candidatos a governos?
i. Como podemos atribuir responsabilidade moral a empresa já que
elas não são indivíduos?
j. Quais os direitos que organizações econômicas devem ter?
(v) A Infoética: esta é uma área relativamente nova, mas que estuda as
relações entre seres humanos e máquinas (ou inteligências artificiais) e
os problemas advindo do emprego da alta tecnologia.
6. Conclusão
Nosso objetivo com este capítulo foi tentar apresentar, mesmo que de
modo breve, a grande área da Ética como disciplina filosófica. Tentamos
apresentar de modo satisfatório os principais problemas, as principais posições
filosóficas, as razões e argumentos para sustentação das variadas teorias e,
principalmente, quais as questões que estão em jogo em cada subárea da
disciplina de Ética. Nos desculpamos com o leitor se a exposição aqui sofre de
alguma imprecisão, ou se parece por vezes incompleta ou mesmo contenha
algum erro. Mas, exortamos ao leitor que tome a nossa exposição como ponto
inicial de um estudo que deve ser aprofundado na literatura relevante. Por fim,
esperamos que seja de alguma ajuda ao leitor iniciante o que foi dito aqui.
Sugestões de leitura
Introdução a Metaética
246
Introdução à Ética Aplicada
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251
5
Estética
André Luiz Alves Pereira
1. Introdução
2. Estética
1. O que é a arte?
2. O que é a beleza?
3. O que é o gosto?
4. Que valor a arte tem?
255
Baumgarten chegou a sua formulação definitiva: “Estética (a teoria das artes liberais,
a gnoseologia menor, a arte de pensar belamente, a arte do análogo da razão) é a
ciência da cognição do sensível”.91
Baumgarten concordava, como boa parte dos filósofos de sua época, que existe uma
separação incontornável entre as representações “internas” que temos do mundo e o
mundo tal como ele é. A filosofia, desta forma, teria a tarefa de avaliar em que
condições essas representações coincidem com os vários aspectos do mundo e, no
fim das contas, no modo como ele é. Dentre os vários modos de os seres humanos
representarem o mundo, pensavam eles, alguns dependem de experiências com o
“mundo externo”, as quais são mediadas pelos nossos sentidos – a visão e a audição,
por exemplo – e outras, referentes exclusivamente ao “mundo interno”, pareciam-lhes
não depender dos sentidos. Baumgarten estava especialmente interessado no modo
como adquirimos um tipo de conhecimento – que julgava diferente dos demais –
exclusivamente por meios dos sentidos e qual seria a natureza desse tipo de
conhecimento. Esse tipo de conhecimento seria crucial nas nossas experiências com
as belas-artes, utilizando-as largamente em suas reflexões. Dizia que “o
conhecimento sensível é o complexo de representações que subsistem abaixo da
distinção”. Isso não queria dizer que essas representações sejam obscuras, como
pensavam vários dos filósofos do seu tempo; mas que requerem um tratamento
cuidadoso e especial no que elas têm de específico. Daí sua proposição de que uma
“ciência” – um conjunto delimitado de métodos e problemas a serem investigados –
deveria surgir para tentar solucionar as questões levantadas por esse tipo de
representação.
Muitos filósofos não viram relevância ou sequer deram atenção à proposta de
Baumgarten, por vários motivos filosóficos. Outros, no entanto, estavam se dedicando
a questões similares às propostas por ele e, à medida que foram tomando
conhecimento da distinção de uma possível “ciência estética”, foram vendo
confirmadas muitas das suas expectativas e notando que suas investigações não
estavam sós, passando a construir, aos poucos, algo como um diálogo entre si.
Essas discussões foram tomando um rumo próprio e, em seu conjunto, formaram, ao
menos em parte, o que hoje damos o nome de ‘Estética’. Desde então, vários e vários
filósofos foram alterando as perguntas e oferecendo novas respostas quando lhes
pareceu conveniente.
92 Daqui para frente usaremos os termos ‘arte’ e ‘obra de arte’ como sinônimos.
257
a aparecer quando há a necessidade não apenas de nomear este ou aquele
objeto, mas ter um critério que nos permita diferenciar determinado objeto ou
qualidade de todos os demais. A arte é um excelente exemplo, onde há mais
desacordo sobre quais objetos devem receber este ou aquele termo e,
sobretudo, por que é que outro tipo de definição ganha interesse.
Quais objetos devemos incluir “ostensivamente” no conceito de arte
logo de saída? Muitos não disputariam que a Mosa Lisa, Davi e a Guernica são
bem classificados como obras de arte. Mas muitos não estariam dispostos a
conceder que outras obras, como a A Fonte, feita por Marcel Duchamp, seja
incluída na investigação sobre o que é uma obra de arte.
Essa é uma questão que precisa sempre ser levada em conta, pois
pode ser que um dos efeitos indesejáveis de uma definição estrita possa ser o de
excluir indevidamente a inovação e mesmo a possibilidade de mudança de quais
coisas devem ser incluídas no conceito de “obra de arte”. Esse foi um ponto
debatido por bastante tempo e, para dizer a verdade, não parece ter se
encerrado. Falaremos mais dele ainda quando discutirmos uma teoria que
propõe outra forma de oferecer definições.
Pode ser que, deixando um pouco de lado esses casos especiais, seja
258
mais interessante olhar para o que seguramente podemos contar como uma
obra de arte, investigando o que seguramente elas têm em comum. Adiante,
talvez, ganhando uma compreensão maior dos casos mais seguros, podemos
retornar a casos como o de A Fonte mais bem equipados conceitualmente.
Comecemos separando algumas características e buscando refletir se
elas são condições necessárias de uma obra de arte. Se quisermos definir uma
cadeira, por exemplo, teremos que levar em conta o fato de que ela é um
artefato produzido por seres humanos. Independentemente de qual seja a
definição de cadeira, seria estranha uma definição que não levasse essa
característica em consideração. Como sabemos que há muitos artefatos
produzidos por seres humanos que não são cadeiras, podemos concluir que
essa condição não é suficiente. Embora tenhamos que levá-la em conta, não
poderemos nos dar por satisfeitos se quisermos encontrar a definição. Uma
definição nada mais é do que uma descrição de quais condições individualmente
necessárias são conjuntamente suficientes para definir um objeto.
Diferentemente das definições ostensivas – onde não há necessidade de
descrever tais condições –, essa é uma definição “explícita” – que busca
descrever quais são as condições necessárias e suficientes que fazer
determinada coisa ser o que é.
261
3.1.1 Aristóteles
263
temor, provoca a purificação de tais paixões.93
267
3.2.1 Collingwood e expressão imaginativa
272
verdades mantém um elemento de expressividade
emocional. Nenhum escritor ou orador sério
pronuncia um pensamento a menos que ele
pense que vale a pena expressá-lo. O que faz
valer a pena expressá-lo não é a sua verdade (o
fato de que algo é verdadeiro nunca é motivo
suficiente para dizê-lo), mas o fato de ser a única
verdade que é importante na situação atual.
Com essas afirmações Weitz não pretende dizer que todos os esforços
anteriores foram inúteis. O que esses esforços teóricos não fizeram foi prestar
atenção o suficiente na natureza distinta do conceito de arte, não obstante terem
ajudado a iluminar porções de aspectos importantes da arte, de acordo com o
filósofo. A afirmação final, segundo a qual a “teoria estética tenta definir o que
não pode ser referido no sentido requerido” é crucial. O sentido requerido aqui é
o de oferecer quais são as condições necessárias e suficientes que definem o
conceito de arte, que daqui em diante passaremos a chamar de ‘tradicional’. Ele
tentará mostrar que, por sua natureza distinta da grande parte dos conceitos, a
definição de ‘arte’ precisa ser investigada e oferecida de outro modo.
Seguindo algumas ideias do filósofo Wittgenstein, Weitz tentará mostrar
que o conceito de ‘arte’ é aberto. Um conceito seria aberto quando os objetos
que ele define podem ser reconsiderados ao longo do tempo. Num determinado
momento do tempo, digamos, o século XVIII, o conceito de arte poderia se referir
a certos objetos; no século XIX, poderia já ter incluído outros; e assim
sucessivamente. Da mesma maneira como Wittgenstein tentou mostrar que o
274
conceito de “jogo” é aberto, isto é, que não há características comuns a todos os
jogos que possamos descrever, ao oferecer uma definição tradicional, Weitz
pensou que o conceito de arte era do mesmo tipo. Ao tentar oferecer uma
definição tradicional, os filósofos teriam, na melhor das hipóteses, capturado um
estado momentâneo do conceito de arte.
Veja que as teorias da imitação não providenciam muito bem um lugar
para A Fonte, de Duchamp. O mictório utilizado para compor a obra não imita a
aparência de nenhum outro objeto. Ele é um objeto idêntico aos outros. Sendo
assim, não se ajusta bem à teoria da imitação, obrigando-nos a escolher entre
considerá-la um exemplar de obra de arte ou se a definição não procede. O
mesmo vale para a teoria expressiva. Assim, pairaria uma sensação de que
todas essas definições são arbitrárias e nada mais que isso. Mas se Weitz está
correto, isso não deveria nos espantar, pois seria da própria natureza do conceito
de arte a mudança ao longo do tempo. Se mantivermos o conceito “aberto”,
então é de se esperar que possamos acomodar todas essas obras
apropriadamente sob o conceito de arte. Mas se obras tão diferentes entre si,
como Davi, Guernica e A Fonte não possuem nenhuma característica ou
conjunto de características comuns que sejam suficientes para distingui-las dos
outros objetos, o que justificaria dizer que todas elas são exemplares de “obras
de arte”?
Weitz responde que são suas semelhanças de família que nos
permitem justificar a aplicação do conceito – uma ideia que ele também retira do
pensamento de Wittgenstein. Quando estamos diante de uma família, temos a
nítida impressão que todos os indivíduos que a compõem possuem certas
características comuns. O formato dos olhos, do nariz, a altura, o modo de
caminhar e falar, a cor dos cabelos e da pele, o tamanho das mãos etc. etc.
Digamos que o nome dessa família seja Oliveira e suponha também que eles
não tenham nenhuma característica partilhada por todos os seus membros. Seria
estranho que suspendêssemos nossa “classificação” dos membros dessa família
como pertencentes à família Oliveira apenas porque eles não têm uma
característica partilhada por todos. Ao contrário, além de receberem o nome da
família de seus pais, os Oliveira possuem um conjunto de características que os
tornam muito parecidos entre si. O seu João Oliveira tem olhos azuis e mãos
grandes; sua filha, Joana Oliveira, tem olhos azuis também, mas tem mãos de
tamanho médio, ao contrário do seu irmão, Thiago Oliveira, que não possui olhos
275
azuis, mas possui mãos grandes; e assim por diante.
Essas várias características compartilhadas entre primos, tios, avós
etc., formam o que se costuma chamar de semelhanças de família. Weitz pensa
que as obras de arte se relacionam de modo parecido entre si. Elas não
possuem nenhuma característica comum, mas um conjunto de características
compartilhadas umas com as outras. Para simplificar, pense em cinco obras de
arte, que chamaremos de ‘A’, ‘B’, ‘C’, ‘D’ e ‘E’. Imagine que a obra ‘A’ compartilhe
alguma semelhança com a obra ‘B’ e com a obra ‘E’. Imagine também que a
obra ‘E’ compartilhe semelhanças além de ‘A’, com ‘C’ e ‘B’; que ‘C’ e ‘B’ não
compartilham nenhuma semelhança entre si. ‘C’ compartilha semelhanças com
‘E’ e ‘A’ somente, enquanto ‘B’ compartilha semelhanças com ‘A’ e ‘E’. Essas
semelhanças justificariam considerá-las parte de uma família, permitindo dar a
elas um nome comum – obras de arte.
Dessa maneira, poderíamos evitar “fechar” o conceito de arte e impedir
que ele exclua novos objetos, como A Fonte. Para que ela e qualquer outro
objeto possam ser incluídos no conceito de arte, bastaria encontrar uma
característica relevante que as assemelhe a outras obras de arte, destacada por
teorias como a expressiva e da imitação, para então inclui-la na família. Note que
não há qualquer necessidade de busca por condições necessárias e suficientes
aqui; apenas que faça parte da família por meio de algumas características
compartilhadas.
Weitz levanta ainda outro ponto a favor de sua teoria. Ele diz que as
definições tradicionais prejudicam a criatividade necessária à arte, ao passo que
a sua teoria poderia ter um papel estimulante para a produção de novos tipos de
obra de arte. Em vez que ter um papel limitador, como o filósofo pensa que
essas teorias tiveram, as novas teorias poderiam contribuir positivamente para a
produção artística, recebendo bem a inovação. A teoria de Weitz é bastante
sedutora, em primeiro lugar, porque ela oferece uma explicação para a nossa
aparente incapacidade de oferecer uma definição tradicional bem-sucedida do
conceito de arte. Não diz que foi somente uma falha generalizada dos filósofos
anteriores, diz apenas que eles não prestaram atenção a um ponto crucial da
natureza desse conceito – que ademais contribuíram conjuntamente para
esclarecer. Além disso, sua proposta providencia uma maneira de resolver vários
desacordos sobre o que deve ou não contar como arte.
Para avaliar essa teoria precisamos considerar ao menos duas coisas.
276
Primeiro, arte é realmente um conceito aberto? Segundo, uma definição
tradicional – que “fecha” o conceito de arte – é realmente prejudicial à produção
de novos tipos de arte? Alguns filósofos pensaram que nenhuma das coisas
realmente é o caso. Sustentaram que há um passo a ser observado com mais
atenção: do fato de todos os filósofos não terem encontrado uma definição
tradicional, não se segue que a definição tradicional não possa ser encontrada.
Pode ser o caso que todos estejamos a falhar até o momento, o que não seria
nenhuma novidade nas tentativas humanas de conhecer melhor o mundo. Mas
Weitz tenta ir além, argumenta que todas as tentativas falharam e devem
necessariamente falhar, pois violam a natureza própria do conceito de arte,
produzindo engano.
Alguém convencido da teoria de Weitz poderia nos convidar a observar
os vários usos aparentemente bastante razoáveis do conceito de arte e indicar
que aí está a evidência de que esse conceito é aberto. A dificuldade é que
alguém poderia objetar que é exatamente aqui que uma teoria tradicional poderia
nos ajudar, pois ajudaria a separar quais atribuições do conceito de arte são ou
não apropriadas, pois algumas dessas aplicações podem ser indevidas.
Uma objeção poderia minar um pouco a confiança nas semelhanças de
família de nos ajudarem a definir conceitos que sejam por natureza abertos. Em
algum ponto, todos os objetos podem ter alguma semelhança entre si. Um
exemplo clássico, oferecido por Warburton (2002, p. 81), mostra como muitas
semelhanças de família podem ser simplesmente irrelevantes: o Empire State
(um prédio localizado em Nova York) e uma agulha de costura são semelhantes,
pois são ambos pontiagudos e feitos de material inorgânico (poderíamos
acrescentar que são produções humanas, envolvem uso de metais etc.). Então,
seria necessário acrescentar algum outro critério que delimitasse quais são as
semelhanças relevantes que permitem incluir um objeto apropriadamente no
conceito aberto de arte. As várias teorias, críticas, testemunhos e assim por
diante poderiam ser uma ótima forma de encontrar quais seriam essas
características relevantes, na medida em que se propõem a iluminar aspectos
importantes das obras de arte, não fossem os numerosos desacordos entre si.
Uma vez que não são consistentes, isto é, algumas dessas afirmações são
conflitantes, quais critérios de semelhança considerar e quais desconsiderar? É
uma questão espinhosa.
Alguns críticos da analogia com as semelhanças de família a
277
consideram muito limitada e escolhem essa via para avaliar a teoria de Weitz.
Um conjunto de semelhanças cruzadas pode ajudar a reconhecer uma família
biológica, mas nem sempre esse é o caso. Muitas famílias biológicas diferem
tanto entre si em características fenotípicas, em virtude da variação genética,
que fica difícil o reconhecimento delas apenas por características visíveis. Então
é falso que um conjunto de semelhanças sempre permite reconhecer as famílias
biológicas. É possível dizer ainda que há outra maneira de definir uma família
sem recurso a características visíveis: por relações genéticas ou de origem.
Podemos saber se uma pessoa é filha de outra recorrendo a um teste de
semelhança genética, como podemos simplesmente traçar uma árvore
genealógica; tais coisas mostram que há maneiras mais precisas de delimitar
uma família.
Mais uma vez, há problemas a se considerar. Muitos não estão
dispostos a abandonar a tarefa de buscar uma definição de arte, que nos permita
distinguir adequadamente esses objetos, pois não acreditam que as falham do
passado tornam inevitável falhas no futuro, ou, pelo menos, acreditam numa
maior aproximação ao acerto. Muitos filósofos discutem esses pontos desde
então e, como de costume, tomaram essas considerações para reformar ou
avançar novas propostas de teorias da arte.
4. Teorias da beleza
94 Canção composta por Tom Jobim e letrada por Vinícius de Moraes em 1962.
278
poucas adaptações, podemos estender o mesmo exemplo às demais artes e,
quem sabe, às paisagens e objetos naturais.
Foram poucos os filósofos que tentaram oferecer uma resposta para a
pergunta ‘o que é a beleza?’em termos objetivos, como se a beleza fosse uma
propriedade totalmente independente da nossa experiência pessoal. Os filósofos
que seguiram nessa direção tiveram como inspiração intelectual alguns marcos
teóricos apresentados pelos diálogos de Platão.
4.1. Platão
4.1. Hume
95Em seus futuros estudos sobre estética, vale a pena dedicar alguma atenção a essa
mudança de orientação na questão, que afetou não apenas a estética, mas todas as
áreas da filosofia. É nesse período que Baumgarten propõe a nova ciência da estética,
que já vimos o que significa para ele. O desenvolvimento posterior da disciplina,
curiosamente, deve muito pouco ao sentido preciso que Baumgarten procurou lhe dar.
Houve um declínio cada vez maior das formulações que viam na “beleza” e na “arte” algo
objetivo, isto é, pertencente aos próprios objetos. Outras noções como as de “sublime”,
“grotesco”, “pitoresco” passaram a receber tanta atenção quanto a noção de beleza.
283
genuíno entre os seres humanos sobre o que experimentam ou não como sendo
belo – ou, em poucas palavras, há muito desacordo de gosto; mas esses
desacordos seriam resultado de circunstâncias acidentais nas quais os
indivíduos se encontram. Ele sabia que há muita gente que duvida da
possibilidade de “discutir o gosto” de alguém; contra tal ceticismo, argumenta
que seria absurdo, pois isso implicaria ter de aceitar que não podemos distinguir
obras que são melhores do que outras. Pense, por exemplo, em músicas que
são vistas pela maioria das pessoas como medianas e outras que são
consideradas por elas como belíssimas. Se fôssemos incapazes de distinguir
uma música mediana de uma excelente, então tal ceticismo estaria justificado;
como ele acredita fortemente que não somos, conclui que é um absurdo
sustentar tal ceticismo. Para mostrar por que está certo, Hume apresenta obras
reconhecidamente desiguais em mérito e supõe que até um cético aceitaria que
uma obra é superior à outra.
Hume não pensa por isso que estamos aplicando critérios
independentes das nossas experiências mais comuns quando reconhecemos
certas obras de arte como superiores a outras. Haveria um padrão passível de
descrição detalhada do que todos os “povos” e “épocas” consideraram belo.
Esse padrão estaria na base de todas as experiências da beleza. Agora bastaria
considerar tudo o que as pessoas, em todos os povos e épocas, experimentaram
como belo e encontrar o padrão, certo? Nem tanto. Hume nega que todas as
experiências que as pessoas declaram como agradáveis contam como indícios a
serem levados em conta na generalização que nos daria acesso ao padrão. O
filósofo escocês pensava que apenas as experiências acontecidas em
determinadas situações e com a disposições emocionais apropriadas, tais como
a serenidade, o recolhimento e a atenção, podem contar como parte do inquérito
sobre o padrão do gosto, isto é, as condições que produzem a experiência do
belo. Assim, experiências agradáveis de uma obra de arte que sejam oriundas da
inveja, de modas passageiras e pressões de grupo não contariam. Ademais,
Hume julga constatar que há indivíduos mais capazes de reconhecer uma boa
obra do que outros; usa uma analogia para apoiar seu ponto de vista, afirmando
que, assim como a maioria das pessoas, os degustadores de vinho possuem a
qualidade do paladar, mas é notório que os degustadores são muito mais
capazes de distinguir os vinhos bons dos ruins.
Embora seu foco recaia sobre a experiência, Hume argumenta ainda
284
que algumas características dos próprios objetos desencadeiam esses
processos internos, muito embora não especifique quais são. Aparentemente,
então, há um encontro entre as características estáveis da natureza humana e
certas propriedades dos objetos na produção da experiência apropriada do
gosto. Curiosamente, no entanto, Hume encerra seu célebre ensaio dizendo que
outros dois fatores podem contribuir para experiências apropriadas de gosto,
além da disposição e da situação: o “temperamento” e a “idade” do indivíduo.
Para avaliar os argumentos de Hume, teremos que considerar e
interrogar vários pontos. Os principais parecem ser: a) se a beleza é uma
questão exclusivamente empírica, isto é, poderemos resolvê-la simplesmente
observando o comportamento humano?; b) serão lícitas as exigências que
propõe a uma experiência “apropriada” do gosto”? ou esta é apenas uma forma
mais ou menos arbitrária de encontrar um padrão?; c) do fato de alguns
indivíduos serem capazes de distinguir melhor certas propriedades sensíveis dos
objetos, como o sabor do vinho, se segue que são mais capazes de avaliar que
um objeto, como o vinho, é melhor do que outro?; d) qual é mais precisamente o
papel dos próprios objetos nessa experiência? todos eles podem desencadear a
experiência da beleza?; e) qual é o papel da idade e do temperamento nessas
experiências apropriadas de gosto? em que medida pode haver variação no
padrão de gosto e ainda assim termos um padrão?; f) qual é o papel do
treinamento ou da educação para que um indivíduo tenha uma experiência de
gosto apropriada?; h) Essa experiência apropriada se refere apenas às obras de
arte ou também se estende a outros objetos humanos, bem como à natureza?
Essas, entre outras questões, foram discutidas por muitos filósofos
desde então. Como se pode ver, nossas questões cotidianas deram e dão
origem às mais complexas buscas por respostas e exigem resposta daquele que
quer tentar encontrar um caminho para resolver à pergunta inicial: o que é arte?
O que é o belo? Ou, como o próximo filósofo a considerar, elas obrigam a
repensar os pressupostos da própria pergunta para, então, buscar novas
respostas?
4.2. Kant
Dentre todos os filósofos citados até agora, aquele que talvez exija a
maior dedicação para o entendimento do seu pensamento sobre as questões
285
que nos interessam aqui é Immanuel Kant. Nasceu em 1724 e viveu na cidade
Königsberg até falecer, em 1804. Se não tivermos uma boa ideia do seu projeto
filosófico geral – e compreendê-la já é uma atividade desafiadora – ficaremos um
tanto atônitos com suas propostas. O que poderemos oferecer aqui são algumas
considerações preliminares e esquemáticas, mas que esperamos não se
afastarem demasiado do seu pensamento.
Diferente de Hume, Kant não pensava que a experiência do belo – a
qual chama juízo estético de gosto – é uma experiência que podemos resolver
por vias exclusivamente empíricas. Não bastaria observar o comportamento das
pessoas; seria preciso analisar as condições de possibilidade dessa experiência,
presentes em todo sujeito dessas experiências. A experiência do gosto foi
investigada por Kant num livro chamado “Crítica da Faculdade do Juízo”, que faz
parte de uma trilogia, intitulada “projeto crítico”. Quando Kant fala em
“faculdade”, ele espera designar uma capacidade ou uma atividade da mente
humana, embora em sua época não parecesse despropositado falar numa
“faculdade de pular, de jogar etc.”.
Quando fala em “juízo”, Kant indica uma atividade intelectual que busca
combinar representações singulares e universais. Assim, no juízo “esta flor é
uma rosa”, temos a indicação de um termo singular (esta flor) que deve ser
particularizado mediante uma associação com um termo universal (rosa). A
“faculdade de julgar” seria a capacidade humana de fazer juízos, relacionando
algo singular com um conceito. Já o “ajuizamento” seria, grosso modo, o
processo de formação do juízo, processo de bastante importância no juízo de
gosto.
Há dois tipos de juízo que nos interessam. O primeiro o que chamou de
“juízo determinante”, que se encaixa no exemplo citado antes. Mas há também
outro tipo de juízo, que é o “juízo reflexionante”; ele ocorre quando temos um
objeto diante de nós para o qual não consideramos possuir um conceito
apropriado para associá-lo e, assim, particularizá-lo. No juízo reflexionante, todos
nós pensamos, argumenta Kant, que há algum conceito que deve “se encaixar”
no objeto que temos em vista, mas não sabemos ainda qual é. Note que há uma
expectativa envolvida no juízo e nada nele garante que de fato vamos encontrar
o conceito. Desse modo, a maior parte dos nossos juízos cotidianos seriam do
tipo determinante, mas às vezes nos ocorrem os reflexionantes.
O que a experiência do belo teria a ver com os juízos? Os juízos se
286
manifestam de modo verbal, numa sentença qualquer. “Esta flor é uma rosa” é
uma manifestação do juízo de um sujeito que tem uma flor particular em mente.
Mas na experiência do belo se passaria da mesma forma? Sim, para Kant a
experiência do belo – um juízo reflexionante específico, o de gosto – não é uma
experiência puramente física; ela precisa ser articulada também em juízos. Outro
ponto importante é que grande parte do seu prazer vem do seu
compartilhamento com outros indivíduos, que não podem sentir os estados
físicos das outras pessoas.
O juízo de gosto é bastante intrigante, de acordo com Kant, porque ele
não se articula genuinamente em juízos como “esta rosa é bela”, pois esse seria
um juízo determinante, que não teria relação com a experiência genuína do belo.
Nos juízos de gosto, o sujeito não encontra um conceito apropriado para o objeto
que temos em vista e reside aí grande parte do prazer que eles causam.
Também não há nenhuma regra geral que indique quando esse tipo de juízo
ocorrerá diante de um objeto. Dois objetos podem ser produzidos de acordo com
os mesmos princípios, serem inclusive muito similares, e ainda assim um deles
pode proporcionar uma experiência do belo e outro não. E aí está contida, de
acordo com o filósofo alemão, outra fonte do prazer causado pelo juízo de gosto
– o fato de não sermos capazes, enquanto ocorre a experiência, de
desvendarmos sua regra de composição.
Por exemplo, quando você se dá conta da maneira mais ou menos
repetitiva como filmes de Hollywood são organizados e produzidos, de acordo
com esta forma de pensar, uma condição necessária para uma genuína
experiência do belo se perde. Isso não significaria que eles não sejam divertidos,
agradáveis e mesmo fonte de grande prazer pessoal, mas não seriam capazes
de oferecer uma experiência do belo. Outro exemplo poderia ser a de um prédio
público da sua cidade. Muitos turistas que ainda não o conhecem e não são
capazes de “enxergar” seus procedimentos enquanto o observam e caminham
por ele podem sentir uma experiência do belo, mas tão logo se tornem familiares
e seus procedimentos de produção sejam conhecidos, tais obras deixam de
proporcionar a mesma experiência. As obras e paisagens capazes desencadear
a experiência do belo são aquelas nos aparecem como “espontâneas” e
“desprovidas de esforço”, onde sentimos que certa irregularidade em sua
composição impede que elas sejam rapidamente classificadas e sejam,
consequentemente, fonte de tédio.
287
Mesmo sendo essas experiências que ocorrem a cada um dos sujeitos,
Kant argumenta que elas não são propriamente individuais. Ele não está dizendo
que, por exemplo, um romance literário não possa ter um grande valor e nos
provoque grande prazer, enquanto outras pessoas não veem a menor graça nele
e nenhuma qualidade nele. Mas aqui estaríamos falando de outras experiências,
como o puro prazer, a nostalgia, a familiaridade etc. Dizer sobre uma pintura “isto
é belo para mim” seria algo despropositado, além de soar “estranho e risível”
para ele.
Em tempos de tamanha oferta de objetos “culturais” é difícil não
estranhar a proposta kantiana. Mas pense numa paisagem linda, como as de
Fernando de Noronha, na região nordeste do Brasil ou em edifícios como o
Kremelin, na capital da Rússia. Ficaria um pouco mais difícil dizer que elas são
belas “para mim”. Pense no contrário, é fácil imaginar alguém dizendo
sinceramente “esta praia em Fernando de Noronha é horrível!”? Não parece fácil
para aquele que escreve estas linhas, embora não seja de se duvidar que possa
ocorrer por aí.
Agora, para entendê-lo um pouco mais, precisamos penetrar numa
análise um pouco mais árida, na organização interna do juízo estético de gosto.
Kant nos diz que há duas considerações a serem feitas acerca da “qualidade” do
juízo. Se eles são “estéticos” ou “lógicos”. Os juízos lógicos são aqueles que têm
a pretensão de representar algo objetivo acerca do mundo. Um exemplo de juízo
lógico seria articulável na frase “o computador é preto”, onde parece haver
implícita a pretensão de dizer que essa representação coincide com o mundo
externo, isto é, independente dos nossos processos mentais individuais. Os
juízos estéticos visam representar a maneira como somos afetados pelo mundo
externo; por meio deles, descrevemos como somos afetados, sobretudo por
essas próprias representações. Um exemplo: quando digo “que café amargo!”.
Nessa frase, estaria articulada uma representação de um objeto externo (o café)
e uma propriedade universal (o amargor), além de como essa representação me
afeta.
Os juízos estéticos de gosto (um subtipo de juízo estético, portanto) são
aqueles que dizem respeito ao sentimento do belo. Por não ser propriamente
individual, este juízo sempre tem a pretensão de representar algo sobre o
mundo, embora sua correspondência com ele não seja garantida. Quando
alguém expressa num juízo estético de gosto, digamos (supondo que está
288
ocorrendo uma experiência do tipo que tem em vista), “esta escultura é
fantasticamente tátil!”há uma liberação de prazer desinteressada. Isso quer dizer
que, quando esse tipo de experiência está ocorrendo, nenhuma referência
externa importa, nem a do objeto que porventura esteja sendo representado,
nem a da moralidade da representação ou do sentimento que causa; tal
experiência não nos torna mais felizes nem aumenta nossa indignação frente
aos problemas do mundo. Se isto estiver correto, para que tenhamos uma
experiência genuína do belo diante de uma suntuosa catedral colonial,
deveríamos apagar de nossas mentes o fato do horror à escravidão; da mesma
forma, diante de um quadro ou uma estátua que represente uma figura histórica
que não aprovamos, precisamos esquecer por alguns instantes ao que se
referem, para que ela ocorra. Podemos considerá-las depois, seguindo o
raciocínio kantiano, mas não durante o juízo estético de gosto.
Apesar de o juízo de gosto ser individual, sua pretensão seria universal.
Negando o empirismo de Hume, Kant argumenta que tal juízo não é um apenas
um sentimento, embora os envolva. E esse é o ponto central de sua visão sobre
a beleza. Não é nenhuma relação simples de um objeto com os nossos sentidos
que produz o juízo de gosto. Esse não é um juízo estético qualquer, como aquele
oriundo do encontro do café sem açúcar com o nosso paladar, que nos faz
articular o juízo “que café amargo!”. Faz parte dos juízos de gosto esperar que
todos os demais concordem comigo; se experiencio uma casa como bela, há
algo nessa experiência, de acordo com Kant, que nos leva a esperar uma
concordância universal.
Essa sutileza advém da compreensão de um ponto crucial desse tipo
experiência. Nela ocorre o que ele chamou de “reflexão”, um modo especial de
identificar e comunicar esses estados especiais. Nela, as nossas “faculdades”
funcionam de modo distinto do habitual e nenhuma delas prevalece sobre a
outra. O “entendimento”, a faculdade envolvida nos juízos determinantes, e a
imaginação, uma faculdade envolvida nas “sínteses” (nas “junções” entre objetos
particulares e os conceitos), entram no que Kant deu o nome de “livre jogo das
faculdades”. A reflexão é o ato por meio do qual este livre jogo pode ser
representado e, dessa maneira, o sujeito toma consciência dele.
Quando o livre jogo das faculdades ocorre, nem a faculdade da
imaginação nem a do entendimento são suficientes para providenciar a
experiência adequada, e é essa insuficiência que faz com que nenhuma
289
faculdade prevaleça durante o juízo de gosto, ao mesmo tempo em que
tomamos consciência dele pela reflexão. Daí a razão de o belo requerer
articulação verbal e não ser uma experiência exclusivamente sensorial para
Kant. O prazer que o belo nos proporciona (note que o belo não é o próprio
prazer liberado) é o prazer que encontramos via o encontro, mediante a reflexão,
da capacidade de julgar o que nos ocorre por meio do ajuizamento estético e do
poder de comunicar isso às outras pessoas. Esse prazer advém de certa
harmonia entre as faculdades que entram em livre jogo, pelo fato de nenhuma
delas sobrepujar a outra na operação.
Essa harmonia nos conduz ao penúltimo ponto a considerar no
pensamento kantiano sobre a beleza. Nos juízos de gosto acerca de obras de
arte, ele pensa que nossas faculdades reconhecem o que chamou de forma de
finalidade do objeto artístico. Nos objetos ou processos naturais – um pôr do sol,
por exemplo – Kant argumenta que podemos reconhecer sua forma da
finalidade, embora não saibamos qual é o “conteúdo” de tal finalidade. A
suposição aqui parece ser a de que deus criou o mundo, e sua finalidade seria
insondável pelos limites do conhecimento humano. Isso porque os limites do que
podemos saber se encontram nas características do modo como todos os seres
humanos percebem e conhecem o mundo. Por exemplo, quando vemos uma
cadeira somos capazes de antever que a necessidade ou desejo humano de se
acomodar confortavelmente guiou a produção do móvel e sabemos que ela não
foi produzida ao acaso, ou seja, sabemos “para que”, com que finalidade ela foi
produzida. Podemos conhecer tanto a forma quanto o conteúdo da “finalidade”
da cadeira. Já nos objetos artísticos o reconhecimento desse conteúdo
necessariamente desaparece da experiência; continuamos reconhecendo a
forma da finalidade nos objetos artísticos, mas assim como os objetos da
natureza (criados por deus) não somos capazes de reconhecer sua finalidade; tal
reconhecimento é um dos responsáveis pela liberação do prazer que está
envolvido na experiência do belo.
Por fim, para encerrar essa breve, mas intrincada e imperfeita
apresentação, há a introdução de uma explicação daquela exigência de
concordância universal nos juízos estéticos de gosto. Kant afirma que há algo
como um sensus communis, isto é, um “sentido comum”; ele nos diz que se
quisermos explicar por que há uma concordância universal sobre o belo e sua
comunicabilidade, precisamos admitir que há uma capacidade de partilhar com
290
todas as pessoas esse sentido.
Dada a enormidade da análise de Kant sobre o belo, seu pensamento
foi criticado por diversas vias – o qual talvez tenhamos apenas arranhado aqui.
Um ponto bastante questionável parece ser o que de que, para haver uma
experiência do belo, precisa haver o que chama de desinteresse. Para citar
apenas alguns casos paradigmáticos, há obras literárias que exigem interesse
(no sentido kantiano), pois fazem referências externas que estão na base do que
são e em sua experiência plena. Os Irmãos Karamazov, por exemplo, supõe
uma série de julgamentos morais, para não falar nas identificações pessoais que
envolvem a encenação de tragédias e dramas. Nelas, o envolvimento moral e
político está presente na própria experiência da beleza, poder-se-ia argumentar.
Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, o personagem-narrador
menciona que estudou em Coimbra, mas que seus estudos não passaram de
aparências, deles retirando apenas um “verniz”. Se essa referência e alusão
política e moral, duas características da composição que contariam como
interesse, ficassem de fora, dificilmente poderíamos considerar a obra bela
durante sua experiência – o que não parece ser o caso para muitas pessoas.
Mesmo passagens religiosas, como a chamada Paixão de Jesus Cristo, narrada
nos Evangelhos, não poderiam ser origem da experiência de beleza – como
muitos alegam – já que envolvem também referências externas indispensáveis:
geográficas, políticas e a ao menos uma divindade.
Também há quem prefira enfatizar algumas condições históricas –
sociológicas e culturais – na quais Kant formulou sua colossal teoria. Durante
toda a segunda metade do século XVIII, sobretudo na parte ocidental da Europa,
sabemos que a arte era praticada de acordo com normas bastante rígidas,
reguladas na maior parte das vezes por instituições não oficiais, mas também
por elas. A escrita de poemas obedecia rigorosos padrões métricos; a pintura,
rigorosos padrões representacionais, assim como a escultura. A inovação
artística estava também presente; acontecia muito mais lentamente, no entanto,
e requeria uma aceitação do seleto público apreciador de tais obras. Exigir a não
familiaridade com os procedimentos, como Kant parece pensar que a
experiência do belo exige, pode ser apenas uma universalização apressada de
um tipo específico de instituição cultural, composta por pessoas pertencentes a
poucos grupos, e uma rejeição antecipada de outras. A universalidade e validade
das fórmulas artísticas então consagradas pode ser vista também como certa
291
cegueira para as várias seleções (conscientes ou não) de quais tipos de obra
dão origem a experiências do belo – assim como a outros valores associados à
arte, como o sublime, a liberdade, o desenvolvimento da sensibilidade e tantos
outros.
5.1. Hedonismo
5.2. Cognitivismo
297
A diferença entre esses dois tipos de conhecimento está no que chamamos de
“justificação”. Quando dizemos que uma pessoa qualquer sabe alguma coisa sobre o
mundo – que o céu é azul, por exemplo – dizemos que há pelo menos três outras
condições para que o termo ‘saber’ ou ‘conhecimento’ esteja sendo utilizado
apropriadamente. A pessoa que profere a proposição precisa acreditar que essa frase
é verdadeira: não há como alguém dizer que sabe que o céu é azul sem acreditar
nisso. Outra condição é que a frase seja verdadeira: não há como alguém
propriamente saber que há quadrados que são círculos ou que o céu é amarelo, pois
em seus sentidos literais ambas as proposições são falsas. A terceira e mais
importante é a justificação. Uma pessoa pode, por exemplo, formar a crença de que
os números da loteria serão 01 – 09 – 36 – 25 – 60 em virtude de um sonho com eles
e os números sorteados serem exatamente esses. Essa pessoa acreditou numa
proposição que se revelou verdadeira, mas parece razoável não aceitar que ela de
fato sabia quais seriam os números sorteados, pois as razões que ofereceu não
pareciam sustentar apropriadamente essa crença. De modo geral, podemos dizer
que:
S (uma pessoa qualquer) sabe que p (onde p é uma proposição qualquer sobre o
mundo) sse (i) S acredita que p; (ii) p é uma proposição verdadeira; (iii) S tem boas
razões para sustentar sua crença em p.
Para maiores detalhes, ver o capítulo sobre Epistemologia neste volume.
5.3. Formalismo
301
uma música represente a alegria ou a tristeza, embora possam ser fortuitamente
associadas a tais emoções. As únicas coisas que a música poderia representar
desse ponto de vista são as ideias musicais, tais como a mudança de ritmo, a
altura do som, as variações e outras mais; mas note que nenhum objeto ou
emoção que estejam “fora” da música.
Alguns poderiam argumentar que na Abertura 1812, de Tchaikovsky, por
exemplo, os tiros de canhões poderiam representar coisas como uma guerra,
momento intenso de conflito ou uma mescla sugestiva de coisas assim. Mas
esse seria um caso, dentre alguns outros, em que uma representação um tanto
confusa seria feita por meio da semelhança entre os sons e não por meio de
convenções musicais.
Tendo tomada como sustentada a tese segundo a qual a música
absoluta não representa ou expressa algo, Hanslick passa a sustentar que o
conteúdo da música está exclusivamente nas “formas sonoras em movimento”.
Não podendo ser meio para mais nada, seu valor seria totalmente autônomo.
Seu argumento positivo sobre o valor da arte pode ser formulado
aproximadamente por:
303
7. Questões para revisão
8. Para pensar
9. Indicações de leitura
305
6
Filosofia da Ciência
Tiago Luís Teixeira de Oliveira
306
resultados dele advindos e, dessa forma, as questões que continuassem
intratáveis através de um método científico continuariam a fazer parte do escopo
da filosofia. Embora o relato de Russell pareça acomodar bem o fato de que a
física, a biologia ou a psicologia nasceram de reflexões filosóficas e depois se
tornaram autônomas em relação à filosofia, tal proposta pode dar a entender que
em um último estágio, as lacunas deixadas para a atividade filosófica ficariam
cada vez menores até que só sobrariam as ciências. Sem dúvidas, não era isso
que Russell tinha em mente. O filósofo inglês sugeriu que algumas questões
estariam fora do escopo científico, por sua própria natureza, e, mesmo
aparentemente insolúveis, deveriam ser investigadas filosoficamente, sob o risco
de perdermos muitos benefícios intelectuais, os quais tornam a vida humana
verdadeiramente valiosa e interessante. Esse tipo de abordagem laudatória da
ciência muitas vezes omite um dado que talvez só se justifique pela diferença de
importância que nossa sociedade confere à ciência e à filosofia (em favor da
primeira e contra a segunda). O dado que tenho em mente é o de que não só
problemas científicos emergem da reflexão filosófica cuidadosa, mas também a
teorização e a prática científica criam novos problemas filosóficos. Tais
problemas advindos da ciência demandam, para serem investigados
adequadamente, que cientistas possuam alguma iniciação filosófica ou procurem
a colaboração de filósofos da ciência.
Há uma série de perguntas legítimas, que podem ser feitas a partir do
conhecimento científico, que não parecem muito passíveis de resposta dentro do
âmbito da ciência em causa. A título de exemplificação, muitos pesquisadores
admitem que determinados fenômenos causam outros fenômenos (uma infecção
viral causa aumento de linfócitos no sangue), mas o que é uma causa? Outros
tantos pesquisadores criam modelos (como o modelo atômico e o da dupla
hélice de DNA), mas até que ponto e em que grau tais modelos estão
associados à realidade? Algumas ciências dependem sobremaneira de teorias
que supõem partículas fundamentais inacessíveis a olho nu, mas tais partículas
são entidades que compõem a realidade ou apenas construções lógicas? E
como atestamos que elas existem, caso existam? O que significa quando se diz
que uma teoria está confirmada? O que conta como confirmação? Supõe-se que
o conhecimento exposto nos periódicos científicos é objetivo, no sentido de não
depender de critérios obscuros ou subjetivos, arbitrariamente escolhidos pelos
autores, mas de critérios públicos claros, segundo os quais qualquer investigador
307
da área poderia submeter o artigo a um escrutínio crítico. Mas isso significa que
os autores da publicação não possuam valores e vieses que influenciaram seu
trabalho? Será que a objetividade científica é um ideal realizável? Em última
instância, o que é ciência e como ela se diferencia de outros saberes? Essas e
outras questões similares compõem o âmbito da filosofia da ciência. Como se vê,
não são problemas que um experimento rigorosamente conduzido poderia
responder, e os cientistas, quando se dispõem a investigar tais questões, já não
o fazem cientificamente, mas filosoficamente. Por essa razão, as discussões que
competem à filosofia da ciência são de grande importância para filósofos e
cientistas, ainda que filosofia e ciência tenham diferentes métodos e objetos.
A filosofia da ciência é o ramo da filosofia que se debruça a investigar a
natureza do conhecimento científico, seus pressupostos lógicos e metodológicos;
que interroga se, e em que medida, a realidade é desvelada pela ciência; que
procura entender quais implicações não só metafísicas e epistêmicas, mas
também éticas e políticas decorrem das ciências. A filosofia geral é
tradicionalmente retratada como uma investigação sobre a natureza geral da
realidade (metafísica), do conhecimento (epistemologia) e dos valores (axiologia).
Pode-se, analogamente, dividir a filosofia da ciência em epistemologia da ciência,
metafísica da ciência e axiologia da ciência. Por questão de espaço e escopo,
tentarei expor os problemas investigados principalmente pelas duas primeiras
áreas, mas irremediavelmente algumas discussões levarão a valores. A divisão
por áreas é muito mais didática do que real, seja na filosofia geral, seja na
filosofia da ciência. Isso significa que muitas questões metafísicas dependem de
questões epistemológicas e vice-versa, muitas questões epistêmicas implicam
ou são implicadas por valores e vice-versa. É preciso dizer também que cada
disciplina científica proporciona problemas filosóficos suficientes para existência
de uma filosofia para cada ciência particular. Existe, desse modo, a filosofia da
física, a filosofia da psicologia, a filosofia da biologia, da neurociência, da lógica,
da matemática, das ciências sociais etc. Não é objetivo deste texto introdutório
abordar os problemas específicos da filosofia de cada ciência particular, mas o
leitor terá a oportunidade de conhecer alguns desses problemas específicos nos
capítulos deste volume dedicados à filosofia da física, da biologia, da economia e
da mente (neste há questões de filosofia da psicologia).
308
1. Epistemologia da ciência
309
1.1 Verificacionismo e o problema da indução
A ou B (premissa)
Não-B (premissa)
Logo, A (conclusão)
317
Se A então B (premissa)
Não-B (premissa)
Logo, não-A (conclusão)
321
Se (H&A&C), então P (premissa)
Não-P (premissa)
Logo, não é o caso que (H&C&A) (conclusão)
324
caso analisada por um médico especializado. A mesma imagem, entretanto, vista
por uma pessoa sem o treinamento adequado não parece mostrar mais do que
manchas e rabiscos indistintos. É o treino e o conhecimento teórico prévio que
permite ao especialista ver o que ninguém mais vê, se não tiver a mesma
preparação. Esse parece ser o caso de inúmeros procedimentos de observação
realizados no âmbito de uma ciência especializada.
Kuhn e Feyerabend assumiram a tese hansoniana da dependência
teórica da observação e procuraram mostrar que as escolhas por uma teoria
científica, bem como do método pertinente a cada período da ciência poderiam
variar bastante, conforme o contexto. Mais ainda, eles pensavam que em muitos
casos, o próprio modo de compreender a realidade sofreria uma reviravolta tão
grande nos esquemas mentais que guiavam os cientistas, que sequer poderia
haver algum tipo de comparação objetiva entre duas teorias científicas que não
compartilhassem dos mesmos pressupostos. Kuhn entendia que a ciência em
seu período normal e estável (em contraposição aos momentos de revolução
científica) era uma prática de solucionar quebra-cabeças desenvolvida a partir de
um núcleo de consensos que guiava a comunidade científica. Tal consenso era
motivado pelo despontar de uma nova ciência, cujo sucesso motivava os demais
pesquisadores a espelhar o mesmo método, e a debruçar-se sobre os problemas
indicados, mas ainda não respondidos pela ciência bem-sucedida. Essa
concordância sobre o método e os problemas relevantes da ciência,
característica da ciência normal, foi chamada por Kuhn de “paradigma”. Depois
que um tipo de investigação se torna paradigmático, a comunidade científica
pode ampliar os problemas e trabalhar no quebra-cabeças ali delineado,
julgando o grau de sucesso das tentativas, à luz do paradigma que compartilham.
Isso seria análogo a um jogo. Na visão de Kuhn, cientistas não testam
paradigmas, isto é, as regras segundo as quais resolvem o quebra-cabeça
científico, mas apenas jogam conforme tais regras paradigmáticas permitem. O
enxadrista não estaria interessado em criar um jogo diferente, mas em conseguir
derrubar o rei adversário, movendo as peças do modo como a regra estabelece.
Obviamente, dentro de um mesmo paradigma, é possível falar de crescimento do
conhecimento científico, de acúmulo de problemas solucionados, de progresso.
Mas o mesmo não pode ser dito em relação a revoluções científicas, nas quais a
comunidade de pesquisadores deixa de perceber os problemas de um
paradigma obsoleto como relevantes, rejeitam os métodos antigos e voltam-se
325
para novos problemas não disponíveis antes do surgimento do novo paradigma.
Aí sim há uma troca do jogo a ser jogado. Revoluções científicas seriam
períodos turbulentos e breves nos quais alguns paradigmas competem entre si
até que um deles vença a competição, estabelecendo as bases para a nova
forma de fazer ciência. Para que seja possível uma mudança paradigmática, é
necessário que o paradigma vigente acumule anomalias, problemas que os
métodos e as linhas de investigação em vigor não sejam capazes de acomodar,
explicar, eliminar ou responder. A desconfiança com o paradigma vigente pode
aumentar à medida que alternativas teóricas pareçam dar conta daquelas
anomalias. Os problemas do paradigma abandonado e sua linguagem seriam,
em sua maioria, esquecidos, considerados não relevantes e mesmo
incompreensíveis. Apenas alguns termos e problemas, na medida em que
fossem considerados precursores do novo paradigma, seriam mantidos. Ainda
assim, os próprios significados daqueles termos e problemas seriam alterados
substantivamente para parecer que a ciência do paradigma atual é um acúmulo
progressivo do que havia de verdadeiro nos paradigmas do passado mais
remoto. Kuhn considerava que paradigmas sucessivos seriam como duas
línguas tão diferentes que a tradução seria demasiadamente imperfeita. A
linguagem de um paradigma remeteria a uma realidade incapaz de ser captada
pela linguagem de outro paradigma. É como se ambas se referissem a mundos
completamente distintos. Revoluções científicas foram as que ocorreram, por
exemplo, na passagem do modelo geocêntrico para o heliocêntrico na
astronomia, da química do flogisto (ainda muito dependente de conceitos da
alquimia) para o modelo de Lavoisier (com a criação da tabela periódica como
conhecemos) e quando vários modelos biológicos são substituídos pela teoria da
evolução, criando o modo atual de fazer biologia. A compreensão dos modelos
abandonados para os cientistas atuais é obscurecida pela diferença gritante
entre eles. Pense, por exemplo, na palavra que nomeia nosso planeta: ‘Terra’. A
ideia de que a Terra está em movimento contraria o próprio significado do nome,
que estava associado à fixidez, antes de Copérnico. Não é sem razão que
Copérnico foi rechaçado pelos adeptos do modelo cosmológico anterior, pois,
para os últimos, seria como afirmar que o círculo deveria ser entendido como
quadrado. É como se a visão alternativa que Copérnico propôs alterasse a
própria compreensão da realidade, em um processo análogo ao que ocorre
quando passamos a ver o cubo de Necker de modo diferente. Outro exemplo
326
disso são as expressões ‘nascer do sol’ e ‘pôr do sol’, que precisaram ser
reinterpretadas metaforicamente, uma vez que é o planeta que está girando e
não o sol se movendo. Também o termo ‘massa’, considerado uma propriedade
dos corpos na mecânica newtoniana, foi reinterpretado na mecânica relativística
como uma relação com a energia. Essa incapacidade de tradução recebeu de
Kuhn o nome de incomensurabilidade. Feyerabend também utilizou o conceito
de incomensurabilidade para tratar de termos de teorias passadas que não
poderiam ser incorporados em teorias científicas mais gerais e mais atuais. O
conceito de impetus, responsável por explicar movimentos de projéteis na
ciência medieval de inspiração aristotélica, não possui um equivalente termo
newtoniano, já que na nova visão, o esperado é que se nenhuma força estiver
atuando, um corpo em movimento permaneceria em movimento com velocidade
constante (lei da inércia). Assim como Kuhn, Feyerabend também utilizou a
história da ciência para mostrar como o contexto de descoberta (com todos os
seus elementos retóricos, crenças de fundo, motivações não epistêmicas,
valores etc.) era tão importante para o estabelecimento de mudanças teóricas
relevantes quanto os elementos de justificação. Além do mais, ficaria evidente
que a ciência não poderia seguir um método único, já que nenhuma teoria
científica poderia concordar com todos os fatos, e já que os fatos não poderiam
ser estabelecidos sem qualquer tipo de carga teórica. Na visão de Feyerabend,
muitas teorias persistiram depois de falsificadas, outras ainda teriam sido
substituídas sem qualquer fato refutador, mas apenas pela existência de uma
teoria alternativa. A refutação muitas vezes só viria depois de uma teoria já ter
sido há muito descartada. Impedir a nova teoria de se desenvolver tornaria
impossível, em alguns casos, sequer descobrir fenômenos potencialmente
refutadores de teorias anteriores. Se fosse necessário, portanto, derivar uma
norma metodológica que se encaixe em todos os relatos da ciência, em toda e
qualquer época da ciência, tal norma seria “tudo vale” (o que explica o título de
sua famosa obra). Para Feyerabend, o melhor modo de potencializar o
crescimento do conhecimento científico seria multiplicar métodos e alternativas
teóricas, permitindo que as mesmas alcancem maturidade no lugar serem
descartadas por um processo de falsificação prematuro ou por inconsistências
com teorias já muito bem-aceitas. A epistemologia historicista da ciência, através
da ideia de incomensurabilidade de paradigmas, e da observação de que haveria
muitas práticas que em algum momento foram tidas por científicas, embora
327
distintas das nossas concepções atuais, faz com que seja necessário pensar
pluralisticamente o conceito de ciência. Sob muitos aspectos, esses autores
também podem ser considerados relativistas, pois o que é ciência dependeria da
época, do paradigma, da relevância social e de vários elementos não passíveis
de serem expressos numa lógica de demarcação e mesmo de racionalidade.
Recusar as advertências dos filósofos historicistas da ciência é deixar de fora
muitas construções teóricas que constituíram, no passado, o que havia de
melhor cientificamente. E aquilo que hoje considera-se um erro ou uma
superstição do passado era sustentado e elevado ao status de ciência legítima
pelos mesmos processos sociais que fazem com que a ciência atual seja
considerada legítima, embora a ciência do passado e a atual sejam muito
diferentes na linguagem, no método e no conteúdo. Assumir a ideia de
incomensurabilidade de paradigmas tem como consequência não só a
pluralidade de métodos que podem ser reconhecidos na história de cada ciência
particular, mas também o fato de que tal história não é cumulativa, com a
consequência de tornar problemático o conceito de progresso entre paradigmas.
Neste caso, também não seria possível um critério puramente racional que
justifique a predominância de um paradigma atualmente. Se um estudioso atento
à história da ciência, portanto, quisesse oferecer uma definição de ciência, ele
deveria optar por considerar que a atividade não possui uma única característica
diferenciadora. Ele poderia, neste caso, considerar aplicar o conceito de
semelhança familiar, proposto por Wittgenstein para atividades como jogos e
religiões. Tais conceitos reuniriam uma família de elementos que seriam
parecidos uns com os outros em aspectos diferentes, de modo que não seja
possível uma demarcação rígida, isto é, a apresentação de uma condição
necessária. É como uma família humana, em que um dos filhos se parece com a
avó, o outro com o tio paterno e a caçula com a mãe, sem que todos se pareçam
com todos em um aspecto específico. Assim funcionaria, segundo Wittgenstein,
o modo como classificamos os jogos (e as religiões). Há algo parecido entre um
jogo de cartas e o dominó; outra coisa liga o dominó a um jogo de dados, os
dados a um jogo de tabuleiro, este ao xadrez etc. O mesmo se daria com a
atividade científica, que se assemelharia com várias práticas
contemporaneamente superadas, mas consideradas científicas no passado, tais
como a filosofia pré-socrática, os estudos aristotélicos sobre o movimento e
sobre os seres vivos, os estudos de alquimia etc.
328
Problemas na abordagem historicista também abundam. Provavelmente
o leitor já deve imaginar que muitos cientistas e filósofos da ciência não estejam
dispostos a assumir que a atividade científica seja irracional, embora muitos
viessem a reconhecer que suas explicações sobre a natureza da ciência
precisavam incorporar a história da ciência e acomodá-la de modo consistente
em suas teorias. Uma das críticas dirigidas à ideia de incomensurabilidade de
paradigmas é a de que se o paradigma emergente é capaz de solucionar
anomalias do anterior, então ambos não são, de todo, incomensuráveis. Neste
caso o termo ‘incomensurável’ dá a entender algo muito mais exagerado do que
a explicação historicista de Kuhn permite inferir.
Outro ponto que é bastante problemático na tentativa de solução (ou
talvez de dissolução) do problema da demarcação por meio do historicismo é o
perigo de auto-refutação. A história, enquanto ciência, também não seria regida
por paradigmas, segundo os quais determina-se como os fatos do passado
devam ser estudados e como devam ser reconstruídos? Colocar a história da
ciência em melhor posição para abordar o problema da demarcação do que as
reconstruções racionais da filosofia e dos próprios cientistas na compreensão de
sua atividade parece conferir à história (enquanto ciência) uma objetividade que
ela nega às ciências naturais que toma por objeto. Se Kuhn estiver certo, sua
própria abordagem não possui nenhuma vantagem objetiva em propor que a
história da ciência seja não cumulativa, afinal ele fala a partir de um paradigma,
ao passo que uma visão de progresso cumulativo fala de outro paradigma. Se os
paradigmas não puderem ser objetivamente comparados, a tese cumulativista
não é objetivamente pior que a incomensurabilista. Como alternativa, Kuhn
precisaria defender que a incomensurabilidade é uma verdade objetiva, ou seja,
um dado da realidade capturado pelo historiador da ciência e, neste caso, esse
dado não seria relativo a um paradigma. Mas se a história for capaz de captar
dados objetivos e independentes de paradigmas, por que não as ciências
naturais?
Uma última palavra sobre a questão da demarcação e sobre as
abordagens historicistas que merece ser mencionada é o fato de haver tentativas
conciliatórias de uma lógica da demarcação, com as intuições advogadas pelos
filósofos historicistas da ciência. Imre Lakatos (1922-1974) sugeriu que a
racionalidade de um programa de pesquisa não está ligada ao progresso, ou
seja, ao acréscimo de conteúdo empírico. Este último só pode ser reconhecido
329
retroativamente. Os cientistas seriam falsificacionistas (e, portanto, racionais),
mas tal procedimento não equivale ao ingênuo e simplório modus tollens
sugerido na explicação sobre Popper. Num programa de pesquisa haveria um
núcleo duro que os pesquisadores ligados ao programa não estariam dispostos a
negociar, enquanto dirigiriam as refutações e reformulações ao cinturão de
hipóteses auxiliares e crenças de fundo que envolvem o núcleo. Os programas
de pesquisa seriam progressivos, se se mostraram fecundos com o tempo, e
regressivos, se resultaram num beco sem saída. Mas não seria possível julgar
qual programa de pesquisa é superior ao outro antes que a história assim o
julgue. Larry Laudan (1941-) também procurou oferecer uma alternativa
mediadora, considerando critérios objetivos de progresso em conformidade com
a história da ciência. Para este último, entretanto, a questão não seria
estabelecer o significado de racionalidade e depois identificar onde, na história, a
escolha foi mais racional. Sua proposta foi reconhecer objetivamente o progresso
como capacidade de resolução de problemas e derivar de casos incontestáveis
de avanço na história da ciência uma noção de racionalidade. Para Laudan,
portanto, não é o progresso que depende da racionalidade, mas a racionalidade
que depende do progresso reconhecido.
331
❖ A probabilidade de uma proposição A [ou prob(A)] é uma medida entre 0 e 1.
❖ Se A for uma verdade necessária, prob(A) = 1
❖ Se A for impossível, prob(A) = 0
❖ Se A e B forem mutuamente excludentes, prob(A ou B) = prob(A) + prob(B)
2. Metafísica da ciência
337
C1, C2,......Ck (Enunciados das condições antecedentes) Explanans
L1, L2,......Lr (Leis gerais)
E (Descrição do fenômeno empírico a ser explicado) Explanandum
Questões de revisão
Questões de discussão
Referências
362
7
Filosofia da Física
Diana Taschetto
Thales Borrely
96Para entender o que queremos dizer com “universo sem processos”, imagine que um
365
e tempo “vazios”? Se sim, por quê? Se não, qual a alternativa?
Este é o debate sobre o status ontológico do espaço e do tempo. Os
aspectos centrais dessa discussão foram delineados no século XVII por Newton
e por Leibniz; o tema é hoje discutido na literatura sob a égide “substancialismo”
vs “relacionismo”. Podemos colocar o debate nos termos das seguintes
perguntas: serão o tempo e o espaço reais (como celulares, quartos e estrelas)?
Ou serão eles epifenômenos emergentes de propriedades de objetos?
Para Newton, o espaço e o tempo são tão reais quanto o livro que você
está a ler agora. Vejamos por quê.
Na obra “Diálogos sobre os dois principais sistemas do mundo” (1632),
Galileu Galilei propõe uma série de “experimentos” com o propósito de
demonstrar o caráter inconclusivo dos argumentos apresentados pelos “filósofos
aristotélicos” contra o movimento da Terra. No mais notório deles, Galilei chama
a atenção para o seguinte fato: as conclusões às quais chega uma pessoa que
está viajando, por exemplo, em um navio, sobre os eventos que acontecem no
navio, não dependem do fato de o navio estar parado em relação à costa ou em
movimento retilíneo uniforme. Um exemplo disso é o ponto de impacto de uma
pedra que cai do topo do mastro do navio; ou, de maneira ainda mais pitoresca,
a facilidade com que
ser todo-poderoso, Deus, ou, se você preferir, o Monstro do Espaguete Voador, congele
o movimento de todas as partículas do universo. Embora tudo no universo esteja, por
conta da ação da deidade em questão, imóvel – inclusive relógios –, nossa intuição nos
diz que o tempo “continuaria passando”.
366
aquela parte. E a razão de toda esta
correspondência de efeitos é ser o movimento do
navio comum a todas as coisas contidas nele […]
nunca sentistes em vós a participação daquele
movimento, a não ser quando a embarcação,
batendo na areia ou esbarrando em algum
obstáculo, parou, e que vós, juntamente com os
outros passageiros, colhidos de surpresa,
precipitaram-se com grande perigo (p. 267; 334,
ênfase nosso).
Figura 1. As esferas de Newton vistas de cima. A tensão na corda que as liga é evidência de uma
rotação absoluta e de um referencial não-inercial.
368
corda apelando a argumentos relacionais; não há como dizer que o universo está
girando e as esferas, paradas; se as cordas estivessem paradas, não haveria
tensão. A única maneira de explicar a tensão é afirmando que as esferas estão
girando em relação a um sistema de referência: o espaço absoluto.
No scholium do célebre Principia Mathematica, Newton propõe um
experimento mental para demonstrar a existência do espaço absoluto que é, hoje,
muito famoso: o chamado “experimento do balde”. O experimento tem algumas
etapas: imagine, para começar, um balde de água suspenso por uma corda
presa em algum ponto; imagine também, que o sistema corda/balde foi torcido
muitas vezes, de tal modo que há energia potencial elástica o suficiente na corda
para que o balde gire quando solto. O que você vê?
Figura 2. O balde de Newton. O movimento da água subindo pelas paredes do balde é evidência
de uma rotação absoluta e de um referencial não-inercial.
Isso pode parecer simples, mas há várias sutilezas por trás do uso do
PII. Por exemplo: que propriedades contam como F? Propriedades qualitativas
apenas? Coordenadas no espaço e no tempo? Ademais, o que conta como x e y?
Objetos? Possibilidades? Mundos? Agora, enunciemos o PRS:
OPRS diz que para todas as coisas que são o caso, deve existir
um motivo, ou explicação, para o caso ser este, e não outro.
372
régua e o relógio utilizados para determinar as coordenadas espaçotemporais da
ponta de seu nariz – forem trasladadas ou rodadas (e/ou o relógio adiantado ou
atrasado) igualmente no espaço e no tempo!
Reiteramos: as possíveis localizações da ponta de seu nariz (ou de
qualquer outro objeto), por conta da simetria euclidiana de ℝ e ℝ³ são
fisicamente indistinguíveis. Sob o ponto de vista de Newton, o mundo em que a
ponta do seu polegar está em x no instante t é diferente do mundo em que a
ponta do seu polegar está em x’ = x + 5 no instante t’ = t – 2, mas como leis da
mecânica são invariantes por transformações de Galileu, essas diferenças não
se deixam mostrar na experiência sensível. Lembre-se do enunciado do PII: não
há distinção sem diferenças. Não nos surpreende, portanto, que Leibniz tenha
criticado a mecânica clássica tão duramente. Observe que essa teoria – em total
contradição com PII e PSR – gera um número infinito de mundos possíveis
fisicamente indistinguíveis! Qual desses mundos seria “o verdadeiro”?
Recapitulemos.As simetrias do espaço e do tempo absolutos levam a
estruturas empiricamente inacessíveis; essas estruturas são incompatíveis com
PII e PRS. O estudante deve agora se perguntar: se por hipótese, o espaço e o
tempo não são absolutos, qual seria, então, a alternativa?
Vejamos. Considere dois eventos pontuais quaisquer x e y de duração
instantânea. É fácil ver que há uma relação temporal entre x e y: x acontece
antes de, simultaneamente a, ou após, y. Em termos mais gerais, falemos de
intervalos: x está separado de y no tempo por algum intervalo Δt que pode ser
nulo, positivo ou negativo. A ideia de Leibniz sobre o tempo é essa: tempo se
resume à coleção de relações temporais entre eventos. Observe: na ausência de
eventos, ausentes suas relações, e por implicação, ausente o tempo.
Analogamente para o espaço. Os objetos estão a certas distâncias uns
dos outros; isso define uma relação entre eles. A coleção de todas as relações
espaciais entre os objetos existentes a cada instante no universo define o
espaço. Portanto, ausentes os objetos, ausentes as relações espaciais entre eles,
ausente o espaço.
O estudante é agora advertido: não obstante nossa intuição seja hoje,
moldada à la Newton (pois afinal, aprendemos física clássica na escola), à época
de Newton, a intuição era outra, a saber, a relacional, advogada por Leibniz. Isso
significa dizer: se hoje a visão relacional parece estranha ao estudante, no
século XVII, a visão de Newton soava herética aos ouvidos de seus
373
contemporâneos. Ressaltamos: não obstante as inteligentes objeções ao espaço
e ao tempo absolutos apresentadas por Leibniz contra Newton, Leibniz
defendida o status quo. A filosofia relacional do espaço e do tempo não é de
autoria de Leibniz. Seu autor é Aristóteles.
Vale a pena falar um pouco mais a respeito. Para Aristóteles, tempo e
espaço eram “qualidades secundárias” – não entidades – emergentes das
relações entre os objetos. “Movimento” não era algo a ser descrito
matematicamente (a matematização do tempo, espaço e movimento começou
com os trabalhos de Kepler, Tycho Brahe e Galilei; atingiu seu ápice com a
geometria analítica de Descartes e a física de Newton). O estudante deve
observar o contraste filosófico que há aí: as categorias aristotélicas de “potência”
e “atualidade” descreviam o “porquê” do movimento; “a pedra cai porque no chão
é seu ‘lugar natural’; logo, a pedra tem ‘potência’ para cair; ‘movimento’ é a
passagem da ‘potência’ para a ‘atualidade’”. Essa descrição qualitativa do
movimento foi, com Kepler, Galilei, Descartes, e Newton, substituída por outra,
quantitativa: queremos saber como os objetos se movem. Pense um pouco: você
consegue fazer sentido da situação física indicada na figura 3 – você
provavelmente já desenhou várias vezes algo semelhante quando na escola –
em termos relacionais? Provavelmente, não. Sempre que desenha um esquema
como esse, você imagina a posição e o movimento do corpo em relação aos
eixos x e y (ou seja, em relação ao espaço absoluto). Repare, portanto, que até
mesmo a física que você aprendeu na escola e provavelmente aplicou no
vestibular pressupõe uma metafísica.
375
suposição (a cujo conteúdo chamaremos daqui
em diante “princípio da relatividade”); e além disso,
vamos introduzir o postulado – só aparentemente
incompatível com o primeiro – de que a luz, no
espaço vazio, se propaga sempre com uma
velocidade determinada, independente do estado
de movimento da fonte luminosa. Esses dois
postulados são suficientes para chegar a uma
eletrodinâmica de corpos em movimento, simples
e livre de contradições, baseada na teoria de
Maxwell para corpos em repouso. (p. 891-892)
x’ = x – vt
y’ = y
z’ = z
t’ = t.
Logo ficará claro o porquê desta definição. Não perca de vista que ela
se aplica a quaisquer dois eventos em um dado referencial.
Utilizemos agora a definição de velocidade (a velocidade escalar
comum, aquela que você aprendeu na escola) para um feixe luminoso, isto é,
Portanto,
A) se X = (t0, x1, x2, x3) e Y = (t1, y1, y2, y3) são do tipo luz,
B) Se X = (t0, x1, x2, x3) e Y = (t1, y1, y2, y3) são do tipo tempo,
C) Se X = (t0, x1, x2, x3) e Y = (t1, y1, y2, y3) são do tipo espaço,
380
Agora que entendemos algumas noções básicas da relatividade restrita,
podemos partir para estudar como se dá a transformação de coordenadas na
teoria. Para começar, apresentamos ao estudante o que chamamos, em física,
“relógio de luz”. Considere, em um referencial inercial S, dois espelhos planos
dispostos paralelamente ao eixo x, com faces refletoras uma de frente para a
outra a uma distância L0 fixa. Um sinal luminoso mede o tempo ao registrar um
“tic” cada vez que a luz bate no espelho de baixo:
𝑐𝑇 𝑣𝑇
( )2 = (𝐿0 )2 + ( )²(6)
2 2
−1
𝑣
onde 𝜸 – o chamado “fator de Lorentz” – vale√(1 − ( )2 ) . Lembre que v é
𝑐
sempre menor que c; portanto, a quantidade 𝜸 é sempre maior ou igual a 1.
Assim, T = 𝜸 T0 nos diz:
Agora, note o seguinte. Imagine que Kant tenha não apenas um, mas
dois relógios de luz em S: um deles com os espelhos dispostos paralelamente ao
eixo x (figura 5) e outro, idêntico ao primeiro, mas com os espelhos dispostos
paralelamente ao eixo y. Ora: S é um referencial inercial. Logo, ambos os
relógios se movem com o mesmo período T0.
Seja L a distância entre os espelhos do segundo relógio de luz,
considere o período de tempo T que a luz leva para ir e voltar observado por
Hegel em S’: começando pelo espelho de trás (que corresponde ao espelho de
baixo na figura 5) a luz atinge o espelho da frente (tic) após um tempo t dado por
ct = L + vt e retorna (tac) em um tempo t’ dado por ct’ = L – vt’. Ora! T = t + t’.
Portanto,
2𝐿
T= 𝑣2
(8)
𝑐(1− 2 )
𝑐
e, como os relógios devem ter o mesmo período, a partir de (7) e (8) temos
2𝐿
𝑣2
= 𝛾𝑇0 . (9)
𝑐(1− 2 )
𝑐
Por fim, substituindo a expressão (5) para T0 em (9) (faça-o!) vemos que,
para Hegel, a distância entre os espelhos do segundo relógio de Kant em S é
𝑣2 𝐿0
𝐿 = 𝐿𝑜 √(1 − ) = . (10)
𝑐2 𝛾
𝐿0
Repetimos: γ é sempre maior ou igual a 1. Logo, de L = a descoberta:
𝛾
383
A fórmula (10) reflete o que chamamos, em relatividade restrita, de
“contração do espaço”.
Figura 7. Referenciais inerciais S (em azul) e S’ (em vermelho). S’ está em movimento em relação
a S com velocidade constante v na direção do eixo x. O e O’ coincidem em t = t’ = 0.
384
Para derivar as transformações de Lorentz para translações, é
suficiente que utilizemos os resultados anteriores sobre contração do espaço e
dilatação do tempo, e a relação
̅̅̅̅̅ + 𝑂′Ω
̅̅̅̅ = 𝑂𝑂′
𝑂Ω ̅̅̅̅̅ (11)
x’ = 𝛾(x – vt)(14)
385
que é a transformada de Lorentz entre dois referenciais S e S’ em movimento
relativo na direção x. Sua inversa – lembre-se: se S’ se move com velocidade
constante e em linha reta para a direita em relação a S, para S’, S se movimenta
com velocidade constante e em linha reta para a esquerda – é obtida ao se
rearranjar (13) (faça-o!):
x = 𝛾(x’ + vt’).(15)
386
Corolário. Se você perguntar a um observador galileano o que
significa dois eventos serem simultâneos, a resposta será: “os
eventos acontecem ao mesmo tempo”. Isso significa que eventos
X = (x1, t1) e Y = (x2, t2) são simultâneos para um observador
galileano se e somente se t1= t2. Como, lembre-se, t = t’ para
observadores galileanos em referenciais inerciais S e S’ (vide
página 369), se X e Y simultâneos para S, então, X e Y
simultâneos para S’. O estudante deve observar que essa noção
de simultaneidade deve ser abandonada à luz dos resultados
acima apresentados e discutidos. Em referenciais lorentzianos, t ≠
t’. Logo, observadores lorentzianos podem discordar sobre a
ordem de eventos. A depender das coordenadas e da velocidade
envolvidas, se X e Y simultâneos em S, X pode ocorrer antes ou
depois de Y em S’(ou vice-versa).
𝑐 1
vPaulo = (𝑐 − ) = (1 − )𝑐 = 0.99995c (17)
20.000 20.000
Sendo v = 0.99995c, 𝛾 = 100 (faça, você, também as contas!). Logo, por (7),
𝑇(𝑣𝑖𝑎𝑔𝑒𝑚 𝑑𝑒 𝑃𝑎𝑢𝑙𝑜 𝑛𝑜 𝑟𝑒𝑓𝑒𝑟𝑒𝑛𝑐𝑖𝑎𝑙 𝑑𝑒 𝑃𝑒𝑑𝑟𝑜)
𝑇(𝑣𝑖𝑎𝑔𝑒𝑚 𝑑𝑒 𝑃𝑎𝑢𝑙𝑜 𝑛𝑜 𝑟𝑒𝑓𝑒𝑟𝑒𝑛𝑐𝑖𝑎𝑙 𝑑𝑒 𝑃𝑎𝑢𝑙𝑜) = =2 anos. (19)
𝛾
388
investigar sobre a natureza da realidade a priori, “da poltrona do filósofo”, como
se costuma dizer. A investigação filosófica e científica sobre a natureza do
mundo são interdependentes.
Há um outro aspecto nesse resultado sobre a viagem de Paulo que
causa perplexidade. Sabemos que as leis da física são as mesmas em
referenciais inerciais. Se para Pedro, Paulo se afasta em uma determinada
direção com velocidade constante v, para Paulo, Pedro é que se afasta com
velocidade constante –v. Mas, se assim é – se a situação física é simétrica, isso
é dizer – como pode Paulo viajar a uma estrela e, ao voltar, não encontra mais
seu irmão?
Com estas considerações, apresentamos ao estudante o famoso
“paradoxo dos gêmeos” da relatividade restrita. Note o quão expressivamente t
depende de v: se vPaulo = 0.98c, = 5.025, e portanto, se Paulo faz uma viagem de
ida e volta de 2 anos, para Pedro, passam-se“apenas” 10 anos – o “paradoxo”
está em um dos gêmeos ter envelhecido, biologicamente, 8 anos a mais que o
outro.
Você talvez esteja se perguntando: há, então, uma inconsistência na
teoria de Einstein? Tranquilize-se: o “paradoxo” é apenas aparente (o que
justifica nosso uso das aspas). Atente-se à situação física que Langevin
descreve e, antes de prosseguir a leitura, aplique aí os postulados da teoria,
procurando identificar o erro de raciocínio que leva ao “paradoxo”.
Verifique se sua constatação coincide com o que segue: Paulo, ao
manobrar o foguete para retornar à Terra, não estava mais em movimento
relativo uniforme, mas em um movimento acelerado. Isso significa que a simetria
inicial entre os referenciais foi quebrada. Paulo passou de um referencial (ida)
para outro (volta), enquanto Pedro manteve-se no mesmo referencial desde o
início da viagem de Paulo.
Observe que Paulo – em um certo sentido estrito – “viaja para o futuro”:
como mostrado nas expressões (18) e (19), Paulo diminuiu a velocidade do
relógio que marca o tempo no seu referencial (isso inclui seu relógio biológico, é
claro!) relativamente ao relógio de Pedro, de tal modo que o período do tempo no
referencial dele, e o período do tempo no referencial da Terra, estão fora de fase.
Porém, é de grande importância ter em mente que essa “viagem no tempo” é
uma viagemsó de ida: qualquer viagem que Paulo faça – a velocidades
relativísticas, é claro – irá lançá-lo cada vez mais adiante no futuro da Terra.
389
Antes de encerrarmos essa elementar introdução à noção de espaço-
tempo, vamos apresentar mais uma relevante consequência dos postulados de
Einstein. Esta consequência é particularmente interessante, pois diz respeito à
natureza do tempo, assunto que é caro aos filósofos desde a Antiguidade. O
argumento a ser apresentado deve-se a Hilary Putnam (1967). Em resumo, ele
afirma que a relatividade da simultaneidade, que estudamos acima, implica, sob
algumas hipóteses adicionais, em uma tese metafísica radical e profunda sobre a
natureza da realidade: o chamado “eternalismo”, ou, “a tese do universo
fechado”. Mais precisamente, essa tese deriva de pensar a realidade como uma
relação de equivalência e, em seguida, aplicar os resultados da relatividade a
essa realidade. Sendo assim, comecemos pela definição do abstrato conceito de
relação de equivalência:
390
1. O “agora” de Pedro é real (isso vale para todo e cada instante t, é
claro).
2. Há, pelo menos, um outro observador – Paulo, no nosso exemplo
– que é real, e pode, ademais, estar em movimento relativamente
a Pedro.
3. Se todas as coisas que estão em relação R com o agora de Pedro
são reais, e se o agora de Paulo é real, então, todas as coisas que
estão em relação R com o agora de Paulo estão em relação R com
o agora de Pedro.
O futuro já existe.
391
A realidade é um bloco fechado.
Você pode pensar do seguinte modo: assim como você possui “partes
espaciais” – você existe em certas partes do espaço e não em outras, mas o
espaço existe “todo de uma vez” –, da mesma forma você possui “partes
temporais”: você existe – de diferentes maneiras – em diferentes “partes” do
tempo, mas o tempo, como o espaço, existe “todo de uma vez”:
Figura 8. O universo em bloco. Todos os eventos do bloco – entendido como uma entidade
quadridimensional – têm o mesmo status ontológico. Seu futuro e seu passado, isso é dizer, não
são diferentes do seu agora. Não há “temporalidade” associada à sua existência.
392
fronteira entre filosofia e física.
Aqui encerramos a seção sobre espaço, tempo e movimento. Vamos
enumerar e resumir as mais importantes conclusões que obtivemos: (1) segundo
a proposta de Einstein, a noção newtoniana de tempo e espaço absolutos estão
erradas; isso, contudo, não equivale a dizer que a posição de Leibniz, antagônica
à de Newton, equivale à de Einstein. A teoria da relatividade restrita leva a
conclusões muito mais amplas e complexas comparadas às ideias de Leibniz; (2)
os conceitos de intervalo e cone de luz são exemplos do importante papel da
relatividade em discussões sobre causalidade. Não estamos afirmando que a
relatividade coloca um ponto final nesse debate, mas, sim, que estabelece uma
arena onde essas discussões devem ocorrer; (3) vimos como a relatividade
restrita altera as noções clássicas de ordenação de eventos e de simultaneidade.
Consequentemente, a teoria tem forte influência no debate acerca da noção de
realidade, debate este que, talvez, o leitor pensava ser externo à ciência.
A mensagem principal desta seção, contudo, não diz respeito às teorias
de Newton, Leibniz e Einstein. Não temos a pretensão de acreditar que somos
capazes de ensinar todas as importantes questões relativas a essas teorias em
tão poucas páginas. Almejamos, porém, que o estudante leve deste texto a
compreensão da interdependência entre filosofia e física (e todas as demais
ciências, é claro). A física não só se alimenta de metafísica, mas também produz
metafísica. A natureza da realidade depende das condições físicas do mundo.
Não é possível que o filósofo as descubra do assento de sua poltrona. Tampouco
é possível que o cientista o faça sem que recorra a modos de pensar filosóficos.
Fazer ciência é uma aventura filosófica. O estudante talvez sinta o peso deste
fato ainda maior força na seção seguinte, onde tratamos de difíceis questões,
muitas das quais ainda em aberto, ligadas à teoria quântica.
398
a frequência97 da radiação. Mais precisamente, radiação com frequência igual a
ou maior do que um determinado valor é capaz de ejetar os elétrons; radiação
com frequência menor do que esse valor não é capaz de ejetar elétrons.
Curiosamente, a intensidade da radiação é irrelevante quanto à possibilidade de
emissão dos elétrons. Por exemplo, a depender do metal, quando um feixe de
baixa frequência – por exemplo, de cor vermelha – é utilizado, ainda que esse
feixe seja muito intenso, nenhum fluxo de elétrons saindo do metal é detectado;
por outro lado, quando um feixe de alta frequência – por exemplo, um feixe
ultravioleta – é utilizado, ainda que ele seja pouco intenso, um fluxo de elétrons
ejetados é observado.
Einstein propôs uma solução muito simples para o problema. Se o
elétron precisa de uma quantidade mínima de energia (essa energia é
geralmente chamada de função trabalho, ɸ) para vencer o potencial e tornar-se
livre, e existe uma frequência mínima experimentalmente observada que é
necessária para a emissão dos elétrons, então, concluiu Einstein, deve haver
uma relação direta entre a energia que os elétrons recebem e a frequência da
radiação. Daí vem a hipótese dos quanta; isto é, Einstein propôs que a radiação
deve ser composta por unidades elementares que contêm uma certa quantidade
de energia (da mesma maneira que pensamos que a matéria é composta por
unidades elementares de massa chamadas de átomos); e que essa energia E
deve ser proporcional à frequênciaν da radiação de acordo com a fórmula E = hν,
onde h é a constante de Planck (em SI,6 62607004 × 10-34 m2 kg/s). Essas
unidades elementares de energia são chamadas fótons.
Assim, um feixe de radiação de baixa frequência é formado por
numerosos fótons com baixa energia; a diferença deste feixe para um outro mais
97Aqui definimos este conceito para os leitores que não estejam familiarizados com ele.
Frequência é a quantidade de oscilações por unidade de tempo. Uma onda que oscila
“muito rapidamente” tem “alta frequência”, uma onda que oscila “devagar”, “baixa
frequência”. O ser humano percebe a frequência da radiação eletromagnética como cor.
A cor vermelha tem a menor frequência que o ser humano consegue enxergar. A cor
violeta tem a maior. Daí vem as nomenclaturas “radiação infravermelha” (radiação que
tem frequência menor que a da cor vermelha, isto é, menor que nosso limite inferior de
detecção, e que, portanto, não enxergamos) e “radiação ultravioleta” (radiação que tem
frequência maior que a da cor violeta, isto é, maior que nosso limite superior de detecção,
e que, portanto, não enxergamos).
399
intenso e de mesma frequência é simplesmente a quantidade de fótons que o
compõem. Isso explica o porquê de os elétrons não serem ejetados a partir de
feixes vermelhos no exemplo citado: os fótons que compõem o feixe vermelho
têm energia menor que o mínimo necessário para libertar os elétrons. Não
interessa quão intenso seja o feixe vermelho, seus fótons não têm a energia
necessária para libertar os elétrons. Por outro lado, não interessa quão fraco seja
o feixe ultravioleta, seus fótons sempre terão energia suficiente para ejetar os
elétrons do metal. Colocando em outros termos:
𝜕𝜓 ℏ2
𝑖ℏ 𝜕𝑡 + 2𝑚 𝛻 2 𝜓 − 𝑉𝜓 = 0, (20)
98Uma equação diferencial é uma equação que aparece na função na forma de derivadas.
Note que a equação de Schrödinger depende de derivadas de x e t (posição e tempo
respectivamente).
405
matemático diferente, mas fisicamente equivalente, de lidar com elétrons e
outras partículas como ondas genuínas?
Assim propôs Schrödinger. Seu projeto, porém, não foi recebido com
entusiasmo por seus oponentes, em particular por Heisenberg – e Schrödinger,
trabalhando sozinho, não conseguiu levá-lo adiante. A visão de Schrödinger era
extraordinária; a mecânica ondulatória, fascinante – mas não obstante o sucesso
no caso do átomo de hidrogênio, havia muitos problemas que a teoria, naquele
momento histórico de 1926, era incapaz de resolver. A visão do elétron como
uma onda espalhada no espaço, por exemplo – traduzida matematicamente pelo
ψ em (20) –, só funciona no caso particular em que o sistema é composto por
apenas uma partícula. Quando consideramos um sistema com N partículas, a
função de onda ψ vive em um espaço matemático abstrato de 3N dimensões.
Ora: ondas reais vivem em um mundo com apenas três dimensões de espaço;
logo, não é possível afirmar que ψ representa algo físico. Ademais, a teoria de
Schrödinger também não consegue explicar como, não obstante o
comportamento ondulatório do elétron manifesto em certos experimentos como o
da dupla fenda acima discutido, em certas circunstâncias,o elétron se comporta
manifestadamente como uma partícula. Se não são “pontos”, elétrons devem ter,
nessas circunstâncias, extensão muito pequena. Mencionamos acima que
Schrödinger pensava tratar esse caso com a ideia de “pacote de onda” (imagine
a onda como um “envelope” muito bem localizado no espaço); essa noção não é
estranha à ondulatória clássica. Não obstante, porém, a plausibilidade dessa
hipótese, Schrödinger não conseguiu demonstrar, com exceção do caso
particular, e muito simples, do oscilador harmônico, que uma onda que está
concentrada em um pequeno volume do espaço em algum instante t não acaba
se espalhando, “desfazendo o pacote”, instantes depois – o que impossibilita
tratar a trajetória de um elétron livre como uma onda bem localizada no espaço e
estável no tempo.
O primeiro passo na “resolução” dessas dificuldades foi dado por Max
Born, um dos criadores, você deve se lembrar, da mecânica matricial.
Recordamos o estudante: toda onda tem uma amplitude, a “altura” da oscilação
temporal da onda. Born sugeriu – e essa ideia, central à teoria quântica, é hoje
chamada “regra de Born” – que interpretássemos ψ não como uma onda física,
como sugerira Schrödinger, o inventor da função de onda, mas o quadrado de
sua amplitude –|𝜓|2 – como representando a probabilidade de um observável
406
ser medido (note aí a linguagem da mecânica matricial), em um determinado
experimento, com um determinado valor (por exemplo, a probabilidade de medir
o observável “energia” com valor 3,2 MeV para uma partícula em uma dada
situação experimental é de 47%).
A função ψ é chamada, à luz do insight de Born, “onda de
probabilidade”. O formalismo do espaço de Hilbert da mecânica quântica, que
devemos a John von Neumann – identificado, hoje, com a própria mecânica
quântica – faz uso da equação de Schrödinger, da regra de Born, e da linguagem
centrada em “medições” e “observáveis” originárias da mecânica matricial. A
combinação é, a um só tempo, matematicamente impecável, experimentalmente
excelente, e filosoficamente incongruente.
Vejamos. Esquivando-nos de fazer uso de linguagem técnica, uma vez
que supomos o estudante não estar familiarizado com a linguagem própria da
física, apresentamos, de maneira extremamente simplificada, o procedimento de
estudos de sistemas quânticos à luz do formalismo vigente. Para um sistema
quântico qualquer, caracterizado por certo potencial V, determinamos, primeiro,
as propriedades gerais do sistema,resolvendo a equação de Schrödinger.
Obtemos, desse modo, os chamados “estados possíveis” do sistema (repetimos:
os estados possíveis são soluções da equação). Note que há grandezas físicas
que caracterizam o sistema, algumas das quais podemos medir
experimentalmente (posição, energia, momento linear, momento angular, spin
etc). Chamamos essas grandezas de “observáveis” do sistema. O estudante
deve notar: o que determinamos experimentalmente é o valor numérico dos
observáveis, detectados quando o sistema é medido em um determinado estado.
Agora note o seguinte. Em linguagem matemática, dizemos que ψ é um vetor.
Vetor é um objeto que mora em um espaço vetorial; você estudou esse objeto no
ensino médio. Os vetores que você estudou, porém, provavelmente moram em
um espaço vetorial identificado com o espaço euclidiano; ψ mora em um espaço
vetorial mais complicado, o chamado “espaço de Hilbert”. Não entraremos em
detalhes, o ponto para o qual chamamos a atenção é o seguinte: você deve se
lembrar, de seus estudos no ensino médio, que se x1 é um vetor, x2 é um vetor,
então, combinações lineares disso – por exemplo, 3x1 + 1x2 – também é vetor. O
mesmo vale para o objeto ψ. Se ψ1 é vetor solução da equação de Schrödinger,
se ψ2 é vetor solução da equação de Schrödinger, então, o vetor Ψ = aψ1 + bψ2
também é vetor solução da equação de Schrödinger (impomos a² + b² = 1). Em
407
linguagem de física quântica, chamamos esse estado particular, “superposição”:
uma superposição é um estado “que é soma de estados”. Observe o quão difícil
é interpretar – e mergulhamos, agora, em águas filosóficas profundas – o que é
um estado de superposição: nós jamais medimos isso, nós jamais observamos,
na realidade, algo que podemos chamar “estado de superposição”. Com efeito, o
que observamos, invariavelmente, em experimentos, é um dos termos da
superposição: imagine que queiramos medir o spin99 de um elétron na direção z;
o observável “spin na direção z” é representado, simbolicamente, por 𝑆̂𝑧 ; o
elétron possui spin 1/2 e podemos medi-lo ou para cima (estado ψ1 com valor de
ℏ ℏ
spin+ 2) ou para baixo (estado ψ2 com valor de spin− 2). Antes da medição, o
estado do elétron é
1 1
Ψ= ψ1 + ψ2 (21)
√2 √2
mas ao ser medido, o elétron “colapsa” para ψ1 ou para ψ2. Essa “ruptura” da
dinâmica da função de estado que descreve o sistema, ruptura “causada” “pela
medição”, consiste no famoso problema da medição: assim como no
experimento da dupla fenda, o elétron parece passar por ambas as fendas ao
mesmo tempo se não for observado, comportando-se, então, como uma onda,
mas, se o observarmos, ele “colapsa” e se comporta como uma partícula,
passando ou por uma fenda, ou por outra, teoricamente falando a função de
onda descreve bem o comportamento do elétron antes de ser observado ou
medido (chamamos a atenção do estudante para o fato de a equação de
Schrödinger ser determinística, como as equações da física clássica), mas,
quando fazemos uma medição, a dinâmica determinista e linear de Ψ é
subitamente interrompida.
Há, portanto, dois “momentos” na descrição dinâmica de sistemas
99
O spin é uma propriedade de partículas elementares que diz respeito,basicamente, a
como a partícula responde a um campo magnético. Considere a situação em que um
elétron com spin “up” se desloca para cima devido à presença de um campo magnético:
um elétron com spin “down” se deslocaria, nessa situação, para baixo, da mesma
maneira com que uma partícula com carga negativa sofre uma força em sentido oposto
àquela sentida por uma partícula com carga positiva na presença de um campo elétrico.
408
quânticos: antes da medição; depois da medição. A evolução do sistema no
tempo, antes de medirmos o sistema,é dada pela equação de Schrödinger. Na
medição, aplica-se o chamado “postulado da projeção”: a medição “escolhe” um
dos estados possíveis (um dos termos da superposição), e o sistema “colapsa”
para aquele estado.
Muitos problemas filosóficos se apresentam aí ao mesmo tempo. Em
primeiro lugar, vimos que, de acordo com a regra de Born, não devemos
interpretar Ψ como representando algo físico: o módulo ao quadrado da
amplitude da função de onda representa, diz-nos o formalismo, a probabilidade
de medirmos o sistema naquele estado, não o “estado verdadeiro” do sistema.
Olhe novamente para a equação (21): as amplitudes de ψ1 para ψ2 são tais que
a probabilidade de medir o sistema em um estado, ou em outro, é de 50% cada.
Essa mera identificação da função de onda com “onda de probabilidade”, porém,
é insatisfatória. Imagine que a função de onda (21) representa a situação
experimental do elétron no experimento da dupla fenda. Se o elétron passa por
uma fenda, ou por outra, os eventos “elétron passa por fenda 1” e “elétron passa
por fenda 2” são independentes, certo? Você deve ter aprendido na escola que
quando um evento – neste caso, o resultado de uma medição – tem mais de um
resultado possível, a probabilidade de você obter um resultado ou outro é a
soma aritmética da probabilidade de cada resultado: em (21), temos Prob ½ para
evento 1, Prob ½ para evento 2, ½ + ½ = 1. Agora lembre-se do seguinte: o
elétron só passa ou por uma fenda, ou por outra, se o observarmos antes de ele
passar pelo primeiro anteparo: do contrário, o elétron passa por ambas as fendas
ao mesmo tempo, e como vimos, ele interfere consigo mesmo: a probabilidade
de o elétron ser observado em determinado ponto da tela detectora, dada essa
interferência, pode ser menor do que seria no caso de o elétron ser observado
antes de passar pelo anteparo (e ter “colapsado”). Na linguagem da teoria
ondulatória, isso se passa porque ψ1 interferiu destrutivamente com ψ2, o que
explicaria, nessa linguagem, a “redução da probabilidade”. Mas ora! Se a função
de onda é apenas uma ferramenta para calcular probabilidades, como pode
ocorrer essa interferência? Probabilidades não “interferem” umas com as outras!
Mais problemas surgem com essa constatação. Se a função de onda “tem algo
de real”, como o fenômeno da interferência parece sugerir – portanto, ela não
consiste, apenas, em uma medida de probabilidade –,então precisamos
determinar o que é esse “elemento de realidade” que a função de onda capta.
409
Repetimos: a estrutura vetorial do espaço de Hilbert é tal que se ψ1 e ψ2 são
estados, então, combinações lineares de ψ1 e ψ2 – os chamados “estados de
superposição” – também são estados. No início desta seção sobre teoria
quântica, fizemos a afirmação: o mundo é quântico. Note o que isso significa: a
função de onda é capaz de descrever – ou deve ser, se a teoria está correta e é
completa – todo e qualquer sistema dinâmico na natureza. Isso inclui, é claro,
sistemas macroscópicos. Mas, repetimos, não temos experiência de estados de
superposição.
Mostrar que o formalismo da teoria quântica, assim entendida, leva a
absurdos é o ponto de Schrödinger quando ele discute, no artigo “Die
gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik” (“A situação atual da mecânica
quântica”), publicado originalmente em 1935, o famoso experimento mental
conhecido como “gato de Schrödinger”:
Muito bem: mas e se você não olhar?Ou a realidade – gato vivo, gato
morto, elétron em x, elétron em x’ – só existe, ou passa a existir quando você
observa?Atento a essa pergunta, considere, agora, o seguinte. Mencionamos,
antes, que os operadores “posição na coordenada x” e “momento na direção da
coordenada x” não comutam:
ℏ
Δ𝑥Δ𝑝 ≥ 2, (22)
Questões de revisão
Questões de discussão
Leituras recomendadas
417
Sobre fundamentos de mecânica quântica:
418
Referências
EINSTEIN, A. (1905a) “Ueber einen die Erzeugung und Verwandlung des Lichtes
betreffenden heuristischen Gesichtspunkt”.Annalen der Physik 17: 132-148.
_____. (1905b) “Zur Elektrodynamik bewegter Körper”. Annalen der Physik 17:
891-921.
GALILEI, G. (1632; 2011) Diálogo sobre os Dois Máximos Sistemas de Mundo
Ptolomaico e Copernicano. Editora 34: São Paulo. Tradução de P. R.
Mariconda.
JAMMER, M. (1974) The Philosophy of Quantum Mechanics. Wiley: New York.
KRAGH, H. (2010) Quantum Generations. Princeton University Press: Princeton.
LANGEVIN, P. (1911) “L’évolution de l’espace et du temps”. Scientia 10: 31-54.
PUTNAM, H. (1967) “Time and Physical Geometry”. The Journal of Philosophy
64(8): 240-247.
SCHRÖDINGER, E. (1935) "Die gegenwärtige Situation in der
Quantenmechanik". Die Naturwissenschaften 23: 807-812.
419
8
Filosofia da Biologia
Sérgio Farias de Souza Filho
101 Por exemplo, uma concepção de função biológica influencia como se lida com o
tradicional problema da intencionalidade na filosofia da mente. De fato, as chamadas
teorias teleológicas da representação mental (“teleosemântica”) procuram solucionar este
problema, apelando para a assim chamada concepção etiológica de função biológica
(SOUZA FILHO, 2013). Abordarei o tópico filosófico da função biológica mais adiante.
421
que “nada na biologia faz sentido exceto à luz da evolução”102 (DOBZHANSKY,
1973).
A biologia evolutiva é o campo da biologia que investiga os processos
evolutivos,aqueles que produziram a diversidade de seres vivos na Terra. Assim,
a filosofia da biologia lida com problemas teóricos e metodológicos acerca das
práticas e teorias da biologia evolutiva. Mas que problemas filosóficos são estes
e em que estes diferem dos problemas científicos da biologia evolutiva? A
natureza da distinção entre problemas científicos e filosóficos é em si um
problema metafilosófico que está para além do escopo da presente introdução
lidar, mas a caracterização a seguir é suficiente como primeira aproximação.
Problemas filosóficos da biologia tratam dos aspectos mais
fundamentais das ciências biológicas, cujas respostas os biólogos geralmente
não refletem a respeito em suas práticas científicas. Por exemplo, biólogos
frequentemente adotam um discurso teleológico, que recorre à noção de função
biológica, a fim de descrever a natureza de um organismo e seus traços
fenotípicos (i.e., qualquer atributo observável de um organismo como altura,
forma ou cor da pele). Em sua prática científica, os biólogos assumem que traços
e mecanismos biológicos têm funções biológicas, mas geralmente não refletem
fundamentalmente acerca do que seria precisamente uma função biológica.
Evidentemente, os biólogos podem posteriormente refletir filosoficamente acerca
da natureza das funções biológicas, mas via de regra suas práticas científicas
não exigem tal empreendimento. O mesmo ocorre com outras noções como
adaptação, espécie etc. Por fim, a filosofia da biologia também investiga
questões como se de fato há leis naturais na biologia, se estados biológicos são
redutíveis a estados físicos etc. Evidentemente, biólogos que investigam os
fundamentos teóricos da biologia evolutiva podem também se interessar por
problemas como estes – de fato, muitos o fazem – e é justamente por isso que a
fronteira entre os campos da filosofia da biologia e dos fundamentos da biologia
se torna por vezes porosa. De todo modo, o que ocorre é que em suas práticas
científicas os biólogos estão mais focados em fazer descobertas empíricas e
desenvolver teorias e modelos do que analisar filosoficamente os fundamentos
de sua ciência.
102 Todas as traduções de citações em língua inglesa são de minha autoria ou foram
retiradas das traduções para o português de edições publicadas no Brasil.
422
O objetivo desta introdução é apresentar ao leitor o estado da arte da
filosofia da biologia através de alguns dos principais problemas filosóficos que
moldam o debate contemporâneo nesta área. Na próxima seção, faço uma
apresentação da teoria da evolução pela seleção natural, tal como estabelecida
na biologia evolutiva contemporânea e avalio alguns de seus aspectos
filosoficamente relevantes. Na terceira seção, trato do problema da teleologia e
da função biológica. Na quarta seção, trato do problema taxonômico e ontológico
da classificação das espécies. A quinta seção conclui esta introdução. A sexta e
última seção contém questões de revisão, questões de discussão e sugestões
de leitura.
2. Evolução
103 Há um profundo debate entre biólogos e filósofos sobre quais são as condições
necessárias e/ou suficientes para haver seleção natural. O que ocorre é que estes três
princípiossão os mais populares, cf. GILDENHUYS, 2019.
425
– os descendentes em média têm o tamanho do pescoço mais semelhante ao
tamanho do pescoço de seus genitores em contraste com outros indivíduos da
população (hereditariedade). O resultado da interação destes três fatores é que,
ao longo das gerações, as girafas descendentes passam a ter um pescoço em
média maior que o de seus ancestrais. A evolução do comprimento dos pescoços
das girafas é explicada pela seleção daqueles pescoços com comprimentos mais
aptos.104
Contudo, o processo evolutivo não depende apenas da ocorrência
destes três fatores – variação fenotípica, aptidão diferenciada e hereditariedade.
Para haver mudança adaptativ,a tal como o crescimento do pescoço das girafas,
é preciso haver seleção cumulativa. A mudança seletiva não ocorre em um único
episódio de seleção, de uma vez por todas, mas é o resultado de episódios de
seleção em série. A evolução é um longo processo cumulativo que ocorre ao
longo de muitas gerações através de uma sequência colossal de episódios de
seleção. As mudanças evolutivas possuem um tal grau de complexidade que não
podem ser o resultado de alguns poucos episódios de seleção. Segundo Richard
Dawkins, a seleção cumulativa é a única explicação bem-sucedida para a
complexidade do design dos organismos (DAWKINS, 1986 [2001]).
Por fim, é preciso salientar o caráter universal dos três princípios acima
elencados para haver evolução pela seleção natural – variação fenotípica,
aptidão diferenciada e hereditariedade. Note que eles não mencionam
organismos. O que ocorre é que a teoria da evolução deve explicar a evolução
não apenas de organismos, mas deve ser suficientemente geral para explicar
também a evolução das espécies, dos genes (em breve tratarei dos mesmos), de
outras moléculas dentro dos próprios organismos. A teoria da evolução deve ser
expressa não apenas como se aplicando a este ou aquele organismo, nem
mesmo a todos os seres vivos, mas como uma teoria universal que se aplica a
todas as coisas que se reproduzem desde que tenham variação hereditária e
aptidão diferenciada (ROSENBERG & McSHEA, 2008, pp. 19-20).
104 Aquisaliento
que recorri ao caso da girafa com fins meramente ilustrativos. Esta
explicação da evolução do pescoço das girafas não exclui a possibilidade delas terem
desenvolvido pescoços longos por outras razões. Por exemplo, paraintimidar predadores
ou mesmo outras girafas, em contextos competitivos (ROSENBERG & McSHEA, 2008, p.
17).
426
Contudo, dois problemas se impõem para explicar a evolução pala
seleção natural. O primeiro é que esta depende fundamentalmente de uma forte
hereditariedade entre os traços dos genitores e os traços dos descendentes
(princípio da hereditariedade). Porém, como isso é possível? Qual o mecanismo
pelo qual a hereditariedade ocorre? Este foi um dos principais problemas que
ameaçaram a viabilidade da teoria da evolução tal como originalmente proposta
por Darwin. O segundo problema está no fato que a seleção natural também
exige uma variação de traços nas populações sujeitas ao processo evolutivo
(princípio da variação fenotípica). Contudo o mecanismo da seleção natural age
justamente em sentido contrário, continuamente homogeneizando a população: a
variação é reduzida através do favorecimento dos traços mais aptos e da
eliminação dos traços menos aptos. Isto implica que para haver processo
evolutivo por um longo período, é necessário haver uma contínua oferta de
variação fenotípica. Mas o que garante tamanha oferta? A resposta para ambos
os problemas está no gene, a unidade da hereditariedade, cuja teoria era
desconhecida por Darwin.
O desenvolvimento da teoria genética constituiu uma das maiores
evidências científicas para a teoria da evolução. A transmissão hereditária ocorre
através dos genes que são compostos de ácidos nucleicos e o fornecimento
“infinito” de variação fenotípica é garantido por dois fatores, a recombinação e a
mutação genética (DAWKINS, 1976 [2007]). A maioria dos organismos se
desenvolvem a partir de uma única célula. No caso da reprodução sexuada, esta
célula é o zigoto, formado pela união de dois gametas: um masculino (o
espermatozoide) e outro feminino (o óvulo). Os gametas são constituídos por
genes que são transmitidos para os descendentes e consigo transmitem os
traços de seus genitores. É assim que os descendentes herdam os traços de
seus genitores. Ocorre que os genitores transmitem apenas metade de seus
genes para seu gameta. A escolha destes genes é dita aleatória na medida em
que o processo de divisão não leva em conta qualquer necessidade adaptativa.
Isto gera uma recombinação constante de genes e é o primeiro fator para haver
oferta contínua de variação fenotípica: cada organismo é o resultado de uma
nova combinação genética. O segundo fator é a mutação genética – os genes
não são transmitidos com absoluta fidelidade, mas são passíveis de modificação.
Por vezes há mutação quando o material genético é copiado, de modo que o
zigoto resultante da união dos gametas masculinos e femininos conterá genes
427
que originalmente não pertenciam a nenhum dos dois gametas. Assim, a
mutação genética também contribui para uma oferta incessante de variação de
traços sobre a qual age a seleção natural.
A biologia evolutiva contemporânea surge a partir da chamada síntese
moderna, desenvolvida por R.A. Fisher, J.B.S. Haldane, Sewall Wright e outros
na década de 1930 (TABERY, 2019). Ela integrou a teoria da evolução com a
biologia genética, estabelecendo a evolução como sucessivas modificações na
frequência genética da população através da seleção natural. Desde então, a
síntese moderna tem sido refinada e alguns de seus aspectos tem sido postos
em questão tal como sua tese de que o único mecanismo responsável pela
evolução é a seleção natural (argumenta-se que outros fatores podem ser
importantes no processo evolutivo tal como o acaso e fatores não genéticos no
processo hereditário).
Por fim, uma última observação antes de passar para a próxima seção.
Muitos que atualmente se opõem à teoria da evolução, especialmente aqueles
de inspiração criacionista, costumam sublinhar que a teoria da evolução seria
“apenas uma teoria” entre tantas teorias que procuram explicar a origem das
espécies. Com isto, querem dizer que a teoria da evolução não goza de qualquer
status epistêmico especial, mas seria uma teoria com o mesmo poder explicativo
que as demais. Nada poderia ser mais falso. A teoria da evolução é um fato
estabelecido na comunidade científica e há uma quantidade colossal de
evidências que demonstram sua comprovação científica (para uma compilação
das mesmas, cf. COYNE, 2009 [2014]). Toda teoria científica pode
evidentemente em última instância ser posta em dúvida e isto não seria diferente
com a teoria da evolução. Ocorre que esta goza de tamanho grau de
comprovação científica que a pôr em dúvida constitui um ceticismo dos mais
radicais quanto ao sucesso científico.
3. Função
4. Espécie
106 Acima do táxon dos reinos biológicos há ainda o táxon dos domínios biológicos
(Eukarya, Bacteria e Archaea). O naturalista Carlos Lineu é em geral considerado o pai
da taxonomia moderna (RICHARDS, 2016).
438
independentemente de como o mundo esteja objetivamente organizado. Isto
significa que os objetos podem ser classificados das maneiras mais arbitrárias
possíveis. A questão que se coloca é a seguinte: a partir de qual critério devemos
avaliar classificações alternativas dos objetos de um domínio? Há uma maneira
correta de classificá-los ou todas as classificações são em última instância
igualmente corretas?
No caso das espécies, um observador qualquer pode classificar todos
os organismos em duas categorias excludentes, a saber, aqueles que gosta e
aqueles que desgosta. Os chimpanzés são classificados numa categoria
juntamente com os mosquitos da dengue, enquanto os gorilas são classificados
na categoria oposta simplesmente porque tal observador desgosta dos primeiros,
mas gosta dos últimos, por mais que chimpanzés e gorilas sejam organismos
muito mais semelhantes entre si do que chimpanzés e mosquitos da dengue.
Mas a qual critério devemos recorrer para avaliar as classificações dos
organismos? Note que a taxonomia biológica classifica chimpanzés e gorilas na
mesma família dos hominídeos, enquanto chimpanzés e mosquitos-da-dengue
não são sequer classificados no mesmo filo – os primeiros pertencem ao filo dos
cordados enquanto os mosquitos da dengue pertencem ao filo dos artrópodes.
Em virtude de quê devemos preferir a classificação biológica em detrimento da
classificação do observador acima? Sustentar que esta última deve ser rejeitada
por ser arbitrária não soluciona o problema posto, de que o que buscamos é
justamente a razão pela qual a classificação deste observador é arbitrária em
contraste com a classificação biológica.
Iniciemos pelo problema da individuação: o que distingue uma espécie
da outra? Sua solução exige uma definição do que seja uma espécie. Contudo
não há consenso entre os biólogos e filósofos quanto ao que seja uma espécie.
Definições rivais, também chamadas “conceitos de espécie”, resultam em
classificações distintas das espécies: certos organismos são classificados por
uma definição como pertencentes a uma espécie, enquanto que por outra são
classificados como pertencentes a outra espécie. Isto é, definições rivais traçam
diferentes limites para distinguir uma espécie da outra – em uma definição, uma
certa variação em um grupo de organismos conta como uma variação no interior
de uma mesma espécie, ao passo que em outra definição esta mesma variação
conta como uma variação entre espécies. No que se segue, avalio algumas das
principais definições de espécie.
439
Talvez a definição mais imediata de espécie seja o conceito fenético de
espécie (CFE): uma espécie é um grupo de organismos intrinsecamente
similares em um dadoaspecto – morfologia, genética, comportamento etc.
(SOKAL & SNEATH, 1963). Gorilas e mosquitos-da-dengue não são da mesma
espécie em virtude de não serem semelhantes à luz de um destes aspectos –
e.g., são organismos com morfologia completamente diferentes. O CFE recorre à
semelhança de organismos de uma mesma espécie e a transforma na própria
definição do que é uma espécie.
Contudo, o CFE é uma definição muito problemática por diversas
razões (STERELNY & GRIFFITHS, 1999, pp. 184-6). Em primeiro lugar, a
viabilidade do CFE enquanto definição de espécie depende de uma medição
objetiva da semelhança dos organismos. O problema é que há uma quantidade
colossal de diferentes métodos para calcular a similaridade, que,
porvezes,produzem diferentes medições. Mas então como decidir de maneira
não arbitrária e não ad hoc entre todos estes métodos? Isto parece ser
impossível. Em segundo lugar, não é verdade que os organismos que pertencem
a uma mesma espécie sejam sempre similares uns aos outros. Por exemplo,
machos, fêmeas e jovens são dessemelhantes em diversos aspectos como
morfologia e comportamento. Há espécies, como a dos iguanas, nas quais os
machos têm estratégias de procriação muito diferentes uns dos outros e,
portanto, são organismos bem diferentes uns dos outros. Ainda mais grave,
diferentes organismos de uma mesma espécie podem se assemelhar mais a
organismos de outra espécie do que se assemelham aos organismos de sua
própria espécie. À luz dessas e de outras razões, o CFE é uma definição
atualmente amplamente rejeitada.
A definição de espécie mais influente é o conceito biológico de espécie
(CBE), que tem em Mayr o seu principal proponente: uma espécie é um grupo de
organismos reprodutivamente isolado de outros grupos de organismos (MAYR,
1942). Isto significa que organismos pertencentes a uma mesma espécie são
capazes de se reproduzirem entre si, enquanto organismos pertencentes a
espécies diferentes são reprodutivamente isolados. Chimpanzés e mosquitos da
dengue não são organismos da mesma espécie, por serem reprodutivamente
isolados, portanto incapazes de procriação. Chimpanzés e gorilas, apesar de
muito mais semelhantes, também não pertencem a mesma espécie por também
não serem capazes de procriar. Já os cães pastor alemão e doberman
440
pertencem à mesma espécie já que são capazes de se reproduzirem entre si,
ainda que pertençam a raças distintas. A ideia por trás do CBE é que as
semelhanças e dessemelhanças entre os organismos que resultam na
especiação têm origem na restrição do fluxo de genes. A semelhança entre os
chimpanzés surgiu e persistiu ao longo da história evolutiva devido ao isolamento
reprodutivo dos chimpanzés. Por não procriarem com outros organismos, a
aparência e comportamento dos chimpanzés persistem. Os genes mutantes dos
chimpanzés ficam restritos a este grupo e não se espalham no pool genético (a
totalidade de genes) de outros organismos, já que eles não se reproduzem entre
si, não havendo livre fluxo genético entre os chimpanzés e os demais
organismos. Note como o CBE explica a frequente similaridade dos organismos
de uma espécie, ao apelar para o isolamento reprodutivo, em vez de definir
espécie em termos de similaridade como o CFE erroneamente o faz.
O CBE foi um marco na compreensão biológica da especiação. Mas
como costuma ocorrer com definições em geral, a viabilidade do CBE é
ameaçada em várias frentes. Em primeiro lugar, ele, de partida, exclui
organismos assexuados de serem membros de qualquer espécie, posto que não
pertencem a grupos reprodutivamente isolados. De fato, não pertencem a
qualquer grupo reprodutivo – isolado ou não. Talvez aqui a saída seja encarar o
CBE não como uma definição geral de espécie, mas como restrita a certos tipos
de organismos – aqueles com reprodução sexuada. Em segundo lugar, o próprio
Mayr notou que o CBE não pode ser aplicado a grupos de organismos
geograficamente isolados (MAYR, 1942, pp. 120-1). Afinal, isolamento geográfico
não implica necessariamente isolamento reprodutivo e, a menos que dois grupos
de organismos estejam em contato, não podemos verificar se são capazes de se
reproduzir ou não. Por fim, há o problema do hibridismo – a reprodução entre
organismos de espécies diferentes. No caso das plantas, é bastante comum
haver procriação entre organismos que pertencem a espécies diferentes, embora
também haja hibridismo entre animais (e.g., cacatua-rosa e galah). O CBE traça
aqui uma classificação equivocada posto que estas plantas e animais pertencem
a espécies diferentes apesar de não serem reprodutivamente isoladas (OKASHA,
2019, p. 70; STERELNY & GRIFFITHS, 1999, pp. 189).
À luz de todos os problemas enfrentados pelo CBE, dezenas de outras
definições de espécie foram propostas. Uma das mais influentes é o conceito
ecológico de espécie (CEE) que define espécie em termos de nichos ecológicos.
441
Contudo está para além dos propósitos desta introdução avaliar a viabilidade
destas outras definições ou de uma potencial compatibilidade entre as mesmas.
A solução para o problema da individuação das espécies está longe de ser
desenvolvida. Passemos ao problema do status.
Suponha que de fato exista uma classificação correta das espécies.
Qual é então o status ontológico das espécies? A ontologia é a área da filosofia
que investiga aquilo que há, ou seja, aquilo que existe. O problema do status
ontológico, portanto, consiste no problema sobre a maneira como a espécie
existe, i.e., o seu modo de ser. Seriam as espécies entidade reais e objetivas? A
classificação dos organismos em espécies independe dos interesses e das
arbitrariedades do biólogo que assim os classifica, tendo as espécies, portanto,
uma constituição independente de qualquer observador?
A resposta mais tradicional ao longo da história da filosofia para o
problema do status ontológico é o essencialismo. Espécies possuem essências
que determinam sua realidade e objetividade, independentes de qualquer
observador. Mas o que é uma essência? Esta é uma questão complexa, mas à
primeira vista a essência de um objeto é aquilo sem o qual este não seria aquilo
que ele é. Por exemplo, é supostamente uma propriedade essencial de um ser
humano qualquer ser um animal, mas não a propriedade de estar localizado à
minha direita. Afinal, deixando de ser um animal, também deixa de ser humano,
ao passo que continuaria a ser humano, se estivesse à minha esquerda.
O essencialismo de espécie é um essencialismo de tipo: a espécie é um
tipo natural com essência. Como vimos anteriormente, há múltiplas maneiras de
classificar objetos no mundo em tipos, mas apenas algumas destas
classificações são naturais na medida em que correspondem a divisões objetivas
da realidade, não refletindo os interesses ou arbitrariedades de qualquer
observador. Classificações naturais são aquelas que cortam a realidade nas
juntas, para usar a famosa metáfora de Platão no Fedro (PLATÃO, 2016, 265e).
É em virtude de sua essência que o organismo é membro da espécie a qual ele
efetivamente pertence: é essencial para este coqueiro pertencer à espécie dos
coqueiros. A tese da espécie como um tipo natural vêm acompanhada de alguns
princípios, destaquemos dois destes. O primeiro é que todos os organismos de
uma espécie têm uma essência comum que não é compartilhada pelos
organismos que não pertencem a esta espécie – uma certa propriedade
necessária e suficiente para um organismo pertencer a certa espécie. Assim, há
442
uma propriedade essencial exclusivamente compartilhada pelos coqueiros. O
segundo princípio é que esta essência comum é responsável pelas
características tipicamente associadas aos organismos da espécie. Assim, é a
essência dos coqueiros que fundamenta o fato de eles terem o côco como fruto.
Contudo, o essencialismo quanto à espécie tornou-se amplamente
rejeitado após o estabelecimento da teoria da evolução pela seleção natural. O
essencialismo foi uma tese ontológica bastante plausível num mundo pré-
darwiniano, no qual Deus criou cada uma das espécies, que seriam eternas e
imutáveis. Deus dotou cada espécie com uma essência intrínseca, que
fundamentaria as características típicas de seus organismos constitutivos. A
principal objeção ao essencialismo é a aparente ausência de propriedades
exclusivamente compartilhadas pelos membros da espécie. Não parece haver
nenhuma propriedade intrínseca como morfologia, comportamento ou genética
que seja essencial. O principal problema é que há suficiente variação
morfológica, comportamental e genética entre os membros da espécie, que
impede que haja uma propriedade compartilha por todos os seus organismos
constitutivos e por nenhum organismo de outra espécie. Note que a evolução
ocorre através de uma contínua mudança na base genética dos membros da
espécie, seja por reprodução sexual ou por mutação genética. Ou seja, as forças
evolutivas atuam continuamente contra a exclusividade de qualquer traço pelos
membros da espécie. A evolução mostra que as espécies estão em contínua
mudança, de modo que, ao longo da história, as espécies não apenas se
modificam, como podem ser extintas. Por fim, ainda que por hipótese, em um
intervalo de tempo na história evolutiva de uma espécie, haja uma propriedade
compartilhada tão somente por seus membros, estes organismos podem passar
por mudanças que façam com que nem todos compartilhem mais esta
propriedade. Estas dificuldades levaram muitos filósofos a rejeitarem o
essencialismo de espécie, sustentando que “o essencialismo quanto às espécies
é hoje um assunto encerrado” (SOBER, 1980, p. 353).
Desde a derrocada do essencialismo biológico no século XX, diversas
teorias não essencialistas foram propostas para tentar dar conta do status
ontológico das espécies. Contudo, nas últimas décadas, houve o ressurgimento
do essencialismo biológico em uma nova versão que pode ser batizada de
essencialismo relacional (para não ser confundido com o essencialismo
tradicional) segundo o qual espécies seriam tipos naturais históricos. Isto é,
443
seriam tipos naturais com essências históricas,não com essências intrínsecas,
tal como proposto pelo essencialismo tradicional. Antes, seriam essências
extrínsecas ou relacionais,posto que constituídas pela história evolutivas dos
organismos (GRIFFITHS, 1999; LaPORTE, 2004).
Propriedades podem ser classificadas como intrínsecas ou extrínsecas.
Propriedades intrínsecas são aquelas que o objeto possui tão somente em
virtude de si mesmo, propriedades cuja instanciação depende exclusivamente
dele próprio. Por outro lado, propriedades extrínsecas são aquelas que o objeto
possui em virtude também de algo para além dele mesmo, propriedades cuja
instanciação não dependem exclusivamente dele próprio. Dito de outra forma,
propriedades extrínsecas exigem referência a algo externo, ao contrário de
propriedades intrínsecas. Considere uma caixa de alumínio. Sua massa é uma
propriedade intrínseca, posto que depende exclusivamente de sua constituição
interna, ao passo que seu peso é uma propriedade extrínseca, por depender
também da gravidade do ambiente na qual a caixa está inserida (esta possui um
peso na Terra e outro em Marte). Eis o porquê de propriedades extrínsecas
serem também chamadas de propriedades relacionais.
Pois bem, essencialistas relacionais defendem que o essencialismo
tradicional cai por terra, por propor que as propriedades essenciais que
determinam o pertencimento a uma espécie sejam intrínsecas (e.g.,
propriedades genéticas ou morfológicas). Eis que surgem todas aquelas
dificuldades anteriormente elencadas, que acabam por minar o essencialismo
tradicional. Contudo essas dificuldades não se levantam, desde que tais
propriedades essenciais sejam relacionais. Simplesmente não há nenhuma
propriedade intrínseca que seja exclusivamente compartilhada por todos os
membros de uma espécie, mas há uma propriedade relacional.
O essencialismo relacional define espécie em termos de linhagem
evolutiva. A ideia é que um organismo pertence a uma dada espécie devido a
seus genitores pertencerem a esta espécie. A descendência é a propriedade em
virtude da qual o organismo pertence a esta ou aquela espécie. Uma vez que a
descendência é determinada pela linhagem evolutiva da qual o organismo faz
parte, segue-se que a descendência é umapropriedade histórica e, portanto,
relacional. A essência da espécie nada mais é que a sua posição na árvore
evolutiva. As relações evolutivas do organismo são necessárias e suficientes
para este pertencer à espécie que efetivamente pertence. Por exemplo,
444
Aristóteles é um Homo sapiens não em virtude de qualquer propriedade
morfológica ou genética que ele possa vir a ter, mas por seus pais serem Homo
sapiens, seus avós serem Homo sapiens,etc. Em suma, por Aristóteles pertencer
à linhagem evolutiva dos Homo sapiens. Segundo Paul Griffiths, nada que não
tenha a origem histórica comum dos membros de uma espécie pode pertencer à
espécie.107 O essencialismo relacional defende que é esta propriedade histórica
que explica os traços frequentemente atribuídos a cada espécie, como
morfologia, comportamento, genótipo etc. Contudo, tais traços não são
propriedades essenciais, posto que não são necessários e suficientes para o
organismo ser desta ou daquela espécie. Apenas a origem histórica é essencial.
Poderia o essencialismo relacional finalmente solucionar o problema do
status ontológico? Um dos problemas que ele enfrenta é justamente o seu status
enquanto uma teoria essencialista das espécies: poderiam propriedades
históricas relacionais serem propriedades genuinamente essenciais? Ou apenas
propriedades intrínsecas poderiam ser genuinamente essenciais? (GODFREY-
SMITH, 2014, p. 112-3). É inegável que a concepção de essencialidade se aplica
mais naturalmente às propriedades intrínsecas, afinal essencial é aquilo em
virtude do qual o objeto é aquilo que ele é. Não é a toa que tradicionalmente as
propriedades essenciais foram vistas como intrínsecas. Por exemplo,
historicamente essências foram vistas como propriedades que se manifestam
nas características superficiais dos objetos que as possuem. A natureza interna
de um objeto pode ser vista como se expressando na maneira como o objeto se
comporta (e.g., devido à sua constituição interna, o dióxido de carbono se
apresenta no estado gasoso quando em temperatura ambiente). Mas não está
claro que propriedades extrínsecas possam assim se expressar no
comportamento do objeto. A objeção então para o essencialismo relacional é que
propriedades históricas relacionais como pertencer a uma linhagem evolutiva
não podem ser propriedades essenciais do organismo, justamente por serem
extrínsecas ao organismo. Segundo Godfrey-Smith, “usar a palavra ‘essência’
107“nada que não compartilhe a origem histórica do tipo pode ser um membro deste tipo.
Embora Lilith pudesse não ter sido um gato doméstico, como um gato doméstico, ela é
necessariamente um membro do nexo genealógico entre o evento de especiação no qual
este táxon se originou e o evento de especiação ou extinção na qual ele irá deixar de
existir.” (GRIFFITHS, 1999, p. 219).
445
para propriedades extrínsecas é agarrar-se a uma palavra carregada, quando
muito de seu significado original foi retirado” (GODFREY-SMITH, 2014, p. 113).
O essencialismo relacional também foi alvo de várias outras objeções,
incluindo aquelas advindas de seu próprio campo essencialista (DEVITT, 2008).
Contudo está para além do escopo desta introdução avaliá-las. Concluo apenas
sublinhando que o essencialismo biológico, nas suas mais diversas versões, é,
ainda hoje, uma das principais posições no debate quanto ao status ontológico
das espécies. A notícia sobre a sua morte foi bastante exagerada, como diria
Mark Twain.
5. Conclusão
Questões de revisão
446
Questões de discussão
Sugestões de leitura
Evolução
447
Função
Espécie
Referências
452
9
Filosofia da Linguagem
Sagid Salles
1. Introdução
1. Aristóteles é sábio.
108Uma razão que pode levar alguém a pensar que nomes ficcionais correspondem a
algo é o paradoxo das existenciais negativas. Inspirados por Meinong (1904), muitos
tentam resolver este paradoxo, através da postulação de um novo tipo de objetos, que
serviria como referente dos nomes ficcionais. Outros, inspirados na teoria das descrições
de Russell (1905), ou na teoria do faz de conta desenvolvida por Kendall Walton (1990),
acreditam poder resolver o problema sem a postulação de um novo tipo de objetos. Para
uma discussão deste paradoxo, com foco no último tipo de solução, veja meu Salles
(2015).
455
mundo. Queremos saber que tipo de mecanismo é este e como exatamente ele
funciona. Este problema é mais restrito à filosofia da linguagem, e menos
dependente de discussões metafísicas, do que o anterior.
Em acordo com uma distinção similar feita por Robert Stalnaker (1997, p.
535), podemos classificar estes dois tipos de problemas respectivamente como o
problema descritivo e o problema fundacional da referência. Uma teoria da
referência tem como objetivo resolver estes problemas. Talvez porque o segundo
esteja mais intimamente relacionado à filosofia da linguagem, a expressão “teoria
da referência” é frequentemente restrita a ele. Na ausência de qualquer
indicação para o contrário, é assim que entenderei o termo daqui por diante.
1. Aristóteles é sábio.
2. Isto é uma cadeira. [Apontando para uma cadeira específica].
3. Aqui é Ouro Preto.
109 Para uma discussão interessante, veja Strawson (1959, seção 6.1)
457
O nome “Aristóteles”, em (4), não é usado sob a restrição da condição
de no máximo um. Ao contrário, ele é usado como um termo geral. Uma solução
provisória para o problema seria falar de expressões de nossa linguagem comum
sendo usadas como termos singulares e como termos gerais. Strawson (1952, p.
145) corretamente sugere que a distinção entre termos singulares e termos
gerais pode ser colocada em termos de uma distinção entre usos de palavras,
entre as diferentes funções para as quais palavras podem ser usadas. Tome
apenas aquelas expressões que pretensamente envolvem uma conexão especial
com o mundo, e assuma que somente os termos singulares e gerais fazem parte
daquele grupo. Quando uma delas é usada para selecionar um e no máximo um
objeto, então é usada como um termo singular; quando é usada sem esta
restrição, é usada como um termo geral. Isto ainda nos permitiria dizer que
nomes próprios e adjetivos são respectivamente termos singulares e gerais, mas
apenas no sentido de que eles são geralmente usados como tais.
Embora esta solução provisória nos permita caminhar com alguma
segurança, ela não é completamente satisfatória. Talvez o principal problema
aqui diga respeito ao caso das descrições definidas. Descrições definidas são
expressões da forma “o/a F”, como “o autor da República”, “a rainha da Inglaterra”
etc. Tal como cotidianamente usadas, as descrições satisfazem a condição de no
máximo um. Mas muitos filósofos pensam que isto não basta para dizermos que
elas são (ou estão sendo usadas como) termos singulares (nos contextos
relevantes). Geralmente, estes filósofos estão munidos de definições mais
precisas e rigorosas dos termos singulares e gerais. Estas definições podem
envolver outros aspectos que não a condição de no máximo um. Pode-se, por
exemplo, delimitar as categorias em termos do modo como contribuem para o
significado ou para as condições de verdade das frases completas que os
contêm, ou então em termos do papel inferencial que têm em certos contextos
de uso. Sobre a primeira estratégia, veja Evans (1982, sec. 2.3) e Sainsbury
(2006); sobre a segunda, veja Imaguire (2007).
Sem entrar em maiores detalhes sobre a distinção, há outro grupo de
expressões que parece se conectar com o mundo de forma especial. Considere
os seguintes exemplos.
i. O que faz com que um termo singular corresponda ao objeto que ele
seleciona?
ii. O que faz com que um termo geral corresponda aos objetos aos
quais ele corresponde?
4. Termos singulares
1. Aristóteles é sábio.
7. Konokaieve blu blu.
461
Ao contrário de (1), (7) é apenas uma sequência aleatória de símbolos
que nada significam. Isto ressalta dois tipos de problema. O primeiro équal o
significado de uma expressão linguística, seja ela uma frase completa ou alguma
expressão contida na frase (como um termo singular ou um termo geral).
Conforme veremos, a tarefa de determinar o significado de uma expressão é
frequentemente complicada. O segundo é em virtude de quais fatos acerca de
nós ou da nossa prática linguística as expressões têm o significado que elas têm.
Obviamente, expressões não possuem seu significado em virtude do mero acaso.
Tem de haver um conjunto de fatos em virtude dos quais (1) tem significado,
enquanto (7) não; e em virtude dos quais (1) significa exatamente o que significa,
ao invés de qualquer outra coisa. Filósofos estão interessados em descobrir
quais são estes fatos. Em acordo, uma vez mais, com uma distinção similar feita
por Stalnaker (1997, p. 535), podemos classificar estes dois tipos de problemas
respectivamente como o problema descritivo e o problema fundacional do
significado. Uma teoria do significado tem como objetivo resolver estes
problemas.
No restante deste artigo, me concentro no problema descritivo do
significado. Como veremos, há relações interessantes entre as respostas a este
problema e as respostas ao problema fundacional da referência. É importante
notar que, a despeito de ser ignorado aqui, o problema fundacional do significado
têm recebido ampla atenção dos filósofos contemporâneo e, atualmente, ocupa
posição central na filosofia da linguagem. Uma instigante apresentação
introdutória do tema pode ser encontrada em Lycan (2000).
6. Composicionalidade
8. Marcos é sábio.
462
1. Aristóteles é sábio.
9. Aristóteles é barbudo.
(14) e (15) não apenas são compostas das mesmas expressões, estas
expressões também significam a mesma coisa em cada caso. Ainda assim, elas
possuem significados diferentes. O problema agora reside no modo como as
463
expressões estão organizadas, na estrutura das frases. Embora as duas frases
acima contenham as mesmas expressões com os mesmos significados, elas são
estruturadas de modo diferente. Como sabemos, faz toda diferença neste caso
se “João” ocorre antes ou depois de “Maria”. Moral da história: o significado de
uma frase parece depender pelo menos do significado de suas expressões
componentes e de sua estrutura. Daí o princípio da composicionalidade, que
afirma que o significado de uma frase é determinado pelo significado de suas
partes e pelo modo como estas estão estruturadas. Filósofos frequentemente
falam do significado de uma frase como a proposição ou o Pensamento
expressado por ela. Neste contexto, podemos dizer que o princípio da
composicionalidade afirma que a proposição ou Pensamento expressado por
uma frase é determinado pelo significado de suas partes e por sua estrutura.
Além de ser muito intuitivo, o princípio da composicionalidade tem uma
importância especial em discussões sobre o conceito de compreensãolinguística.
Em particular, muitos acreditam que este princípio explica a nossa incrível
capacidade de compreender frases novas, com as quais nunca tivemos contato.
Estou certo de que será a primeira vez que o leitor se depara com a seguinte
frase: Em 2014, marcianos verdes interferiram na concentração dos jogadores
da seleção brasileira e fizeram com que a última perdesse de 7 x 1 para a
Alemanha, em pleno Mineirão! A despeito de ser seu primeiro contato com esta
frase, imagino que não tenha tido qualquer dificuldade em compreendê-la.
Grosso modo, isto ocorre porque você conhece o significado de cada expressão
componente, assim como as regras que regem suas combinações. Faça o teste
por si mesmo: substitua alguma expressão da frase acima por uma expressão
cujo significado lhe seja estranho, ou embaralhe as expressões de forma a
resultar em uma estrutura desconhecida. Em seguida, pergunte-se: sou capaz de
entender perfeitamente a frase resultante? A resposta será “não”.
Razões deste tipo fazem com que o princípio da composicionalidade
seja bastante popular entre filósofos da linguagem – o que não significa que seja
uma unanimidade.110 Neste contexto, não é surpreendente que muitos filósofos
pensem que o significado de uma expressão subfrásica deve ser entendido em
termos do modo como ela contribui para o significado das frases completas que
filosofia da linguagem. Um artigo iluminante sobre o tema é Bach (1997). Veja também
Travis (1997).
468
o referente de uma expressão é pelo menos parcialmente determinado pelo
significado da mesma. Esta é a tese da referência indireta. Aqueles que recusam
isso defendem a tese da referência direta. Neste sentido, a última afirma que
seja qual for o meio pelo qual o referente de uma expressão é determinado, o
significado não desempenha qualquer papel nesta determinação. Por outras
palavras, dizer que uma expressão se refere indiretamente a algo é dizer que
sua referência é de algum modo mediada por seu significado, e dizer que uma
expressão se refere diretamente é negar que haja tal mediação.
Frege pensava que a distinção entre significado e referente se aplicava
não apenas a expressões subfrásicas, mas também a frases completas. Assim,
uma frase pode ter tanto um significado quanto um referente. O significado de
uma frase é, como dito, o Pensamento ou proposição expressa por ela. O seu
referente seria seu valor de verdade: o Verdadeiro ou o Falso. Também neste
caso, o referente seria pelo menos parcialmente determinado pelo significado. A
tentativa de Frege de aplicar a distinção também às frases é controversa, e
faremos melhor em deixá-la de lado.114
Uma vez que as teses da referência direta e indireta nos informam algo
sobre como o referente de uma expressão linguística é determinado, elas dizem
respeito ao problema fundacional da referência. Como veremos, no entanto, esta
discussão está intimamente relacionada ao problema descritivo do significado.
Isso ficará mais claro a partir da próxima seção, quando começo a aplicar os
conceitos discutidos até aqui a uma discussão particular.
114Para uma breve porém clara apresentação da semântica fregeana veja Kemp (2013,
cap. 2).
469
referente seria, neste caso, equivalente a dizer o referente determina a si mesmo;
e isto é claramente insatisfatório. Por esta razão, o referencialismo implica a
referência direta. Ou seja, trata-se de uma teoria (descritiva) do significado que
implica a rejeição da teoria da referência indireta, que é parte de uma teoria
(fundacional) da referência. Temos aqui um exemplo de como o problema
descritivo do significado e o problema fundacional da referência se entrelaçam.
Infelizmente, o referencialismo tem um pequeno problema: ele é
obviamente falso. Afinal, já vimos que nem todas as expressões dotadas de
significado têm a função de introduzir referentes no discurso. A expressão “afinal”,
que inicia a frase anterior, é um exemplo disto. Outros exemplos foram dados na
segunda seção deste artigo. Não é por mero acidente que o referencialismo não
desfruta de qualquer popularidade entre filósofos da linguagem.
As coisas ficam melhores quando abandonamos uma interpretação
imperialista do referencialismo e o restringimos a categorias específicas de
expressões. Se o referencialismo não parece correto com respeito à linguagem
em geral, ele é bem plausível quando aplicado especificamente aos termos
singulares, ou talvez a certa classe de termos singulares. Nomes próprios, por
exemplo, de fato parecem meras etiquetas cuja única função é introduzir um
objeto no discurso. A única função de “Aristóteles” em “Aristóteles é sábio” é
introduzir o próprio Aristóteles no discurso, para que então possamos lhe atribuir
a propriedade de ser sábio. Podemos exprimir isto dizendo que nomes
simplesmente não possuem qualquer significado (HAACK, 1978, p. 94). Dado
que nomes não possuem significado (seu significado é apenas seu referente), a
relação de referência não pode ser mediada pelo significado do nome. A
referência direta aparece uma vez mais como consequência.
A ideia de que o significado dos termos singulares, em particular dos
nomes próprios, é apenas seu referente é muito popular entre filósofos. Mas não
está isenta de problemas...
470
16. Héspero é Héspero.
17. Héspero é Eósforo.
115Estes contextos – em que a substituição de uma expressão por outra com o mesmo
referente não altera o valor de verdade da frase completa – são chamados de “contextos
referencialmente transparentes”. Há uma classe especial de contextos, chamados
“contextos referencialmente opacos” em que a substituição de uma expressão por outra
com o mesmo referente pode sim alterar o valor de verdade da frase completa. Não levo
em conta este último tipo de contexto aqui. Para uma apresentação introdutória e muito
clara da crítica de Frege ao referencialismo sobre os nomes próprios, que leva em conta
os contextos referencialmente opacos, veja Juliana Faccio Lima (2016). Para uma
discussão crítica dos casos de opacidade referencial, veja João Branquinho (2003).
116Digo “parece” porque isto é por vezes colocado em causa. Evans (1982), por exemplo,
rejeita que Frege tenha sequer pretendido acomodar a possibilidade de sentido sem
referente. Em meu Salles (2019), aponto pelo menos uma dificuldade para a
interpretação de Evans.
472
determina seu referente? Ainda precisamos dizer algo sobre o mecanismo
envolvido na determinação do referente. Esta é uma instância do problema
fundacional da referência.
473
formal. 117 Com isto podemos finalmente explicar a referência dos nomes. O
referente de um nome será justamente a denotação da descrição associada a
ele. Se a descrição que associo ao nome “Aristóteles” é “o fundador da lógica
formal”, então o referente deste nome, como usado por mim, será o único
indivíduo a ter fundado a lógica formal. Se não existir alguém que fundou a lógica
formal, ou existir mais de uma pessoa que o tenha feito, então falho em me
referir a algo pelo nome. De um modo mais geral, o referente de um nome N
será sempre a denotação de uma descrição associada “o F”. E o referente de
uma descrição “o F” é o único objeto (se existir algum) a possuir a propriedade F.
O descritivismo clássico é elegante por muitas razões. Para começo de
conversa, ele nos permite explicar as diferenças entre (16) e (17) acima. Como
esperado, o diagnóstico seria que as diferenças se devem ao fato de os nomes
relevantes serem associados a descrições diferentes e, portanto, terem
significados diferentes. Por exemplo, “Héspero” pode ser associado à descrição
“a estrela vespertina”, enquanto “Eósforo” é associado à descrição “a estrela
matutina”. Uma vez que estas descrições têm significados distintos, os nomes
“Héspero” e “Eósforo” também têm significados distintos. Consequentemente,
(16) e (17) – que seriam respectivamente equivalentes a “a estrela vespertina é a
estrela vespertina” e “a estrela vespertina é a estrela matutina” – exprimem
proposições diferentes. Isso se acomoda ao fato de que apenas (16) é uma
identidade trivial, e de que (16) e (17) têm valores cognitivos diferentes. Além
disto, o descritivismo clássico parece congruente com nossas práticas de adquirir
e de ensinar nomes. No mínimo, uma boa forma de ensinar alguém a usar um
nome é introduzi-lo juntamente com uma descrição definida. Do mesmo modo,
no mínimo, uma boa forma de aprender a usar um nome é recebê-lo juntamente
com uma descrição definida. Por exemplo, quando digo a você que Carmensiva
é a minha mãe, lhe ensino a usar o nome “Carmensiva” para se referir a minha
mãe, e você aprende a usá-lo para se referir a ela.
Todavia, mesmo que aceitemos a teoria das descrições de Russell, não
é de todo claro que o significado e a referência dos nomes possam ser
explicados em termos dela. No que segue, considero brevemente dois
argumentos importantes contra o descritivismo clássico. O argumento modal, de
117Uma breve introdução à teoria das descrições de Russell é meu Salles (2010). Para
uma introdução muito mais completa veja Neale (1990).
474
Saul Kripke, coloca em causa a solução para o problema descritivo do
significado dos nomes; enquanto o argumento semântico, de Kripke e Keith
Donnellan, coloca em causa a solução para o problema fundacional da
referência.118
120Existem tipos diferentes de designadores rígidos (BROCK, 2004, p. 283), mas não vou
entrar nestas distinções aqui.
121 O argumento modal talvez seja o mais discutido nos últimos anos, e foram
desenvolvidas pelo menos duas versões novas do descritivismo para lidar com este
argumento: o descritivismo de escopo amplo (SOSA, 2001) e o descritivismo rigidificado
(NELSON, 2002, CID, 2010). Estas versões de descritivismo são criticadas em Soames
(1998) e Branquinho (2001).
478
da lógica formal. Por isto, podemos dizer que João sabe que o referente de
“Aristóteles” é o fundador da lógica formal. Isto indica que a referência por nomes
envolve um forte requisito epistêmico. O requisito pode ser colocado como segue:
um falante S tem sucesso em se referir a um objeto x através de um nome N
somente se sabe que o referente de N é o único a possuir uma determinada
propriedade. O argumento semântico coloca em causa este requisito epistêmico.
Não é muito difícil pensar em exemplos de falantes que (i) são
referencialmente bem-sucedidos através de um nome próprio, mas (ii) não
sabem que o referente do nome é o único a possuir certa propriedade. Suponha
que Maria nunca tenha ouvido falar de Aristóteles, e que um professor lhe conte
que Aristóteles é o mestre de Sócrates. Uma vez que a única descrição que
Maria associa ao nome é falsa de Aristóteles, ela não tem o tipo de
conhecimento exigido por descritivistas. Ainda assim, parece-nos que Maria é
capaz de se referir a Aristóteles por meio de “Aristóteles”. Quando ela diz
“Aristóteles é o mestre de Sócrates”, está a dizer uma falsidade sobre Aristóteles
e, portanto, é bem-sucedida em seu ato de referência. Exemplos deste tipo
podem ser facilmente multiplicados (KRIPKE, 1972/80, p. 95; DONNELLAN,
1972). Resultado: o sucesso da referência por um nome não depende do tipo de
conhecimento exigido pelos descritivistas. A solução descritivista do problema
fundacional da referência dos nomes não funciona.122
Exemplos como este indicam que uma solução para o problema
fundacional da referência dos nomes deveria acomodar o fato de que falantes
significativamente ignorantes sobre o objeto nomeado podem, ainda assim, ser
referencialmente bem-sucedidos através do nome. Kripke, um dos autores do
argumento semântico, nos apresentou um esboço de tal solução. De acordo com
este esboço, a existência de um elo causal apropriado entre o usuário do nome e
o objeto referido é uma condição suficiente para o sucesso da referência. A ideia
é bem simples. Há muitos séculos, um menino foi batizado de “Aristóteles” por
pessoas que estavam em contato com ele. Estas pessoas então difundiram o
nome para outras, que difundiram para outras, e assim sucessivamente até nos
alcançar. A sugestão de Kripke é que este processo de difusão do nome deve
ser interpretado como uma cadeia causal que remete àquele indivíduo batizado:
123Como esperado, a teoria causal também encontra seus objetores. O artigo clássico
aqui é Evans (1973). Objeções interessantes à versão mais recente de Bianchi podem
ser encontradas em Jessica Pepp (2018). Peter Unger (1983) é uma fonte instigante de
objeções à tentativa de aplicar a teoria causal ao problema fundacional da referência dos
termos gerais.
480
um consenso sobre qual o melhor caminho, e referencialismo, descritivismo e
teoria causal aparecem no debate contemporâneo em versões sofisticadas como
opções genuínas de solução para os problemas relevantes. Acessar os detalhes
deste debate está além do objetivo deste texto, e me dou por satisfeito se o que
foi apresentado aqui servir como uma amostra da discussão filosófica
envolvendo os conceitos de significado e referência.
Sugestão de leitura
485
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489
10
Filosofia da Mente
Samuel C. Bellini-Leite
2. Propostas Anti-Mentalistas
125 Apalavra “padrões” está em itálico para enfatizar que a ontologia da mente nessa
proposta não é elétrica ou química, a mente é compreendida como padrões de atividade
de processos físicos.
507
chinês com base em regras procedimentais e uma lista de instruções que pode
acessar. A pessoa recebe letras em chinês, segue as instruções de modificação
e passa a resposta adiante. Searle (1980) argumenta que essa pessoa não
saberia falar chinês, ela apenas estaria aplicando regras de uma forma cega,
assim como qualquer processador de informação. Dessa forma, ele desenvolve
o argumento de que processadores de informação não possuem acesso ao
significado do conteúdo que processam, e como seres humanos possuem tal
acesso, eles não poderiam ser processadores de informação.
Apesar da crítica do quarto chinês ser repetida diversas vezes na
história da filosofia da mente, assim como na cultura popular, interessantemente,
é pouco discutido como Daniel Dennett (1980; 1991b) apresenta respostas
bastante convincentes a esse problema. Dennett explica como a metáfora do
quarto chinês está equivocada em colocar o homem responsável pelas
manipulações como o agente que sabe o significado da linguagem, isso faria da
teoria do processamento de informação uma proposta homuncular no sentido
ruim. Na realidade, o significado da linguagem emergiria, para a metáfora estar
correta, de diversos quartos desses em interação (DENNETT, 1980), cada um
com seu funcionamento específico (sistemas cognitivos variados), todos
interligados e mapeados pela evolução, por seleção natural, para reagir de certa
forma e significar coisas especificas (DENNETT, 1991b). Apesar de funcionar na
base da sintaxe, agentes cognitivos (máquinas treinadas ou cérebros)
transformam um certo símbolo em outro apenas quando estão em certa relação
semântica (FODOR, 1985; mas veja FODOR e PYLYSHYN, 2015).
Há, entretanto, um problema similar ao problema do significado, como
repetido por Searle, que afeta de forma mais séria a hipótese do processamento
de informação, o problema do frame, ou o problema da relevância (DREYFUS,
1972; PYLYSHYN, 1987). Este problema se refere à dificuldade encontrada por
um sistema que trabalha com expressões representando o mundo para agir de
forma fluida. As tentativas iniciais da inteligência artificial representacionista
falharam,pois os robôs não conseguiam agir, por terem de considerar e catalogar
inúmeras mudanças irrelevantes que acontecem no mundo. Este problema
atualmente vem sendo tratado através de propostas incorporadas (CLARK, 1997;
BROENS e GONZALEZ, 2006.) e através de representações probabilísticas e
preditivas (CLARK, 2016; BELLINI-LEITE, 2018). Ainda, em termos técnicos,
houve avanço considerável, que relativizou o problema, por exemplo, com o
508
desenvolvimento de machine learning, especialmente o deep learning, que
fazem máquinas realizarem atualmente funcionalidades que antes eram
pensadas serem impossíveis para máquinas em geral, por causa do problema do
frame. Isso não significa que o problema tenha sido superado, mas não se trata
mais de um problema fatal para a hipótese do processamento de informação,
considerando que mudanças de perspectivas filosóficas e tecnológicas têm
avançado em sua solução.
Em contrapartida, um problema fundamental não abarcado pela
hipótese de processamento de informação é o problema dos sentimentos e da
experiência. David Chalmers (1995) é um filósofo contemporâneo que aceita o
mentalismo de processamento de informação, mas acredita que a mente, mais
especificamente a consciência, não está completamente abarcada por essa tese.
Enquanto a mente compreende estados inconscientes, como o plano motor, que
permite que andemos de bicicleta sem prestar atenção nos detalhes do pedal, os
quais poderiam ser explicados por processamento de informação, há também
uma parte da mente, a consciência, que possui estados qualitativos, uma
experiência de estar consciente (NAGEL, 1974).
O problema da experiência como elaborado por Chalmers (1995) diz
que existem dois problemas da consciência, o problema fácil e o problema difícil.
O problema fácil da consciência é aquele que pode ser respondido em termos de
comportamento, fisiologia e teorias da cognição. Já o problema difícil, o
problema da experiência, está em explicar como e por qual motivo uma
experiência ocorre em conjunto com o comportamento e o processamento de
informação. Da forma como a mente é descrita em termos científicos, por
exemplo, pela neurociência cognitiva, não haveria motivo algum para a cognição
vir acompanhada de experiência como dores, cores, sentimentos dentre outras.
O problema pode ainda ser especificado em dois: (1) qual é a natureza da
experiência (NAGEL, 1974); isto seria algo como encontrar uma forma de
compreender onde o mundo fenomenológico se encontra em relação ao mundo
objetivo; e, (2) ao explicar a natureza da experiência, deve-se ter também uma
história sobre como essa experiência emerge do funcionamento cerebral, ou em
geral, qual é a ligação da experiência com o comportamento e processamento de
informação em seres vivos.
Chalmers (1996) tentou resolver o problema da experiência a colocando
como algo fundamental na física, como são matéria e espaço, e também
509
cogitando o pampsiquismo, a tese de que todos os objetos possuem algum tipo
de mentalidade. Entretanto, Chalmers (1995, 1996) foi reconhecido mais pela
forma de caracterizar o problema do que pela resposta, pois sua reposta não
trouxe consenso algum para a comunidade acadêmica.
Na realidade, existem inúmeras tentativas de resolver o problema da
experiência como colocado por Chalmers (1995), aceitando o mentalismo e
também acreditando haver a necessidade de maiores explicações sobre a
natureza da experiência consciente. Podemos mencionar, por exemplo, o
dualismo de propriedades e o monismo não redutivo com suas diferentes formas
(veja Maslin, 2007), o monismo reflexivo (VELMANS, 2008), o monismo de triplo-
aspecto (PEREIRA JR., 2015) e o naturalismo biológico (SEARLE, 1990).
Entretanto, ainda que essas propostas se mostrem preocupadas em
explicar como pode haver diferentes níveis e como eles interagem, enquanto não
houver uma explicação aceita de qual seria a natureza da experiência consciente,
que não simplesmente redescreva a fenomenologia (BELLINI-LEITE, 2015),
essas parecem meramente variações linguísticas; termos diferentes para ideias
muito parecidas – e, enquanto proliferarem teorias, nenhuma será
suficientemente consensual.
A verdade é que alguma explicação extra seria necessária para o
mentalismo de processamento de informação resolver os problemas de
Chalmers. Pense o caso dos sentimentos e das emoções. Não parece nem um
pouco claro que robôs, que processam informação, terão sentimentos ou
emoções, a não ser que adotemos posições behavioristas, eliminativistas ou
ilusionistas sobre esses estados. Se aceitarmos a experiência como real, e a
descrição fenomenológica como algo que ainda depende de mais explicações
metafísicas, como acredita Chalmers (1996), então, intuitivamente, não temos
motivo algum para acreditar que nossos computadores, se ficarem mais
complexos, irão começar a ter sentimentos ou emoções. Esses aspectos
parecem não serem apenas de processamento de informação, mas estarem
ligados ao nosso corpo biológico, como argumenta Searle (1990) corretamente.
Intuitivamente parece haver algo de especial na biologia, que gera estados de
experiencia em diversos seres vivos, o que não é o caso na robótica. Não parece
ser plausível dizer que uma câmera de supermercado consegue ver, da mesma
forma que um cachorro, nem mesmo se essa câmera estiver ligada a um sistema
de inteligência artificial que processa a imagem com facilidade, pois, ainda assim
510
não haveria para a câmera a experiência de enxergar.
Logo, apesar de o mentalismo de processamento de informação ser a
corrente melhor aceita na neurociência cognitiva (GAZZANIGA, IVRY e
MANGUN, 2006) e estar ainda muito forte na filosofia da mente (DAVENPORT,
2012; COLTHEART, 2012), esta hipótese parece ainda em desenvolvimento. Ela
ainda se desenvolve em relação à natureza das representações mentais,
enquanto paralelas (CLARK, 1989), probabilísticas e preditivas (CLARK, 2016),
incorporadas (CLARK, 1997), estendidas (CLARK e CHALMERS, 1998;
COELHO, 2017), simbólicas (FODOR e PYLYSHYN 1988), além das propostas
enativistas (CARVALHO, 2018; DI PAOLO e THOMPSON, 2014), na esperança
de conseguir resolver os problema do significado (FODOR E PYLYSHYN, 2015),
relevância (PHYLYSHYN, 1987) e abdução (FODOR, 2001; VITTI-RODRIGUES,
MATULOVIC e GONZALEZ, 2017), e precisa de acréscimos à teoria que deem
conta da experiência consciente (CHALMERS, 2004), para que não haja a
necessidade de novas propostas eliminativistas ou behavioristas para esconder
a nossa lacuna de conhecimento.
4. Conclusão
Questões de Revisão
Questões de Discussão
Sugestão de leitura
Referências
519
11
Filosofia Política127
Everton M. P. Maciel
O presente texto foi elaborado tendo em mente uma metodologia do tipo learning
127
based on problems para a filosofia. Sem as sugestões valiosas do colega Tiaraju Molina
Andreazza, padeceria em muitos outros problemas.
520
1.1. Platão
1.2. Aristóteles
1.3. Maquiavel
1.4. Montesquieu
Apenas o pacto efetuado por medo obriga as partes (idem, 129). Esse
ponto é fundamental para compreender que a condição de funcionamento da
534
teoria contratualista independe da existência real de um período histórico no qual
os homens tenham de fato contratado. Trata-se, outrossim, da condição natural
da existência humana que precisa ser compreendida a partir do direito natural e
das leis da natureza.
O direito natural (jusnaturale) é aquele que confere a qualquer indivíduo
o uso de sua liberdade da forma que bem lhe aprouver. Esse direito inclui tudo
aquilo que estiver à sua disposição para preservar a sua própria natureza. Já as
leis naturais (lexnaturale) incluem a razão, uma postura que impede cada um de
fazer aquilo que lhe seja destrutivo à própria vida ou remova os meios de
preservá-la. O ponto fundamental é que, se levarmos esses conceitos
importantes do vocabulário hobbesiano em conta, “todo homem tem direito a
tudo”. A primeira lei da natureza, guiada pela razão, é a de fazer tudo aquilo que
for possível para buscar a paz e defender-se por todos os meios possíveis.
Renunciar ao direito de tudo possuir torna-se a segunda lei imperativa da
natureza, pois, sem isso, mantém-se o “estado guerra de todos contra todos”. O
homem do contrato social é aquele que, fazendo uso da razão, reconhece que
direito é algo que possuímos, enquanto lei é algo que obedecemos. Para Hobbes,
ninguém dá a outro o direito a qualquer coisa, apenas estamos em condições de
renunciar a direitos. É dessa renúncia de uma liberdade irrestrita que nasce o
contrato social.
O homem abre mão da sua liberdade natural de tudo fazer, disponível
em estado de natureza. Esse excedente da liberdade de cada um dos
contratantes é depositado no Leviatã. É importantíssimo salientar que Hobbes
não espera que o direito natural desapareça com o estabelecimento do pacto;
igualmente, as leis da natureza não perdem seu valor imperativo. A ideia de que
podemos fazer qualquer coisa que esteja a nossa disposição para evitar a
própria destruição, de que não podemos ser obrigados a deixar de resistir em
caso de atentado contra nós mesmos, é fundamental. O pacto social de Hobbes
não envolve um “antes ou depois” do contrato, estado de natureza como
contraposto ao estado civil, mas é algo permanente como regra tácita no âmago
de qualquer constituição formada em torno do governo.
535
mesmo, no entanto, existem lugares em que se
vive desse modo hoje em dia; pois os povos
selvagens de muitas partes da América não têm
nenhum governo, exceto o governo de pequenas
Famílias, cuja concórdia depende da lascívia
natural [...]
Mesmo que nunca tenha existido tal tempo em
que os indivíduos estivessem em estado de
guerra de todos contra todos, mesmo assim os
Reis e as pessoas que possuem Autoridade
soberana relacionam-se dessa forma o tempo
todo (idem, p.199).
538
mundo em abstrato e concreto. No campo da realidade abstrata, há liberdade e
igualdade, entre os homens e Deus; na concretização do ambiente político, há
espaço para liberdades políticas e acordos.
O contratualismo de Locke não é apenas uma hipótese de trabalho,
porque carrega consigo um elemento materialista concreto, com um surgimento
conceitual e material circunscrito ao tempo histórico: a propriedade privada, seu
surgimento e manutenção. Por outro lado, Locke apela para uma lei da natureza
hobbesiana e reposiciona o conceito de propriedade na própria vida do
contratante. Essa característica dá a ideia material de propriedade uma
perspectiva abstrata, indivisível, passível de ser operada apenas em uma teoria
política com essas características.
541
ser mais abundante em ferro e mais fértil em trigo
(idem, 317s).
542
ou não dentro de diferentes comunidades políticas.
548
Questões para revisão
Referências
551
12
Filosofia da Economia
Ramiro de Ávila Peres
1. Introdução
552
levar ao bem-estar coletivo, e que o melhor a fazer é evitar interferências nesse
sistema – ideias associadas ao liberalismo econômico, uma teoria política e
econômica que tem por patrono Adam Smith (o primeiro economista clássico).
No entanto, mesmo economistas liberais reconhecem que há falhas de mercado
(como bens públicos e monopólios129). Voltemos a A. J. Jacobs, o qual frisa seu
agradecimento ao serviço de fornecimento de água, um “milagre moderno”: ao
longo da história, a imensa maioria das pessoas não teve acesso a água
encanada – mesmo hoje, 2 bilhões de pessoas ainda carecem de condições
sanitárias adequadas (água e esgoto), o que causa doenças que matam 829 mil
por ano (WHO, 2015). É um problema que não pode ser resolvido só por
mercados, nem por associações filantrópicas; na maior parte do mundo, é um
serviço público, geralmente fornecido ou regulado por estados – e sua ausência
decorre de falhas de governo.
Mercados e governos são instituições, e podemos desenhá-los de
formas melhores ou piores – a fim de evitar situações em que, agindo em prol do
próprio interesse, chegamos a um resultado pior para todos. Por exemplo,
nossas sociedades gastam mais com refrigerantes do que com testes para
Covid-19, e mais com esportes de inverno do que em mitigação de riscos
129 Bens públicos são bens não rivais e não excludentes (Cowen & Tabarrok, 2013, p.
345) – p. ex., você pode usufruir de ar puro sem reduzir sua disponibilidade para os
demais (rivalidade), e você não pode impedir que outros também o usem (não
legalmente). Isso impede a alocação privada desses bens e o estabelecimento de um
mercado; isso também dificulta distribuir o ônus do financiamento de tais bens: imagine
que alguém invente uma tecnologia que custa $10 para limpar o ar de nossas cidades;
se eu souber que você está disposto a pagar os $10, posso dizer que não vou pagar
nada, pegar “carona” e aproveitar o ar puro de graça.Monopólios, por sua vez, são
situações em que um único agente é o fornecedor de um serviço – seja por disposição
legal (p. ex., concessionárias de serviço público ou propriedade intelectual), ou por
condições do mercado (um monopólio “natural”, quando uma firma pode suprir todo o
mercado a um preço menor do que duas, graças a economia de escala e rede). Como o
monopolista concentra o poder no respectivo mercado, ele pode determinar os preços de
forma unilateral, e assim “extrair renda”, ganhando muito mais do que se estivesse num
mercado competitivo; mas isso pode levar a uma quantidade de vendas (e de bem-estar
total) menor – o que Cowen & Tabarrok (2013, p. 240) chamam de “peso morto” do
monopólio.
553
catastróficos globais; isso é um resultado de nossas decisões individuais sobre
gastos, mas não significa que, no geral, as pessoas valorizem mais o suprimento
de bebidas do que prevenir e mitigar pandemias. Críticos dos mercados
(principalmente em finanças) também costumam apontar sua instabilidade; p. ex.,
mercados financeiros podem ter variações abruptas, e cadeias produtivas
eficientes podem colapsar rapidamente e demorar para se recuperar –
especialmente no caso de desastres.
Por outro lado, defensores do liberalismo econômico destacam que,
conquanto mercados não solucionem problemas morais por nós, eles resolvem
questões práticas de alocação de recursos; e o correspondente desenvolvimento
econômico tem sido fundamental para a melhoria das condições de vida desde a
Revolução Industrial – e inclusive teria tido como “efeito colateral” o progresso
moral de nossas sociedades, ao tornar cada vez mais obsoletas formas
tradicionais de divisão de trabalho, exploração e conflito, sugerindo a
possibilidade de um futuro ainda melhor (Cowen, 2018).
556
Quadro 1: Um modelo de economia moderna
Uma economia moderna tem um “setor de produção”, populado por firmas.
Estas são compostas por pessoas com diferentes interesses (stakeholders), como:
a) trabalhadores com divisão de tarefas especializadas em linhas de montagem
(como operários, montadores, vendedores, contadores, etc.); b) investidores (que
financiam as atividades da firma, no presente, esperando obter lucros futuros – como
credores); c) clientes e consumidores (que pagam a firma por seus produtos e
serviços); d) gestores e executivos (uma classe especial de trabalhadores – as
pessoas que tomam as decisões em nome da firma); e) sócios e acionistas (uma
classe especial de investidores – são os “donos” da firma, que aceitam uma parcela
maior de risco e de lucro, mas em troca têm o poder de controlar a atuação dos
gestores).
Um outro setor importante é o governo / Estado. Política e juridicamente,
costumamos dividi-lo em poderes: o Judiciário (que tem a palavra final sobre a
aplicação do direito), o Legislativo (que representa a sociedade, cria leis e fiscaliza
outros poderes) e o Executivo; neste que se concentram a maioria das decisões e
atividades do governo: a taxação (financiamento das atividades do governo mediante
tributos), finanças (decisões sobre gastos e investimentos com impacto
macroeconômico, como o endividamento público, a taxa de juros, etc.), redistribuição
e seguridade social (pagamento de benefícios sociais) e prestação de serviços
públicos (como segurança, saúde pública, transporte e infra-estrutura).
Não são indivíduos, são posições – que podem ser ocupadas inclusive por
um mesmo indivíduo. Por exemplo, você pode ter empréstimos (consumidor) e
depósitos (investidor) num banco, comprar suas ações (sócio), trabalhar para ele
(trabalhador), subir na carreira e virar um executivo. Além disso, algumas firmas
podem ter divisões de trabalho bastante diferentes, como cooperativas e start-ups.
Mas, no geral, mesmo essas organizações adotam modelos mais hierarquizados à
medida que se desenvolvem, levando a um setor produtivo dominado por instituições
hierarquizadas.Assim como Estados hierarquizados, com centralização de decisões
e divisão de tarefas, teriam surgido a partir de conflitos violentos entre populações,
também o modelo de firmas hierarquizadas é selecionado pela competição numa
economia de mercado (Coase, 1960).
557
Filosofia e da Economia130. Por questões de espaço (pensa nisso como uma
lição sobre custos de oportunidade), e para não repetir temas que você viu em
outros capítulos (como em Ética e Filosofia Política), focaremos os temas a
seguir, tendo como pano de fundo assuntos associados à área de Finanças – um
setor cujo funcionamento é pouco conhecido por não-especialistas, a despeito de
sua importância para o processamento de informações e alocação de recursos
em sociedades capitalistas (Soros, 2011).
130 A começar pela própria definição de Economia – uma ciência que inclui desde a
análise teórica da tomada de decisão (como enfatizado pela literatura em teoria da firma,
teoria dos jogos, teoria da escolha social...) até o estudo da organização, produção e do
desenvolvimento em sociedade. Outras omissões importantes: discussões sobre regimes
de direitos de propriedade (incluindo propriedade intelectual, de empresas ou de bens
coletivos), agência moral corporativa (devemos tratar empresas como moralmente
responsáveis per se, ou apenas como representantes de seus donos?), distribuição e
justiça econômica, teoria dos jogos, teoria da escolha social etc.
558
3) Ética nos negócios: filósofos frequentemente denunciam a fria
amoralidade das decisões econômicas – enquanto economistas
apontam que ela decorre do mesmo mecanismo que incentiva a
inovação e preços baixos, i.e., o caráter competitivo do mercado.
Essa discussão assumiu proporções importantes em tempos
recentes, quando diferentes setores produtivos e movimentos
sociais passaram a agir em relação a problemas globais, como as
mudanças climáticas. Nesse contexto, que tipo de compromissos
éticos faz sentido exigir de empresas, além de suas obrigações
legais básicas?
3. O problema da incerteza
131O mesmo conceito pode ser estendido a apostas: se Alice acredita que um fato tem
probabilidade de 60% de ocorrer (e assim estaria disposta a apostar $60 contra $40 que
o fato ocorrerá), enquanto Bruno pensa em 20% (e apostaria $10 contra $40 que o fato
não ocorrerá), então você pode oferecer a ambos apostas que eles considerariam justas
sem que haja risco algum para você. Se o pagamento ocorrer, você receberá $40 de
Bruno, com o que pagará Alice; se ele não ocorrer, você receberá $60 de Alice, com o
que pode pagar $10 a Bruno e lucrar $50. Pessoas que trabalham com derivativos e
hedge estão à procura de negócios desse tipo.
561
mercado no longo prazo (i.e., obter lucros significativamente maiores que a
média), nem seria possível prever bolhas (pois fazê-lo implicaria “saber mais” do
que o mercado) de forma confiável.
Esse é um dos motivos por que economistas frequentemente criticam a
intervenção estatal, mediante tributos ou regulação: ela interfere com a maneira
como o mercado processa informações e desloca o equilíbrio 132 – e,
consequentemente, a maneira como mercados transmitem informações
relevantes (i.e., o “mercado sabe mais” que a autoridade central). Mas
economistas são os primeiros a reconhecer que as condições para aplicação de
teoremas de equilíbrio geral raramente estão presentes no mundo real; isso é
destacado até mesmo por teóricos do equilíbrio geral, como Kenneth Arrow e
Ronald Coase (1991, p. 436). Em especial, restrições informacionais (como a
seleção adversa, o risco moral e os limites cognitivos dos indivíduos reais)
equivalem a custos de transação que não podem ser completamente afastados
(Myerson, 2008, p. 131).
Mas note como HME tem algo de paradoxal: assumimos que o mercado
é informacionalmente eficiente justamente porque os demais agentes se dão o
trabalho de pesquisar e obter informações, que depois serão agregadas pelo
mercado, mediante suas respectivas compras e vendas – i.e., eles não tratam a
variação dos preços como aleatória; se todos os investidores agissem de acordo
com HME, então seria lucrativo para um único investidor pesquisar mais e se
antecipar ao mercado (Sorensen, 1988, p. 110). De fato, há investidores
reconhecidos por consistentemente obterem retornos superiores ao mercado
financeiro e há economistas reconhecidos por preverem bolhas (Weatherall,
2015).
Por fim, note como nosso uso do termo “incerteza” é vago e ambíguo –
significando apenas o oposto de informação. Filósofos e economistas
frequentemente distinguem a noção de risco (eventos negativos com
133Porém note que, de acordo com o teorema do júri de Condorcet (1785), numa decisão
binária coletiva por voto majoritário simples, em que cada votante tem alguma
probabilidade maior que 50% de tomar a decisão correta, a probabilidade de que a
decisão final seja correta aumenta à medida que aumentamos o número de votantes.
Afinal, cada votante adicional tem uma probabilidade maior que 50% de influenciar o
resultado final em direção à melhor resposta.
565
progressos científicos notáveis – frequentemente aproveitando insights de outras
disciplinas134. Mesmo diante do risco de “cisnes negros”, economistas têm se
saído bem em explicar fenômenos sociais e fazer previsões modestas. Como
veremos a seguir, um dos temas em que tal progresso pode ser observado é na
explicação de crises financeiras.
6. Racionalidade econômica
568
costuma levar à deflação: dada a oferta limitada de dinheiro (ou da commodity
vinculada), as pessoas podem privilegiar a função reserva de valor no lugar de
meio de troca – i.e., guardam a moeda ao invés de usá-lo; isso tende a agravar
recessões, na medida em que se refreia o consumo. Na verdade, as pessoas
podem simplesmente deixar de usar a moeda deflacionária (que se converte
numa forma de poupança) em favor de outro meio de troca – a chamada “Lei de
Gresham”, segundo a qual “dinheiro 'ruim' toma o lugar do dinheiro 'bom'”; i.e., as
pessoas vão preferir quitar dívidas e fazer pagamentos com a moeda de menor
valor e usar a de maior valor como reserva. Com uma moeda fiduciária, o
emissor pode se comprometer a manter um fluxo constante de moeda – uma
diminuta expansão monetária, para acompanhar a expansão da economia real.
Então por que o metalismo foi tão popular – e ainda apela a tantas
mentes? A resposta mais simples é que ele impõe uma limitação ao poder do
emissor (em geral, o soberano) – ao passo que a moeda-crédito implica dar
poder ao emissor, que pode financiar como quiser suas atividades,criando mais
moeda e gerando inflação (i.e., um aumento geral de preços nominais,
decorrente da perda de valor da moeda). Criar moeda não gera riqueza, apenas
a redistribui (Pikkety, 2014, p. 669); p. ex., um estado moderno poderia criar
moeda para adquirir empresas ou pagar dívidas, diminuindo o valor real de seu
passivo em moeda nacional. Os usuários da moeda teriam, então, de arcar com
preços mais altos, ou renegociar seus salários para acompanhar a inflação – o
que gera uma espiral inflacionária: todos buscam continuamente aumentar o
preço de seus próprios serviços. Isso implica, na prática, transferir riqueza dos
usuários da moeda para o emissor, de maneira análoga a um tributo 135 (a
seignorage). Por isso, é comum que economias modernas limitem a capacidade
do governo central de emitir moeda, transferindo essa função a um órgão
relativamente independente e apartado do poder político, o Banco Central.
135 Na Europa Medieval, senhores feudais que cunhavam moedas metálicas cobravam
uma taxa, a seignorage, cada vez que cunhavam novas moedas, com uma proporção
diferente de metais.
569
em sistemas de reservas fracionárias e afins, instituições financeiras também
são emissoresprivados de moeda – graças à contabilidade. Imagine que você
deposita $100 em um banco, que são registrados no sistema da instituição como
um passivo na conta de depósitos. Ao invés de deixar os $100 guardados numa
gaveta, o banco me oferece um empréstimo de $100, que eu aceito, e ele agora
registra um ativo de $100 na conta de empréstimos; mas, ao invés de sacar os
$100 em notas, eu os deixo em minha própria conta de depósitos, que posso
movimentar online. Note que, agora, nesse micro “sistema”, há $200 disponíveis
em moeda: os $100 que você tem em sua conta, e os $100 que tenho na minha
– que o banco emitiu; ou seja, ele multiplicou seus $100 iniciais, e ainda tem
$100 em seu cofre, que pode usar para oferecer crédito a outrem. Tudo isso
funciona muito bem – desde que não tentemos sacar nosso dinheiro ao mesmo
tempo.
Para influenciar a oferta de moeda, Bancos Centrais atuam sobre o
crédito bancário; uma das alternativas é limitar a multiplicação de moeda
reduzindo a capacidade de os bancos usarem depósitos para conceder crédito –
p. ex., obrigando-os a manter uma parcela dos depósitos intocada (os depósitos
compulsórios), ou a reduzir sua “alavancagem” (i.e., exigindo que aumentem a
proporção entre o capital social e seus ativos). Principalmente, quando o Banco
Central aumenta a taxa básica de juros da dívida pública, ele está
desincentivando os bancos de conceder crédito a outros agentes; quando
diminui a taxa de juros, os bancos aumentam a oferta de crédito – e, supondo
que buscam maximizar seu retorno esperado, eles privilegiariam os
investimentos mais eficientes136.
Historicamente, a frequência de crises bancárias se reduziu com a
consolidação dos respectivos bancos centrais – nos Estados Unidos, após a
consolidação do sistema do Federal Reserve (e a regulação restritiva da Lei
Glass-Steagall), durante o New Deal; e, no Reino Unido, após o pânico de 1866
136 Ou não: mesmo que um banco faça empréstimos que ficarão inadimplentes no longo
prazo, no curto prazo pode parecer um negócio lucrativo; trata-se de um exemplo de
risco moral e de conflito intertemporal – que discutiremos melhor na seção seguinte.
Mas não se assuste: seu dinheiro provavelmente está mais seguro num banco que
debaixo do colchão; além da regulação e da supervisão financeira, a maioria dos países
(inclusive o Brasil, por meio do FGC) fornece seguro para depositantes.
570
e a reforma do Banco da Inglaterra. Mas isso não impediu a crise de 2007-2008,
causada pelo estouro da bolha imobiliária americana de 2006. Ela teria sido
causada pela expansão monetária a partir de 2000 (justificada para contrapor os
efeitos negativos sobre a economia da “bolha do dot-com” e do Onze de
Setembro), ao financiamento barato por um amplo mercado não regulado (o
shadow banking) de títulos lastreados em créditos imobiliários. Além disso, a
inovação em finanças teria levado a operações cada vez mais complexas, cujos
riscos se tornaram difíceis de avaliar (MacMillan, 2014).
Os governos, junto com os Bancos Centrais, agiram de forma inédita
para resgatar empresas e bancos; apenas nos EUA, o bail-out haveria custado
US$ 700 bilhões. Isso foi duramente criticado: usar recursos dos contribuintes
para salvar bancos e investidores (que voluntariamente assumiram certos riscos)
violaria valores como igualdade e responsabilidade – mormente porque os
devedores pobres não foram socorridos (Carter, 2020, p. 483). O problema é que,
graças à alta conectividade do mercado financeiro (em especial, o mercado
interbancário), a quebra de um bancosistemicamente relevante impacta a
capacidade de outros agentes financeiros quitarem seus débitos, levando a uma
corrida bancária: quando surge a notícia de que um banco está sob risco, os
investidores correm para liquidar seus investimentos nos demais bancos, com
medo de que eles também sejam afetados – o que resulta numa profecia auto-
confirmatória, eliminando a liquidez dessas instituições (Peres, 2020). Ao invés
do concurso de beleza de Keynes, tem-se uma race to the bottom137.
A cada nova crise financeira, a influência dos Bancos Centrais aumenta,
e se retoma o debate sobre sua autonomia; lembre-se que não votamos nos
137Num exemplo de race to the bottom, os agentes devem dizer um número inteiro dentro
dum intervalo finito; o vencedor é aquele que enunciar o número mais próximo do
antecedente à média dos demais “lances” (arredondada para baixo) – o “resultado” do
jogo. P. ex., se eu disser “10”, você disser “20” e um terceiro disser “15”, ele
ganha.Agentes perfeitamente racionais sempre convergiriam para o menor número do
intervalo; todavia, em situações reais de race to the bottom, os resultados nunca
coincidem com tal solução. Ainda mais se a recompensa ao vencedor for uma função do
resultado (i.e., o número dito pelo vencedor): suponha, p. ex., que o intervalo é [0, 100] e
que a recompensa prometida seria o dobro do resultado, em dinheiro, dividido entre os
vencedores; nesse caso, o raciocínio do agente racional implicaria a resposta “0” – o que
implica premiar o vencedor com nada!
571
diretores dos Bancos Centrais – o objetivo é justamente deixá-los distantes da
política, para que possam exercer sua complexa missão macroeconômica. A
maioria de nós sequer vislumbra o complexo sistema que subjaz ao nosso uso
cotidiano do dinheiro; como poderíamos influenciar de forma eficaz essas
questões técnicas? Ainda, pressionar autoridades monetárias por meio de
representantes políticos costuma gerar desconfiança dos investidores e
instabilidade econômica no médio prazo.
Isso acarreta um problema de confiança – análogo à discussão sobre os
poderes dos juízes na interpretação da lei: os cidadãos, em nome e no interesse
de quem essa autoridade age, podem se ressentir de quão pouco são
representados por ela (que não elegeram, e que pouco parece responder a suas
expectativas). E assim como um sistema jurídico pode ser visto como uma
hierarquia de instituições e normas, um sistema financeiro pode ser visto como
uma hierarquia de instituições e sujeitos, mediada por relações econômicas – e,
nos dois casos, pode-se perguntar se os resultados e a respectiva divisão de
poder são adequados, equitativos ou justos (Pistor, 2017, p. 185-86).
138Isso não quer dizer que a firma explicitamente busca maximizar seus lucros, ao
contrário do que prega a doutrina Friedman; num mercado competitivo, as empresas
sobreviventes serão aquelas cujo comportamento adaptativo pode ser descrito como
maximizando o retorno sobre o investimento – da mesma forma que plantas não visam a
maximizar a transmissão de sua carga genética, mas, graças à seleção natural, se
comportam como se o fizessem (Alchian, 1950). Isso é relevante porque, num ambiente
de negócios onde normas de responsabilidade social são observadas, as firmas podem
ser descritas como adotando tal comportamento adaptativo.
575
deveriam considerar os interesses de outras partes interessadas, como
empregados, fornecedores e comunidades locais. Então, pode ser permitido, ou
mesmo obrigatório, considerar como as empresas se comportam do ponto de
vista social ou ambiental, quando isso: for do interesse “ético” consensual dos
sócios, ou não prejudicar a expectativa de lucro (i.e., o interesse social pode ser
um argumento de desempate da decisão negocial), ou quando afetar o
desempenho de longo prazo da firma (p. ex., se impactar o preço futuro das
ações, ou acarretar um risco de responsabilização judicial). Além disso, é
plausível que uma cultura de responsabilidade social seja correlacionada com a
observância de obrigações legais e morais básicas (Lo, 2015); i.e., se você quer
uma firma que apenas obedeça à legislação, é preciso que ela aspire a muito
mais do que gerar retorno para o sócio.
A própria ideia de que os sócios (principalmente em companhias
abertas, onde a participação social é um título de crédito com liquidez) são
proprietários da empresa, e não um tipo muito especial de investidor, é
questionável, e a descrição legal da relação entre a firma e o sócio pode variar
muito de acordo com a legislação do país. Note que há uma assimetria entre a
perspectiva de perdas e ganhos do sócio, o que pode levar a um risco moral:
como a perda possível é limitada ao capital social (ou o valor de compra da
ação), mas não há limites para a possibilidade de lucro, pode ser do interesse do
sócio que a firma opere de maneira arriscada e alavancada – transferindo risco
para os demais credores e para a sociedade em geral. Se um banco alavancado
falir porque emprestou dinheiro demais para poluidores, seus investidores,
empregados e as vítimas da poluição ficarão sem ressarcimento; mas os sócios
perderão “apenas” o capital aplicado. Neste caso, não deveria haver um princípio
para limitar essa assimetria139?
140 Note que não é óbvio descobrir quais os incentivos adequados para o problema que
você quer resolver: no séc. XIX, paleontólogos europeus pagavam às populações nativas
por pedaços de fósseis e ossos; consequentemente, quando encontravam ossos
grandes (que teriam maior valor científico), elas os quebravam em vários pedaços
menores para aumentar seus lucros (Mullainathan & Shafir, 2013, p. 15). Essa
dependência de incentivos individuais pode ser um tanto lamentável – seria mais fácil
que nos coordenássemos, se fôssemos menos egoístas. Porém, para primatas que
evoluíram resolvendo alocações de recursos mediante violência, e que hoje costumam
se sentir especiais porque compram um carro novo (ou sentem inveja porque outros o
fazem), já é um grande progresso reconhecer esses aspectos de nossa natureza e usá-
los para melhorar a vida uns dos outros. Ao invés de lamentar a escassez de boas
intenções, pode ser mais prático dirigir nosso altruísmo para projetos que efetivamente
funcionem.
578
um tratamento contra a oncocercose, prevenindo a cegueira de milhares de
pessoas em países em desenvolvimento. Se a ideia de responsabilidade social é
apenas uma estratégia para melhorar a reputação da empresa (e assim
continuar a maximizar o lucro do sócio, indiretamente), as três empresas estão
na mesma situação. Afinal, o que nos permite distinguir entre o caso de: (i)
executivos estão sendo cínicos, ao se apresentarem como socialmente
responsáveis, (ii) há uma restrição social indevida aos negócios, e (iii) existe uma
justificativa moral sólida para que a empresa (e seus gestores) aja de certa
forma141? Como podemos identificar maneiras corretas de formar uma reputação
de responsabilidade social – i.e., os casos onde a reputação é devidamente
obtida? A única forma de fazer tal distinção é levando a sério a deliberação sobre
a existência de princípios morais subjacentes; nisso, as pessoas agem como se
de fato acreditassem que estão discutindo um princípio moral (quer estejam
certas, quer erradas). Se tudo que há é “aparência e reputação”, essa discussão
não faz sentido. Mesmo que, em última instância, a resposta para essa questão
seja uma concepção convencionalista de ética nos negócios, seria preciso
identificar quais os motivos e princípios que orientam tais convenções – que
permitem que mesmo o mais cínico dos executivos finja estar agindo de forma
ética. Nisso, a analogia entre ética nos negócios e ética individual se mantém.
O argumento sobre a divisão de trabalho é um pouco mais forte:
governos, e não mercados, deveriam ser o espaço para a deliberação moral.
Friedman está correto em frisar a importância do lucro do sócio: num sistema de
mercado funcionando em condições regulares (o paradigma dos livros de
introdução à Economia), isso implica que a firma está fornecendo aos
consumidores serviços que eles desejam, remunerando seus trabalhadores de
uma maneira que eles aceitam, e observando restrições regulatórias adequadas.
Porém, o fato de que algumas obrigações morais devem ser determinadas pela
legislação não justifica concluir que todas devam sê-lo: a definição da tarefa dos
governos não exclui todas as razões morais dos indivíduos para fazer o bem,
principalmente se a atuação dos governos for insuficiente. Afinal, o fato de
alguém ter sido designado para uma tarefa não implica que ninguém mais tenha
uma razão moral para executá-la. Mesmo que você não seja um socorrista, você
141Mesmo que os gestores e acionistas não sejam motivados por essa justificativa –
basta que compreendam que é uma justificativa reconhecida por outras pessoas.
579
tem uma razão moral para prestar auxílio ao observar um acidente – e essa
razão é ainda mais forte se ninguém mais o fizer.
Alguém poderia afirmar que isso implica que os indivíduos deveriam
intervir, mas não as empresas; no entanto, os mesmos motivos que explicam por
que uma empresa é economicamente mais eficaz do que um indivíduo para
fornecer bens e serviços também explicam por que, em algumas situações, ela
pode ser mais eficaz para fazer o bem: economias de escala, divisão de trabalho
por especialização, poder de barganha, transparência, menor aversão ao risco,
etc. Nesse caso, o argumento sobre a divisão de trabalho pode se voltar contra o
defensor da doutrina Friedman: se uma empresa é o agente mais bem
posicionado para praticar uma ação moralmente boa, isso parece ser uma razão
moral relevante para o fazer – ao menos se não houver uma razão contrária.
142 Outra ideia criativa seria usar desconto hiperbólico de investidores para benefícios
sociais de longo prazo; p. ex., na proposta Windfall Clause, cada grande corporação
assumiria o compromisso irrevogável de, caso descubra uma tecnologia revolucionária
que lhe permita concentrar uma parcela relevante do PIB mundial (como inteligência
artificial geral) nos próximos 50 anos, distribuir uma fração dos lucros (p. ex., 10%) com o
restante da humanidade (O’Keefe et al., 2020). É como prometer a um amigo que, se
ganhar na loteria, você doará parte do prêmio: individualmente, para cada empresa, o
ganho reputacional de tal compromisso é relevante, e o custo presente é pequeno – já
que a probabilidade ex ante de efetuar tal pagamento é pequena, e mesmo se tivesse de
efetuá-lo, não abalaria sua posição futura no mercado. Do ponto de vista coletivo, a
cláusula também é uma vantagem, pois funciona como um seguro contra o cenário em
que uma única firma viesse a deter posição dominante sobre os recursos econômicos
globais.
582
ser implementada com sucesso sem o apoio de empresas, governos e
sociedade civil. Talvez o principal argumento contra a doutrina Friedman seja
simplesmente o reconhecimento de que, sem uma concepção de ética nos
negócios que permita a companhias relevantes assumirem compromissos
duradouros com as comunidades (incluindo a comunidade global e as gerações
futuras), não apenas essas companhias, mas nossas próprias sociedades serão
insustentáveis no longo prazo.
Conclusão
Peço desculpas por lançar uma dose tão alta de informações sobre o
leitor, com explicações bastante curtas; não espero que você domine plenamente
esses temas, mas que se sinta intelectualmente instigado pelas questões
filosóficas supra. Lembre-se que elas também são problemas reais: cada nova
crise econômica traz uma dose de sofrimento aos que têm diminuídas suas
perspectivas de vida, e, a todos nós, a lembrança de que o desenvolvimento
econômico observado no último século não é uma lei da natureza – é uma
exceção na história humana.
Ao invés de rever os pontos discutidos, gostaria de focar apenas um.
Começamos este texto destacando as vantagens de viver num mundo onde você
pode agradecer a milhares de pessoas por seu café. Por outro lado, se cada
pessoa em cadeias de cooperação tem uma parcela de mérito pelo resultado, o
584
mesmo vale para a responsabilidade. Nossa cultura e psicologia moral
começaram a despertar para o fato de que essa responsabilidade difusa conflita
com nossas noções éticas intuitivas, nas quais uma pessoa determinada é
considerada responsável por causar um dano específico a outrem – i.e., onde
vítimas podem apontar culpados por danos mensuráveis.
Em concepções tradicionais de razão prática, costumam-se separar as
decisões e preferências em dois domínios: há um domínio pessoal, onde você
procura satisfazer algumas de suas preferências individuais, condicionadas a
restrições morais; e outro domínio social ou político, onde você vota e participa
de decisões (o que economistas chamam de escolha social) que visam a alguma
concepção de bem estar coletivo, abrangendo outras pessoas com quem você
coopera. Essa separação é importante e útil: assim como (provavelmente)
ninguém conhece suas preferências e necessidades melhor do que você, é
provável que você não conheça tão bem as de outras pessoas; ela nos permite,
pois, demarcar uma esfera privada onde nossas decisões são “soberanas”, onde
cada um pode acertar e errar por sua própria conta e risco, protegido de coerção
externa.
Frequentemente, filósofos e economistas defendem que essa ideia de
esfera privada é um componente característico dos mercados. Mas, quando
analisamos mercados mais detidamente, a fronteira entre os dois domínios tende
a colapsar: suas decisões acarretam externalidades e custos de oportunidades
para outros além do que você pode prever individualmente. Cada unidade
monetária de suas transações econômicas é não só uma sinalização de suas
preferências e custos de oportunidade, mas também um “voto na função de
escolha social”: o resultado do mercado é “apenas” um agregado de escolhas de
indivíduos e firmas. Ainda que as consequências desse agregado sejam difíceis
de antever, isso não o exime de lembrar que você faz parte disso; e mesmo que
sua influência marginal seja pequena, lembre-se que isso vale igualmente para
muitas outras decisões, e para a maioria das pessoas (p. ex., é absurdamente
improvável que seu voto seja decisivo em qualquer eleição política). Conquanto
mercados sejam muito bons em agregar informações relevantes aos preços de
ativos e produtos, eles não podem tomar decisões morais por você; porém são
uma importante lembrança de que, na prática, você não as toma solitariamente.
585
Questões de revisão
Questões de discussão
Sugestões de leitura
Referências
143Veja mais sobre a Série Investigação Filosófica, que publica volumes de traduções
autorizadas de verbetes da Stanford Encyclopedia of Philosophy, editada pelo Grupo
Investigação Filosófica da Universidade Federal do Amapá, pelo Núcleo de Ensino e
Pesquisa em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas, tal como também pela sua
Editora, aqui: https://wp.ufpel.edu.br/nepfil/serie-investigacao-filosofica/
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592
13
Filosofia da Religião
Luiz Helvécio Marques Segundo
1. Introdução
2. A ideia de Deus
596
tanto proposições sobre o passado quanto proposições sobre o futuro. Alguém que sabe
coisas sobre o futuro é presciente. A onisciência implica a presciência.Suponha que Deus
saiba que você levantará a sua mão esquerda no dia 13 de abril de 2030, às 09:30 da
manhã. Se ele sabe isso, então é verdade que você levantará a sua mão. Lembre-se que
Deus não erra. Isso implica, então, que o seu futuro está determinado. Você não poderá
fazer outra coisa no dia 13 de abril de 2030 às 09:30 a não ser levantar a sua mão
esquerda.Por outro lado, fazer coisas como levantar a mão são ações que estão sob o
nosso controle. Eu simplesmente escolho se vou levantar a mão ou não. Isso é o que
significa dizer que tenho livre-arbítrio. Ora, se Deus sabe que no futuro você vai levantar
a mão, então você não poderá fazer outra coisa que não levantar a mão. Você não terá
escolha sobre isso. E se não terá escolha, não será livre.Generalizando, se Deus sabe o
que vai acontecer no futuro da humanidade, isso implica que os humanos não poderiam
agir de maneira diferente. Ou seja, implica que os seres humanos não têm livre-arbítrio.
Portanto, se Deus é presciente, então não temos livre-arbítrio.Você concorda com essa
conclusão? Você acha que se Deus existir nós não seremos pessoas livres?
597
seu amigo poderia ter a seguinte reação: “Como sei que o que a Bíblia diz é
verdade? Pelo que entendi, a escrita da Bíblia foi supostamente inspirada por
Deus. Mas eu ainda não sei se é razoável acreditar em sua existência. Se não
acredito em sua existência, como posso acreditar que ele inspirou o que quer
que seja?”. Essa é uma reação sensata. O seu argumento não pode ser bom,
uma vez que é um tipo de argumento que os filósofos chamam de argumento
circular: ele pressupõe aquilo que deveria provar.Você terá de começar por
outros argumentos. E aqui há uma tradição de argumentos com essa finalidade.
Essa tradição é conhecida como “teologia natural”. É a tentativa de mostrar que
Deus existe através da razão, sem o auxílio da inspiração ou revelação divina.
598
filósofos têm-se dedicado a pensar sobre os velhos argumentos da teologia natural e a
criar novos.
599
uma vez que seja conteúdo do pensamento de alguém, tem também existência
no entendimento. Mas nem tudo o que tem existência no entendimento tem
também existência na realidade. O ateu, ao negar a existência de Deus, aceita
que Deus exista no entendimento, mas não na realidade. Portanto, a suposição
de que Deus não existe na realidade implica que Deus existe pelo menos no
entendimento.
O conceito de Deus implica a sua máxima perfeição. Na verdade,
estamos estipulando que ser maximamente perfeito é no mínimo ser onipotente,
onisciente, sumamente bom etc. Assim, quando alguém entende o conceito de
Deus, entende que Deus não pode ser menos do que maximamente perfeito.
Podemos então perguntar: o que tem mais perfeição, um ser que existe apenas
no entendimento ou um ser que também existe na realidade? Seria razoável
dizer que um ser que existe na realidade é mais perfeito do que um que existe
apenas no entendimento. Por exemplo, se o Papai Noel existisse na realidade,
ele seria mais perfeito do que o Papai Noel existente no entendimento (ou nos
contos de Natal!). Do mesmo modo, o ateu poderia dizer que se Deus existisse
na realidade, seria mais perfeito do que se existisse apenas no entendimento.
Ora, muito cuidado aqui. Dissemos que Deus é por definição o ser
maximamente perfeito. E o ateu acabou de dizer que o ser maximamente
perfeito poderia ser mais perfeito. Mas se algo é maximamente perfeito, não
poderia ser mais perfeito. Só algo menos que maximamente perfeito poderia ser
mais perfeito. Assim, o ateu primeiro aceita que Deus é o ser maximamente
perfeito por definição, e logo em seguida diz que Deus não é o ser maximamente
perfeito. Eis a contradição.
Uma vez que a suposição de que Deus não existe na realidade nos leva
a uma contradição, só nos resta negá-la. Mas negar essa suposição implica que
a proposição de que Deus existe na realidade.
Os filósofos costumam organizar seus raciocínios de uma maneira
peculiar; procuram separar as premissas das conclusões e deixar claro como
cada passo do argumento conduz ao próximo. Esse procedimento facilita a
avaliação do argumento. É importante que você comece a exercitar essa
habilidade. Vamos esquematizar o argumento ontológico. Caso prefira, você
pode pular essa parte e continuar a leitura no parágrafo seguinte (mas sugiro
que volte mais tarde). Qualquer dúvida, consulte o capítulo sobre lógica. No
esquema abaixo, a indicação se a proposição numa linha particular é uma
600
premissa ou uma conclusão será feita entre colchetes. Cada Cn representa uma
conclusão intermediária; C representa a conclusão do argumento; os numerais
separados por vírgula indicam quais foram as premissas usadas para obter
aquele passo:
Espero que seu amigo tenha admirado a bela peça de raciocínio que é
esse argumento. Realmente engenhoso. Talvez ele o tenha achado difícil. Talvez
ele até esteja se sentido ludibriado intelectualmente. Vale a pena percorrer cada
passo do argumento e se convencer de que é dedutivamente válido. Em seguida,
é importante investigar se há boas razões para se aceitar as premissas e as
demais suposições do argumento.
Não convencido de que se pode provar a existência de algo tão
substancial quanto Deus a não ser com auxílio de informações empíricas, ao
mesmo tempo que está convencido da lógica impecável do argumento ontológico
e de suas premissas, seu amigo resolve utilizar o seguinte recurso. Ele constrói
um argumento semelhante ao argumento ontológico a favor da existência de
Deus, porém substitui Deus por outra entidade, digamos a Ilha de Fidel. A Ilha de
Fidel é, por definição, a ilha maximamente perfeita. Uma ilha sem miséria, com a
601
melhor a música, com as melhores pessoas etc. A Ilha de Fidel existe no
pensamento, mas não na realidade. Ora, mas se por definição a Ilha de Fidel é
maximamente perfeita, estamos a dizer que a ilha maximamente perfeita poderia
ser mais perfeita… Logo, a Ilha de Fidel existe na realidade. (Fica como
exercício ao leitor a reconstrução do argumento ontológico a favor da Ilha de
Fidel).
Você deve ter notado que é possível construir um argumento ontológico
para provar a existência de muitas coisas que só deveríamos acreditar depois de
investigação empírica. Isso sugere que há algum pressuposto escondido no
argumento que o torna implausível. Se você e seu amigo ainda tiverem fôlego,
mãos à obra.
611
trabalhasse em prol da complexidade dos organismos, que surgiam constantemente por
geração espontânea. O ambiente desempenhava um papel secundário no processo:
diferentes ambientes obrigavam os organismos a usar certas partes do corpo, o que
poderia produzir alguma alteração; partes não usadas tendiam a se atrofiar. Essas
mudança eram transmitidas para a geração posterior. (Daí o mote pelo qual Lamarck é
geralmente lembrado, as teorias do uso e desuso e da transmissão de caracteres
adquiridos. Essas ideias que eram comumente aceitas na época, não sendo nenhuma
novidade e nem de importância central na teoria de Lamarck).
O que separa Darwin e Wallace dos evolucionistas precedentes são as ideias de seleção
natural e da árvore da vida. A seleção natural implica que a evolução não é um processo
linear, mas antes um processo de divergência a partir de ancestrais. Essa divergência
produz toda a variedade de espécies de que temos notícias. Cada nova espécie é uma
ramificação da árvore da vida. É importante ressaltar que a teoria da evolução não é uma
teoria sobre a origem da vida. Darwin e Wallace não procuraram explicar como surgiu o
primeiro ser vivo. Eles simplesmente tomam como ponto de partida a existência da vida;
havendo vida, basta que haja variedade numa população e pressão do meio para que a
ocorra seleção natural. A seleção natural explica a variedade da vida!
A teoria moderna da evolução, ou síntese moderna, foi estabelecida nas décadas de 30
e 40 do século XX por biólogos como Ronald Fisher (1890-1962), Theodosius
Dobzhansky (1900-1975), Ernst Mayr (1904-2005), dentre outros. A síntese consistiu na
combinação da teoria darwinista da seleção natural com a genética mendeliana. Isso não
resultou apenas num modelo matemático para tratar a transmissão de caracteres, mas
também permitiu a unificação de várias áreas da biologia em torno da evolução; nas
palavras do próprio Dobzhansky, “na biologia nada faz sentido exceto à luz da evolução”.
I. Deus é existe.
II. Há males no mundo.
613
Se a existência de Deus e do mal são incompatíveis, então o conjunto C
tem de ser inconsistente, isto é, tem de ser possível deduzir uma contradição a
partir das proposições I e II.
Contradições são representadas como “p& não-p”. E se olharmos para
C, não há tal proposição lá. Além disso, a contradição não pode ser deduzida a
partir apenas de I e II. Nesse caso, é preciso considerar se há alguma
proposição implícita em C e que em conjunção com I ou II produz uma
contradição. É razoável pensar que a seguinte proposição está implícita, uma
vez que decorre do conceito de Deus:
614
Por uma questão de simples exame lógico do conjunto de crenças do
teísta, o seu amigo foi capaz de mostrar que Deus não existe.
Antes de ceder a seu amigo, vale a pena pensar sobre as proposições
supostamente implícitas em C. Os lógicos costumam dizer que uma proposição
está implícita num conjunto apenas quando essa proposição puder ser deduzida
daquelas proposições que são explícitas. A proposição III pode ser explicitada a
partir I e da definição de Deus. É claro que você poderia negar III, mas ao custo
de sustentar que ou (a) Deus não é onipotente ou (b) Deus não é onisciente ou
(c) Deus não é sumamente bom. Mas será que um teísta estaria disposto a
aceitar um Deus menos que maximamente perfeito?
Passemos a V. Ela não pode ser explicitada no sentido lógico, uma vez
que não pode ser deduzida das proposições já explícitas em C. Mas há uma
outra maneira de considerarmos se uma proposição está ou não implícita num
conjunto. É quando essa proposição expressa uma verdade necessária. A
melhor maneira de enxergar isso é através de um exemplo. Considere o conjunto,
D, de proposições:
a. João é solteiro.
b. João é casado.
E da conjunção de a e c, obtemos
d. João é não-casado.
615
verdadeira. Você pode pensar em várias maneiras diferentes como o mundo
poderia ser; em nenhuma delas será falso que todo solteiro é não-casado. Há
circunstâncias, ou mundos possíveis, em que João não é solteiro; nesses
mundos ainda assim não vai ocorrer de alguém ser solteiro e não-casado ao
mesmo tempo. Sendo assim, faz sentido dizer que a proposição c está implícita
no conjunto D.
Mas será que a proposição V é necessariamente verdadeira? Para
avaliarmos essa proposição é preciso introduzir um pouco de terminologia nova,
a terminologia dos mundos possíveis. Essa terminologia nos ajuda a raciocinar
com um pouco mais de fluência sobre proposições precedidas pelos advérbios
“necessariamente” e “possivelmente” ou pelas locuções “é necessário” e “é
possível”. Um mundo possível é um modo como as coisas podem ser; é como se
fosse uma história alternativa da realidade atual. O modo como as coisas são, a
história da nossa realidade, é chamado de “mundo efetivo”144. O mundo efetivo é
também um mundo possível. Diremos que uma proposição é necessariamente
verdadeira quando for verdadeira em todos os mundos possíveis (incluindo o
mundo efetivo). Por exemplo, a proposiçãoTodo solteiro é não-casado é
verdadeira em todos os mundos possíveis. As proposições que são verdadeiras
no mundo efetivo, mas falsas em pelo menos um mundo possível são
proposições possivelmente falsas; por exemplo, a proposição Michael Jackson é
solteiro. E as proposições que são falsas no mundo efetivo, mas verdadeiras em
pelo menos um mundo possível são proposições, embora efetivamente falsas,
possivelmente verdadeiras; por exemplo, a proposição Michael Jackson está vivo.
Será que Deus elimina todo o mal em todos os mundos possíveis? O
teísta obviamente pensa que não, afinal o mundo efetivo contém uma
quantidade substancial de males. E o teísta tem uma boa razão para pensar que
a proposição V não é necessariamente verdadeira; vamos chamá-la de “defesa
do livre-arbítrio”.
Segundo o defensor do argumento do mal: necessariamente, se Deus é
onisciente, onipotente e sumamente bom, então ele elimina todo o mal do mundo.
Ou seja, a proposição V é verdadeira em todos os mundos possíveis. Se houver,
contudo, pelo menos um mundo possível em que Deus é onisciente, onipotente e
sumamente bom, e ainda assim não elimine o mal, a proposição V não será
Seu amigo não se rendeu à defesa do livre-arbítrio. Ele ainda acha que
a existência do mal, porquanto não refute a existência de Deus, a torna
improvável. Ou seja, ele pensa que a existência do mal fornece evidência
indutiva a favor da existência de Deus.
O argumento evidenciário procura oferecer algum exemplo de mal
gratuito. A melhor categoria de tais casos envolve o sofrimento de animais não-
humanos, pois em geral esse tipo de sofrimento em nada contribui para o
alcance de qualquer tipo de bem maior. O incêndio que assolou a Austrália no
final de 2019 e início de 2020 matou mais de 1 bilhão de animais. Ficou famosa
a foto de um filhote de canguru preso a uma cerca nas colinas de Adelaide, que
acabou por morrer carbonizado. Talvez as chamas tenham atingido fatalmente
esse filhote após ele ter desmaiado, caso que ele sofreria um pouco menos. Mas,
ainda assim, o sofrimento causado pelo pânico durante a fuga, ou na tentativa de
se soltar da cerca, enquanto o fogo se aproxima e a temperatura aumenta, não é
desprezível. É difícil conceber algum bem que pudesse justificar a existência
desse mal. Parece, portanto, ser um mal gratuito.
Podemos esquematizar o argumento evidenciário do seguinte modo:
1. Há males gratuitos.
2. Se há males gratuitos, então Deus não existe.
3. Logo, Deus não existe.
1. M é um mal.
2. Parece não haver qualquer bem que justifique M.
3. Logo, (provavelmente) M é um mal gratuito.
Sentindo-se bloqueado pelo teísmo cético, seu amigo não perdeu tempo
e foi se informar sobre outras religiões. Ele descobriu que, em geral, quase todas
as religiões têm o mesmo tipo de preocupação com o lugar que ocupamos no
universo, com a relação entre criador e criatura, com a vida após a morte e
assim por diante. Mas algumas diferem radicalmente sobre as respostas que
fornecem a essas preocupações. Por exemplo, os cristãos acreditam que Deus é
o criador do universo; os iorubás acreditam que é Olorum. Ambos não podem
estar corretos. Ou Deus é o criador, ou Olorum.Embora não haja uma teologia
natural iorubá, não é difícil imaginar que o mesmo tipo de argumentos possa ser
construído a favor de Olorum. Sendo assim, teríamos conclusões contrárias
apoiadas por razões igualmente boas.
Suponha que seu amigo lhe explica os argumentos iorubá. Imagine que
esses argumentos têm premissas parecidas com os argumentos teístas. Assim,
se você considera as suas premissas boas, também terá de considerar boas as
do argumento iorubá. Por conseguinte, também terá de considerar racional a
crença dos iorbuás. Lembre-se que há aqui um desacordo: ou os teístas estão
corretos ou os iorubás estão corretos, mas não ambos. Se você considera as
duas crenças racionais, qual é atitude racional a ser tomada?
Seu amigo diz que você deve suspender o juízo. Vejamos. Frente a uma
proposição qualquer (p), um sujeito (S) pode ter as seguintes atitudes doxásticas:
a) acreditar que p, b) acreditar que não-p ou c) suspender o juízo. Se houver
evidência suficiente a favor de p, então é racional que S acredite que p. Se
houver evidência suficiente a favor de não-p, então é racional que S acredite que
não-p. Mas se a evidência for insuficiente, é racional que S suspenda o juízo.
Há duas situações em que a evidência é considerada insuficiente. A
primeira é quando a evidência aumenta muito pouco a probabilidade de a crença
ser verdadeira. Por exemplo, você acredita que Carlos assassinou a própria
esposa porque a arma do crime era uma pistola registrada em nome de Carlos.
Essa evidência, ainda que dê um pequeno apoio à sua crença, não a torna
provável o suficiente. Não seria racional da sua parte sustentar a crença de que
Carlos é o assassino (o que não implica você ter de acreditar que Carlos é
624
inocente). A segunda é quando o sujeito adquire evidência igual para crença e
sua negação. Suponha agora que além da arma pertencer a Carlos, são
encontradas suas impressões digitais na arma, vestígios de pólvora na mão de
Carlos e um recibo de uma caixa de munição comprada no dia anterior. Nesse
caso, parece que a evidência se torna suficiente para acreditar que Carlos é o
assassino. Não fosse por um novo conjunto de evidências. Os investigadores
descobrem que Carlos é instrutor de tiro; que a sua esposa foi alvejada por uma
munição diferente daquela comprada no dia anterior e que ela vinha sendo
ameaçada pelo ex-marido. Essas evidências contrabalanceiam as evidências do
primeiro conjunto. Assim, se é racional acreditar que Carlos é o assassino,
também é racional acreditar que Carlos não é o assassino. Mas não pode ser
racional acreditar que Carlos é e não é o assassino (acreditar em uma
contradição não parece ser uma política racional!). Esse novo conjunto de
evidências faz com que sua evidência total seja insuficiente para acreditar que
Carlos é o assassino; e do mesmo modo insuficiente para acreditar que ele não
é o assassino. Portanto, a atitude racional na falta de evidência suficiente é a
suspensão da crença.
Ora, as mesmas considerações se aplicam ao desacordo religioso. O
teísta tem boa evidência a favor de sua crença. E o iorubá tem evidência
igualmente boa para a dele. Se você reconhece que ambos os conjuntos de
evidência como razoáveis, então a sua evidência total é insuficiente para
acreditar na crença teísta e também insuficiente para acreditar na crença iorubá.
Portanto, é racional suspender a crença sobre a existência de Deus e de Olorum.
Começamos dizendo que o teísta e o iorubá não podem estar ambos
corretos. Mas e se estiverem ambos errados? Pode ser que uma terceira crença
esteja correta, por exemplo de alguns indígenas. Não poderia também haver
aparentes boas razões para se aceitar tal crença? Obviamente que sim. Mas
nesse caso, as aparentes boas razões do teísta e do iorubá anulariam a
evidência para acreditar na crença indígena. E novamente poderíamos
considerar uma nova crença religiosa, em desacordo com as três anteriores.
Essa, por sua vez, seria anulada pelas evidências das crenças anteriores. E
assim por diante.
Há uma maneira interessante de se responder a esse desafio; envolve a
adoção de uma posição chamada de “pluralismo religioso”. A ideia básica do
pluralismo é que não há uma religião correta –“A religião” – mas muitas. Há pelo
625
menos duas versões de pluralismo: o relativista e o construtivista.
Comecemos com o relativismo. O relativista pensa que não há
objetividade em questões religiosas. Ele pensa que o desacordo religioso mostra
o quão dramática é a tentativa de estabelecer verdades religiosas. O
conhecimento religioso é impossível. Não importa se existem ou não fatos
transcendentes da religião. Se existirem, o desacordo mostra que é impossível
conhecê-los; se não existirem, é óbvio que não podem ser conhecidos. Sendo
assim, é permitido às diferentes culturas que tenham qualquer tipo de crença
sobre a divindade. E virtualmente todas essas crenças estão em pé de igualdade;
é um vale-tudo. Relatos religiosos são como histórias ficcionais; cada história
ficcional é única e não compete em realidade com outras histórias.
O pluralista construtivista pensa que há sim uma divindade
transcendente. O cerne do pluralismo construtivista é a ideia de que há uma
divindade transcendente e que as várias religiões “constroem” essa divindade
(ou divindades), através de seus sistemas conceituais particulares. Assim como
o relativista, o construtivista pensa ser impossível conhecer a realidade
transcendente religiosa. Mas não porque há desacordo religioso e sim porque a
própria divindade é em si incognoscível. Vejamos.
O construtivista pressupõe que o divino existe independente de nossas
mentes; mesmo que ninguém concebesse ou pensasse no divino, ainda assim
ele continuaria existindo. Contudo a mente humana só pode fazer
representações do divino; todo acesso ao divino é mediado por representações
humanas. Alguns representam a divindade como o deus teísta; outros como
muitos deuses; há também quem a representa como uma força impessoal que
rege o universo e assim por diante. De acordo com o construtivista, todos estão
representando a mesma coisa. E para além dessas representações nada pode
ser dito de substancial acerca da divindade.
Uma imagem pode nos ajudar. Pense num objeto microscópico. Ele não
pode ser observado a olho nu; qualquer imagem que tenhamos dele terá de ser
feito por um microscópio. Mas suponha que há vários microscópios diferentes e
cada um deles produz uma imagem diferente do mesmo objeto. Além disso, cada
uma dessas imagens é igualmente satisfatória para os cientistas que as
produzem. Substitua o objeto microscópico pela divindade e os microscópios
pelas diferentes religiões. Não há contato imediato com a divindade; sem uma
tradição religiosa não se pode “ver” a divindade. E várias religiões apresentam
626
diferentes “imagens” da mesma coisa, cada uma delas igualmente satisfatória a
seus praticantes.
É claro que alguém poderia protestar dizendo que nem todas as
imagens geradas por microscópios diferentes são igualmente boas. Algumas
representam melhor o objeto. Pode haver imagens complementares assim como
imagens conflitantes. O trabalho dos cientistas é encontrar a melhor
representação do objeto microscópico. O mesmo vale para a religião. Pode
haver representações complementares do divino assim como representações
conflitantes. O teólogo e o filósofo da religião deveriam encontrar a religião que
melhor representa o divino, não dizer que todas as religiões são igualmente boas.
Se você pensa assim, então você é um exclusivista. Mas se você concorda com
a força argumento do desacordo, ser exclusivista lhe obrigará a suspender o
juízo. Portanto, a melhor estratégia para evitar a acusação de irracionalidade é
adotar o pluralismo.
Mas será que o evidencialista está certo? Será que as nossas crenças
religiosas precisam estar baseadas em evidência? Alguns epistemólogos
pensam que não. De acordo com eles, a crença na existência de Deus está entre
um tipo de crenças cuja justificação não depende de evidência provinda de
outras crenças, o que se chama comumente de “crenças básicas”. Exemplos
típicos de crenças básicas são a crença de que o mundo externo existe, a crença
de que as outras pessoas possuem mente, etc. A estratégia aqui será dizer que a
crença teísta está em paridade epistêmica com as crenças de que há um mundo
externo, de que há outras mentes, etc. Para usar um metáfora, a crença teísta
está no mesmo barco que essas crenças; se uma afundar, as outras afundam
junto.
Vamos começar com a distinção entre crenças básicas e não-básicas.
Considere a sua crença de que alguém revisou este texto que você está lendo
agora. Qual é a justificação que você tem para essa crença? Decerto você
recorreu a outras crenças. Por exemplo, a sua crença de que textos publicados
são geralmente revistos por outras pessoas, que este texto é bastante complexo
628
para ter sido revisado por um algoritmo de revisão, etc. A partir dessas crenças
você inferiu a crença de que este texto foi revisado por alguém. Essa é uma
crença inferencialmente justificada; a justificação dela depende de outras
crenças. Se você dependeu de inferência para justificar uma crença, então essa
crença não pode ser básica; ela é não-básica. As crenças básicas são aquelas
cuja justificação é não-inferencial. Além disso, as crenças básicas evitam que
você caia em cadeias de justificações infinitas. Por exemplo, considere a sua
crença de que textos publicados são geralmente revistos. A justificação que você
tem para essa crença é inferencial ou não-inferencial. Se for inferencial, você
precisará de uma nova crença, que, por sua vez, terá justificação inferencial ou
não-inferencial, e assim por diante. Esse potencial regresso só é impedido
quando atingimos uma crença básica.
As crenças perceptuais são o tipo mais comum de crença básica. A
minha crença de que há um computador em minha frente no instante em que
escrevo este texto, a minha crença de que tenho mãos, etc. são crenças que
consideramos justificadas e cuja justificação é não-inferencial. As crenças
básicas justificam outras crenças, mas não são justificadas por outras crenças.
Mas em que sentido as crenças religiosas são básicas? Tomemos como
exemplo a crença do cristão de que seus pecados foram perdoados. Digamos
que ele formou essa crença depois de uma profunda oração pedindo perdão.
Muitos crentes formam crenças assim. E essas crenças não dependem de outras
crenças. Não é que o cristão acredita que Deus perdoa depois de uma oração;
antes, ele sente que foi perdoado. Ou considere o sentimento de maravilhamento
que muitos têm diante de uma paisagem grandiosa. Há vários relatos de
pessoas que formam a crença de que aquela beleza nos foi oferecida por Deus.
Note, não é que o crente raciocine que Deus é o criador; muito pelo contrário, ele
forma diretamente a crença de que o criador nos presenteou. Novamente, essa
crença não depende de outras crenças, é uma crença básica.
Repare que as crenças básicas teístas são crenças cujo conteúdo em
parte depende de Deus. Para que a minha crença de que Deus me perdoa seja
verdadeira, é preciso também que seja verdade que Deus exista. Para que a
minha crença de que a beleza do cânion de Ribeirão das Bandeirinhas, na Serra
do Cipó, é um presente de Deus seja verdadeira, novamente tem de ser verdade
que Deus existe. Do mesmo modo, a minha crença de que tenho mãos só é
verdadeira, se for verdade que há objetos externos à minha mente que são as
629
minhas mãos. E a minha crença de que João está com dores só é verdadeira, se
também for verdade que João tem uma mente.
Em geral, o teísta acredita que Deus existe do mesmo modo como
qualquer pessoa acredita na existência do mundo externo e na existência de
outras mentes. E na medida em que essas crenças estão justificadas, não estão
em função do sujeito possuir evidência em favor delas.
Tomando as crenças perceptuais como exemplos paradigmáticos de
crenças básicas, podemos isolar duas características das crenças básicas: (i)
são justificadas não-inferencialmente e (ii) são formadas por mecanismos
cognitivos confiáveis. E “confiável” aqui tem um significado preciso, é a tendência
que o mecanismo tem de produzir mais crenças verdadeiras do que crenças
falsas. Cuidado aqui. Ter uma tendência a formar mais crenças verdadeiras do
que falsas não quer dizer que o mecanismo efetivamente forme mais crenças
verdadeiras do que falsas. Por exemplo, a visão humana tende a produzir mais
crenças verdadeiras do que falsas, quando a visão do sujeito está funcionando
bem e em condições adequadas para esse funcionamento. A uma distância
média, sob a luz do dia e não tendo problemas de visão, se olho para um objeto
e formo a crença de que é um gambá – sendo de fato um gambá –, então sei
que aquilo é um gambá. Se eu fosse míope, por exemplo, a chance de eu errar –
e.g., acreditar que era um rato – se tornaria mais alta. Ou se a luz estivesse
baixa, no crepúsculo, as chances de eu errar também passariam a ser maiores.
Considerações similares podem ser feitas sobre os outros mecanismos
cognitivos importantes: os outros sentidos, a memória e o raciocínio.
Mas e quanto à crença religiosa, haverá algum mecanismo cognitivo
confiável responsável pela sua formação? As supostas crenças básicas teístas
não são formadas pelos mecanismos perceptuais paradigmáticos. Se há alguma
crença teísta básica, ela não pode brotar do nada no crente; é preciso que
identifiquemos a fonte de tais crenças.
Alguns teístas pensam haver um senso do divino, ao qual costumam
chamar sensus divinitatis. O sensus divinitatis, de acordo com eles, é confiável,
uma vez que é um mecanismo cognitivo moldado por Deus e que foi dado aos
seres humanos, para que tivessem exatamente a função de produzir crenças
religiosas verdadeiras. Aquelas crenças sobre a grandeza da natureza, sobre ter
sido perdoado, etc. são crenças exatamente do tipo formado por muitos teístas.
O mérito da epistemologia reformada reside em proteger a crença teísta
630
do ataque de irracionalidade. Primeiro, ao considerar a crença teísta como
básica, ela evita o desafio evidencialista. Segundo, e mais interessante, ela
inverte o ônus para o opositor do teísmo. Na medida em que a crença teísta é
racional, a acusação de irracionalidade passa a depender da negação da
existência de Deus, uma vez que negar a existência do sensus divinitatis é
rejeitar o relato teísta. Ou seja, a epistemologia reformada obriga o opositor do
teísmo a primeiro estabelecer que a crença teísta é falsa.
Uma dúvida natural aqui é: por que nem todas as pessoas formam
crenças através do sensus divinitatis? Afinal, se Deus projetou esse mecanismo
cognitivo para o ser humano, por que há ateus e agnósticos?
A resposta dificilmente convencerá o agnóstico: o senso do divino é
afetado pelo pecado e suas consequências. Assim como os mecanismos
perceptuais paradigmáticos estão sujeitos ao mal funcionamento, também o
senso divinitatis está. Por exemplo, o mal funcionamento da visão pode levar à
cegueira. Do mesmo modo, o mau funcionamento do senso do divino está sujeito
à “cegueira”. Restabelecer o senso do divino pode envolver a prática religiosa, o
arrependimento, a restituição da alma, etc.
O teísta, contudo, pode enfatizar o seguinte. Não há outro modo de
compreensão do senso do divino a não ser a experiência em primeira pessoa ou
o testemunho. É como as experiências de quase-morte. Ou você acredita nelas,
porque já teve alguma experiência do tipo, ou porque aceita o relato de pessoas
que disseram ter tido. Não há como detectar experiências de quase morte num
experimento controlado. Se o agnóstico pensa ser racional a aceitação de relatos
de quase-morte, por que não pensaria também serem os relatos das
experiências produzidas pelo senso do divino?
Há, porém, uma dificuldade maior. Considere uma comunidade de
pastafarianistas, que acreditam que somos a criação do Monstro do Espaguete
Voador. Suponha que alguns teólogos e filósofos pastafarianistas tenham
percebido a existência de crenças pastafarianistas básicas naquela comunidade.
Eles consultam as escrituras sagradas do Pastafarianismo e descobrem a
existência de um mecanismo cognitivo sobrenatural, o sensus espagueticus,
responsável pela produção de crenças básicas pastafarianistas. Oficializa-se
então a epistemologia religiosa pastafarianista, que defende que as crenças
pastafarianistas são racionais. Ora, se as crenças dos cristãos são racionais
devido ao sensus divinitatis, por que as crenças dos pastafarianistas não seriam
631
racionais devido ao sensusespagueticus?
O teísta aqui se vê novamente no problema do desacordo. Se aceita
que a crença pastafarianista é racional terá de ser pluralista. Por outro lado, se
quiser afastar como implausível a epistemologia pastafarianista, terá de
argumentar a favor do teísmo. Pois, assim como a epistemologia reformada
pressupõe a existência de Deus, a epistemologia pastafarianista supõe a
existência do Monstro do Espaguete Voador. E Deus não pode coexistir com o
Monstro do Espaguete Voador. Assim, o teísta só conseguirá afastar a
epistemologia pastafarianista na medida em que conseguir mostrar que o teísmo
é mais plausível que o pastafarianismo. No fim das contas, o epistemólogo
reformado se vê diante do mesmo tipo de desafio que ele próprio impusera ao
agnóstico: argumentar contra a verdade da crença religiosa (nesse caso, contra
a crença pastafarianista).
6. Naturalismo e sobrenaturalismo
6.1. Naturalismo
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6.2. O argumento evolucionista contra o naturalismo
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Sugestões de leitura
Leituras gerais
Leituras específicas
Referências
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