Martin Luther King JR - Carta Da Prisão de Birmingham
Martin Luther King JR - Carta Da Prisão de Birmingham
Martin Luther King JR - Carta Da Prisão de Birmingham
Acho que devo mencionar por que estou aqui em Birmingham, já que vocês foram influenciados pela
visão que se opõe aos “forasteiros invasores”. Tenho a honra de servir como presidente da
Conferência Sulista de Liderança Cristã (Southern Christian Leadership Conference ), uma organização
que opera em todos os estados sulistas, com sede em Atlanta, Geórgia. Temos cerca de oitenta
organizações filiadas por todo o Sul, e uma delas é o Movimento Cristão pelos Direitos Humanos do
Alabama (Alabama Christian Movement for Human Rights ). Frequentemente, compartilhamos
pessoal, recursos educacionais e financeiros com nossos afiliados. Muitos meses atrás, a afiliada aqui
em Birmingham pediu-nos para ficar de sobreaviso para tomarmos parte em um programa de ação
direta e pacífica, se isso fosse considerado necessário. Nós prontamente concordamos, e, quando o
momento chegou, honramos nossa promessa. Assim, eu, junto a vários membros do meu pessoal,
estou aqui porque fui convidado. Estou aqui porque tenho vínculos organizacionais aqui.
1
Stephen Oates, Let the Trumpet Sound: The Life of Martin Luther King Jr. (New York: Penguin, 1982), 222.
2
Piper, John, Bloodlines: race, cross, and the Christian (Illinois: Crossway, 2011) - Introduction
No entanto, mais fundamentalmente, estou em Birmingham porque a injustiça está aqui. Assim como
os profetas do século VIII A.C. abandonaram suas vilas e levaram seu “assim disse o Senhor” muito
além das fronteiras de suas cidades natais, e assim como o Apóstolo Paulo abandonou sua vila de
Tarso e levou o evangelho de Jesus Cristo às mais remotas partes do mundo greco-romano, também
eu sou compelido a levar o evangelho da liberdade para além de minha própria cidade natal. Como
Paulo, devo constantemente responder ao chamado macedônio por ajuda.
Além disso, estou ciente do inter-relacionamento entre todas as comunidades e Estados. Não posso
ficar ociosamente parado em Atlanta e não estar preocupado com o que acontece em Birmingham. A
injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todos os lugares. Estamos presos em uma
rede inescapável de mutualidade, atados em um único laço do destino. Algo que aja sobre alguém
diretamente age sobre todos indiretamente. Não podemos nunca mais nos permitir viver com a ideia
estreita, provinciana, do “forasteiro agitador”. Qualquer pessoa que viva dentro dos Estados Unidos
não pode jamais ser considerada um forasteiro em qualquer lugar dentro de suas fronteiras.
Vocês deploram as manifestações que estão ocorrendo em Birmingham. Mas sua declaração, sinto
dizer, deixa de expressar preocupação semelhante com as condições que provocaram as
manifestações. Tenho certeza de que nenhum de vocês gostaria de descansar contente com o tipo
raso de análise social que trata meramente dos efeitos e não ataca as causas subjacentes. É
lamentável que as manifestações estejam ocorrendo em Birmingham, mas é ainda mais lamentável
que a estrutura de poder dos brancos da cidade tenha deixado a comunidade negra sem alternativa.
Em qualquer campanha pacífica, há quatro passos básicos: coleta dos fatos para determinar se
existem injustiças; negociação; auto-purificação; e ação direta. Efetuamos todos esses passos em
Birmingham. Não pode haver nenhum ganho em enunciar o fato de que a injustiça racial engole essa
comunidade. Birmingham é provavelmente a cidade mais completamente segregada dos Estados
Unidos. Sua feia história de brutalidade é amplamente conhecida. Os negros experimentaram um
tratamento grosseiramente injusto nos tribunais. Houve mais bombardeios não solucionados de casas
e igrejas negras em Birmingham do que em qualquer outra cidade no país. Esses são os fatos duros e
brutais do caso. Com base nessas condições, os líderes negros tentaram negociar com as autoridades
da cidade. Mas os últimos recusaram-se consistentemente a tomar parte em negociações de boa fé.
Então, no último mês de setembro, surgiu a oportunidade de falar com os líderes da comunidade
econômica de Birmingham. No decorrer das negociações, certas promessas foram feitas pelos
comerciantes – por exemplo, de remover os sinais raciais humilhantes das lojas. Com base nessas
promessas, o reverendo Fred Shuttlesworth e os líderes do Movimento Cristão pelos Direitos
Humanos de Alabama acordaram uma interrupção das manifestações. Com o passar de semanas e
meses, percebemos que éramos as vítimas de uma promessa quebrada. Alguns sinais, removidos por
pouco tempo, retornaram; outros permaneceram. Como em muitas outras experiências anteriores,
nossas esperanças tinham sido destruídas, e a sombra de uma decepção profunda caiu sobre nós.
Não tínhamos alternativa a não ser nos prepararmos para a ação direta, por meio da qual exibiríamos
nossos próprios corpos como um meio de apresentar nossa causa à consciência das comunidades
local e nacional. Cientes das dificuldades envolvidas, decidimos empreender um processo de auto-
purificação. Iniciamos uma série de oficinas sobre o pacifismo, e repetidamente nos perguntávamos:
“Vocês são capazes aceitar golpes sem retaliar?” “Vocês são capazes de resistir à provação da
cadeia?” Decidimos marcar nosso programa de ação direta no período de Páscoa, percebendo que,
exceto pelo Natal, é o principal período de compras do ano. Sabendo que um programa vigoroso de
retração econômica seria o efeito colateral da ação direta, sentimos que esse seria o melhor
momento para aplicar uma pressão sobre os comerciantes em prol da mudança necessária.
Então, demo-nos conta de que a eleição para prefeito de Birmingham ocorreria em março, e
rapidamente decidimos postergar a ação para depois do dia de eleição. Quando descobrimos que o
Comissário de Segurança Pública, Eugene “Touro” Connor, havia reunido votos suficientes para ir ao
segundo turno, decidimos mais uma vez postergar a ação para depois do dia do segundo turno, para
que as manifestações não pudessem ser usadas para obscurecer os temas. Como muitos outros,
esperávamos ver a derrota do Sr. Connor, e com esse fim aguentamos adiamento após adiamento.
Tendo ajudado nessa necessidade da comunidade, sentimos que nosso programa de ação direta não
poderia mais ser atrasado.
Vocês podem muito bem perguntar: “Por que ação direta? Por que sit-ins, marchas e assim por
diante? Não seria a negociação um caminho melhor?” Vocês estão bastante certos em clamar por
negociações. Na verdade, esse é o real propósito da ação direta. A ação direta pacífica busca criar
uma tal crise e promover uma tal tensão que a comunidade que constantemente se recusou a
negociar é forçada a confrontar o tema. Ela busca, assim, dramatizar um tema que não pode mais
ser ignorado. Minha referência à criação de tensão como parte do trabalho do resistente pacífico
pode soar um tanto chocante. Mas devo confessar que não tenho medo da palavra “tensão”. Opus-
me veementemente à tensão violenta, mas há um tipo de tensão construtiva, pacífica, que é
necessária para o crescimento. Assim como Sócrates sentiu que era necessário criar uma tensão na
mente para que os indivíduos pudessem ascender da servidão de mitos e de meias verdades ao reino
livre de amarras da análise criativa e da avaliação objetiva, também nós temos de ver a necessidade
de impertinentes pacíficos para criar o tipo de tensão na sociedade que ajudará os homens a
ascenderem das escuras profundezas do preconceito e do racismo às alturas majestosas da
compreensão e da fraternidade. O propósito de nosso programa de ação direta é criar uma situação
tão recheada de crise que inevitavelmente abrirá as portas à negociação. Eu, portanto, concordo com
vocês no seu clamor por negociações. Nossas amadas terras do Sul têm estado atoladas por tempo
demais em um trágico esforço para viver em um monólogo ao invés de em um diálogo.
Um dos pontos fundamentais em sua declaração é o de que a ação que eu e meus associados
tomamos em Birmingham é inoportuna. Alguns perguntaram: “Por que vocês não deram à nova
administração da cidade tempo para agir?” A única resposta que posso dar a essa indagação é que a
nova administração de Birmingham tem de ser incitada tanto quanto a que está de saída, antes que
ela aja. Estaremos tristemente enganados se sentirmos que a eleição de Albert Boutwell como
prefeito trará uma época de ouro a Birmingham. Embora o Sr. Boutwell seja uma pessoa muito mais
tolerante do que o Sr. Connor, ambos são segregacionistas, dedicados à manutenção do status quo.
Tenho esperança em que o Sr. Boutwell será razoável o bastante para notar a futilidade de uma
resistência ampla ao fim da segregação. Mas ele não notará isso sem a pressão dos partidários dos
direitos civis. Meus amigos, tenho de dizer a vocês que não obtivemos um único ganho em direitos
civis sem uma firme pressão legal e pacífica. Lamentavelmente, é um fato histórico que grupos
privilegiados raramente renunciam aos seus privilégios por vontade própria. Indivíduos podem ver a
luz da moral e renunciar voluntariamente às suas posturas injustas; mas, como Reinhold Niebuhr
lembrou-nos, grupos tendem a ser mais imorais do que indivíduos.
Sabemos por meio de experiências dolorosas que a liberdade nunca é voluntariamente concedida
pelo opressor; ela tem de ser exigida pelo oprimido. Francamente, ainda não tomei parte em uma
campanha de ação direta que fosse “oportuna” na visão daqueles que não sofreram indevidamente
da doença da segregação. Já faz anos que ouço a palavra “Espere!” Ela ressoa nos ouvidos de cada
negro com uma familiaridade aguda. Esse “espere” quase sempre significou “nunca”. Temos de
chegar à percepção, junto com um de nossos eminentes juristas, de que “a justiça adiada por muito
tempo é justiça negada”.
Esperamos por mais de 340 anos por nossos direitos constitucionais e concedidos por Deus. As
nações da Ásia e da África estão dirigindo-se com uma velocidade a jato rumo à conquista da
independência política, mas nós ainda nos arrastamos a passo de cavalo e de charrete rumo à
conquista de uma xícara de café em um balcão. Talvez seja fácil àqueles que nunca sentiram os
dardos perfurantes da segregação dizer “espere”. Mas quando você viu bandos perversos lincharem
suas mães e pais à vontade e afogar suas irmãs e irmãos a seu capricho; quando você viu policiais
cheios de ódio amaldiçoarem, chutarem e até matarem seus irmãos e irmãs negros; quando você vê
a vasta maioria de seus vinte milhões de irmãos negros sufocando-se em uma jaula hermética da
pobreza em meio a uma sociedade de abundância; quando você de repente descobre sua língua
travada e sua fala gaga ao tentar explicar a sua irmã de seis anos de idade por que ela não pode ir
ao parque de diversões público cuja propaganda acabou de passar na televisão, e vê lágrimas
jorrando dos olhos dela quando lhe é dito que o Funtown está fechado para crianças de cor, e vê
ameaçadoras nuvens de inferioridade começando a se formar no pequeno céu mental dela, e a vê
começar a distorcer sua personalidade ao desenvolver um rancor inconsciente contra as pessoas
brancas; quando você tem de inventar uma resposta a um filho de cinco anos de idade que está
perguntando: “papai, por que as pessoas brancas tratam as pessoas de cor tão mal?”; quando você
faz uma viagem através de seu estado e descobre ser necessário dormir noite após noite nos cantos
desconfortáveis de seu carro porque nenhum motel o aceita; quando você é humilhado entra dia sai
dia por placas irritantes dizendo “branco” e “de cor”; quando seu nome torna-se “Zé” e seu
sobrenome torna-se “neguinho” (não importa sua idade), e sua mulher e mãe nunca são chamadas
pelo título respeitável de “Sras.”; quando você é perseguido de dia e assombrado à noite pelo fato de
que você é um negro, vivendo constantemente na ponta dos pés, sem saber exatamente o que
esperar em seguida, e é atormentado por medos interiores e ressentimentos exteriores; quando você
está sempre lutando contra uma impressão degradante de “não ser ninguém” – então você
entenderá porque achamos difícil esperar. Chega um momento em que a capacidade de suportar
esgota-se, e os homens não estão mais dispostos a mergulhar no abismo do desespero. Espero,
senhores, que vocês possam compreender nossa impaciência legítima e inevitável. Vocês manifestam
uma boa dose de ansiedade quanto à nossa disposição de violar as leis. Essa é certamente uma
preocupação legítima. Como nós exortamos tão ativamente as pessoas a obedecerem à decisão de
1954 da Suprema Corte que baniu a segregação em escolas públicas, à primeira vista pode parecer
um tanto paradoxal que nós conscientemente violemos leis. Também se poderia perguntar: “Como
vocês podem advogar a violação de certas leis e a obediência a outras?” A resposta está no fato de
que existem dois tipos de leis: as justas e as injustas. Eu seria o primeiro a advogar a obediência a
leis justas. Tem-se uma responsabilidade não só legal como também moral de obedecer a leis justas.
De modo contrário, tem-se uma responsabilidade moral de desobedecer a leis injustas. Concordaria
com Santo Agostinho em que “uma lei injusta simplesmente não é lei”.
Agora, qual é a diferença entre as duas? Como se pode determinar se uma lei é justa ou injusta?
Uma lei justa é um código produzido pelo homem que se ajusta à lei moral ou à lei de Deus. Uma lei
injusta é um código que está em desacordo com a lei moral. Para colocar nos termos de Santo Tomás
de Aquino: uma lei injusta é uma lei humana que não está radicada na lei eterna e na lei natural.
Qualquer lei que eleve a personalidade humana é justa. Qualquer lei que degrade a personalidade
humana é injusta. Todos os estatutos segregacionistas são injustos porque a segregação desfigura a
alma e danifica a personalidade. Ela dá ao segregador uma falsa impressão de superioridade e aos
segregados, uma falsa impressão de inferioridade. A segregação, para usar a terminologia do filósofo
judeu Martin Buber, substitui uma relação “eu-você” por uma relação “eu-isso” e acaba por relegar
pessoas à condição de coisas. Portanto, a segregação não é apenas política, econômica e
sociologicamente doentia: é moralmente errada e pecaminosa. Paul Tillich disse que o pecado é uma
separação. A segregação não é uma expressão existencial da trágica separação do homem, da sua
horrível alienação, da sua terrível pecaminosidade? Sendo assim, posso exortar os homens a
obedecerem à decisão de 1954 da Suprema Corte, porque ela é moralmente correta; e posso exortá-
los a desobedecerem a normas segregacionistas, porque elas são moralmente erradas.
Consideremos um exemplo mais concreto de leis justas e injustas. Uma lei injusta é um código que
um grupo majoritário em termos de poder ou de número compele um grupo minoritário a obedecer,
mas ao qual não se sujeita. Isso é a diferença tornada legal. Pela mesma razão, uma lei justa é um
código que uma maioria compele uma minoria a seguir e que ela própria está disposta a seguir. Isso
é a igualdade tornada legal. Deixe-me fazer outro esclarecimento. Uma lei é injusta se for imposta a
uma minoria que, por ter o direito de votar negado a si, não participou da decretação ou da criação
da lei. Quem pode dizer que o parlamento do Alabama que constituiu as leis segregacionistas daquele
Estado foi democraticamente eleito? Por todo o Alabama, todos os tipos de métodos tortuosos foram
usados para impedir os negros de tornarem-se eleitores registrados, e há alguns municípios em que,
embora os negros componham a maioria da população, um negro sequer está registrado. Qualquer
lei decretada sob essas circunstâncias pode ser considerada democraticamente estruturada?
Às vezes, uma lei é justa no papel e injusta na sua aplicação. Por exemplo, fui preso por uma
acusação de fazer uma passeata sem autorização. Agora, não há nada de errado em existir uma
norma que exija uma autorização para uma passeata. Mas essa norma torna-se injusta quando é
usada para manter a segregação e negar a cidadãos o direito fundamental da primeira emenda à
Constituição de reunião pacífica e de protesto.
Espero que vocês sejam capazes de observar a distinção que estou tentando mostrar. De modo
algum, defendo a evasão e o desafio à lei, como faria o segregacionista furioso. Isso levaria à
anarquia. Alguém que viole uma lei injusta tem de fazê-lo abertamente, amorosamente, e com
disposição para aceitar a pena. Argumento que um indivíduo que viola uma lei que a consciência lhe
diz que é injusta, e que aceita de bom grado a pena de prisão a fim de despertar a consciência da
comunidade quanto à sua injustiça, está na verdade exprimindo o mais elevado respeito à lei.
Obviamente, não há nada de novo nessa forma de desobediência civil. Ela foi manifestada de
maneira sublime pela recusa de Shadrach, Meshach e Abednego a obedecerem às leis de
Nabucodonosor, sob o argumento de que estava em jogo uma lei moral mais elevada. Foi praticada
soberbamente pelos primeiros cristãos, que preferiam enfrentar leões famintos e a dor torturante do
talho a submeter-se a certas leis injustas do Império Romano. Até certo ponto, a liberdade acadêmica
é uma realidade hoje porque Sócrates praticou a desobediência civil. Na nossa própria nação,
oBoston Tea Party representou um ato imponente de desobediência civil.
Nunca devemos nos esquecer de que tudo que Adolf Hitler fez na Alemanha era “legal” e tudo que os
combatentes húngaros da liberdade fizeram na Hungria era “ilegal”. Era “ilegal” ajudar e confortar
um judeu na Alemanha de Hitler. Ainda assim, tenho certeza de que, se tivesse vivido na Alemanha
naquele tempo, teria ajudado e confortado meus irmãos judeus. Se vivesse hoje em um país
comunista onde certos princípios caros à fé cristã foram suprimidos, defenderia abertamente a
desobediência às leis antirreligiosas do país.
Tenho de fazer duas confissões sinceras a vocês, meus irmãos cristãos e judeus. Primeiro, tenho de
confessar que ao longo dos últimos anos decepcionei-me seriamente com os brancos moderados.
Quase cheguei à lamentável conclusão de que a maior pedra no caminho dos negros em seu avanço
rumo à liberdade não é o White Citizen’s Counciler ou o membro da Ku Klux Klan, mas os brancos
moderados, que são mais zelosos da “ordem” do que da justiça; que preferem uma paz negativa que
é a ausência de tensão a uma paz positiva que é a presença da justiça; que dizem constantemente:
“concordo com vocês quanto ao objetivo que buscam, mas não posso concordar com seus métodos
de ação direta”; que acreditam paternalisticamente que podem fixar o cronograma para a liberdade
de outro homem; que vivem sob um conceito mítico do tempo e que constantemente aconselham o
negro à espera por uma “época mais apropriada”. A compreensão superficial de pessoas de boa
vontade é mais frustrante do que a incompreensão completa de pessoa de má vontade. A aceitação
morna é muito mais atordoante do que a rejeição total.
Eu tinha tido esperanças de que os brancos moderados compreenderiam que a lei e a ordem existem
para o propósito de estabelecer a justiça e que quando fracassam nesse propósito tornam-se
represas estruturadas perigosamente que bloqueiam o curso do progresso social. Tinha tido
esperanças de que os brancos moderados compreenderiam que a atual tensão no sul é uma fase
necessária da transição de uma detestável paz negativa, em que os negros passivamente aceitavam
suas injustas situações difíceis, para uma paz positiva e substantiva, em que todos os homens
respeitarão a dignidade e o valor da personalidade humana. Na realidade, nós que nos envolvemos
em ações diretas pacíficas não somos os criadores da tensão. Tão-somente trazemos à superfície a
tensão oculta que já existe. Descortinamo-la, para que possa ser vista e tratada. Como um furúnculo
que não pode ser curado enquanto estiver coberto, mas que deve ser exposto com toda a sua feiura
aos remédios naturais do ar e da luz, a injustiça tem de ser desvendada, com toda a tensão que sua
exposição gera, à luz da consciência humana e ao ar da opinião nacional, antes que possa ser
curada.
Em sua declaração, vocês afirmam que nossas ações, embora pacíficas, devem ser condenadas
porque precipitam a violência. Mas essa é uma afirmação lógica? Isso não equivale a condenar um
homem roubado porque sua posse de dinheiro precipitou o ato mau do roubo? Isso não equivale a
condenar Sócrates porque seu compromisso inabalável com a verdade e suas investigações filosóficas
precipitaram o ato do povo mal orientado pelo qual o fizeram beber a cicuta? Isso não equivale a
condenar Jesus porque sua singular consciência divina e devoção inesgotável à vontade de Deus
precipitaram o ato mau da crucificação? Devemos notar que, como os tribunais federais
consistentemente afirmaram, é errado incitar um indivíduo a interromper seus esforços para obter
seus direitos constitucionais básicos porque a jornada pode precipitar a violência. A sociedade tem de
proteger o roubado e punir o ladrão. Também tinha tido esperanças de que os brancos moderados
rejeitariam o mito concernente ao tempo em relação à luta pela liberdade. Recebi há pouco uma
carta de um irmão branco do Texas. Ele escreve: “Todos os cristãos sabem que as pessoas de cor um
dia receberão direitos iguais, mas é possível que vocês estejam com uma pressa religiosa grande
demais. A cristandade precisou de quase dois mil anos para alcançar o que tem hoje. Os
ensinamentos de Cristo demoram a chegar a Terra.” Essa concepção decorre de um trágico conceito
errôneo do tempo, da noção estranhamente irracional de que há algo no próprio curso do tempo que
inevitavelmente curará todos os males. Na realidade, o tempo em si é neutro; pode ser usado quer
destrutivamente, quer construtivamente. Cada vez mais, sinto que as pessoas de má vontade usam o
tempo de modo muito mais eficaz do que as pessoas de boa vontade. Nós nos arrependeremos, no
tocante a essa geração, não apenas das palavras e ações odiáveis das pessoas más, como também
do silêncio espantoso das pessoas boas. O progresso humano nunca advém da roda da
inevitabilidade; ele deflui dos incansáveis esforços de homens dispostos a serem colegas de trabalho
de Deus, e, sem esse trabalho duro, o próprio tempo torna-se um aliado das forças da estagnação
social. Temos de usar o tempo criativamente, com base no conhecimento de que o tempo sempre
está pronto para fazer o certo. Agora é a hora de tornar real a promessa de democracia e de
transformar nossa iminente elegia nacional em um criativo salmo da fraternidade. Agora é a hora de
alçar nossa política nacional da areia movediça da injustiça racial à sólida rocha da dignidade
humana.
Vocês falam de nossa atividade em Birmingham como extrema. A princípio, fiquei um pouco
decepcionado com o fato de amigos clérigos considerarem meus esforços pacíficos como os de um
extremista. Comecei a pensar sobre o fato de que me situo no meio de duas forças opostas na
comunidade negra. Uma é a força da complacência, composta em parte por negros que, como
resultado de longos anos de opressão, estão tão carentes de amor-próprio e da sensação de “ser
alguém” que se adaptaram à segregação; e em parte de alguns negros de classe média que, devido a
certo grau de segurança acadêmica e econômica e porque se beneficiam de algum modo da
segregação, tornaram-se insensíveis aos problemas das massas. A outra é uma força da amargura e
do ódio, que chega perigosamente perto de defender a violência. Manifesta-se em vários grupos
nacionalistas negros que estão brotando por todo o país, sendo o maior e mais conhecido o
movimento islâmico de Elijah Muhammad. Alimentado pela frustração dos negros pela existência
contínua da discriminação racial, esse movimento é composto de pessoas que perderam a fé nos
Estados Unidos, que repudiaram completamente o cristianismo e que concluíram que o homem
branco é um “demônio” incorrigível.
Tentei me situar entre essas duas forças, dizendo que não precisamos imitar nem a inação dos
complacentes nem o ódio e o desespero dos nacionalistas negros. Porque existe a maneira muito
melhor do amor e do protesto pacífico. Sou grato a Deus por, mediante a influência da igreja negra,
a maneira do pacifismo ter-se tornado uma parte essencial de nossa luta. Se essa filosofia não tivesse
surgido, muitas ruas do sul estariam agora, tenho certeza, com rios de sangue. Estou ainda mais
certo de que, se nossos irmãos brancos repudiarem aqueles de nós que empregam ações diretas
pacíficas como “um bando de inflamados” ou “forasteiros agitadores”, e se se recusarem a apoiar
nossos esforços pacíficos, milhões de negros buscarão, por frustração e desespero, consolo e
segurança em ideologias nacionalistas negras – uma evolução que inevitavelmente levaria a um
assustador pesadelo racial.
Pessoas oprimidas não podem permanecer oprimidas para sempre. A ânsia pela liberdade por fim
manifesta-se, e foi isso que aconteceu com o negro americano. Algo em seu interior lembrou-lhe de
seu direito inato à liberdade, e algo exterior lembrou-lhe que ele pode ser obtido. Consciente ou
inconscientemente, ele foi apanhado pelo espírito da época, e com seus irmãos negros da África e
seus irmãos amarelos e pardos da Ásia, da América do Sul e do Caribe, o negro dos Estados Unidos
está se movendo com uma sensação de incrível urgência rumo à terra prometida da justiça racial. Ao
reconhecer-se esse anseio vital que se apoderou da comunidade negra, entende-se prontamente por
que manifestações públicas estão ocorrendo. O negro tem muitos ressentimentos reprimidos e
frustrações latentes, e ele precisa libertá-los. Então, deixe-o marchar; deixe-o fazer peregrinações
pias às prefeituras; deixe-o ir em viagens pela liberdade – e tente entender por que ele tem de fazê-
lo. Se suas emoções reprimidas não forem liberadas de maneiras pacíficas, buscarão expressão por
meio da violência; isso não é uma ameaça, mas um fato histórico. Assim, não disse ao meu povo:
“livre-se de seu desgosto”. Antes, tentei dizer que esse desgosto normal e saudável pode ser
canalizado por escapes criativos como a ação direta pacífica. E agora esse método está sendo
denominado de extremista. Mas, embora tenha ficado inicialmente decepcionado ao ser classificado
como extremista, continuando a pensar sobre o assunto, gradualmente extraí certa dose de
satisfação do rótulo. Não era Jesus um extremista do amor: “Ame seus inimigos, abençoe aqueles
que te amaldiçoam, faça o bem àqueles que te odeiam e reze por aqueles que desprezivelmente te
usam e te atormentam”? Não era Amos um extremista da justiça: “Deixem a justiça fluir como as
águas e a probidade como um rio que nunca para”? Não era Paulo um extremista do evangelho
cristão: “Carrego no meu corpo as marcas do Senhor Jesus”? Não era Martinho Lutero um
extremista: “Aqui estou; não tenho alternativa, então que Deus me ajude”? E John Bunyan: “Ficarei
na prisão até o fim dos meus dias, até que faça da minha consciência um matadouro”? E Abraham
Lincoln: “Esse país não pode sobreviver metade escravo e metade livre”? E Thomas Jefferson:
“Temos essas verdades como auto-evidentes, de que todos os homens nascem iguais...”? Assim, a
questão não é se seremos extremistas, mas que tipo de extremistas seremos. Seremos extremistas
do ódio ou do amor? Seremos extremistas da preservação da injustiça ou da extensão da justiça?
Naquela cena dramática do Calvário, três homens foram crucificados. Nunca devemos nos esquecer
de que todos os três foram crucificados pelo mesmo crime – o crime de extremismo. Dois eram
extremistas da imoralidade e, assim, estavam abaixo dos demais. O outro, Jesus Cristo, era um
extremista do amor, da verdade e do bem, e, por conseguinte, ergueu-se acima dos demais. Talvez o
sul, o país e o mundo estejam com uma terrível carência de extremistas criativos.
Tivera esperança de que os brancos moderados notariam essa carência. Talvez estivesse otimista
demais; talvez esperasse demais. Suponho que deveria ter percebido que poucos membros da raça
opressora podem compreender os graves gemidos e os anseios apaixonados da raça oprimida, e que
menos ainda têm a perspicácia para notar que a injustiça tem de ser extirpada por ações fortes,
persistentes e determinadas. Sou grato, contudo, pelo fato de que alguns de nossos irmãos brancos
do sul alcançaram o significado dessa revolução social e empenharam-se nela. Eles ainda são muito
poucos em quantidade, mas são muitos em qualidade. Alguns – como Ralph McGill, Lillian Smith,
Harry Golden, James McBride Dabbs, Ann Braden e Sarah Patton Boyle – escreveram sobre nossa
luta em termos eloquentes e proféticos. Outros marcharam conosco por ruas sem nome do sul.
Debilitaram-se em prisões imundas, infestada por baratas, sofrendo os abusos e a brutalidade de
policiais que os veem como “sujos amantes dos negros”. Diferentemente de tantos de seus irmãos e
irmãs moderados, reconheceram a urgência do momento e sentiram a necessidade de poderosos
antídotos “de ação” para combater a doença da segregação. Deixem-me tomar nota de minha outra
grande decepção. Decepcionei-me tão imensamente com a igreja branca e suas lideranças. É claro,
há algumas notáveis exceções. Não me esqueço do fato de que cada um de vocês tomou algumas
posições significativas nesse tema. Louvo-o, reverendo Stallings, pela sua postura cristã no último
domingo, ao receber negros nos seus serviços de devoção de maneira não-segregacionista. Louvo os
líderes católicos desse Estado por terem integrado o Spring Hill College muitos anos atrás.
Mas, apesar dessas notáveis exceções, tenho de sinceramente reiterar que me decepcionei com sua
igreja. Não digo isso como um daqueles críticos negativos que sempre conseguem encontrar algo
errado na igreja. Digo isso como um sacerdote do evangelho, que ama a igreja; que foi acalentado
em seu seio; que tem sido sustentado por suas bênçãos espirituais e que permanecerá fiel a ela
enquanto o fio da vida estender-se.
Quando fui de repente catapultado à liderança do protesto dos ônibus em Montgomery, Alabama, há
alguns anos, achei que seríamos apoiados pela igreja branca. Achei que os sacerdotes, os padres e
os rabinos brancos do sul estariam entre os nossos mais firmes aliados. Ao contrário, alguns foram
completos oponentes, recusando-se a compreender o movimento pela liberdade e deturpando seus
líderes; muitos outros foram mais cautelosos do que corajosos e permaneceram mudos atrás da
segurança anestesiante dos vitrais.
A despeito de meus sonhos despedaçados, vim a Birmingham com a esperança de que a liderança
religiosa branca dessa comunidade veria a justiça de nossa causa e, com profunda preocupação
moral, serviria como canal através do qual nossas justas queixas alcançariam a estrutura do poder.
Tivera esperança de que cada um de vocês compreenderia. Mas, de novo, decepcionei-me.
Ouvi numerosos líderes religiosos sulistas admoestarem seus devotos a cumprir a decisão contra a
segregação porque é a lei, mas ansiei por ouvir sacerdotes brancos declararem: “Sigam esse decreto
porque a integração é moralmente correta e porque o negro é seu irmão.” Em meio a barulhentas
injustiças infligidas sobre o negro, observei membros da igreja permanecerem à distancia e
declamarem irrelevâncias pias e platitudes carolas. Em meio a uma vigorosa luta para livrar nosso
país da injustiça racial e econômica, ouvi muitos sacerdotes dizerem: “Esses são temas sociais, com
os quais o evangelho não tem nenhuma preocupação real”. E vi muitas igrejas empenharem-se numa
religião completamente de outro mundo que faz uma estranha e não-bíblica distinção entre o corpo e
a alma, entre o sagrado e o secular.
Viajei acima e abaixo por Alabama, Mississipi e todos os outros estados sulistas. Em dias sufocantes
de verão e manhãs revigorantes de outono, contemplei as lindas igrejas do sul, com seus cumes
majestosos apontados em direção aos céus. Admirei os perfis impressionantes dos amplos edifícios
de educação religiosa. Repetidamente, peguei-me perguntando: “Que tipo de pessoa ora aqui? Quem
é seu Deus? Onde estavam suas vozes quando dos lábios do governador Barnett respingaram
palavras de interposição e nulificação? Onde elas estavam quando o governador Wallace deu um
toque de clarim em favor do desafio e do ódio? Onde estavam suas vozes de apoio quando homens e
mulheres negros, feridos e exaustos, decidiram levantar-se dos calabouços escuros da complacência
até as colinas claras do protesto criativo?”
Sim, essas perguntas ainda estão na minha mente. Em decepção profunda, chorei pela frouxidão da
igreja. Mas estejam certos de que minhas lágrimas foram lágrimas de amor. Não pode existir
decepção profunda onde não existe amor profundo. Sim, amo a igreja. Como poderia não amar?
Estou na posição um tanto singular de filho, neto e bisneto de pregadores. Sim, vejo a igreja como o
corpo de Cristo. Mas, oh!, como maculamos e deixamos cicatrizes nesse corpo por meio da
negligência social e por meio do medo de sermos não-conformistas.
Houve um tempo em que a igreja era bastante ponderosa – no tempo em que os primeiros cristãos
regozijavam-se por ser considerados dignos de ter sofrido por aquilo em que acreditavam. Naqueles
dias, a igreja não era apenas um termômetro que registrava as idéias e princípios da opinião pública;
era um termostato que transformava os costumes da sociedade. Quando os primeiros cristãos
entravam em uma cidade, as pessoas no poder ficavam transtornadas e imediatamente buscavam
condenar os cristãos por serem “perturbadores da paz” e “forasteiros agitadores”. Mas os cristãos
prosseguiam, com a convicção de que eram “uma colônia do céu”, que devia obediência a Deus e
não ao homem. Pequenos em número, eram grandes em compromisso. Eles eram intoxicados demais
por Deus para serem “astronomicamente intimidados”. Com seu esforço e exemplo, puseram um fim
em maldades antigas como o infanticídio e duelos de gladiadores. As coisas são diferentes agora.
Com tanta frequência a igreja contemporânea é uma voz fraca, ineficaz com um som incerto. Com
tanta frequência é uma arquidefensora do status quo. Longe de se sentir transtornada pela presença
da igreja, a estrutura do poder da comunidade normal é confortada pela sanção silenciosa – e com
frequência sonora – da igreja das coisas tais como são.
Mas o julgamento de Deus pesa sobre a igreja como nunca pesou. Se a igreja atual não recuperar o
espírito de sacrifício da igreja primitiva, perderá sua autenticidade, será privada da lealdade de
milhões e será descartada como um clube social irrelevante com nenhum significado para o século
XX. Todos os dias, encontro pessoas jovens cuja decepção com a igreja tornou-se uma repugnância
absoluta.
Talvez tenha sido mais uma vez otimista demais. Estará a religião organizada ligada
inextricavelmente demais ao status quo para salvar o país e o mundo? Talvez deva dirigir minha fé à
igreja interior, espiritual, a igreja dentro da igreja, como a verdadeira ekklesiae a esperança do
mundo. Mas, de novo, sou grato a Deus por algumas almas nobres das fileiras da igreja organizada
terem rompido as correntes paralisantes do conformismo e unido-se a nós como parceiros ativos na
luta pela liberdade. Eles abandonaram suas congregações seguras e percorreram as ruas de Albany,
Geórgia, conosco. Desceram as rodovias do sul em viagens tortuosas pela liberdade. Sim, foram para
a cadeia conosco. Alguns foram expulsos de suas igrejas, perderam o apoio de seus bispos e colegas
sacerdotes. Mas agiram com a fé de que o bem derrotado é mais forte do que o mal triunfante. Sua
testemunha tem sido o sal espiritual que tem preservado o verdadeiro significado do evangelho
nesses tempos turbulentos. Eles cavaram um túnel de esperança através da montanha negra da
decepção. Espero que a igreja como um todo enfrente o desafio nessa hora decisiva. Mas mesmo que
a igreja não venha ajudar a justiça, não perco a esperança no futuro. Não tenho medo a respeito do
resultado de nossa luta em Birmingham, mesmo que nossas razões sejam no momento mal
compreendidas. Alcançaremos a meta da liberdade em Birmingham e no mundo inteiro, porque a
meta dos Estados Unidos é a liberdade. Não importa se estamos ofendidos e escarnecidos, nosso
destino está ligado ao destino dos Estados Unidos. Antes de os peregrinos desembarcarem em
Plymouth, estávamos aqui. Antes de a pena de Jefferson desenhar as palavras majestosas da
Declaração de Independência através das páginas da história, estávamos aqui. Por mais de dois
séculos, nossos antepassados trabalharam nesse país sem receber salários; eles colheram o algodão;
eles construíram as casas de seus senhores enquanto sofriam injustiças crassas e humilhações
vergonhosas –e, no entanto, com uma vitalidade sem fim, continuaram a prosperar e a desenvolver-
se. Se as crueldades inenarráveis da escravidão não puderam parar-nos, a oposição que enfrentamos
agora certamente fracassará. Ganharemos nossa liberdade porque a herança sagrada de nosso país e
a eterna vontade de Deus estão incorporadas nas nossas sonoras exigências. Antes de encerrar,
sinto-me impelido a mencionar outro ponto em sua declaração que me perturbou profundamente.
Vocês calorosamente elogiaram a força policial de Birmingham por manter a “ordem” e “impedir a
violência”. Duvido que teriam elogiado tão calorosamente a força policial se tivessem visto seus cães
afundando seus dentes em negros desarmados, pacíficos. Duvido que teriam elogiado tão
rapidamente os policiais se fossem observar seu tratamento horrível e desumano dos negros aqui na
prisão municipal; se fossem vê-los empurrar e amaldiçoar velhas mulheres negras e jovens meninas
negras; se fossem vê-los estapear e chutar velhos homens negros e jovens meninos; se fossem
observá-los, como fizeram em duas ocasiões, negar-nos comida porque queríamos cantar nossa
oração juntos. Não posso acompanhá-los no seu louvor ao departamento de polícia de Birmingham.
É verdade que a polícia demonstrou um nível de disciplina ao lidar com os manifestantes. Nesse
sentido, eles se conduziram um tanto “pacificamente” em público. Mas com que propósito? Para
preservar o sistema maligno da segregação. Ao longo dos últimos anos, continuamente preguei que o
pacifismo exige que os meios que usamos devem ser tão puros quanto os fins que buscamos. Tentei
deixar claro que é errado usar meios imorais para alcançar fins morais. Mas agora tenho de afirmar
que isso é tão errado, ou talvez ainda mais errado, quanto usar meios morais para preservar fins
imorais. Talvez o Sr. Connor e seus policiais tenham sido um tanto pacíficos em público, como foi o
coronel Pritchett em Albany, Geórgia, mas eles usaram os meios morais do pacifismo para manter o
fim imoral da injustiça racial. Como T. S. Eliot disse: “A última tentação é a maior traição: fazer a
coisa certa pelo motivo errado.”
Gostaria que vocês tivessem louvado os sit-inners e manifestantes negros de Birmingham pela sua
coragem sublime, sua disposição para sofrer e sua disciplina incrível em meio a uma grande
provocação. Um dia, o sul reconhecerá seus verdadeiros heróis. Eles serão os James Merediths, com
o nobre senso de justiça que lhes permite enfrentar bandos zombeteiros e hostis, e com a solidão
agonizante que caracteriza a vida do pioneiro. Eles serão as velhas, oprimidas, castigadas mulheres
negras, simbolizadas em uma velha mulher de setenta e dois anos de idade de Montgomery,
Alabama, que se ergueu com um senso de dignidade e com seus iguais decidiu não viajar em ônibus
segregacionistas, e que respondeu com profundidade agramatical a alguém que lhe indagou sobre
seu cansaço: “Meus pé está cansado, mas minha alma está em paz.” Eles serão os estudantes
colegiais e universitários, os jovens sacerdotes do evangelho e uma multidão de seus pais, corajosa e
pacificamente sentando-se em balcões e dispostos a ir para cadeia por amor à consciência. Um dia, o
sul saberá que quando esses filhos deserdados de Deus sentaram-se em balcões, estavam na
verdade fazendo jus ao que há de melhor no sonho americano e o que há de mais sagrado nos
valores de nossa herança judaico-cristã, desse modo trazendo nosso país de volta àqueles grandes
poços de democracia que foram cavados em profundidade pelos pais fundadores na sua formulação
da Constituição e da Declaração de Independência.
Nunca escrevi uma carta tão longa. Temo que seja longa demais para tomar seu tempo precioso.
Posso lhes garantir que teria sido muito menor se a tivesse escrito em uma mesa confortável, mas o
que mais se pode fazer quando se está sozinho em um cela apertada a não ser escrever longas
cartas, pensar longos pensamentos e rezar longas orações?
Se disse algo nessa carta que exagera os fatos e indica uma impaciência imoderada, peço que me
perdoem. Se disse algo que atenua os fatos e indica uma paciência que me permite conciliar-me com
algo menor do que a fraternidade, peço a Deus que me perdoe.
Espero que essa carta encontre-os fortes em sua fé. Espero também que as circunstâncias em breve
permitam que me encontre com cada um de vocês, não como um integracionista ou um líder dos
direitos civis, mas como um colega clérigo e um irmão cristão. Tenhamos todos esperança em que as
nuvens negras do preconceito desapareçam em breve e a neblina profunda da incompreensão
dissipe-se das nossas comunidades cheias de medo, e que em um amanhã não muito distante as
estrelas radiantes do amor e da fraternidade brilhem sobre nosso grande país com toda a sua beleza
cintilante.
16 de abril de 1963.