Antonio Candido e Outros - A Personagem de Ficção (PDF) (Rev)
Antonio Candido e Outros - A Personagem de Ficção (PDF) (Rev)
Antonio Candido e Outros - A Personagem de Ficção (PDF) (Rev)
de Ficção
A Personagem de Ficção
2a edição
Editora Perspectiva
São Paulo
PREFÁCIO
(pag. 5)
dos quatro ‘docentes, para balanço e esclarecimento de problemas; a
projeção do filme La Dolce Vita, de Federico Fellini, comentado pelo
Professor Paulo Emilio Sales Gomes do ângulo das técnicas de
caracterização psicológica; a representação da peça A Escada, de Jorge
Andrade, seguida de debate sôbre a caracterização cênica, orientado
pelo Professor Décio de Almeida Prado, com a participação central do
encenador, Flávio Rangel, e a colaboração da crítica de teatro Bárbara
Heliodora Carneiro de Mendonça. Dessa maneira, procurou-se pôr os
estudantes em contato com várias faces de um problema complexo, a
fim de que a teoria e a análise, do ponto de vista literário, ficassem o
mais esclarecidas possível pela incidência de outros focos.
Neste Boletim, recolhem-se as aulas sôbre personagem do professor do
curso e as contribuições do Seminário, redigidas especialmente para o
caso. Como se verá, as exposições críticas sôbre o problema no
romance, no teatro e no cinema giram estruturalmente em tôrno da
exposição básica sôbre o problema geral da ficção, embora cada autor
tenha escrito a sua contribuição independentemente e com tôda a
liberdade.”
Na presente edição, suprimiu-se a pequena bibliografia final, de
interêsse meramente indicativo, e corrigiram-se alguns erros
tipográficos.
Conceito de Literatura
1
O significado dêste têrmo, no sentido usado neste trabalho, se esclarecerá mais adiante, sem que haja
qualquer pretensão de uma abordagem ampla e profunda dêste conceito tradicional, desde a antiguidade
objeto de muitas discussões. Contribuições recentes para a sua análise encontram-se nas obras de 3.-P.
Sartre, L’Imagination e L’Imaginaire, Roman Ingsrden, Das literarische Kunstwerk (A obra-de-arte
literária) e Untersuchungen zur Ontol,ogle der Kunst (Investigações acêrca da ontologia da arte) M.
Dufreune, Phénoménologje de l’expérlence esthétique — tôdas baseadas nos métodos de E. Husseri.
(pag. 9)
a critérios de valorização, principalmente estética, que como tais não
atingem objetividade científica embora se possa ao menos postular certo
consenso universal.
A valorização estética
O Papel de Personagem
(pag. 51)
verdade da personagem por parte do leitor. Tanto assim, que nós
perdoamos os mais graves defeitos de enrêdo e de idéia aos grandes
criadores de personagens. Isto nos leva ao êrro, freqüentemente
repetido em crítica, de pensar que o essencial do romance é a
personagem, — como se esta pudesse existir separada das outras
ralidades que encarna, que ela vive, que lhe dão vida. Feita esta
ressalva, todavia, pode-se dizer que é o elemento mais atuante, mais
comunicativo da arte novelística moderna, como se configurou nos
séculos XVIII, XIX e comêço do XX; mas que só adquire pleno
significado
2. Cit. por Walter Scott, ap. Minam AIlott, Novelists on the Novel, Routledge
and Kegan Paul, London, 1960, p. 276.
(Pag. 81)
quase vazio de uma das famosas encenações de Jacques Copeau: como
não havia nada que ver, viam-se as palavras. Com efeito, há tôda uma
corrente estética moderna, baseada em ilustres precedentes históricos,
que procura reduzir o cenário quase à neutralidade para que a
soberania da personagem se afirme ainda com maior pureza. Em suma,
tanto o romance como o teatro falam do homem — mas o teatro o faz
através do próprio homem, da presença viva e carnal do ator.
Poderíamos dizer a mesma coisa de outra maneira, já agora começando
a aprofundar um pouco mais essa visão sintética inicial, notando que
teatro é ação e romance narração Aristóteles, em sua Poética, foi quem
primeiro colocou a questão nesses têrmos, ao cotejar o poema épico
(que sob êste aspecto se assemelha ao romance) com a tragédia:
“Efetivamente, com os mesmos meios pode um poeta imitar os mesmos
objetos, quer na forma narrativa (assumindo a personalidade de outrôs,
como faz Homero, ou na própria pessoa, sem mudar nunca), quer
mediante tôdas as pessoas imitadas, operando e agindo elas mesmas.
(...) Donde vem o sustentarem alguns que tais composições se
denominam dramas, pelo fato de imitarem agentes” 1 Outra tradução
em português é ainda mais explícita quanto ao último parágrafo: “Daí
vem que alguns chamam a essas obras dramas, porque fazem aparecer
e agir as próprias personagens” 2
5. Leon Edel, The Modern Psychological Novel, Grove Press Inc.New York,
p.9. Na p. 17. o autor comenta os solilóquios de Shakespeare e, na p. 57, a peça
Strange Interlude.
11. Essa classificaçáo corresponde aos títulos dos capítulos de uma das
seções do livro Galeria Theatral, Esboços e Caricaturas, Rio de Janeiro, 1884. O seu
autor, que assina “Gryphus”, é o jornalista José Alves Visconti Coaracy.
12. Conta André Maurois que Paul Valéry lhe disse, “um dia, que
Shakespeare se tornou ilustre por ter tido a idéia, na aparência temerária, de fazer
recitar por atôres, no momento mais trágico dos seus dramas, páginas inteiras de
Montaigne. Aconteceu, diz Valéry, que aquêle público gostava dos discursos morais”.
(André Maurois, Mágicos e Lógicos, traduzido por Reitor Moniz, Editôra Guanabara,
Rio, p. 99.)
confronto que nós, espectadores, acabamos por tirar as nossas
conclusões. Estava criada a peça de idéias, porta larga por onde
passaram e continuam a passar inúmeros autores, desde Bernard Shaw
até Jean-Paul Sartre. Muito pouco há de comum entre êles, na niaioria
das vêzes, além da generosidade com que emprestam o brilho da
própria inteligência às personagens. Por outro lado, o realismo do tipo
norte-americano foi-se confinando cada vez mais ao estudo meramente
psicológico da personagem, única saída diante da impossibilidade de
discutir em cena idéias morais e políticas sem trair os fundamentos
teóricos da escola. Ainda recentemente Arthur Miller, reexaminando
The Crucible (As Feiticeiras de Salém), queixava-se de que o público
anglo-saxão não “acredita na realidade de personagens que vivam de
acôrdo com princípios, conhecendo-se a si mesmas e as situações que
enfrentam, e capazes de dizer o que sabem. (...) Olhando em
retrospecto, creio que deveria ter dado às personagens de As
Feiticeiras de Salém maior autoconsciência, e não, como insinuaram
os críticos, mergulhá-las ainda mais no subjetivismo. Mas nesse caso a
forma e o estilo realistas da peça estariam condenados”. Linhas adiante,
acrescenta: “É inevitável que o traba1ho de Bertold Brecht seja
mencionado. Embora não possa concordar com o seu conceito da
situação humana, a solução que propõe para o problema da tomada de
consciência da personagem é admiràvelmente honesta e teatralmente
poderosa. Não se pode assistir a uma de suas produções sem perceber
que ele está trabalhando, não na periferia do problema dramático
contemporâneo, mas diretamente em seu centro — que é, tornamos a
repetir, o problema da tomada de consciência”
Brecht, com efeito, reformulou a relação autor-personagem em têrmos
originais; tornando-a a questão
13. Arthur Miller, Collected Plays, The Viking Press, New York, 1957, pp.
44-45.
capital da dramaturgia moderna. O seu intuito era o de instituir
um teatro político, atuante, que não permanecesse neutro perante uma
realidade econômica e social que se deve transformar e não descrever.
Um teatro que incite à ação e não à contemplação. Mas Brecht evita
com muita inteligência o escolho habitual do teatro de tese, não
identificando o seu ponto de vista com o da personagem. A presença do
autor em seus espetáculos (já que as suas teorias não se referem
apenas ao texto) faz-se sentir clara mas indiretamente, através do
espetáculo propositadamente teatral, dos cenários não realistas,
ilustrados com dísticos explicativos sôbre a peça, das canções que
desfazem a ilusão cênica e põem o autor em comunicação imediata com
o público. Ainda assim Brecht não diz sem rodeios o que pensa. O seu
método lembra o de Sócrates 14: é pela ironia que ele busca despertar o
espírito crítico do espectador, obrigando-o a reagir, a procurar por si a
verdade. A peça não dá resposta mas faz perguntas, esclarecendo-as
tanto quanto possível, encaminhando a solução correta.
A personagem não perde, portanto, a sua independência, não abdica de
suas características pessoais; mas quando canta, quando vem à ribalta
e encara corajosamente a platéia, admitindo que está no palco, que se
trata de uma representação teatral, passa por assim dizer a outro modo
de existência: se não é pròpriamente o autor, também já não é ela
mesma. É que esta concepção do teatro, que Brecht chamou de épica
por oposição à dramática tal como fôra definida por Aristóteles (épico
em tal contexto equivale pràticamente a narrativo), modifica também a
relação ator-personagem. O intérprete não deve encarnar a personagem,
14. A aproximação talvez seja menos fortuita do que parece Sócrates é de fato
o herói de uma das Histórias de Almanaque de Brecht (B. Brechet, Histolres
d’Almanach, L’Arche, Paris; 1961, p. 105).
( pág.103)
considerações feitas pelos Professôres Antonio Candido e Décio de
Almeida Prado a respeito da personagem novelística e da teatral. Pelo
menos teòricamente. Pois é possível que o meu empenho em subordinar
o cinema ao romance e ao teatro seja, sobretudo, um recurso para levar
avante a tarefa ideológica atual mais premente, que é a de libertar o
filme do Cinema com C maiúsculo, tão ao gôsto da crítica corrente. O
desenrolar das reflexões nos conduzirá por certo à conclusão de que a
impotência estética do cinema em nada perturba a vitalidade do filme.
O terreno que nos ocupa é dominado por uma articulação dialética
entre um sistema confuso de idéias, o cinema, e um conjunto confuso
de fatos, os filmes; mas o segundo grupo sempre levará a melhor.
Se retomarmos as diversas formas de situar a personagem no romance,
às quais o Professor Antonio Candido fêz referência em suas aulas,
verificaremos que são tôdas válidas para o filme, seja a narração
objetiva de acontecimentos, a adoção pelo narrador do ponto de vista de
uma ou mais personagens, ou mesmo a narra çã na primeira pessoa do
singular 1. Aparentemente, a fórmula mais corrente do cinema é a
objetiva, aquela em que o narrador se retrai ao máximo para deixar o
campo livre às personagens e suas ações. Com efeito, a maior parte das
fitas se faz para dar essa impressão.
Na realidade, um pouco de atenção nos permite veri fica que o narrador,
isto é, o instrumental mecânico através do qual o narrador se exprime,
assume em qualquer película corrente o ponto de vista físico, de posição
no espaço, ora desta, ora daquela personagem. Basta atentarmos para a
forma mais habitual de diálogo o chamado “campo contra campo”, onde
vemos, sucessivamente e vice-versa, um protagonista do ponto de vista
do outro.
A estrutura do filme freqüentemente baseia-se na disposição do
narrador em assumir sucessivamente o ponto de vista (aí, não físico,
mas intelectual) de sucessivas personagens. Um dos exemplos célebres
é Cidado Kane, de Orson Welles. A personalidade central nos é
apresentada através dos testemunhos de seus antigos amigos e
colaboradores, de sua ex-mulher e de outros comparsas menos
importantes. Só não conhecemos o ponto de vista de Charles Foster
Kane, o principal protagonista, pelo menos até o momento em que o
narrador-câmara nos oferece alguns esclarecimentos. Os testemunhos e
descrições contraditórias sôbre o mesmo
Prefácio .....................................................................................................................5