Hermeneutica Do Cuidado Pastoral

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ESCOLA SUPERIOR DE TEOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA

ABDRUSCHIN SCHAEFFER ROCHA

HERMENÊUTICA DO CUIDADO PASTORAL: A PARADOXALIDADE DA

HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA

São Leopoldo
2010
ABDRUSCHIN SCHAEFFER ROCHA

HERMENÊUTICA DO CUIDADO PASTORAL: A PARADOXALIDADE DA

HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA

Dissertação de Mestrado
Para obtenção do grau de
Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Programa de Pós-Graduação
Área de Concentração: Teologia Prática

Orientador: Júlio Paulo Tavares Zabatiero

São Leopoldo
2010
ABDRUSCHIN SCHAEFFER ROCHA

HERMENÊUTICA DO CUIDADO PASTORAL: A PARADOXALIDADE DA

HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA

Dissertação de Mestrado
Para obtenção do grau de
Mestre em Teologia
Escola Superior de Teologia
Programa de Pós-Graduação
Área de Concentração: Teologia Prática

Data: ___________________________

Júlio Paulo Tavarez Zabatiero – Doutor em Teologia – EST

__________________________________________________________________

Valério Guilherme Schaper – Doutor em Teologia – EST

__________________________________________________________________

Emil Albert Sobottka – Doutor em Sociologia – PUC/RS

__________________________________________________________________
RESUMO

O presente trabalho parte do pressuposto de que o momento presente — aqui


denominado contemporaneidade — exibe um caráter paradoxal que se justifica na
concomitância das cosmovisões iluminista e pós-moderna. Tal paradoxalidade torna
necessária uma hermenêutica que, enquanto contemporânea, também se constrói
paradoxalmente, e, portanto, serve de base para a construção de uma hermenêutica do
cuidado, principalmente em seu aspecto pastoral. Tal empreitada se iniciará pela constatação
de certa confusão nos conceitos de modernidade e pós-modernidade. Normalmente se usa
essas expressões em diversas acepções, o que torna necessária uma clara conceituação, que
estabeleça suas diferenças, e avance propondo o conceito de contemporaneidade. Com efeito,
este se manifesta como o momento presente, aglutinador tanto da cosmovisão iluminista,
quanto da pós-moderna. Com base no conceito de contemporaneidade, pretende-se investigar
três relações possíveis que corroborem essa paradoxalidade na hermenêutica contemporânea:
a primeira delas discute o paradoxo manifesto na relação velado-revelado, sob o signo da re-
velação. Tal conceito será contrastado com a noção iluminista de revelação — que se
identificou com a Offenbarung hegeliana —, na medida em que admite, em si, o movimento
dialético de velamento e desvelamento. Karl Barth e Heidegger abrirão os caminhos para essa
reflexão. A segunda relação se propõe a investigar as possibilidades de uma hermenêutica que
se construa entre a tradição e a emergência, portanto, entre a memória e o esquecimento.
Buscará na crítica nietzschiana da memória histórica, uma das fontes para a atual crise da
tradição ocidental, bem como chamará a atenção para a sua importância constitutiva. A
terceira relação se concentrará numa hermenêutica que se faça do movimento dialético entre
ação e a afetação. Nesse sentido, mostrará os perigos de uma hermenêutica que se funde
apenas no conhecimento pela ação — o que pode não raro desembocar num pensamento de
tom fortemente metafísico —, e a necessidade de se buscar uma hermenêutica que se
estabeleça a partir de um conhecimento também enquanto afetação. Essa empreitada cumprirá
o seu objetivo ao propor possibilidades para uma hermenêutica contemporânea. A segunda
etapa deste trabalho partirá de uma hermenêutica contemporânea que passou a ver toda a
realidade como um grande texto, o que envolve as pessoas. Portanto, busca compreender as
nuances que caracterizam os textos em movimento a fim de propor uma hermenêutica do
cuidado pastoral. Assim, será necessário, primeiramente, haurir um conceito de cuidado
subsidiado pela filosofia heideggeriana, que o considera como um modo de ser do humano.
Lá se buscará as sementes que construirão uma plataforma conceitual a fim de que seja
possível a proposta de uma hermenêutica do cuidado pastoral. Portanto, com base numa
―filosofia do cuidado‖, a próxima etapa concentra-se em discutir a hermenêutica de textos
vivos, ao ver na metáfora paulina de 2 Co 3:1-3 — que versa sobre as ―cartas vivas‖ — um
modelo hermenêutico para isso. Mas, falar de cartas vivas significa falar do dinamismo
próprio desses textos que, neste sentido, encontram na concepção heideggeriana de ser como
um ―sendo‖, as bases conceituais para tal proposta. A ideia de mundo, outro e Outro, como
elementos constitutivos do ser humano, também oferece suporte para o conceito de sendo do
ministério pastoral. Finalmente, propõem-se três dimensões hermenêuticas do cuidado
pastoral, que resgatem as relações paradoxais manifestas na ação-afetação, na tradição-
emergência, e no velado-revelado.

Palavras-chave: Hermenêutica, cuidado pastoral, textos em movimento, paradoxo,


contemporaneidade.
ABSTRACT

This thesis has as its presupposition the understanding that the present time – named
the contemporary – displays a paradoxical character, which is justified through the
simultaneity of illuminist and post-modern worldviews. Such paradoxical character demands
a paradoxical hermeneutics that may become the foundation to the construction of a
hermeneutics of care, with a special focus on pastoral care. The work starts by noting certain
confusion in the notions of modernity and post-modernity, in order to present the concept of
the contemporary. The contemporary collapses the illuminist and the post-modern worldviews
and creates the possibility to investigate three relationships in contemporary hermeneutics:
the first one is the relationship between closed-disclosed under the sign of re-velation. This
concept of revelation stands in contrast to the illuminist one – identical to the Hegelian
Offenbarung. Karl Barth and Heidegger open the way at this juncture. The second relationship
investigates the possibilities of a hermeneutics built on the dialectic between tradition and
emergence, memory and the forgotten. The third relationship has its focus on a hermeneutics
under the dialectic between action and affection. It will show the dangers of an epistemology
solely based on action – prone to a strong metaphysical thought – and the need of an
epistemology also based on being affected. In this way it will accomplish the task of
launching the foundations for a new contemporary hermeneutics. The second part of the thesis
starts from this contemporary hermeneutics that sees all reality, texts and people, as the object
of interpretation. Therefore, it tries to understand the nuances that define the texts in motion
(people), in order to propose a hermeneutics of pastoral care. Its starting point is the
Heideggerian concept of care as a mode of being human. The second step is a discussion of,
based on 2 Corinthians 3:1-3, the hermeneutics of the living letters, metaphor that is taken as
a hermeneutical model. The metaphor of the living letters emphasizes the being-ness of
human beings and settles the basis for such a hermeneutics. The notions of world, other and
Other – as constitutive of human being – also serve as a foundation to the being-ness of the
pastoral care. Finally, the thesis proposes three hermeneutical dimensions of pastoral care,
built on the paradoxical relationships displayed by the dialectics between action-affection;
tradition-emergence; closed-disclosed.

Key Words: Hermeneutics, Pastoral Care, Living Letters, Paradox, Contemporary.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 8

I - A HERMENÊUTICA ENTRE DOIS MUNDOS: REFLEXÕES SOBRE A


PARADOXALIDADE DA HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA ............................ 13

1. DEFININDO OS TERMOS ............................................................................................... 13


1.1 Modernidade ................................................................................................................. 13
1.2 Pós-Modernidade .......................................................................................................... 17
1.3 Contemporaneidade Como o Moderno e Pós-Moderno ........................................... 23

2. UMA HERMENÊUTICA ENTRE O VELADO E O REVELADO.............................. 26


2.1 Modernidade Ocidental: Uma Cultura do Revelado ................................................ 26
2.1.1 A modernidade e os limites do conhecimento ......................................................... 28
2.1.2 Modernidade e Offenbarung.................................................................................... 30
2.2 Um Modelo de Racionalidade Insuficiente: Novo Lugar Para o Velado ................ 34
2.2.1 A-lētheia e re-velatio como velamento e desvelamento .......................................... 39
2.2.2 A a-lētheia heideggeriana ........................................................................................ 40
2.2.3 A re-velatio barthiana .............................................................................................. 43

3. UMA HERMENÊUTICA ENTRE A TRADIÇÃO E A EMERGÊNCIA .................... 48


3.1 A Crítica Nietzschiana à ―Memória‖ Histórica ......................................................... 48
3.2 A Importância da ―Memória‖ ..................................................................................... 51

4. UMA HERMENÊUTICA ENTRE A AÇÃO E A AFETAÇÃO.................................... 54


4.1 O Conhecimento Pela Ação ......................................................................................... 55
4.1.1 A exegese enquanto ―ação‖ ..................................................................................... 55
4.1.2 Os perigos de uma hermenêutica em tom metafísico .............................................. 60
4.2. O Conhecimento Pela Afetação .................................................................................. 65
4.2.1 A crítica nietzschiana à intelecção socrática e o páthos no conhecimento ............. 66
4.2.2 Achar o que não se busca ........................................................................................ 73

5. POSSIBILIDADES DE UMA HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA .................. 77


5.1 Uma Hermenêutica Que Não Tema a Abscondicidade Divina ................................ 77
5.1.1 Deus se esconde na fraqueza ................................................................................... 78
5.1.2 Deus se esconde em estruturas religiosas e estruturas seculares ............................. 81
5.2 Uma Hermenêutica Que Não Tema Agir Dialeticamente ......................................... 84
5.3. Uma Hermenêutica Que Não Tema a Encarnação e o Diálogo Comunitário........ 87
5.4. Uma Hermenêutica Que Não Tema a ―Santidade‖ e o ―Temor ao Senhor‖ ......... 89
5.5. Uma Hermenêutica Que Não Tema o Paradoxo. ..................................................... 92

II - TEXTOS EM MOVIMENTO – POR UMA HERMENÊUTICA DO CUIDADO


PASTORAL ............................................................................................................................ 95

1. UMA FILOSOFIA DO CUIDADO .................................................................................. 96


1.1 O Cuidado (Sorge) Heideggeriano: paradoxalidade do existir ................................ 96
1.2 O Pastor do Ser: A Escuta do Ser e o Questionar dos Entes .................................. 103

2. UMA HERMENÊUTICA DO CUIDADO PASTORAL: INTERPRETANDO


CARTAS VIVAS .................................................................................................................. 107
2.1 Entre Réplicas e Tréplicas: Sobre Textos Escritos e Textos Vivos ........................ 108
2.2 A Metáfora Paulina .................................................................................................... 110

3. O ―SENDO HUMANO‖ E AS IMPLICAÇÕES PARA O CUIDADO PASTORAL 116


3.1 O Mundo Como Lugar ............................................................................................... 117
3.2 O outro Como Lugar .................................................................................................. 120
3.3 O Outro como lugar .................................................................................................... 126

4. TRÊS DIMENSÕES HERMENÊUTICAS DO CUIDADO PASTORAL .................. 131


4.1 A Dialética Ação-Afetação no Cuidado Pastoral ..................................................... 131
4.2 A Dialética Tradição-Emergência no Cuidado Pastoral ......................................... 136
4.2.1 Cuidando por meio do esquecimento .................................................................... 140
4.2.2 Cuidando por meio da memória ............................................................................ 141
4.2.3 Três textos significativos ....................................................................................... 142
4.3 A Dialética Velado-Revelado no Cuidado Pastoral ................................................. 148

CONCLUSÃO: ..................................................................................................................... 152

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 158


8

INTRODUÇÃO

―Terapeutas do deserto‖! Assim ficaram conhecidos homens e mulheres que eram, ao


mesmo tempo, sacerdotes, médicos, filósofos, psicólogos e educadores. Assim os chama Fílon
de Alexandria, graças a quem nos chega a curiosa ―arte de viver‖ desses alexandrinos, bem
distinta daqueles que hoje são chamados pelo nome de terapeuta 1. Salta aos olhos o modo
como essa comunidade compreende o ser humano: não de maneira compartimentalizada,
como em grande parte do tempo compreendeu a tradição ocidental, mas integralmente. A
abordagem holística dos terapeutas, no tempo de Fílon, se manifestava na ampla variedade de
formas com que cuidavam do ser: cuidavam do corpo; das imagens que habitam a alma;
cuidavam dos deuses e de suas palavras proferidas à alma dos humanos; cuidavam da ética, e
se portavam como instrumentos do ―Vivente‖, por meio de quem acreditavam vir a cura para
os doentes. Portanto, sua antropologia é ampla, e não exclui a dimensão ―espiritual‖ da vida.
Salta aos olhos, também, a transcultural Alexandria, berço da ―fecundação das civilizações do
Ocidente e Oriente‖. Jean-Yves Leloup lembra-nos que Fílon e os terapeutas vivem o ―caldo
cultural‖ da época — bem parecido com o mundo contemporâneo — em que homens e
mulheres de tradição judaica abrem-se à cultura grega. Em meio a essa ebulição cultural, se
colocam como verdadeiros hermeneutas: interpretam as Escrituras e o Logos que as inspiram,
e interpretam a vida em toda a sua integralidade. Portanto, o ser humano constitui o seu
―livro‖ de estudo, e folheá-lo significa cuidá-lo, ao mesmo tempo em que descobrir o seu
Autor.
Os terapeutas constituem um bom exemplo de abordagem transdisciplinar e holística,
no que respeita ao cuidado, e que poderá ser uma referência ao nosso trabalho. Imbuído do
mesmo espírito, pois, é que pretendemos abordar o nosso tema: ―HERMENÊTICA DO
CUIDADO PASTORAL: A PARADOXALIDADE DA HERMENÊUTICA
CONTEMPORÂNEA‖. Portanto, o presente trabalho pretende versar sobre o caráter
paradoxal da hermenêutica contemporânea, que traz no seu bojo a própria paradoxalidade das
cosmovisões iluminista e pós-moderna, e as possibilidades, a partir desse contexto, de
construção de uma ―hermenêutica do cuidado‖, principalmente em seu aspecto pastoral.

1
A tradução e comentário da obra de Fílon nos vêm pelo livro de Jean-Yves Leloup (ver tradução brasileira
LELOUP, Jean-Ives. Cuidar do ser: Fílon e os terapeutas de Alexandria. 11. ed. Petrópolis: Editora Vozes,
2007.).
9

Nesse sentido, se orientará a partir de dois eixos temáticos, que também constituirão
as duas principais partes deste trabalho. O primeiro ―eixo‖ — sob o título de ―A
HERMENÊUTICA ENTRE DOIS MUNDOS: REFLEXÕES SOBRE A
PARADOXALIDADE DA HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA‖ — analisará algumas
manifestações que corroboram esse caráter paradoxal do mundo contemporâneo, e em que
sentido a hermenêutica contemporânea deve ser compreendida também nessa perspectiva.
Nesse ―ambiente‖ se procurará, no capítulo 1, esclarecer os termos modernidade e pós-
modernidade — que normalmente trazem alguma confusão em virtude de sua polissemia —,
donde se proporá um conceito que procure sanar essas possíveis confusões: o conceito de
contemporaneidade. Portanto, a pesquisa refletirá a contemporaneidade ―no âmbito da
2
paradoxalidade de ruptura e de continuidade‖: ruptura, pois alberga a chamada pós-
modernidade que, aos nossos olhos, deverá ser entendida como aquela cosmovisão que vige
como negação da cosmovisão moderna; continuidade, no sentido de que abriga resquícios da
cosmovisão moderna (levada às últimas consequências pelo Iluminismo), que, apesar de
indicar uma cosmovisão nascente no ―período moderno‖ — cronologicamente falando 3 —, se
apresenta como paradigma presente também no mundo contemporâneo. A partir das
diferenças estabelecidas, pois, surge o conceito de contemporaneidade, que designa o
momento presente, aglutinador tanto da cosmovisão iluminista, quanto da pós-moderna.
Com base numa razoável clareza desses conceitos, o trabalho refletirá as ―relações‖
cujas ambiguidades consideramos mais relevantes para uma discussão acerca da hermenêutica
contemporânea. Vislumbram-se, pois, três relações: o capítulo 2 apresentará, como primeira
relação, o caráter paradoxal da contemporaneidade, manifesto na compreensão dialética do
conceito de re-velação. Tal proposta se faz no cotejamento com a concepção iluminista de
revelação, predominante na modernidade ocidental, e expressa por seu caráter evidente e
manifesto. Será apresentada, por um lado, a figura de Hegel como aquele que intensifica este
caráter da revelação, sob o signo da Offenbarung, ao postular um Deus refém da necessidade
de continuamente revelar-se, e, por outro, as figuras de Martin Heidegger e Karl Barth, como
responsáveis por fomentar uma hermenêutica que perscrute o real, consciente, entretanto, de
sua natureza que tende sempre ao ocultamento. O capítulo 3 apresentará, como segunda
relação, os desafios de uma hermenêutica que se estabeleça entre a tradição e a emergência.

2
TRASFERETTI, José; GONÇALVES, Paulo Sérgio Lopes (Orgs.). Teologia na Pós-Modernidade: abordagens
epistemológica, sistemática e teórico-prática. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 10.
3
Conquanto haja diferentes concepções quanto a que período da história pode ser corretamente denominado de
modernidade, prefiro usar o termo de forma mais elástica, o que colocaria a ―história moderna‖ como aquela que
designa os fatos que se seguiram à tomada de Constantinopla em 1453, até a primeira metade do século XX.
10

A crítica nietzschiana à memória histórica, e a consequente destradicionalização da cultura,


será cotejada com os resquícios persistentes de uma tradição ocidental que insiste na
importância de si mesma. Ao mesmo tempo em que se apontará Nietzsche como responsável
por uma postura crítica frente à história, que ainda repercute entre nós, também se mostrará a
importância da memória e da tradição na constituição do ser humano. A terceira relação
(capítulo 4) mostrará o movimento dialético entre ação e afetação, como desafio para a
constituição de uma hermenêutica que se quer contemporânea. Nesse sentido, procurará
destacar a construção de um conhecimento que se faça não só pela ação intencional de um
sujeito, mas também por sua afetação (páthos). Embora não se queira desautorizar o
conhecimento que advenha da ação do intérprete — sem o qual, é claro, não haveria paradoxo
—, pretende-se, no entanto, apontar os perigos de uma hermenêutica em tom metafísico.
Portanto, tal proposta pretende destacar, a partir do conceito de páthos, a premente
necessidade de uma hermenêutica consciente de sua abertura àquele conhecimento que vem
sem que seja buscado, portanto, um conhecimento gratuito. Finalmente, a partir do
estabelecimento de algumas relações que legitimem a tese que afirma tal paradoxo, se
oferecerá algumas intuições como ―caminhos‖ para o estabelecimento de uma hermenêutica
contemporânea.
O objetivo do segundo eixo temático — com o título ―TEXTOS EM MOVIMENTO:
POR UMA HERMENÊUTICA DO CUIDADO PASTORAL‖ — é discutir e propor uma
hermenêutica do cuidado, especialmente o aspecto pastoral desse cuidado. Para tanto, se
partirá de um pressuposto importante da hermenêutica contemporânea, cuja realidade dos
―textos escritos‖ não representa mais os seu único objeto de interpretação, antes, toda a
realidade agora se coloca como um grande texto, ou um conjunto de textos. E, como as
pessoas fazem parte dessa realidade, logo, se constituem como ―textos em movimento‖, que
precisam ser interpretados e interpolados. Assim, o capítulo 1 dessa seção buscará na filosofia
de Heidegger as bases teóricas que sustentem um conceito de cuidado, visto não
encontrarmos no âmbito da Teologia Prática, em geral, reflexões que aprofundem esse
conceito. Normalmente, interpreta-se o cuidado como ―atitudes de cuidar‖, ou mesmo ―ações
de cuidar‖. Heidegger pode ser considerado o pensador que melhor formulou tal conceito, ao
investigar o seu estatuto ontológico, razão pela qual assumiremos aqui suas contribuições.
Para ele, o cuidado é um modo de ser do humano, e quando as pessoas fazem jus a isso, não
só cuidam dos entes, das coisas e das outras pessoas que estão ao seu redor, mas do próprio
ser — portanto, o ser humano é ―pastor do ser‖. O capítulo 2, partindo do pressuposto de que
interpretar é cuidar, proporá uma hermenêutica do cuidado pastoral ao estabelecer algumas
11

diferenças entre ―textos escritos‖ e ―textos vivos‖. Assumirá a metáfora paulinas das ―cartas
vivas‖, relatada em 2 Co 3:1-3, como metáfora significativa em face do fato de lançar luz à
ideia de que as pessoas são ―textos em movimento‖ e, que, portanto, precisam ser
interpretadas, cuidadas. O fato de se apresentarem como textos vivos, em movimento,
confirma o caráter dinâmico desses textos; confirma, também, o pressuposto filosófico que
afirma que o ser humano está em permanente ―construção‖, o que nos remeteria a pensá-lo
como um sendo. Este é o assunto do capítulo 3, que ainda refletirá as implicações desse
caráter dinâmico para o cuidado pastoral. Discutirá, portanto, o ―mundo‖, o ―outro‖ e o
―Outro‖ como lugares constitutivos do humano e do ministério de cuidado. O capítulo 4
tomará como base as três relações paradoxais contempladas na primeira parte, e as analisará
na perspectiva do cuidado pastoral: a dialética ação-afetação do cuidado pastoral; a dialética
tradição-emergência do cuidado pastoral, e a dialética velado-revelado do cuidado pastoral.
Finalmente, à guisa de um esforço por se manter coerente com a proposta de uma razão que
seja mais ―aberta‖, em que os conceitos sejam tomados como ―ferramentas‖ de compreensão
de uma realidade impossível de ser plenamente abarcada, se proporá uma metáfora que
contemple alguns desses conceitos trabalhados ao longo deste trabalho. Trata-se da metáfora:
―Garatuja: a história de uma carta viva‖.
Vale ainda ressaltar que o presente trabalho se orientará dentro de uma abordagem
teológico-filosófico-prática. A proposta que aqui se insinua — a de refletir o cuidado
(pastoral) a partir da paradoxalidade da hermenêutica contemporânea —, pela própria
natureza do objeto proposto, demandará um trato dialético 4, pois não se trata de escolher
―elementos‖ que se firmem em detrimento de outros, e que, assim, construam o ―melhor‖
modelo poimênico, como seria comum dentro de uma ótica dualista. Antes, trata-se de
entender que as ambiguidades refletidas nesses modelos são as ambiguidades do próprio ser
humano, e que muitas delas podem e devem ser assumidas como norteadoras de uma
poimênica mais relevante, capaz de instaurar um ―lugar‖ de transformação do ser humano.
Nesse sentido, nossa empreitada — que aqui seguirá um método hermenêutico-discursivo —
será subsidiada pela hermenêutica posterior à chamada ―virada linguística‖, cujas bases para a
superação do pensamento metafísico foram estabelecidas por pensadores como Nietzsche,
Wittgenstein e Heidegger. Assim, a ideia-teórica-guia que norteará nossa dissertação é
aquela que pode ser denominada como ―pensamento pós-metafísico‖. Embora sejam muitas
as características desse pensamento, ressaltam-se aqui aquelas que justificam a pesquisa se

4
Que, como se verá, não se orientará pelo modelo hegeliano.
12

inserir nesse horizonte: a) um pensamento que abriu mão de descobrir a essência do ser dos
entes, e, assim, objetivá-lo; b) um pensamento que desistiu de ser fundacional para os outros
tipos de saber humano; desistiu, portanto, de se situar fora ou acima da história e finitude
humanas, e de oferecer uma descrição objetiva dos fatos, o que significa também uma maior
―abertura‖ em termos de interpretação; c) um pensamento caracterizado por uma reflexão em
torno do ser ―não em termos de objeto ou estado de coisas, mas em termos de ‗evento‘, como
diz Heidegger‖ 5; d) um pensamento que desistiu de buscar um ―sentido‖ supra-histórico,
centrado no sujeito-que-pensa 6, e instituiu o paradigma da intersubjetividade, pressupondo
que a interpretação da realidade não prescinda das interações humanas.
Partimos, portanto, do pressuposto de que aos cuidadores pastorais, qualquer que
seja a amplitude do sentido desta expressão, está reservada a grande e honrada tarefa de
cuidar de pessoas, com a consciência de que se trata de ―textos‖ que nem sempre se
comportam como gostaríamos. São pessoas em cujo ser se manifesta o paradoxo que se
concretiza nas luzes e sombras, nas alegrias e dissabores, na nobreza e na vileza, porquanto
são ―textos humanos‖, assim como humanos são os seus intérpretes.

5
VATTIMO, Gianni. Para além da interpretação: o significado da hermenêutica para a filosofia. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p. 24.
6
Vale ressaltar que o sujeito-que-pensa não deve ser interpretado como sujeito histórico — o que,
inevitavelmente, manifestaria uma contradição na frase —, mas, em termos do cogito descartiano, que deve ser
entendido ontologicamente.
13

I - A HERMENÊUTICA ENTRE DOIS MUNDOS: REFLEXÕES SOBRE


A PARADOXALIDADE DA HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA

1. DEFININDO OS TERMOS

Antes de se estabelecer aquilo que aqui se apresenta como paradoxo da


contemporaneidade, necessário se faz definir a própria contemporaneidade em sua relação
com a modernidade e a pós-modernidade. Tal preocupação se justifica pela ausência de um
sentido unívoco em torno dessas expressões. Muitas vezes, por falta de certo rigor nas
definições, por exemplo, torna-se difícil saber com clareza o sentido pretendido quando
determinado autor usa a palavra modernidade: se está se referindo a certo período histórico,
ou a uma determinada cosmovisão, ou mesmo se com tal expressão quer indicar o momento
presente. O mesmo pode acontecer em se tratando da pós-modernidade: trata-se de um
período histórico, ou de certo Zeitgeist (espírito da época)?
Assim, muito longe de querer encerrar o assunto, tais definições aqui se colocam
apenas como uma maneira, a priori, de fornecer o desde onde algumas digressões são
construídas. Portanto, o que se quer dizer, neste trabalho, quando se fala em modernidade,
pós-modernidade e contemporaneidade?

1.1 Modernidade

É um tanto complexa a tarefa de definir com precisão os termos moderno e


modernidade. Entretanto, vale aqui ensejar algumas distinções, hauridas de uma semântica
histórica que, se não esclarecer completamente, pelo menos diminuirá o risco de se utilizar
esses termos de maneira inadequada ao longo deste trabalho.
O termo moderno, segundo Evilázio Borges Teixeira, citando J. Le Goff,

[...] nasce quando o império romano se dissolve no século quinto. A modernidade,


portanto, está ligada a uma contraposição antigo-moderno e durante o Medievo terá
14

em geral um sentido de recente e atual. E, todavia, esconde freqüentemente, de


modo especial, em ambientes intelectuais, uma noção de valores. 7

Etimologicamente, a palavra moderno — dentro do qual se inscreve o termo


modernidade — vem do latim tardio modernus, que é a junção de modus, ―maneira de ser‖ 8,
―medida‖, ―limite‖ (justa medida, regra, norma, lei) — o advérbio modo indica o tempo
limitado, que está em torno, circunscrito àquele que fala —, e ernus, ―pertencer a‖. Portanto,
modernus é isso que pertence ao tempo presente, a coisa justa. Nesse sentido, a época
moderna avança superando a época anterior. Ademais, modernus surge do modelo hodiernus,
indicando assim o ―hoje‖, a ―atualidade‖ 9. Esse sentido — que indica pertencer à época
histórica em que se vive, aquilo que é novo, contemporâneo — faculta a possibilidade de se
usar corretamente o termo em qualquer época. Esse é o primeiro sentido digno de nota.
Há outra maneira de se entender o termo moderno, que é a partir de uma visão mais
técnica e cronológica. Nesse sentido, significa um período que pode ser visto como oposto ao
medievo, e, algumas vezes, oposto a contemporâneo. Ou seja, o vocábulo apontaria para um
determinado período da história mundial, especialmente européia, que se convencionou
10
iniciar no fim da Idade Medieval, culminando com a Revolução Francesa (1789) .
Entretanto, há alguns que preferem usar o termo de forma mais elástica, o que colocaria a
―história moderna‖ como aquela que designa os fatos que se seguiram à tomada de
Constantinopla em 1453, até a primeira metade do século XX. Semelhantemente, a ―teologia
moderna‖ seria, então, a que vigorou a partir do século XVI até a primeira metade do século
XX, a partir de onde se tem a pós-modernidade 11.
Vale ainda ressaltar o fato de que o termo moderno fora usado frequentemente a
partir do século X nas polêmicas filosóficas ou religiosas, quase sempre querendo indicar, de
modo laudativo, certa abertura e liberdade de espírito, um conhecimento dos fatos e ideias
recentes, ou uma ausência de rotina; por outro lado, de modo pejorativo, indica ligeireza,
preocupação com a moda, amor da mudança pela mudança, em que se verifica um abandonar-

7
TEIXEIRA, Evilázio Borges. Aventura pós-moderna e sua sombra. São Paulo: Paulus, 2005, p. 10.
8
Cf. BUENO, Francisco da Silveira. Grande dicionário etimológico-prosódico da língua portuguesa. São Paulo:
Editora Brasília, 1974, vol. 5, p. 2489-2490.
9
BUENO, 1974, p. 2489-2490.
10
HOUAISS, A; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004, p. 1942.
11
Há, ainda, aqueles que acreditam que a sociedade ganhou o adjetivo de moderna a partir das Revoluções
Francesa e Industrial, e do avanço da ciência, a fim de se diferenciar da sociedade tradicional, dependente que
era da religião para interpretar o mundo (p.e., BARREIRA, Paulo. Fragmentação do Sagrado e Crise das
Tradições na Pós-Modernidade: desafios para o estudo da religião. In: TRASFERETTI, José, GONÇALVES,
Sérgio Lopes (Org.). Teologia na pós-modernidade. São Paulo: Paulinas, 2003, p.437-463).
15

se às impressões do momento, que se subtrai a qualquer inteligência do passado. Ou seja,


distinga-se aí uma justa modernidade, responsável por transformações reais e necessárias do
pensamento, de uma modernidade de superfície, que ignora a tradição e apega-se ao reclame e
à demagogia 12.
De modo geral, a modernidade — qualquer que seja a escolha que se faça dentre os
sentidos possíveis — configura-se como o resultado de uma fratura instaurada no cenário
cósmico-antropológico de um período precedente. Essa mudança de paradigma que configura
a modernidade pode ser resumida nas palavras de Carmelo Dotolo, citado por Evilázio Borges
Teixeira:

―Ao lado da expressão modernidade ou idade moderna, se junta um corolário


terminológico: palavras como crise, emancipação, fratura da tradição, progresso,
revolução assumem os contornos de conceitos-horizonte indicativos de uma
transmutação em ato de uma progressiva autoconsciência‖. 13

Tal crise delineia o novo horizonte a partir de três grandes eventos ocorridos no
século XVI: a descoberta do novo mundo, o Renascimento, e a Reforma Protestante. Essa
mudança, conquanto tenha ocorrido num determinado período histórico (séc. XVI), extrapola
o seu nascedouro para se tornar uma espécie de consciência emancipativa que vigoraria por
14
séculos . Mas, não se pode deixar de destacar o fato de que essa fratura colabora para a
compreensão do fenômeno moderno na medida em que se torna uma mudança consciente.
Nas palavras de Evilázio Borges Teixeira,

[...] a modernidade pode ser entendida como uma contínua e progressiva conquista
de uma consciência crítica que o espírito humano alcança no dever-se liberar da
escravidão do passado para abrir-se à descoberta de uma nova e racional verdade. 15

Segundo a opinião de grande parte dos historiadores, a era moderna nasceu com a
esperança evocada pelo advento do Iluminismo, quando a Europa se encontrava devastada
pela guerra. Entretanto, a arquitetura de uma mudança cultural fora encetada bem ―antes que a
Paz da Westfália pusesse um fim à destruição resultante da Guerra dos Trinta Anos, em

12
Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 693.
13
DOTOLO, C. La teologia fondamentale davanti alle sfide del ―pensiero debole‖ di Gianni Vattimo. LAS —
Roma, 1999, p. 46 apud TEIXEIRA, 2005, p. 12.
14
Cf. TEIXEIRA, 2005, p. 12-13.
15
TEIXEIRA, 2005, p. 13.
16

16
1648‖. Na realidade, há um século os pensadores renascentistas já haviam deslocado a
humanidade para o centro da realidade 17.
18
O Renascimento configura-se como uma revolução no plano cultural em resposta
às estruturas do medievo. A crise instaurada neste período inspirou artistas, escritores e
pensadores a exprimirem seus ideais por meio de suas obras. Assim, uma nova visão de
mundo e uma nova sociedade emergiam num contraponto ao monopólio cultural da Idade
Média.
Como centro das atenções do pensamento renascentista, o ser humano ascendeu ao
status de obra-prima da criação. Como tal, passou a ser visto como alguém capaz de
compreender e exercer domínio sobre a natureza, o que engendrou um modo de pensar de
caráter humanista — potencializado pelo retorno dos valores humanos manifestos nos escritos
clássicos — e capaz de imprimir reformas nos principais eixos culturais, tais como o ensino
19
nas universidades, onde se inseriu disciplinas como poesia, história e filosofia . Nessa
ebulição cultural, Aristóteles, amplamente considerado no medievo, cede lugar a Platão.
Se a Renascença assentou os fundamentos da mentalidade moderna, o Iluminismo foi
responsável por edificar a sua superestrutura. Como bem se expressa Stanley Grenz:

A cosmologia renascentista elevou a humanidade ao centro do universo, contudo,


não fez do ego individual o centro autodeterminante do mundo. Os teóricos
renascentistas foram os pioneiros do método científico, entretanto, não
reconstruíram a busca pelo conhecimento consoante a visão científica. O espírito
renascentista solapou a autoridade da igreja, mas não entronizou a autoridade da
razão. 20

Embora não se tenha no Renascimento as ideias que constituíram o processo


moderno, em seu estado de maturidade, lá podem ser encontradas as sementes de tal
cosmovisão. Portanto, conquanto seja difícil um consenso por parte dos eruditos, pode-se
falar que esse processo de reviravolta intelectual, chamado Iluminismo ou ―Era da Razão‖,
começa no Renascimento, com a crescente insinuação da razão, e atinge o seu aspecto
essencialmente crítico no século XVIII. Assim, alguns associam o seu começo ―à Paz da
Westfália em 1648 e seu término à Guerra dos Trinta Anos e à publicação da Crítica da razão

16
GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia de nosso tempo. São Paulo: Vida
Nova, 1997, p. 94.
17
Cf. GRENZ, 1997, p. 94.
18
O Renascimento tem o seu início na península itálica no século XIV e estende-se até o século XVII pela
Europa.
19
Cf. ARRUDA, José Jobson de A.; PILETTI, Nelson. Toda a história: história geral e história do Brasil. São
Paulo: Editora Ática, 2001, p. 162-163.
20
GRENZ, 1997, p. 96-97.
17

21
pura, em 1781‖. Apesar de sua duração relativamente curta, pode-se dizer que o
Iluminismo consolida e radicaliza a modernidade, que só terá o seu ocaso no final da primeira
metade do século XX 22.
Não se tem aqui a pretensão de fazer um diagnóstico completo da modernidade
ocidental — apesar de instigante tarefa, certamente isso demandaria um trabalho bem mais
extenso. Pretende-se, por outro lado, apenas destacá-la como esse período que gestou uma
determinada visão de mundo, ancorada pela razão iluminista, mas cujos pressupostos básicos
têm sido reinterpretados ou mesmo rejeitados pela pós-modernidade. Ou seja, apesar da não
univocidade do termo, modernidade ou cosmovisão moderna aqui se consolida e se traduz na
própria cosmovisão iluminista, que, apesar de indicar um Zeitgeist nascente no ―período
moderno‖ — cronologicamente falando —, se apresenta como paradigma presente também no
mundo contemporâneo.

1.2 Pós-Modernidade

Há um consenso monolítico entre muitos observadores de que o mundo ocidental


está vivendo um momento de profundas transformações. Há um deslocamento cultural só
comparável ao nascimento da modernidade diante da moribunda Idade Média. Apesar de ser
sempre difícil detectar características precisas de um período emergente, principalmente
quando o observador se encontra em meio a essas transformações, é certo que a humanidade
tem experimentado uma transição cultural expressa pelo abandono de certos postulados da
modernidade em favor de um conjunto alternativo de elementos que se inscrevem sob o signo
da pós-modernidade. Essa consciência, é claro, impõe a necessidade de um olhar diferenciado
com relação ao mundo circunjacente. É lamentável, por outro lado, que muitos ainda pensem
e ajam como se vivêssemos o auge da modernidade.

21
GRENZ, 1997, p. 97.
22
Vale ressaltar duas coisas importantes nessa afirmação: em primeiro lugar, quando se diz que o Iluminismo
radicaliza a modernidade, não se deve confundir tal afirmativa com a interpretação da pós-modernidade, feita por
alguns teóricos, como Modernidade Radicalizada, ou Hiper-Modernidade. O que se quer afirmar é que o
Iluminismo é um movimento que manifesta o amadurecimento da modernidade — trata-se de uma modernidade
em seu pleno vigor. Em segundo lugar, situar o ocaso da Modernidade na primeira metade do século XX vale
apenas para aqueles que compreendem a pós-modernidade como ruptura da Modernidade. Para aqueles que a
compreendem como uma exacerbação da Modernidade essa assertiva soará anacrônica. Mas, isso tudo ficará
mais claro quando falarmos do conceito de Contemporaneidade.
18

Em termos semânticos é possível verificar certa evolução no uso da expressão: do


seu primeiro uso, atribuído a Arnold Toynbee para designar a ―nova fase histórica da
23
civilização ocidental iniciada a partir de 1875 com o imperialismo fin de siècle‖, passando
pela designação, a partir dos anos de 1960, tanto de certas práticas culturais em áreas como a
arquitetura, artes figurativas, literatura, teatro e etc., quanto das mudanças na ordem da
sociedade pós-industrial 24, culmina-se numa ―espécie de categoria universal apta a exprimir o
Zeitgeist contemporâneo e o ‗esquecimento gradual de certa tradição filosófica‘ que vai,
25
grosso modo, de Descartes a Nietzsche‖. Tem-se, portanto, que o termo pós-moderno ou
pós-modernismo, de modo geral, designa aquilo que se põe depois do moderno ou
modernismo, ou uma atitude de rompimento e negação para com este. Neste sentido, tal
expressão não se define por si, pois ―implica uma definição por diferença em relação ao
26
conceito de moderno‖, e, por conseguinte, a concepção de qualquer pensamento que se
configure pós-moderno pressupõe uma determinada interpretação da modernidade 27. Quanto
a isso, esclarece Stanley Grenz:

[...] o termo pós-moderno talvez tenha sido cunhado e empregado pela primeira vez
na década de 30 para se referir a uma importante transição histórica que já estava
em andamento e também como designação para certos desenvolvimentos nas artes.
Todavia o pós-modernismo não ganhou atenção generalizada até a década de 70.
Primeiramente, denotava um novo estilo de arquitetura. Em seguida, invadiu os
círculos acadêmicos, primeiramente como um rótulo para as teorias expostas nos
departamentos de inglês e de filosofia das universidades. Por fim, tornou-se de uso
público para designar um fenômeno cultural mais amplo. 28

A crítica pós-moderna à modernidade perdura desde que Friedrich Nietzsche (1844-


1900) denunciou a fragilidade dos postulados desta, já no apagar das luzes do século XIX. Ali
estão as bases que norteariam uma nova fase no pensar humano, e se mostrariam, a princípio,
num nível infra-estrutural — em que se verifica uma passagem das relações de produção
industrial para as pós-industriais. Estas se manifestariam na troca de bens simbólicos, como,
por exemplo, a informação. Entretanto, em termos de superestrutura, a pós-modernidade só
começa na segunda metade do século XX, sobretudo na década de 70. Esse período

23
FORNERO, Giovanni. Pós-Modernismo. In: ABBANGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 910.
24
Cf. FORNERO, 2007, p. 910.
25
FORNERO, 2007, p. 910.
26
FORNERO, 2007, p. 910.
27
Cf. FORNERO, 2007, p. 910.
28
GRENZ, 1997, p. 16-17.
19

manifesta-se como um período de grande contestação dos dogmas estabelecidos pela


modernidade.
Como alguns asseguram a visão pós-moderna é não possuir visão alguma. Em outras
palavras, o homem pós-moderno rejeita a possibilidade de construção de uma visão única e
correta que abarque todo o conhecimento, em prol de uma multiplicidade de visões e de
mundos, onde a interpretação substitui o conhecimento. Afinal, como Nietzsche assevera,
―no mundo não há dados, há somente interpretações‖.
Um movimento digno de nota, fruto dessa contestação ao ―projeto do Iluminismo‖ 29,
é, sem dúvida, o desconstrucionismo. Sucessora do estruturalismo, apesar de se configurar
também como teoria literária, a desconstrução teve repercussões mais amplas, pois os
filósofos proponentes de tal teoria aplicaram-na à realidade, e não somente a textos literários.
Na verdade, muitos falam da pós-modernidade ―como um movimento de desconstrução [...] e
desmascaramento da razão ilustrada como resposta ao projeto modernista e seu consequente
fracasso‖. 30 Autores como Simon Marchán-Fiz, George Balandier e Patxi Lanceros ressaltam
que a atitude pós-moderna aponta não tanto para uma negação radical do paradigma moderno,
mas para a sua desconstrução 31.
Na Filosofia contemporânea, o tema da desconstrução ganha importância, e causa
32
desconforto, a partir da formulação da ―diferença ontológica‖ apresentada por Heidegger .
Apesar desse caráter inaugural a partir do pensamento heideggeriano, o ―discurso da
diferença‖ foi exportado a outras áreas do saber humano. Quanto a isso, esclarece Ernildo
Stein:

O discurso da diferença, entretanto, expandiu-se historicamente, de maneira


surpreendente na recepção que tiveram Heidegger e outros filósofos no contexto do
pensamento francês, na segunda metade do século 20. O conjunto de temas que aí se
passou a discutir ocupou praticamente todo o espaço público, não apenas na
Filosofia, mas também nas ciências humanas. A expressão ―diferença‖ tornou-se um
lugar-comum para onde foram drenados temas epistemológicos da Filosofia e das
ciências humanas, sobretudo no contexto do estruturalismo, como pode ser
observado na Psicanálise, na Antropologia, na Sociologia, na literatura e na crítica à
Filosofia clássica. 33

O discurso da diferença, nesse contexto, se apresenta como principal crítica à


tradição metafísica. ―A metafísica de que se trata é, no conceito que Heidegger vai buscar em

29
Expressão creditada a Habermas (Cf. GRENZ, 1997, p. 18).
30
TEIXEIRA, 2005, p. 91.
31
Cf. TEIXEIRA, 2005, p. 92.
32
Cf. STEIN, Ernildo. Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstrução. Ijuí: Ed. Unijuí, 2008, p. 23.
33
STEIN, 2008, p. 23.
20

34
Nietzsche, a filosofia platônica e a cristã‖. É, portanto, frente a esta tradição, e energizada
pelas questões da diferença, que se impõe a chamada desconstrução. A intenção de
Heidegger, ao elaborar o seu conceito de ―destruição‖ (Destruktion), no parágrafo 6 de Ser e
Tempo, não é o de aniquilar por completo a tradição metafísica, mas o de abalar a sua ―rigidez
e enrijecimento‖, portanto, remover os ―entulhos acumulados‖. Segundo Heidegger, ao
transmitir o seu legado, a tradição obstrui o acesso às ―fontes originais‖, encobrindo, portanto,
35
a experiência originária do Ser . Embora seja um conceito que Heidegger constrói imbuído
de sua crítica à tradição metafísica, sua apropriação por Derrida sofre alterações
significativas, o que acaba por gerar pelo menos dois conceitos distintos de desconstrução.
Gadamer chama a atenção para essa distinção:

O que me parece totalmente decisivo aqui é o fato de a ―destruição‖, tal como o


jovem Heidegger a apresentou para nós enquanto a grande mensagem, nunca ter tido
para aqueles que realmente têm no ouvido a língua alemã desses anos o tom
negativo de ―dizimação‖, como acontece com o uso da palavra em outras línguas.
Quando pensamos em dizimação, nós não utilizamos a palavra de origem latina
Destruktion, mas Zerstörung. Assim, a palavra ―destruição‖ (Destruktion) foi
introduzida por Heidegger nos anos de 1920 e eu suponho que Derrida não estava
realmente familiarizado com esse uso terminológico, e, por isso, escolheu uma
construção vocabular estranha e redundante para o meu sentimento linguístico —
com certeza, porém, porque ele só ouviu em ―destruição‖ ―dizimação‖. 36

Embora interessante, não nos interessa aprofundar a discussão em torno dos dois
37
conceitos de desconstrução . É relevante, porém, o fato de que tais distinções semânticas
deram origem a distintos efeitos históricos. Por exemplo, ―Freud, Derrida e Heidegger nos
põem diante do problema do eu, da desconstrução do eu, da desmontagem do eu, ou da
destruição do eu, com dois tipos de crítica que não se equivalem‖. 38
Vale destacar, assim como infere Stanley Grenz da obra de Gadamer (―Verdade e
Método‖), que o desconstrucionismo parece postular a ideia de que ―o significado não é
inerente ao texto em si, emerge apenas à medida que o intérprete dialoga [39] com o texto‖. 40

34
FERRARIS, Maurizio. Desconstrução. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 281.
35
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. 2. ed. Petrópolis:
Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007, p. 59-61.
36
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em retrospectiva: a virada hermenêutica. Petrópolis: Vozes, 2007, p.
76.
37
Para um aprofundamento maior em torno dos dois sentidos de ―desconstrução‖, tais como foram elaborados
por Heidegger e Derrida, ver a obra de Ernildo Stein — sobretudo sua primeira parte — ―Diferença e Metafísica:
ensaios sobre a desconstrução‖ (STEIN, 2008, p. 29ss).
38
STEIN, 2008, p. 23.
39
Na verdade, a hermenêutica de Gadamer é entendida como um exercício constante de entrar-em-diálogo com
o texto.
21

E, nesse sentido, se não há mais um sentido que habite o texto em si, mas dependerá da
perspectiva do intérprete na sua relação com o texto, então os significados do texto — e por
extensão, os significados conferidos à própria realidade — não poderão prescindir da
participação ativa dos intérpretes. O significado, portanto, não é uma ―substância‖ que habita
o texto, resultante das pretensões do autor, à espera de ser desvendado pelo intérprete. Ora,
isso também indica o tipo de hermenêutica que se espera daí, ou seja, uma hermenêutica
resultante da conversação, em que se fundem o ―horizonte‖ do autor, presente no texto, e o
41
―horizonte‖ do intérprete — aquilo que Gadamer chamou de ―fusão de horizontes‖ —, o
que resulta inevitavelmente em polissemia. Ora, se se compreender até que ponto essa visão
foi fundamental no estabelecimento da pós-modernidade, também se compreenderá a razão da
atual ausência de um ―centro‖ transcendente que sirva de referencial.
Apesar dos muitos pensadores que contribuíram para que a modernidade entrasse em
falência, tais como Nietzsche e Heidegger, e muitos outros tidos como proponentes das ideias
pós-modernistas, na opinião de Stanley Grenz três grandes gurus se destacam no pensamento
contemporâneo. De maneira sucinta, pode-se elencá-los: o primeiro deles, Jacques Derrida,

reivindica o abandono tanto da ―ontoteologia‖ (tentativa de estabelecer descrições


ontológicas da realidade) como da ―metafísica da presença‖ (a idéia de que algo
transcendente está presente na realidade). Já que não há nada transcendente que seja
inerente à realidade, diz ele, tudo o que emerge no processo de conhecimento é a
perspectiva do eu que interpreta a realidade. 42

Outro grande guru pós-moderno é Michel Foucault. Para ele, ―toda interpretação da
realidade é uma declaração de poder. Já que o ‗conhecimento‘ é sempre o resultado do uso do
poder, nomear algo significa exercer poder e, portanto, fazer violência ao que é nomeado‖. 43
O terceiro grande proponente é Richard Rorty, para quem

[...] a verdade não é estabelecida quer pela correspondência de uma afirmação com a
realidade objetiva quer pela coerência interna das afirmações em si mesmas. Rorty
argumenta que deveríamos simplesmente abandonar a busca pela verdade e nos
contentarmos com a interpretação. Ele propõe a substituição da ―filosofia
sistemática‖ clássica pela ―filosofia da construção‖ [...]. 44

40
GRENZ, 1997, p. 22.
41
Cf. GRENZ, 1997, p. 163-164.
42
GRENZ, 1997, p. 22-23.
43
GRENZ, 1997, p. 23.
44
GRENZ, 1997, p. 23.
22

Vê-se, portanto, o estabelecimento de um modo de pensar que desistiu


completamente de buscar um conhecimento a partir de uma realidade objetiva. Cai por terra,
portanto, a noção de ―universo‖, pois se substituiu o ―uni‖ pelo ―multi‖ — o que temos,
então, é um multi-verso. Porém, essa transformação demanda cautela, pois a própria
multiplicidade de visões pode fazer com que se caia na armadilha de pressupor que haja uma
homogeneidade no pensamento pós-moderno — a verdade é que não há. Há uma tendência
que se consolida cada vez mais, em que o único consenso é não existir consenso. Assim, é
bom que se sublinhe o fato de que, embora seja possível colocar esses pensadores no âmbito
do pensamento pós-moderno, há de se levar em conta as suas divergências. Não obstante a
isso, é possível assegurar-se do fato de que o questionamento da epistemologia iluminista é o
ponto de encontro e coesão das diferentes opiniões desses pensadores contemporâneos.
Embora o aprofundamento da reflexão em torno de suas características não esteja no
45
escopo deste trabalho, deve-se ressaltar que a pós-modernidade aqui deverá ser entendida
como aquela cosmovisão que vige como negação da cosmovisão iluminista, e não,
necessariamente, como determinado período histórico. Pode-se, grosso modo, resumir
algumas de suas principais características, quais sejam:
1) - desconfiança das visões globais do mundo e assunção das pequenas narrativas;
2) - destronização da razão ilustrada e entronização da experiência, dos aspectos
afetivos, sensitivos;
3) – crítica aos ―etnocentrismos‖ e legitimação das culturas em geral; reação ao
solipsismo (ou seja, à ensimesmação do sujeito) e à intolerância, e afirmação da alteridade e
construção de uma ética da tolerância;
4) - desistência da noção de fundamentos imutáveis, e afirmação de formas ―fracas‖
(Vattimo) e ―instáveis‖ (Lyotard) de racionalidade 46;
5) - ―passagem do paradigma da unidade ao da multiplicidade, ou seja, tese da
‗heteromorfia dos jogos linguísticos‘ (Lyotard) e do fato de que ‗o mundo não é um, mas
muitos‘ (Vattimo)‖, 47 e etc.

45
Para alguns autores, como Gene Edward Veith, Jr. (Cf. VEITH, Gene Edwards, Jr. Tempos pós-modernos:
uma avaliação cristã do pensamento e da cultura da nossa época. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 1999, p. 35.),
deve-se fazer uma distinção entre o adjetivo pós-moderno, que designa, na verdade, um período de tempo,
cronologicamente falando, e a expressão pós-modernismo, que indica uma determinada ideologia. Nesse sentido,
é possível ser pós-modernista e não ser pós-moderno. Entretanto, neste trabalho tal distinção não será assumida,
como ficará evidente mais adiante.
46
Cf. FORNERO, 2007, p. 910.
47
FORNERO, 2007, p. 911.
23

48
Uma vez que se tenha definido, para os fins deste trabalho , os conceitos de
modernidade e pós-modernidade, o próximo passo será o de investigar suas relações
possíveis, bem como a proposta de um conceito conciliador das principais maneiras de se
conceber tal relação: o conceito de ―contemporaneidade‖.

1.3 Contemporaneidade Como o Moderno e Pós-Moderno

De modo geral, pode-se dizer que há duas maneiras distintas de se entender a relação
entre a modernidade e a pós-modernidade: a relação de ruptura e a relação de continuidade.
A relação de ruptura implica em se assumir a pós-modernidade como aquela cosmovisão que
rompeu com a cosmovisão moderna em função da crise instaurada nesta última. Pensadores
como Baudrillard e Lyotard sublinham a ruptura. Para Baudrillard, a tecnologia da
informação ―[...] determinou uma ordem social diferente — caracterizada por simulações —
49 50
que apagou as diferenças entre o real e o virtual‖. Assim como para F. Jameson ,
Baudrillard também conclui que ―na cultura pós-moderna, a realidade transforma-se em
imagens, e o tempo fragmenta-se numa série de presentes perpétuos‖. 51
Para Lyotard, ―a crise dos grandes relatos [meta-narrativas] que legitimavam a
ciência na Modernidade‖ deflagra a pós-modernidade — também denominada por ele como
52
era ―pós-industrial‖. Uma das consequências dessa transformação é o fato de que o saber
muda de estatuto. A circulação do conhecimento altera a relação entre sujeito e
conhecimento, pois este não deriva mais necessariamente da formação pessoal daquele. Ou
seja, a produção do saber não está mais ligada ao sujeito que o produziu, e não depende dele
para se perpetuar — ―o conhecimento, portanto, tem certa autonomia em relação ao sujeito
porque pode ser facilmente adquirido sem necessidade de atuação em seu processo de
53
produção‖. Em tempos pós-modernos nem todos os que manipulam e consomem

48
Isto quer dizer que não se pretende, de forma alguma, oferecer uma descrição detalhada da ―modernidade‖ e
―pós-modernidade‖. Tal intenção empobreceria, em muito, o presente trabalho, já que existem muitas e boas
obras que falam sobejamente sobre o assunto. O objetivo pretendido é o de facilitar a construção de um conceito
que amenize as dificuldades que normalmente se colocam a partir dessas expressões, como se verá.
49
BARRERA, 2003, p.442.
50
Cf. JAMESON, F. As sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1996.
51
BARRERA, 2003, p.442
52
BARRERA, 2003, p. 442
53
BARRERA, 2003, p. 443-444.
24

informações são partícipes da construção desse saber. Para Lyotard, então, o conhecimento
posto em circulação transforma-se em informação, e esse ―domínio público‖ reduz
consideravelmente a capacidade monopolizadora de uma visão de mundo por qualquer que
seja a instituição.
Na opinião de Pablo Barrera, Anthony Giddens é o que melhor elaborou a
compreensão de pós-modernidade como continuidade da modernidade — aquela diz respeito
a uma radicalização e universalização das consequências desta. Para autores como Giddens,
Beck e Lash, conceitos como pós-modernidade resultam do aumento de abrangência e ―[...]
54
velocidade das características modernas‖. A ideia de uma ―Modernidade Reflexiva‖,
55 56
desenvolvida principalmente por Beck e Giddens — também ligada à expressão
57
―autodestruição criativa‖ —, pressupõe que não há transformações essenciais na passagem
da modernidade à pós-modernidade, mas um incremento das características daquela. Por isso,
não seria sensato celebrar algo novo, pois a pós-modernidade indicaria apenas um
aperfeiçoamento ou radicalização da modernidade. Nesse sentido, algumas expressões
aparecem como mais adequadas às mudanças verificadas, tais como: ―alta modernidade‖,
―ultramodernidade‖, ―modernidade reflexiva‖, ―modernidade radicalizada‖. Todas essas
expressões querem indicar não uma ruptura com a modernidade, mas uma recriação, um
aprofundamento desta.
Conquanto hajam diferenças nas variadas abordagens, pode-se, com cautela, incluir
outros autores: Zigmunt Bauman também parece se enquadrar neste segundo grupo de
pensadores que compreendem a pós-modernidade como continuidade. Bauman abandona o
58
termo pós-modernidade em prol da expressão ―modernidade líquida‖ . Para ele, a pós-
modernidade não se traduz por ruptura, pois não se configura como algo plenamente novo,
mas deve ser compreendida como intensificação da modernidade. Tendências já enraizadas na
modernidade começam, portanto, a produzir efeitos diferentes daqueles vistos e sentidos na
modernidade. Mas, as matrizes não são novas, apenas produzem novos efeitos. A
―modernidade líquida‖, destarte, configura-se para Bauman também como uma radicalização

54
BARRERA, 2003, p. 447.
55
Cf. BECK, U. et al. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo:
Unesp, 1997.
56
Cf. GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
57
Segundo Barreira, a expressão ―autodestruição criativa‖ tem a ver com ―[...] uma destruição de origem interna,
e não externa. Ao progredir, a Modernidade se autodestrói criativamente [...] O sentimento de novidade é
causado pelo caráter inédito dos efeitos dessa radicalização‖ (BARREIRA, 2003, p. 448).
58
Cf. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
25

da modernidade. Distinga-se, portanto, uma ―modernidade sólida‖ (a modernidade


propriamente dita) de uma ―modernidade líquida‖ (a pós-modernidade).
Vale ainda citar um dos ―pesos pesados‖ do pensamento contemporâneo, que parece
admitir, também, uma pós-modernidade como continuidade da modernidade: Jürgen
Habermas, para quem a modernidade se manifesta como ―um projeto inacabado‖, assim se
expressa:

As forças religiosas de integração social debilitaram-se em virtude de um processo


de esclarecimento [59] que, na medida em que não foi produzido arbitrariamente,
tampouco pode ser cancelado. É próprio ao esclarecimento a irreversibilidade de
processos de aprendizagem que se fundam no fato de que os discernimentos não
podem ser esquecidos a bel-prazer, mas só reprimidos ou corrigidos por
discernimentos melhores. Por isso o esclarecimento só pode compensar seus
déficits mediante um esclarecimento radicalizado (grifo nosso). 60

Na verdade, muitos autores admitem a falta de clareza quanto ao fato de a pós-


modernidade se constituir numa ruptura ou continuidade da modernidade. É inegável, no
entanto, o fato de que ambas as posições são bem defendidas e fundamentadas por seus
respectivos defensores, o que sugere — e essa é uma das teses do presente trabalho — a
concepção de que tanto a ideia de ruptura quanto a de continuidade devam ser acolhidas para
uma boa compreensão do fenômeno que grassa hodiernamente. Surge, assim, o conceito de
―contemporaneidade‖, que designa o momento presente, aglutinador tanto da ideologia
iluminista, quanto da pós-moderna. A ―contemporaneidade‖, como esse palco que abarca
realidades paradoxais, admite, por um lado, a modernidade como um fenômeno que, embora
tenha caracterizado um determinado momento histórico, vige ainda como modo de pensar, e,
por outro, a pós-modernidade como negação da modernidade. Ambas, portanto, aparecem
concomitantemente como Zetgeist no mundo contemporâneo. Ou seja, o pluralismo, próprio
do momento em que vivemos, manifesta-se, também, na simultaneidade de elementos
iluministas e daqueles genuinamente pós-modernos. Ambas as cosmovisões convivem lado a
lado, de maneira ambígua, se nutrem e se embatem delineando um novo ―espírito‖ aglutinador
de realidades multifacetadas.

59
O termo original, Aufklãrung, também usado para se referir ao Iluminismo, enquanto movimento intelectual
do século XVIII, nesta passagem quer indicar ―[...] um processo histórico mais amplo, próximo do que
Habermas entende por racionalização‖. Quanto a esta distinção, ver nota explicativa dos tradutores (cf.
HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 6.)
60
HABERMAS, 2000, p. 122
26

2. UMA HERMENÊUTICA ENTRE O VELADO E O REVELADO

2.1 Modernidade Ocidental: Uma Cultura do Revelado

A história do pensamento é testemunha do fato de que o ser humano parece sempre


estar ―fora da medida‖ quando pensa o mundo e propõe novos paradigmas. Geralmente,
quando uma determinada tendência se exacerba, e mostra-se inadequada, tal fato motiva
pensadores a romperem com o paradigma predominante, e a lançarem as bases de uma forma
alternativa de compreensão do mundo. Entretanto, ao fazerem isso, ―carregam nas tintas‖, de
forma que sua proposta passa a sofrer do mesmo ―mal‖ encarnado por aquela que está sendo
criticada: ou seja, o ―exagero‖. É flagrante, pois, esse movimento pendular: exageros
provocam exageros, e assim a história avança.
Destarte, pode-se dizer que a modernidade ocidental nasce ressentida com os
―exageros‖ da Idade Média, especialmente — eis aqui o que se quer ressaltar — no que
respeita à ideia de revelação 61. Embora o termo revelação não seja propriamente moderno —
a formação latina da palavra tem lugar entre os séculos XIV e XV —, parece razoável admitir
que o conceito teológico desse vocábulo, tal como ainda é concebido atualmente — como ato
por meio do qual Deus tornou conhecido aos seres humanos os seus mistérios e sua vontade,
quer dizer, manifestou num ato de completo desvelamento o que antes estava oculto —, tem
contornos modernos. O sentido etimológico, que se traduz na ação de descobrir, de desvendar,
parece adequar-se perfeitamente ao ideal moderno. Vale salientar, pois, que a modernidade
ocidental e, sobretudo, o iluminismo, grosso modo caracterizaram-se por uma busca com
vistas a desvendar os segredos do universo, a fim de que fosse possível colocar a natureza a
serviço do ser humano. Assim, a ―sede‖ iluminista se contrapõe aos ―limites‖ do medieval —
seja ele um pensador, ou mesmo um indivíduo comum —, destituído em grande medida da
oportunidade de pensar o real fora da influência dos dogmas eclesiásticos. Francis Bacon,
62
para quem ―instaurar o poder do homem sobre o mundo natural‖ era a grande ideia em

61
Não se pretende afirmar que a idéia de ―revelação‖ seja o assunto central em torno do qual se deu a mudança
do medievo para a modernidade. Apenas pretende-se ressaltar aqui esse aspecto, sem, contudo, desconsiderar
tantos outros.
62
CHRÉTIEN-GONI, Jean-Pierre. BACON Francis. In: HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo:
Martins Fontes, 2001, p. 106.
27

torno da qual se deveria construir o seu sistema, sintetiza essa fome desenfreada pelo
progresso:

A reverência à Antiguidade, o respeito à autoridade de homens tidos como grandes


mestres de filosofia e o geral conformismo para com o atual estádio do saber e das
coisas descobertas também muito retardaram os homens na senda do progresso das
ciências, mantendo-os como que encantados. 63

Ao contrário de um saber herdado da tradição, Bacon postulava a necessidade de o


ser humano dominar, enquanto ―ministro e intérprete da natureza‖, pois esta deveria ser
restabelecida como fundamento do saber. Nesse sentido, é digno de nota o fato de que Bacon
estabelece o ser humano como hermeneuta da natureza, cabendo a este a reflexão com base na
observação da ordem natural das coisas. Entretanto, tal atitude hermenêutica está a serviço de
um saber exploratório que seja útil ao bem do ser humano 64.
Imunes a quaisquer preceitos ancorados na tradição, portanto, as suposições
epistemológicas da Modernidade passam a postular o conhecimento como algo preciso
(exato), objetivo e bom. Consequentemente, o progresso fora visto como inevitável,
exacerbando, assim, a confiança na razão, na esperança de que associando-a ao poder da
educação, acabaria por libertar a humanidade de qualquer vulnerabilidade à natureza, de toda
escravidão social, e também religiosa. O iluminismo consolida as bases da modernidade, e em
vez da mística e da superstição — amplamente consideradas no medievo —, verifica-se um
―culto‖ à razão, e uma autonomia em relação a qualquer autoridade externa. Evidentemente,
essa nova cultura tem o poder de in-formar — e porque não dizer de-formar? — o conceito
revelação, pois o submete à necessidade de trazer todos os mistérios à baila. Nesse sentido, a
modernidade compõe-se de um sem número de fenômenos sociais que derivam do acesso das
pessoas aos avanços da ciência e tecnologia — seus rebentos mais notórios.
Parece razoável ver nos exageros do medievo a razão deflagradora e catalisadora da
modernidade ocidental. Ao caráter velado da verdade, que por muito tempo exacerbou-se na
própria privação institucional do conhecimento, contrapõe-se a ânsia por um saber sem limites
morais, institucionais, ou metafísicos. Entretanto, a despeito de todo ressentimento e críticas,
a modernidade instaura uma nova moralidade, novas instituições, e uma nova metafísica.
Mas, o que aqui se pretende indicar é que, em função dos exageros provocados por uma

63
BACON, Francis. Novum organum. In: EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Bacon: vida e obra. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, p. 65-66 (Coleção Os Pensadores).
64
Cf. CHRÉTIEN-GONI, 2001, p. 106.
28

ênfase na abscondicidade de Deus e do próprio conhecimento, a modernidade ocidental acaba


por exagerar o seu caráter evidente e manifesto. Finda-se, portanto, a ―época das sombras‖, e
dá-se início à ―época das luzes‖.

2.1.1 A modernidade e os limites do conhecimento

A crítica iluminista ao medievo se caracteriza por uma denúncia aos ―limites‖


impostos ao conhecimento, o que sugere a ideia de um saber sem limites, afinal, como
sintetiza Bacon, o ―intelecto humano se agita sempre, não se pode deter ou repousar, sempre
procura ir adiante [portanto é] impensável, inconcebível que haja um limite extremo e último
65
do mundo‖ (grifo nosso). No entanto, é preciso assinalar que nesse sentido o projeto do
iluminismo malogra, posto que também imponha limites a seu próprio modo. Não é exagero
dizer que a modernidade seja responsável por uma restrição do conhecimento, ao modo de
uma ―teoria do...‖, em que se visualiza o real a partir do esquema sujeito-objeto 66. Tal teoria
do conhecimento, enquanto disciplina, é claro, nos remete a uma compartimentalização do
saber, donde se percebe certa ordenação e regulamento. Esse enquadramento teórico, embora
seja razoável do ponto-de-vista metodológico dentro da nova mentalidade moderna, por outro
lado não deixa de se manifestar, também, como uma espécie de regência e manipulação do
real a partir de certos códigos ou certa doutrina. Em outras palavras, o paradigma modernista
sugere certa determinação do conhecimento, ou seja, o estabelecimento de limites que
cerceiam certo aspecto da realidade. É nesse sentido que se pode falar da modernidade como
um evento cultural, mas que se expressa, também, como um modo — seguindo a semântica
latina do termo — próprio do pensamento, que cumpre uma absolutização do conceito, como
se a este fora possível ―dizer‖ toda a realidade. Se há uma determinação, é claro, isto quer
dizer que, ou o sujeito determina o objeto, ou o objeto determina o sujeito. Em ambos os
casos permanecem um ativo e um passivo — um determinante e um determinado. Contudo,
buscando um vínculo entre sujeito e objeto, a visão cartesiana postula que o sujeito é o ―dono‖
dele mesmo, senhor de suas próprias ações, protagonista do universo, e vige para sujeitar. Ao

65
BACON, 1999, p. 43.
66
Esse dualismo sujeito-objeto aparece, também, na forma de uma divisão da realidade em mente e matéria, e
numa divisão da pessoa humana em corpo (a substância física) e alma (a substância pensante).
29

objeto, por outro lado, cumpre certa passividade diante do sujeito, o que significa que está aí
para ser sujeitado.
A compreensão dessa discussão na visão da modernidade europeia sempre expressou
o conhecer como representação que um sujeito pensante (o ser humano) — o res cogitans —
realiza sobre um objeto dado — este denominado res extensa (substância externa ao ser
pensante). Aquilo que está fora do sujeito e é imediatamente apresentado a ele, é re-
apresentado na forma deste. Ou seja, é a consciência (cogito) desse sujeito que in-forma, que
67
modela a substância extensa. É a partir desse paralelismo — o res cogito e res extensa ,o
dentro e o fora — que surge a disciplina ―Teoria do Conhecimento‖ 68. A questão é, portanto,
como o cogito pode apreender aquilo que lhe é externo. Ou seja, até onde pode ir o
conhecimento, quais os seus limites 69?
Vale ressaltar que uma teoria do conhecimento, enquanto tal é manifestação do ideal
moderno, como testemunha Johannes Hessen:

Como disciplina filosófica independente, não se pode falar de uma teoria do


conhecimento nem na Antiguidade nem na Idade Média. Certamente, encontraremos
numerosas reflexões epistemológicas na filosofia antiga, especialmente em Platão e
em Aristóteles. São, porém, investigações epistemológicas que ainda estão
completamente embutidas em contextos psicológicos e metafísicos. É só na Idade
Moderna que a teoria do conhecimento aparece como disciplina independente. 70

É assim, portanto, que a teoria do conhecimento vigora como categoria científica, no


sentido de figurar como um ―corte‖ da realidade, a partir do que se empreende certa
cognoscibilidade de natureza tecnicista, que visa se estabelecer como um ramo do saber. À
parte do fato de se vê-la como boa ou má — isso não está em questão —, é preciso admitir
que uma compartimentalização e de-finição do conhecimento, naturalmente, favorece o
estabelecimento desse domínio da res cogitans sobre a res extensa, que, em muitos casos, se
expressou como um verdadeiro ―estupro‖ do real. Tal tendência, apesar de possuir o seu lado
estratégico e útil numa determinada concepção filosófico-teológico-acadêmica, pode ser

67
A res extensa, segundo Descartes, é um termo abstrato, quantitativo, que representa o mundo como objeto que
ocupa um determinado lugar na espacialidade. Além disso, pode ser concebido matematicamente. Não diz
respeito à matéria, mas àquilo que é quantificável. Neste sentido, a matéria é extensa, mas a extensão não é
matéria. Ao contrário, a res cogito não se espacializa, e é puramente reflexiva.
68
No contexto de uma teoria do conhecimento, o conhecimento passa a figurar como intermediário ou
instrumento que faz a conexão entre o sujeito e o objeto, sendo, deste modo, compreendido como uma espécie
de epifenômeno. É assim que se empreenderão pesquisas que visam determinar de que forma, por quais
mecanismos o sujeito realizará a apreensão do objeto.
69
O problema da apreensão do cogito do que lhe é externo tem se tornado conhecido na Teoria do Conhecimento
como ―o problema da ponte‖.
70
HESSEN, Johannes. Teoria do conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 14.
30

destrutiva a partir do momento em que o estabelecimento de limites impostos pelo ser


humano não mais reconheça os limites da própria coisa, como se verá mais adiante. E eis aí a
contradição iluminista: em nome de um saber sem limites, não se percebeu o fato de estar,
desde o início, pensando dentro de limites muito rígidos, posto circunscrever tal
conhecimento aos limites da razão e do conceito 71. Tal disposição — que vem a reboque do
tão propalado ideal moderno de progresso e superação —, não se pode omitir, se mostrou
extremamente ―destrutiva‖, não importa quanto o discurso positivo e otimista da ―época das
luzes‖ queira negar 72.
Portanto, a própria teoria do conhecimento é demonstração das incoerências da
modernidade. Mas, cabe aqui ressaltar que, embora a modernidade laborasse em contradição,
não conseguiu trazê-la a um nível de consciência, assumindo-a como tal.

2.1.2 Modernidade e Offenbarung

Desde suas origens, o ato hermenêutico esteve intrinsecamente ligado à revelação.


Segundo Gadamer, é na revelação — historicizada no evento da encarnação — que a
73
experiência hermenêutica tem o seu fundamento . Embora essa relação se encete no âmbito
da exegese da Escritura, como se verá mais adiante, a revelação se manteve como fundamento
não só em sentido teológico, mas também se desvestiu de seu caráter sacro ao longo da
história para adquirir o status de ―holofote‖ do ato hermenêutico legítimo. Ou seja, a
revelação se tornou o evento capaz de instaurar uma abertura necessária a toda experiência
interpretativa.
Mas, o conceito de revelação adquire na modernidade um sentido estrito e
hegemônico, expresso pelo termo Offenbarung. Embora no equivalente latino revelatio se

71
A despeito das muitas nuances percebidas nas concepções dos autores citados neste trabalho como críticos do
Iluminismo, é digno de nota a distinção feita por Sérgio Paulo Rouanet (Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. As razões
do iluminismo. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 200-216.), ao se apropriar da metáfora paulina
do ―espírito que vivifica‖ versus a ―letra que mata‖. Com base na metáfora, para Rouanet deve-se distinguir um
―Iluminismo vivo‖, ou um espírito iluminista, de um ―Iluminismo de museu‖, ou Iluminismo institucionalizado.
72
Dentre os muitos críticos da modernidade ocidental, pode-se destacar os nomes de Nietzsche e Heidegger
como aqueles que, através de sua postura aguerrida, deitaram as bases daquilo que veio a se chamar pós-
modernidade. Esses e outros críticos da modernidade serão mencionados adiante, à medida que suas
contribuições forem relevantes para o assunto em questão.
73
Cf. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica.
Petrópolis: Vozes, 1997, p. 609,622.
31

encontre presente tanto o sentido de ―retirada do véu‖, bem como o de ―espessamento do véu‖
(ou seja, intensificação do velamento) — o que sugere uma relação dialética interessante —, a
modernidade viu na Offenbarung apenas o primeiro sentido: o ato de tornar evidente o que
74
estava oculto, a pura manifestação. O termo Offenbarung, portanto, em seu sentido
moderno, não é despretensioso, mas, ao contrário, expressa de forma cabal a cosmovisão
moderna. E é a abordagem de Hegel (1770-1831) que, levando a Offenbarung às últimas
consequências, consolida tal cosmovisão ao propor a completa correspondência ―entre o
75
conteúdo e a forma da manifestação histórica de Deus‖. Ou seja, a revelação de Deus
manifesta aberta e absolutamente quem ele é, de maneira que nesse ato não se deveria
pressupor que houvesse resíduos encobertos do ser divino. Tudo quanto Deus é se desvela no
ato da revelação. Tal concepção encarna bem o ideal iluminista, pois sustenta o pressuposto
de que a ―ideia de Deus‖ abraça e esgota o divino. Amparado pela concepção de Deus como
Espírito (―Geist‖), Hegel advoga a ideia de um Deus submetido à necessidade constitutiva de
76
manifestar-se historicamente . Para ele, Deus não pode não se manifestar, além do fato de
que tal revelação não é gratuita, ancorada na liberdade, proporcionadora da surpresa, antes
Deus torna-se escravo de sua própria natureza destinada ao desvelamento.
Assim, ao mesmo tempo em que a modernidade se expressa pelo triunfo da
Offenbarung, como o triunfo da identidade, manifesta predominantemente uma recusa da
diferença, o que traz sérias implicações para a tarefa hermenêutica, não só em seu sentido
epistemológico-textual, mas muito mais em seu sentido ontológico. Tal opção — vale
ressaltar —, ao mesmo tempo em que alimenta a modernidade, por ela é alimentada.
Nesse sentido, o Deus que vem à consciência se mostra plenamente, sem mistérios,
sem resquícios, sem a possibilidade de ser Outro, condenado, portanto, à repetição eterna da
identidade. Ora, a concepção de um Deus que seja compelido a revelar-se, e que, portanto,
anula toda a possibilidade da alteridade, compromete por completo o ato hermenêutico,
77
porquanto este se estriba na possibilidade de um conhecimento do outro como outro .A

74
Cf. FORTE, Bruno. À Escuta do Outro: filosofia e revelação. São Paulo: Paulinas, 2003, p. 14.
75
FORTE, 2003. p. 14.
76
Quanto à concepção hegeliana, muito bem se expressa Bruno Forte ao dizer: ―O constitutivo destinar-se, a
natureza do ‗Geist‘ em si próprio, é o manifestar-se (‗sich zu manifestieren‘), o tornar-se objetivo (‗sich
gegenständlich zu machen‘), o colocar-se diante de si mesmo como objeto, para repossuir-se no ato do conhecer
como sujeito cognoscente. Esse é seu ato infinito. Portanto, se a religião cristã é a religião do manifestar-se de
Deus, e Deus é aquele que se manifesta, Deus é Espírito por excelência, porque o Espírito é o manifestar-se, o
tornar-se objetivo‖ (FORTE, 2003. p. 15) .
77
Tal constatação estriba-se, entretanto, numa perspectiva pós-metafísica da hermenêutica.
32

hermenêutica só é possível quando construída sobre o pressuposto de respeito ao outro em sua


diferença.
Essa herança da modernidade parece grassar ainda hoje quando lidamos com aquelas
teologias, ou aqueles dogmas que se perpetuaram ao longo dos anos, ―baús doutrinais‖ cujas
chaves foram escondidas a fim de se evitar a possibilidade de um dia serem mexidos e seu
conteúdo modificado. Nesse sentido, o paradigma iluminista parece facilitar uma
―hermenêutica da manutenção‖, impossível de possibilitar a espera pelo inesperado, o
encantamento, o maravilhar-se com o inusitado. A ―hermenêutica da manutenção‖, no dizer
de Bruno Forte, é anti-filosofia, anti-teologia, anti-hermenêutica. Na verdade, essa anti-
hermenêutica que se constrói pela necessidade

[...] não comunica, não dialoga, impõe-se, e, nesse sentido, é violenta porque repete
a identidade, não pode tolerar a diferença. Por isso, pode-se afirmar que a ideologia
não se torna totalitária acidentalmente, por incidentes de percurso, mas o é
constitutivamente, originariamente, porque está fundada na hermenêutica da
repetição da identidade. 78

Essa atitude anti-hermenêutica, pois, figura como uma das principais expressões da
cosmovisão moderna, propensa a uma ―dominação‖ que pode ser vista na ânsia por um
conhecimento que se presentifique de forma perene a fim de que seja útil e funcional. E tal
utilidade pode ser medida pelo grau de controle que se exerce sobre as coisas. Isto quer dizer
que mesmo o aprender, como domínio e apropriação, é dominação, o que encarna de forma
79
aterradora a frase de Francis Bacon: ―Saber é poder‖ . Esta máxima — sintetizadora da
modernidade iluminista — faz o favor de lembrar-nos sempre que é arriscado lidar com o
obscuro, com o inesperado, pois que poder se pode exercer sobre aquilo que não se controla?
A revelação, dentro de um paradigma representativo-conceptual, tende sempre a direcionar
nosso olhar para o manifesto, para o aberto, o conhecido, o evidente, enfim, para o revelado.
Essa atitude caracterizadora da cosmovisão moderna, sem dúvidas, obnubila o nosso olhar à
experiência cotidiana do ordinário, capaz também de evocar o absconso, aquilo que
permanentemente se oculta.
É digno de nota, também — embora seja considerada por alguns uma análise um
80
tanto exagerada do iluminismo —, a crítica empreendida pelos artífices da ―dialética do

78
FORTE, 2003. p. 14.
79
Cf. BACON, 1999, p. 33.
80
Habermas, por exemplo, acredita que a radicalidade das críticas faz com que os autores subestimem conquistas
da modernidade cultural que não poderiam ser ignoradas. Nesse sentido, não se poderia, acertadamente, ver
apenas a ―aliança da razão com a dominação‖ (quanto a isto, ver HABERMAS, 2000, p. 153-186).
33

81
esclarecimento‖ , Adorno (1903-1969) e Horkheimer (1895-1973). Ambos denunciam
energicamente a atitude dominadora empreendida pelo iluminismo:

O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominar


completamente sobre ela e sobre os homens. Fora disso, nada conta. Sem escrúpulos
para consigo mesmo, o iluminismo incinerou os últimos restos da sua própria
consciência de si [...] A partir de agora, a matéria deverá finalmente ser dominada,
sem apelo a forças ilusórias que a governem ou que nela habitem, sem apelo a
propriedades ocultas. O que não se ajusta às medidas da calculabilidade e da
utilidade é suspeito para o iluminismo. 82

A análise crítica de Adorno e Horkheimer quanto aos mecanismos culturais de


dominação da sociedade ocidental vê na Aufkärung a responsável pelo destinar humano a uma
nova forma de barbárie, ainda que o discurso iluminista afirmasse uma aventura que
progressivamente deveria fornecer melhores condições aos seres humanos. Na verdade, o
processo autodestrutivo apontado por eles refere-se à própria autodestruição da razão, afinal
esta se expressaria nas Luzes como um Logos dominador 83.
Apesar de serem amplas e profundas as mudanças acarretadas pela modernidade, o
que se quer pontuar aqui é tão somente a sua busca por um conhecimento ―escancarado‖
como estabelecimento do poder e dominação, e que, de alguma forma, encarna um ―instinto
napoleônico‖ — dividir para dominar. Nenhuma cultura jamais chegou tão longe no que
concerne a essa luta por perscrutar todos os mistérios, e subjugá-los por meio do
conhecimento — eis aí o que poderíamos chamar de ―cultura do revelado‖.

81
A expressão ―dialética do esclarecimento‖ é usada por Adorno e Horkheimer para indicar a ―alternância
histórica da civilização ocidental‖. O conceito de Aufklärung (esclarecimento) deixa de identificar-se com a
filosofia iluminista e torna-se uma categoria que designa o pensamento ―burguês‖ em seu triunfo na cultura do
século XVIII. Identifica-se, portanto, com a ―práxis da civilização e da lógica do domínio‖. Nesse sentido, o
esclarecimento se traduz na própria burguesia, e se caracteriza pela atitude do ser humano em tornar o mundo e o
ser suas propriedades. Essa tentativa de se impor como o dono do ser enceta um processo autodestrutivo que, por
assim dizer, justifica a expressão ―dialética do esclarecimento‖. Segundo os autores de Frankfurt, o domínio do
ser humano sobre o mundo pressupõe o domínio sobre o próprio ser humano, e uma renúncia ―aos reclamos do
instinto e do prazer em favor do trabalho e da labuta‖. Isso se expressa na atitude de privação dos burgueses
quanto à felicidade em prol de uma extensão cada vez maior de seu domínio (Ver FORNERO, 2007, p. 322-
323).
82
ADORNO, Theodor W. Conceito de iluminismo. In: EDITORA NOVA CULTURAL LTDA. Theodor W.
Adorno: textos escolhidos. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, p. 19-21.
83
Cf. HUISMAN, Denis. Dialética do esclarecimento. In: HUISMAN, Denis. Dicionário de obras filosóficas.
São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 121.
34

2.2 Um Modelo de Racionalidade Insuficiente: Novo Lugar Para o Velado

A ciência cumpre um papel fundamental na consolidação da cosmovisão moderna.


Pode-se dizer, de certa forma, que ela é fruto e ao mesmo tempo catalisadora da racionalidade
ocidental moderna. Seguindo a trilha que anuncia a modernidade como ―triunfo da razão‖ 84,
pode-se dizer que a ciência manifestou-se como uma das principais dimensões da autonomia
da razão moderna, responsável por um tipo específico de interpretação do real, mas com
pretensões hermenêuticas de universalidade. Libânio esclarece:

[Essa autonomia da razão moderna] Institui-se em instância crítica das tradições e


autoridades, ao fundar-se na verdade da experiência científica, que se constitui
através da observação e da verificação do real. Armam-se hipóteses, que são
submetidas à experimentação e manipulação controlada por processos definidos.
Compreende-se o que se experimenta. Experimenta-se o que se constrói. Real é, em
última análise, aquilo que se pode construir, testar, experimentar. E assim constitui-
se um discurso universal, comprovável por cada um, onde estiver. 85

Vale ressaltar que a ciência nasce da aparente insuficiência de outras formas de


conhecimento — tais como as do ―senso comum‖, do ―religioso‖, da ―experiência artística‖ e
do ―filosófico‖ —, com a promessa de ser o conhecimento seguro e verdadeiro. Seus
primeiros artífices operam dentro disso que se pode chamar de racionalidade moderna:

Embora se possa dizer que ―não existe um ‗lugar de nascimento‘ daquela realidade
histórica complicada que hoje chamamos de ciência moderna‖ (Rossi, 2001:09),
uma vez que a nova forma de conhecimento é fruto do trabalho de autores de
diversas nacionalidades e contextos, existe uma força de agregação do projeto
científico que é sua orientação marcada pelo racionalismo de Descartes e pelo
empirismo de Bacon e Galilei (Lara, 1986). 86

Na França, René Descartes (1596-1650), com sua famosa expressão cogito ergo sum,
converte a dúvida em método, ao postular uma verdade primeira, indubitável, como ponto de
partida de todo o conhecimento. Descartes questiona de forma radical o princípio de

84
Não se pretende, com isso, reduzir o universo plural da modernidade, mas apenas explorar um de seus
discursos — talvez o mais representativo —, que é o discurso da razão. No entanto, pode-se concordar com João
Batista Libânio que há, pelo menos, quatro discursos fundamentalmente presentes na modernidade: o ―da razão‖,
o ―da liberdade‖, o ―da felicidade‖ e o ―do estado‖ (Cf. LIBÂNIO, João Batista. Teologia da revelação a partir
da modernidade. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 116.).
85
LIBÂNIO, 1992, p. 117.
86
ARAÚJO, Carlos Alberto Ávila. A ciência como forma de conhecimento. Ciências e Cognição, Rio de
Janeiro, ano 3, v. 8, p. 127-142, agosto de 2006. Disponível em: <
http://www.cienciasecognicao.org/ciencogn.htm>. Acesso em: 22 jul. 2008.
35

autoridade enquanto forma de conhecimento — tal como se verifica no conhecimento


religioso e no do senso comum —, elegendo a razão à guia supremo do processo de
conhecimento. Promove, também, separação entre mente e corpo, matéria e pensamento, e
entre a razão e as demais formas de conhecimento, estabelecendo, assim, uma ruptura da
ciência com o sensível, com a natureza, com a imaginação e o sagrado. Ademais, Descartes
reduz a subjetividade humana aos aspectos puramente racionais, além de propor a redução da
complexidade como método científico (dividir o objeto nas menores unidades e estudá-las
87
separadamente) . Na Inglaterra, Francis Bacon (1561-1626) propõe um saber que deixa de
ser contemplativo e desinteressado, para tornar-se um saber instrumental, possível de
implementar a dominação da natureza. Ele propôs uma separação entre a ciência e as
humanidades (estas preocupadas com a justiça, com as pessoas, com a natureza, com o
sagrado). Além disso, vale salientar que o empiricismo de Bacon põe a observação como
descrição fiel da realidade, não sujeita a julgamentos e interpretações 88. Finalmente, na Itália,
Galileu Galilei (1564-1642) se torna reconhecido por muitos como o pai do método científico,
sendo ele quem, sobretudo, enfatizou a atitude empírica na pesquisa científica. Para isto,
rompeu com as indicações aristotélicas ao propor a medição dos fenômenos e a observação
quantitativa. Sua busca de um ideal matemático resulta na proposta de um conhecimento
exato e preciso.
Araújo sintetiza a ciência da seguinte maneira:

A ciência, pois, é uma forma de conhecimento que, compreendida num sentido mais
específico, surge historicamente no século XVI, dentro do processo da Modernidade
de ruptura com o mundo feudal e eclesiástico, embasada filosoficamente pelo
Iluminismo e originada com o Renascimento. 89

Rubem Alves, citado por Araújo, completa: ―O discurso científico tem a intenção
confessada de produzir conhecimento, numa busca sem fim da verdade‖ (Alves, 1987:170). 90
A ciência moderna, sem dúvida, se impõe como um grande ―sistema‖, com
pretensões de ser, também, a grande intérprete da realidade. O modelo de ciência surgido no
século XVI, constituído, sobretudo, por sua voraz reação às várias formas de dogmatismo e ao
conhecimento manifesto sob o princípio de autoridade, vige durante muito tempo como

87
Cf. ARAÚJO, 2006, p. 133-134.
88
Cf. ARAÚJO, 2006, p. 134.
89
ARAÚJO, 2006, p. 134-135.
90
ALVES, R. Filosofia da ciência: introdução ao jogo e suas regras. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.170 apud
ARAÚJO, 2006, p. 135.
36

hegemônica solucionadora dos problemas da humanidade. Entretanto, a partir do século XX


será questionada em seus princípios e suas propostas. Araújo, citando Boaventura de Sousa
Santos, nos expõe as condições sob as quais a ciência sofre um processo de perda de
confiança:

O primeiro tipo são as condições teóricas, isto é, descobertas científicas que colocam
em evidência limitações do modelo tradicional. Entre essas descobertas o autor
destaca as contribuições de Einstein, Heisenberg e Bohr, Gödel, Prigogine e outros
que derrubam, entre outros pilares do ―paradigma dominante‖, o mito da
objetividade, da possibilidade de se estudar um objeto sem perturbá-lo, e a idéia de
tempo e espaço absolutos [...] O segundo tipo são as condições sociais. Diversas
experiências do século XX, como as duas grandes guerras, as experiências
totalitárias, os desastres ecológicos, a submissão da ciência aos interesses militares e
econômicos, levaram a uma perda do interesse no conhecimento científico tal como
vinha sendo produzido. 91

Na verdade, a ciência moderna entra em crise e se mostra insuficiente porque se


estriba num modelo de racionalidade que também se mostra insuficiente. Para Hilton
Japiassú, o racionalismo moderno, segundo o qual tudo passa a ter uma razão de ser, tudo é
92
inteligível, e nossos conhecimentos advêm de princípios a priori , sofre reações de muitos
lados: Pascal, ao defender a ―nova filosofia‖, é o primeiro a falar da independência da Razão
somada, entretanto, ao conhecimento pelo ―coração‖. São os primeiros lampejos de um
93
irracionalismo vindouro — que se expressaria mais acentuadamente em Nietzche — , que
abriria espaço não só ao ―coração‖, mas, também, a forças ocultas, crenças passadas e
presentes, como forma de explicação dos fenômenos. Para Pascal, a última demarcação da
razão é o reconhecimento de que há muitas coisas que a ultrapassam. Apesar de haver, mesmo
94
assim, um triunfo da razão nessa época , tais reações lançaram sementes que eclodiriam
mais adiante. O esgotamento da Razão, verificado nas últimas décadas, surge como resultado
de um relativismo que tem vulnerabilizado o cientificismo, e a própria racionalidade científica
95
— uma espécie de anticiência (melhor, anticientificismo) . Esse movimento tem atacado
dois axiomas básicos do cientificismo: a superioridade teórica, e a superioridade prática 96.
A partir da década de 60, Thomas Kuhn revoluciona a visão contemporânea de
ciência ao relacionar os cientistas e suas descobertas ao ambiente histórico e social em que se

91
ARAÚJO, 2006, p. 136.
92
Cf. JAPIASSU, Hilton. A crise da razão e do saber objetivo. São Paulo: Letras e Letras, 1996, p. 69.
93
Cf. JAPIASSU, 1996, p. 73.
94
Cf. JAPIASSU, 1996, p. 74.
95
Cf. JAPIASSU, 1996, p. 86.
96
Cf. JAPIASSU, 1996, p. 87.
37

encontram. Nesse sentido, a ciência deixa de ser vista em âmbito universal, e passa a ser
relativizada ao seu contexto 97. Ao criticar a imagem de ciência predominante mesmo entre os
cientistas, Kuhn, em sua principal obra ―A Estrutura das Revoluções Científicas‖, esboça ―[...]
um conceito de ciência bastante diverso que pode emergir dos registros históricos da própria
98
atividade de pesquisa‖. Ademais, Kuhn expõe as bases não-racionais, possíveis em
qualquer sistema racional, que geralmente não são levadas em conta quando se resolve
defender apaixonadamente um determinado sistema:

Segundo Thomas Kuhn, por exemplo, uma vez instaurada a crise em um


determinado paradigma científico, dá-se uma profusão de proposições, hipóteses,
teorias, que não são, entre si, umas melhores do que outras por algum critério
estritamente científico. Umas são melhores do que outras por que simplesmente
carreiam a adesão de um número maior de cientistas. Então, a pergunta é inevitável:
Por que razão os cientistas abandonam determinados paradigmas e aderem a outros?
Thomas Kuhn diz que as causas não são racionais. Os motivos são variados: pode
ser a estética da teoria; a maior consonância de determinada teoria com a visão de
mundo daquele cientista ou que a sociedade apresenta; ou o cientista pode ter como
ídolos os defensores daquele paradigma; ou ainda por outras razões pessoais. O que
Khun está dizendo é que o determinante é psicológico, e chega mesmo a descrever a
adesão ao paradigma quase como processo de ―conversão religiosa‖ por parte do
cientista. Ele adere ao paradigma e passa a pensar a partir dele, mas não por
qualquer razão intrínseca ao sistema. 99

A visão revolucionária de Kuhn é seguida de um movimento feminista de crítica à


ciência. Segundo este, há um sexismo que afeta a pesquisa científica: trata-se de uma
agressividade no trato com a natureza, bem como o uso de uma lógica masculina de
competição (e não de diálogo), de monopólio, de individualismo, e de autoritarismo 100.
No passo desse relativismo, encontramos uma expressão mais radical no anarquismo
101
epistemológico de Paul Feyerabend . Sua oposição às regras do método científico é
flagrante e, segundo ele, não são capazes de conter os fatos, por isso são constantemente
violadas. Para ele, a ciência também é uma instituição, e por isso deve ser criticada. As
sociedades se libertam na medida em que reconhecem os direitos de todas as tradições, e não
por se fundarem em uma racionalidade. Na realidade, o uso de um critério geral de
cientificidade para avaliação de saberes não-científicos é um equívoco. É vão, portanto,

97
Cf. JAPIASSU, 1996, p. 88.
98
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 19.
99
ROCHA, Abdruschin Schaeffer. O conhecimento hermenêutico entre a ação e a afetação. Protestantismo em
Revista, Dossiê Leituras da Religião, São Leopoldo, v. 19, ano 8, n. 2, p. 50-59, maio-ago. de 2009. Disponível
em: <http://www3.est.edu.br/nepp. Acesso em: 1 set. 2009.
100
Cf. JAPIASSU, 1996, p. 88.
101
Físico e epistemólogo austríaco, nascido em 1924. Seu anarquismo epistemológico é conhecido, sobretudo,
por sua obra ―Contra o Método‖ (Cf., por exemplo, edição portuguesa, FEYERABEND, Paul. Contra o método.
Lisboa: Relógio D‘água, 1993.).
38

qualquer fronteira entre as tradições e a ciência. Destarte, Feyerabend procura desconstruir os


principais pilares da ciência moderna — a Razão e a Objetividade —, demonstrando sua
arbitrariedade em esmagar todos os saberes populares e autóctones dos países colonizados. Se
não se pode tratar logicamente sistemas incomensuráveis que se orientam por outro contexto,
logo não se pode usar, também, critérios racionais e objetivos na escolha deles, levando-nos a
―juízos estéticos‖, a ―desejos subjetivos‖ 102.

Não seria difícil enumerar outros pensadores e suas contribuições para a


consolidação do processo de perda de confiança no modelo de racionalidade moderno, porém
os aqui citados são suficientes para elucidar o fato de que o processo de desestabilização e
incredibilidade da ciência, e de todo arcabouço ―ideológico‖ da modernidade fez crescer a
consciência de fragilidade dos grandes sistemas. Ao invés de grandes narrativas, que por
muito tempo foram vistas como grandes conquistas da humanidade, um novo paradigma se
impõe ao celebrar narrativas locais, despretensiosas, fluidas, indicadoras do clima pessimista
pós-moderno, fruto das decepções com o projeto iluminista 103.
Destarte, se a modernidade ocidental enquanto cultura do revelado se mostra (por
essas e outras razões) um modelo insuficiente e esterilizante, abrem-se, então, novas
possibilidades. Uma delas, que aqui se quer pontuar, é o espaço que se alarga para a assunção
104
do velado, do não-dado . Se a racionalidade moderna, incluindo a ciência gestada nesse
grande ―útero cultural‖, absolutizou um dos movimentos do real, a saber, o seu desvelamento,
seu enfraquecimento põe de novo a possibilidade do mistério, do oculto e intocável (sacer).
Portanto, neste momento é oportuna a reflexão sobre o movimento dialético possível entre o
velamento e o desvelamento. Para isso, recorreremos às contribuições de Martin Heidegger e
de Karl Barth, ambos imbuídos da crítica ao modelo de racionalidade moderno.

102
Cf. JAPIASSU, 1996, p. 91-92.
103
Cf. ROCHA, 2009, p. 55.
104
Michel Foucault busca, por exemplo — em seu método da ―arqueologia do saber‖ —, estabelecer um diálogo
entre o ―dado‖ e o ―não-dado‖. Com esse diálogo intenta suscitar o ―oculto‖, que se manifesta enquanto
componentes históricos e contextuais, na maioria das vezes ignorados na compreensão dos fundamentos do saber
(cf. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.).
39

2.2.1 A-lētheia e re-velatio como velamento e desvelamento

O termo grego alētheia, bem como a palavra latina revelatio, normalmente têm sido
traduzidas por ―verdade‖ e ―revelação‖, respectivamente. Não seria frutífera, entretanto, uma
descrição detalhada de sua etimologia e de seu uso no grego clássico e helenístico, por um
lado, ou no latim, por outro, para um uso correto do termo, pois tal análise se perderia na
polissemia dos vocábulos. Alētheia fora usada em muitos sentidos até ao período do Novo
Testamento, e continuou ao longo da história sendo concebida e usada de formas diversas. O
mesmo se pode dizer em relação ao termo revelatio, guardadas as devidas diferenças
históricas. Qualquer digressão que aqui se pretendesse, apoiada na ―segurança‖ do sentido
etimológico do termo, seria tarefa infrutífera. Afinal, ―A etimologia somente fornece
declarações acerca da história passada de uma palavra; não acerca do seu uso em uma etapa
105
posterior‖. Por outro lado, entretanto, não seria equivocada a reflexão que optasse por um
sentido, a guisa de uma abertura de possibilidades, que se legitimasse por sua realidade
histórica, e não etimológica. Assim, o sentido etimológico pode ajudar a instaurar novas
realidades a serem pensadas, e que poderão servir a determinadas elucubrações, mas, não se
segue daí que ―realidades verdadeiras‖ derivem de análises etimológicas ―corretas‖, pois
devem ser vistas à luz de seu movimento histórico.
Desta maneira, quando se considera o tema aqui proposto, salta aos olhos um dos
sentidos historicamente possíveis para o termo grego a- lētheia, e para o termo greco-latino
revelatio — ambos baseados em sua etimologia —, que é o que os designa como o não estar
oculto, ou des-velamento, concebidos assim dialeticamente. Quanto a isso, é de particular
importância a contribuição de duas personagens do mundo da filosofia e da teologia: Martin
Heidegger e Karl Barth. Vale salientar que Barth manifestou seu pensamento de diferentes
formas ao longo de diferentes momentos em sua vida. Nesse sentido, grosso modo, é possível
dividir o seu pensamento em três fases: a primeira, ainda caracterizada pela influência da
teologia liberal e pelo socialismo; a segunda, que tem início com o Römerbrief (Carta aos
Romanos), caracterizada por sua ―dependência‖ de outros autores; e a terceira, caracterizada
por um distanciamento dos teólogos e filósofos que exerceram influência sobre ele, e por sua

105
THISELTON, Anthony C. Verdade. In: COENEM, Lothar, BROWN, Colin (Orgs.). Dicionário
internacional de teologia do Novo Testamento. 2. Ed. São Paulo: Vida Nova, 2000, v. 2, p. 2605.
40

conclusão de que a fé está acima da razão, cabendo a esta servir àquela 106. Embora não caiba
aqui um aprofundamento no tema, é preciso assinalar que Heidegger é um dos pensadores que
mais exerceram influência sobre o teólogo em sua segunda fase. Talvez esse ―ponto de
107
encontro‖ seja relevante , e digno de maior pesquisa, mas aqui apenas servirá para mostrar
que tal parecença no pensamento não se dá por acaso. Ainda é digno de nota que ambos —
cada um a seu modo — podem ser inseridos no grupo daqueles pensadores que, ao
contribuírem para o enfraquecimento do paradigma iluminista, contribuem também para a
consequente irrupção da chamada pós-modernidade.

2.2.2 A a-lētheia heideggeriana

Martin Heidegger (1889-1976) é considerado o principal expoente da filosofia da


existência. Uma de suas principais obras, Ser e Tempo, carreia seu esforço em elaborar
concretamente o problema do sentido do Ser. Embora neste espaço não caibam considerações
que elucidem essa problemática, vale ressaltar que a compreensão do sentido de alētheia
relaciona-se complexamente com a ideia de Ser para Heidegger.
A reflexão em torno do termo alētheia (108) deriva de seus comentários dos
fragmentos do filósofo pré-socrático, Heráclito de Éfeso. O fragmento ―16‖ nos diz:
―‖. A tradução seria: ―Como alguém poderia manter-
109
se encoberto face ao que nunca se deita?‖. Ou, ainda: ―Do que jamais mergulha como

106
Quanto a isso, ver prefácio da ―Carta aos Romanos‖, de Ricardo Quadros Gouvêa (Cf. BARTH, Karl. Carta
aos romanos. São Paulo: Novo Século, 2003).
107
Muitos poderiam objetar que qualquer análise que pretendesse ser contemporânea, e que se baseasse na
cordialidade entre ambos os autores, não seria legítima, dado ao fato de que a terceira fase de Barth,
caracterizada pelo abandono das influências filosóficas, crítica ao racionalismo, bem como a subserviência da
razão à fé, mostraria que o Barth da maturidade não concordaria com a relação. Entretanto, deve-se notar que
Barth não nega a razão, apenas pretende colocá-la em seu devido lugar, além do fato de que mesmo assim
mantêm-se próximo a Heidegger, desde que este também tenha desferido duros golpes à razão iluminista,
mostrando a sua insuficiência.
108
Grafia utilizada no dicionário de Isidoro Pereira (Cf. PEREIRA, SJ, Isidoro. Dicionário grego-português e
português-grego. 6. ed. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1984, p.26.).
109
ANAXIMANDRO; PARMÊNIDES; HERÁCLITO. Os pensadores originários: Anaximandro, Parmênides,
Heráclito. Introdução e Tradução de Emanuel Carneiro Leão. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1999. p. 63 (Coleção
Pensamento Humano, 9).
41

110
alguém escaparia?‖. Embora aqui não se nomeie a expressão alētheia, Heidegger faz suas
digressões a partir desse fragmento, e em relação com outros, como se verá.
Para Heidegger, conquanto alētheia seja frequentemente traduzida por ―verdade‖,
―certeza‖, ―objetividade‖, não parece seguro pensar que Heráclito tenha tentado indicar algo
como uma verdade objetiva, tal qual veio a ser concebido pela modernidade. A sentença de
Heráclito, na verdade, é uma interrogação: Como alguém poderia ( manter-se
111
encoberto ([face] ao que já não declina (? Nesta pergunta,
Heidegger pressupõe que Heráclito, ao falar de um , não tematiza o
―declínio‖, antes aquilo que ―nunca declina‖. Todavia, o que ―nunca declina‖ só pode ser
compreendido à luz daquilo que declina, daquilo que se mantém no próprio encobrimento.
Nesse sentido, há de se perceber uma relação essencial entre e, antes
mesmo que se envolva com o que, na realidade, ―nunca declina‖. E é no âmbito dessa relação
que se é inevitavelmente remetido a pensar o sentido de alētheia (), conforme os
gregos a entendiam — como des-velamento ou des-encobrimento. O próprio termo a-lētheia
alberga em si tal relação. Heidegger esclarece:

Esse é o sentido do alfa () que compõe a palavra grega aletheia e que somente
recebeu a designação de alfa privativo na gramática elaborada pelo pensamento
grego tardio. A relação com lethe (), encobrimento e o próprio encobrimento
não perdem de forma alguma o peso pelo fato de se experienciar diretamente o
descoberto como o que apareceu, como o que entrou em vigência, como vigente. 112

Alētheia, portanto, é o movimento de retirada do velamento, e se coloca como aquilo


que não permite que o velamento se absolutize. Mas, o velamento precisa, de alguma forma,
se manter no processo, para que o contraposto seja possível. Em outras palavras, se alētheia
se contrapõe ao velamento, aponta, contudo, para o velamento como sua condição, e o
mantém e acompanha. Não é contraposição que anula o contraposto — é contraposição com
113
manutenção . Na realidade, cair no âmbito do encobrimento não é extinguir-se, mas a
possibilidade de um ―nascer‖, pois este sempre se faz (e só é possível) a partir do

110
EDITORA NOVA CULTURAL. Os pré-socráticos: vida e obra. Tradução de José Cavalcante de Souza. São
Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, p. 89 (Coleção Os Pensadores).
111
Esta preposição não consta da formulação grega. Entretanto, como toda tradução já é, em si, uma
interpretação, Heidegger a introduz para uma melhor compreensão do sentido originário da sentença.
112
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e Conferências. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 229.
113
Deve-se notar que, embora Heidegger critique a dialética, corrobora, entretanto, o movimento dialético
presente nos fragmentos de Heráclito. Contudo, sua dialética não é do tipo hegeliano, em que a contraposição
anula o contraposto em favor de uma síntese, mas uma ao modo heraclítico, em que há uma manutenção da
tensão.
42

encobrimento. O encobrir-se se articula com o descobrir, pois só se descobre aquilo que já


está encoberto. É preciso, no entanto, aperceber-se do fato de que essa relação não se dá por
uma sucessão, onde ora predomina um, ora outro. Nessa relação há um vigorar, de modo que,
enquanto há o encobrimento, o surgimento se essencializa e vigora.
Para Heidegger, o sentido de alētheia está intrinsecamente ligado ao sentido de
physis (). Assim, relaciona ao fragmento ―16‖ o ―123‖: ―‖, que
traduzido é: ―Surgimento já tende ao encobrimento‖, 114 ou ―Natureza ama esconder-se‖. 115
Heidegger procura, então, evocar aquilo que para ele é o sentido de physis para o
grego: ou seja, ―natureza‖, mas não no sentido em que é entendida hoje, e sim aquilo que
provém a partir do que se vela, do que se esconde. Physis, portanto, é o nome desse aparecer
que desabrocha por si só, um auto-engendramento que exclui qualquer necessidade de um
116
agente fora da dinâmica . Como aquilo que se coloca desde si próprio, a physis tem a ver
com o ―Ser‖, pois para os gregos ser é aparecer. E é exatamente aqui que reside o equívoco
da tradução de physis por ―natureza‖, pois que nos remete sempre aos entes, às coisas
representadas nos objetos (árvores, montanhas e etc.) e nunca ao caráter verbal do
aparecimento. Também aqui é deflagrado o problema da compreensão moderna de metafísica,
pois o meta passa a ser associado a uma compreensão equivocada de física. Nesse sentido,
para os gregos antigos não haveria meta na physis, pois tudo deve ser visto na perspectiva da
physis. Em outras palavras, não há nada que escape à physis, pois o aparecer é sempre uno e
tudo, ao passo que o aparecido é sempre particular. Portanto, para o grego não há metafísica
no sentido em que compreendemos hoje. É compreensível, então, que na perspectiva de
Heráclito as coisas mais comuns e cotidianas podem se revestir de uma auréola divina, afinal,
para os gregos não há uma causa divina por trás da physis, mas esta é a própria maneira de a
divindade ser. Não são os deuses que causaram a physis, mas são a própria physis. Não são
realidades supra-sensíveis, mas o próprio modo de ser da realidade.
No contexto dessa reflexão, ainda é digno de nota a compreensão heideggeriana de
philia (). Para Heidegger, a fim de que haja uma preservação no sentido de que
surgimento permaneça surgindo e encobrimento continue encobrindo, é mister o vigor da
philia 117 como acontecimento que favorece. Na realidade, a philia propicia e favorece o outro
para que este seja pleno em si mesmo. A vontade de quem ama, deve ser a vontade do outro,

114
ANAXIMANDRO; PARMÊNIDES; HERÁCLITO, 1999, p. 90-91.
115
EDITORA NOVA CULTURAL, 1999, p. 101.
116
Φύσις é tanto a força de eclodir como a eclosão propriamente dita.
117
Na verdade, no que tange à alētheia, entre o alfa privativo e o lēthe, há uma philia.
43

posto no amor haver uma mútua liberação. Por ser um acontecimento, esse favor (philia) deve
ser visto como história, como o que acolhe a atividade favorecendo-a maximamente naquilo
que é. favorece (phylia) a para que esta seja plenamente o que é, e vice-
versa. Ou seja, um só é o que é na sua relação (phylia) com o outro. Para Heidegger, portanto,
esse movimento ―dialético‖ pressupõe a , pois esta se traduz na própria relação entre o
surgir e o declinar, o desencobrimento e o encobrimento.
Na relação de Ser e Ente há sempre um sentimento de albergar, posto que toda
ocultação permite uma certa proteção, e, ao proteger o ente, o Ser sempre aparece latente. Tal
proteção visa sempre impedir que o ente seja compreendido como aquilo que já é dado, uma
118
vez que essa compreensão, se absolutizada, impediria o a-se-pensar . Consequentemente
há, portanto, uma tensão entre a decadência e o a-se-pensar. Entretanto, quando a
modernidade tenta acabar com essa tensão — numa tentativa de fuga da decadência — cai na
própria decadência, com o diferencial de não mais possuir o seu contraponto: o a-se-pensar.

2.2.3 A re-velatio barthiana

Para se compreender adequadamente o sentido conferido por Karl Barth no que


respeita ao conceito de re-velatio, faz-se necessário compreender antes a partir de onde o
teólogo alemão constrói seu pensamento. Com efeito, sua proposta se faz no cotejamento
tanto com teólogos quanto filósofos. No que concerne ao mundo da filosofia, a concepção de
re-velatio na ótica de Barth é haurida a partir de sua reação ao conceito de Offenbarung —
levada ao triunfo por Hegel, e fragilizada por Schelling —, na medida em que deflagra dois
extremos que devem ser evitados enquanto extremos, mas, contudo, relacionados
dialeticamente. No contexto da teologia, Barth reage duramente à teologia liberal do final do
século XIX e princípio do século XX, cujos principais expoentes, Schleiermacher e Harnack,
aplicam à teologia as categorias hegelianas da ―identidade‖ do Espírito. Partindo, pois, das
reflexões anteriores sobre a Offenbarung hegeliana, estimuladas pela excelente análise de
Bruno Forte em ―À Escuta do Outro‖, cabe aqui ainda explicitar a reação de Schelling a tal

118
Expressão heideggeriana que identifica a filosofia com o Ser, em que se impõe a necessidade de sempre se
pensar originariamente. De modo geral, indica um pensamento que sempre precisa estar sendo pensado.
44

filosofia, antes de se compreender esse ―lugar‖ a partir de onde Barth compreende a re-
velatio.
Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854) — em seus escritos póstumos 119 —
é o principal responsável por denunciar a crise da Offenbarung, tal como concebida por
Hegel. Ao contrário deste, para Schelling não haveria qualquer razão que justificasse uma
suposta revelação que nada acrescentasse, que não oferecesse um espaço para a novidade. O
triunfo do Espírito (Geist) hegelliano, que se expressa na pura identidade, torna absurda a
120
ideia de uma revelação, posto esta não passar de autoconsciência . Falar propriamente da
Offenbarung significa concebê-la como ―‗fonte específica e particular de conhecimento‘ e,
portanto, como espaço do Advento, lugar da novidade, da indedutibilidade, da subversão:
121
lugar da liberdade‖. Assim, a revelação não é acontecimento necessário, mas funda-se na
indedutível alteridade do outro. À necessidade do idêntico em Hegel, se contrapõe a
necessidade do novum. Tem-se em Schelling, portanto, o extremo oposto da Offenbarung
hegeliana, fato que expõe a fraqueza da proposta schellinguiana, pois se substitui o Deus
122
condenado à necessidade de revelar-se, por um Deus condenado à pura liberdade , o que,
no final das contas, é outra maneira de se afirmar a necessidade.
O triunfo da alteridade schellinguiana também traz consequências para o ato
hermenêutico, na medida em que incorre na possibilidade de total incomunicabilidade entre os
atores da relação. Nesse sentido, se a diferença não toca a identidade tampouco aqui se tem a
experiência hermenêutica como a experiência do conhecimento do outro 123. Assim como não
pode haver conhecimento no processo interpretativo que pressuponha somente a identidade, o
mesmo se dirá de qualquer hermenêutica que se funde apenas na diferença.
124
Diante dos extremos da necessidade da ipseidade e da necessidade da diferença,
da necessidade da manifestação e da necessidade da ocultação, se insere o pensamento de
Karl Barth. Contra Hegel, Barth postula a ―exigência do Outro‖, não redutível à consciência
nem à dimensão da história. Isto não significa, entretanto, que Barth não admitisse a
realização da revelação na história, mas apenas que Deus, em sua alteridade, transcende a
história. O Deus que se manifesta na revelação não se identifica com a totalidade divina, o

119
Ver HUISMAN, Denis. Dicionário dos filósofos. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 892-895.
120
Cf. FORTE, 2003, p. 24.
121
FORTE, 2003, p. 24-25.
122
No que concerne aos dois sentidos dialéticos possíveis contidos no termo re-velatio — a ―retirada do véu‖ e o
―adensamento do véu‖ —, ao contrário de Hegel, em Schelling acentua-se o segundo sentido.
123
Cf. FORTE, 2003, p. 28.
124
Talvez o melhor sinônimo para ipseidade, no contexto aqui trabalhado, seja um neologismo: mesmidade.
45

que significa que não se esgota no processo hermenêutico. Além disso, a presença divina no
mundo e na subjetividade humana não se realiza por necessidade, mas por graça, numa
dimensão de liberdade. Nesse sentido, Barth engrossa a fileira daqueles que denunciam os
exageros da razão moderna, levada às últimas consequências no idealismo de Hegel. Quanto
a isso, assim se expressa Forte:

Barth tem bem claro que o que está propondo não tem somente um valor teológico
extraordinário, mas também um valor filosófico e hermenêutico não inferior: o
pensamento que se mantiver dentro de um horizonte de identidade estará condenado
a repetir a si mesmo; só um pensamento aberto ao assombro, à maravilha, na
surpresa em relação à alteridade, é fecundo especulativamente e na práxis. Para
Barth, portanto, o problema não consiste em não utilizar a razão: a crise da razão não
é, para ele, o limite da razão. O problema consiste antes em usar a racionalidade ao
extremo, onde ela possa abrir-se — no assombro, com temor e tremor — à novidade
do advento. Aqui Barth insere-se no processo da crise da ‗Offenbarung‘, aberto pela
filosofia do segundo Schelling. 125

Para Barth, a obra divina no homem se apresenta sob o signo da ruptura, e essa
―interrupção‖ divina, consolidada na ideia do ―Totalmente Outro‖, manifesta-se como a
negação da continuidade entre Deus e suas criaturas, advogada por Hegel e pelo pensamento
liberal. Na 2ª edição do Der Römerbrief (Carta aos Romanos), Barth assevera a infinita
diferença qualitativa entre Deus e sua criação. Com os olhos voltados para a filosofia
hegeliana, portanto, Barth pretende tão somente estabelecer a ineludível alteridade de Deus
que infringe a lógica da identidade, ao ameaçar pela contingência o mundo da previsibilidade.
Tal é a liberdade divina que se torna impossível que Deus se revele por necessidade. Nesse
sentido, a revelação não é constitutiva do divino, pois, para ele, Deus pode não revelar-se, ou
revelar-se de maneira imprevisível.
Entretanto, a crítica de Barth à Offenbarung hegeliana não aquiesce ao sabor da
crítica schellinguiana. Com efeito, Barth também supera o segundo extremo propondo uma
diferença que, embora resguarde a transcendência divina, não se absolutiza em si mesma. A
alteridade divina não pode ser reduzida à identidade, não pode ser reduzida ao ato
cognoscitivo, contudo toca a criação divina proporcionando um encontro que, não obstante
resguarde os defrontantes naquilo que são, permiti-lhes o diálogo fecundo. Nesse sentido,
Barth supera o abismo intransponível da diferença schellinguiana. A revelação, com efeito, é
a manifestação divina, entretanto a ―vinda‖ de Deus à ideia é realizada sem expatriá-lo de seu
abrigo. O ―Cristo em nós‖ (cf. Romanos 8.10) não está alheado em seu palácio transcendental,

125
FORTE, 2003, p. 36.
46

ou mesmo exilado de seu recôndito recanto, tampouco se encontra aprisionado por nossa
subjetividade vacilante. Nas palavras de Barth:

―Cristo em nós‖ não é conseqüência de suposição nossa ou de apreensão da Palavra


de Deus que nos foi dirigida. ―Cristo em nós‖ é uma condição que nos é imposta e
que se origina do processo de julgamento e justificação, como condição essencial e
determinante (grifo nosso). 126

No contexto da teologia barthiana, uma hermenêutica possível, enquanto atitude


humana, só poderia se estribar na fé como meio de superar o abismo profundo entre Deus e o
homem. A fé como possibilidade da transcendência, portanto, não deixa que o abismo ou a
absoluta diferença se exacerbe a ponto de impossibilitar a comunicação entre os dois mundos.
Tal perspectiva avança na percepção de que a Palavra que pronuncia provém do silêncio de
Deus, e o silêncio divino também é a manifestação da sua vontade. Esse é o Deus que se
manifesta e se oculta permanentemente; o Deus que se vela e que se re-vela.
Assim, a re-velatio barthiana é redescoberta em seu sentido dialético, ou seja,
enquanto remoção do véu e enquanto adensamento do véu. Para Barth, a revelação vem a nós
por iniciativa própria, como inimigo em supremacia extrema, que ataca a tropa de frente dos
profetas e apóstolos que, por sua vez, nos conclama a lutarmos juntamente como igreja.
Assim, somos convocados a nos avirmos com Deus em seu próprio ―campo de batalhas‖ 127.
Esse caráter subversivo do conhecimento possível pela revelação mostra-nos que, conquanto
venha ao nosso encontro com certa clareza, escapa-nos na medida em que se mostra como
128
―conhecimento do Deus distante, estranho e santo‖. Ou seja, o Deus que se manifesta, o
faz com ―pudor‖, e nesse manifestar resguarda-se em sua alteridade. Eis o movimento
paradoxal catalisador da teologia dialética de Karl Barth.
A postura crítica de Barth, tanto a Hegel e aos teólogos liberais, quanto a Schelling,
repercute intensamente no que respeita ao ato hermenêutico. A perspectiva contemporânea da
hermenêutica desvestiu-se de sua roupagem sacra, e de sua vocação meramente textual, como
aqui já se notou, para tornar-se um modo de interpretar o real. Nesse sentido, a interpretação
do Outro, que se faz mediante sua escuta, é paradigma para qualquer experiência
interpretativa, mesmo a do outro. Todo texto deve ser ouvido em sua própria alteridade, pois
todo dito põe a possibilidade do inaudito. Nesse ambiente conceitual, pois, não parece

126
BARTH, 2003, p. 447.
127
Ver a interessante alegoria da relação entre revelação, testemunho e confissão (Cf. BARTH, Karl. Dádiva e
louvor: artigos selecionados. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal/IEPG, 1996, p. 181-182).
128
BARTH, 1996, p. 183.
47

estranho conceber o ato hermenêutico como dotado de identidade e diferença,


concomitantemente.
Nos embates com o ―texto‖ — aqui não só em seu caráter epistemológico, mas
também ontológico —, muitos têm assegurado que a compreensão se faz mediante identidade.
Ou seja, compreendemos na medida em que haja elementos no texto que sejam comuns a meu
mundo. Nesse sentido, o ato de compreender o texto manifesta-se como um ―projetar‖, pois
―o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a partir de determinadas
129
expectativas e na perspectiva de um sentido determinado‖. Esse ―projeto prévio‖ se faz a
partir de elementos que façam, inicialmente, algum sentido, e determina-se como uma espécie
de pré-compreensão. Conquanto as opiniões prévias acerca de um texto possam comprometer
a interpretação na medida em que sejam arbitrárias em relação ao texto em sua alteridade,
Gadamer insiste no fato de que os ―preconceitos‖ ou ―pressupostos‖ são inevitáveis. Ao invés
de renegá-los, faz-se necessário torná-los consciente, pois para ele os pré-conceitos são
condição necessária para a própria compreensão. Porém, ao longo do processo, é mister que a
diferença se apresente, num sentido de acréscimo, sem o qual não se tem conhecimento, não
se tem hermenêutica. Há de se conceber, nesse sentido, certo estranhamento no que concerne
ao texto. Nas palavras de Gadamer:

Em geral é preciso dizer que o que nos faz parar e perceber uma possível diferença
do uso da linguagem é só a experiência do choque que um texto nos causa — seja
porque ele não faz nenhum sentido, seja porque seu sentido não concorda com
nossas expectativas. 130

Contudo, a ordem em que se apresentam a identidade e a diferença não é algo que se


possa prever, posto que muitas experiências hermenêuticas também começam pelo espanto,
pelo assombro, pela diferença, que serão assimilados na medida em que elementos conhecidos
forem também incorporados ao processo. Na realidade,

O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o próprio texto
possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua verdade com as
opiniões prévias pessoais. 131

129
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed.
Petrópolis: Vozes, 2003, p. 356.
130
GADAMER, 2003, p. 357.
131
GADAMER, 2003, p. 358.
48

3. UMA HERMENÊUTICA ENTRE A TRADIÇÃO E A EMERGÊNCIA

3.1 A Crítica Nietzschiana à ―Memória‖ Histórica

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche pode ser visto, ao lado de Heidegger, como
precursor da filosofia pós-moderna. Muitos são os motivos pelos quais Nietzsche é
considerado ―pai‖ do pensamento pós-moderno, embora todos pareçam justificar que se trata
de uma crítica à tradição ocidental, principalmente no que respeita à tradição cristã e à
tradição filosófica. Boa parte de sua filosofia evidencia esse questionamento exacerbado aos
―dogmas‖ legados pela tradição ocidental, subsidiados principalmente pela noção de
―fundamento‖.
132
Em uma de suas ―obras incompletas‖, ―Considerações Extemporâneas II‖ ,
Nietzsche trata ―da utilidade e [principalmente] da desvantagem da história para a vida‖. Para
o filósofo, a memória parece ser a grande fonte do sofrimento, uma realidade que acompanha
o homem para onde quer que vá, o que também faz com que inveje a felicidade do animal por
viver sem dores, sem enfado, sem memória. Nas palavras de Nietzsche:

Quem não se instala no limiar do instante, esquecendo todos os passados, quem não
é capaz de manter-se sobre um ponto como uma deusa de vitória, sem vertigem e
medo, nunca saberá o que é felicidade e, pior ainda, nunca fará algo que torne outros
felizes [...] Todo agir requer esquecimento [...] Ou, para explicar-me ainda mais
simplesmente sobre meu tema: há um grau de insônia, de ruminação, de sentido
histórico, no qual o vivente chega a sofrer dano e por fim se arruína, seja ele um
homem ou um povo ou uma civilização. 133

Não se pode desconsiderar, é claro, o fato de que Nietzsche fala a partir do contexto
de sua época, marcado por um historicismo exacerbado. Entretanto, não se pode ignorar,
também, o fato de que essa crítica ao sentido histórico conferido pela tradição ocidental
antecipa o que se pode presenciar hoje no âmbito da pós-modernidade. Se Nietzsche
discursasse hoje sobre esses temas, certamente estaria em perfeita sintonia com o homem pós-
moderno, pois para este também ―o fardo do passado comprime e contorce o homem,

132
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Obras incompletas. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Coleção Os
Pensadores).
133
NIETZSCHE, 1978, p. 58.
49

dificultando-lhe o andar, qual carga invisível que finge desconhecer para manter-se
socialmente‖.
Não se pode negar que os ressentimentos com a própria história fizeram com que
muitos desistissem da tradição e da autoridade que ela carreia, e abraçassem a fluidez
característica de nosso tempo. Os movimentos mais aplaudidos hoje, por exemplo, são
aqueles que surgem subversivamente, e se legitimam exatamente por serem emergentes e
subversivos, sendo desnecessária qualquer outra fundamentação que se ancore na revivência
de um passado. A ênfase na fugacidade, na impermanência, característica da pós-
modernidade, contribui para que cada vez menos se tenha sedimentação e amadurecimento de
conceitos, comportamentos, relações e etc. Assim, a noção de continuidade se esvai, o que
nos impõe uma espécie de destradicionalização na cultura.
Em ―Considerações Extemporâneas II‖, Nietzsche parece dialogar com o contexto de
sua época, mostrando que a história, vista como algo estanque, nada acrescenta. Em
Nietzsche, a memória apresenta-se como a grande fonte do sofrimento, que na modernidade
se traveste de um saber histórico que ―não é de modo algum uma cultura efetiva, mas apenas
uma espécie de saber em torno da cultura; fica no pensamento-de-cultura, no sentimento-de-
cultura, dela não resulta nenhuma decisão-de-cultura‖. 134 Ou seja, a alma do homem moderno
se produz mediante a ingestão de uma quantidade descomunal de saber, que é não mais do
que o simples resgate do passado que age como determinante absoluto do presente ou do
futuro. A severa crítica de Nietzsche à modernidade é, portanto, uma crítica em ―um tempo
que sofre de cultura geral‖:

[...] de nós mesmos, nós modernos não temos nada; é somente por nos enchermos e
abarrotarmos com tempos, costumes, artes, filosofias e religiões alheios que nos
tornamos algo digno de atenção, ou seja, enciclopédias ambulantes, e como tais,
talvez, um heleno antigo extraviado em nosso tempo [ou seja, os gregos, de quem se
poderia dizer ser um povo a-histórico e, por isso mesmo, ―inculto‖ em face dos
padrões dessa cultura moderna] nos dirigisse a palavra. 135

Para o filósofo alemão, essa postura cultural, que encoraja as pessoas a não mais
confiarem em si ou sentirem por si próprias, mas a buscarem conselho junto à história,
transforma-as em meros atores que desempenham papéis, sem, contudo, se implicarem na
construção dessa história. Nesse sentido, não há criatividade frente a esse caráter absoluto do

134
NIETZSCHE, 1978, p. 62.
135
NIETZSCHE, 1978, p. 63.
50

sentido histórico, e, por isso, tal postura ―erradica o futuro, porque destrói as ilusões e retira às
coisas sua atmosfera, somente na qual elas podem viver‖: 136

Quando por trás do impulso histórico não atua nenhum impulso construtivo, quando
não se está destruindo e limpando terreno para que um futuro já vivo na esperança
construa sua casa sobre o chão desimpedido, quando a justiça reina sozinha, então o
instinto criador é despojado de sua força e de seu ânimo. Uma religião, por exemplo,
que seja transposta em saber histórico, sob a regência da pura justiça, uma religião
que em todo e por tudo seja conhecida cientificamente, ao fim desse caminho estará
aniquilada. 137

Para Nietzsche, nem mesmo o cristianismo, em sua expressão moderna — e a


consequente teologia que daí resultou —, conseguiu manter-se sóbrio diante dessa cultura
historicizante. Para ele, este tratamento — que, quanto ao futuro, o tornou excessivamente
escatológico — acabou por dissolver o cristianismo em puro saber em torno de si mesmo, e
tal ―dissecação‖ só constata sua debilidade 138.
É por isso que o pensador impele o seu leitor a contemplar o animal — não somente
ver, mas meditar à medida que olha. Este não concebe o tempo — ―não sabe o que vem a ser
ontem nem hoje [...]‖ — por isso, em certo sentido, é a-histórico. Por isso, também, ele o
inveja, e o faz em virtude de perceber que esse animal aparentemente é feliz. Ou seja, o
homem inveja a felicidade do animal por viver sem dores, sem enfado, sem memória.
Entretanto, tal inveja é parcial, pois se dá apenas na perspectiva da possibilidade da ausência
do sofrimento. É precisamente essa parte de sua felicidade (a não-dor) que o homem inveja.
Com efeito, o animal mostra que não há felicidade sem esquecimento, e que, portanto, é
preciso saber viver bem o presente. Quem não é capaz de viver um momento, esquecendo
todo o passado, não saberá o que seja felicidade, e não fará coisa alguma que torne outros
felizes.
139
O esquecimento é indispensável a toda a ação . Um homem que seja só memória
não vive, vegeta, da mesma maneira como não só a luz, mas também a escuridão é
indispensável para a vida de todo o ser orgânico. Nietzsche chama a atenção para o perigo de
se transformar o passado em ―coveiro‖ do presente. Para ele, a única maneira de se fugir desse
perigo é usar a ―energia plástica‖ de um homem: o poder de se desenvolver a si próprio, de
transformar e incorporar o passado e o estranho, de curar feridas, dar nova forma a formas

136
NIETZSCHE, 1978, p. 65.
137
NIETZSCHE, 1978, p. 65.
138
Cf. NIETZSCHE, 1978, p. 66.
139
É digna de nota a constatação cotidiana do quão difícil é nos concentrarmos e agirmos quando somos
inteiramente memória.
51

destruídas. Quem tem este poder de forma limitada, sangra à menor dor ou injustiça. Aqueles
que o possuem ilimitadamente, conseguem depois dos acidentes mais selvagens e pavorosos
da vida, uma consciência tranquila. Assim, segue-se que o passado necessita ser
reinterpretado no presente para que não oprima.

3.2 A Importância da ―Memória‖

Ao se considerar o tempo em que vivemos, e os paradigmas que aí se estabelecem,


percebe-se o quanto Nietzsche tem sido importante na construção de uma cultura que tende a
contestar tudo aquilo que se inscreve sob o signo da tradição. Tal ―amnésia‖ histórica,
entretanto — rebento da pós-modernidade —, não grassa soberana e absoluta, mas convive
lado a lado com resquícios persistentes dessa tradição ocidental que insiste na importância de
si mesma. Há uma crise institucional no ar, mas isso não quer dizer que muitas instituições
contemporâneas, fortemente fundadas em sua própria tradição, não estejam vigendo de forma
admirável, apesar da tensão momentânea. Muitas delas, apesar da crise de autoridade cada vez
mais intensa, continuam a exercer sobre as pessoas o seu poder.
Por um lado, é bom que se diga que o cristianismo (pelo menos em suas principais
vertentes) não se vê sobrevivente sem sua tradição; por outro, mesmo filósofos e teólogos que
celebram a volatilidade do saber, frequentemente recorrem à tradição na busca de elementos
que curem sua sofreguidão. E mesmo aqueles pensadores exageradamente pós-modernos, que
não conseguem ver na tradição nada que possa ser legitimado, em última instância dependem
dela a fim de que a pós-modernidade sobreviva enquanto tal. Ou seja, independentemente do
fato de ser a pós-modernidade ruptura ou continuidade da modernidade, não se pode negar a
sua dependência da tradição que pretende subverter, continuar ou exacerbar. Provavelmente,
quando a modernidade ocidental, iluminista, não interessar mais à crítica, a pós-modernidade
terá se redefinido.
É preciso também assinalar que pensadores contemporâneos, muitos dos quais
simpatizantes da crítica pós-moderna à modernidade, concomitantemente admitem que o
sentido de temporalidade seja constitutivo do ser. ―Evidentemente, estar lançado no espaço
52

140
da mundanidade também significa estar lançado num contexto de temporalidade‖. Nas
palavras de um desses pensadores, Gilberto Safra:

[...] a história pessoal vem precedida de concepções assentadas em tradições, mitos,


mas esse momento originário significa que a criança nasce em um mundo humano
encontrando um sentido de temporalidade, decorrente do encontro de seu corpo
com a corporeidade do outro. Encontramos aqui uma aproximação ao conceito russo
de sobornost, que afirma que cada ser humano é singularização de toda a história
humana. Em cada pessoa, acontece o encontro entre os antepassados, os
contemporâneos e aqueles que ainda virão (grifo nosso). 141

Gilberto Safra parece ser um dos autores que conferem à temporalidade um caráter
ontológico, o que quer dizer que o ser humano não se constitui enquanto tal descolado de seu
passado, presente e futuro. A temporalidade — vista ontologicamente — tem a ver, portanto,
com a essência do ser humano, quer dizer, com uma identidade mais profunda. Estar
conectado em um mundo — visto como espaço de realização — de predecessores,
contemporâneos e sucessores é parte fundamental do ser humano. Segundo Safra, esse tempo
acontece ―a partir do ritmo da corporeidade humana‖. A criança prova isso no respirar, no
batimento cardíaco, no ciclo de mamadas, ritmos que indicam, entre outras coisas, a presença
de um outro 142.
Portanto, levando-se em conta a importância do outro na constituição do si mesmo,
pode-se dizer que ―o estar-no-mundo do ser humano indica que ele não é só constituído a
partir dos outros contemporâneos, mas também a partir dos outros ancestrais e dos outros que
143
ainda virão [...]‖. Isso quer dizer que a tradição exerce um papel importante na própria
significação existencial do ser humano, razão pela qual alguns pensadores de nosso tempo
cumprem um papel de resistência à crítica pós-moderna da tradição. É o paradoxo entre a
tradição e a efemeridade do mundo contemporâneo.
O paradoxo da tradição-emergência também traz implicações para o ato
hermenêutico, posto que o intérprete sempre se sentirá atraído tanto pelo modo de ser próprio
do pensamento, que cumpre certo dinamismo, quanto pelo legado hermenêutico da tradição,
144
sem o qual não há o novum . Sendo mais específico: a realidade sempre terá que ser

140
ROCHA, Abdruschin Schaeffer. Textos em movimento: por uma hermenêutica no cuidado pastoral. Reflexus,
Vitória, ano 2, n. 2, p. 158, 2008.
141
SAFRA, Gilberto. A fragmentação do éthos no mundo contemporâneo. In: NOÉ, Sidnei Vilmar (Org).
Espiritualidade e saúde. 2. Ed. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2005, p. 7.
142
Cf. SAFRA, 2005, p. 8.
143
ROCHA, 2008, p. 158.
144
Na verdade, não há nada plenamente novo. O que se tem é sempre o novo a partir do já estabelecido —
portanto, há de se reconhecer uma relação dialética.
53

continuamente pensada, ou porque há um dinamismo próprio no pensamento, ou porque não


se pode esgotá-la num dado conjunto de interpretações, que são provisórias por natureza em
função das limitações humanas; apesar disso, a interpretação é sempre ato segundo, pois
inevitavelmente pressupõe ―memória‖, pressupõe, portanto, conteúdos já pensados — ou para
confirmá-los ou para contrapô-los. Dito de outra forma: se por um lado, não há hermenêutica
possível num constante devir do pensamento, por outro, é anti-hermenêutica qualquer atitude
que apenas descanse no legado da tradição.
54

4. UMA HERMENÊUTICA ENTRE A AÇÃO E A AFETAÇÃO

A passagem da modernidade à pós-modernidade marca também uma mudança no


papel do significado na hermenêutica. A preocupação com o que um texto significa —
tradicionalmente uma preocupação de exegetas e filólogos — é cada vez mais escassa em
virtude da preocupação — crescente entre os filósofos — de elucidar o que significa entender,
145
e quais as suas possibilidades . Além disso, a filosofia, que marca o início dessa mudança
ao ver na hermenêutica um modo de leitura da realidade — e se auto-legitimar como sua
intérprete —, no fim das contas também passa a ser vista como não mais que um tipo possível
e histórico de interpretação. Entretanto, contribuiu para que a hermenêutica contemporânea se
configurasse como ―um aspecto de todas as atividades intelectuais‖, ao mesmo tempo em que
se verifica o enfraquecimento paulatino da epistemologia 146.
Na modernidade, o significado de um texto, em geral, fora visto como possível
mediante o esforço ativo do sujeito que vige para sujeitar o objeto, como já foi apontado.
Nesse sentido, a hermenêutica dominante dessa época fundou-se na ―reivindicação
substanciosa de conhecimento absoluto‖. Num ―espírito‖ em que se pressupunha uma
realidade substancial, a emergência de sentido deveria se dar a partir do interesse do sujeito
(o conhecimento como intencionalidade) — lugar-comum ainda hoje na compreensão do
processo de conhecimento. Afinal, se há um objeto que resguarda em si o sentido, é o trabalho
exploratório do sujeito que possibilitará tal conhecimento. Por outro lado, se é possível dizer
que no ato da interpretação o intérprete mobiliza não só vários saberes, mas também
sentimentos, desejos — ou seja, se coloca por inteiro no texto —, abre-se, então, a
possibilidade de não se ver mais o conhecimento apenas como fruto da ação do sujeito, mas
como algo possível também na dimensão de sua inação 147.
No âmbito da paradoxalidade que aqui se insinua, pois, propõe-se um conhecimento
que vá além do resultado da ação de um sujeito, portanto, que se construa também a partir da

145
Cf. VANHOOZER, Kevin. Há Um Significado Neste Texto? Interpretação bíblica: os enfoques
contemporâneos. São Paulo: Editora Vida, 2005. p. 23.
146
Cf. VANHOOZER, 2005, p. 24.
147
Tal expressão não deve ser confundida com o conceito de ―inação‖ advogado pelo taoísmo (para alguns, a
tradução da expressão Wu-Wei), que significa o não-fazer, a ausência de ações volitivas, de desejos, uma das
condições para o cultivo do Tao — ―o Caminho de todos os caminhos, o princípio de todos os princípios‖ (I-
MING, Liu. O despertar para o tao. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. 10. ed. São
Paulo: Editora Pensamento, 1997, p. 11.).
55

inação criativa, ou seja, da consciente abertura à afetação (páthos), postura capaz de


possibilitar uma hermenêutica eivada de sentido.

4.1 O Conhecimento Pela Ação

Ao se falar de um conhecimento pela ação ou pela afetação, na verdade, pretende-se


qualificar a postura do sujeito em relação a seu objeto. Isso quer dizer que tal conhecimento
pode se caracterizar como uma postura mais diligente, como produto de um labor mais
dinâmico e consciente do sujeito, ou pode se caracterizar por uma disposição à
imprevisibilidade, em que haja mais lugar para que o objeto se manifeste enquanto tal, menos
148
susceptível, portanto, às manipulações do sujeito . Neste momento, a reflexão se voltará
para o conhecimento-enquanto-ação, manifesta na atividade exegética, sobretudo aquela que
está fortemente fundada numa racionalidade mais ilustrada.

4.1.1 A exegese enquanto ―ação‖

Comumente concebe-se o conhecimento como um processo resultante da interação


de alguns elementos. Esse processo envolve um sujeito cognoscente — um sujeito que
apreende —, um objeto cognoscível — um objeto que pode ser conhecido, e se torna como tal
exatamente quando é apreendido pelo sujeito —, o movimento do sujeito para o objeto —
movimento este que se traduz no próprio processo de conhecer, e os instrumentos por meio

148
É compreensível que alguns queiram objetar ao dizer que, na verdade, aquilo que aqui se chama de inação —
ou essa disposição a ser afetado — trata-se, também, de um tipo possível de ação, já que tem a ver com certa
postura do sujeito. Contudo, ao se optar por tal esquematização deseja-se pontuar a visível distinção entre um
conhecimento construído por uma busca consciente e um conhecimento (também possível e legítimo) adquirido
gratuitamente, por vezes acidental. Provavelmente, poucos discordariam de que estas nuances são, de fato,
verdadeiras. O problema talvez apareça quando se eleva essa distinção ao nível dos conceitos, pois alguns não
resistem em levar conceitos às últimas consequências. Como pode ser visto ao longo de todo o trabalho, o autor
aqui não compartilha desse trato com os conceitos, antes procura conferir-lhes valor menos metafísico, o que
permite que sejam usados como ―ferramentas‖, que sejam, portanto, assumidos em sentido fraco (VATTIMO),
afinal não estão em condições de traduzir plenamente o ser em si. Ademais, não se quer negar o fato de que, em
certo sentido, qualquer postura afetiva também se encontra ―contaminada‖ por certa intencionalidade, por mais
brandamente presente que esta esteja — o contrário também parece verdadeiro. O objetivo, portanto, é tão
somente pontuar a distinção, bem como apontar as consequências teóricas e práticas desse abalizamento.
56

dos quais o sujeito acessa o objeto na realização do processo. Carlos Alberto Ávila Araújo,
citando a obra de V.R.V. França, ―Teoria(s) da Comunicação: busca de identidade e de
caminhos‖, sintetiza:

―Conhecer é atividade especificamente humana. Ultrapassa o mero ‗dar-se conta


de‘, e significa a apreensão, a interpretação. Conhecer supõe a presença de
sujeitos; um objeto que suscita sua atenção compreensiva; o uso de instrumentos de
apreensão; um trabalho de debruçar-se sobre. Como fruto desse trabalho, ao
conhecer, cria-se uma representação do conhecido – que já não é mais o objeto,
mas uma construção do sujeito. O conhecimento produz, assim, modelos de
apreensão – que por sua vez vão instruir conhecimentos futuros.‖ (França,
1994:140). 149

Além dos elementos básicos, na opinião de França há de se reconhecer ainda a


importância de duas dinâmicas opostas, ou duas atitudes básicas que se cruzam, ajudando,
assim, a determinar o processo de conhecimento:

―... a abertura para o mundo, a cristalização (ou enquadramento) do mundo.


Conhecer significa voltar-se para a realidade, e ‗deixar falar‘ o nosso objeto; mas
conhecer significa também apreender o mundo através de esquemas já conhecidos;
identificar no novo a permanência de algo já existente ou reconhecível. O
predomínio de uma ou outra dessas tendências tem efeitos negativos, e é através de
seu equilíbrio que se pode alcançar o conhecimento ao mesmo tempo atento ao
novo e enriquecido pelas experiências cognitivas anteriores.‖ (França, 2001:43). 150

Para a autora, os diferentes tipos ou formas de conhecimento podem ser distinguidos


a partir dos elementos envolvidos no processo de conhecer, bem como das duas dinâmicas
151
acima apontadas . Embora não estejam no escopo deste trabalho as características de cada
forma de conhecimento, vale aqui citá-las e situá-las em relação à ―abertura para o mundo‖ e
152
à ―cristalização do mundo‖. Araújo, intentando compreender a ciência por dissemelhança,
destaca as principais formas de conhecimento: o senso comum, que se faz na ―constante
tensão entre os pré-conceitos, os modelos consagrados que se transmitem ao longo das
gerações [...], e o dinamismo e a espontaneidade que formulam a todo o momento novas
153
teorias e novos modelos explicativos‖ (grifo meu); o pensamento religioso, construído a
partir de uma atitude pendular que o consolida como estacionário, em que os princípios são

149
FRANÇA, 1994, apud ARAÚJO, 2006, p. 127-128.
150
FRANÇA, 2001 apud ARAÚJO, 2006, p. 128.
151
Cf. ARAÚJO, 2006, p. 128.
152
Vale lembrar que, embora a ciência nasça com pretensões de se fundar numa constante ―abertura para o
mundo‖, mas a partir de esquemas já conhecidos (equilíbrio nas dinâmicas), conquanto se possa dizer que evolui
mais rapidamente que a religião, é inegável o fato de que não se costuma pensar fora do paradigma vigente,
como se viu em ―2.2‖.
153
ARAÚJO, 2006, p. 129.
57

concedidos por revelação, e transmitidos de geração a geração, refratário, portanto a


154
interpretações que se fundem no dinamismo e espontaneidade ; e a experiência artística,
também concebida pendularmente — mas, ao contrário do pensamento religioso, sua ênfase
está no dinamismo e espontaneidade, posto pressupor a abertura a diferentes interpretações
num processo de descoberta contínua do mundo, sendo refratária, portanto, a cristalizações do
mundo 155.
As diferentes formas de conhecimento sugerem digressões que extrapolam a forma
tradicional de se conceber o processo de conhecer. Entretanto, por hora, vale salientar que
visto como o movimento do sujeito em direção ao objeto, ele traduz bem o conhecimento-
enquanto-ação, pois demonstra que a ênfase recai sobre a ação do sujeito, sua perscrutação e
determinação. Ou seja, nessa perspectiva, há um realce no debruçar-se do sujeito sobre o
objeto, quer dizer, põe-se em relevo sua atitude arquitetural no processo de conhecimento —
nesse âmbito não se fala, portanto, de um movimento do objeto em direção ao sujeito.
Demonstra, também, sobre quais princípios está fundamentada a atividade exegética mais
conservadora.
Júlio Zabatiero, em seu ―Manual de Exegese‖ resume as mais comuns práticas de
exegese da Bíblia verificadas nos últimos duzentos anos:

1. Leituras devocionais dos mais variados tipos, nas quais se busca, de forma
intuitiva e sem muito trabalho com o texto, ouvir o que Deus tem a nos dizer hoje. 2.
Leituras homiléticas dos mais variados tipos, nas quais o texto é estudado em função
do que se busca: o melhor sermão para a comunidade. 3. Leituras técnicas ou
acadêmicas, principalmente as históricas (exegese histórico-crítica e exegese
histórico-gramatical), as mais antigas e ainda mais comumente praticadas no
ambiente acadêmico, mas também as sociológicas, as antropológicas, as feministas,
as de raça, as diaconais. 156

Zabatiero diz que o que é comum a todas essas formas diferentes de exegese é que
157
todas buscam o sentido do texto . Assim, todas pressupõem o debruçar incansável do
exegeta sobre o texto, com o objetivo de descobrir esse sentido que, aparentemente, reside no
texto ou na relação deste com outros elementos, como por exemplo, o leitor, o autor, o
contexto histórico e etc.
A exegese — vale ressaltar — também possui as marcas da objetividade moderna,
sobretudo no que se refere a essa tendência à coisificação do sentido, que temos inferido até

154
Cf. ARAÚJO, 2006, p. 129.
155
Cf. ARAÚJO, 2006, p. 129.
156
ZABATIERO, Júlio. Manual de exegese. São Paulo: Hagnos, 2007, p. 21.
157
Cf. ZABATIERO, 2007, p. 22.
58

aqui. Assim, há de se tomar o texto como um objeto sobre o qual age um sujeito na condição
de intérprete. Para isto, conta-se com um método e técnicas que orientam esse movimento do
sujeito-intérprete sobre o objeto-texto que, por assim dizer, oferece, não raramente, a falsa
impressão de que os leitores podem se tornar críticos bem-sucedidos tão somente dominem as
158
ferramentas metodológicas corretas . Em determinados casos, como, por exemplo, no
método histórico-crítico, busca-se o sentido do texto na intenção do autor.

―O leitor, para entender o texto, deve encontrar nele essa intenção. Para
compreender o texto devo compreender aquilo que o autor quis dizer, pois a chave
da interpretação é a intenção do autor‖. 159

Schökel e Bravo, ao proporem a priorização da hermenêutica do texto sobre a do


autor, criticamente se expressam quanto à questão da objetividade no processo de leitura no
âmbito do método histórico-crítico:

Entrar em uma hermenêutica do autor marca outros fatores de inspiração filosófica


positivista: o ideal de objetividade e de precisão. Na hermenêutica do autor se
entende que o autor, em um ato consciente, objetiva seu pensamento, o que quer
dizer, em um texto: no sentido do texto. Esse sentido objetivo se torna, assim,
imutável e totalmente fixo; passado o tempo, o leitor buscará essa objetivação. O
sentido do texto está lá, pleno, acabado, perfeito; o que o leitor faz é chegar até ele.
... Esse ideal de objetividade é algo belo, porém tem uma armadilha, pois se baseia
na distinção radical entre sujeito e objeto (leitor – texto) sem levar em consideração
que o sujeito está implicado no entender. Objetividade se opõe a subjetividade,
coloca-se entre parênteses toda a subjetividade do leitor. Assim, no campo
intelectual, o leitor deve controlar todo preconceito, nos campos volitivo e emotivo,
toda parcialidade, e no campo da fantasia, toda a antecipação. Estes três elementos
(preconceito, parcialidade e antecipação) devem ser abolidos, porque o leitor deve
atingir a plena objetividade. Com uma disciplina de renúncia e vigilância constantes,
o intérprete tratará objetivamente seu objeto de estudo, que é o sentido do texto. 160

Este texto descreve bem o ideal de objetividade que (ainda) permeia boa parte dos
modelos de exegese, e impõe ao intérprete a árdua tarefa de colocar em suspeita tudo o que
foge a essa reificação do sentido do texto. Pressupõe-se, portanto, um ambiente ―higienizado‖
de quaisquer conceitos prévios, de toda manifestação da vontade e das emoções, e de qualquer

158
Cf. ZABATIERO, Júlio. Análise crítica da exegese histórico-crítica: textos de trabalho. Texto não publicado,
p. 1-20 apud SEGOVIA, F. F. Decolonizing Biblical Studies: a view from the margins. Maryknoll: Orbis Books,
2000. p. 14s.
159
ZABATIERO, p. 1-20 apud SCHÖKEL, L. A. & BRAVO, J. M. Apuntes de hermenéutica. Madrid: Editorial
Trotta, 1994, p. 29.
160
ZABATIERO, p. 1-20 apud SCHÖKEL & BRAVO, 1994, p. 30s.
59

vestígio de imaginação, elementos que, necessariamente, estão presentes na bagagem de


qualquer intérprete, como bem se expressa Aichele 161:

O ato da leitura é sempre muito específico e dependente do contexto: uma pessoa


específica está lendo um texto específico em um tempo e espaço específicos. O
leitor traz todos os tipos de ―bagagem‖ para o texto: experiência pessoal, pano de
fundo cultural, estados corpóreos – tudo isso é parte do que eu chamo de
―intertextualidade‖ (tradução nossa). 162

Como se pode perceber, então, desde que se estribe no paradigma da objetividade


moderna, não há muito espaço para elementos que se inscrevam sob o signo do afeto, pois há
uma pecha nesse tipo de metodologia que o coloca sob a necessidade de coibir quaisquer
elementos que extrapolem a racionalidade ilustrada. Afinal, como assevera Uwe Wegner: ―Na
atualidade o método caracteriza-se, sobretudo, por ser eminentemente racional e
insistentemente questionador‖. 163
De modo geral, portanto, a prática da exegese diz respeito a um processo de
conhecimento com vistas a desvendar o sentido de um texto, ou seja, seu sentido original
164
―conforme a intenção do autor e a compreensão dos primeiros leitores (= exegese) [...]‖.
Tal procedimento, não se pode negar, é imprescindível na compreensão de um texto e sua
relevância para a época atual (= hermenêutica). Na verdade, as coisas objetivas não penetram
a subjetividade humana e lá permanecem como são, pois, como se viu anteriormente, nunca
escaparão de serem, também, construções do sujeito cognoscente, afinal, é inerente ao ser
humano essa força que o impele à busca — seu desejo o condena à constante perscrutação, e
isso é legítimo. Mas, será suficiente uma hermenêutica que apenas se funde na ação? Quais
seriam as consequências dessa unilateralidade?

161
Aichele se auto-identifica como semioticista pós-moderno, e suas pesquisas seguem a linha de autores como
Barthes e Kristeva.
162
ZABATIERO, p. 1-20 apud AICHELE, G. Sign, text, scripture: semiotics and the Bible. Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1997, p. 14.
163
Uwe Wegner assim se expressa no contexto em que se propõe a descrever riscos e valores da metodologia
histórico-crítica (WEGNER, U. Exegese do Novo Testamento: manual de metodologia. São Leopoldo: Sinodal;
São Paulo: Paulus, 1998, p. 17).
164
ZABATIERO, 2007, p. 10.
60

4.1.2 Os perigos de uma hermenêutica em tom metafísico

Pode-se dizer que a unilateralidade que privilegia esse conhecimento-enquanto-ação


traz consigo alguns perigos, e um deles é a perpetuação de uma hermenêutica cujos
postulados ainda permaneçam no universo metafísico, a despeito de toda crítica
contemporânea. Mas, o que seria uma hermenêutica em tom metafísico? Antes de responder a
essa pergunta, torna-se necessário determinar em que sentido se pode pensar aqui a
metafísica. E, para isso, não se pode deixar de mencionar o platonismo, cujo pensamento
trouxe fortes influências a toda a tradição ocidental.
Platão instaurou um dualismo ao dividir a realidade em material e imaterial, sensível
e supra-sensível, empírico e meta-empírico. Sua empreitada se explica pela insuficiência da
filosofia naturalista dos filósofos pré-socráticos de tentarem explicar o mundo sensível através
165
do próprio sensível . Assim, propõe aquilo que chama de ―segunda navegação‖, aventura
essa que nos conduziria à descoberta do supra-sensível, ou realidade inteligível. Sua proposta,
166
então, consiste numa libertação radical dos sentidos, e a busca do raciocínio puro . A
verdadeira causa, o ―ser‖ por excelência (ou Idéia), segundo Platão, está no terreno do
inteligível e não do sensível. Ao contrário, portanto, dos vislumbres da filosofia da physis (a
filosofia naturalista dos pré-socráticos), Platão descobre a existência de uma realidade supra-
física 167 do ser e, assim, o que acaba por instaurar é a própria metafísica 168.
No livro VII de sua obra-prima ―A República‖ consta o famoso ―mito da caverna‖,
que tem sido frequentemente interpretado ―como expediente utilizado por Platão para
simbolizar a metafísica, a gnosiologia, a dialética [que em Platão possui um sentido

165
A expressão ―sensível‖ tem a ver com aquilo que é possível ser percebido pelos sentidos, na maioria das
vezes oposto a ―inteligível‖. A maioria dos pensadores — pelo menos os que admitem a distinção entre
sensibilidade e intelecto — mantém a simetria que estabelece o sensível como objeto dos sentidos ao mesmo
tempo em que o inteligível como objeto do intelecto (Cf. ABANGNANO, Nicola. Inteligível. In:
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes 2007, p. 661). Destarte, o
mundo sensível diz respeito ao mundo objetivo, apreensível por meio dos órgãos sensoriais. O conhecimento
sensível, por sua vez, seria aquele conhecimento advindo da intuição imediata, haurido meramente dos sentidos
humanos, portanto não fundado na razão.
166
Cf. REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia: antiguidade e idade média. São Paulo:
Paulus, 2002, vol. 1, p. 134.
167
Um gênero de ser não-físico.
168
A influência do platonismo na teologia cristã pode ser percebida pela exagerada ênfase dada às coisas
inaparentes, às essências, às ideias, ao espírito, em detrimento daquelas aparentes, periféricas, afetivas, sensíveis
por assim dizer. Assim, embora isso não refletisse os ensinamentos bíblicos, nem fosse a tônica em todos os
momentos da história da teologia, deu a impressão, por muito tempo, de que tal postura definiria o cristianismo
em sua essência. É assim, por exemplo, que percebemos, até hoje, uma confusão entre a visão platônica da vida,
e a perspectiva paulina da ―carne‖ e do ―espírito‖.
61

169
específico] e até mesmo a ética e a mística platônicas‖. Na opinião de Reale e Antiseri,
170
esse mito expressa Platão em sua totalidade . Vale a pena citá-lo, em função de sua
importância no estabelecimento do pensamento metafísico:

[...] Imagina homens numa morada subterrânea, em forma de caverna, com uma
entrada aberta à luz; esses homens estão aí desde a infância, de pernas e pescoço
acorrentados, de modo que não podem mexer-se nem ver senão o que está diante
deles, pois as correntes os impedem de voltar a cabeça; a luz chega-lhes de uma
fogueira acesa numa colina que se ergue por detrás deles; entre o fogo e os
prisioneiros passa uma estrada ascendente. Imagina que ao longo dessa estrada está
construído um pequeno muro, semelhante às divisórias que os apresentadores de
títeres armam diante de si e por cima das quais exibem as suas maravilhas [...]
Imagina agora, ao longo desse pequeno muro, homens que transportam objetos de
toda espécie, que o transpõem: estatuetas de homens e animais, de pedra, madeira e
toda espécie de matéria; naturalmente, entre esses transportadores, uns falam e
outros seguem em silêncio. [...] Assemelham-se a nós. E, para começar, achas que,
numa tal condição, eles tenham alguma vez visto, de si mesmos e dos seus
companheiros, mais do que as sombras projetadas pelo fogo na parede da caverna
que lhes fica defronte? [...] E com as coisas que desfilam? Não se passa o mesmo?
[...] Portanto, se pudessem se comunicar uns com os outros, não achas que tomariam
por objetos reais as sombras que veriam? [...] E se a parede do fundo da prisão
provocasse eco, sempre que um dos transportadores falasse, não julgariam ouvir a
sombra que passasse diante deles? [...] Dessa forma, tais homens não atribuiriam
realidade senão às sombras dos objetos fabricados. [...] Considera agora o que lhes
acontecerá, naturalmente, se forem libertados das suas cadeias e curados da sua
ignorância. Que se liberte um desses prisioneiros, que seja ele obrigado a endireitar-
se imediatamente, a voltar o pescoço, a caminhar, a erguer os olhos para a luz: ao
fazer todos estes movimentos sofrerá, e o deslumbramento impedi-lo-á de distinguir
os objetos de que antes via as sombras. Que achas que responderá se alguém lhe vier
dizer que não viu até então senão fantasmas, mas que agora, mais perto da realidade
e voltado para objetos mais reais, vê com mais justeza? Se, enfim, mostrando-lhe
cada uma das coisas que passam, o obrigar, à força de perguntas, a dizer o que é?
Não achas que ficará embaraçado e que as sombras que via outrora lhe parecerão
mais verdadeiras do que os objetos que lhe mostram agora? [...] E se o forçarem a
fixar a luz, os seus olhos não ficarão magoados? Não desviará ele a vista para voltar
às coisas que pode fitar e não acreditará que estas são realmente mais distintas do
que as que se lhe mostram? [...] E se o arrancarem à força da sua caverna, o
obrigarem a subir a encosta rude e escarpada e não o largarem antes de o terem
arrastado até a luz do Sol, não sofrerá vivamente e não se queixará de tais
violências? E, quando tiver chegado à luz, poderá, com os olhos ofuscados pelo seu
brilho, distinguir uma só das coisas que ora denominamos verdadeiras? [...] Terá,
creio eu, necessidade de se habituar a ver os objetos da região superior. Começará
por distinguir mais facilmente as sombras; em seguida, as imagens dos homens e dos
outros objetos que se refletem nas águas; por último, os próprios objetos. Depois
disso, poderá, enfrentando a claridade dos astros e da Lua, contemplar mais
facilmente, durante a noite, os corpos celestes e o próprio céu do que, durante o dia,
o Sol e a sua luz. [...] Por fim, suponho eu, será o Sol, e não as suas imagens
refletidas nas águas ou em qualquer outra coisa, mas o próprio Sol, no seu
verdadeiro lugar, que poderá ver e contemplar tal como é. [...] Depois disso, poderá
concluir, a respeito do Sol, que é ele que faz as estações e os anos, que governa tudo
no mundo visível e que, de certa maneira, é a causa de tudo o que ele via com os
seus companheiros, na caverna. [...] Ora, lembrando-se da sua primeira morada, da
sabedoria que aí se professa e daqueles que aí foram seus companheiros de cativeiro,

169
REALE, ANTISERI, 2002, p. 166.
170
Cf. REALE, ANTISERI, 2002, p. 166.
62

não achas que se alegrará com a mudança e lamentará os que lá ficaram? [...] E se
então distribuíssem honras e louvores, se tivessem recompensas para aquele que se
apercebesse, com o olhar mais vivo, da passagem das sombras, que melhor se
recordasse das que costumavam chegar em primeiro ou em último lugar, ou virem
juntas, e que por isso era o mais hábil em adivinhar a sua aparição, e que provocasse
inveja daqueles que, entre os prisioneiros, são venerados e poderosos? Ou então,
como o herói de Homero, não preferirá mil vezes ser um simples criado de charrua,
a serviço de um pobre lavrador, e sofrer tudo no mundo, a voltar às antigas ilusões e
viver como vivia? [...] Imagina ainda que esse homem volta à caverna e vai sentar-se
no seu antigo lugar: não ficará com os olhos cegos pelas trevas ao se afastar
bruscamente da luz do Sol? [...] E se tivesse de entrar de novo em competição com
os prisioneiros que não se libertaram de suas correntes, para julgar essas sombras,
estando ainda sua vista confusa e antes que os seus olhos se tenham recomposto,
pois habituar-se à escuridão exigirá um tempo bastante longo, não fará que os outros
se riam à sua custa e digam que, tendo ido lá acima, voltou com a vista estragada,
pelo que não vale a pena tentar subir até lá? E se a alguém tentar libertar e conduzir
para o alto, esse alguém não o mataria, se pudesse fazê-lo? 171

Segundo Reale e Antiseri, há, pelo menos, quatro significados do mito da caverna172,
que abrangem aspectos ontológicos, epistemológicos, teológicos e políticos. O primeiro diz
respeito aos graus em que pode ser dividida a realidade, do ponto-de-vista ontológico. Ou
seja, representa o ser em seu aspecto sensível e supra-sensível, bem como suas subdivisões.
Neste sentido, por exemplo, as sombras da caverna representariam ―as aparências sensíveis
das coisas‖, e o muro a própria linha demarcatória entre o mundo sensível e o supra-sensível.
O segundo mostra os graus do conhecimento: a eikasía ou imaginação, simbolizada pela visão
das sombras, e a pístis ou crença, representada pela visão das estátuas. A visão das estátuas
progride à visão dos objetos verdadeiros e à visão do sol, demonstrando a desejável ascensão
à intelecção pura. O terceiro significado representa ―o aspecto ascético, místico e teológico do
platonismo‖. Neste caso, a vida na caverna representaria a vida na dimensão dos sentidos, ao
passo que a vida sob a égide da luz simbolizaria a vida na dimensão do espírito. O mito da
caverna ainda expressa a visão política de Platão. O retorno daquele que se livrara das
algemas à caverna representa o retorno do filósofo-político, e revela nessa tentativa de salvar
os que na caverna permaneceram o aspecto missional do verdadeiro filósofo: ―produção de
serviços destinados à realização do bem‖.
Não obstante se possa achar, em cada um desses significados, elementos
interessantes aos propósitos deste trabalho, o que se reveste de especial importância neste
momento é o dualismo platônico corroborado pela alegoria. Uma vez que somos os
prisioneiros num mundo sensível, urge a necessidade de ascendermos num processo libertário

171
PLATÃO. A república de platão. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1999, p.
225-228 (Coleção Os Pensadores).
172
REALE, ANTISERI, 2002, p. 167-168.
63

a um mundo inteligível, perfeito, onde as coisas de fato se manifestam como são. Segundo
Platão, essa ascese se dá por meio da contemplação racional, e não é por acaso que toda a
tradição metafísica confere ao conceito um caráter de pureza. A um mundo visível,
transitório, mortal, imperfeito, cujas ideias não passam de opiniões cotidianas contrapõe-se
um mundo invisível, perene, imortal, perfeito, composto de ideias perfeitas que não podem ser
redutíveis às opiniões oriundas de um mundo governado pelas paixões. Para Platão, então, o
mundo real e desejável é esse que está vedado às afecções. Esse é o modo metafísico de ver a
realidade, e uma vez que trabalha com conceitos como se estivesse trabalhando com o ser em
si, além de não derivar o seu saber de pesquisas a partir do mundo ―ilusório‖ dos sentidos, o
pensamento metafísico frequentemente tem dificuldades em dialogar com outros tipos de
saber humano.
Apesar de suas muitas nuances ao longo da história, a metafísica apresentou-se sob
três formas fundamentais e distintas: como teologia, como ontologia, e como gnosiologia. De
modo geral, entretanto, a metafísica pode ser compreendida como ciência que tem por objeto
―o objeto de todas as outras ciências, e como princípio um princípio que condiciona a
173
validade de todos os outros‖. Pressupondo o saber como organizado nas diversas ciências
independentes, sua pretensão de prioridade se manifesta como fundamento comum em que
todas essas ciências devem se basear, além de determinar o lugar que cada uma ocupa na
―hierarquia do saber‖ 174. Assim, a metafísica normalmente esteve ligada ao longo da história
ao conhecimento das coisas divinas, ao fundamento das ciências e da ação, às coisas
imateriais, enfim, às realidades essenciais por oposição àquelas aparentes, realidades tais que
não se apresentam aos sentidos, mas acessíveis apenas por meio de uma ascese de caráter
racional. Além disso, a metafísica ligou-se ao conhecimento das verdades morais,
pressupondo uma ordem ideal da realidade, superior à ordem dos fatos, e a um conhecimento
absoluto em contraposição ao pensamento discursivo 175.
Além das críticas empreendidas por vários pensadores contemporâneos ao
pensamento metafísico, algumas exageradas e outras pertinentes — embora não caibam nesta
reflexão —, vale ressaltar que seu esgotamento também se deve ao fato de que fora visto ao
longo da história como plataforma para a exclusão e dominação. Em nome dessa ordem ideal
da realidade, muitos foram marginalizados por destoarem da cosmovisão vigente, outros

173
FORNERO, 2007, p. 766.
174
Cf. ABBAGNANO, 2007, p. 766.
175
Cf. LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p.
668-669.
64

privados de sua liberdade, sem contar os que perderam a vida. Afinal, muitos que acreditaram
deter a verdade que, via de regra, se manifestava como a correspondência exata da realidade,
consideraram também legítima toda e qualquer forma de coação a fim de que o ―outro‖ se
rendesse a determinado conjunto de axiomas pré-estabelecidos. Na medida em que o mundo
contemporâneo se debate contra toda a herança de opressão, de cerceamento da liberdade, e
quaisquer modelos dominadores que se manifestam social ou culturalmente, não é difícil
perceber a razão desse declínio do pensar metafísico. Ou seja, com cautela é possível dizer
que um dos grandes problemas do pensamento metafísico, acusado por muitos de arbitrário,
seja o fato de se basear num conhecimento que aconteça somente pela via da ação.
Manfredo Araújo de Oliveira — a guisa de uma síntese bem formulada das origens e
características do pensamento metafísico ocidental — assim se expressa:

Ora, todo o pensamento metafísico ocidental brotou da descoberta platônica do


mundo das Idéias, em que transluz a verdade dos seres, e da articulação de uma nova
forma de linguagem com pretensão de exprimir no discurso a intuição da nova
realidade, que é 'transnatural, gnosiologicamente transempírica e ontologicamente
transcendente'. O conhecimento discursivo das idéias se faz mediante a negação dos
predicados do sensível, de tal modo que a idéia emerge como una (negação da
pluralidade), imutável (negação da mudança), simples (negação da composição),
incorporal e indivisível etc. 176

Essa formulação a respeito da metafísica, conquanto sintética, é suficiente para se


empreender uma compreensão de hermenêutica que se estribe no universo metafísico.
Vale também ressaltar que, embora a interpretação da Escritura seja tão antiga
quanto antiga é a própria escrita da Bíblia, é só a partir da Reforma — nos embates teológicos
177
com o catolicismo romano — que se tem a hermenêutica enquanto teoria e técnica . Os
primeiros reformadores optaram por uma abordagem que fosse mais gramático-histórica, com
ênfase no aspecto literal e não anagógico. Entretanto, é com Schleiermacher e Dilthey que a
teoria hermenêutica tem o seu primeiro grande momento. Com eles, a hermenêutica evitaria
seguir o método das ciências naturais, empenhadas em explicar a realidade, e buscaria, então,
o seu próprio modo — a compreensão. Ao intérprete caberia, portanto, descobrir o sentido
original do texto como produto da intenção do autor. Grosso modo, pode-se dizer que, a
despeito de algumas variações, a hermenêutica seguiu esse caminho até a primeira metade do

176
OLIVEIRA, Manfredo A. de. Contextualismo, pragmática universal e metafísica. In: MAC DOWELL, João
A. SJ (Org.). Saber filosófico, história e transcendência: homenagem ao Pe. Henrique Cláudio de Lima Vaz, SJ,
em seu 80º aniversário. São Paulo: Loyola, 2002, p. 233.
177
Esse status de ―teoria e técnica‖, como algo instaurado na modernidade, é significativo dentro do que aqui se
pretende indicar.
65

século XX, a partir de onde se tem uma reviravolta em seu conceito. Deixa de ser uma teoria
da interpretação para se tornar a ―filosofia primeira‖. Abandona-se, portanto, a perspectiva
epistemológica em prol de uma perspectiva ontológica. Ou seja, a hermenêutica a partir da
primeira metade do século XX segue seu curso como modo fundamental de interpretação do
real, como ―filosofia centrada na interpretação‖, por assim dizer.
Longe de se querer contar a história da interpretação, pretende-se apenas mostrar, ent
passant, o cenário a partir de onde se pode falar de uma ―hermenêutica em tom metafísico‖.
Tal hermenêutica baseia-se, portanto, no pressuposto de que as representações da realidade,
normalmente aquilo que está disponível no ato hermenêutico, traduzem fielmente o ser em si.
Uma hermenêutica em tom metafísico se manifesta como um modo de pensar ancorado na
ideia de que se pode acessar o ser subjacente ou sobrejacente a todo ente, o que significa que
alcançar esse ser em seu recôndito recanto acaba por pressupor também o seu caráter supra-
histórico. Tal hermenêutica se apoia em um pensamento fundacional, e isto significa que há
de se postular um tipo certo de interpretação que objetive o Ser, que alcance esse fundamento
e o traduza em termos ônticos, mensuráveis pela razão. No contexto de uma hermenêutica em
tom metafísico é muito mais fácil se falar de interpretações certas e interpretações erradas,
afinal as certas são aquelas que conseguem expressar conceitualmente o Ser naquilo que é.
Ademais, é importante ainda ressaltar que a hermenêutica nascida no berço da
modernidade surge sob uma concepção fortemente metafísica da realidade, e, embora tal
perspectiva só se veja ameaçada diante do ocaso da modernidade frente à crítica pós-moderna,
sobrevive ainda na contemporaneidade justificando, assim, o que aqui se quer chamar de
paradoxalidade da hermenêutica contemporânea.

4.2. O Conhecimento Pela Afetação

Conquanto não se possa negar a legitimidade de um conhecimento pela ação —


afinal, o ser humano é continuamente impelido por seu desejo de conhecer, de desvendar, e
isso lhe é constitutivo —, há perigos que também não podem ser ignorados quando se instaura
uma cultura fundada apenas na ação, no movimento do sujeito em direção ao objeto. Esta
sessão tem por objetivo propor que o conhecimento também possa resultar de uma
predisposição tal do sujeito, que seja possível falar, mesmo que metaforicamente, de um
movimento do objeto em direção ao sujeito. Ou seja, a proposta faculta uma hermenêutica que
66

se mostre menos susceptível à exclusão do outro enquanto outro, que, portanto, seja menos
reducionista ao se fundar tanto na ação quanto também na afetação — neste sentido, uma
disposição para a surpresa. Antes, porém, é importante reportar-se à reflexão em torno dos
elementos indispensáveis ao conhecimento.
Vimos em ―4.1.1‖, a importância de duas dinâmicas opostas: a abertura para o
mundo, que pressupõe certo dinamismo e espontaneidade, e a cristalização do mundo, que se
refere aos modelos transmitidos ao longo de gerações, que acabam orientando conhecimentos
futuros. Pode-se dizer, por outro lado, que essa abertura para o mundo, além de ser uma
postura necessária a todo conhecimento que se pretenda legítimo e saudável, é uma maneira
de deixar falar o objeto. A fim de que esta postura seja possível, necessário é que se acolha a
espontaneidade como um elemento que enfraqueça, por assim dizer, a exacerbação das
intervenções humanas, da reflexão e antecipação racionais. Na medida em que tal
simplicidade se manifeste, favorece também o conhecimento pela afetação. Mas, o que se
quer dizer com conhecimento pela afetação?

4.2.1 A crítica nietzschiana à intelecção socrática e o páthos no conhecimento

O filósofo Friedrich Nietzsche, nutrido pelos elementos constitutivos de uma ruptura


empreendida por Shelling e Hölderling no que respeita à experiência poética, fornece sua
contribuição para a consolidação da visão contemporânea que não considera mais o ―trágico‖
como elemento puramente estético, como concebido na Grécia Antiga, mas como elemento
ontológico, como modo de leitura do real. Lança as bases dessa reflexão em sua primeira obra
―O Nascimento da Tragédia‖, cuja publicação acontece em 1872. Nesse sentido, ―O
Nascimento da Tragédia‖ é um livro de filosofia, não de arte ou de teatro. Portanto, trata da
totalidade da realidade, não como a soma das partes, mas como a unidade originária,
ontológica, que está em todas as coisas, mas não se confunde com estas. Assim, longe de ser
uma determinação da razão, no sentido de uma delimitação, de uma de-finição, ou de um
gênero distinto de natureza canônica, como propusera Aristóteles, para Nietzsche o efeito
trágico deve ser visto como constitutivo da realidade. Isto quer dizer que toda arte, se
originária, possui tal efeito, e só a entendemos quando abdicamos de querer compreendê-la
pela via da razão, buscando, assim, uma compreensão que pode ser alcançada por uma
introvisão, ou seja, uma visão desde dentro.
67

Não se trata de uma renúncia à sabedoria. Ao contrário, para Nietzsche a tragédia


permite uma sabedoria, mas do tipo que não emerge do entendimento lógico, e sim da
experiência originária, como criação. Eis, portanto, a proposta de Nietzsche: uma arte que não
derive da intelecção, pois esta cristaliza a realidade por meio de conceitos. Ao contrário, toda
arte está vinculada a uma pulsão, que não é humana, mas trata-se de uma força da natureza
que se expressa de dois modos: o modo apolíneo, presente nas artes plásticas, nas artes de
configuração, naquilo que remete ao aparente, e o modo dionisíaco, este presente na arte
lírica, e manifesto numa despreocupação com a forma, com a idealização, bem como numa
178
preocupação com a experiência vista desde dentro . Portanto, toda arte consiste na tensão
179 180
entre o apolíneo e o dionisíaco , e numa terceira força trágica que, segundo Nietzsche,
181
reuniria o apolíneo e o dionisíaco numa composição dialética . Nesse sentido, a tragédia
não é nem só apolínea, nem só dionisíaca, mas as duas coisas 182.

178
Ao retomar os deuses gregos, Apolo e Dionísio — representantes desses princípios ontológicos —, Nietzsche
se mostra inaugural no sentido de não ser fiel às suas figuras históricas, tais quais se apresentaram na Grécia
Antiga, o que lhe rende muitas críticas. A razão disso se justifica no fato de Nietzsche não querer fazer história,
mas demonstrar a relevância da arte como maneira de ver o real.
179
O fenômeno apolíneo se mostra como o sonho, mas não no tocante à imagem sensível no qual este se nutre, e
sim naquilo que diz respeito a um princípio de eclosão, nesse aparecer que tira a realidade do informe, por isso
compreendido como realidade ontológica. O fenômeno apolíneo manifesta-se como princípio da configuração,
da individuação, dos limites. Nietzsche diz: ―O culto às imagens da cultura apolínea, tenha essa se exprimido no
templo, na estátua ou na epopéia homérica, tinha o seu fim sublime na exigência ética da medida [...], que corre
paralela à exigência da beleza‖ (NIETZSCHE, Friedrich W. A visão dionisíaca do mundo. São Paulo: Martins
Fontes, 2005, p. 22). Como se vê, a caracterização da beleza apolínea é a medida. Além disso, Apolo, como deus
da luz, caracteriza-se, também, pela profecia — o poder romântico de prever o futuro de forma entusiástica (a
palavra entusiasmo deriva do grego, em + theós + asmós, que significa literalmente ―cheio de deuses dentro‖).
Homero relata coisas na Ilíada, não porque tivesse participado dos fatos, mas porque fora notificado pelos deuses
oracularmente, porque por eles fora tomado. O olho de Apolo prevê a forma que será constituída, por isso é
vidente. A forma da vidência é muito mais esplendorosa, pois vai além da forma cotidiana. Tal possessão subtrai
o poeta ao ritmo ordinário da vida, à própria linearidade do tempo, pois, nessa experiência, não é o homem quem
fala, mas o deus que o habita. Ademais, a palavra oracular não se oculta totalmente, nem se escancara, mas dá
sinais. Ou seja, ao mesmo tempo em que revela a existência humana, se resguarda à medida que pressupõe um
perscrutar por parte de quem é alvo de tal profecia.
180
Quando a diferenciação sofre uma ruptura, há o terror permitido pelo dionisíaco. A segurança da existência
pode se perder no caos dionisíaco, que se expressa como fenômeno de embriaguez, enquanto perda do princípio
de individuação, onde, então, embriagado, o homem não percebe mais a distinção entre o seu eu e o outro, ou as
coisas (C.f. F. W. NIETZSCHE. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Cia das
Letras, 2003, p. 55). Com efeito, é essa perda da segurança, do domínio, que funde um indivíduo ao outro, ou
seja, aquilo que era aparente volta a imergir no uno universal, reconciliando todos os particulares numa unidade.
Tal fenômeno pode ser visto quando Dionísio ocupa a cidade, e o soberano é dilacerado pelas bacantes (é
comum, nos cultos a Dionísio, o sacrifício humano, as lacerações das vítimas; os bodes sátiros estão para os
cultos bárbaros, assim como Dionísio está para o culto grego a Dionísio). Nessa experiência vê-se a dissolução
das ordens estabelecidas pelos homens, na forma de uma indistinção no que respeita à riqueza, sexo, idade. Por
isso, as mulheres transtornam-se e se atiram indistintamente sobre homens e animais, os velhos se juntam aos
jovens, e caem por terra as instituições e a ordem cultural juntamente com o palácio real (Ver GALIMBERTI,
Umberto. Rastros do sagrado. São Paulo: Paulus, 2003, p. 17).
181
Essa parece ser a tese central de Nietzsche em ―O Nascimento da tragédia‖.
182
Frequentemente diz-se que dois poetas viram e descreveram o inferno: Dante e Hümboldt. Dante o descreveu
imageticamente, ou seja, mostrou sua configuração como quem está de fora, pois não entra no inferno.
68

Independente das peculiaridades que distinguem o apolíneo e o dionisíaco — a


lucidez e a embriaguez, o distinto e o indiferenciado, as artes figurativas e a música, o
aparecer que tira a realidade do informe e a perda de limites e re-fusão do aparecimento numa
unidade universal —, ambos se contrapõem e se subtraem à razão enquanto tentativa de
domínio e controle sobre o real. Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, procura
demonstrar o vigoroso sentido trágico — que é a ―aceitação extasiada diante da vida‖ — da
183
civilização pré-socrática . Portanto, sempre que fala nos gregos, não se refere à Grécia da
escultura clássica, ou da filosofia de Sócrates, Platão e Aristóteles — fala na Grécia da
tragédia antiga, ―na qual o coro era a parte essencial, senão tudo‖. Com Eurípedes, entretanto,
surge a tentativa de eliminar o elemento dionisíaco da experiência grega, na ânsia por
afirmação dos elementos morais e intelectualistas, o que acaba por ofuscar aquela
luminosidade intensificada, transformando-a em ―superficialidade silogística‖.
A experiência originária, portanto, se contrapõe à presunção socrática em dominar a
184
vida por meio da razão . Apesar, talvez, de ser fruto dessa tentativa de absolutização do
elemento apolíneo, o princípio de diferenciação socrática, segundo Nietzsche, nada tem a ver
com o apolíneo. Apesar de se colocar como principium individuationis (princípio de
individuação), o apolíneo pode perder subitamente sua configuração. Com efeito, Nietzsche
reinterpreta uma metáfora de Schopenhauer, ao falar de um barquinho na tensão do mar
proceloso, que, conquanto se contraponha a este, pode, a qualquer momento, cair novamente
185
no indiferenciado da tempestuosidade do mar . Ou seja, Apolo pode subitamente ceder
lugar a Dionísio. Nas palavras de Nietzsche:

Na mesma passagem Schopenhauer nos descreveu o imenso terror que se apodera


do ser humano quando, de repente, é transviado pelas formas cognitivas da
aparência fenomenal, na medida em que o princípio da razão, em algumas de suas
configurações, parece sofrer uma exceção. Se a esse terror acrescentarmos o
delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais
íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do
dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da
embriaguez. 186

Hümboldt, entretanto, entra no inferno, sente suas labaredas, sente a dor, a sensação. Eis a diferença entre o
poeta apolíneo (aquele que está sempre diante da imagem) e o poeta dionisíaco (aquele que compreende desde o
interior da coisa, como que embriagado).
183
O termo ―pré-socrático‖, dentro do universo intelectual nietzschiano, não deve ser usado como indicador da
condição ―pré-intelectual‖ dessa civilização e seus pensadores, mas no sentido de que precederam,
historicamente, a Sócrates e Platão.
184
Vemos os resquícios desse socratismo recrudescidos na absolutização da individuação, no estabelecimento do
sujeito, nesse domínio do diferenciado que se efetiva na modernidade.
185
Cf. NIETZSCHE, 2003, p. 30.
186
Cf. NIETZSCHE, 2003, p. 30.
69

Portanto, a diferenciação socrática — que se dá por meio da conceituação — não é


frágil, mas se impõe como absoluta, pois o barco foi tirado do mar, o que significa dizer que
foi destruída a tensão.
A história dos gregos, pois, é a vicissitude do apolíneo e do dionisíaco. Tanto um
quanto o outro podem ser vistos como impulso artístico da natureza — são poderes artísticos
187
que se impõem sem a mediação do artista humano —, portanto, subtraídos a qualquer
arbítrio humano. Ora, nessa perspectiva, só há arte à medida que o sujeito se aniquila, pois
que não há nela nenhuma objetividade, nem tão pouco, subjetividade. Nessa ótica, se há um
sujeito, este é, definitivamente, a própria natureza (physis). Consequentemente, sujeito e
objeto, artista e obra, só se fazem na arte, ao contrário de precederem-na. Ou seja, não é o
artista que cria a obra, ou vice-versa, mas a própria criação faz com que ambos adquiram o
status de artista e obra — são o que são, portanto, na relação. E o que faz com que haja essa
relação entre artista e obra é, também, o que os reúne num mesmo âmbito: a criação — o
próprio caminho que os concita a caminhar a partir de uma mútua disposição dessa relação. O
que há de mais fundamental, assim, é o verbo, e não o sujeito e o predicado.
Nesse sentido, ambas as forças — o apolíneo e o dionisíaco — não se excluem
enquanto opostos entre si, mas convergem para um mesmo ambiente, e esse ambiente fala de
188
uma experiência (páthos) . Ademais, trata-se de forças que se impõem por si mesmas, ou
seja, se apresentam como um modo de ser fundamental da physis que exerce uma coerção
sobre o homem. Em outras palavras, quem decide pela arte não é nem o ―produtor‖ nem a
―produção‖, mas o ―toque‖, que constrange ambos à obediência e à ausculta.
Consequentemente, no horizonte teórico nietzschiano não se põe a possibilidade de um
conhecimento que se arroga produto do esforço de um sujeito que sujeita, que apreende,
aprisiona, enclausura determinado objeto.
Tanto o apolíneo quanto o dionisíaco se dão nesse domínio de experiência (páthos),
ou campo possível de relações. Ou seja, tudo o que aparece se instaura a partir desse lugar,
quer dizer, dessa perspectiva, que é o âmbito a partir do qual o ser se manifesta. Isto quer
dizer que o ser nunca está dado, porquanto se é instaurado a partir de um ―súbito‖, remete a

187
Cf. NIETZSCHE, 2003, p. 32.
188
O páthos, enquanto âmbito que reúne tanto o apolíneo quanto o dionisíaco relaciona-se com o sentido de luta
() para os gregos. Ou seja, a guerra também possui essa dimensão de fazer convergir os opostos para um
mesmo ambiente. A competição tem esse caráter de ―reunir‖ pessoas num mesmo lugar, num mesmo âmbito, ao
redor de uma mesma questão. Ou seja, a disputa pressupõe um lugar comum para o combate. Reunião e
combate, conquanto sejam termos aparentemente contraditórios, na realidade se coopertencem. Os contrários,
nessa concepção, parecem orbitar numa mesma dimensão, mas, contudo, sem abandonarem suas distinções.
70

um acontecer que não se calca em nada, ou seja, não está apoiado em nenhuma sucessão ou
encadeamento de outros ―fatos‖. Não há nada por traz daquilo que se insere ―subitamente‖, o
que quer dizer que, em certo sentido, não há ―mediação‖. Tal experiência, então, vige como
―aventura‖, pois significa estar aberto ao inusitado, disposto ao encontro com o desconhecido.
Essas digressões em torno da perspectiva nietzschiana do fenômeno estético ajudam
a compreender a função do páthos no conhecimento hermenêutico. Páthos diz respeito a um
suportar, aguentar, sofrer — um estado, disposição que se instaura. O homem não tem
controle sobre ele, porquanto se trata de uma força da natureza que o vitima. Isto significa
que os desígnios do destino passam a serem impostos pelo páthos. Por isso, a arte não é uma
faculdade humana, mas uma possibilidade que se impõe por uma força coercitiva da
natureza. De modo geral, ademais, a palavra páthos (ά) significa aquilo que se
experimenta, ou a própria experiência, infortúnio; significa o estado agitado da alma, paixão
189
boa ou má, que pode se manifestar no prazer, no amor, na tristeza, na ira, e etc. . Com
efeito, pode ser traduzida como sofrimento, ou afetação. Em certo sentido, no contexto da
arte, designa o ―elemento emocional que constitui o tópico essencial de um trabalho literário‖.
190
Portanto, tem a ver com uma qualidade estimulante dos sentimentos, por assim dizer, um
191
poder de tocar os sentimentos da piedade ou da tristeza, da melancolia ou da ternura ; uma
espécie de influência tocante a partir da arte, como quando alguém diz que ―há páthos naquela
determinada escultura ou música‖ — quer dizer, ―nos sentimos afetados por aquela
escultura‖, ou ―nos sentimos tocados por aquela música‖.
Assim, como se pôde ver, o páthos não é algo que se possa enquadrar totalmente
dentro da vontade humana, ao contrário, manifesta-se como um âmbito onde se cai, e ao cair,
se é atravessado, perpassado, afetado. O ser tocado por esse fenômeno, portanto, é o que
confere o caráter de páthos. Nesse sentido, existe algo de imprevisível, incontrolável,
espontâneo nessa experiência, algo que não se pode meramente tematizar, pois está fora desta
alçada. Ora, essa dimensão é importante na medida em que, revelando algo próprio da pessoa
de Deus — ou seja, seu caráter de imprevisibilidade, inabarcabilidade, quer dizer, sua

189
Cf. PEREIRA, 1984. p. 421.
190
BUENO, Francisco da Silveira. Grande Dicionário Etimológico-Prosódico da Língua Portuguesa. São
Paulo: Editora Brasília Ltda, 1974, vol. 7, p. 2917.
191
Cf. HOUAISS, A; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2004.
71

natureza ―selvagem‖ e indomesticável —, sugere um âmbito possível a partir de onde se possa


compreender a experiência hermenêutica 192.
Pode-se, com certeza, identificar muitos exageros no pensamento pós-moderno,
enquanto herdeiro desse modo de pensar nietzschiano, mas é digno de nota o fato de que ao
denunciar os limites da intelecção socrática, Nietzsche desfere duros golpes à metafísica
platônica, propondo, assim, um realizar que não se restrinja à pura ação intelectiva humana,
mas se faça desde um irromper da physis que se mantém indiferente às pretensões humanas.
Ao contrário de Platão, portanto, propõe uma nova estrutura axiológica dos dois mundos — o
sensível e o inteligível —, ao restabelecer a legitimidade das paixões. Mais do que isso:
coloca de ponta-a-cabeça o dualismo platônico. Nesse sentido, Nietzsche põe em suspeita a
verdade que se ancora num mundo invisível, produzindo efeitos morais de caráter universal
193
. Ou seja, faz uma apologia do mundo sensível em detrimento do mundo inteligível.
Certamente se Nietzsche reescrevesse a alegoria da caverna, concluiria que tudo não passa de
―sombras‖, sendo cruel e nociva qualquer utopia que recomendasse o acesso às coisas como
de fato são. Para ele não haveria um mundo real (na ótica platônica), e, nesse sentido, ao se
sair de uma caverna, inevitavelmente se entraria em outra. Quando diz que ―no mundo não há
dados, mas somente interpretações‖, quer certamente afirmar que todos estão fadados às
próprias ―cavernas hermenêuticas‖, sendo impossível olhar o mundo fora delas — na verdade,
para Nietzsche, não parece haver mundo fora delas.

Ora, além de se ver o conhecimento enquanto o esforço humano de buscar aquilo


que ainda não se sabe como legítimo, é importante dizer, também, que se trata de uma
postura presente na contemporaneidade, o que corrobora o fato de que esta aglutina também
elementos da modernidade iluminista. Entretanto, é possível concordar com a crítica pós-
moderna à dominação facilitada por um conhecimento-enquanto-ação, na medida em que este
esteja a serviço de enclausuramentos que negam a espontaneidade, e não negociam o controle.
Pode-se, então, postular um conhecimento que seja considerado pela via da afetação, o que
indicaria uma espécie de transpor-se para uma ―perspectiva instauradora‖ 194, um colocar-se

192
A partir de agora torna-se relevante a diferença entre ―ato hermenêutico‖ e ―experiência hermenêutica‖, até
então tomadas como sinônimas, mas enfim merecedoras de uma distinção que corrobore o movimento dialético
entre o ―conhecimento enquanto ato‖ e o ―conhecimento enquanto afetação‖.
193
Nietzsche investiga a origem dos conceitos morais, vendo na evolução da ética uma história da crueldade (Cf.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. São Paulo: Companhia das Letras, 1998).
194
Essa ―perspectiva instauradora‖ pode ser vista na perspectiva da ação humana que é convidada a dobrar-se
diante da ação divina. Assim, transpor-se para uma perspectiva instauradora significa transpor-se para a
dimensão da ação divina, e abandonar-se às suas determinações.
72

no mesmo âmbito, na mesma experiência. É, portanto, ver o conhecimento na perspectiva da


sim-patia () 195.
É inevitável, então, que nessa perspectiva se considere tal conhecimento numa certa
estima, deixando o saber ser aquilo que é sem ultrajá-lo, postura essa que traria curiosas
implicações inclusive para o contexto da educação. Neste sentido, é possível vislumbrar certa
phylia (quer dizer, certa afinidade, ligação) que figura como fundamento essencial da
verdadeira ―educação‖. Todo aprendizado que se priva da phylia, se torna um mero
adestramento e, por isto, deve-se aprender o ―aprender‖ e não apenas o aprendido, porque isto
significaria apreender, portanto, aprisionar. Aprender o aprender é deixar o ente ser o que é,
ou seja, é entregar-se àquilo que é, numa dinâmica que tenda a dificultar a cristalização, a
―desoxigenação‖ do conhecimento.
Consequentemente, é mais difícil o trabalho de quem ensina do que o de quem
aprende, pois aquele tem o desafio de deixar o ―aprender‖ acontecer. Ensinar é propiciar o
aprender, e o que ensina não deve ser visto como aquele que ―detém‖ o saber, mas como
aquele que permite, favorece o saber. Só ensina quem está fundado nessa experiência, e só se
encaminha a uma experiência, experienciando-a. Portanto, manter-se na experiência significa
manter-se naquilo que sempre se oculta, e, no contexto das Escrituras, significa facilitar a
ação do Espírito de revelar sua própria Palavra, à sua própria medida. João, em sua primeira
carta, parece confirmar isso, ao dizer:

Quanto a vós outros, a unção que dele recebestes permanece em vós, e não tendes
necessidade de que alguém vos ensine; mas, como a sua unção vos ensina a respeito
de todas as coisas, e é verdadeira, e não falsa, permanecei nele, como também ele
vos ensinou. 196

A experiência (páthos) como âmbito que reúne mestre e discípulo, pode ser vista
também no mesmo sentido presente no conceito do a-se-pensar heideggeriano, ou seja, como
um saber que não se deixa aprisionar, mas que vigora sempre num dinamismo. Nesse sentido,
o que foi pensado abre espaço para o impensado, e o que se oculta mostra-se como um
convite ao desvelamento. Além disso, todo verdadeiro ―mestre deve poder ser mais ensinável
197
do que os discípulos‖. E esta necessidade de ser ensinável — de estar aberto a aprender
mais do que os discípulos — faz com que, em certo sentido, o mestre seja menos seguro de

195
Uma experiência que fala de participação, uma tendência natural a outrem, uma harmonia de inclinações,
atração e relação, na realidade um ―páthos com‖.
196
1 Jo 2:27 (ARA)
197
FOGEL, Gilvan. Da Solidão Perfeita – Escritos de Filosofia, Editora Vozes, p. 66.
73

sua visão do que o discípulo da sua. Na realidade, o mestre se encontra menos seguro de sua
causa porque detém uma visão mais ampla, em que visualiza mais possibilidades e se torna
menos dogmático, o que significa dizer, também, que se põe mais crítico diante das questões
tidas por algumas consciências ingênuas. A dificuldade em compreender o que é ensinar e o
que é aprender é ir ao ―texto‖ com os papéis de mestre e discípulo já definidos. Esta pré-
compreensão refere-se a um saber do hábito que impede o a-se-pensar, ou seja, impede que o
pensamento se instaure, livremente, num novo âmbito.

4.2.2 Achar o que não se busca

Por sua obsessão à razão, a modernidade tem sido responsável pelo incentivo à
atividade da busca desmedida, da perscrutação, da investigação meticulosa. Embora a busca,
em si mesma, possa ser uma atividade legítima — afinal, o próprio Jesus disse: ―Buscai e
achareis‖ —, esse afã (sobretudo iluminista) fez parecer impossível aquele conhecimento que
surge espontaneamente, sem que se lance à busca. Mas, afinal, seria possível um
conhecimento não pretendido? Seria possível achar aquilo que não se busca?
Parece que o conhecimento haurido de uma atividade de busca incessante, que se
nutra de uma visão de mundo que não admite outras possibilidades que extrapolem àquelas já
previstas, impede que as coisas se mostrem naquilo que são. Ou seja, é preciso que se admita
que por mais que os seres humanos evoluam em sua maneira de pensar, nunca se conseguirá
esgotar a realidade em todas as suas nuances e implicações. É a consciência dessa limitação
que deixa certo espaço para que as coisas e as pessoas se mostrem por outros ângulos, e de
forma maravilhosa. O que se quer dizer é que a surpresa não é possível apenas por meio
daquelas descobertas que são oriundas de uma busca permanente e incansável, mas também é
possível o maravilhar-se com aquelas realidades que surgem subitamente, sem qualquer
previsão racional, e sem qualquer convite — são ―penetras‖, por assim dizer, na grande festa
do conhecimento. Saulo de Tarso é um exemplo bíblico típico dessa maneira de fazer
descobertas. Como se sabe, o jovem rabino encontrou aquele a quem não buscava, e isso teve
o efeito de mudar toda a sua vida (Cf. At 9:1-18; 22:5-16).
Mateus 13:44-46 relata duas parábolas proferidas por Jesus que ilustram bem essa
dinâmica do conhecimento adquirido por busca intencional, e o conhecimento que surge
gratuitamente. No verso 44 é-nos dito sobre a experiência de um homem que encontra um
74

tesouro sem buscá-lo. Na sequência (versos 45 e 46), a parábola menciona a respeito de um


negociante que procura boas pérolas. O texto declara:

O reino dos céus é semelhante a um tesouro oculto no campo, o qual certo homem,
tendo-o achado, escondeu. E, transbordante de alegria, vai, vende tudo o que tem e
compra aquele campo. O reino dos céus é também semelhante a um que negocia e
procura boas pérolas; e, tendo achado uma pérola de grande valor, vende tudo o que
possui e a compra (grifo nosso). 198

As duas parábolas falam da mesma coisa: o valor inestimável do reino. A ―parábola


do tesouro oculto‖ ilustra a descoberta do reino de maneira acidental; a ―da pérola‖, a
descoberta do reino por esforço diligente. Não há dúvidas de que Jesus — se é possível tal
análise — mostra que é possível des-cobrir o reino tanto de uma forma quanto de outra; tanto
―negociando e procurando boas pérolas‖, quanto ―achando um tesouro oculto‖. Quanto ao
sabor da procura, deve-se mencionar que por repetidas vezes as pessoas se debruçam frente
aos seus ―textos‖ — como hermeneutas que são — à procura de algo. E é necessária — diante
da consciência do valor inestimável da pérola — a atitude resoluta do intérprete em sacrificar
tudo para apoderar-se desse tesouro. À semelhança da alegoria de Barth, é preciso ―lutar‖ a
199
despeito de toda oposição do outro, que se opõe justamente por sua irredutível alteridade .
Os teólogos em geral se valem de ferramentas, como a exegese bíblica, em sua luta contra o
texto, na ânsia por compreendê-lo. Se por repetidas vezes os hermeneutas se debruçam diante
de seus textos, por repetidas vezes também é preciso responder: ―Até onde pretendo ir para
conquistar isso?‖, afinal, os comerciantes de pérolas iam muito longe para adquirir um
produto valioso. É possível dizer que a modernidade respondeu bem a essa pergunta, e não
mediu esforços para alcançar as suas ―pérolas‖. Vendeu tudo o que tinha a apostar na boa
campanha. Por outro lado, não se pode negar que descobertas acidentais aconteçam, além do
fato de que nem sempre se sabe o que procurar. A própria modernidade, é preciso dizer,
encontrou muito do que não procurou e muito do que jamais pretendeu achar. Certamente, os
fracassos da razão iluminista não estavam na lista das coisas que lutou por alcançar. Isso põe
uma questão: a surpresa é inevitável — então, bem faz aquele que assume a imprevisibilidade
como morada, e nutre-a para dela se nutrir. Nesse sentido, a pós-modernidade parece ter
aberto os portões desse empreendimento, que muito interessa à experiência hermenêutica. É
claro que a parábola tem os seus limites, mas não parece arbitrário o uso de sua alegoria para
ressaltar a tese que aqui se propõe.

198
Mt 13.44-46 (ARA).
199
Cf. nota ―125‖.
75

Os gregos antigos nutriam, em certo sentido, uma visão em relação à natureza que
muito favorecia esse conhecimento pela afetação. A physis (natureza) dizia respeito a um
desabrochar da realidade que acontecia por si só, sem qualquer apoio externo, como se viu na
interpretação heideggeriana. Indica, portanto, esse movimento de manifestação
(aparecimento) da realidade, mas que só pode ser compreendido no contraponto com o
velamento (ocultação). A técnica (techné) grega — muito diferente da técnica moderna, que
se caracteriza por uma exacerbação dos esforços humanos em tornar a ciência algo eficaz, ou
seja, algo que esteja a serviço dessa sede desmedida pelo conhecimento e pelo poder — exibia
certo respeito pela própria condição de ser da physis, a saber, o seu encobrimento. É como se
a physis tivesse o seu próprio ―pudor‖, e a técnica soubesse respeitar isso. Nesse sentido, o
respeito que se tinha pelo ser das coisas facilitava o eclodir inédito da realidade diante dos
gregos. Em outras palavras, deixar que a realidade se comportasse segundo aquilo que era em
si mesma, significava se surpreender continuamente com ela, posto suas potencialidades não
fazer parte da agenda humana. Assim, a physis impunha os seus próprios limites. A techné
grega, portanto, significava o servir-se da physis observando esses limites, observando a sua
própria vocação.
Ora, quando o intérprete se lança à busca com os papéis preliminarmente
estabelecidos, com os limites já impostos, a realidade só poderá se mostrar dentro dessa
fôrma, desse enclausuramento prévio. Assim, haverá poucas chances de se achar aquilo que
não se está buscando, portanto, poucas chances de se ver a realidade em facetas jamais vistas
anteriormente. Compreender a realidade fora de sua vocação pode, também, constituir-se em
―estupro‖, em transgressão daqueles limites naturais. O estupro é o ápice desse sentimento
exagerado de domínio, em que se verifica uma violação de qualquer regra ―moral‖, ou mesmo
―física‖. Violentar, pois, significa forçar a realidade — seja o mundo físico, as pessoas, ou o
próprio Deus — a ser algo distinto de sua real vocação, de sua natureza. Na realidade, a
contemporaneidade é testemunha dos prejuízos que essa inobservância da vocação das coisas
tem provocado 200.

200
Não obstante essa visão enclausurante da realidade seja normalmente empecilho ao encanto e à surpresa, a
exceção a isso parece ser aquela liberdade que Deus tem de atravessar o caminho humano, mesmo quando sua
ótica é restritiva e cristalizada, como parece ter acontecido com Saulo de Tarso — pois não parece que ele se
encaixe na figura de ―homem flexível‖ quanto às possibilidades da realidade. Pelo contrário, a visão judaica de
Saulo — como seria normal em qualquer bom e zeloso judeu — exibia contornos muito rígidos na forma de um
extremo legalismo.
76

Tal sobriedade não se aplica, é claro, somente à interpretação da realidade física, mas
também ao conhecimento de Deus. Na teologia muito já se fez no sentido de adestrar pessoas
a buscar o conhecimento, em qualquer plano que seja, mas ainda é tímida a contribuição que
fomente o esperar pelo inesperado, o dar espaço para que as imagens que temos de Deus
sejam mais próximas daquilo que Deus é, e, assim, se apresentem outros caminhos que não
estejam na lista humana de possibilidades. Um Deus que se revela ao mesmo tempo em que se
mostra imprevisível é, sem dúvida, o grande desafio da teologia nestes últimos tempos.
Embora todos estejam irremediavelmente afetados e comprometidos por sua própria visão de
mundo, o que faz com que se vislumbre Deus e o mundo sempre a partir de uma matriz
visional — que sempre será parcial por definição —, é possível certa moderação, discrição,
comedimento, enfim, uma serenidade que se manifeste num despojamento daqueles artifícios
exagerados da razão, que sempre arbitram diante da realidade, procurando enquadrá-la. Se,
por um lado, esses enquadramentos são inevitáveis até certo ponto — pois não se tem como
sair de si mesmo para então enxergar o mundo de forma imparcial —, por outro, a simples
―consciência‖ de que Deus e sua criação inevitavelmente transcendem o mundo dos humanos,
pode ajudar o intérprete contemporâneo a ir ―mais longe‖, e a achar aquilo que não era
procurado — pelo menos de vez em quando!
77

5. POSSIBILIDADES DE UMA HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA

Diante do paradoxo da modernidade e da pós-modernidade, como o paradoxo da


própria hermenêutica, é preciso perguntar: o que seria, possivelmente, uma hermenêutica para
hoje? Quais os caminhos que poderiam ser trilhados a fim de que tal hermenêutica continue
sendo relevante para o mundo atual, consoante suas inevitáveis transformações? Embora não
se tenha a intenção de abarcar todas as possibilidades — isso nem de longe seria possível —,
vale aqui algumas sugestões, quais sejam: 1. Uma hermenêutica que não tema a
abscondicidade divina; 2. Uma hermenêutica que não tema agir dialeticamente; 3. Uma
hermenêutica que não tema a Encarnação e o Diálogo Comunitário; 4. Uma hermenêutica que
não tema a ―santidade‖ e o ―temor ao Senhor‖; 5. Uma hermenêutica que não tema o
paradoxo.

5.1 Uma Hermenêutica Que Não Tema a Abscondicidade Divina

Uma das teses até então aqui perseguidas é a de que a relação com Deus, em respeito
à sua alteridade e inabarcabilidade, é paradigma para a experiência hermenêutica. A história
da hermenêutica, como se viu ent passant, parece confirmar isso. Se, por um lado, a
abscondicidade divina deve ser paradigma para a experiência hermenêutica, por outro, o
próprio caráter de dinamicidade e inabarcabilidade da realidade em geral, mostra que isso
tende a se amplificar quando se considera a pessoa de Deus. A proposta aqui ensejada é a de
que a busca por uma hermenêutica mais relevante diante dos desafios que se colocam na
contemporaneidade, independente dos métodos hermenêuticos que se adote, passa pela
assunção dessa abscondicidade. Karl Barth, ―alimentado‖ por algumas reflexões de
Heidegger, já preparou o caminho para essa compreensão, como foi visto anteriormente.
Resta aqui, então, apenas consolidar essa reflexão. E isso pode ser feito a partir de uma
pergunta: Deus se esconde? 201
Quando se diz que Deus se esconde, vale ressaltar, faz-se uma declaração metafórica
que, obviamente, expressa um conceito baseado na ótica humana. Deus se esconde sempre a

201
A esta pergunta Isaías já respondera afirmativamente: ――Verdadeiramente tu és um Deus que se esconde, ó
Deus e Salvador de Israel‖ (Is 45:15 - NVI).
78

partir de nossa perspectiva, das estruturas religiosas que criamos, com suas regras e
convenções. Então, grosso modo, pode-se dizer que o caráter abscôndito de Deus se manifesta
numa espécie de frustração das expectativas humanas — Deus se esconde onde normalmente
não o procuraríamos. Uma hermenêutica que não tema a abscondicidade divina, portanto,
seria uma hermenêutica que acolhesse, sem temores, essa subversão divina como paradigma
de interpretação. Nesse sentido, quais seriam alguns possíveis ―lugares‖ onde normalmente
não se espera que Deus atue?

5.1.1 Deus se esconde na fraqueza

Em 2 Coríntios 12.9 o apóstolo Paulo afirma que ―o poder se aperfeiçoa na


fraqueza‖, isto é, se completa na fraqueza. Nesse texto, Paulo parece sugerir a necessidade de
ser honesto e compreender que tal fraqueza é, na verdade, constitutiva do ser humano. É
possível pensar, então, que é justamente a fraqueza humana — responsável por levá-lo a
render-se ao seu Criador — que engendra a sua força, e o faz completo em toda a radicalidade
humana. Entretanto, a recorrente autossuficiência humana torna o reconhecimento da fraqueza
algo extremamente laborioso, por ofuscar a visão do verdadeiro lugar das coisas. Ao
estabelecer novamente a ponte entre Deus e o homem, Jesus também trouxe a oportunidade de
as coisas assumirem o seu verdadeiro ambiente de origem, porquanto permitiu ao homem
conhecer-se e colocar-se no seu devido espaço, além de conhecer a Deus e relacionar-se com
ele desde o seu próprio lugar. Assumindo a sua própria fraqueza, Paulo não somente obteve
uma visão mais clara do homem em geral e dele próprio, como, também, pôde conhecer e
experimentar o amor daquele de quem, até então, só havia assimilado os rigores da lei.
Embora a pós-modernidade tenha contribuído para uma consciência maior da
fragilidade humana (e isso precisa ser ressaltado como positivo frente à cultura iluminista que
sempre afirmou o contrário), ainda há resquícios insistentes de uma cultura pregressa que
aguçou a tendência humana de buscar vorazmente o poder. Na verdade, a conjuntura
histórico-cultural impôs sobre nós fraturas irreparáveis que nos forçam a admitir nossa
fraqueza. Mas, essa combinação de circunstâncias históricas movimenta os seres humanos na
contramão do que naturalmente são. Ou seja, não colocamos a mão à consciência, e
descobrimos que precisávamos desistir de querer controlar tudo — fomos forçados a isso. E,
mesmo assim, precisamos aprender muito ainda com essa fragilidade, sobretudo porque se
79

apresenta como albergue do poder de Deus, e, por isso, é fragilidade que incrementa o ser.
Portanto, uma hermenêutica que se pretenda contemporânea deve se amparar na consciência
da inescapável fraqueza humana.
Mas, afirmar a fragilidade humana como albergue do divino não faz jus ao alcance
da declaração de que Deus se esconde na fraqueza. Pode-se ir além e dizer que Deus não
somente se esconde na fraqueza humana, mas também em sua própria fraqueza. Obviamente,
não se afirma aqui uma fraqueza ontológica, constitutiva, mas uma calcada em sua própria
202
vontade e soberania. Fala-se, portanto, de sua iniciativa kenótica , de seu livre ―auto-
esvaziamento‖ e da não necessidade de preencher todos os ―espaços vazios‖; fala-se de sua
plena liberdade em ocultar-se para que o ser humano participe da história; e mais: fala-se de
sua própria ocultação (da ocultação de seu ―rosto transcendente‖) com vistas à sua igualmente
participação na história (a manifestação de seu ―rosto imanente‖); enfim, fala-se de um Deus
que em muitos momentos abre mão de sua atividade, e esboça sua afetividade.
Paul Ricoeur — comentando o texto de Mt 16:25 (―Pois quem quiser salvar a sua
vida, a perderá, mas quem perder a sua vida por minha causa, a encontrará‖ - NVI) — fala da
procura de Pedro por um Cristo glorioso e em sua dificuldade na aceitação de Cristo como o
203
Servo sofredor . Para Ricoeur, o sentido de ―ganhar o mundo‖, conquanto signifique a
vontade de domínio sobre o mundo em termos de aquisição de bens materiais e poder —
204
herança da modernidade anunciada por Descartes — , possui um sentido cujo alcance é
muito maior: trata-se de ―uma vontade de poder que é provocada pela própria força das ideias
205
e de conhecimento objetivo‖. Assim, Ricoeur quer levantar a suspeita de que ―uma forma
sutil de vontade de poder está dissimulada na forma mais sincera de humildade que
chamamos amor da verdade [...]‖. 206 Nas palavras de Ricoeur:

Minha própria sugestão é que não somente o conhecimento profano está


questionado, mas também — e talvez ainda mais — o conhecimento religioso. Se a
cristandade buscou tão obstinadamente elaborar provas rigorosas da existência de
Deus, não seria por buscar em Deus a garantia suprema em que fundar nossa
aspiração de dominar o mundo, um domínio baseado no conhecimento apoiado pela
garantia de provas científicas? O sumo do domínio do conhecimento pode bem ser a

202
Esta expressão deriva-se do termo grego (= kenosis), encontrado no hino cristológico de Filipenses
2:5-7, que significa ―esvaziamento‖. Essa expressão tem sido paradigmática na teologia contemporânea, pois
expressa um modo de ser de Deus, menos tematizado em teologias mais conservadoras: aquele caracterizado por
sua deliberada fraqueza.
203
Cf. RICOEUR, Paul. A hermenêutica bíblica. Tradução de Paulo Meneses. Apresentação de François-Xavier
Amherdt. São Paulo: Edições Loyola, 2006, p. 233.
204
Cf. RICOEUR, 2006, p. 234.
205
RICOEUR, 2006, p. 235.
206
RICOEUR, 2006, p. 235.
80

vontade de incluir Deus no nosso empreendimento de domínio intelectual, pedindo a


Deus que garantisse nossa busca obstinada de garantia. 207

Nesse sentido, a metáfora anterior que fala sobre o ―tomar a sua cruz‖ (verso 24)
representa a renúncia desse desejo de se ter Deus como garantia suprema da solidez
fundamental de nosso conhecimento. ―Tomar a cruz‖ está — desta forma — intrinsecamente
ligado à Paixão de Jesus. É, em certo sentido, desistir das garantias supostamente dadas pelo
conhecimento objetivo, e se estribar no conhecimento do ―Jesus crucificado‖, como o lugar
do Deus Todo-Poderoso. Se Deus se manifesta no ―Jesus crucificado‖, isto quer dizer que se
manifesta também em sua própria fraqueza:

Tomar a cruz de Jesus, para mim, membro da Universidade, dessa comunidade de


saber, significa não supervalorizar um conhecimento, prisioneiro como é de questões
de provas e de garantias, diante da necessidade seguinte — mais elevada do que toda
necessidade lógica — ―Era necessário que o Filho do Homem sofresse e fosse
crucificado‖. Como único poder divino Deus só dá aos cristãos o sinal da fraqueza
divina, que é o sinal do amor de Deus. Deixar-me ajudar pela fraqueza desse amor
é, para a questão de dar sentido à minha fé, aceitar que Deus só pode ser pensado por
meio do símbolo do servo sofredor e pela encarnação desse símbolo no
acontecimento eminentemente contingente da cruz de Jesus (grifo nosso). 208

Assim, conquanto o vazio humano se manifeste como ambiente propício ao poder


divino é possível dizer que, paradoxalmente, o vazio divino também pode se manifestar como
possibilidade (ambiente) para a construção do humano. Tal realidade se justifica de duas
formas: a primeira, diz aquela liberdade divina de ocultar-se, assinalada por Barth em sua
crítica a Hegel. Isso pode ser confirmado tanto biblicamente, como na experiência dos cristãos
em seu relacionamento com Deus. Por outro lado, tal vazio divino manifesta, também, a
própria transcendentalidade divina, visto que a impossibilidade de um Deus ser plenamente
209
conhecido deriva inevitavelmente de sua natureza u-tópica . Ou seja, Deus ―sobra‖ no ato
da revelação, e aí Schelling parece ser reavivado. Resumindo: o Deus que se revela também é
o Deus que se esconde, e o faz tanto no vigor de sua liberdade — que faz com que ele por
vezes facilite tal ocultação —, quanto no ―limite‖ de seu Ser, que sempre tende ao
ocultamento.

207
RICOEUR, 2006, p. 235.
208
RICOEUR, 2006, p. 238.
209
Esta expressão, usada no contexto da ideia aqui esboçada, quer ressaltar o seu sentido etimológico, que
designa aquilo que não tem lugar. Em certo sentido, a transcendentalidade divina mostra esse caráter que
extrapola o lugar (= tópos) da experiência humana.
81

Percebe-se, então, certa relação dialética entre a busca humana e sua paciência e
210
humildade na recepção da gratuidade divina . Provérbios 25:2 sugere esse duplo
movimento: ―A glória de Deus é encobrir as coisas, mas a glória dos reis é esquadrinhá-las‖.
Assim, parece que só cabe aos ―reis‖ esquadrinhar (quer dizer, buscar, explorar) as coisas de
Deus porque, de certa forma, essas coisas se ocultam, como se oculta o próprio Deus. Se as
coisas criadas por Deus, e o próprio Deus se manifestasse escancaradamente, não haveria a
necessidade da busca, do conhecimento, pois só se explora o inexplorado, ou só se busca
aquilo que ainda não foi encontrado. E é exatamente por isso que há a necessidade de uma
revelação que parta daquele que inevitavelmente ―se esconde‖. A única maneira de se
alcançar uma compreensão do Deus Todo-Poderoso é por meio de um doar-se, visto que não
está ao alcance do homem finito alcançar o Deus Infinito. Entretanto, deve-se notar que,
embora a revelação de Deus constitua-se a possibilidade de se conhecê-lo, isto não exclui, por
outro lado, a necessidade de certo labor humano para isso. Se a natureza de Deus é ocultar-se
no sentido de escapar ao homem finito — mas ele providenciou uma forma de se alcançá-lo
—, necessário é que se mantenha numa busca constante, numa disposição para conhecer. Ou
seja, lidar com esse ―escape divino‖ inevitável e natural, que se interpõe cotidianamente no
relacionamento com ele, convida o intérprete à aventura da perscrutação, da contínua
indagação, investigação, sondagem, penetração, enfim, exigem-se verdadeiros ―caçadores‖,
mas que, entretanto, não sejam ―predadores‖, antes saibam respeitar a natureza
indomesticável da divindade. Enfim, modernidade e pós-modernidade, pois, parecem aqui se
entrecruzarem.

5.1.2 Deus se esconde em estruturas religiosas e estruturas seculares

Martim Heidegger cita duas estórias interessantes acerca de Heráclito de Éfeso, que
aqui podem nos servir bem para ilustrar essa tendência do sagrado em camuflar-se. A primeira
história diz:

210
É digna de nota a tentativa de Bonhoeffer em equilibrar o trato com os conceitos de ―graça‖ e ―obras‖. A
ênfase exagerada à justificação pela graça levou o teólogo alemão a denunciar a ―graça barata‖. Em suas
palavras: ―A graça barata é a inimiga mortal de nossa Igreja. A nossa luta trava-se hoje em torno da graça
preciosa‖ (BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. 8. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 9.). A graça preciosa
envolve, também, o seguir a Jesus como resultado de seu chamado, o pedir, o bater à porta, e etc. Ou seja, ser
agraciado com o chamado divino envolve, também, ser desafiado a viver esse chamado em todos os ambientes.
82

―Diz-se (numa palavra) que Heráclito assim teria respondido aos estranhos vindos
na intenção de observá-lo. Ao chegarem, viram-no aquecendo-se junto ao forno. Ali
permaneceram, de pé, (impressionados sobretudo porque) ele os (ainda hesitantes)
encorajou a entrar, pronunciando as seguintes palavras: ‗Mesmo aqui, os deuses
também estão presentes.‘‖. 211

Heidegger chama a atenção para a decepção das pessoas frente ao pensador, afinal
esperavam encontrá-lo ―numa situação marcada pelo caráter de exceção, raridade e excitação,
212
por oposição à vida cotidiana‖. O que conseguem, no entanto, é ver o pensador numa
situação tipicamente cotidiana, e isso faz com que percam a vontade de se aproximarem. Com
as palavras: ―mesmo aqui, os deuses também estão presentes‖, Heráclito parece indicar que a
realização do pensamento não se condiciona a lugares exóticos ou momentos especiais,
porquanto se dá em qualquer circunstância, e, nesse sentido, dá sinais da impossibilidade de
qualquer dualismo. Ou seja, para que ocorra o extraordinário não se necessita de um templo,
de lugares especiais. Para alguém que não tema a abscondicidade divina qualquer
circunstância é privilegiada, qualquer lugar é lugar para o extraordinário acontecer, pois não
está ligado ao aparente, antes ao inaparente. Isto significa demorar-se no que está vendo —
escutar a voz do silêncio. E uma vez que as coisas são ordinárias e extraordinárias
dependendo de como nos relacionamos com elas, o olhar do ser humano é que faz com que o
ordinário se mostre como extraordinário. Isto quer dizer que o extraordinário se dá para
aquele que se implica, para aquele que se lança para além da curiosidade. Neste sentido,
Heráclito nos mostra muito bem que há uma sobrecarga de extraordinariedade nas coisas mais
213
banais, tornando-as da esfera do divino, pois o numinoso para os gregos era sempre o
irromper do extraordinário no ordinário.
A segunda estória a respeito de Heráclito nos diz o seguinte:

―Dirigiu-se, porém, ao santuário de Ártemis para lá jogar dados com as crianças;


voltando-se aos efésios que se puseram de pé ao seu redor, exclamou: ‗Seus

211
Aristóteles, De part. anim., A5 645 a 17ff apud HEIDEGGER, Martin. Heráclito: a origem do pensamento
ocidental: lógica: a doutrina heraclítica do lógos. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. 3. ed. Rio de
Janeiro: Relume Dumará, 2002, pg. 22.
212
HEIDEGGER, 2002, p. 22-23.
213
O termo numinoso tem a ver com a qualidade misteriosa e transcendental da deidade que causa admiração e
perplexidade (ver OTTO, Rudolf. O sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o
racional. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo: Sinodal/EST; Petrópolis: Vozes, 2007.). Embora todo o
livro de Otto esteja voltado para a questão do numinoso — na medida em que se mostra como um conceito-
chave para a compreensão da relação dos aspectos irracionais com os racionais — pode-se encontrar as
principais referências sobre o assunto nas páginas 37-97.
83

infames, o que estão olhando aqui tão espantados? Não é melhor fazer o que estou
fazendo do que cuidar da πόλις junto com vocês? ‘‖ 214.

Esta estória, ao contrário da primeira, não se passa num lugar simples e cotidiano,
mas no ambiente sagrado do templo de Ártemis. Entretanto, novamente Heráclito age na
contramão do pensamento convencional, pois era de se esperar que, num ambiente sagrado,
estivesse empenhado na proximidade dos deuses, já que para ele os deuses podem ser
encontrados até mesmo no forno. Mas, como se pode constatar a partir dos relatos, isto não
acontece, o que quer dizer que em ambas as estórias o esperado não se realiza. Ao contrário
do que se poderia imaginar, encontramos Heráclito jogando dados com as crianças. A menção
à pólis (), feita pelo pensador, indica uma possível expectativa dos efésios em vê-lo
cuidando do útil (a política); mas, ao contrário, encontram-no se ocupando com o inútil (o
215
jogo) — um claro embate entre o ócio e o neg-ócio. Em ambas as histórias se pode ver
estampado na face dos curiosos o espanto, a admiração e o desconcerto 216.
Quando se considera as duas estórias, então, percebe-se que o sagrado pode se
esconder tanto em estruturas religiosas quanto em estruturas seculares. Normalmente, não se
procura pelo sagrado naqueles ambientes em que se convencionou não ser o seu lugar.
Tampouco se vê com muita frequência o simples e ordinário em estruturas que há muito
foram sacralizadas. Essa dificuldade em se driblar tais acordos prévios, que nem sempre são
positivos, certamente traz implicações para a experiência hermenêutica. Afinal, falsas
expectativas podem diminuir o ―universo‖ de possibilidades hermenêuticas, sejam
consideradas em âmbito textual, ou em relação à realidade em geral. Portanto, uma
hermenêutica que não tema a abscondicidade divina é uma hermenêutica que considera a
imprevisibilidade divina, e faz disso o seu ―caminho‖ por excelência; considera, assim, todos
os ―lugares‖ como ―lugares‖ potencialmente hermenêuticos.

214
HEIDEGGER, 2002, p. 25.
215
Cf. HEIDEGGER, 2002, p. 27.
216
No entanto, tal espanto não é aquele que se queda diante do que surge aos olhos, mas um do tipo que se
escandaliza, e, por isso, os efésios ouvem a repreensão de Heráclito.
84

5.2 Uma Hermenêutica Que Não Tema Agir Dialeticamente

Quando se olha a história do pensamento humano, e a do próprio cristianismo, e se


percebe os seus exageros, frutos de uma inclinação a visões mais homogêneas, percebe-se,
também, as oportunidades que se colocam para a contemporaneidade. Apesar das críticas que
se possa fazer a cada um dos períodos precedentes, não se pode negar que muitos desses
exageros tiveram, em certo sentido, sua razão de ser. Nesse caso, qualquer julgamento da
incompletude desses paradigmas que delinearam a história do cristianismo deve ser cauteloso,
pois a posição em que nos encontramos na história é, dependendo do critério que se adote,
mais privilegiada. Posição também privilegiada para que se assuma uma postura teológica que
não sofra do mesmo desequilíbrio visto tantas vezes na história — pelo menos não na mesma
medida. O fato de se ter diante de si um conglomerado de visões de mundo, próprio do
pluralismo da pós-modernidade, possibilita maiores condições de elaboração de uma
compreensão do mundo, das Escrituras, e do próprio Deus mais equilibrada do que jamais
fora visto antes. Não se tem mais, assim como acontecia noutros tempos, a ameaça de um
único paradigma forçando sua própria legitimação. Portanto, nesse sentido, os
contemporâneos são menos forçados a excessos que compensem outros exageros, do que o
foram seus predecessores.
Assim, seria inteligente uma postura que se construísse agregando aqueles elementos
que resistiram ao tempo por serem considerados saudáveis, ao mesmo tempo em que evitasse
aqueles menos saudáveis — muitos dos quais assim se tornaram por se absolutizarem em
detrimento de outros, a partir de uma ótica dualista —, e que se mostraram historicamente
ineficazes. Há de se relacionar, portanto, três desses elementos, de forma dialética,
considerados aqui importantes na experiência hermenêutica: o teórico, o prático, e o
contemplativo-devocional.
O que aqui se nomeia por teórico diz respeito à reflexão, ao conhecimento
especulativo, ou mesmo à contemplação racional; o prático, por sua vez, subtende o âmbito
da experiência humana, das ações; o contemplativo-devocional nomeia aquela dimensão que
muitos chamariam de ―espiritual‖, a própria dimensão da contemplação em Deus (que não
pode ser confundida com a contemplação racional), da oração, da meditação, do silêncio, da
solitude, ou seja, da inação criativa. Há uma consciência cada vez maior de que essas
dimensões precisam estar presentes, numa relação saudável, na experiência humana, de tal
forma que fomentem a produção de conhecimento verdadeiro e de relacionamentos
85

igualmente verdadeiros. Ademais, qualquer experiência hermenêutica que se queira fecunda,


também não pode se eximir de agregar para si tais elementos.
A relação teoria-prática se orientou, durante grande parte da história desde Platão, a
217
partir de uma concepção estritamente dualista . Não há dúvidas, entretanto, que tanto a
reflexão quanto a prática resistiram ao tempo, e mostraram-se como dimensões importantes e
necessárias ao ser humano. Afinal, como bem se expressa Lothar Carlos Hoch, citando
Otaviano Pereira, o homem ―Não teoriza só porque pensa. Teoriza também porque sente,
218
porque age‖; e eu acrescentaria: ele não age somente porque tem paixões, desejos, mas
também porque pensa. Nesse sentido, difícil mesmo se torna buscar o elemento que funde a
relação, pois todo agir está eivado de teoria, e toda teoria deve estar a serviço da ação cristã
no mundo. Se há um elemento fundacional, este deve ser a ação de Deus. Ademais, usando a
metáfora do teatro (palavra que provém de theorein=teoria), pode-se dizer que não deve
haver mais o dualismo entre atores e expectadores. Os contempladores agora são coatores, e o
palco a história. A práxis é o ―conjunto de ação/reflexão, pelo qual se manifesta e realiza a
219
historicidade do homem‖. Sendo assim, o ser humano se realiza através de sua práxis, na
medida em que, como ser dotado de razão age e reflete sobre sua ação.
Historicamente, a Teologia Prática surge da necessidade de se estabelecer uma
relação saudável entre a teologia acadêmica e a prática da fé, ou seja, recuperar a dimensão
220
prática da teologia . O seu berço é a Alemanha do início do século XIX. Nesse momento a
Teologia se destacava nas universidades estatais, e buscava legitimidade como ciência diante
do espírito iluminista, mas à custa de se tornar vítima de um academicismo estéril, capaz de
afastá-la da vida da igreja. A aparente necessidade, diante dos embates com o ―espírito da
época‖, tornou conturbada a relação entre a teoria teológica das universidades e a pastoral e

217
Embora se tenha mencionado brevemente sobre o dualismo instaurado por Platão (cf. ―4.1.2. Os Perigos de
Uma Hermenêutica Em Tom Metafísico‖), vale ainda ressaltar que o dualismo concebe a existência de espécies
diferentes de substâncias: geralmente, a corpórea e a espiritual. Entretanto, indica, também, outros tipos de
oposições, tais como: bem e mal, matéria e forma, existência e essência, aparência e realidade, etc. De modo
geral, o dualismo concebe a existência a partir de duas realidades ou substâncias que são inconciliáveis, e,
geralmente, pressupõe que uma seja boa e deve ser assumida, e outra má e dispensável.
218
HOCH, Lothar Carlos. Reflexões em torno do Método da Teologia Prática. In: SCHNEIDER-
HARPPRECHT, Christoph (Org.). Teologia Prática no Contexto da América Latina. 2. ed. São Leopoldo:
Sinodal, 2005. p. 72.
219
HOCH, 2005, p. 72.
220
Segundo Hoch, em outro artigo do mesmo livro, o próprio Friedrich Schleiermacher, considerado ―pai da
Teologia Prática‖, preferia que toda a teologia tivesse uma vocação prática, ao invés de se criar uma cadeira de
Teologia Prática. Essa premissa tem respaldo na tradição protestante — Lutero criticou severamente a teologia
especulativa de Aristóteles e Aquino (Cf. HOCH, Lothar Carlos. O lugar da Teologia Prática como disciplina
teológica. In: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Org.). Teologia Prática no Contexto da América
Latina. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal, 2005. p. 25).
86

vida dos fiéis nas igrejas 221. Como nesse momento histórico a Teologia estava distante não só
da vida da igreja, mas também de sua hierarquia, Schleiermacher concebeu a Teologia Prática
também ―como a disciplina que se ocupa com a técnica da condução e do aperfeiçoamento da
222
vida da igreja‖. Forneceria, portanto, o instrumentário técnico para que a hierarquia da
igreja dirijisse as funções e manifestações da vida eclesiástica. A despeito dos problemas
oriundos da concepção de Schleiermacher 223, pode-se dizer que o mérito de sua concepção de
Teologia Prática 224 foi o restabelecimento da relação entre teologia e Igreja, teoria e prática.
A dimensão contemplativo-devocional, ou ―espiritual‖ para alguns, ou ainda
―transcendental‖ para outros, normalmente está ausente das discussões sobre teoria-ação.
Zabatiero diz que tal ausência se deve a uma tendência antirreligiosa, normalmente presente
nas teorias modernas da ação, razão pela qual a descrição dessa dimensão não deveria ser feita
sem uma atitude crítica à noção de secularização, tal qual fora construída na modernidade 225.
A dimensão contemplativo-devocional diz respeito à abertura constitutiva do ser humano, que
o impulsiona para além de estruturas e mediações já conhecidas. E é tal transcendência que o
conduz para além si mesmo, não só em direção ao outro, mas também a Deus. Por isso, seu
papel preponderante nessa relação não pode ser ignorado.
Ademais, essa dimensão diz respeito ao cultivo de uma relação com Deus que se
paute pela solitude (a solidão criativa), que é sempre a oportunidade de não se diluir na
perspectiva do outro. É nesse ―espaço‖ que se pratica a oração, sempre como ato segundo,
como resposta, pois se pressupõe que antes que se vá ao mundo das ações e das reflexões, se
vá a Deus 226. É nesse âmbito que se deve ouvir a Deus, e isso é muito mais do que apenas ler
a Bíblia, pois quando se ouve nunca se está no controle como quando apenas se lê — ―ouvir é
227
um ato interpessoal‖. A dimensão contemplativo-devocional é o lembrete de que não se
constrói o self apenas com ação, nem só com reflexão, mas também com inação.
Portanto, o que aqui se propõe é uma relação dialética entre esses três elementos, não
ao modo hegeliano, em que se verificam elementos que se contrapõem até o limite de uma

221
Cf. HOCH, 2005, p. 24.
222
HOCH, 2005, p. 25.
223
Como a cooptação da Teologia Prática por parte da hierarquia eclesiástica, o risco de atrelá-la a esta última, e
de usá-la, por exemplo, para fins administrativos. ―Seriam os teólogos práticos mais afeitos aos cargos
eclesiásticos do que ao labor teológico?‖ (Cf. HOCH, 2005, p. 26);
224
Vale ainda ressaltar que, segundo Hoch, o que define o perfil metodológico próprio da Teologia Prática é a
maneira dialética de relacionar teoria e prática — portanto, a sua interdependência (Cf. HOCH, 2005, p. 70).
225
ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares. As dimensões da ação: construindo o referencial teórico da teologia
prática. Práxis Evangélica: revista de teologia prática latino-americana, Londrina, ano 1, n. 2, p. 9-28, 2003.
226
Cf. PETERSON, Eugene. Um pastor segundo o coração de Deus. Rio de Janeiro: Textus, 2000, p. 40.
227
PETERSON, 2000, p. 82.
87

228
síntese, mas, ao modo heraclítico-heideggeriano , que se caracteriza por elementos que,
conquanto se toquem e se interpenetrem, mantêm, contudo, permanentemente a tensão.

5.3. Uma Hermenêutica Que Não Tema a Encarnação e o Diálogo Comunitário

A Encarnação de Deus em Jesus Cristo é parâmetro fundante para qualquer teologia


que se esboce, inclusive a experiência hermenêutica. Como assevera Ronaldo Sathler-Rosa:

A Encarnação [...] assinala a entrada da divindade na história da humanidade,


identificando-se com ela, valorizando-a como espaço da ação de Deus e dos seres
humanos em favor da vida abundante, julgando-a e manifestando Seu amor por Sua
criação. 229

Embora por muito tempo a Encarnação tenha conduzido a atenção dos teólogos para
o âmbito da pré-existência, ou seja, para especulações em torno da ―palavra desencarnada‖, a
partir do final do século 18 — mas, sobretudo, o século 19 —, esse foco tem sido direcionado
para o seu aspecto histórico. Por isso, uma ênfase nunca dantes vista na vida, morte e
ressurreição de Jesus. O ―Cristo da fé‖ dá lugar ao ―Jesus histórico‖. Esse é mais um reflexo
da predominância da visão dualista em nossa cultura ocidental, pois assim como em favor da
teoria a prática fora vinculada por muito tempo a esferas inferiores da existência humana 230,
o mesmo pode-se dizer do aspecto histórico de Jesus. Contudo, o novo olhar sobre o aspecto
―existencial‖ da Encarnação — conquanto traga consigo os seus exageros — permite também
vê-la como condição de possibilidade para a experiência hermenêutica. Isto quer dizer que a
hermenêutica deve se fundar também na experiência, no face a face, o que nos permite
afirmar que há muito mais sentido na palavra encarnada, re-velada na experiência, do que na
reflexão estéril de um ambiente higienizado, laboratorial, onde não há espaço para a vivência,
e as experiências são reduzidas à pura contemplação racional.
As Escrituras quando trazidas para a vida, para as experiências cotidianas, são mais
bem compreendidas, pois passam a ser ouvidas na boca e nas ações de pessoas reais, o que
significa que tais palavras são novamente ditas dentro de um contexto de profundidade

228
Refere-se à dialética em Heráclito, na ótica de Heidegger.
229
SATHLER-ROSA, Ronaldo. Cuidado pastoral em tempos de insegurança. São Paulo: ASTE, 2004, p. 16.
230
Cf. HOCH, 2005. p. 71.
88

emocional. Quando se reduz o texto bíblico à pura exegese cognitiva, corre-se o risco de
―enfraquecer a mensagem‖, pois na voz da pessoa viva tem-se acesso ―a uma história
colorida, um sistema emocional incrivelmente complexo, e combinações de palavras nunca
231
antes escutadas‖, elementos capazes de trazer consigo novo sentido. Além disso, ―Há
momentos em que a palavra pura não alcança a expressão necessária que uma realidade e uma
experiência exigem; as palavras muitas vezes já se esvaziaram das dimensões emocionais em
232
que são geradas‖. Isso não significa, é claro, renegar a dimensão reflexiva da
hermenêutica, mas somente que a reflexão se completa e se realiza na experiência, e isso é
tanto mais significativo quanto mais se compreende que a Palavra se fez carne.
Também é preciso dizer que o aspecto encarnatório na experiência hermenêutica se
realiza mais plenamente numa dimensão comunitária. Ou seja, a vida em comunidade
possibilita o emergir de sentido a partir da palavra. E a palavra em relação dialógica contém
muito mais do que a palavra em pensamento e conceito, normalmente fruto de ações
interpretativas privadas. Por isso, percebe-se nas próprias experiências cotidianas, com
frequência, o fato de que mesmo dominando determinado assunto — muitas vezes por meio
de conceitos amplamente burilados —, é possível se surpreender ao submetê-lo à discussão e
ao diálogo com o outro, pois aí se percebe quanta coisa nova surge a partir de tais debates. Tal
experiência, por exemplo, pode ser sentida por docentes que submetem suas disciplinas à
discussão com os alunos, e percebem que aprendem em maior medida que os seus aprendizes
233
. Nesse sentido, há de se acolher o poder criativo da palavra, em diálogo — mediação que
guarda segredos que não são de maneira alguma previsíveis e, portanto, previstos no conceito.
Assim, só se poderia ainda continuar a legitimar os conceitos, desde que fossem
conscientemente abertos, pois se trata de tentar abarcar aquilo que não se deixa abarcar, de
imobilizar aquilo que é por si só dinâmico.
Certamente, só o caráter encarnatório e dinâmico do Verbo — a verdade também é
uma pessoa, o que reafirma a ideia de movimento, ação, evento — faria jus à grandeza do
principal objeto da teologia. Entretanto, dialeticamente falando, é preciso dizer que o
paradigma cristológico, ao mesmo tempo em que aproxima Deus das pessoas ao lhe dar um
rosto, distancia-o na medida em que aponta para o não-dado, o não-revelado, para o súbito e
inédito contido na palavra. Na verdade, na prática do diálogo — enquanto movimento

231
PETERSON, 2000, p. 66.
232
ROESE, Anete. Bibliodrama: um método para cuidado terapêutico de grupos, para buscar a cura e despertar a
espiritualidade. In: NOÉ, Sidnei Vilmar (org.). Espiritualidade e saúde. 2. ed. São Leopoldo: Sinodal/EST,
2005. p. 66.
233
Tal tem sido a experiência do autor ao longo de aproximadamente duas décadas atuando no ensino teológico.
89

fecundo de trocas — se coloca na ―mesa‖ a carga de ação, reflexão e contemplação espiritual


dos atores. Aquilo que pensam, realizam, e nutrem numa relação devocional com Deus —
portanto, suas ações e inações — constituem elementos de pavimentação dos caminhos que se
abrem no diálogo.

5.4. Uma Hermenêutica Que Não Tema a ―Santidade‖ e o ―Temor ao Senhor‖

Gostaria de destacar dois conceitos importantes na implementação de uma


hermenêutica que pretenda se ajustar à realidade contemporânea: a santidade e o temor ao
Senhor. Estes conceitos, ou categorias de compreensão, além de se interpenetrarem, são
também duas maneiras de se relacionar com a transcendência (ou o Transcendente). Para
ambas as possibilidades não se deve deixar de tomar como certo o fato de que inevitavelmente
Deus transcende a tudo e a todos; inevitavelmente ele escapa. Tomando isso como base, é
possível um relacionamento com Deus que desconheça essa inevitável transcendência, ou,
pelo menos, que não a leve em consideração na relação. Ora, quando há um relacionamento
dessa natureza, as chances de se produzir conhecimento ―não verdadeiro‖ são muito maiores.
Afinal, que conhecimento se pode haurir de um relacionamento em que a consciência
intencional não respeita a real vocação do ideado? Que conhecimento se obtém de uma
realidade que não se apresenta na transcendência própria de si mesma? Isso acontece quando
não se reconhece a inevitabilidade da transcendência, quando há uma familiaridade excessiva
com as Escrituras, com o próximo, ou com a vida em geral, enfim, quando não se consegue
enxergar o extraordinário no âmbito do ordinário. E os perigos dessa familiaridade persistem
a despeito da busca pelo novo, própria do momento presente.
Assim, os intérpretes também estão expostos a esse fenômeno estranho que vige na
contemporaneidade, fruto do amálgama da cosmovisão iluminista com a cosmovisão pós-
moderna: trata-se daquela necessidade da novidade imposta a pessoas que não são treinadas a
isso. Nesse caso, ao mesmo tempo em que se produz uma cultura que desencoraja a busca
pelo novo como exercício pessoal, há uma institucionalização de certos labores — os
―marqueteiros‖, os ―criadores de entretenimento‖, os ―pastores‖, os ―teólogos‖ e etc. — que
90

234
visa produzir novidades que alimentem as pessoas que perderam sua capacidade criativa .
Trata-se, portanto, do anseio pela novidade, mas uma do tipo que pode ser encomendada.
Obviamente, tal postura que institucionaliza o trabalho criativo de interpretar o mundo
caminha na contramão da ideia de uma comunidade dialogal, que se apresenta como sujeito
da teologia.
O primeiro conceito, o de santidade fala dessa distância e separabilidade de tudo o
mais — própria da vocação do Transcendente. Ou seja, separabilidade a partir do próprio
Deus. Esse critério hermenêutico implica ―restrição, demarcação e limitação da liberdade e do
exercício das expressões vitais humanas‖. 235 Nesse sentido, deve ser vista como categoria que
limita as ações humanas:

[...] a categoria da santidade significa crítica à em si ilimitada fome humana de vida.


Pois a fome de vida em si não encontra satisfação e, por isso, não tem critério. Por
isso, a santidade é renúncia à vontade irrestrita de viver e, dessa maneira, crítica às
necessidades do ser humano [...] se a santidade expressa que não é o ser humano que
é senhor, mas Deus, então a criação inteira não se encontra no âmbito daquilo que o
ser humano poderia ousar colocar sob sua responsabilidade. Como ele não tem
poder sobre toda a vida, também não pode agir como se toda a vida estivesse ―à sua
disposição‖ para uso ilimitado. Por isso, santidade significa fazer recuar a
necessidade se permitir ―usar‖ e, assim, colocar sob sua responsabilidade toda e
qualquer coisa. 236

Portanto, a santidade — enquanto categoria hermenêutica — nos lembra a todo o


momento que a aventura da perscrutação não é absoluta, antes tem limites que devem ser
observados, sem os quais se compromete inteiramente a experiência interpretativa. Nesse
sentido, a distância que a santidade divina impõe aos atores humanos também é dotada de
valor hermenêutico. Ou seja, não se trata de uma distância em sentido negativo, que nega ou
impede a experiência hermenêutica, mas de uma distância que, na verdade, acolhe, protege e
nutre o objeto respeitando sua disposição natural.
Outra forma bíblica razoável de se relacionar com Deus é fazê-lo na forma de um
constante exercício de consciência — quer dizer, de reconhecimento — quanto ao fato de que
as teologias, e quaisquer interpretações que se pretendam, sempre serão provisórias, em
função de sua transcendência. Quando se respeita a vocação do Transcendente, as chances de
se produzir conhecimento verdadeiro são bem maiores, pois o conhecimento se construirá a
partir de uma base segura: o respeito pela ―coisa‖ ela mesma. Esse tipo de relação é saudável,

234
Nesse caso, o clericalismo não se coloca como um problema apenas de cunho eclesial, mas cultural.
235
BERGER, Klaus. Hermenêutica do Novo Testamento. Tradução de Nélio Schneider. 3. ed. São Leopoldo:
Sinodal, 1999, p. 43.
236
BERGER, 1999, p. 44.
91

e biblicamente manifesta-se como temor e reverência. Semelhantemente à santidade, o temor


diz respeito à mesma distância entre o humano e o Divino, mas do ponto-de-vista da reação
237
conscientemente respeitosa do ser humano. O temor é in-ação humana, fruto desse
reconhecimento, que mantém as pessoas a certa distância de Deus, facilitando assim a
―abertura‖ e o encantamento constantes. Todo intérprete se aproxima da face sombria da
modernidade na medida em que a perscrutação pelo verdadeiro conhecimento não se funda no
―temor ao Senhor‖. Tal atitude, não raro, acaba por produzir um desencantamento em relação
ao mundo e ao próprio Deus.
Klaus Berger, ao falar do temor e reverência como critério hermenêutico, assim se
expressa:

O temor e a reverência para com o numinoso e sua supremacia, onde quer que ela se
mostre, são formas de comportamento religioso e fenômenos religiosos
fundamentais conhecidos muito além do âmbito judaico-cristão. Isso significa ao
mesmo tempo: a reverência como critério e medida não é somente uma atitude ética,
mas tem algo a ver com a atitude diante do poder experimentado a nível religioso.
Portanto, quando a seguir se falar da reverência como critério, tem-se então e mente
um fenômeno tanto religioso quanto ético, fundamentado a nível religioso. 238

Berger menciona a especial contribuição da Antiguidade grega, em que o cosmo


tinha um caráter de pessoa divina, e esse caráter religioso despertava um temor que evitava o
orgulho humano. Reconhecer com veneração a competência divina e não ultrapassar o limite
do domínio humano, portanto, era a forma adequada de se relacionar com a supremacia dos
deuses. Esse respeito por Deus e sua criação, segundo Berger, significa a primazia da ética da
reverência em relação a qualquer ética que se oriente meramente por finalidades 239.
Temor e santidade, pois, são elementos que resguardam a relação entre o homem e
Deus, revelando e potencializando os protagonistas naquilo que são. Quando intérprete e
―texto‖, Deus e homem cumprem sua vocação, cada um face ao outro, conhecimento
verdadeiro e dinâmico é produzido.

237
In-ação, tal qual se tem concebido até aqui, também pode ser visto como ―ação para dentro‖: um labor que
não está a serviço da produção de ―artigos para consumo‖, ou seja, a serviço da voracidade moderna, mas pré-
ocupa-se com a construção das bases internas que precedem e sustentam toda a ação externa.
238
BERGER, 1999, p. 45-46.
239
Cf. BERGER, 1999, p. 46.
92

5.5. Uma Hermenêutica Que Não Tema o Paradoxo.

Algumas teologias não estão acostumadas a lidar com o paradoxo. A ―lei da não-
contradição‖ aristotélica atravessou gerações e ainda vige nas reflexões, tanto filosóficas
quanto teológicas. Na verdade, longe de se querer levá-lo às últimas consequências, tem-se
que de fato ainda muitas reflexões serão necessárias a fim de que seja completamente
assumido, ou mesmo descartado. Da mesma forma que não assumir paradoxos no labor
teológico cria imensos problemas para a compreensão, assumi-los resolve alguns, mas cria
outros. Mesmo assim, paulatinamente ele vai se insinuando, e — porque não dizê-lo? — se
―fundamentando‖.
A pergunta de modo algum é fácil, mas legítima: qual a possibilidade de um
paradoxo que não seja arbitrário? Uma vez que nossas verdades nunca serão a imagem correta
e translúcida da coisa em si, e que, portanto, somos passíveis apenas de aproximações, é
razoável crer que seja possível admitirmos perspectivas aparentemente contraditórias, que
podem, não obstante, serem legítimas dentro da teologia? Uma perspectiva pode ser mais
próxima da realidade num aspecto, e não no outro, é verdade! O mesmo pode acontecer com
uma perspectiva que seja considerada contraditória em relação a anterior. Mas, qual a posição
a ser tomada?
A postura mais sóbria e cautelosa também é a que mais fomenta o crescimento. E
esta parece ser a de que não se deve temer o paradoxo, mas investigá-lo e testá-lo no âmbito
das reflexões, sem o medo de ter que se retratar, pois o único crivo que até aqui se mostrou
seguro quando o assunto é o pensamento humano, é o histórico. Nesse sentido, vale aqui
advertir o quão arriscado é a tentativa de enquadrar pensamentos e pensadores em esquemas e
configurações lógicas pré-fabricadas, frutos de convencionamentos que se insinuam
atemporais. Não se pode, com efeito, deixar de trazer à baila novas percepções a respeito de
determinados arcabouços teóricos. Esse exercício de buscar um lugar para aquela visão menos
aplaudida, menos cogitada por comentadores, por se tratar de ser menos provável, ou muito
bizarra em relação ao paradigma predominante, mesmo que no fim das contas se mostre
indigna de crédito, ou inadequada, serve, todavia, para impedir a cristalização de
determinadas óticas restritivas que aprisionam o pensamento, impedindo-o de ir além do que
um dia já foi. Em outras palavras, serve para trazer um equilíbrio e cautela aos limites
impostos ao pensamento, instrumentalizados por interpretações unilaterais, que normalmente
estão a serviço de confissões religiosas específicas. Na realidade, tal postura cautelosa e
93

humilde diante do conhecimento — postura ainda muito tímida na contemporaneidade — tem


a força de impedir que a razão seja cultuada como o elemento transcendente em torno do qual
tudo deve orbitar. Com efeito, o pensamento bizarro, do ponto de vista do enclausuramento
lógico, é imprescindível, pois nos expõe à provocação e nos abre à linguagem do pensamento.
Nesse sentido, qualquer estranheza que nos ajude a aprender a pensar, forçando-nos a sair de
nossa zona de conforto, impossibilitando a mera funcionalidade e a petrificação de nossos
modos de ser, o enrijecimento de nossos hábitos de pensar, bem como nossos esclerosados
modelos de ação, deve ser bem-vinda como conditio sine qua non do pensamento. É que
quando cristalizamos o pensamento, não permitimos que o pensado se contraponha e se nutra
do impensado, e, assim, culminamos numa morbidez absoluta do pensamento.
É cada vez mais flagrante o fato de que a pós-modernidade se impõe sobre o
pensamento teológico ao se predispor mais às ―dissonâncias‖ do que às ―consonâncias‖.
Nesse sentido, a própria teologia passa a ser palco das ambiguidades contemporâneas, pois
precisa avir-se tanto com sua herança iluminista, afeita a definições claras e precisas, quanto
também com essa tendência pós-moderna que propõe formas alternativas de construção do
pensamento. Essas novas formas manifestam paulatinamente a consciência de que não temos
acesso direto à coisa em si, e que, portanto, todos os nossos conhecimentos sofrem a
interferência de mediações, tais como a cultura, a religião, as instituições com suas tradições,
e etc. Ou seja, nunca teremos, por exemplo, uma imagem de Deus que traduza fielmente o que
ele é em sua essência — o que teremos, então, é sempre uma ―imagem‖ possível, que poderá
ser mais ou menos próxima da ―realidade‖ em função das mediações melhores ou piores que
se vai assumindo. As novas formas, alimentadas pela consciência dessas mediações, geram,
por conseguinte, novas teologias que buscam, assim, sua legitimidade — é o caso das
chamadas ―teologias contextuais‖, que se baseiam exatamente no fato de que o ―lugar‖ a
partir de onde são propostas é hermeneuticamente legítimo.
Ora, uma hermenêutica que pressuponha a alteridade como constitutiva de seu modo
de ser, só poderá conceber, então, um Deus de muitas faces, que manifeste continuamente
suas muitas nuances, e que não se preste a enquadramentos definitivos. Assim
inevitavelmente — caso essa intuição seja segura — se chega a um Deus que, além de se
revelar e de se ocultar permanentemente, o que já demonstra um paradoxo de natureza
ontológica, também mostra tal paradoxo na própria revelação. Ou seja, sua manifestação —
quer dizer, aquilo que chega a nós — é multiforme, e isso abre espaço para aporias
hermenêuticas que se estabeleçam em função das ―imagens‖ muitas vezes aparentemente
contraditórias da divindade. Tal hermenêutica parece finalmente preparada, do ponto-de-vista
94

de seu horizonte teórico, para lidar com essas (pelo menos aparentes) contradições —
portanto, uma hermenêutica que assuma o paradoxo.
Alguém poderia objetar, afirmando que as aparentes contradições se insinuam devido
às limitações do entendimento humano, e não porque Deus possua muitas faces. Entretanto,
isso não ajuda, pois (como já se notou) geralmente temos a experiência do sentido a partir das
―imagens‖ que chegam a nós. Mesmo o caráter abscôndito da realidade só faz sentido na
relação dialética com o manifesto. Ou seja, só podemos falar de algo que não se manifestou a
partir daquilo que está disponível. Nossas teologias, portanto, são construídas a partir dessas
―imagens‖ que temos da realidade e do próprio Deus, daquilo que de alguma forma se
manifesta a nós. Na verdade, não temos a experiência da totalidade, sendo isto sempre uma
abstração humana; em certo sentido, necessária, é verdade, mas para nós apenas uma
abstração. Mesmo quando se trata de um relacionamento, e não apenas de uma teorização, tal
não se dá com a totalidade do ser da relação — apenas com o que dele nos chega. Afinal,
como muito bem se expressou Arthur da Távola, sempre existirá um ―outro‖ que mora no
outro. Ora, se assim é, não importa se Deus, em si, tenha ou não muitas faces, importa é que
essa é a impressão que nos chega, e só podemos trabalhar a partir disso.
Os temores em se conceber um Deus de muitas faces deriva de nosso ―cacoete
teológico‖ de não admitir paradoxos, pois geralmente soam ameaçadores. Por parte dos
teólogos, teme-se mexer nos ―baús doutrinais‖ e causar estragos à sã doutrina; por parte dos
fiéis teme-se perder uma fé que insiste em buscar ―garantias‖ e ―certezas absolutas‖. Não se
pode, acertadamente, prever o futuro da hermenêutica, mas pode-se visualizar para onde ela
parece caminhar. E, em função do paradoxo da própria contemporaneidade, há de se
investigar melhor — pelo menos testar! — as implicações de se assumi-lo como elemento
constitutivo do modo de se fazer teologia. Assim, conclui-se que uma hermenêutica
contemporânea não pode temer o paradoxo, não pode temer a provocação do pensamento
como algo necessário à manutenção do mesmo, sem o qual, é claro, não há transformação.
95

II - TEXTOS EM MOVIMENTO – POR UMA HERMENÊUTICA DO


CUIDADO PASTORAL

A tese que norteia a segunda parte deste trabalho constrói-se subsidiada pelo
pressuposto contemporâneo de uma hermenêutica que, historicamente, deixou de se ater
apenas a textos escritos — em sua gênese, ocupada com a interpretação correta das Escrituras
—, e passou a considerar toda realidade como um grande ―texto‖. Movida pela consciência de
uma realidade que se mostra como evento, a hermenêutica contemporânea encarnou bem a
máxima nietzschiana de que no mundo ―não há dados, há somente interpretações‖. Isso, é
claro, inclui as pessoas, e desde que a realidade se mostre em movimento, as pessoas desse
mundo também se constroem ao sabor desse movimento. Isso também quer dizer que se o
ministério pastoral se caracteriza por um ministério amplo de cuidado às pessoas, encará-las
como ―textos em movimento‖ traz implicações para o modo como se define a própria
poimênica 240 em nossos dias.
Nesse sentido, a partir de agora, há de se refletir sobre as seguintes questões: um
conceito de cuidado que abra mais possibilidades para a reflexão do cuidado pastoral; uma
hermenêutica do cuidado pastoral que tenha como base a metáfora paulina das ―cartas vivas‖,
narrada em 2 Co 3:1-3; o caráter dinâmico que constitui o sendo das pessoas e também do
mistério pastoral; três dimensões hermenêuticas do cuidado pastoral, que expressam o caráter
paradoxal da hermenêutica contemporânea, a saber: a dialética ação-afetação no cuidado
pastoral; a dialética tradição-emergência no cuidado pastoral, e a dialética velado-revelado no
cuidado pastoral.
Aos cuidadores pastorais, pois, está reservada a importante tarefa de cuidar de
pessoas, assumindo o paradoxo que se concretiza nas luzes e sombras, nas alegrias e
dissabores, na nobreza e na vileza de seus textos humanos. Eis aí a que se propõe o presente
trabalho a partir de agora.

240
Vale ressaltar que, neste trabalho, há de se fazer uma distinção entre Poimênica e Aconselhamento Pastoral.
Seguindo as pistas de Christoph Schneider-Harpprecht (cf. ―Teologia Prática no Contexto da América Latina‖),
pensa-se aqui a Poimênica como uma dimensão da Teologia Prática, e que tem como sua subdivisão o
Aconselhamento Pastoral. Enquanto aquela se refere ao cuidado pastoral em sentido mais amplo e contínuo,
levado a efeito pela comunidade cristã no mundo, cujas estruturas podem ser conhecidas como "pastorais", este
acontece de modo esporádico, específico, e de curta duração. Ou seja, a "clínica" acontece, na maioria dos casos,
quando a Poimênica (em sentido amplo), não se efetiva no dia a dia.
96

1. UMA FILOSOFIA DO CUIDADO

1.1 O Cuidado (Sorge) Heideggeriano: paradoxalidade do existir

Em literaturas que se propõem a tematizar o cuidado pastoral no âmbito da Teologia


Prática — qualquer que seja o alcance dado a essa expressão —, normalmente verifica-se uma
―lacuna‖ conceitual: trata-se do fato de que geralmente parte-se de uma noção de cuidado
como algo já resolvido. Ou seja, na maioria das vezes utiliza-se o termo sem investigar,
contudo, suas possibilidades hermenêuticas. Fala-se muito do cuidado de, mas perde-se de
vista o que significa, efetivamente, o cuidar 241. A ausência dessa preocupação nas discussões
teológicas sobre o cuidado podem ter várias causas, que merecem um estudo à parte. Apenas
a título de suspeita, talvez possa ser dito que uma das razões encontra-se na própria
constituição da identidade da Teologia Prática: sua vocação prática! Obviamente, isso não é
um defeito ―genético‖, mas aponta para o fato de que a Teologia Prática depende do
intercâmbio com outras disciplinas. Lothar Carlos Hoch lembra que a Teologia Prática deve
ser vista como premissa para o fazer teológico. Neste sentido, torna-se um posto avançado de
escuta das preocupações e angústias das pessoas e sociedades, a fim de que a teologia e a
igreja (em diálogo com as ciências sociais) se posicionem diante da realidade 242.
Neste capítulo pretende-se, brevemente, buscar algumas bases teóricas que subsidiem
as reflexões sobre o cuidado, sobretudo aquele que se diz pastoral. Evoca-se, para tanto, as
contribuições da filosofia heideggeriana, afinal, Heidegger talvez seja o pensador
contemporâneo que melhor formulou o conceito de cuidado, ao investigar suas bases
ontológicas.
Uma aproximação entre Heidegger e a teologia não seria algo absurdo, visto haver
uma relação ―arqueológica‖ entre o seu conceito de cuidado e a tradição cristã, sobretudo a
antropologia de Santo Agostinho. Segundo Luiz Hebeche, Heidegger vê na tematização do
―homem interior‖, em Agostinho, as bases para a concepção de cura (cuidado) que norteariam

241
Não se tem a pretensão, é claro, de oferecer uma profunda exposição sobre os significados do cuidar —
faltaria tanto competência quanto espaço para tamanha empreitada —, antes, busca-se levantar tal lacuna e
ensejar algumas reflexões que poderão abrir caminho para trabalhos futuros.
242
Cf. HOCH, 2005, p. 31.
97

243
uma de suas principais obras, Ser e Tempo . Agostinho não nutre apenas uma reflexão
teórica sobre as ambiguidades da vida interior, antes fala como quem as vivencia. A
244
inquietude da vida fática , portanto, tem sua origem na tradição cristã e adquire contornos
filosóficos no pensamento de Heidegger:

Quando Heidegger delimita a analítica do ser-aí [da-sein] diante da Antropologia,


Psicologia e Biologia, afasta a noção de homem de seu vínculo teológico como
imagem de Deus e também de sua herança ontológica objetiva grega como ser vivo
dotado de razão (zvon logon econ). Ele pensa, porém, que um obstáculo ao seu
projeto se encontra na Antropologia cristã da Antiguidade a partir de um detalhe que
escapou tanto do personalismo quanto da filosofia da vida: a sua insuficiência de
fundamentos ontológicos. SZ [Ser e Tempo] tem como projeto estabelecer esses
fundamentos, só que essa tentativa carrega consigo uma herança da Filosofia do
sujeito também assentada na Antropologia cristã primitiva, que Heidegger pretende
refutar. E isso tornou-se viável a partir da concepção de uma ―gramática
existencial‖. 245

Ser e Tempo não é uma obra de fácil compreensão, principalmente porque sua
―gramática existencial‖ utiliza-se de expressões que adquirem variados sentidos. A polissemia
dos vocábulos em Heidegger, por outro lado, é coerente com sua visão de ―palavras abertas‖,
que nunca têm a pretensão de tudo dizer, tudo compreender. São ―abertas‖ porque são
construídas com a consciência de que são provisórias, insuficientes, im-perfeitas e in-
completas — nesse sentido, são palavras-fonte, e que, portanto, não podem ser transformadas
246
em doutrinas . Na verdade, pouco se aproveitaria no âmbito de uma Teologia Prática, se
levássemos esses termos às suas últimas consequências, investigando a real intenção de
Heidegger, caso isto fosse possível. Mas, como estamos lidando com uma concepção de
hermenêutica que não se restringe à intenção original do autor, essas categorias serão úteis
mesmo que reinterpretadas dentro de uma ótica teológica 247.
O cuidado na ótica heideggeriana, como já se pontuou, adquire contornos
ontológicos em Ser e Tempo. Portanto, não se refere a ações de cuidado, nem mesmo a
atitudes de cuidado, mas a um modo de ser próprio do ser humano. Além disso, está
relacionado com outras estruturas de natureza ontológica propostas por Heidegger (os

243
Cf. HEBECHE, Luiz. Uma arqueologia da cura. In: OLIVEIRA, Nythamar de; SOUZA, Draiton Gonzaga de
(Org.). Hermenêutica e filosofia primeira: festschrift para Ernildo Stein. Ijuí: Ed. Unijuí, 2006, p. 207.
244
A facticidade, no pensamento heideggeriano, diz respeito ao fato de que estar lançado no mundo,
característica da existência humana, significa estar submetido às necessidades e imposições dos fatos.
245
Cf. HEBECHE, 2006, p. 208.
246
Ver o texto introdutório à obra Ser e Tempo, de Márcia Sá de Cavalcante Schuback, em que expõe e
fundamenta sua opção em traduzir Dasein por presença (Cf. HEIDEGGER, 2007, p. 24-25).
247
Afinal, como já dissemos, Heidegger faz o mesmo, ao se apropriar da tradição cristã.
98

chamados ―existenciais‖), e isso impõe a necessidade de se esclarecer alguns ―conceitos‖,


mesmo antes de se compreender o que seja cuidado na ótica heideggeriana.
Em primeiro lugar, é importante compreender o que seja Dasein, e qual sua relação
com a cura (cuidado). Dasein, na verdade, é a maneira como Heidegger se refere tanto ao ser
humano, quanto ao tipo de ser do ser humano, radicalmente distinto do ser de outras entidades
248
no mundo . Para Heidegger, o ser humano é o único ente para o qual a pergunta sobre o
sentido do ser se coloca como uma questão. Portanto, o Dasein ―possui um ‗primado ôntico‘,
no sentido de que deve ser interrogado primeiramente, e um ‗primado ontológico‘, porquanto
a ele pertence originariamente certa compreensão do ser‖. 249 Ademais, o Dasein, isto é, o ser
humano nessa concepção de Heidegger, não apenas propõe a pergunta acerca do sentido do
ser, mas também se coloca como um ente que não se deixa reduzir à noção de ser, tal qual
proposta pela filosofia ocidental, que identificava o ser com a objetividade — é presença, mas
não a simples-presença 250. Ou seja, o Dasein não pode ser concebido como ser simplesmente
dado (uma tradução aproximada de Vorhandenheit), como estrutura substancial e substantiva.
Márcia Sá de Cavalcante Schuback, tradutora da 2ª edição brasileira de Ser e Tempo, expõe
bem esse problema, ao mostrar os benefícios em se traduzir Dasein por presença, e os
problemas que se apresentam quando se prefere a tradução habitual: ser-aí ou estar-aí.
Destaca, nesse sentido, a necessidade de uma tradução que exprima a temporalidade do
acontecer:

Traduzir Dasein é traduzir um sentido substantivo e substancial de ser como ser


simplesmente dado para o seu sentido verbal, isto é, para a experiência de Dasein
como transcendência, como tradução [...] Como acontecimento temporal e verbal,
Dasein não corresponde a um acontecimento no tempo mas à temporalidade do
acontecer. 251

A tradução de Dasein, portanto, por ser ou estar-aí, na medida em que se aproxima


de Vorhandenheit, ao demonstrar o seu significado substantivo, manifesta a dificuldade
ocidental em distinguir o tempo cronológico da temporalidade interna da ação. O que
Heidegger se propõe em Ser e Tempo é fazer aparecer o acontecer do verbo e, por isso, a
temporalidade descrita nesta obra nada tem a ver com o ―agora‖. Em português, temos uma

248
Cf. INWOOD, Michael. Heidegger. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 33-34.
249
ABANGNANO, Nicola. Dasein. In: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo:
Martins Fontes 2007, p. 268.
250
Cf. REALE, Giovanni; ANTISSERI, Dario. História da filosofia: do romantismo até nossos dias. 6. ed. São
Paulo: Paulus, 2003, v. 3, p. 583.
251
HEIDEGGER, 2007, p. 20.
99

ideia mais clara disto quando colocamos o verbo no gerúndio: ―o andando do andar, o dizendo
do dizer, o pensando do pensar, o traduzindo do traduzir, o superando do superar, o sendo do
252
ser, oferecem o mundo como a temporalidade e temporalização do acontecer‖. Segundo a
tradutora de Ser e Tempo, portanto, quando se traduz Dasein por presença, facilita-se o
emergir dessa tensão do durante.
Vale ressaltar que o fato de o Dasein não ser simplesmente-presente, reduzindo-se
assim a um ―objeto‖ no tempo e no espaço, também indica se tratar de um ser que se
manifesta como possibilidade. Ou seja, o Dasein é sempre aquilo que pode ser, é sempre
―aberto‖ no sentido de que sua existência se manifesta como possibilidade e, portanto, como
transcendência: ―O ser do homem é sempre a possibilidade a atuar e, consequentemente, o
homem pode se escolher, isto é, pode se conquistar ou se perder [...] e ‗a existência é decidida,
253
no sentido da posse ou da ruína, [somente por cada Dasein individual]‘‖. Ademais, a
análise existencial que Heidegger faz do Dasein se efetua a partir da constituição do ser-no-
mundo — ele só é, portanto, no mundo, o que caracteriza a distância de Heidegger do
pensamento metafísico tradicional. Segundo Christian Dubois, a compreensão heideggeriana
de ser-no-mundo é a descoberta genial de Heidegger, que fez com que provocasse uma
254
verdadeira revolução fenomenológica na filosofia . Ser-no-mundo, então, ao contrário de
ser um simples objeto dentre outros, significa fundamentalmente ser mundo, compreendê-lo
como já estando implicado. Quanto ao sentido de ser-no-mundo, Dobois nos oferece uma
interessante ilustração:

O modo mais simples de compreender o que sou NO mundo seria, parece, de o


compreender da mesma maneira que o garfo está na gaveta. O ―In-Sein‖ significaria
pura e simplesmente ―Sein in...‖, ser em. Enquanto parte, fragmento do mundo, eu
seria ―no mundo‖, como outras coisas, como todas as coisas. Mas justamente não,
pois que, precisamente, eu não sou uma coisa. Isto é: para mim, há alguma coisa
como um mundo e, a partir deste mundo, eu me relaciono com todas as coisas. O
garfo não tem mundo, e não está em relação com a gaveta. Etimologicamente,
podemos derivar o termo ―in‖ de innan, habitar, estar sempre já numa relação de
familiaridade com o ―mundo‖, aí se reconhecer etc. [...] De todo modo, retenhamos
em primeiro lugar uma coisa: o Dasein não está no mundo no modo como poderia
estar, empiricamente, na beira do mar. O ser-no-mundo é uma estrutura a priori do
Dasein existente, e isto em dois sentidos: por um lado não se trata, para ele, de um
simples ―estado‖, que poderia se opor a outro ―estado‖, por exemplo, um ser supra-
mundano; por outro lado, constituindo seu ser, todo modo do existir é ipso facto no-

252
HEIDEGGER, 2007, p. 22.
253
REALE; ANTISSERI, 2003, p. 583.
254
Cf. DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura. Tradução de Bernardo Barros Coelho de
oliveira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p. 26.
100

mundo, ser-no-mundo não significa o encontro factual de dois entes substanciais


sem relações entre si. 255

Para Heidegger, ser-no-mundo é essencialmente transcendência, superação, o que


significa que o ser humano é um constante projetar, ―e as coisas do ‗mundo‘ são
256
originariamente utensílios em função do projetar humano‖. Isto também significa que o
mundo não se constitui uma realidade a se contemplar, mas um conjunto de coisas a utilizar.
Enquanto o Dasein é projeto, o mundo só é mundo porque está na constituição de seu ser o
fato de ser utilizável por ele. Como está ―fundado‖ na liberdade, o ser humano transforma o
257
mundo (cujo ser já indica estar disponível a tal ) e, em se fazendo assim, transforma a si
mesmo 258.
Por outro lado, não são encontrados pelo Dasein apenas utensílios que se prestam ao
uso, em face desse mundo que o envolve, mas também outros Dasein. Trata-se, portanto, de
259
um mundo comum, ―um mundo no seio do qual os outros estão sempre já anunciados‖. E
esse modo fundamental de ser-com-outros não se refere a ter outros Dasein nas proximidades
imediatas; ou seja, mesmo só, o ser do Dasein é sempre ser-com-outro. Com efeito, mesmo a
solidão só é possível a um ser quando existe uma relação fundamental deste com os outros 260.
Mesmo estando só, só estou porque, de alguma forma, os outros estão implicados naquilo que
eu sou. Ou seja, se por um lado não há um sujeito sem mundo, por outro, não existe o eu
despojado do outro. É precisamente aí que podemos nos aproximar do conceito heideggeriano
de cuidado. Reale e Antiseri nos fornecem as pistas:

[...] assim como o ser-no-mundo do homem se expressa pelo cuidar das coisas, do
mesmo modo o seu ser-com-os-outros se expressa pelo cuidar dos outros, coisa que
constitui a estrutura basilar de toda possível relação entre os homens. E o cuidar dos
outros pode tomar duas direções: na primeira, procura-se subtrair os outros de seus
cuidados; na segunda, procura-se ajudá-los a conquistar a liberdade de assumir seus
próprios cuidados. No primeiro caso, temos um simples ―estar junto‖ e estamos
diante da forma inautêntica de coexistência; no segundo caso, ao contrário, temos
autêntico ―coexistir‖. 261

255
DUBOIS, 2004, p. 26, 27.
256
REALE; ANTISSERI, 2003, p. 584.
257
Cf. BOUTOT, Alain. Introdução à filosofia de Heidegger. Lisboa: Europa-América,1993, p. 33.
258
Cf. REALE; ANTISSERI, 2003, p. 584.
259
BOUTOT, 1993, p. 34.
260
Cf. BOUTOT, 1993, p. 34.
261
REALE; ANTISSERI, 2003, p. 585.
101

Vê-se, portanto, que essa multiplicidade de momentos constitutivos é reunida por


Heidegger numa única e fundamental estrutura: o cuidado 262. Ou seja, o modo mais completo
de se indicar o ser do Dasein é como cuidado — no dizer de Heidegger, a ―totalidade
originária‖. Como já foi apontado, Heidegger entende o cuidado do ponto de vista existencial
como um a priori, ou seja, se acha antes mesmo de qualquer atitude ou ação de cuidar, o que
significa, por outro lado, que se encontra em toda atitude e ação de cuidar.
Consequentemente, o cuidado nessa perspectiva nivela mesmo as atitudes práticas e teóricas,
e isso é significativo em face do que aqui está sendo proposto. Nas palavras de Heidegger:
―‗Teoria‘ e ‗prática‘ são possibilidades ontológicas de um ente cujo ser deve determinar-se
como cura‖. 263
Michael Inwood sintetiza o conceito de cuidado em Heidegger:

Heidegger usa três palavras cognatas: 1. Sorge, ―cura (cuidado)‖, é ―propriamente a


ansiedade, a preocupação que nasce de apreensões que concernem ao futuro e
referem-se tanto à causa externa quanto ao estado interno‖ (DGS, 56). O verbo
sorgen é ―cuidar‖ em dois sentidos: (a) sich sorgen um é ―preocupar-se, estar
preocupado com‖ algo; (b) sorgen für é ―tomar conta de, cuidar de, fornecer (algo
para)‖ alguém ou algo. 2. Besorgen possui três sentidos principais: (a) ―obter,
adquirir, prover‖ algo para si mesmo ou para outra pessoa; (b) ―tratar de, cuidar de,
tomar conta de‖ algo; (c) especialmente com o particípio passado, besorgt, ―estar
ansioso, perturbado, preocupado‖ com algo. O infinitivo substantivado é das
Besorgen, ―ocupação‖ no sentido de ―ocupar-se de ou com‖ algo. 3. Fürsorge,
―preocupação‖, é ―cuidar ativamente de alguém que precisa de ajuda‖, portanto: (a)
o ―bem-estar‖ organizado pelo estado ou por corporações de caridade (cf. ST, 121):
(b) ―cuidado, preocupação‖. 264

Os três conceitos acima mencionados resumem a amplitude da significação do


cuidado. Normalmente, para Heidegger, ―Sorge pertence ao próprio Dasein, besorgen às suas
atividades no mundo, e Füsorge ao seu ser-com-outros‖. O cuidado (Sorge), nesse sentido,
aparece como modo básico de ser de Dasein, de maneira que está presente na ocupação
(besorgen) tanto quanto na preocupação (Füsorge), como inseparável destas, além de ser

262
Heidegger usa uma profusão de hífens em sua obra a fim de indicar o ―entre‖ (não geográfico, é claro) si-
mesmo e o outro, para indicar uma estrutura radicalmente relacional. É oportuno, nesse sentido, o que Heidegger
diz no § 41 de Ser e Tempo: ―A totalidade existencial de toda a estrutura ontológica da presença [Dasein] deve
ser, pois, apreendida formalmente na seguinte estrutura: o ser da presença [Dasein] diz anteceder-a-si-mesma-
no-já-ser-em-(no mundo)-como-ser-junto-a (os entes que vêm ao encontro dentro do mundo). Esse ser preenche
o significado do termo cura (N13), aqui utilizado do ponto de vista puramente ontológico-existencial. Fica
excluída dessa significação toda tendência ôntica como cuidado ou descuido‖ (HEIDEGGER, 2007, p. 259-260).
O anteceder-a-si-mesma-no-já-ser-em-como-ser-junto-a, grosso modo, significa a ―estrutura de anteceder a si
mesma já sendo no e junto ao mundo com outros‖.
263
HEIDEGGER, 2007, p. 261.
264
INWOOD, Michael. Dicionário Heidegger. Tradução de Luísa Buarque de Holanda. Revisão técnica de
Márcia Sá Cavalcante Schuback. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 26.
102

também membro dominante dessa tríade. Além disso, vale ressaltar que a estrutura tríade do
cuidado também quer indicar que mesmo que o Dasein seja desleixado (no trato com as
coisas) e despreocupado (no cuidado com os outros), ainda assim possui Besorgen, Füsorge e
Sorge, entretanto de um modo deficiente, no ―modo do não‖ 265.
É digno de nota o fato de que, segundo Olinto Pegoraro, o mundo ocidental criou três
distintas concepções do ser humano, e uma delas diz respeito ao cuidado:

A Antiguidade Grega colocou a Razão como fundamento de dignidade humana. A


época judaico-cristã manteve essa base, mas reforçou-a com a luz da fé. A fé leva a
razão a admitir realidades que a transcendem, mas não a contradizem. A era
contemporânea criou outro conceito metafísico [266] do ser humano, definindo-o
como Cuidado (um ser que é, por excelência, cuidadoso). Em síntese, nestes últimos
25 séculos, nos entendemos como um ser racional, um ser racional com fé e um ser
racional cuidadoso do mundo. 267

Percebe-se, então, a importância da filosofia existencial, sobretudo a de Heidegger,


na contemporaneidade. Sem dúvida, muitas reflexões que têm sido geradas atualmente
possuem uma dívida para com esse pensamento, ao mesmo tempo em que possibilitam novas
articulações que, paulatinamente, também vão delineando uma nova maneira de agir no
268
mundo . A ―filosofia do cuidado‖ empreendida por Heidegger — vale lembrar — será
considerada como ―inspirativa‖ para as reflexões que se construirão em torno do cuidado
pastoral.

265
Cf. INWOOD, 2002, p. 26-27.
266
Obviamente, Pegoraro usa a expressão ―metafísico‖ na forma em que passou a ser concebida na filosofia
existencialista, sobretudo na de Heidegger: ou seja, como ontologia. Isso pode ser confirmado na sequência da
frase, em que assim se expressa: ―De fato, o movimento fenomenológico, iniciado há quase um século, teve o
mérito de trazer o discurso filosófico para o mundo da existência. Quase todas as filosofias anteriores
exploravam o mundo metafísico das essências, os princípios últimos da ética e a constituição subjetiva do
homem. A fenomenologia arrancou do fato, a existência‖ (PEGORARO, Olinto. Existência humana é existência
cuidadosa. O Mundo de Saúde, São Paulo, ano 33, n. 2, p. 136-142, 2009. Disponível em: http://www.saocamilo-
sp.br/pdf/mundo_saude/67/136a142.pdf. Acesso em: 05 jul. 2010.).
267
PEGORARO, 2009, p. 136-142.
268
Embora tais elucubrações ganhem notoriedade ao circularem nos meios acadêmicos, vale ressaltar que
historicamente possuem, também, a força de ―vazarem‖ desses ambientes em direção à cultura e sociedade,
fomentando, assim, discussões que acabam por envolver as massas, de alguma forma. Sem dúvida, diálogos
semelhantes aos que têm sido travados em torno de assuntos atuais, como a ecologia, são alimentados por uma
consciência de cuidado do planeta que tem como ―arrimo‖ estruturas conceituais como, por exemplo, as
propostas por Heidegger.
103

1.2 O Pastor do Ser: A Escuta do Ser e o Questionar dos Entes

Na carta sobre o humanismo, de 1947, Heidegger critica a noção humanista e


metafísica que concebe o ser humano como ―animal racional‖, como ser meramente dotado de
269
razão . Como se viu anteriormente, o ser humano, enquanto Dasein é o único ser que
indaga sobre o sentido do ser. Mas, tal indagação não está a serviço da sede desmedida pelo
saber racionalizado, característica marcante da modernidade, afinal, na ótica heideggeriana o
Dasein é descrito como cuidado. Portanto, se ao ser eminentemente racional Heidegger
contrapõe o ser do Dasein, isso também traz implicações para a maneira de se relacionar com
o ser. Para ele, nesse sentido, o que distingue o ser humano de outros entes é exatamente essa
sua relação com o ser, especificamente a maneira como o cuida, como o resguarda: sua tarefa
primordial, pois, é a de pastor do ser:

―O ser humano não é senhor do ente. O ser humano é o pastor do ser. Nesse
―menos‖ o ser humano não só não perde nada, como ganha por chegar à verdade do
ser. Ganha a pobreza essencial do pastor, cuja dignidade consiste em ser chamado
pelo próprio ser para a guarda de sua verdade‖ (tradução nossa). 270

Percebe-se que a metáfora utilizada por Heidegger pretende ressaltar o fato de que
não é tarefa do ser humano, enquanto pastor do ser, agir no mundo de forma a reger o ser, a
manipulá-lo como tendo sobre ele domínio. Antes, sua tarefa é servir-lhe em obediência, à
escuta de sua verdade. A ―pobreza essencial do pastor‖ indica, assim, sua tarefa afetivamente
cuidadora e, nesse sentido, proteger o ser não significa colocar a própria força à disposição,
como se esta estivesse a serviço de decidir o que é melhor para o ser protegido, como os
adultos costumam fazer com as crianças. Não é o ser humano que decide pelo destino do ser
(o vir-a-ser), mas, ao contrário — despojando-se de toda a tentativa de reificá-lo —, está
submetido ao seu destinar. Há de se notar, nesse sentido, uma diferença entre o propor-se
silencioso do ser e o questionar dos entes. Quanto a isso, é digno de nota o fato de que a

269
Cf. HEIDEGGER, Martin. Carta sobre el humanismo. Traducción de Helena Cortés y Arturo Leyte. Madrid:
Aliaza Editorial, 2000, p. 17-18. Disponível em:
http://www.usma.ac.pa/web/DI/images/Eticos/Carta%20Sobre%20el%20Humanismo.pdf. Acesso em: 06 jul.
2010.
270
El hombre no es el señor de lo ente. El hombre es el pastor del ser. En este ―menos‖ el hombre no sólo no
pierde nada, sino que gana, puesto que llega a la verdad del ser. Gana la esencial pobreza del pastor, cuya
dignidade consiste en ser llamado por el propio ser para la guarda de su verdade (HEIDEGGER, 2000, p. 18.).
104

história do pensamento mostrou que o questionar é desde há muito a característica


determinante do pensar. Segundo Bruno Forte, isso não é por acaso:

[...] o esquecimento do ser e a concentração sobre os entes, típicos da metafísica


ocidental, que, nesse sentido, é a história do niilismo, do abandono do ser em favor
das essências domináveis do pensamento, induziram o existir, que é o homem
pensante, a posicionar-se como o questionador, que pretende conhecer não o ser da
coisa, mas ―o que ela é‖, justamente para dominá-la. A superação da metafísica,
entendida como retrocessão (―Schritt zurück‖) na direção do originário, exigirá
necessariamente o abandono dessa atitude pretensiosa e dominadora do existir, para
chegar a uma atitude de acolhida radical do ser que se doa, em que o questionar cede
lugar ao ser questionado, a pergunta instrumental converta-se em escuta silenciosa e
recolhida, o dizer torne-se o deixar-se dizer por quem escuta a linguagem. 271

―Qualquer que seja o modo como escutamos, cada vez que escutamos algo, o escutar
é sempre aquele deixar-se dizer que já contém todo perceber e representar‖. 272 Isso quer dizer
273
que o ser vem à linguagem no pensamento meditativo, e não calculador — Heidegger
novamente propõe, então, uma metáfora: ―a linguagem é a casa do ser‖. Com tal afirmação,
Heidegger intenta apontar para a essência da linguagem, e não para a representação de um
objeto, não quer, portanto, se referir a estruturas linguísticas. Nesse sentido, só se pode pensar
a linguagem de maneira meditativa quando há um esforço em desacostumar-se a ouvir apenas
aquilo que já se sabia de antemão. Portanto, ―será preciso expor-se a um domínio estranho e
274
não pode haver experiência em sentido verdadeiro senão nessa exposição ao estranho‖.
Uma experiência com a linguagem é radicalmente diferente de seu entendimento como
conhecimento científico. Isto não quer dizer que tal conhecimento seja impossível, mas
275
apenas que ―não se abre à experiência do pensamento que interroga o ser da linguagem‖.
Percebe-se, assim, que esse discurso de Heidegger quanto à essência da linguagem, na
verdade, é uma crítica ao pensamento metafísico que, aliado à técnica, torna-se ―surdo‖ aos
apelos do ser na linguagem.
Há, portanto, um movimento dialético do mostrar-se e retrair-se do ser que, nesse
momento reflexivo de Heidegger, se manifesta na relação entre o dizer originário e o silêncio
276
(possível mediante o ouvir) originário, concomitantemente . Nesse movimento, a palavra

271
FORTE, 2003, p. 105.
272
FORTE, 2003, p. 105.
273
Cf. DUARTE, André. Heidegger e a linguagem: do acolhimento do ser ao acolhimento do outro. Disponível
em: <http://works.bepress.com/cgi/viewcontent.cgi?article=1009&context=andre_duarte>, p. 3. Acesso em: 06
jul. 2010.
274
Cf. DUARTE, p. 12.
275
Cf. DUARTE, p. 13.
276
Semelhante à alētheia heideggeriana, visto em ―2.2.2‖.
105

277
surge do silencio, e a ele retorna — a linguagem, assim, é lugar do advento e do êxodo .
Heidegger chama a atenção para o fato de que a manifestação do ser em seu dizer pode
278
seduzir as pessoas a tentar retê-lo , por temerem perder o seu vigor. Para ele, a cultura
ocidental cedeu a esse apelo, e o resultado disso foi a entificação do ser, ou a sua coisificação.
Forte chama a atenção para a crítica de Heidegger à teologia que, segundo ele, acaba por
coisificar Deus nesse afã por absolutizar sua manifestação:

[...] o pensamento da coisificação ou da entificação de Deus não é senão um caso


singular, e talvez o mais exemplar, do niilismo do Ocidente, lugar do ocaso, do
declínio no esquecimento do ser. Reduzir Deus a um objeto entre objetos do pensar,
explicá-lo com a idéia de causa sui, significa simplesmente esvaziá-lo de toda a
santidade e sublimidade, de todo caráter misterioso de seu ser outro, para fazer dele
um ente disponível ao jogo instrumental do conceito de existir‖. 279

Pastorear o ser, portanto, significa acolhê-lo, albergá-lo, enfim, cuidá-lo para que se
mostre sempre no vigor próprio de sua manifestação-ocultação. E, tal acolhimento traz
implicações éticas, como sugere André Duarte:

[...] o acolhimento do ser, que constitui o gesto e o impulso fundamental subjacentes


à meditação heideggeriana tardia sobre a linguagem, traz consigo implicações de
caráter ético, pois permite pensar a possibilidade de um genuíno acolhimento do
outro. No período da ontologia fundamental, o acolhimento do ser próprio
possibilita uma apropriação do dizer e da escuta que, por sua vez, torna possível o
acolhimento do outro com quem coexisto no mundo. 280

Acolher o ser, então, significa acolher o outro, e isso é significativo para uma
hermenêutica que considera as pessoas como ―textos vivos‖. Uma hermenêutica que
considera o ser humano como cuidado, ao mesmo tempo em que ―guardião‖ do cuidado
(pastor que cuida do cuidado e do cuidar), põe um importante desafio: interpretar é cuidar.
Estamos diante da possibilidade de uma interpretação como pastoreio. Não estamos mais

277
Cf. FORTE, 2003, p. 109.
278
Um exemplo bíblico que demonstra essa dificuldade de conviver com os ―escapes‖ divinos e, portanto, com
uma fé que se expõe a todo tempo por não possuir ―garantias‖, pode ser visto no episódio em que Javé alimenta
seu povo no deserto com o ―maná‖. A orientação de Javé aos filhos de Israel era que recebessem a porção de
cada dia, e não retivessem o maná para o dia seguinte. Nesse sentido, a atitude divina, ao mesmo tempo em que
mostrava que deveriam confiar em seu Deus, na certeza de que aquilo que se manifestou ―hoje‖ se manifestaria
também ―amanhã‖, mostrava, também, que insensata seria toda a tentativa de garantir, com as próprias mãos, o
sustento do futuro. Levando-se em conta o fato de que Javé se manifestava por meio da provisão do maná, pode-
se pensar que uma atitude de tentativa de controle dessa provisão, num primeiro momento, certamente facilitaria
aquela atitude (por vezes inconsciente) que até hoje se manifesta numa relação com a divindade marcada
também pela tentação de dominá-lo por meio de práticas religiosas. Ao contrário, portanto, em vez de reterem,
deveriam acolhê-lo em sua subversão (Cf. Ex 16:1-36).
279
FORTE, 2003, p. 107.
280
DUARTE, p. 3.
106

falando, nesse sentido, numa interpretação objetivada, neutra, — em certo sentido, muito
―ocupada‖ e pouco ―despreocupada‖ —, mas numa atitude em que compreender o outro
significa, muitas vezes, se submeter a ele, cuidá-lo ao mesmo tempo em que permitir ser
cuidado. Estamos falando, portanto, de um tipo de interpretação em que as trocas entre texto e
intérprete são mais fecundas. Fiquemos atentos, pois, a estas reflexões, pois se constituirão
―palavras-fonte‖ para os capítulos seguintes.
107

2. UMA HERMENÊUTICA DO CUIDADO PASTORAL: INTERPRETANDO


CARTAS VIVAS

O itinerário percorrido no capítulo 1 buscou fornecer algumas bases conceituais que


servirão para uma melhor compreensão do cuidado, sobretudo o pastoral. Como lá se
observou, esta pesquisa identificou uma lacuna conceitual no que concerne ao caráter do
cuidado no âmbito da Teologia Prática. Normalmente, lidamos com a palavra de forma a
reduzir o seu sentido à ação de cuidar, ou mesmo à atitude de cuidar. Nada mais justo —
alguém poderia objetar —, já que estamos lidando com uma teologia que se diz prática!
Entretanto, uma das teses aqui defendidas é a que assumir um cuidado que ―extrapola‖, e ao
mesmo tempo ―precede‖ as ações e atitudes de cuidado, acaba por abrir novos e fecundos
caminhos para a reflexão teológico-prática. Buscou-se em Heidegger, portanto, as bases dessa
reflexão, pois, como se viu, o cuidado na perspectiva do filósofo alemão adquire contornos
ontológicos, constitutivos — torna-se, então, um ―modo de ser‖. Quando se diz ―ontológico‖
refere-se a uma condição de ser sem a qual não haveria ser. Embora a metáfora seja limitada,
seria semelhante a dizer que um bolo de fubá não seria tal não fosse o fubá: o fubá, então, é
constitutivo de um bolo de fubá. Semelhantemente, quando se diz que o cuidado é um modo
de ser do humano, se diz que não haveria humano sem cuidado. Nesse sentido, o humano não
tem cuidado, não se comporta cuidadosamente — é mais do que isso: ele se traduz como
cuidado.
A partir de agora, as reflexões sobre a hermenêutica do cuidado pastoral levarão em
conta o caráter paradoxal da hermenêutica contemporânea, tal qual exposto na primeira parte.
Considerará, também, a perspectiva heideggeriana sobre o cuidado como plataforma de
compreensão no esforço por propor uma hermenêutica em que interpretar seja cuidar, e os
textos sejam as pessoas. Este capítulo pretende explorar a metáfora paulina das ―cartas vivas‖,
exposta em 2 Coríntios 3:1-3. Antes, porém, há de se investigar as relações entre textos
escritos e textos vivos.
108

2.1 Entre Réplicas e Tréplicas: Sobre Textos Escritos e Textos Vivos

Embora uma ―boa‖ interpretação de um texto escrito dependerá de se considerá-lo no


dinamismo próprio de sua alteridade, não há dúvidas de que quando se lida com pessoas a
medida desse dinamismo é muito maior. Isso quer dizer que a urgência em se superar o
dualismo teórico-prático no ministério pastoral também é muito maior, posto que
normalmente se lida com pessoas numa constância maior do que se lida com textos. O face-a-
face reitera-se mais frequentemente do que o face-ao-texto. Nesse caso, é possível dizer que
um bom ministério pastoral passa, inevitavelmente, pela maneira saudável com que se
relacionam alguns elementos, dentre os quais a reflexão e a ação. Mas, a passagem do teórico
ao prático nem sempre é tão fácil. Quando alguém se depara com um texto escrito, e diante de
si se abrem novos ―universos de significação‖ que o remetem à prática, em muitos casos, ao
se levar tais descobertas para a vida é comum se perceber aquilo que um dia se abriu pela
reflexão se fechar por não se efetivar na prática. E aí se tem a falsa impressão de que é melhor
voltar para a reflexão e lá ficar, pois entre ―universos abertos‖ e ―universos fechados‖, são
preferíveis os abertos. Entretanto, frequentemente não se percebe o fato de que a tal abertura
que se fez no momento da reflexão, só aconteceu porque foi pensada como algo possível de se
desembocar em missão. Ou seja, a abertura só aconteceu porque no ato da reflexão se pensava
em sua aplicação no contexto da própria existência. Assim, conquanto a existencialização da
palavra muitas vezes revele a fragilidade da reflexão, e isso não raro cause frustração, deve-se
entender que a relação entre ação e reflexão é inevitável, sem a qual certamente se cai em
grandes dificuldades.
É comum se encontrar no texto escrito um ambiente menos ―hostil‖, em relação
àquele em que vivem as pessoas. Nesse sentido, quando o intérprete se abre à alteridade do
texto, as réplicas e as tréplicas são perfeitamente possíveis. Ou seja, se o texto diz algo, e o
intérprete o replica, na medida de sua abertura ao diálogo ele será sempre susceptível de ser
treplicado pelo texto. Isso acontece quando se deixa o texto ser ele mesmo, e se cala para
ouvi-lo em sua alteridade. Ao mesmo tempo em que fala da necessidade de se ter consciência
das próprias opiniões prévias, que são inevitáveis no ―embate‖ com o texto, Gadamer chama a
atenção quanto ao fato de não se poder ignorar, por outro lado, a alteridade do texto:

Aquele que quer compreender não pode se entregar de antemão ao arbítrio de suas
próprias opiniões prévias, ignorando a opinião do texto da maneira mais obstinada e
conseqüente possível — até que este acabe por não poder ser ignorado e derrube a
109

suposta compreensão. Em princípio, quem quer compreender um texto deve estar


disposto a deixar que este lhe diga alguma coisa. Por isso, uma consciência formada
hermeneuticamente deve, desde o princípio, mostrar-se receptiva à alteridade do
texto [...] O que importa é dar-se conta dos próprios pressupostos, a fim de que o
próprio texto possa apresentar-se em sua alteridade, podendo assim confrontar sua
verdade com as opiniões prévias pessoais. 281

Para esses intérpretes — os que respeitam a alteridade do texto — é indiferente lidar


com textos escritos ou com pessoas, pois aprenderam lidar com a diferença. Entretanto,
quando não se é afeito à irredutibilidade do outro, em muitos casos, preferem-se os textos
escritos, pois, neste caso, não há tréplicas. Ou seja, o texto pronuncia algo, o intérprete o
replica, e a história termina, pois o processo hermenêutico já se definiu, na medida do
intérprete é claro. O mesmo não acontece quando se lida com pessoas, pois ao replicar o
interlocutor, na maioria dos casos se é treplicado, ainda que o intérprete não seja aberto à
diferença 282. Não raro, nesses casos, o relacionamento é quebrado, e mágoas e ressentimentos
se manifestam. Mas, dificilmente alguém se ressente de um texto escrito 283, pois a alteridade
do texto escrito é mais limitada em relação à alteridade do texto humano. Tem-se, na verdade,
uma relação de objetividade — a relação com o texto escrito —, e uma relação de
intersubjetividade — no caso do texto vivo. Quanto a isso, assim se expressa Henrique C. L.
Vaz:

[...] ao passarmos da relação não-recíproca de objetividade para a relação recíproca


de intersubjetividade, encontramo-nos em face de uma nova forma da dialética em
que dois ―infinitos‖ se relacionam (paradoxalmente!) ou dialeticamente se opõem.
Com efeito, na relação de objetividade, a infinitude intencional do sujeito faz face à
infinitude potencial do universo [...] Mas, na relação de intersubjetividade, a
infinitude intencional do sujeito tem diante de si outra infinitude intencional, e é a
reciprocidade da relação entre ambas que constitui o paradoxo próprio da
intersubjetividade, manifestando-se primeiramente na finitude da linguagem como
portadora do universo infinito da significação. 284

Essa diferença, pois, se dá em função do fato de que a carga de reciprocidade 285, no


caso dos textos vivos, é (no pior das hipóteses) muito maior. Quando duas pessoas se

281
GADAMER, 2003, p. 358.
282
Entretanto, deve-se admitir que isso só vale — em grande medida — para o contexto contemporâneo,
marcado pela conquista da liberdade, em que se percebe uma apologia cada vez maior do respeito ao outro em
sua diferença. Nesse sentido, se poderia discordar dessa concepção na medida em que o olhar se voltasse para
outros contextos e outros momentos históricos, marcados por uma relação etnocêntrica, por uma atitude
refratária a tudo que não se ajuste a determinados padrões sociais e culturais.
283
No pior das hipóteses, dependendo do texto, o ressentimento é associado ao autor do texto.
284
VAZ, Henrique C.L., S.J. Antropologia filosófica II. São Paulo: Loyola, 1992, p. 50 (Coleção Filosofia, 22).
285
Na nota ―15‖ do capítulo 2 (―Categoria da Intersubjetividade‖) da segunda seção, Lima Vaz diz: ―[...] A
aparição do ‗outro Eu‘ ao termo da relação não deve ser entendida, evidentemente, como transposição do meu
próprio Eu, o que negaria a primazia da relação, mas, exatamente, como descoberta do outro na alteridade
110

encontram um-face-ao-outro, tratam-se, na verdade, de dois Dasein, de duas presenças, de


duas ―aberturas‖, de duas transcendências. Há, portanto, uma interpenetração de presenças: a
presença do ser humano como presença no mundo (ser-no-mundo), sua presença ao outro
(ser-com-os-outros) e sua presença a si mesmo. Nesse sentido, lidar com textos vivos rompe
com a ―objetividade do horizonte do mundo‖, pois se trata de uma relação recíproca, na
286
verdade, um ir-e-vir ontológico . Ademais, essa é uma experiência que não se refere à
subjetividade abstrata do Eu penso (cogito), mas trata-se de uma experiência situada, e esse
―lugar‖ hermenêutico também se manifesta de maneira mais intensa quando o que está em
relação são duas pessoas.
O cuidador pastoral tem diante de si, pois, a dupla dimensão do teórico e do prático
na medida em que é levado em seu ministério a lidar constantemente com o texto bíblico e
com os textos vivos. Sua tarefa hermenêutica consiste em interpretar o texto bíblico no
cotejamento constante com os textos vivos, de maneira que um lance luz sobre o outro. E é
desta maneira que o texto das Escrituras adquire sentido no permanente movimento de
refletir-sentir-agir. Quando o cuidador aquiesce à tentação de reduzir o outro ao si mesmo, ou
seja, a alteridade do texto ao mundo da pura identidade, os textos vivos lembram-no da
constante e premente necessidade de respeito à diferença, ao desconhecido, lembram-no,
portanto, do caráter subversivo próprio da experiência hermenêutica. Assim, quando o
cuidador pastoral consegue estabelecer o texto bíblico como ―lugar‖ de construção da
identidade dos textos vivos, e estes como o ―lugar‖ de plenificação daquele, é que as
Escrituras se transformam em Palavra de Deus.

2.2 A Metáfora Paulina

O apóstolo Paulo, em sua segunda epístola, instaura uma reflexão propícia para o que
aqui se quer sugerir, ao falar sobre ―cartas vivas‖. Com efeito, tal metáfora é significativa na

constitutiva do diálogo‖ (VAZ, 1992, p. 81.). Tal afirmativa responde bem a uma questão interessante: A
―projeção‖ de um esquizofrênico (quando, por exemplo, essa ―projeção‖ diz respeito a uma pessoa) pode ser tida
como uma subjetividade e, assim, falarmos de intersubjetividade? Neste caso, tal projeção esquizofrênica se põe
como um outro Eu com o qual o esquizofrênico se relaciona. A resposta de Lima Vaz, como se vê, é negativa,
pois a transposição do meu próprio Eu no outro inviabiliza a reciprocidade constitutiva.
286
Cf. VAZ, 1992, p. 53.
111

medida em que lança luz à ideia de que as pessoas são ―textos‖ que precisam ser interpretados
e interpolados, respeitados e incrementados. O texto bíblico diz:

Começamos, porventura, outra vez a recomendar-nos a nós mesmos? Ou temos


necessidade, como alguns, de cartas de recomendação para vós outros ou de vós?
Vós sois a nossa carta, escrita em nosso coração, conhecida e lida por todos os
homens, estando já manifestos como carta de Cristo, produzida pelo nosso
ministério, escrita não com tinta, mas pelo Espírito do Deus vivente, não em tábuas
de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações. 287

Paulo, neste texto, fala de cartas de recomendação. Essas cartas eram comuns no
mundo antigo, tanto entre os judeus quanto entre os gentios. Frequentemente viajantes judeus
carregavam essas cartas consigo, pois elas autenticavam a idoneidade do viajor perante os
chefes de família que lhes davam acomodações. Tais cartas indicavam que se podia confiar no
viajante judeu, e, assim, garantir-lhe permanência. Além disso, as cartas de recomendação,
entre os cristãos, estavam associadas à prática da hospitalidade. Normalmente, além da
saudação acolhedora, a hospitalidade a estrangeiros envolvia, também, o lava-pés (cf. 1 Tm
5:10) e tudo o que o hóspede precisasse, como alojamento e alimentação (cf. Rm 16:2).
Entretanto, a hospitalidade não se resumia aos momentos vividos na casa do hospedeiro, mas
se estendia por toda a jornada subsequente, pois a assistência envolvia dar ao hóspede
informações sobre a direção, dinheiro, alimentação e, também, cartas de recomendação a
comunidades para onde se destinavam 288. É o caso de dois discípulos — em que, pelo menos
um deles é desconhecido — que são recomendados por Paulo, ao escrever a Tito:

Providencie tudo o que for necessário para a viagem de Zenas, o jurista, e de Apolo,
de modo que nada lhes falte. Quanto aos nossos, que aprendam a dedicar-se à prática
de boas obras, a fim de que supram as necessidades diárias e não sejam
improdutivos. 289

No mundo greco-romano, tal costume também era corrente. Muitos subordinados,


cujos patrões pertenciam a uma classe superior, eram beneficiados por tais recomendações. O
peso dessas recomendações era tal, em se tratando de pessoas de confiança, que em muitos
290
casos eram aceitas para a própria defesa do indivíduo . Tal prática também era comum na

287
2 Coríntios 3:1-3 (ARA).
288
Cf. BENTOGLIO, Gabriele. Missionários itinerantes da igreja primitiva e evangelização: o desafio da
acolhida e da hospitalidade. Disponível em:
http://www.csem.org.br/2009/missionarios_itinerantes_da_igreja_primitiva_e_evangelizacaoo_gabriele_bentogli
o_maio_2009.pdf, p. 11. Acesso em 08 jul. 2010.
289
Tito 3:13-14 (NVI)
290
Cf. KEENER, C.S. Comentário bíblico atos: Novo Testamento. Belo Horizonte: Editora Atos, 2005, p. 515.
112

cidade de Corinto, e o fato de a cidade ser uma rota comercial marítima — o que tornava o
trânsito de pessoas de outras regiões algo comum — já indicava a necessidade de tais cartas.
Muitos eram os ―estranhos‖ que chegavam a Corinto, alguns dos quais vinham de outras
comunidades cristãs, outros simplesmente forasteiros, e essas cartas atestavam o fato de se
tratar de pessoas da mesma fé, ou de ameaças à fé.
Obviamente, Paulo não poderia ser identificado com aqueles muitos forasteiros que
povoavam a cidade de Corinto, o que tornava desnecessária o uso de uma carta de
recomendação frente aos coríntios. Paulo está dizendo que, no caso dos coríntios, ele não
precisaria usar uma carta para eles, tampouco receber uma deles. Afinal, sua vida contrastava-
se a dos muitos cristãos que ali chegavam, pois lhes faltavam as credenciais hauridas do labor
e sofrimento que engendraram a igreja de Corinto. Não que desaprovasse o uso de cartas de
recomendação, afinal ele mesmo recomendou algumas pessoas por intermédio de suas cartas
(cf. Rm 16:1; 1 Co 16:10-11; Fp 2:19-24) 291. A carta a Filemom, por exemplo, é uma dessas
cartas de recomendação. Na verdade, ―Paulo tem muito a dizer, de uma forma ou de outra,
acerca da recomendação elogiosa dos servos de Deus nesta epístola [de 2 Coríntios] (ver
292
também 4:2; 5:12; 6:4; 10:12, 18; 12:11)‖. Mas, afinal, porque Paulo menciona sobre
cartas de recomendação? Colin Kruse sugere:

Temos de presumir que o fato de ele não trazer consigo uma carta de recomendação
a Corinto havia sido pretexto para críticas por parte de alguns obreiros da igreja. É
muito provável que o ofensor (o que lhe causara dores, 2:5; o que procedera mal,
7:12), tenha sido aquele que, ao orquestrar seu ataque pessoal contra Paulo, criticou
a falta de tal carta. Ao assim proceder, o delinquente provavelmente recebeu apoio
moral pelo menos dos ―falsos apóstolos‖ que já se haviam infiltrado na igreja e que
mais tarde se oporiam com toda violência contra Paulo (isto se reflete nos caps. 10-
13). 293

Ao tom discreto do discurso usado nos primeiros capítulos — por exemplo, 2 Co


1:11-2:13 — Paulo contrasta um discurso mais ―enérgico‖ a partir do capítulo 10. Seu
objetivo é se dirigir a alguns cristãos de Corinto que tentam deslegitimar sua autoridade de
apóstolo. Mas, seu alvo principal é o grupo descrito por Kruse como ―falsos apóstolos‖, ou
também conhecidos como ―hiperapóstolos‖ ou ―superapóstolos‖. Rinaldo Fabris esclarece
muito bem:

291
Cf. KRUSE, Colin. II Coríntios: introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 1994, p. 96.
292
KRUSE, 1994, p. 96.
293
KRUSE, 1994, p. 96.
113

[...] seu objetivo é demolir a arrogância de certos ―superapóstolos‖, missionários


itinerantes que se introduziram com cartas de recomendação na comunidade coríntia
e a impressionaram fortemente, vangloriando-se de sua origem hebraica, suas
qualidades carismáticas e habilidades retóricas. Diante de seus cristãos de Corinto,
Paulo também pode-se ―orgulhar‖, mas isto, na perspectiva da morte na cruz de
Jesus, só pode ser um ―discurso louco‖. Ele então se orgulha de suas fraquezas para
que a força do Senhor se manifeste plenamente na fraqueza (2 Co 12:9; 13:4).
Finalmente, Paulo convida os cristãos de Corinto a não forçá-lo a recorrer àquela
autoridade que o Senhor lhe deu, não para destruir, mas para edificar a comunidade
(2 Co 13:10). 294

Portanto, esses falsos missionários dependiam de suas cartas de recomendação como


maneira de afiançar seu acesso à comunidade coríntia para executarem seu trabalho, afinal, ao
contrário de Paulo, não tiveram participação na fundação daquela igreja.
Embora fosse perfeitamente natural que aqueles cristãos forasteiros portassem cartas
de recomendação — afinal, o que mais poderia atestar a idoneidade de estranhos perante a
igreja? — o fato é que Paulo não tinha necessidade de autenticar o seu apostolado uma vez
mais, porquanto era o próprio fundador da igreja de Corinto, e não só isso, mas também o seu
guia espiritual. Ademais, Paulo se coloca como nada menos do que o pai dos coríntios (1 Co
4.14, 15), e as duas cartas endereçadas aos crentes dessa igreja corroboram isso. Além de não
necessitar de ser recomendado, menos necessário ainda seria ter que receber recomendações
em relação aos coríntios, afinal, que pai precisaria ser recomendado por outro aos seus filhos,
e vice-versa?
―Vós sois a nossa carta‖: com esta frase, Paulo indica que os próprios crentes de
Corinto eram a sua carta de recomendação. Ou seja, a própria existência deles refletia a
autenticidade do ministério do apóstolo. Deus operara a transformação na vida dos coríntios
de tal maneira que isso constituía prova mais do que suficiente de que o apostolado de Paulo
era legítimo. Todos podiam ler e conhecer aquelas cartas, afinal eram ―cartas vivas‖,
manifestas a todos. Ou seja, suas próprias vidas se manifestavam como a verdadeira carta de
recomendação de Paulo, afinal, que prova maior da autenticidade de seu ministério poderia
ser dada do que a transformação daqueles coríntios? Paulo não quer convencer os seus
opositores sobre a legitimidade de seu ministério apelando a palavras convencedoras. Em sua
primeira carta aos coríntios, ele diz: ―A minha palavra e a minha pregação não consistiram em
linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a
vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana; e, sim, no poder de Deus‖ (1 Co 2.4, 5). E, ―a
demonstração do Espírito e de poder‖, manifestou-se, sobretudo, nas vidas daqueles crentes.

294
FABRIS, Rinaldo. Para ler Paulo. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 99.
114

Suas credenciais, então, estavam estampadas na própria existência dos coríntios — não
dependiam da sabedoria retórica de Paulo, tampouco de suas qualidades carismáticas ou
mesmo de sua origem hebraica. É por isso que ele, ―mediante a clara exposição da verdade,
pode recomendar-se à consciência de todos, diante de Deus‖ (cf. 2 Co 4.2).
A metáfora paulina não se coloca como um ―acidente‖, ou seja, apenas como uma
declaração circunstancial, como uma apologia do apostolado de Paulo frente às acusações de
seus detratores. Ao contrário, Paulo leva a sério o fato de que as pessoas são mesmo como
―cartas‖ que devem ―dizer‖ algo às pessoas. Nesse sentido, não só ele, mas todos os crentes
devem se expressar conscientemente como ―cartas de recomendação‖. A metáfora, portanto,
se presta a formulações teológicas que confirmam essa intuição de que as pessoas são como
―textos vivos‖. Um exemplo disto pode ser visto em 1 Tessalonicenses, e é significativo que
as circunstâncias que envolveram esta epístola tenham sido bem distintas em relação a 2
Coríntios. Uma delas, digna de ser mencionada, diz respeito ao fato de que o apostolado de
295
Paulo, nesse momento, não está sendo questionado , como em 2 Coríntios. Entretanto, não
obstante a isso, vemos no capítulo 1 desta carta, Paulo dando aos Tessalonicenses instruções
de como se apresentarem aos crentes na Macedônia e na Acaia: Paulo expressa sua alegria por
saber que os crentes de Tessalônica permaneciam a viver como cristãos devotos e
abnegadamente amorosos (cf. 1 Ts 1:2-3), a despeito de sua ausência; além disso, mantinham
a firmeza da esperança em Cristo (cf. 1 Ts 1:3), e se tornaram imitadores de Paulo e de Cristo
(cf. 1 Ts 1:6). Essa maneira de receber o evangelho de Cristo fez com que os tessalonicenses
se tornassem modelo para os crentes da Macedônia e da Acaia (cf. 1 Ts 1.7). Paulo estava
grato a Deus por ver que aqueles cristãos, por meio de si mesmos, propagavam a mensagem
do Senhor, não só na Macedônia e Acaia, mas em toda a parte ((cf. 1 Ts 1.8). Nesse sentido, o
apóstolo podia recomendá-los a outros crentes, pois eram verdadeiras ―cartas vivas de
recomendação‖, mensagem ao mundo.
É inegável a intensa e comovente preocupação de Paulo com as pessoas. Ele decidiu-
se por elas, sofreu por elas, cresceu com elas. E essa vocação está baseada em sua convicção
de que Cristo não viera a este mundo para outra coisa senão resgatar pessoas. Portanto, tudo o

295
Isso pode ser percebido na elaboração da saudação, em que Paulo contenta-se em apenas mencionar o seu
nome e o de seus coautores. Normalmente, os escritores cristãos acrescentavam à estrutura usual de abertura das
cartas, elementos que expressassem sua fé. Paulo, por exemplo, usa em todas as outras cartas de sua autoria
(exceto 2 Tessalonicenses) uma autodescrição, como, por exemplo, ―apóstolo‖ ou ―prisioneiro por Cristo‖. Tais
elementos objetivavam expressar sua posição em Cristo para dirigir-se a seus leitores (ver MARSHALL,
Howard I. I e II Tessalonicenses: introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 1984, p. 69 (Série
Cultura Bíblica.).
115

mais poderia esperar, diante da urgência de restaurar aqueles que eram nada menos do que a
imagem e semelhança do Deus invisível. Portanto, quando Paulo defende-se diante de alguns
maliciosos coríntios está, na realidade, reafirmando o valor incondicional de todos eles. Na
verdade, está dizendo: ―Vocês me pedem cartas de recomendação? Olhem para vocês
mesmos! Olhem para o que eram, e agora vejam o que são! Valorizem o que Deus fez em
suas vidas, e então não precisarão mais me pedir as credenciais. Vocês são as minhas
credenciais, são as minhas cartas!‖. A intensidade de sua preocupação com pessoas pode ser
vista nas seguintes palavras: ―Meus filhos, novamente estou sofrendo dores de parto por sua
causa, até que Cristo seja formado em vocês‖ (Gl 4.19 - NVI).
116

3. O ―SENDO HUMANO‖ E AS IMPLICAÇÕES PARA O CUIDADO PASTORAL

Vimos, no início da primeira seção, que o filósofo considerado o principal expoente


da filosofia da existência, o alemão Martin Heidegger (1889-1976), ao procurar elaborar
concretamente o problema do sentido do Ser, chama a atenção para o seu caráter verbal. Com
isso, ao mesmo tempo em que critica a modernidade ocidental por sua tendência a conceber o
ser substancialmente, e por isso mesmo substantivamente, assevera o fato de que o ser é puro
evento, o movimento constante de manifestação e encobrimento e que, portanto, não pode ser
coisificado.
Embora o seu sistema, como qualquer outro, mereça críticas aqui e ali, o fato é que
muito do que se convencionou pensar hoje em termos de ontologia do humano, tem em
Heidegger e em outros pensadores que por ele foram influenciados a sua razão de ser. Tais
contribuições podem ser mais bem compreendidas na medida em que se olha para a história
do pensamento, e se percebe os grandes reducionismos antropológicos que, entretanto,
avançaram paulatinamente para uma concepção mais lúcida da constitutividade do ser
humano. Com efeito, hoje se sabe que há muito mais elementos que interferem na
constituição do ser humano, do que se pensava anteriormente, e que tais elementos não o
determinam pontualmente, de uma vez por todas, mas ao longo de sua existência. Daí, a
impossibilidade de se conceber o ser como um sido, ou seja, como algo que ficou no tempo e
já não é mais.
296
O caráter verbal, pois, remete a uma concepção de ser como um sendo . Ora, isto
tem implicações para a ontologia antropológica, mas também para a maneira como se
compreende os ―textos em movimento‖ que chegam às comunidades eclesiais — implicações,
portanto, para o próprio ministério pastoral. Consideremos, pois, neste momento, esse
acontecer do ministério pastoral — que ressalta o caráter verbal e não substantivo do ser —,
tomando por empréstimo alguns elementos constitutivos do ser humano como ―caminhos‖
capazes de lançar luz à compreensão do modo de ser do cuidador. Sugere-se aqui, portanto, de
forma sumarizada, aquilo que pode caracterizar o sendo do ministério pastoral a partir de
―lugares‖ constitutivos. Ou seja, quais os possíveis ―lugares‖ de construção do humano, e de

296
Considera-se desnecessária a citação de fontes que fundamentem esses argumentos, em virtude do fato de que
já foram suficientemente citadas no capítulo 1 desta seção (Cf. ―1. Uma Filosofia do Cuidado‖).
117

297
que forma sugerem também a construção de um ministério poimênico? Assim, elenca-se
três ―lugares‖ constitutivos, a partir de onde o ser humano se realiza enquanto tal: o ―mundo‖,
o ―outro‖ e o ―Outro‖.

3.1 O Mundo Como Lugar

Inicialmente, propõem-se aqui o mundo como lugar de construção do sendo humano,


e, consequentemente, do sendo do ministério pastoral. Como se viu, um dos modos possíveis
do Dasein (que é o ser humano considerado no seu modo de ser) é como ser-no-mundo. Isto
significa que o ser humano não é um sujeito ―puro‖ — ou seja, não possui a intuição imediata
de si mesmo —, mas se experimenta como um sujeito situado. Isto também equivale a dizer
que a experiência de ser situado em sua finitude faz com que se torne objeto de si mesmo e,
298
portanto, tal experiência leva o ser humano a interrogar-se sobre si mesmo . O mundo, na
concepção heideggeriana, passa a ser um termo que designa a esfera da relação de
objetividade que o ser humano tem com a realidade. Nesse sentido, uma das formas de ser do
ser humano é por meio de sua presença mundana, sua presença aos objetos e eventos cuja
relação constitui o mundo 299. Lima Vaz sintetiza a análise de mundo na ótica heideggeriana:

O fio que a conduz é a noção de ―mundo ambiente‖, povoado de ―coisas‖


(prágmata) [...] com as quais o homem entra em relação de uso. Trata-se, pois, de
coisas-utensílios que, como tais, desvelam imediatamente a sua característica de
―estarem ao alcance das mãos‖ (Vorhandenheit) [...] Heidegger substitui
definitivamente a concepção do mundo como kósmos, ou totalidade ordenada dos
entes, pela concepção de mundo, como o que torna possível, na correspondência
entre o ―em quê‖ (Worin) e o ―em vista de quê‖ ou perspectiva (Woraufhin), a
manifestação do ―ente‖ (seiendes). 300

Para Heidegger, o mundo também ―se constrói como habitação ou domicílio, lugar
da presença humana (oikos, oikuméne, domus) e da sua permanência (manere, mansio,

297
―Ministério poimênico‖ ou ―ministério pastoral‖, aqui, denotam o ―ministério‖ exercido por um ―cuidador‖,
em sentido amplo, portanto, não se restringe tais expressões a um ministério específico exercido por uma classe
específica de pessoas, como, por exemplo, o clero. Refere-se, também, a uma expressão possível do modo de ser
da igreja-no-mundo, enquanto comunidade de cuidado, a saber: o modo pastoral.
298
Cf. VAZ, 1992, p. 9.
299
Cf. VAZ, 1992, p. 15.
300
VAZ, 1992, p. 19.
118

maison, mansão) na vastidão do espaço‖. 301 Em uma de suas conferências, realizada em 5 de


302
agosto de 1951, com o título ―Construir, Habitar, Pensar‖ , Heidegger pretende pensar o
sentido de habitar e construir. Para ele, ao nos remetermos a pensar a questão do habitar, e
também a do construir, somos logo inclinados a uma compreensão que se relacione
diretamente com moradia, e com técnicas de construção, respectivamente. Entretanto,
segundo Heidegger, habitar e construir não se restringem a essa compreensão prosaica. No
que respeita ao habitar, o ser humano não é no mundo assim como a água é no copo, ou a
roupa no guarda-roupas: não se trata de um ente dentro do outro. Diferentemente, habitar é o
modo da relação (ser) humano-mundo, em que nem o mundo nem o ser humano se colocam
como algo pronto, mas se perfazem numa relação que se dá existencialmente, a cada
momento, a cada acontecimento.
Por outro lado, geralmente achamos que construir é o meio cuja finalidade é o
habitar. Ao contrário, para Heidegger, construir já é em si um habitar. Construir, então, é o
modo de compor o ambiente, mas só sabemos compor o ambiente se já o habitamos — só
construímos à medida que já habitamos. Construir e habitar, então, guardam uma relação de
interdependência.
A temática do ser-no-mundo também é desenvolvida por Heidegger, de forma
303
análoga, em ―A Origem da Obra de Arte‖ . Lá, Heidegger busca a origem tanto do artista
quanto da obra, e conclui que o artista é a origem da obra, a obra é origem do artista, e ambos
são o que são a partir da arte. Grosso modo, pode-se dizer, então, que um artista só se faz em
sua obra, fora do qual não há artista — assim considerado, Van Gogh só é o que é graças às
suas obras. Não nos interessa aqui os detalhes desse percurso feito por Heidegger, mas apenas
o fato de que o homem é um ser-no-mundo, e para quem o mundo não se reduz a uma
realidade a contemplar, mas existe como conjunto de utensílios que devem ser utilizados e
cuidados por ele. Ao se utilizar desse conjunto de instrumentos, que estão à mão, o homem
transforma o mundo, e ao fazê-lo transforma a si mesmo. ―O homem compreende uma coisa
quando sabe o que fazer dela, do mesmo modo como compreende a si mesmo quando sabe o
304
que pode fazer consigo, isto é, quando sabe o que pode ser‖ . Nesse sentido, há de se
perceber uma relação entre aquilo que se é e as próprias coisas, pois frequentemente elas
revelam um pouco do ser das pessoas. Quando se diz, por exemplo, que se gosta disso e não

301
VAZ, 1992, p. 22-23,
302
HEIDEGGER, 2002, p. 125-141.
303
Cf. HEIDEGGER, Martin. A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70, 1999.
304
REALE; ANTISERI, 2003, p. 584.
119

daquilo se expressa um pouco do que se é. Ou seja, a forma com que nos relacionamos com as
coisas mostra um pouco do que nós somos.
Em primeiro lugar, vale salientar que o ser-no-mundo não se vê descolado do ser-
com-os-outros, pois assim como o ser-no-mundo se mostra pelo cuidar das coisas, o ser-com-
os-outros se expressa pelo cuidar das pessoas. Isso quer dizer que o ministério pastoral se
delineia assumindo uma identidade à medida que os cuidadores se implicam no processo de
edificação das pessoas. Mas, por hora, o que aqui se deve ter em mente é o trabalho enquanto
o projetar-se do Dasein sobre o mundo; tem-se em mente o obrar do obreiro, o seu construir,
que significa, também, o seu habitar. E, neste sentido, tal qual não há habitação fora da
construção, e nem artista fora de sua obra, o trabalho pastoral tem o poder de fazer o
trabalhador da seara. Obviamente, isso altera a perspectiva corrente de um cuidador pastoral
como um profissional que exerce uma função circunstancialmente, e por ela é remunerado.
Há, então, uma relação intrínseca entre aquilo que um cuidador pastoral realiza, e aquilo que
ele é.
Também é de particular importância o trabalho que se realiza como expressão dos
talentos que se tem. Alguém que cuida do outro, pode fazer isso através de variados talentos
ou dons: pode-se cuidar ensinando; pode-se cuidar aconselhando; pode-se cuidar exercendo
talentos artísticos (por meio do exercício da música, em todas as suas nuances, ou da pintura e
poesia); enfim, pode-se cuidar de inúmeras maneiras. Também cada maneira peculiar desse
obrar pode ser exercida num determinado raio de ação ministerial: com doentes terminais,
com órfãos, com idosos, num contexto de uma comunidade carente, ou mesmo entre as
vítimas de uma tragédia. Além disso, o engajamento com que se realiza cada uma dessas
―obras‖ repercute em nosso ser, de maneira a nos tornar melhores ou piores. Portanto, essa
ampla gama de possibilidades, paulatinamente delineia o que nos tornamos ao longo da vida.
Ou seja, os talentos que vão se manifestando no processo ministerial, os gostos que vão se
exteriorizando, ou mesmo as ―ferramentas‖ do trabalho pastoral que vão sendo utilizadas, tais
como as Escrituras ou a própria palavra do cuidador, tudo isso tem o poder de determinar
constitutivamente quem somos, e consequentemente, o que é o ministério poimênico.
Também se deve notar que a cultura, conquanto seja manifestação da
intersubjetividade humana (como se verá a seguir), também se manifesta concretamente.
Nesse sentido, ao se lidar com a concretude manifesta nos elementos ―simbólicos‖ de uma
cultura, também se engendra e se dá forma ao ministério pastoral, desde que o que se afirma
aqui não é o ser do ministério, mas o seu sendo, posto se manifestar e se construir
permanentemente. Entretanto, deve-se observar que a cultura — enquanto expressão do ato
120

criativo humano — deve ser resposta ao ato criativo divino. Isso quer dizer que lidar com os
elementos da cultura — construí-la, e por ela ser construído —, conquanto interfira na
constituição do ministério pastoral, subsume-se ao relacionamento com Deus por meio da
solitude, como se verá no último tópico deste capítulo. Talvez, entretanto, isso ajude a
responder à pergunta: em que medida deve-se dar ouvidos à cultura, e em que medida deve-se
haurir o ministério pastoral das Escrituras e do relacionamento com Deus?

3.2 O outro Como Lugar

O ser humano é um acontecer, um realizar-se permanentemente nos embates 305 com


o outro — como se evidenciou até aqui. E essa realização, cuja principal característica é o
movimento, inicia-se a partir de uma ―posição‖, um ―lugar‖. Contudo, esse ―lugar‖ não diz
respeito a um lugar físico, geográfico, mas a espaço de realização que acontece na
306
subjetividade de um outro . O outro como lugar concerne ao fato de que ninguém se
constrói apenas a partir de si mesmo, mas, o si mesmo se faz necessariamente a partir da
relação com o outro. O outro como lugar, então, remete ao cuidado do outro, no sentido de
que cuidar incrementa o ser, enquanto que o descuido decrementa-o. Segundo Leonardo Boff,
os problemas contemporâneos comprometedores da construção da identidade humana são
307
gerados pelo descuido, descaso e abandono, características de nossa crise civilizacional .
Conquanto o ser humano busque ―remédios‖ que curem essa falta de cura (cuidado), são,
contudo, insuficientes, pois não tocam à raiz do problema essencial. Boff elenca alguns
grupos que buscam resolver essa crise: muitos são os que se rebelam, mas suas vozes não são
suficientemente fortes para que se façam ouvir; outros não acreditam mais na capacidade de
regeneração do ser humano, em função de sempre ressaltarem o seu lado negativo; outros
possuem fé, mas suas propostas são inadequadas por serem simplistas e não prestarem

305
A expressão ―embate‖ aqui não tem a conotação de peleja, negação do outro, mas de encontro — no dizer de
H.C. de Lima Vaz, significa um ir-e-vir ontológico (Cf. VAZ, 1992, p. 53). A expressão agón, por exemplo —
que normalmente possui a conotação de embate, peleja — possui o sentido de fazer as pessoas convergirem para
um mesmo ambiente, em torno de uma mesma questão. Essa força de fazer as pessoas se reunirem em torno
daquilo para o qual se juntam, por estranho que possa parecer, também se confunde com o sentido de assembleia,
lugar de assembleia (cf. PUCHEU, Alberto. Filosofia e poesia: um encontro pelo agón. Sofia, Vitória, ano 3, n.
4, p. 135-148, 1997.).
306
Cf. SAFRA, 2005, p. 7.
307
Cf. BOFF, Leonardo. Saber Cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 1999,
p. 18.
121

atenção à causa real das mazelas; há aqueles que acreditam que se deve ―reforçar‖ a moral, e
308
ainda outros que o problema seria resolvido com mais educação e mais informação .
Embora todas essas alternativas sejam importantes, não são suficientes, pois urge a
necessidade de ―uma nova redefinição do ser humano e de sua missão no universo, no
contexto de uma nova aliança de paz e de sinergia [...] para com a Terra e com os povos que
nela habitam‖. 309
O outro como ―lugar‖ também remete à vida em comunidade, à construção de uma
consciência relacional. E esse espaço é eivado de sentido, como quando alguém diz que
―precisa conquistar o seu próprio espaço‖, onde evidentemente as coisas fazem sentido para
ele. O que cabe aqui perguntar, então, é: o que o ―outro como lugar‖ tem a ver com a
constituição do ministério pastoral?
O pressuposto que aqui se esboça é o de que a intersubjetividade, cuja melhor
estrutura é a vida em comunidade, é constitutiva da identidade, e que, além disso, também é
constitutiva de um ministério pastoral saudável. Nesse sentido, a consciência dessa
constitutividade da existência humana facilita a promoção da dedicação e, portanto,
potencializa o cuidado com o outro. Ou seja, tornar-se consciente do fato de que o eu se
constitui e subsiste na relação íntima e saudável com o tu, favorece e incrementa esse cuidado,
além de corroborar o fato de que ―um ser dedicado é aquele que denota uma afeição profunda
310
pelo ente focado e se reconhece dependente e pertencente ao outro‖. Tal pressuposto,
ademais, pavimenta o ―caminho‖ para uma redefinição do ministério pastoral, ao sugerir a
redefinição de dois tipos de relação: a relação membro-Corpo e a relação clero-laicato.
Ambas as relações, pois, apontam para a necessidade de uma poimênica que se construa por
meio da interdependência: membros que cuidem do Corpo e por ele são cuidados; pastores
que cuidem de suas ovelhas ao mesmo tempo em que desfrutem do cuidado delas. Afinal,
essas relações ainda supõem uma relação dialógica entre Dasein. Trata-se de uma relação
ontológica, e como tal deve subsidiar quaisquer outras relações, pois sempre serão relações
entre pessoas. Nesse sentido, assim como a hegemonia do cogito perde sua força em face da
irrupção da intersubjetividade, também não cabe mais, depois de dois mil anos de
cristianismo, uma separação entre entes que não podem viver separadamente. Ou seja, tal
como o movimento intersubjetivo mostrou-se legítimo enquanto inerente à constitutividade

308
Cf. BOFF, 1999, p. 20-23.
309
BOFF, 1999, p. 22.
310
SILVA, Marta Nörnberg da. Cuidado(s) em movimento: a ética do cuidado e a escuta sensível como
fundamento do cuidado do outro. In: NOÉ, Sidnei Vilmar (Org.). Espiritualidade e Saúde. 2. ed. São Leopoldo:
Sinodal/EST, 2005, p. 17
122

das pessoas, o mesmo se dirá do ministério pastoral. Não há ministério pastoral saudável e
eficaz sem que tais relações sejam também saudáveis e eficazes.
A primeira relação aqui elencada, a relação membro-Corpo, sinaliza para uma
questão importante: como pensar a relação entre as partes e o todo? A questão não é, de
forma alguma, fácil de resolver. O apóstolo Paulo usa uma metáfora para mostrar como se dá
essa relação entre cristãos no contexto da igreja de Cristo: a metáfora do Corpo (cf. 1 Co
12:12-31). Ali, a relação entre as partes e o todo é designada como sendo uma relação entre
unidade e diversidade. Nessa primeira carta aos coríntios, Paulo sugere que ―São precisos
muitos membros diferentes para formar um corpo humano. Os membros diferem,
inevitavelmente. Mas, as suas diferenças não afetam o fato de que há uma unidade
311
fundamental‖. Há, contudo, outro problema decorrente da relação membro-Corpo: como
pensar esses elementos quando estão juntos, e quando estão separados? Quais os efeitos
possíveis? O Novo Testamento toma por empréstimo, da cultura grega, o termo ekklesia, que
pressupõe tanto o ajuntamento dos santos quanto sua dispersão. De modo geral, quais as
implicações dessa relação consoante a esses dois problemas?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que a relação entre unidade e diversidade não é
uma relação entre dois entes que subsistem separadamente. Aquilo do qual se fala que é uma
unidade, ao mesmo tempo é diverso. Isto também quer dizer que as identidades se
copertencem: uma condição só se efetiva em face da outra. Unidade e diversidade falam de
uma e a mesma coisa, mas com efeitos distintos. A unidade lembra aos cristãos que a aparente
impressão de individualidade que a identidade de diverso confere, na verdade, não pode
ofuscar o fato de que um membro é o ―prolongamento‖ do outro, no sentido de estarem
ligados pela mesma vida. Nesse sentido, o que dizer da mão, senão que é um prolongamento
do braço? Isso, também, traz implicações para a maneira como os cristãos se relacionam no
seio da coletividade. Uma comunidade que se rege pela lógica do Corpo, faz parecer absurda
aquela atitude tão recorrente numa cultura que aprendeu a reger-se pelo individualismo: viver
como se não houvesse a quem responder pelo que se é e pelo que se faz. Responder ao outro,
nesse nível sistêmico, demonstra respeito e consideração por ele(a), pois lhe dá o direito de ,
em amor, questionar, desafiar, e até confrontar. Neste sentido, uma comunidade que se rege
pela lógica do Corpo é uma comunidade onde cada qual dá aos outros o direito de conhecê-lo
melhor, e de permitir aos outros a oportunidade de serem agentes no processo do próprio
crescimento. Ademais, uma comunidade que se rege pela lógica do Corpo dá a cada membro

311
MORRIS, Leon. I Coríntios: introdução e comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, 1981, p. 139.
123

a impressão de que está entretecido na ―teia‖ do cuidado dos outros, e que, portanto, as ações
e reações têm repercussões, o que sugere um compromisso eticamente responsável para com
os demais. Tal compromisso baseia-se no fato de que todos são responsáveis por todos, pois
ninguém pode viver para si, sem que colha os prejuízos disso. A unidade, nesse sentido, é
terapêutica, capaz de fomentar a cura sobre si mesma. Ou seja, quando os membros vivem
sob a unidade, preservam e cuidam do Corpo.
Por outro lado, a diversidade lembra à comunidade de cuidado que, conquanto ela se
reja pela lógica do Corpo que se manifesta na unidade, não pode se esquivar do fato de que
isto não anula a pluralidade, não arbitra, pois, contra a diversidade. Seu modo de ser uno não
subsiste fora do diverso. Destarte, a comunidade eclesial que se rege pela lógica do Corpo é
uma unidade, mas não uma monocultura. E, desde que não o seja, não sofre dos males desta
última. Dialeticamente, portanto, essa comunidade também se rege pela lógica da diversidade,
e uma vez que existam pessoas dispostas a assumirem as implicações de se viver em unidade,
concomitantemente também abrem espaço para o trabalho missional no seio do Corpo,
fazendo surgir, assim, a variedade de dons a serviço do cuidado da comunidade. Assim, os
membros de tal comunidade encontram na própria diversidade do Corpo a cura de si mesmos.
A segunda questão a ser considerada na relação membro-Corpo é: como pensar os
elementos da relação quando estão juntos, e quando estão separados? Novamente é preciso
começar da mesma forma: a igreja é uma só, mais com dois modos de ser. A palavra grega
312
traduzida por igreja é ekklesia . No Novo Testamento esta palavra é usada cerca de 115
vezes, referindo-se à igreja universal (todos os crentes, de todas as idades, em todos os tempos
e lugares), à igreja local (a operação visível da igreja universal em um tempo e espaço
313
determinado), ou à própria reunião dos crentes em qualquer lugar . Falar da ekklesia
significa referir-se a dois modos de ser que refletem a natureza da igreja estabelecida por
Cristo. O primeiro se exprime enquanto ―assembleia dos santos‖, ou seja, a igreja enquanto
ajuntamento. O segundo modo de ser refere-se à igreja como ―dispersão dos santos‖. Ambos
os modos traduzem a natureza da ekklesia. Por um lado, assim como no mundo grego ekklesia
se referia a uma conclamação do Estado a todos os cidadãos, para que estes viessem se
encontrar uns com os outros a fim de assumirem seus direitos e deveres, a Igreja também é a

312
O termo ekklesia tem sua origem no mundo da Grécia clássica, e denominava a grande assembleia dos gregos,
que era uma convocação de todos os cidadãos da cidade (pólis) para um grande ajuntamento, onde se tratava
sobre quase tudo. Embora não se restringissem a assuntos religiosos, essas assembleias sempre começavam com
orações e sacrifícios, e pautavam-se pela ―democracia‖. O termo veio mais tarde a significar qualquer assembleia
convocada.
313
Cf. BARCLAY, William. Palavras chaves do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1988, p. 46.
124

assembleia divina, convocação de Deus para que as pessoas se reúnam, ouçam o que Deus
tem a dizer, e se comprometam com sua palavra. Por outro, se ekklesia se refere às pessoas
que são convocadas por Deus a se ajuntarem, isto significa que elas foram ―chamadas para
fora de suas casas‖ a fim de se apresentarem a Deus e aos demais cidadãos do Reino. Assim,
os ―chamados a se ajuntarem‖ também são os ―chamados a se dispersarem‖.
O conceito de ajuntamento destaca a necessidade da proximidade, do encontro (ver,
por exemplo, Atos 1:4, 8, 12-15). Desde seus primórdios a igreja compreendeu bem essa
necessidade, pelo que se construiu por meio da dinâmica dos relacionamentos possibilitados
pela proximidade entre as pessoas (cf. At 2:42-47). Desde então, sem proximidade não há
igreja, muito menos ministério pastoral. Além disso, vale destacar que tal proximidade
enquanto constitutiva da igreja, no âmbito do ajuntamento se manifesta como ―proximidade
com os que fazem parte do nosso mundo‖. Neste caso, há valor terapêutico em estar próximo
àquelas pessoas que compartilham conosco dos mesmos símbolos, da mesma linguagem, dos
mesmos costumes e valores. Estar exposto às pessoas que fazem parte do nosso mundo
possibilita a consolidação de valores, além do fortalecimento e conforto inspirado por aqueles
que passam por situações semelhantes (cf. 1 Pd 5:9). O cuidado ocorre porque tal
proximidade possibilita que um indivíduo se veja no outro.
O conceito de dispersão lembra-nos de que o ajuntamento não pode se absolutizar,
visto que não é somente nele que se manifesta o cuidado pastoral. Mesmo assim, há muitos
cristãos que ainda acreditam que o ―centro‖ da atividade da igreja é o culto intraparedes, ou
seja, o culto realizado, sobretudo, num templo (hoje, o símbolo maior do ajuntamento nas
igrejas denominacionais). Na verdade, quando consideramos a igreja descrita em Atos,
percebemos que ela se define muito mais por aquilo que acontecia ―fora‖ do que aquilo que
acontecia ―dentro‖. Não temos informações de como era a dinâmica dos cultos primitivos,
mas sabemos o que acontecia nas praças, nos vilarejos, ao longo do caminho, nas viagens a
navio, à porta do templo, nos tribunais, e até nas cadeias. A igreja estava em toda parte, no
meio do povo, espalhada nas diversas profissões, predominante nas faixas mais pobres, mas
também presente entre os de nobre estirpe. Assim, deve-se ter em mente que a dispersão que
se manifesta missionalmente, enquanto igreja-para-o-mundo, além de abrir as portas para o
cuidado do estrangeiro e desconhecido, rompe com o horizonte da familiaridade, em cujo seio
as coisas paulatinamente assumem formas pré-estabelecidas. Nesse sentido, somos cuidados
também na medida em que somos desafiados em nossos valores e costumes. Ao cuidador
pastoral, pois, cabe a tarefa de perceber nesse movimento de ajuntamento e dispersão um
dinamismo capaz de curar as patologias produzidas pela absolutização desses elementos, que
125

podem se expressar sob o signo do ―engessamento‖ (patologia possível quando se absolutiza


o ajuntamento) e da fragmentação (patologia possível quando se absolutiza a dispersão).

A segunda relação importante a ser considerada é a relação clero-laicato.


Infelizmente, se por um lado, há pastores que abdicaram da tarefa de cuidar de suas ovelhas,
por outro, há ovelhas que nunca consideraram isso como uma necessidade intrínseca à
constituição de um ministério eficaz. Ao mesmo tempo em que existem cuidandos ignorados
em suas necessidades, povoando as comunidades eclesiais, também são muitos os cuidadores
que sofrem ao perceber que o cuidado dispensado às ovelhas não é recíproco, como deveria
ser, mas denota apenas uma tarefa profissional de alguém que foi contratado para esse fim. É
cuidado de ―mão única‖, e nada pode estar mais às avessas do projeto de Jesus, e mais
destoante de uma compreensão antropológica saudável. Pessoas que reclamam por cuidado, e
são incapazes de cuidar, não sabem quem são, e muito menos quem é o seu outro. Com efeito,
relações tais como pastor-ovelha, clérigo-laicato, líder-subalterno, mestre-discípulo, quando
consideradas sob uma ótica hierárquica, que se traduza meramente em relações de poder,
podem ser inibidoras dessa compreensão, e, portanto, precisam ser superadas no ministério
poimênico.
Além de uma conscientização por parte do clero e das instituições que tanto podem
obnubilar essa realidade ontológica, necessário se faz que os leigos também compreendam
que não são meros expectadores, ―consumistas de religião‖, mas partícipes no projeto divino
de restauração e construção do humano; não são, por assim dizer, a ―plateia‖, mas ―atores‖ no
grande palco da vida. Eugene Peterson oferece-nos uma oportuna metáfora para falar dessa
necessidade:

Tempestade é o ambiente em que ou perdemos a vida ou somos salvos; não existe


um lugar seguro onde se possa sentar como expectador. Não existe uma
arquibancada de onde se possa admirar os relâmpagos e trovoadas, ondas e espumas
da tempestade. Nós estamos dentro dela, profetas e povo, marinheiros e santos.
Nada mais interessa a essa altura; é um caso de vida ou morte. Qualquer outra coisa
que estiver na agenda não está mais lá. Existe apenas um item: salvação — ou não.
314

Como se vê, as tempestades nos tiram do controle das coisas, inclusive do nosso
próprio destino. Não importa se somos ―profetas‖ ou ―povo‖, o fato é que na vida nem sempre

314
PETERSON, Eugene. A Vocação Espiritual do Pastor: redescobrindo o chamado ministerial. São Paulo:
Mundo Cristão, 2006, p.69. Peterson assim se expressa no contexto em que se propõe a analisar o resgate da
vocação de Jonas, o profeta, a partir da tempestade que se abateu sobre ele e a tripulação do navio que viajava
para Társis.
126

estaremos sentados como ―plateia‖ a analisar o ―espetáculo‖. Por vezes, somos o próprio
―espetáculo‖ 315. Na verdade, quem faz o ―espetáculo‖ está envolvido por demais na trama da
vida para que possa incólume assistir como espectador.
Quando se olha o leigo por essa ótica, também se coloca sobre ele a responsabilidade
pelo cuidado. Isso quer dizer que seus pastores, sacerdotes, líderes, cuidadores por assim
dizer, também precisam do seu cuidado, de sua proteção, de seu respeito e honra. Se por um
lado, muitos clérigos parecem tirar vantagens dessa relação equivocada, por outro, muitos
leigos se mostram indispostos a uma relação recíproca. Há de se buscar, portanto, um
ministério pastoral que não mais sugira que os consumistas sejam a regra, e os produtores a
exceção. Pode-se dizer metaforicamente que, embora vivamos no ―país do futebol‖, não
queremos uma igreja que se pareça com um estádio em pleno jogo: no campo, vinte e dois
homens precisando desesperadamente de descanso, e nas arquibancadas, milhares de
pessoas precisando desesperadamente de trabalho. Continuemos a apreciar o futebol, que
tantas alegrias nos têm dado, mas rejeitemos definitivamente esse modo de ser igreja, que
tanto prejuízo tem trazido a todos nós. Quem quer ser cuidado, precisa cuidar, por isso:
―Cuide de mim para que eu possa cuidar de você‖ — eis o ―remédio‖ para os males que
assombram essa relação.

3.3 O Outro como lugar

Não só o outro se constitui como lugar de realização do si mesmo e do ministério


pastoral, mas também o Outro. Ou seja, o ―espaço entre‖ o si mesmo e o Outro, que se traduz
na relação de proximidade e distanciamento, abertura e fechamento, manifestação e latência,
desvelamento e velamento, ligação e traumatismo, constitui-se ambiente de construção de
uma identidade que se faz a partir da transcendência. O termo transcendência se refere à
forma de uma relação entre o ser humano ―situado‖ e uma realidade que o ultrapassa, assim
como também a realidade que lhe é imediatamente acessível. Mas, apesar desse para além, tal

315
Em 1 Coríntios 4:9 Paulo diz que os apóstolos são como ―espetáculo ao mundo, tanto a anjos como a
homens‖. Ao usar a expressão ―espetáculo‖ (literalmente ―teatro‖) quer destacar o fato de que os apóstolos foram
expostos ao mundo, não numa condição de honra, de privilégio, mas numa condição de fraqueza, de desprezo, de
necessidade, de maneira a serem considerados ―o lixo do mundo, escória de todos‖ (cf. 4:13). Obviamente, tal
condição de maneira alguma se ajusta à tendência — presente em determinados setores do clero — de se colocar
acima dos leigos, conferindo a essa relação de desequilíbrio um valor teológico.
127

realidade se presta ao relacionamento e à compreensão no discurso. A relação de


transcendência se distingue da relação de intersubjetividade, na medida em que ultrapassa os
limites desta última. Ou seja, não se esgota na comunidade humana, e embora se manifeste na
316
história, também a ultrapassa . Lima Vaz diz que a relação de transcendência é o resultado
do ―excesso ontológico‖, que permite que o sujeito se sobreponha tanto ao ―mundo‖ — que
indica a relação de objetividade — quanto à ―história‖ — que se refere à relação de
intersubjetividade —, avançando, portanto, para além do ser-no-mundo e do ser-com-o-outro.
Nas palavras de Lima Vaz:

É desse excesso ou dessa superabundância ontológica do sujeito, expressos


estruturalmente na categoria do espírito que procede, de resto, o dinamismo mais
profundo da História e a inexaurível gestação de formas de busca ou expressão do
Absoluto que acompanha o curso histórico e que é a atestação mais evidente da
presença da relação de transcendência na constituição ontológica do sujeito. 317

Vaz afirma, portanto, que o próprio dinamismo da história, que deflagra as marcas da
criatividade e superação humana, demonstra que a transcendência também é inerente à
constituição humana. Nesse sentido, sem transcendência a história seria uma eterna repetição
do mesmo, e, assim, não seria história.
Segundo Lima Vaz, a relação de transcendência supera as relações de objetividade
(ser-no-mundo) e de intersubjetividade (ser-com-o-outro). Enquanto a relação de objetividade
expõe a exterioridade real do mundo e a de intersubjetividade manifesta-se pela interioridade
318
recíproca, na relação de transcendência há uma ―síntese‖ de interioridade e exterioridade
319 320
— nessa relação, suprime-se, portanto, a oposição entre imanência e transcendência .
Por ser mais abrangente e mais profunda, a relação de transcendência dá novo sentido às
outras experiências, tais como a experiência de utilização das coisas do mundo, por meio do
trabalho, e a experiência de se relacionar e conviver com o outro no âmbito de uma sociedade
ou comunidade 321.

316
Cf. VAZ, 1992, p. 93.
317
Cf. VAZ, 1992, p. 94.
318
Lima Vaz utiliza aqui a expressão ―síntese‖, posto suas reflexões se orientarem, em grande medida, pela
dialética hegeliana. Conquanto se tenha escolhido aqui manter a expressão, deve-se ter em vista que o conceito
de dialética usado neste trabalho não se orienta pelo modelo hegeliano, como já se esclareceu.
319
Essa ―oposição‖ — vale ressaltar — diz respeito a uma relação em que um termo nega o outro. Lima Vaz
refere-se, portanto, ao fato de que a relação de transcendência supera as outras duas, na medida em que a
interioridade de uma delas nega a exterioridade da outra.
320
Cf. VAZ, 1992, p. 94-95.
321
Cf. VAZ, 1992, p. 101.
128

Assim, embora o humano se construa permanentemente nas relações com o outro, e


também por meio de sua presença no mundo, sua relação com o Infinito escancara a
322
consciência, eleva-a em sua potencialidade e agudiza sua virtualidade , pois que se baseia
323
no que Emmanuel Lévinas chamou de a ―ideia do Infinito em nós‖: uma ideia que contém
mais do que pensa conter. Esse é o ―pensamento do inenglobável‖, uma relação sem
antecipação ou domínio do ser, onde a paciência é de vital importância. Uma das
preocupações de Lévinas é pensar de tal maneira que seja possível falar legitimamente de
Deus sem ferir sua transcendência; resguardar sua transcendência, mesmo que pensá-lo
signifique trazê-lo à consciência. Para Lévinas, nesse empreendimento filosófico, pensar Deus
sempre significaria pensar algo que não cabe na ideia — ou seja, o ideado sempre supera sua
ideia no ser humano 324. Para isso, dentre suas muitas propostas, sugere a categoria do desejo,
pois que ―expressa a essência de um saber que mantém ao mesmo tempo relação com a
325
alteridade e transcendência‖. O desejo insaciável, e não satisfeito, para Lévinas, é o
elemento humano que garante a alteridade e a transcendência.
A relação de transcendência envolve, em termos poimênicos, alguns elementos que
podem ser reunidos sob o signo da solitude, tais como o ―silêncio‖ e a ―oração‖. A solitude —
enquanto solidão criativa, espaço de cultivo da relação com Deus — é a oportunidade de não
se diluir no mundo das coisas e na perspectiva do outro. Com efeito, é condição necessária
para a sedimentação dos elementos tomados por empréstimo de outras subjetividades, pois
não se pode ser um constante devir. Isso é particularmente importante em meio a uma cultura
da pressa, da liquidez, em que a voracidade pelo novo arrebata as pessoas, impedindo-as de
digerirem de forma saudável o conglomerado de elementos novos que surgem. Dobrar-se a
essa tirania, significaria submeter o ser a uma ―patologia‖ do sendo, ou seja, significa
absolutizar o movimento, esquecendo-se de que este também se manifesta na alternância entre
ação e inação. Ou seja, se por um lado a convivência é constitutiva da identidade, por outro, a
identidade pressupõe também uma vida que frequentemente se ―esconda‖ no recôndito do
silêncio afim de que o si-mesmo se mantenha enquanto distinto do outro. Nesse sentido,

322
Cf. PIVATTO, Pergentino Stefano. A questão de Deus no pensamento de Lévinas. In: OLIVEIRA, Manfredo;
ALMEIDA, Custódio (Orgs.). O Deus dos filósofos contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 183.
323
Essa ―ideia do infinito em nós‖ percorre parte da obra de Lévinas, em que se propõe um tipo de hermenêutica
que faça jus ao objeto de sua interpretação: Deus. Em seu artigo ―Hermenêutica e Além‖ (cf. LÉVINAS,
Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 98-111), Lévinas assevera
que o pensamento que pensa à sua própria medida alcança o que pensa — esse é o psiquismo da imanência. A
proposta de Lévinas, então, é de um pensamento que pense numa outra medida.
324
Cf. PIVATTO, 2002, p. 183.
325
PIVATTO, 2002, p. 188.
129

reveste-se de particular importância a paz do sabá como providência divina para esse fim. O
sabá legitima a solitude, ao romper com a cotidianidade, com o imperativo do fazer, com o
chronos. Tal fratura instaura um ambiente propício para o cultivo da relação de
transcendência — é, pois, a advertência de que não se constrói o self apenas com ação, mas
também com inação; não se incrementa o ser apenas com comunidade, também com
recolhimento.

O ser humano, portanto, também se efetiva na relação com o Outro. Mas, não se
pode perder de vista o fato de que essa relação de transcendência, que vê em Deus a ―fonte‖
que lhe permite saltar para além do mundo e do outro, também traz implicações para o
ministério do cuidador pastoral. Em primeiro lugar, pode-se dizer que a relação com o Outro é
determinante da qualidade das outras relações, o que significa que estas a supõem. Nesse
sentido, conquanto o ministério pastoral se construa também a partir das relações de
objetividade e intersubjetividade, portanto, a partir do trabalho com as coisas ―mundanas‖
com as quais se lida, e da história e cultura, todas estas pressupõem o relacionamento que se
instaura a partir da transcendência.

Em segundo lugar, o cuidador pastoral, pela própria natureza do seu ministério, está
constantemente permeado tanto pela palavra quanto pela comunidade. Ou seja, lida
constantemente com a palavra falada, e o faz em virtude da palavra viva. No que diz respeito
ao seu ministério de cuidado, se move constantemente entre o kerigma e a koinonía. Está,
portanto, sempre diante da necessidade do uso da palavra para edificação dos textos vivos. A
palavra pastoral, então, não pode prescindir da escuta do Outro (cf. Is 50.4, 5), escuta que, no
326
entanto, só se realiza a partir do silêncio. Nesse sentido, o sabá propõe a escuta do Outro
327
como ato inaugural, pois a palavra do cuidador pastoral é sempre resposta (ato segundo)
— rebento da quietude e da serenidade —, e emerge como tal tanto na forma de oração
(resposta ao Outro) quanto na forma de aconselhamento (resposta ao outro). O silêncio, pois,
é a possibilidade hermenêutica da palavra e do sentido que se direciona aos textos vivos e de
lá retornam. Vale dizer que a palavra que se origina no silêncio é radicalmente distinta
daquela que emerge da própria palavra, ou por medo do silêncio.

Finalmente, a relação com Deus no ministério pastoral não é necessária apenas para
o premente cuidado do outro, mas também para a construção da própria intra-subjetividade,

326
Que é sempre mais do que mera escuta, é, na verdade, ausculta.
327
Quanto a se considerar a oração como resposta, ver PETERSON, 2000, p. 43.
130

ou seja, na medida em que os olhos se dirigem para Deus e os contempla, voltam-se para o
328
psíquico qual bumerangue contemplando-o e construindo-o. O cuidador que não dedica
tempo à construção de sua identidade, bem como da visão e razão de ser de sua comunidade,
está fadado a se diluir na pluralidade de propostas — como o pastor que está em busca da
última ―moda‖ que possa fomentar o crescimento de sua comunidade —, e a transformar sua
comunidade numa ―colcha de retalhos‖.

328
O psíquico é a captação e tradução, ou reconstrução do mundo exterior num mundo interior que se edifica
sobre dois grandes eixos: o imaginário e o afetivo (cf. VAZ, Henrique C.L. Antropologia Filosófica I. 6ª ed., São
Paulo: Loyola, 2001, p. 188). No ato de se construir algo, é preciso saber o que exatamente é esse algo que está
se concretizando, quer dizer, ter consciência do que está sendo construído.
131

4. TRÊS DIMENSÕES HERMENÊUTICAS DO CUIDADO PASTORAL

Na primeira parte deste trabalho, discutiu-se o caráter paradoxal da hermenêutica


contemporânea que, segunda nossa tese, tem sua razão de ser no caráter também paradoxal da
contemporaneidade. Como se viu, propôs-se que uma hermenêutica que se pretendesse
contemporânea devesse se construir no―entre‖de algumas relações. Três dessas relações
foram sugeridas como demonstração dessa paradoxalidade: a relação entre o velado e o
revelado; a relação entre a tradição e a emergência; e a relação entre a ação e afetação.
O objetivo do presente capítulo é demonstrar como essas relações paradoxais
determinam uma hermenêutica das cartas vivas, dos textos em movimento. Como são textos
que vivem as implicações de uma contemporaneidade que se mostra paradoxalmente, e, nesse
sentido, ―sofrem‖ o influxo desse mundo no qual estão lançados, necessário se faz interpretá-
los a partir dessas ambiguidades. Partindo do caminho que já foi aberto pelas reflexões
anteriores, nosso esforço será o de propor um cuidado que leve em consideração esse cenário
que, de certa forma, desafia cada vez mais a teologia ao impor-lhe a necessidade de se
redefinir. Para tanto, descreveremos sucintamente, em função do cuidado pastoral, essas
relações paradoxais, no entanto, na ordem inversa em que apareceram na primeira parte.

4.1 A Dialética Ação-Afetação no Cuidado Pastoral

A despeito do fato de não estar claro nos três versículos iniciais, o caráter dinâmico
da metáfora paulina pode ser confirmado ao longo de todo o capítulo 3 de 2 Coríntios. Sua
alegoria da ―letra morta‖ versus o ―espírito vivificador‖ (cf. v. 6), na sequência, confirma isso.
Além disso, os coríntios são convidados a removerem o véu na contínua dinâmica de viverem
de glória em glória (cf. vv. 14-18). É interessante o fato de Paulo não corroborar a atitude de
Moisés em ocultar o desvanecimento da glória em seu rosto (cf. v. 13), pois a imagem
cristalizada da presença divina não poderia substituir o face a face, o ir e vir ontológico. Na
realidade, só diante de Deus e das pessoas feitas à sua imagem é possível se construir
permanentemente, bem como construir um ministério pastoral no Espírito. Textos em
movimento, cartas vivas, eis o desafio hermenêutico dos cuidadores pastorais.
132

Muitas e distintas são as ―perspectivas‖ a partir de onde se concebe a experiência


hermenêutica. As principais, entretanto, ainda hoje são conhecidas como: intentio auctoris
(intenção do autor), intentio operis (intenção do texto) e intentio lectoris (intenção do leitor).
Embora as diversas correntes hermenêuticas possam se determinar pela medida em que se
identificam com essas perspectivas — hora acentuando umas, hora outras — é inegável o fato
de que todas, em certa medida, influenciam na tarefa da interpretação. A despeito das
muitíssimas implicações que a relação dessas perspectivas possa acarretar, o que aqui se
reveste de importância é o fato de que, pelo menos, de uma coisa se pode estar certo: o ato
hermenêutico não pressupõe mais um olhar desinteressado que observa um dado objetivo,
como se fora possível apenas captar a informação numa espécie de processo de sucção. Ao
contrário, a carga de intersubjetividade que se coloca é por demais determinante do sentido
para que não seja levada em conta. Assim, há inevitavelmente uma codeterminação entre os
elementos envolvidos. Quando se lê, já de antemão se assume uma posição que também se
leva para o texto, e certamente poderá determinar aquela leitura. Por outro lado, quando se
escreve algo, se escreve a partir de certa leitura do mundo. Nesse sentido, quem escreve o faz
na medida que lê, e quem lê, na verdade, também já está escrevendo. Isso traz consequências
para a tarefa de quem cuida em contexto comunitário. Quais cartas vivas todos se manifestam
como ―textos‖ que, embora vigorem enquanto tais, ainda não estão totalmente prontos. O
trabalho poimênico, pois, é a constante tarefa em que as escritas sucedem as leituras nesse
maravilhoso movimento que vai caracterizando o sendo de cada um.
É oportuno, neste momento, manter à memória os elementos que constituem o sendo
humano, como foram vistos no capítulo anterior: o mundo, o outro e o Outro, que
correspondem, respectivamente, às relações de objetividade, intersubjetividade e
transcendência. Gostaríamos apenas de ressaltar o fato de que tais elementos revelam,
também, a dialética entre ação e afetação. Ao longo de nossa existência, somos
constantemente expostos a cada uma dessas ―instâncias‖ constitutivas, o que significa dizer
que somos afetados pelo mundo, pelo outro e pelo Outro, ao mesmo tempo em que agimos
sobre eles. Interpretar textos em movimento significa, pois, exercer o cuidado levando em
conta essa dinâmica.
Gostaria de destacar, entretanto — no âmbito da relação de objetividade —, o fato de
que todos somos seres situados, o que demonstra o fato de que não há cuidado sem a
realidade com a qual se vincula. Contudo, uma cultura que aprendeu a exagerar o discurso a
partir de categorias ―universais‖, fazendo surgir, assim, uma forte visão metafísica do mundo,
ainda tem dificuldades em lidar com visões ―locais‖. Apesar disso, a concretude do ambiente
133

cultural é determinante da vida e do pensamento, não importa o quanto isso seja negado. A
filosofia e a teologia, por exemplo — disciplinas que determinaram, em grande medida, a
abordagem deste trabalho —, ainda sofrem críticas de setores mais conservadores que são
avessos à ideia de um pensamento regionalizado, determinado, por assim dizer, pelo locus
cultural de um povo específico. Na realidade, grande parte dos que defendem a universalidade
da filosofia e da teologia, querem, na verdade, universalizar um pensamento europeu — ou
seja, a universalização de um modelo que já é, desde o nascedouro, fruto de um contexto
específico. Ademais, na condição de brasileiros, como podemos falar que o pensamento que
herdamos da Europa é universal se é flagrante os seus traços regionais? Tal pensamento, não
se pode esconder, tem a cara da Europa. O ―eurocentrismo‖ ainda se mantém intacto na mente
de muitos pensadores brasileiros e latino-americanos, gerando uma espécie de mentalidade
colonialista. Quando se considera a importância dessa situação, e referindo-se à filosofia, é
precisa a frase de Raul Fornet Betancourt, citando Ortega Y Gasset: ―O contexto de cada
filosofia é algo essencial a essa filosofia, afinal ‗pensar significa dialogar com a
circunstância‖ (tradução nossa). 329
Mas, não somente o pensamento afeta e é afetado pela realidade no qual está
inserido, e sim a totalidade do que somos. Cada pessoa se insere num determinado contexto, e
se constrói a partir de sua interação com esse ambiente que lhe é peculiar. Esse é o seu éthos,
sua morada, sua habitação. E é a partir daí que se faz como pessoa, portanto, é a partir daí que
precisa ser compreendido. Nesse sentido, cuidar significa ler nas ―entrelinhas‖ do contexto
sócio-cultural. A partir desse olhar, como vimos anteriormente, o que está pronto no mundo
presta-se à transformação, e transformando o mundo o humano se transforma e se constitui
também. Cuidar, pois, significa conduzir as pessoas a transformarem sua realidade a partir da
manufatura daquilo que pode edificar o ser. Ou seja, se o ser se faz também em seu obrar,
então o cuidado passa pelo deixar fazer. De igual modo, o cuidado envolve a compreensão de
que a transformação é uma maneira de ser tocado pela realidade do mundo, e isso se traduz
em esperança, pois engendra a consciência de que a mudança sempre é possível.
Também é significativo o fato de que aquilo que se constrói desde dentro das pessoas
parece ter maior ―força‖ do que aquilo que se constrói a partir de fora. Isso quer dizer que as
palavras que ressoam desde dentro, também são mais indeléveis (Hb 8.10-13; Lc 17.20-21), e

329
―El contexto de cada filosofia es algo esencial a esa filosofia, pues ‗pensar es dialogar con la circunstancia‘‖
(BETANCOURT, Raul Fornet. Libertação, Liberación. Revista da AFYL, Campo Grande, MS, ano 3, n° 1, p.
94-95, 1993.).
134

330
isso confirma o caráter interior da Nova Aliança esboçado por Paulo na sequência de 2
Coríntios 3. Isso também aponta para o fato de que as experiências, na medida em que
ressoam mais amplamente a totalidade do ser humano, são mais eficientes em imprimir coisas
na alma humana do que os discursos. O texto paulino afirma que as cartas coríntias não foram
escritas com tinta, e nem em tábuas de pedra. Com isso, afirma a indelebilidade da marca de
Cristo, visto ser mediada pelo Espírito (não impressa com tinta) e estabelecida no interior de
cada um (não em qualquer ―manual‖ de doutrina). Há, nesse sentido, uma grande diferença
entre ter um livro fora de si e ter um livro dentro de si, entre ter um reino dentro de si e um
reino fora de si. Ora, isso tem relevância para a tarefa poimênica na medida em que o cuidado
pastoral não deve se efetuar apenas por meios cognitivos, oriundos de leis de ação que sejam
forçadas para dentro (como bem se expressa Queiruga), sem a preocupação de se fazem
sentido ou não para as pessoas. Essa atitude hermenêutico-poimênica deve se interessar no
sentido que é haurido a partir de experiências com o reino, com o Livro, com as pessoas, e
com o próprio Deus. Certamente, as experiências certas tornam as informações certas mais
relevantes para a alma.
Mas, as garatujas são inevitáveis, e isso faz com que as cartas mal escritas precisem
ser novamente escritas. São como aquelas pessoas que se aproximam da comunidade eclesial,
cujas histórias foram mal conduzidas, cujas vidas se ensimesmaram na ilusão da autonomia, e
de cujos corações procedem a insignificância de uma vida sem Deus. São cartas cujas várias
escritas que passaram por ali deixaram marcas, estimulando, assim, a uma leitura da realidade
que se circunscreva à relatividade da experiência frustrante. E, cartas mal escritas trazem
dificuldades à leitura, o que, não raro, ocasionam interpretações equivocadas, principalmente
quando o cuidador-intérprete faz uma leitura apressada. Contudo, a mensagem da cruz é a

330
É digna de nota, e de maior pesquisa, a relação entre esse caráter interior da Nova Aliança, e o que Andrés
Torres Queiruga chamou de ―maiêutica histórica‖, em sua tentativa de superar o positivismo da revelação.
Maiêutica () significa a ―arte da parteira‖. Sócrates, em Teeteto de Platão, se coloca como
―parteiro‖ que, por meio de seus ensinamentos (inquirições), traz à luz os conhecimentos que se encontram
presentes de forma não consciente em seus discípulos. ―Tenho isto em comum com as parteiras: sou estéril de
sabedoria; e aquilo que há anos muitos censuram em mim, que interrogo os outros, mas nunca respondo por
mim porque não tenho pensamentos sábios a expor, é censura justa‖ (Teet., 15c). Platão coloca em prática esse
método em muitos de seus diálogos, especialmente em Menon. Queiruga esclarece a expressão maiêutica
histórica: ―Maiêutica, porque, como em Sócrates, a palavra é necessária; mas, não porque, de fora, coloque a
verdade divina dentro da mente humana, e sim porque, como ‗parteira‘, ajuda a mente humana de tal forma que,
tornando-se consciente do que leva dentro, o ‗dê à luz‘. Histórica, porque, ao contrário de Sócrates, se produz
não no modo da reminiscência do sempre sido em eterno retorno, senão no do anúncio de um Deus ao mesmo
tempo sempre presente e sempre vindo; que, ao nos revelar, nos transforma, capacitando-nos para um novo
avanço de revelação e transformação, remodelando o presente e suscitando futuro, fazendo de nós ‗novas
criaturas‘‖ (QUEIRUGA, Andrés Torres. Fim do cristianismo pré-moderno. São Paulo: Paulus, 2003, p. 50
(Coleção Temas de Atualidade).
135

possibilidade de as cartas serem reescritas e os sentidos resignificados. O perdão, pois, é


sempre a oportunidade de ―reescrever‖ as coisas, e as cartas que se abrem ao perdão para
acolhê-lo e depois para fluí-lo ao mundo testemunham que a mensagem da cruz foi assumida
como mensagem de boas novas. Ou seja, quando histórias de cartas mal escritas se convertem
em histórias de perdão e consolo, têm o poder de desafiar outras a buscarem mudanças
também em suas próprias histórias.
A concepção hermenêutica contemporânea que estimula a leitura como uma
experiência que pode agregar sentido a textos já conhecidos, sem dúvida é um desafio à
teologia e à tradição. À parte de se cair num relativismo, não se pode negar que essa
alteridade do texto é ineludível, e isso se amplia quando se considera as Escrituras em seu
ambiente fecundo: as pessoas. Isso é suficiente para que se compreenda a necessidade das
repetidas leituras, pois se as cartas vivas são escritas permanentemente, isso significa que
também devem ser lidas permanentemente. Nesse sentido, a poimênica se reveste de especial
importância, como parte da Teologia Prática, na função de prover à Teologia informações
331
hauridas dos textos vivos que povoam as comunidades eclesiais . Na medida em que haja
tal interlocutora, responsável por trabalhar diretamente com as manifestações de sentido que
pululam em cartas vivas, certamente a teologia em geral estará em muito melhor posição para
inquirir permanentemente seus próprios postulados.
Ler e reler as mesmas cartas significa ver as pessoas por novos ângulos, ver a cada
332
vez, portanto, um outro que se resguarda no outro . Conquanto a essa alteridade não se
possa escapar, há uma tendência recorrente nas relações que se caracteriza por uma visão
cristalizada, imobilizada do outro. Assim, o perigo de se ―cansar‖ de um relacionamento
sempre está à espreita, e isso vale tanto para a relação com o Livro, para as relações humanas
como para a relação com Deus. Quando os leitores se cansam de suas leituras compromete-se,
completamente, a razão de ser das cartas. O ―cansaço‖ se traduz, com efeito, num fechamento
que força continuamente a abertura constitutiva do ser, e são muitos os motivos que levam
alguém a se fechar em si mesmo, cada um dos quais devendo ser considerado pelo cuidador
pastoral em sua tarefa terapêutica. As cartas precisam ser conhecidas e lidas por todos os
homens, como cartas de Cristo (2 Co 3: 2, 3), pois ser lido e apreciado — reconhecido, por
assim dizer — pelo outro é uma necessidade antropologicamente constitutiva, além do fato de
que cartas lidas podem motivar a resposta, e assim o humano se construir.

331
Cf. HOCH, 2005, p. 64.
332
Cf. TÁVOLA, Artur. Descobrir um outro que mora no outro [blog]. Disponível em:
<http://solemio1959.spaces.live.com/blog/cns!AD77859E383B7338!200.entry> Acesso em: 12 jul. 2010.
136

4.2 A Dialética Tradição-Emergência no Cuidado Pastoral

O cuidador pastoral deve estar cônscio de que não se presta apenas a descobrir o que
os ―textos― são, mas também o que podem se tornar. Isso, inevitavelmente, aponta para um
tēlos que se manifesta no propósito a partir do qual se mantém a razão de ser da própria
existência. Afinal, a ação se determina pelos propósitos subjacentes, ou seja, é motivada por
um fim determinado. Nesse sentido, a Bíblia parece esboçar o existir humano a partir de um
propósito, e isto considera a ideia de que a existência não é um mero acidente ou acaso 333. Ao
usar a metáfora da carta (cf. 2 Co 3:1-3), é possível que Paulo estivesse pensando no
propósito para o qual todos foram criados, afinal de que vale uma carta que não possa ser lida,
um amor que não possa ser comunicado, ou mesmo um perfume dentro de um frasco? Esses
são alguns dos casos em que o propósito está de tal forma arraigado à existência do ser que
sem um o outro seria impensável. Ou seja, uma carta não lida é tão destituída de sentido
quanto um amor não expresso, um perfume não exalado, ou uma pessoa que vive para si
mesma.
O fim de uma carta é dar notícias, é ser mensagem a alguém. Para Paulo, aqueles
coríntios eram a ―notícia‖ a todos os que queriam dele uma carta de recomendação, mas,
principalmente, mensagem ao mundo, pois aquelas cartas falavam por si mesmas. O Novo
Testamento usa uma expressão para caracterizar essa dinâmica que aponta para um tēlos:
oikodomeo — palavra usada para designar a edificação que ocorre por meio dos membros do
Corpo de Cristo. Nas palavras do próprio Paulo, em Cristo fomos chamados para a edificação
(cf.1 Ts 5.9-11), para o serviço do outro. Esse é o fim dos crentes, na perspectiva do Corpo, na
perspectiva da coletividade, na perspectiva da intersubjetividade. Ademais, conquanto as
cartas tenham o seu destino, há aquelas que chegam e há aquelas que se extraviam de seu
propósito. A teologia chama esse extravio de pecado, ou seja, o ―errar o alvo‖, além de
ressaltar o fato de que Jesus é a providência divina para que o ser humano retorne ao
propósito a partir do qual possui a sua razão de ser. Em perspectiva poimênica é possível dizer
que, embora ―errar o alvo‖ certamente impeça que a mensagem chegue ao seu destino e as
pessoas por ela sejam transformadas, o ―Cristo em nós‖ (cf. Romanos 8.10) é a oportunidade
a elas conferida a fim de que voltem a Deus.

333
Isto, é claro, não significa que tudo o que acontece visa um propósito. Há, de fato, experiências pelos quais se
passa que nunca se verá qualquer propósito que as justifique.
137

Entretanto, há uma dimensão estética nas ações humanas, responsável também por
determiná-las. Sob este ponto-de-vista, o tēlos não deveria ofuscar o paladar poimênico
quanto ao sabor da escrita, da caminhada, da procura, afinal o encanto da vida não se resume
apenas à conquista dos objetivos, mas no próprio movimento diário, no cotidiano, na
caminhada em direção ao alvo. O mesmo se dirá de Jesus Cristo, cuja Encarnação é
paradigma para uma ―hermenêutica poimênica‖: da declaração de que ele é o Alfa e o Ômega
(cf. Ap 22:13), uma tendência exagerada ao finalismo ressaltará o ser Ômega. Entretanto, não
se pode perder de vista o fato de que ele também é o Caminho que deve ser caminhado, pois
se a face de Cristo é a face do próprio Deus, estar nesse Caminho já significa estar em Deus
(cf. Jo 14.9). Mas, infelizmente, o fascínio pela chegada frequentemente obscurece o encanto
da caminhada. Quanto a essa tendência exacerbada ao finalismo, assim se expressou
Emmanuel Lévinas:

Segundo os modelos da satisfação, a posse comanda a procura, o gozo é melhor que


a necessidade, o triunfo é mais verdadeiro que o fracasso, a certeza mais perfeita que
a dúvida, a resposta vai mais longe que a questão. Procura, sofrimento, questão
seriam simples diminuição do achado, do gozo, da felicidade e da resposta:
pensamentos insuficientes do idêntico e do presente, conhecimentos indigentes ou o
conhecimento em estado de indigência. Ainda uma vez, é o próprio bom senso. É
também o senso comum. 334

Igualmente, no ministério pastoral o cuidador não pode ceder à tentação de substituir


a procura pela posse, a necessidade pelo gozo, o fracasso pelo triunfo, a dúvida pela certeza,
ou mesmo a pergunta pela resposta. Conquanto a posse, o gozo, o triunfo, a certeza, e a
resposta sejam conquistas importantes, não se pode ignorar o fato de que no caminho do
discipulado há de se experimentar também a procura, a necessidade, o fracasso, a dúvida e os
questionamentos, sem os quais não há humano, não há cristão à semelhança de Cristo. Não há
dúvidas de que os ―modelos de satisfação‖ são os ―guias turísticos‖ da nossa cultura, mas é
preciso ressaltar que os cuidadores pastorais também não podem se eximir da postura
subversiva que lhes cabe frente aos equívocos da cultura. Assim, pois, se por um lado as
cartas têm uma razão de ser — serem lidas —, por outro, apontam também para o fato de que
não há valor apenas em fazer chegar a mensagem ao seu destino, mas no prazer de se escrever
uma carta a alguém a quem se considera. Essa dupla vocação, pois, deve inspirar todos
aqueles que se lançam à tarefa de cuidar do outro.

334
LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. 2. ed.Petrópolis: Vozes, 2005, p. 111.
138

Mas, Cristo também é descrito como o Princípio (arché). Pensar a arché à luz dos
textos em movimento nos conduz à pergunta: qual a arché de uma carta? Onde ela se inicia?
Na verdade, é possível pensar que uma carta sempre tem o seu início na ―intenção‖ de
alguém. Ou seja, não se inicia com as primeiras palavras escritas, mas na intenção que mora
no escritor. Quando alguém começa a escrever uma carta, na verdade já está eivado dela, e
das intenções que o fazem dirigir-se ao seu interlocutor. Mas, essa intenção só efetiva na
construção da carta. Semelhantemente, a constituição de uma pessoa está ligada à
intencionalidade de um outro, embora a ela não seja redutível. Liga-se, porém, na medida em
que não há ser humano sem o outro, assim como uma carta não é nada sem um escritor, e isso
confirma o fato de que somos seres-com-os-outros. Vale ressaltar que os gregos antigos
entendiam a arché como uma vigência que se manifesta como o pontapé inicial, como a força
335
que comanda todo o processo e, nisso, determina o fim do processo . O paradigma
cristológico da arché, no mesmo sentido, não só se determina pelo começo, mas, em si
mesmo, já pressupõe o meio e o fim.

Ao se considerar a dialética tradição-emergência no cuidado pastoral, deve-se notar o


flagrante aparecimento, cada vez mais intenso, de novas religiões que buscam oferecer
respostas que preencham as brechas deixadas pelas promessas malogradas da modernidade.
Ocorre no mundo contemporâneo uma ambivalência resultante do teor fluido das sociedades
— que se caracterizam exatamente pela contínua mudança —, e do caráter tradicional das
religiões em geral. Ou seja, cada religião ―[...] se confronta com a necessidade tanto de
sobreviver numa sociedade de mudança como de ter por princípio sua fonte de legitimidade
na tradição, nas origens fundadoras‖. 336 Por outro lado, mesmo a sociedade vive tal paradoxo,
pois depende tanto da continuidade quanto da transformação para sobreviver. ―Quanto mais
ela muda mais precisará referir-se ao passado, e quanto menos o passado aparece no presente
mais é necessário colocá-lo como ponto de referência‖. 337 A religião, com efeito, precisa lidar
com a tensão entre mudar e não mudar. Se mudar, afasta-se da tradição, e se se apegar a esta
tende a arrefecer o seu impacto na sociedade em mudança.

335
Dessa concepção resultou a ideia de ―templo cíclico‖, em que o fim se confunde com o início. Tal visão
contrasta-se com a ideia — mais corrente na cultura ocidental moderna e contemporânea — de tempo linear,
cronológico.
336
BARRERA, 2003, p. 449.
337
BARRERA, 2003, p. 450.
139

Interessa, com efeito, ao cuidador o fato de que ―O enfraquecimento das tradições


338
gera incertezas com fortes implicações na construção de identidades‖. Vivemos numa
cultura que celebra o efêmero, o provisório, o transitório, uma cultura que vê na novidade um
fim em si mesmo, uma cultura, portanto, refratária a qualquer noção de perenidade, e isso não
pode ser ignorado pelas religiões que pretendem sobreviver ao momento presente. Mas,
expor-se demasiadamente ao novo, conquanto tenha se tornado uma compulsão
contemporânea, e isso seja visto positivamente por alguns, produz uma série de horizontes
abertos, inacabados, e isso pode comprometer o sentido de existência. Passa-se a ter uma
coletânea de fragmentos de visões, de horizontes a partir dos quais é possível enxergar e
interpretar o mundo. O problema com esses horizontes entrecortados é que não se tem mais
um ―lugar‖ a partir de onde se possa interpretar o mundo — e isso traz angústia. A
perspectiva das comunidades cristãs, em meio a essa ambivalência, é a de acolhimento das
pessoas, independentemente do tipo de realidade que supõem. 339
Por um lado, as comunidades eclesiais têm diante de si a oportunidade de se
apresentarem como ―comunidades de cuidado‖, diante da fragmentação de identidades
resultante dessa ânsia pelo novo. É, pois, diante do descuido característico de nosso tempo
que tais comunidades podem subsistir enquanto comunidades-que-se-importam, e isso é
significativo numa cultura individualista. E, é claro, aquelas comunidades mais habilidosas
em efetuar mudanças conseguem responder melhor às necessidades do ser humano
contemporâneo. Por outro lado, como esclarece Pablo Barrera, ―Numa sociedade em
constante mutação, a religião se converte no vetor privilegiado da continuidade social, pois
340
ela é ao mesmo tempo relato e comemoração de sua origem‖. O culto cristão, nesse
sentido, torna-se anamnese. Dar às pessoas a oportunidade de se re-constituírem
ontologicamente, 341 ao proporcionar-lhes a chance de resignificarem suas vidas mediante sua
inserção numa dada tradição, pode ser extremamente terapêutico.
Vê-se, portanto, que há oportunidades e perigos, e não se pode ignorar que as
comunidades eclesiais, verdadeiramente interessadas em tocar o ser humano contemporâneo
por meio do cuidar, necessitam conhecer bem essa ambivalência com a qual lidarão.

338
BARRERA, 2003, p. 451.
339
Cf. NOÉ, Sidnei Vilmar. Seqüelas vivenciais na biografia: chances e riscos da pós-modernidade para a
poimênica cristã. Preleção inaugural proferida na Escola Superior de Teologia no dia 8 de maio de 2000.
340
BARRERA, 2003, p. 450.
341
Apesar de ser esta uma maneira, talvez, imprecisa de dizer isso.
140

4.2.1 Cuidando por meio do esquecimento

Pode-se concordar com Nietzsche, como se viu em ―3.1‖, que ―há determinado grau
de [...] sentido histórico que prejudica o ser vivo e no qual ele por último se perde‖. Mas, que
tipo de ―sentido histórico‖, ou ―memória‖ poderia prejudicar o ser humano?
Não há dúvidas de que muitos os que procuram ajuda, principalmente em contextos
eclesiais, são vítimas de experiências negativas que lhes imprimiram ―marcas‖, que carregam
consigo e em relação às quais não conseguem se desvencilhar. São vítimas, portanto, de
memórias traumáticas, capazes de afetar negativamente o presente e o futuro de tais pessoas;
também são vítimas de memórias que têm o poder de reduzir a visão acerca da realidade,
afinal, há uma tendência a se conceber o mundo a partir do conjunto das próprias
342
experiências. Uma pessoa, por exemplo, que sofreu maus tratos na infância possui uma
grande probabilidade de ter dificuldades nos relacionamentos com as pessoas em geral, ou
com alguém especificamente. Quem vivenciou experiências traumáticas caracterizadas pela
falta de amor, pode facilmente concluir que o amor é uma utopia. Nesse sentido, o cuidado 343
pode ser provido à medida que as pessoas aprendem a esquecer, ou seja, quando aprendem a
não tornar o passado determinante do presente e do futuro, aprendem a não dar demasiada
atenção às lembranças dolorosas ou mesmo reducionistas da realidade. Aprendem, portanto, a
não trazer à memória aquilo que não lhes pode dar esperança. Tal esquecimento, é claro, não
se resume ao âmbito cognitivo. Não se trata, portanto, de não se dispor mais de uma dada
informação, mas refere-se muito mais à dimensão existencial do ser humano. Refere-se,
também, à habilidade de desvincular o ―fato‖ do ―sentimento imobilizador‖ a ele atrelado.
Trata-se da capacidade de se viver novas experiências que tornem possíveis a resignificação
de antigas experiências.
O apóstolo Paulo muito bem se expressou sobre a necessidade do esquecimento,
quando disse: ―[...] uma coisa faço: esquecendo-me das coisas que para trás ficam e
avançando para as que diante de mim estão, prossigo para o alvo, para o prêmio da soberana
344
vocação de Deus em Cristo Jesus‖ (grifo meu). Paulo parece cônscio do fato de que

342
Muitos ―arcabouços teóricos‖, por exemplo, ―vendidos‖ como sistemas oriundos de reflexão racional e
objetiva, não passam, na maioria das vezes, de escolhas e preferências de determinado pensador — quando não
se trata de sua esquizofrenia ou desvio — que não têm nada a ver com pesquisa imparcial, ao contrário, são
frutos das experiências do autor. Ou seja, seriam mais ―sistemas passionais‖ do que propriamente ―racionais‖.
343
O cuidado aqui diz respeito a um ―movimento‖ duplo: tanto a disposição de cuidar quanto a de ser cuidado.
344
Filipenses 3.13,14.
141

existem lembranças que adiam o crescimento e que, portanto, sem certo tipo de esquecimento
não se evolui, não se caminha, não se avança como pessoa, não se cuida de si mesmo. Não se
trata, entretanto, apenas daquelas lembranças dolorosas, traumáticas, de experiências
frustrantes, mas, também, de boas lembranças que, não obstante, podem impedir que se
avance para além de onde já se chegou. É o que acontece, também, com respeito à tradição de
uma determinada instituição ou comunidade. Muitas ações, que tiveram um propósito
funcional no início, com o passar do tempo vão se cristalizando e se revestindo de
normatividade, o que, evidentemente, demonstra a inabilidade das pessoas em discernir a
diferença entre o funcional e o sacralizável. ―Esquecer‖ significa exercer esse discernimento,
significa, portanto, deixar o passado ser passado, e vivenciar bem o presente inspirado pela
esperança do futuro.
Cuidar de pessoas significa, assim, ensiná-las a reinterpretar suas memórias,
resignificar suas experiências, encorajando-as a desistirem (quer dizer, a liberarem, a abrirem
mão) daquilo que não incrementa o ser; significa lembrá-las, por assim dizer, que desistiram
de algo prejudicial, cujo resgate não seria saudável; significa ajudá-las a experimentarem
novas experiências que agreguem novos sentidos aos ―fatos‖ outrora experimentados de
maneira traumática; significa, também, inspirá-las a prosseguir ―de glória em glória‖ (cf. 2
Co 3.18), abandonando a morbidez existencial, e evitando a sedimentação daqueles
comportamentos e pensamentos que são, naturalmente, sujeitos ao tempo.

4.2.2 Cuidando por meio da memória

Quando se compreende o contexto em que Nietzsche discursa, facilmente pode-se


concluir que é perigosa qualquer absolutização de suas críticas. Nesse sentido, há de se resistir
à tendência pós-moderna de se depreciar a memória e a tradição, como algo opressor. Embora
não se possa ir contra Nietzsche em sua crítica ao historicismo, não se depreende daí que a
tradição seja desnecessária, ou que a memória não cumpra um papel relevante na constituição
da pessoa, como se viu anteriormente. Somos alvos do cuidado de Deus ou das pessoas por
meio da memória, na medida em que é possível basear-se nela a fim de evitar reproduzir o
sofrimento em outras situações. Além disso, as lições que a dor possibilita também podem
facilitar o servir a outras pessoas que passam por situações traumáticas. Pode também ser
extremamente terapêutico estar exposto às ―marcas‖ do outro, e perceber como foram
142

cicatrizadas pela ação divina. Com efeito, cicatrizes geralmente despertam lembranças em
relação a alguma experiência do passado, pois revelam os caminhos trilhados, as opções
feitas, e a maneira como se é cuidado por Deus.
Não se conclui daí, entretanto, que seja possível a uma determinada comunidade
cuidadora, ou mesmo a um indivíduo cuidador o ―mapeamento‖ dos ―caminhos da cura‖, uma
espécie de roteiro capaz de garantir a solução dos problemas à medida que aparecem. Isso
seria ceder à pressão de certas teologias contemporâneas, demasiadamente comprometidas
com o imediatismo exacerbado de nosso tempo, que se preocupam em dar respostas prontas
às complexas necessidades humanas. Mas, deve-se notar que mesmo que não se tenha o
―mapa‖ — que muito bem poderia ser o resultado natural do conjunto de experiências dos
cuidadores —, a própria singularidade e complexidade de cada realidade, ou mesmo a
percepção da ação multiforme de Deus, traz mais sobriedade aos cuidadores, e mais atenção
ao conjunto de elementos que geralmente não são levados em conta pela maioria. Afinal, a
cultura contemporânea tem se comprometido amplamente com aquilo que é fantástico,
extraordinário, naturalmente visível, o que fatalmente ofusca o olhar das pessoas para aquilo
que é pequeno, cotidiano, ordinário.
Deve-se ressaltar, ainda, que mesmo a dor e o sofrimento fornecem o material que
irá, de alguma forma, assentar as ―camadas de ser‖ sem as quais não somos aquilo que somos.
Ou seja, partindo-se do pressuposto de que ninguém está pronto, é possível dizer que ao longo
de nossa história vamos nos tornando pessoas que são o resultado, entre outras coisas, das
inúmeras experiências, tanto boas quanto ruins. O problema das más experiências não reside,
evidentemente, nas experiências em si, no fato ocorrido, mas na significação que uma dada
subjetividade confere àquele determinado fato. Resignificar, portanto, refere-se de forma
dialética tanto ao esquecimento quanto à memória. É o abrir mão (o desistir) de uma dada
significação de determinada experiência em prol de uma outra significação da mesma
experiência.

4.2.3 Três textos significativos

Depois de ter analisado, de forma sucinta, os perigos e possibilidades da memória e do


esquecimento, e suas implicações para as relações de cuidado, é oportuna a tentativa de
143

ilustrar essa análise por meio de três textos que corroboram a relação dialética entre essas
duas realidades existenciais:
O primeiro texto (“Construindo Memoriais”) está em Josué 4.1-10. Esse texto relata
uma experiência que Javé acreditou ser importante na vida de Israel. Josué deveria estabelecer
uma ―marca‖ que sintonizasse no tempo certa experiência, uma espécie de memorial a fim de
que outras gerações pudessem visualizar o relacionamento de Javé com seu povo. O
estabelecimento de memoriais tinha, portanto, o objetivo de marcar o tempo, atualizando,
assim, o amor de Deus por Israel. Esses memoriais se apresentaram historicamente de
diversas formas ao longo de todo o processo de formação da cultura hebraica: como
monumento (cf. Ex 24.4), como festa ou ritual (cf. Ex 12.14; Lc 22.19), ou simplesmente
como ação nobre digna de ser lembrada (cf. Mt 26.13; Mc 14.9). Semelhantemente à
experiência vivida por Josué e as tribos reunidas diante do Jordão, o costume de erigir pedras
em coluna era muito comum no mundo antigo. Os patriarcas, por exemplo, empilharam
pedras em momentos especiais de encontro com Javé. Essas pedras funcionavam como
―marcas‖ que tinham por objetivo trazer às suas memórias — todas as vezes em que passavam
novamente por aquele lugar — a fidelidade de Javé. Portanto, os memoriais foram, por muito
tempo, o recurso por excelência dos israelitas para fazê-los esquecer de suas dores por meio
da constante atualização do amor de Deus. Memória e esquecimento, pois, parecem se
entrecruzarem na prática dos memoriais.
No campo religioso, não só a crise das tradições explica a instabilidade das
identidades, mas também o enfraquecimento da memória ―como recurso decisivo na
345
construção das identidades religiosas‖. Os memoriais, com efeito, se tornaram marcas
experienciais que revelaram uma maneira divina de construir a identidade da nação. A
identidade de Israel era tão determinante de sua própria existência que outros recursos
mnemônicos foram usados por esta nação. É o caso das genealogias, que fortalecia as
identidades individuais, e a própria identidade da nação, ao traçar o percurso genealógico de
cada um. Cada israelita poderia, então, referir-se a ela para afirmar sua legitimidade como
parte do povo de Deus, portanto, para fortalecer seu sentimento de pertença.
Embora o perigo sempre esteja à espreita (cf. 2º Co 3), considerando-se o costume
judaico do estabelecimento de memoriais, tem-se a impressão que há a possibilidade de, a
partir dessas marcas experienciais, buscar-se um lugar para a tradição que se situe em algum

345
BARRERA, 2003, p. 459.
144

ponto entre a privatização da experiência e a sua institucionalização e sacralização. 346 Com


efeito, tanto a privatização da experiência pode contribuir negativamente para a tradição —
pela possibilidade de excessiva fluidez oriunda da psicologização das experiências, o que
acaba por inviabilizar a própria tradição —, quanto a sua institucionalização e sacralização —
o que a tornaria excessivamente cristalizada, e incapaz de se atualizar. Nesse sentido, a
construção de memoriais poderia se tornar uma prática saudável capaz de ser opção a essas
duas tendências, tão presentes na contemporaneidade, desde que fuja desses dois perigos: a
tendência (de cunho mais pós-moderno) de se buscar sentido para as próprias experiências
sem a preocupação de legitimá-las no interior da comunidade; e a tendência (esta mais afeita
ao paradigma iluminista) de garantir e perpetuar o sentido de uma dada experiência ocorrida
no passado de modo que sirva como parâmetro doutrinário para toda e qualquer experiência.
Portanto, uma experiência comunitária que se nutra da memória a fim de prover o cuidado às
pessoas não precisa, necessariamente, ser sacralizada e institucionalizada, por um lado, e nem
privatizada, por outro. Nesse sentido, impõe-se a necessidade de se redefinir a própria
tradição e o seu papel no cristianismo contemporâneo, pois certamente a maneira com que se
lida com a memória de um povo traz ―severas‖ implicações para as relações de cuidado.
O convite a empilhar pedras é um convite a se evitar que as experiências
significativas do cotidiano caiam no esquecimento; um convite, portanto, a criar marcas que
sejam terapêuticas e que se tornem canais de cuidado.

O segundo texto (“Dando Voz e Vez aos “Profetas Interiores”) 347 se encontra em 2
Pd 1.12-15. A carta de Pedro é uma lembrança aos seus ouvintes — em sua maioria, cristãos
provenientes das províncias da Ásia Menor — dos temas centrais da fé cristã, tais como ―fé e
obras‖, ―graça e esforço‖, ―conhecimento e obediência‖. O ―problema‖ do texto (cf. 3.1ss)
não parece ser a falta de conhecimento dos ouvintes do apóstolo. Ao contrário, esses cristãos
pareciam conhecer bem os temas principais. Então, o que justificaria o discurso de Pedro,
utilizando-se de porções já conhecidas das Escrituras, àqueles cristãos tão bem informados? O
348
problema parece ser a existência de um ―arquivo morto‖ , uma espécie de depósito de
verdades já resolvidas, usadas apenas para pesquisa. Pedro estava consciente de que trazer à
tona a palavra por meio da lembrança era de vital importância, pois ―estar confirmado na

346
Essa tese é instigante, merecedora de maior aprofundamento, mas não está no âmbito desse trabalho.
347
A expressão metafórica ―profetas interiores‖ designa uma espécie de in-verbação, ou seja, a palavra divina no
interior do ser humano, capaz de trazer uma instabilidade criativa, capaz de tirar o indivíduo de sua ―zona de
conforto‖, e desafiá-lo à vivência de um evangelho integral.
348
Conjunto de documentos acumulados, inicialmente como documentos de trabalho, e posteriormente
conservados como prova e evidência do passado.
145

verdade‖ (cf. v. 12) exigia a constante ―oxigenação‖ do verbo divino. Como bom discípulo de
Jesus, Pedro sabia que a semente da Palavra poderia ser ―roubada‖ — como a semente que
caiu à beira do caminho —, ou mesmo silenciada — como a semente que caiu entre espinhos
(cf. Lc 8.5-15). A palavra implantada deveria, portanto, ―sacudir‖ profeticamente as
consciências, de maneira a prover permanentemente o cuidado.

A partir do problema levantado por Pedro, em sua segunda carta, surgem alguns
caminhos que se revelam de especial importância para o despertar da ―palavra em nós
implantada‖ (cf. Tg 1.21), e, consequentemente, para a prática do cuidado:
a) Proteger o ―Verbo‖ interior: a maneira mais eficaz (ou talvez a única) de proteger a
Palavra semeada é encarnando-a (cf. 2 Tm 2.8,9). Certamente, a Palavra encarnada nunca será
aquela que cairá à beira do caminho, portanto sujeita ao rapto pelas aves. Davi se expressou
muito bem ao inferir a necessidade que todos temos de ―esconder‖ a Palavra dentro de si, pois
é o lugar onde precisa estar para que se esteja completa e irremediavelmente afetado pela
esperança. Em suas palavras: ―Guardo no coração as tuas palavras, para não pecar contra ti‖.
349
Encarnar a Palavra é vital para se cuidar do outro e de si mesmo — do outro, pela
possibilidade de se expor a ele como modelo de fé, e, portanto, de se contribuir para a sua
edificação; de si mesmo, pois a palavra implantada em nós é geradora de mundos, de novas
realidades, do inédito e inusitado, elementos por meio dos quais nos construímos
permanentemente.
b) Trazer à memória as ―pérolas‖ que fizeram a diferença: ao longo da vida todos são
expostos a relacionamentos, conversas, leituras, sermões, experiências que de alguma maneira
fizeram a diferença em termos de edificação, o que também significa que nunca se sai ileso
desses encontros. Pedro quer destacar esses momentos, esses conteúdos — sabedor da
possibilidade, sempre à espreita, de serem banalizados — a fim de que fiquem marcados,
guardados e permaneçam intensos na experiência a ponto de crescerem o suficiente para que
se tornem provedores de cuidado, todas as vezes que forem requisitados por meio da
memória. Trazer essas ―pérolas‖ à memória, principalmente em momentos de fragilidade,
pode ser extremamente saudável. Afinal, trata-se de inabilitar aquelas memórias prejudiciais à
existência a partir do recurso de se ―trazer à memória o que pode dar esperança‖ (cf. Jr 3:21);
c) Facilitar o acesso às pessoas que cuidam: se por um lado há pessoas que contribuem para
o atrofiamento da semente — o silêncio dos ―profetas interiores‖ —, por outro, há pessoas

349
Sl 119:11.
146

que comprovadamente ajudam a despertar a palavra-em-nós. Estes últimos possuem uma


capacidade ilimitada de manejar habilidosamente a memória e o esquecimento, de tal maneira
que contribua para o nosso crescimento. Não estão, portanto, preocupados com o nosso bem-
estar, mas com a nossa edificação. Isso significa que, com frequência, não nos poupam de
trazer à memória coisas que normalmente não traríamos por nos causar dor. Contudo,
também, não hesitam em nos confrontar quando precisamos esquecer, desistir, quando
teimamos em nos alimentar da memória da dor. Cuidar de si mesmo significa, portanto, abrir-
se voluntariamente àqueles que estão imbuídos da tarefa do cuidado mútuo;
d) Ser ―profeta‖ na própria comunidade: a metáfora dos ―profetas interiores‖ é aqui
significativa, devido a alguns elementos presentes no perfil dos profetas do Antigo
Testamento. Eram, entre outras coisas, pessoas subversivas no contexto de suas sociedades, e
cumpriam o papel de arrancar as pessoas de suas ―zonas de conforto‖. Não traziam, neste
sentido, estabilidade; não contribuíam em nada para o status quo. Pelo contrário: provocavam
instabilidade interior e social; desbanalizavam o banal; incomodavam mais do que davam
prazer. Obviamente, esses elementos não resumem o que eram os profetas bíblicos, mas são
reveladores de uma de suas principais faces, um lado desse profetismo que aqui muito
interessa. Só um profetismo desse nível será suficiente para despertar a palavra-em-nós, e,
portanto, ser geradora de cuidado no nível pessoal e comunitário. Exercer o ―profetismo‖ no
lugar onde se está inserido, além de sacudir o entorno, também se sacode o próprio interior,
fazendo assim despertar os próprios ―profetas interiores‖.

O terceiro texto (―Pessoas Significativas Que Valem a Pena Serem Lembradas‖)


está em 2 Tm 1.3-5, 15-18. Vê-se que a carta de 2 Timóteo é extremamente pessoal, e os dois
primeiros capítulos manifestam-se como a tentativa de Paulo em fortalecer o seu ―filho na fé‖
por meio da lembrança de ―pessoas significativas‖. A questão é: Pessoas significativas têm
algum papel fundamental em nossa fé e ministério? Paulo parece acenar positivamente, e isso
pode ser comprovado no fato de arrolar algumas delas na carta: Timóteo (cf. 1.3), Lóide e
Eunice (cf. 1.5), Onesíforo (cf. 1.16), o próprio Paulo (cf. 2.2), Jesus Cristo (cf. 2.8), ―todos
de coração puro‖ (cf. 2.22).
Mas, por que as pessoas citadas no texto foram importantes para Paulo, e deveriam
ser para Timóteo? Há algum valor terapêutico nisso? Focando mais a questão: por que é
importante lembrar-se de pessoas significativas? Sugiro, pelo menos, quatro razões aqui
entrevistas:
147

a) Em primeiro lugar, porque são hábeis em transmitir, despertar e manter em nós a fé sincera.
É o caso do próprio Timóteo (cf.1.3-5) — que era significativo por despertar em Paulo o
sentido e prática da oração, e sua ―fé sem fingimento‖ —, bem como Lóide e Eunice (cf.1.5) –
que eram significativas pela habilidade que possuíam em transmitir a fé às gerações
posteriores. O texto sugere que há pessoas significativas pelo simples fato de, por meio de
suas próprias fraquezas, nos despertarem ao cuidado. Ou seja, pessoas que precisam
intensamente de cuidado, acabam por proporcionar cuidado aos cuidadores. Isso quer dizer
que, em determinados momentos, tem-se a impressão de que não só o cuidador salva o
necessitado, mas por ele também é salvo. Ademais, o texto sugere a existência de cuidadores
que não limitam o seu cuidado à sua própria geração, mas possuem a incrível habilidade de
extrapolá-la por meio da boa tradição de fé. Conseguem cuidar de tal forma, que se
multiplicam exponencialmente ao se tornarem capacitadores de outros cuidadores;
b) Porque não nos abandonam em momentos de dificuldade, ao contrário, nos animam e
sentem prazer em nos ajudar. Fígelo e Hermógenes abandonaram a Paulo em momentos
difíceis de seu ministério (cf. 1.15), entretanto, Onesíforo (cf.1.16-18) é mencionado como
alguém significativo por animar e demonstrar cumplicidade (foi colaborador, parceiro sem se
envergonhar), por se interessar por Paulo e colocar-se ao seu serviço. Pessoas significativas
fazem história, pois não são movidas pelos bons momentos da vida. Ao contrário, conseguem
cuidar em momentos favoráveis e, principalmente, em momentos adversos;
c) Porque são ―pais‖ e ―mães‖ destinados ao cuidado de seus ―filhos‖. O próprio Paulo (cf.
2.2) tornou-se significativo por ser mentor, discipulador e ―pai‖, além de fiel transmissor do
evangelho. O próprio Paulo sintetiza bem a grandeza do papel de pai-cuidador em Gálatas:
―meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós‖; 350
d) Porque fogem daquilo que não os edifica, e folgam-se na presença de pessoas que podem
contribuir significativamente com o seu cuidado. Pessoas significativas valorizam a palavra e,
por isso, evitam conversas que não contribuem em nada para a edificação do outro (cf. 2.16)
— como os ―agitadores‖ Himeneu e Fileto (cf. 2.17) —, pois são de coração puro (cf. 2.22).
Pessoas significativas, em outras palavras, só o são porque são edificadoras e nutrem-se
permanentemente em ambientes igualmente edificadores.
Pode-se perceber, a partir dos textos selecionados, que tanto a memória quanto o
esquecimento são elementos indispensáveis na constituição tanto dos indivíduos quanto das
comunidades eclesiais. Discernir corretamente essa relação, pois, contribui para que o cuidado

350
Gálatas 4.19.
148

não seja um momento, mas um modo-de-ser, em que tanto o ser-de-cuidado quanto a


comunidade-de-cuidado se construam permanentemente.

4.3 A Dialética Velado-Revelado no Cuidado Pastoral

O cuidador pastoral, enquanto ―pastor do ser‖, tem a dupla tarefa de cuidar do


cuidado e do cuidar. Cuida do cuidado, na medida em que, como chamamos a atenção, este
se mostra como o próprio ser humano. Vale lembrar que não se está falando de atitudes ou
ações de cuidar, mas num cuidado vivo, em movimento, como pessoa. Isso significa que,
como bem se expressou Heidegger, podemos subtraí-lo de seus cuidados. Isto significaria o
simples ―estar junto‖, e revelaria a forma inautêntica de coexistência. Por outro lado,
podemos, também, ajudá-lo a exercer a liberdade de assumir seus próprios cuidados. Esta
351
seria a forma autêntica de coexistência . O cuidador, portanto, é aquele que se implica na
tarefa de fazer surgir o cuidado no ser humano inscrito. Entende, nesse sentido, que o ser
humano é cuidado e, como tal, precisa ser desvelado. Facilitar a manifestação do ―melhor‖ do
humano é uma das principais tarefas poimênicas, pois se trata de revelar a própria ―imagem‖
de Deus nas pessoas. Na verdade, revelar o ―melhor‖ ou o ―pior‖ das pessoas é uma decisão
com a qual todos convivem ao longo da própria existência, do próprio sendo.
Mas, o cuidador pastoral também cuida do próprio cuidar. Nesse sentido, não se
restringe ao desvelo do cuidado inscrito em seus textos humanos, mas imbui-se da tarefa de
providenciar para que o cuidado seja manifesto em todas as atitudes e ações da comunidade.
Se o cuidado é um modo de ser do humano, precisa, então, ser também um modo de ser da
comunidade. Ou seja, uma comunidade cuidadora manifesta esse cuidado em tudo o que faz,
não porque se concentra em agir cuidadosamente, mas porque é uma comunidade de cuidados
que ajudam-se mutuamente a se desvelarem como tal.
A tarefa de cuidado pastoral também consiste em atender aquelas necessidades
silenciosas. Eugene Peterson fala de uma cultura que justifica essa necessidade:

A cultura nos condiciona a nos aproximarmos das pessoas e situações como


jornalistas: ver o grande, explorar as crises, editar e resumir o comum, entrevistar o

351
Cf. REALE; ANTISSERI, 2003, p. 585.
149

fascinante. As Escrituras, porém, e as melhores tradições pastorais nos treinam em


um sentido diferente: notar o pequeno, persistir no comum, apreciar o obscuro. 352

O cuidado pastoral, considerado nesse aspecto, se traduz na tarefa de levar uma


pessoa a encarar com seriedade aquilo que normalmente é deixado de lado pela mente
acostumada a essa publicidade 353. Significa enxergar no material de vida aleatório um sentido
não percebido pela mente viciada nos modelos megalomaníacos.
Geralmente as cartas se revelam a partir da gratuidade de quem as envia. Isso quer
dizer que violá-las revela a subversão desse princípio, pois demonstra a atitude infratora de
alguém que deseja a informação a despeito de não estar disponível a ele. Na metáfora paulina,
as cartas vivas são escritas de tal modo que podem ser ―conhecidas e lidas por todos os
homens‖, além de serem manifestas como ―carta de Cristo‖. Isso indica o caráter testemunhal
e revelacional das cartas, afinal, como já se assinalou, de que vale uma carta que não possa
ser lida? Entretanto, Paulo diz que as cartas que manifestam a mensagem do evangelho de
Cristo se fazem escrever no recôndito do coração humano, como cartas escritas pelo ―Espírito
do Deus vivente‖. Assim, conquanto as cartas vivas sejam mensagem ao mundo, guardam em
si algo de oculto, e que deve ser preservado. Isso parece ser confirmado na sequência do
capítulo, em que o apóstolo evoca a ―teologia da letra‖ em contraposição à ―teologia do
espírito‖. Com efeito, o ―ministério da letra‖ tem o poder de ofuscar o ―ministério do espírito‖
na medida em que propõe substituir o face a face da intimidade pela exteriorização pública e
imobilizante do ―código ético‖. No ato de ―ocultar‖ a sua face resplandecente aos filhos de
Israel, o que Moisés acabou por fazer foi facilitar a manifestação paralisante da experiência,
sintetizada na leitura da ―Antiga Aliança‖. Na verdade, o que Moisés faz, quando oculta dos
filhos de Israel o desvanecimento da glória, é ocultar a própria ocultação.
Esse caráter oculto das cartas vivas é o que também assegura o constante encanto,
algo cada vez mais difícil numa cultura que celebra a exposição. Ou seja, a conscientização do
fato de que nas sucessivas leituras que se possa fazer das pessoas sempre sobrará sentido,
mesmo diante dos esforços constantes de perscrutação hermenêutica, mantém o constante
encanto dos intérpretes com os seus textos vivos. É ilusão querer esgotar o sentido pela
revelação, e sempre que se aquiesce a essa ilusão, perde-se a admiração, o fascínio, perde-se a
própria fé. Ceder a essa ilusão não é algo difícil no ministério pastoral, pois, além de ser uma
tendência humana — essas tentativas de ―enquadramentos‖ —, os cuidadores-intérpretes

352
PETERSON, Eugene. Um pastor segundo o coração de Deus. Rio de Janeiro: Textus, 2000, p. 137.
353
Cf. PETERSON, 2000, p. 138.
150

vivem num entorno fragilizado pela ausência do deslumbre. Qualquer um que transija com
esse mal cultural alimenta a sociedade com esse desencanto, e por ela é alimentado. No
âmbito de tal sociedade, o ―mistério‖ perdeu o seu lugar, tornando-se algo cada vez mais
desconfortável para as pessoas. Tudo parece já garimpado, invadido, descortinado, previsível.
Percebe-se isso também nos relacionamentos interpessoais, na medida em que se percebe uma
tendência à exposição, em que tudo tem de ser revelado, antecipado, exatamente porque o
encoberto tornou-se intolerável do ponto-de-vista intersubjetivo.
Alguém poderia pensar que, se toda carta visa comunicar, revelar algo, então é
legítimo arvorar-se como detentor da legitimidade da leitura, mesmo que para isso seja
necessário a violação. Esse caráter revelacional de todo texto, de toda carta pode esconder os
perigos subjacentes, quais sejam, os que ignoram a inevitável alteridade do texto, como já foi
apontado. Nas relações intersubjetivas, há de se preservar, portanto, uma dose saudável de
mistério, o que significa que as pessoas (e mesmo a realidade!) não podem ser ―violadas‖,
―estupradas‖.
As pessoas que, vitimadas pelas ―agressões‖ da cultura, se aproximam das
comunidades eclesiais em busca de socorro, precisam ser restauradas em sua alteridade. Para
muitas delas, o desrespeito da cultura mostrou-as que manterem-se violadas é o único modo
possível de ser uma carta viva. Para tantas outras, abrir-se diante de uma comunidade só
facilitará perder aquilo que ainda não lhe foi arrancado. Essa é uma realidade que está
constantemente diante dos cuidadores, pois as experiências pregressas vividas pelas pessoas
podem impedi-las de vislumbrar um mundo diferente daquele já experimentado. Cabe, pois,
ao cuidador pastoral a tarefa de criar um ambiente onde as pessoas violadas sintam que podem
e devem preservar o ―mistério‖, ao mesmo tempo em que se sintam seguras para
manifestarem-se de forma saudável, gratuita. Tal ambiente, não se pode negar, é
profundamente hermenêutico.
Uma última pergunta ainda deve ser feita: o que seria um cuidado pastoral que
fizesse jus ao caráter abscôndito do divino? A esta pergunta gostaria de sugerir sinteticamente
três possíveis respostas. Em primeiro lugar, um cuidado pastoral que celebrasse a presença,
mas não se esquecesse de que as ausências divinas também constituem terreno fértil para a
fé. Quanto a isso é preciso dizer que nossa cultura católico-protestante está totalmente
fundada na presença divina. Nossos cultos, por exemplo, se estruturam em torno da presença.
Falamos de presença o tempo todo (ou pela Palavra, ou pelo Sacramento, ou por intermédio
do Espírito) — aí não sabemos o que fazer com a ausência quando ela se impõe (e Deus não
pede licença para se ausentar). Essa cultura, portanto, não nos preparou para lidarmos com os
151

escapes divinos, o que significa que, nesse sentido, tal cuidado pastoral se mostra como
subversivo, contracultural. Em segundo lugar, esse seria um cuidado pastoral que abrisse
todas as portas (mesmo as bizarras), porque não sabemos por onde Deus virá. Um Deus que
354
se esconde em lugares inesperados, e que é fiel ao modo imprevisível , poderá entrar por
qualquer porta. Em terceiro e último lugar, seria um cuidado que soubesse lidar com a
familiaridade, afinal, a intimidade não pode abdicar do temor e reverência. O excesso de
familiaridade pode nos cegar, pois nosso olhar deixa de ser atento quando nos tornamos muito
familiares das coisas. Nesse sentido, nos tornamos ―cegos‖ não por vermos pouco, mas, por
vermos muito.

354
ZABATIERO, Júlio. A imprevisibilidade fiel de Javé. Texto não publicado. Vitória: Faculdade Unida,
[2009?], 9 p.
152

CONCLUSÃO:

Os textos com os quais os cuidadores pastorais lidam em sua tarefa hermenêutica são
textos em movimento, e desde que o hermeneuta-cuidador também seja um texto em
movimento, isso significa que tanto um quanto o outro estão em permanente construção. Ao
se cuidar de pessoas se implementa transformações que se fazem sentir naquele que é
cuidado, mas também naquele que cuida, além de se prestar a uma espécie de autenticação do
ministério pastoral. Talvez não haja trabalho mais difícil, ao mesmo tempo em que mais
gratificante, do que o manejo com textos vivos. Eles não são nada padronizáveis, não
funcionam sempre como se gostaria. São capazes das coisas mais baixas, mas também
guardam em si as sementes de uma ―imagem‖ que possibilita as ações mais nobres. Esse
paradoxo sempre aponta para a necessidade de humildade e de fé por parte dos cuidadores.
Quando esses textos não se comportam como se espera, isso alerta para o fato de que não se
tem o controle hermenêutico da situação. E essa decepção pode levar os cuidadores-
intérpretes a dois caminhos muito distintos: ou descreem totalmente de que as histórias
esboçadas nas cartas vivas podem realmente mudar, e assim desenvolve-se uma visão
antropológica pessimista que fatalmente afeta também a própria visão da vida; ou se lançam à
oração, numa atitude de dependência, à espera de uma solução que venha do Verbo vivo. A
correta compreensão desse paradoxo desafia os cuidadores a verem os seus textos com outros
olhos, como Deus os vê. Crer na transformação dos textos em movimento, e ver tal mudança
se efetivar na existência de cada um, dá a correta dimensão do ministério de cuidado pastoral.
Há variadas e ricas maneiras de se falar de uma mesma realidade. Durante o nosso
percurso ao longo deste trabalho, utilizamos muitos conceitos — alguns mais complexos por
se basearem em conhecimentos técnicos, outros mais simples por possuírem uma relação
direta com nossas experiências. Ademais, os conceitos que aqui foram usados serviram para
encaminhar nossa discussão a futuras pesquisas, pois estamos cônscios de que muitas coisas
aqui entrevistas ainda merecem mais aprofundamento. Gostaria de terminar essa reflexão
usando uma forma diferente, mais leve, de comunicar alguns dos conceitos que aqui foram
trabalhados. Em 2 Co 3:1-3 fomos apresentados à metáfora paulina das cartas vivas. Neste
momento, portanto, apresento-lhes ―Garatuja: a história de uma carta viva‖.
153

Era uma vez uma carta chamada Garatuja. Como toda carta, havia em seu interior
muitas palavras escritas, muitas frases — na verdade uma história completa, com começo,
meio e fim. Também como toda a carta, fora escrita para ser aberta e lida, afinal de que vale
uma carta que não possa ser lida! Entretanto, Garatuja há muito andara sem rumo pelo mundo,
pois um dia extraviou-se de seu destino, o que contribuiu para que ela se tornasse uma carta
muito triste e amargurada. Como os anos se passavam sem que ela encontrasse seu
destinatário, acostumou-se a andar fechada pelo mundo, não se relacionava com outras cartas,
não se deixava ler por ninguém. Permanecera, então, lacrada por muito tempo. Todos os que
tentavam se aproximar dela, e conhecer sua história, eram surpreendidos por sua reação
áspera, de forma que ninguém jamais havia conseguido acessar sua mensagem. — O que
poderia estar escrito em seu interior? — perguntavam as outras cartas que tentavam se
aproximar de Garatuja. — Será que sua reação agressiva se deve ao conteúdo escrito, à
mensagem que carrega? Mas, como poderiam saber se aquela carta nunca fora aberta, nunca
se expressara? Isso não significava, é claro, que não houvesse outras cartas igualmente
frustradas por não conseguirem chegar ao seu destino. Na realidade, Garatuja encontrou
muitas outras cartas vivendo semelhante situação. E isso só tornava sua visão do mundo mais
e mais pessimista. Esse pessimismo se elevou ainda mais quando um dia, cansadas de
tentarem descobrir os segredos de Garatuja, e embriagadas de tanta curiosidade, um bando de
cartas malvadas se arremeteu contra a coitada e a violou, na ânsia de desvendar o mistério.
Tal agressão deixou a vítima muito machucada, além do fato de ter sido ela rasgada pelas
outras. Sem que pudesse se defender, Garatuja foi totalmente violada, e à mensagem que já
continha foi-lhe acrescentadas outras frases infames, além de muitos rabiscos e marcas
espúrias. Certamente, todas essas agruras tornaram a vida da pequena carta muito amarga e
difícil.
Um dia, porém, depois de tantos anos vagando de um lado para o outro, Garatuja
chegou a um lugar diferente de todos aqueles que já havia conhecido. Lugar estranho! Não
por encontrar muitas outras cartas vivendo naquele lugar — pois isso já não era novidade para
ela —, mas por notar que aquelas cartas conviviam de uma forma que nunca havia
experimentado. Não pareciam ser cartas fechadas como ela foi por tanto tempo, e como as
muitas que encontrara pelo mundo. Muito menos dilaceradas pela curiosidade alheia. Pelo
contrário, seus envelopes nunca pareciam estar lacrados, de forma que podiam ser lidas por
qualquer um que se aproximasse. Cartas estranhas, pois além de se prestarem à leitura de
outras, também eram escritoras — algumas mais experientes, outras menos; algumas
pareciam verdadeiras artistas, outras nem tanto, mas todas podiam escrever, todas podiam dar
154

a sua contribuição, todas podiam se expressar. Na realidade, o que parecia mais marcante
naquela comunidade de cartas era o fato de estarem permanentemente sendo lidas umas pelas
outras, além de também se escreverem mutuamente. A impressão que dava era a de que não
seriam cartas especiais se não fosse esse movimento contínuo e agradável. Como sempre
estavam abertas e pareciam se amar reciprocamente, não se via cartas violadas naquele lugar.
Os casos desse tipo eram recém-chegados, como a própria Garatuja.
Mas, apesar de ter sido impactada, num primeiro momento, por aquele
relacionamento, Garatuja não podia se esquecer de que não acreditava mais em
relacionamentos pautados pelo amor. — Que amor, que nada! — pensava ela. Nunca
confiaria em alguém, pois a vida mostrou a ela que confiança no outro é a pior coisa que
alguém poderia fazer consigo mesmo. — Na realidade somos todos órfãos, e não há ninguém
por nós nessa vida, ninguém que queira o nosso bem! — Não acredito em amor, e isso que
demonstram deve ser só ―fachada‖. — Querem se aproximar para me violar, para arrancar o
que ainda me resta. Notadamente, as experiências pregressas vividas por Garatuja impediam-
na de vislumbrar um mundo diferente daquele já experimentado.
Foi assim que Garatuja, embora permanecesse cética diante dos relacionamentos
daquelas cartas estranhas, foi ficando e se impressionando cada vez mais. Aquelas novas
―versões‖ eram estranhas para ela, pois o referencial de carta que ela conhecia era outro
totalmente diferente. Na verdade, algo sempre nos parece estranho na medida em que ainda
não foi por nós experimentado, pois olhamos o mundo a partir do conjunto de nossas
próprias experiências. Com efeito, todos nós temos a tendência de achar que o mundo se
resume àquilo do que dele já experimentamos. Ledo engano!
Para Garatuja, o único modo possível de ser uma carta era aquele já conhecido em
suas experiências anteriores. Assim, pouco a pouco aquelas cartas foram se aproximando dela.
No princípio, se manteve relutante, mas finalmente cedeu aos apelos, pois não resistiu à
possibilidade de poder viver tão feliz quanto elas viviam. Afinal, tudo o que ela queria era ser
feliz, se sentir alguém, poder expressar algo. No fundo sentia que sua vida não significaria
nada se não pudesse ser lida por alguém. O que seria dela — uma carta — se não fosse lida?
Mas, o que seria dela também, se não se interessasse em ler as outras, e até participar da
história de suas semelhantes? Haveria algum propósito no fato de ser uma carta? É claro que
haveria!
Paulatinamente, então, Garatuja percebeu que aquele movimento de trocas, em que
as leituras se sucediam às escritas, era vital para aquele estilo de vida curioso e ao mesmo
tempo empolgante. Sentia que poderia se recusar a abrir-se para as outras — pois elas nunca
155

adentrariam sua vida violentamente, como em suas experiências anteriores —, mas, ao mesmo
tempo, era tudo o que queria. Na verdade, essa era a oportunidade de conquistar aquilo que
sempre sonhou: ser lida e apreciada por outros; dizer frases de amor; trazer boas notícias;
fazer o coração de alguém bater mais forte; simplesmente fazer com que alguém se sintisse
bem por ser lembrado; afastar a solidão. Enfim, eram tantas as possibilidades! Essa era a sua
vocação, e agora nesse novo contexto ela poderia alcançar o seu sonho. Mas, para isso,
deveria passar por um processo difícil, que era o de deixar que os outros lessem aquilo que
nela fora escrito. Na verdade, nem mesmo ela conhecia os contornos da mensagem que
carregava, e sabia apenas que estava completamente avariada. E como estava! Para começar,
a mensagem que carregava — aquilo que dela ainda restava — não parecia algo muito
edificante. Para quem lesse a tal carta, no início até se convenceria de que se tratava de uma
bela mensagem — alguém falava sobre o amor! —, mas, à medida que ia lendo, percebia que
era uma mensagem horrível, incoerente, e até com palavras de baixo calão. No geral, parecia
que se tratava de alguém que permanecera longe por muito tempo, e agora manifestava o fim
do seu amor pela outra pessoa. Certamente uma mensagem que ninguém gostaria de receber!
Mas, não era de se admirar! Aquelas cartas malvadas alteraram a mensagem original,
acrescentando muitas frases indecorosas, tornando a nova mensagem algo totalmente
repugnante. Além disso, estava mal escrita (daí o seu nome Garatuja), e também muito suja e
manchada, devido às agruras da vida (principalmente àquela experiência horrível com as
cartas malvadas). Garatuja precisava ser totalmente restaurada. E, à medida que se entregava
àquele novo estilo de vida, foi exatamente isso que começou a acontecer.
Foram dias difíceis para ela. Por muitas vezes pensou em desistir. Mas, ao contrário
de suas reações em experiências anteriores, ela sabia que, apesar das dificuldades, estava
lutando pela restauração do sentido de sua própria existência. Certamente valeria à pena
passar por esse processo difícil. E, sem que se desse conta, foi descobrindo que o encanto da
vida não se resumia à conquista de seus objetivos — que há essa altura eram muitos —, mas
no próprio movimento diário, no cotidiano, na caminhada em direção ao alvo. Percebeu que a
beleza da vida não consistia apenas em se alcançar o fim desejado, mas emanava desse
processo lindo de trocas diárias e constantes: de leituras, e de releituras das mesmas cartas; da
criatividade que acontecia ao se reescrever novas histórias; da humildade em se deixar ler e
escrever, de forma que novas leituras e novos traços sempre pudessem abrir novas
perspectivas.
De repente, Garatuja já não era mais a mesma. Percebia que algo havia mudado em
seu interior. Isso podia ser percebido à medida que as pessoas se aproximavam dela, pois
156

parecia sempre ter uma palavra agradável, mesmo quando o assunto aparentemente era banal.
Não exibia mais a frustração e revolta de outrora — a mensagem que agora carregava era
outra bem diferente. Além de proferir agora uma mensagem edificante a todos que com ela se
relacionavam, também sempre encontrava um espaço para que outras cartinhas escrevessem
nela algumas linhas. Que carta bonita estava se tornando! E que história emocionante! Todos
que a liam se sentiam revigorados, desafiados a reescreverem suas próprias histórias, pois
viam nela a possibilidade de serem diferentes do que eram, de serem melhores do que eram.
Entretanto, um dia Garatuja acordou num daqueles dias que parecemos mais curiosos
em relação à vida, como se as coisas que nos acontecem no dia-a-dia guardassem razões que
normalmente desconhecemos. E, nesse dia, sua principal curiosidade se concentrou na razão
da existência daquela comunidade de cartas. Sua curiosidade era compreensível, afinal ela
estava começando nesse novo estilo de vida! Coincidentemente, naquela manhã logo se
encontrou com uma carta mais antiga — uma das primeiras a chegar àquele lugar —, e pôs-se
a descarregar as suas dúvidas: — De onde surgiram todas essas cartas, senhora Epístola?
Onde aprenderam esse estilo de vida curioso, magnífico? — Não lhe contaram Garatuja? — O
quê? — perguntou ela. — O Restaurador de Cartas — continuou! — Ele é o grande
responsável por essa comunidade. — Na verdade, éramos todas como você, e só viemos parar
aqui porque nos extraviamos de nosso destino. — Mas ele, com muito amor, tem nos
restaurado a cada dia. — O que quer dizer com ―ele tem nos restaurado...‖, se nunca vi esse
tal Restaurador de Cartas? — insistiu ela. — É que ele não pode ser visto a não ser através de
cada uma de nós — respondeu a senhora Epístola. — Na realidade, é o Restaurador de Cartas
que lhe inspira todas as vezes que você escreve uma mensagem edificante em alguém. — O
mesmo acontece quando alguém lê a mensagem que carrega e se sente fortalecido em seu
interior. — Inspirados e movidos por ele é que vivemos nesse movimento de trocas
constantes, em que nos edificamos mutuamente nesta comunidade.
Assim, lentamente, ao longo daquela manhã, Garatuja foi entendendo a razão e o
propósito daquela comunidade de cartas. Agora tudo se encaixava, tudo fazia mais sentido. E,
de uma forma inexplicável, a pequena carta foi ficando cada vez mais extasiada com a figura
do Restaurador de Cartas, e à medida que o conhecia mais, mais exercia um papel
transformador na vida de outras cartas — tanto as recém-chegadas, como outras mais antigas,
como a senhora Epístola; quanto mais o conhecia, mais ia sentindo a transformação em si
mesma; quanto mais o conhecia, tanto mais compreendia o propósito para o qual existia.
Muito embora não pudesse vê-lo, Garatuja passou a conversar com o Restaurador de Cartas, e
sentia a sua voz ecoar dentro de si.
157

Um dia, a caminho da casa de uma carta amiga, o Restaurador de Cartas tocou a


campainha do coração de Garatuja. Queria falar-lhe! Como já estava acostumada a ouvir a
voz do seu Restaurador, logo voltou a atenção para o que falava: — Pequena Garatuja, agora
que estás restaurada, e sua mensagem original pode ser lida, precisamos encontrar o seu
destinatário, afinal existe alguém que ainda necessita ouvir a bela mensagem que carregas. —
Tenho uma ideia para isso: — Publiquemos a sua mensagem, e o nome do destinatário no
principal jornal da cidade. — Então, certamente acharemos aquele para quem tua mensagem
foi escrita originalmente, e assim você cumprirá plenamente o seu propósito.
O Restaurador de Cartas estava certo. Poucos dias após o anúncio da mensagem
no jornal, o destinatário de Garatuja — alguém quase totalmente esquecido por ela —
apareceu e, finalmente, pôde ler a maravilhosa e comovente mensagem, guardada há tanto
tempo, mas agora manifesta de maneira ainda mais excelente. Garatuja estava agora
plenamente realizada, exibindo em seu interior a razão e o propósito de sua existência —
convicções que nunca mais a deixariam. Não era mais apenas uma carta — era uma carta de
―boas notícias‖, que finalmente chegou ao seu destino. A partir de então, a pequena carta
viveu todos os seus dias totalmente dedicada a carregar em si mensagens que pudessem trazer
esperança e amor àqueles que um dia perderam, assim como ela, o propósito da própria
existência.
158

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