AUXILIO HOMILETICO PL (Is 35 1 10)
AUXILIO HOMILETICO PL (Is 35 1 10)
AUXILIO HOMILETICO PL (Is 35 1 10)
1-10
Leituras: Mateus 22.23-33 ou João 5.24,29
Autor: Emil Sobottka e Renato Becker
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/1996
Proclamar Libertação - Volume XXI
1. Introdução
Estamos em Münster, num fim de tarde, o Emil e eu. Servem-nos cerveja ao clima, na calçada. Nossa conversa
corre solta. Preciso pregar sobre Is 35.1-10. Abro a sacola, pego a pequena Bíblia e, sobre ela, reparto minhas
dificuldades. O tempo está para chuva. Ouço o meu hospedeiro. Ele diz que este capítulo c um daqueles textos que
se presta para ser encaixado em diversos lugares, no calendário eclesiástico, que, comumente, ele é encontrado
como texto de Advento, mas também tem sido usado para o Ano Novo. Para ele, parece relativamente fácil fazer
associações livres de motivos do texto com essas épocas do ano. Perguntou-se como, porém, fazer uma prédica
sobre esta passagem no Dia de Finados, sem cair em vulgaridades, sem a usar apenas como pretexto. Entende que
este problema deverá ser resolvido por cada pregador, que é uma tarefa que não pode ser assumida por terceiros,
que, não obstante, uma exegese pode contribuir neste sentido. Quando o vi sacando sua Bíblia Hebraica, senti que
era hora de pegar a agenda e canetear...
Pois olha, tchê! A tradução do texto apresenta diversas dificuldades. Vou te mencionar poucas delas. Desse jeito
tua prédica não vai se apoiar em pontos muito frágeis:
a) No v. 2, 'lhe' está no singular e o verbo 'dar' não está no pretérito. Com isso fica gramaticalmente em aberto a
quem serão dados a glória e o esplendor Na frase seguinte, o pronome está no plural, mas sua substituição por 'o
meu povo' (Septuaginta) significa uma alteração inaceitável do texto.
b) As expressões 'a vingança que vem' e 'a retribuição de Deus' estão sintaticamente soltas. Ainda ontem li o
Wildberger. Ele observa que no AT nunca é dito que Deus traz a vingança. É oportuno lembrar isso aqui, para que
não se faça o texto dizer o que o autor cuidou para não escrever.
c) A primeira palavra traduzida como 'caminho', no v. 8, é de significado incerto, o que poderia ter motivado a
inserção de um acréscimo explicativo. O original da segunda metade do versículo também é incerto. Certos
autores simplesmente traduzem: 'Imundo nenhum pisará nele e loucos nele não perambularão'.
Quanto à forma, o texto é considerado um anúncio de salvação, comum nos profetas e também bem representado
na primeira parte de Isaías. Juntamente com o cap. 34, este texto tem sido lido, muitas vezes, como um pequeno
apocalipse. Esta tese desconhece, porém, que nos escritos apocalípticos sempre se trata do colapso total da velha
ordem cósmica sob o juízo de Deus e da implantação de um mundo novo. Tanto aqui como no cap. 34, no entanto,
estão em pauta acontecimentos muito localizados, palpáveis, que espelham uma luta cotidiana por sobrevivência
em condições em que os fenómenos da natureza e a distância do santuário são percebidos como os grandes fatores
adversos. Nem por isso se pode desconhecer que o anúncio de salvação, enquanto género, contém uma passagem
muito fluida entre a solução de contingências cotidianas e a expectativa de uma salvação que ultrapassa o
horizonte temporal. Nos vv. 8-10 isto aparece de forma muito clara.
A esta altura fomos para o seu apartamento. Falou-me de sua bolsa de estudos, dos seus sonhos, e, quando vimos,
estávamos diante do seu computador. Pegou alguns livros bem manuseados e lá fomos nós, de novo, mergulhar
em teologia:
Olha aqui. A estruturação do texto não é evidente. O ponto de vista e o objeto do texto mudam abrupta e
frequentemente. Em vários momentos não estão evidenciadas as referências relativas (p. ex., 'eles' e 'ali'). Uma
possibilidade, apoiada em Wildberger, seria a seguinte:
1-2: a transformação do deserto 3-4: animação e consolo 5-7: concretização
5-6a: a cura dos quebrantados
6b-7: água no deserto 8-10: o retorno a Sião
Já Kaiser parte do pressuposto de que este texto esteja perpassado por uma argumentação com ouvintes
incrédulos, na qual o autor, por um lado, tenta fazer mistério em torno de sua mensagem até o final e, por outro,
precisa argumentar com os incrédulos para convencê-los. Esta situação explicaria a frequente mudança de ponto
de vista no texto. Ele sugere dividir o texto em duas unidades maiores, com subdivisões:
Para estruturar e interpretar este texto, de qualquer maneira, poderá ser de grande valia fazer um pequeno esquema
das várias unidades, perguntando-se: quem diz o quê a quem; que tipo de ação está sendo pressuposta; quem
executa c quem será beneficiado por essa ação e quando ela será levada a efeito. Com isso se apresentará um texto
semanticamente carregado, que joga com as necessidades imediatas e as expectativas escatológicas de Israel. Para
uma hermenêutica cristã, esta esquematização também oferecerá pontos de apoio, núcleos geradores de uma
mensagem de esperança — mesmo no Dia de Finados.
A pergunta pela autoria, incluindo local e data da redação, tem gerado hipóteses: o Segundo ou o Terceiro Isaías,
um autor apocalíptico tardio, etc. Também a relação entre os caps. 34 e 35 está ligada a esta questão. Kaiser vê
estes capítulos como um apocalipse recente, que teria se apoiado amplamente nos primeiros capítulos de Dêutero-
Isaías. Já Wildberger argumenta que Is 35 é mais recente do que Is 34 e teria surgido na diáspora entre os sécs. 6 e
5. A temática, de qualquer forma, é bastante atemporal, porquanto a vinda a Sião pode se referir tanto ao retorno
do cativeiro como à peregrinação cíclica dos judeus da diáspora ao santuário. Uma referência histórica concreta
não é explicitada pelo texto. Dignos de nota são a visão geograficamente limitada, a não-inclusão dos demais
povos entre os remidos, como em Is 40-55, mas também o fato de que o texto não se baseia num juízo prévio de
Deus sobre outros povos e nações. Seu pressuposto é a intervenção de Deus na natureza e em favor dos mais
fracos entre o próprio povo.
Era hora de um café brasileiro. O gostoso cheirinho do líquido prelo r quente vinha daquela minúscula cozinha de
estudante. O Daniel choramingava. Os brinquedos pedagógicos inundavam a sala e, no meio disso, nós. Minha
mão estava cansada de anotar pensamentos. Só mais um pouco, pensava...
3. O Contexto do Texto
O texto começa com um pleonasmo: a terra seca expressa uma grande alegria, produzindo flores. Como se a
dúvida do ouvinte precisasse ser afastada, o v. 2a repete enfaticamente o que já foi dito. Certamente em contraste
com a experiência cotidiana dos ouvintes na luta contra as condições adversas de sua terra para produzir o
alimento para si e seus rebanhos, é vislumbrado um tempo em que frondosa vegetação, flores e, por conseguinte,
frutos abundarão. Termos de comparação são o Líbano, cujos cedros já fascinaram Salomão, o Monte Carmelo, de
frequente citação paralela ao Líbano, e a orla marítima chamada Sarom.
Tanto pela chuva, que permitia o povoamento temporário do deserto por exuberantes manifestações de vida
vegetal e animal, como pela expectativa de que a intervenção de Deus estabilizasse no seu clímax esta sucessão
cíclica de exuberância e aridez, esta mensagem podia contar entre os ouvintes com uma boa base para sua
acolhida.
No entanto, a mescla entre experiência e expectativa, entre a materialidade imediata e a abstração antecipada, em
si constitui também a ambiguidade deste anúncio de salvação. Por que essa salvação será realizada, isto o autor se
apressa a dizer em 2c: para que a glória e o esplendor de Deus sejam vistos. Is 24.23; 40.5; 66.18ss. são outros
exemplos em que se torna visível a glória de Deus. Discutível é quem são os que verão essa glória.
Gramaticalmente mais lógica é a referência ao v. l, mas por razões de contexto os comentadores preferem ver aqui
uma referência que aponta para a frente, para os vv. 3-5 ou 9-10. De qualquer maneira, trata-se de uma
intervenção de Deus na natureza, restituindo vida e beleza à terra que aparentava infertilidade e morte, para com
isso manifestar seu esplendor e sua glória.
Um chamado à animação e ao consolo segue-se nos vv. 3-4. Quem o formula e a quem está dirigido não fica claro
no texto. Esta pequena unidade se aproxima de várias formas retóricas: dito do mensageiro, vocação de profeta; ou
então trata-se simplesmente de uma consequência, tirada pelo próprio autor, daquilo que foi dito antes. Os
imperativos são bem mais concretos do que em Is 40.1ss., p. ex., e parecem estar dirigidos a Israel como um todo,
ou, pelo menos, a todos quantos experimentaram, ainda que em antecipação através da fé, a intervenção descrita
acima.
Como em Is 32.4, uma palavra direta e específica é dirigida no v. 4 aos que cansaram de esperar, conclamando-os
a ser fortes e a não temer. Embasamento da conclamação é a indicação de que Deus vem e ajuda. A palavra salvar
é um pouco forçada no contexto. Interessante é o fato de que, a despeito de serem mencionadas a vingança e a
retribuição, o texto não estabelece nenhuma relação direta entre os benefícios descritos e o juízo sobre outros
povos. Também é incerto se com a vingança estaria sendo intencionada uma referência ao dia de Javé. Mas o seu
povo só tem a esperar coisas boas. Isso se evidencia também na retribuição divina, que não significa juízo, mas
indica que 'Deus entra em ação, restaura a situação de desgraça, ajuda Israel a obter o que lhe é de direito e se
afirma como o seu Deus' (Wildberger).
O que a presença e a ajuda de Deus significarão concretamente está descrito nos vv. 5-7. Dois âmbitos são
apontados pelo autor: em 5-6a a cura dos quebrantados; em 6b-7, a abundância de água no deserto. Muitos autores
defendem que não se pode tratar de uma cura física, talvez por influência de textos como Is 42.16-19, onde este
mesmo motivo (surdos ouvirão e cegos verão) é usado explicitamente com relação à conduta religiosa de Israel,
ou então por ceticismo racionalista. Em Jr 31.8 e Is 33.23, p. ex., esses motivos aparecem sem estar relacionados à
cura. Também não se pode negar que o uso figurado é comum no AT para indicar a conduta insatisfatória do povo
diante de Deus. Negar, porém, ao autor a intenção de ser entendido literalmente nesta passagem seria negar-lhe
qualquer relação com a realidade e tornaria supérfluo o próprio texto. Como a comunidade de fé aceitou e
conservou essas asserções pode ser visto ainda em Lc 7.22.
A irrupção de água no deserto é frequentemente relacionada com a irrupção de um novo tempo, do tempo da
salvação (Is 41.18; 43.19s.; 44.3; 32.2), mas está também ligada a outros atos extraordinários de Deus (Gn 7.11;
Pv 3.20; Ex 17.6; SI 78.20). É uma forma de testificar a soberania de Deus. Como para reforçar a concreticidade,
o autor acrescenta que no lugar antes habitado por um animal típico do deserto, o chacal, crescerá vegetação
aquática, o papiro, típico do Delta do Nilo.
Na última unidade do texto, vv. 8-10, o autor finalmente revela com clareza o porquê de toda essa transformação:
ela é uma preparação para a vinda dos resgatados de Deus a Sião. Essa preparação inclui ainda um caminho, de
bom trânsito e livre dos perigos que ameaçavam viajantes e peregrinos. O v. 8 é de difícil reconstituição e por isso
não deveria ser excessivamente enfatizado. Interessante é constatar que, enquanto que em Is 40.3 há um chamado
para que seja construído um caminho pelo povo, em meio ao ambiente adverso, para que Deus possa passar, aqui
o ambiente é previamente transformado e o caminho, cujo construtor não se menciona, é destinado à passagem
dos puros. Há outras menções de um caminho para o povo (Is 49.11; 43.19; 11.16; 62.14), sempre relacionadas
com transformações radicais e com o início de um tempo novo. Discutível é a referência histórica pressuposta:
serão os exilados que retornarão definitivamente a Sião, ou esse caminho se destina aos peregrinos que, mesmo
que radicados em terras distantes, de tempos em tempos peregrinarão para o santuário? Como não há indicação
sobre a data e a origem do texto, nem onde o caminho começa, esta questão fica em aberto.
Também é interessante a menção do leão e de animais ferozes, que, pelo que se sabe, historicamente não se
constituíam cm ameaça para os peregrinos, mas não há referência aos assaltantes, que, junto com as enfermidades
e a fome, representavam ameaças reais à época.
No v. 10 está o escopo do anúncio: a volta dos resgatados a Sião. No final do v. 9 e no início do v. 10 são usados
dois conceitos ('remidos' e 'resgatados') oriundos da esfera judaica, mais precisamente do direito familiar e do
direito comercial. Pode-se ver como já no contexto dos relatos sobre o êxodo (Êx 6.6; SI 79.2; Is 63.9) eles foram
sendo usados simbolicamente e passaram a adquirir, desde então, também um sentido religioso. Com isso
passaram a estar intima¬mente relacionados com a esperança de ajuda e salvação escatológica.
Coroar as cabeças com alegria certamente é uma alusão ao costume de expressar sofrimento e humilhação com
cinzas, mas alegria e clima festivo com óleos e perfumes sobre a cabeça. O autor quer enfatizar que essa alegria
será duradoura; isso não permite, porém, que se leia aqui na palavra 'eterno' um sentido transtemporal, assim
como é usado atualmente. Para uma prédica no Dia de Finados convém lembrar também que daqui tampouco se
pode inferir uma alusão à superação da morte. Como mostra Is 25.8, se o autor quisesse dizer isso, teria formas
específicas para expressá-lo.
Olhei no relógio. Passava das 23 h. No Brasil já eram 4 h da matina. Meus filhos certamente dormiam o terceiro
sono. Comemos um pedaço de bolo de chocolate e adaptamos lençóis no sofá. Não consegui dormir. Fechei as
pálpebras, forcei o sono, e nada. Eram boas aquelas informações. Com base nelas tinha que brotar uma proposta
de prédica. Pelo menos um rascunho de proposta.
Lembrei-me da cantora cantando: Vou voltar, sei que ainda vou voltar para o meu lugar, voltar, sei que ainda vou...
Vivemos tempos de crise. Ela insiste em se fazer presente a nossa volta. Somos tentados a nadar contra as
correntezas da vida, arraigados na força do braço e na perspicácia ancorada em QI. Lá na frente vem a sede, a sede
de Deus. No meio dos nossos caminhos sempre existem pedras. Elas precisam ser removidas ora com pás, ora
com oração. Nossos pés caminham sobre areias desconfortáveis da ausência completa de diálogo. São poucos os
ouvidos que ouvem, são poucos os olhos que vêem e são poucos os corações que se abrem.
E a vida passa. Ontem minha vó cantava: Deus sempre me ama, com amor me chama... para eu dormir. Hoje ela
me encara com aqueles olhos azuis e nem mais se lembra que morou em Tenente Portela. Seus cabelos chegam a
ser azulados de tão brancos. A pele está enrugada e seca. Quanta história vivida! Uma enciclopédia viva. Vivemos
tempos de despedida na nossa casa. Alguns de nós já partiram para momentos diferentes. Deus chama a gente pra
um momento novo, de caminhar junto com seu povo. É hora de transformar o que não dá mais. Sozinho, isolado,
ninguém é capaz. Alguns que já caminharam em Comunidade do Senhor tiram uma soneca, neste momento, listão
esperando .1 manifestação da glória de Deus. Outros de nós caminham para esse momento. Olho para trás de mini
e flagro minha sombra. Ela me acompanha sempre. Sussurra-me ao ouvido que sou pó. Reconheço-o só depois de
40 anos.
Meu cansaço não se acaba por aqui. Meu organismo vai ficando cada vez mais dependente. Preciso da água da
vida, do pão da vida. Preciso de abrigo, j;í agora. Agua, pão e abrigo que encontro no Senhor que preparou-me um
caminho. Estou indo para uma festa no reino dos céus. Tenho convite nominal feito por Jesus Cristo. A data ainda
não está marcada. Estou deitado aqui perto da Universidade Alemã, com vontade de dormir até amanhã. Deus me
acordará. Então continuarei contribuindo com pequenos sinais de esperança, por onde quer que eu passar.
Articularei meu dom enquanto ainda é tempo, porque a noite vem quando ninguém mais pode trabalhar. Levarei a
cabo minha vocação de espalhar Boas Novas. Não sou como o Emil. Sua disposição de vir ao meu encontro
constrangeu-me a também ir a encontros. Ah! Sol e chuva na medida. Ausência de torrões. Saúde física e
espiritual. Mulheres, jovens e homens entendendo-se. Vida digna aos borbotões.
Acordei. Fomos passear. Ver castelos e a Holanda. Voltei para casa. Li o Nelson, o Friedrich e o Valério. Fui para
o computador. Peguei a minha agenda. E comecei a trabalhar. Por que você não faz o mesmo?...
5. Bibliografia
BEHRENDS, Heinz. 2. Sonntag im Advent. In: DOMAY, Erhard, ed. Gottesdienstpraxis; Reihe A. Gütersloh,
Gerd Mohn, 1987.
DOBBERAHN, Friedrich E. Um Manifesto de Advento. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1988.
vol. XIV, p. 115-123.
KAISER, Otto. Der Prophet Jesaja; Kapitel 13-39. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1973. (Das Alte
Testament Deutsch, 18).
KIRST, Nelson. 2o. Domingo de Advento. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1984. vol. X, p. 158-
169.
SCHAPER, Valério G. 16o Domingo após Pentecostes. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo, Sinodal, 1993.
vol. XIX, p. 237-240.
VOIGT, Gottfried. Homiletische Auslegung der Predigttexte. 2. ed. Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1984.
WILDBERGER, Hans. Jesaja. Neukirchen, Neukirchener, 1982. (Biblischer Kommentar Altes Testament, X/3).
Prédica: Isaías 35.1-10
Leituras: Jo 5.24-29
Autor: Günter K. F. Wehrmann
Data Litúrgica: Dia de Finados
Data da Pregação: 2 de novembro de 1999
Proclamar Libertação - Volume: XXIV
Tema:
1. Ponderações sobre o evento e a perícope
1.1. A palavra finado significa morto, falecido. No Dia dos Finados, 2 de novembro, segundo a Enciclopédia
brasileira Globo, a Igreja reza por todos os mortos. O nome do dia em latim é commemoratio omnium fidelium
defunctorum (memória de todos os fiéis ou piedosos falecidos).
Essa reza ou missa pelos mortos pressupõe a imortalidade da alma (dogma na Igreja Católica Romana desde
1513) e a existência do purgatório (sobre isso pode-se ler mais em Estudos Teológicos, v. 25, n. 2, p. 198ss.,
1985). Fico impressionado e preocupado com o fato de essas ideias estarem amplamente difundidas em nossas
comunidades luteranas brasileiras. A tradição luterana, porém, tem celebrado a memória dos falecidos no Último
Domingo do Ano da Igreja, também denominado Domingo da Eternidade. É bom e justo que a comunidade se
lembre, em gratidão a Deus, da vida de seus falecidos e que interceda pelos entristecidos e enlutados. E é bom
fazê-lo na perspectiva da esperança da vida eterna. Mas se hoje realizamos com as nossas comunidades cultos de
memória no Dia dos Finados, seja nos templos ou nos cemitérios, pode acontecer que favoreçamos a propagação
de ideias alienantes em relação ao evangelho. Pois o evento e o rito do dia e toda a propagação alusiva à
imortalidade da alma, veiculada pelos meios de comunicação de massa, podem exercer bem mais influência nas
pessoas do que nossa breve pregação neste dia, por mais evangélica que possa ser. A força do evento me parece
inestimável. Por isso venho me perguntando se não ajudaríamos mais aos nossos membros se realizássemos a
referida memória e intercessão no Último Domingo do Ano da Igreja. Mas se isso faria sentido apenas se fosse
uma recomendação a nível de toda a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Os participantes do culto trazem consigo a predisposição para encarar a finitude desta vida, ainda mais se
perderam um ente querido nos últimos 12 meses. Os mais variados sentimentos pairam no ar: dor pela perda; a
conscientização de que a despedida foi definitiva, de modo que nada mais pode ser feito pelo ente querido, nem
palavras de gratidão ou de perdão podem ser ditas para o morto, as flores não mais podem alegrá-lo elas só
alegram a nós que estamos aqui reunidos; as mais variadas maneiras de morrer nos lembram de que min podemos
escolher o nosso jeito de morrer; perguntas e dúvidas nos assaltam: algo fica depois da morte? Existe
reencarnação? O que haverá entre a morte e a insurreição dos mortos? ... Perguntas sobre perguntas. Precisamos
ver e decidir quais podemos e devemos enfocar à luz do nosso texto e quais não.
1.2. Nas Séries de Perícopes para Prédica e Leitura, o texto de Is 35.3-10 faz parte da Série V e é destinado ao 2°
Domingo de Advento. Na OLM, chamada de Lecionário Ecumênico, Is 31.1-10 é destinado, juntamente com l Co
15.50-58 ou 2 Pe 3.8-14 e com Mt 22.23-33 ou Jo 5.24-29, ao Dia dos Finados. Mateus 22.23-33 enfoca a questão
da ressurreição dos mortos; nela não mais valerão os velhos valores e parâmetros, mas totalmente novos. E Jo
5.24-29 destaca que existirá a ressurreição para a vida e a para o juízo, dependendo de se ter praticado o bem ou o
mal, de se ter crido ou não em Jesus Cristo; o destino futuro já se antecipa hoje no presente.
O cap. 34 fala do juízo de Deus sobre as nações que injustiçaram o povo de Deus. A ligação do nosso texto com o
cap. 34 está no fato de Deus ser o mesmo, seja julgando, seja salvando.
Ao perguntar pela intenção do nosso texto, convém auscultar a situação para dentro da qual ele se dirige. Quase
todos os comentaristas afirmam que o texto é pós-exílico. Talvez os exilados já tenham voltado. Nesse sentido
encontraram-se uma terra natal devastada, gente pobre e explorada por pesados imposto, pagos aos persas. Dessa
forma nem lugar haveria para os que voltaram. Os sonhos alimentados junto às águas da Babilônia não se
concretizaram. Talvez os exilados tenham ganho, recentemente, licença para voltar. Nesse sentido estariam diante
de um novo desenraizamento, pois após 40 anos de exílio, forçosamente se adaptaram a muitas coisas da vida e
cultura babilônicas. Seja como for, a situação não é nada animadora. As pessoas sentem-se como diante de um
deserto e vêem somente terra árida, rachada pela seca, sem sinal algum de vida na flora e fauna, sem sinal de
perspectiva e futuro. As pernas balançam, os joelhos não sustentam o corpo; impossível dar passos firmes. A
situação, seja ela bem específica ou típica, é de um profundo desânimo diante de tanta adversidade. O senso do
povo se perdeu. Solidão e autocomiseração conduzem à depressão e ela pode levar à morte. A situação faz ficar
cabisbaixo. Enxerga-se somente a própria impotência.
Para dentro de tal situação desanimadora e desalentadora é que a mensagem se dirige. Ela se dirige a essas pessoas
desesperadas, quer tenham ficado na terra natal, quer tenham recebido recentemente licença para voltar, quer já
tenham voltado há pouco. Por causa dessa relativa indefinição quanto ao destinatário a mensagem penetra, com
facilidade, em outra situação de desalento.
Quem fala? O profeta ou alguém que fala com a autoridade dele (Kirst, p. 60).
Ele tenciona animar, dar novo fôlego aos que perderam o fôlego, fazer o povo cabisbaixo erguer a cabeça,
fortalecer as mãos frouxas e as pernas bambas.
Com que meio ele quer despertar novo alento? Em que fundamenta a sua mensagem animadora? Eis o vosso
Deus! Não é qualquer um, mas é vosso; aquele que conheceis, aquele que ouviu o vosso clamor no Egito; aquele
que, através da organização promovida por Moisés, vos libertou da escravidão para a liberdade dos filhos do povo
de Deus; aquele que vos sustentou na caminhada pelo deserto; aquele que fez um pacto convosco e o manteve
fielmente, apesar de toda a vossa infidelidade; aquele que vos deu terra para morar, plantar e colher. Esse Deus
vos sustentou na Babilônia e na terra natal devastada. Esse Deus operou, través de Ciro, a vossa libertação e
reunificação. Esse Deus fez triunfar o direito e a justiça. Eis que o vosso Deus vai fazer triunfar o direito e a
justiça também na terra natal devastada e sugada. Esse Deus salvará, pois Salvador é o seu nome. Dá para
perceber como tal mensagem se torna transparente para o NT?
Então cegos enxergarão; surdos ouvirão; coxos não apenas andarão, mas saltarão como cervos; mudos não apenas
falarão, mas cantarão/jubilarão. Quatro tipos de deficiência física não apenas estarão curados, mas a cura
extrapolará o normal; a vida esbanjará! O mesmo acontecerá com a natureza. O deserto não apenas receberá
chuva, mas será irrigado por ribeirões; terra árida será transformada em banhado. Saúde e vida exuberantes para o
povo e a natureza.
Será por ali que passará o Caminho Santo, o caminho preparado e apartado por Deus. Por ele passará somente o
povo de Deus, louco/tolo/incrédulo não passará por ele, nem animais ferozes estarão ali para ameaçar a caminhada
dos remidos em direção ao Sião, alvo definitivo do povo de Deus; gozo e alegria espantarão a tristeza e o gemido.
Dá para perceber como essa esperança trans-tende a si mesma e aponta para o NT?
3. O texto à luz de uma reflexão teológico-sistemática
O que o profeta vislumbrou cumpriu-se apenas em parte. Só alguns exilados retornaram. A reintegração na terra e
a reconstrução da mesma foram muito sofridas. A história de sofrimento continuou (lembremos o jugo dos gregos
e depois dos romanos). Mas... Eis aí o vosso Deus! Escondido (absconditus) sob a miséria de um estábulo, sob a
fraqueza de uma criança pobre, sob sinais de cura de pessoas portadoras de deficiência, sob sinais de saciar
famintos de pão e de alegria de casamento, sob sinais de perdão e aceitação imerecidos, escondido sob a vergonha
da cruz. Esse Deus, que se despojou de todo o seu poder, honra e glória, fez triunfar a vida sobre a morte na
Páscoa. Ele foi e está sendo experimentado como aquele que vive e faz viver (Jo 14.19). Como tal ele foi e está
sendo testemunhado por mulheres, publicanos, crianças e outras pessoas —- tal qual eu e você — não muito
impressionantes aos olhos do mundo. Mas... Ele há de voltar em majestade e glória, no final dos tempos. Então há
de ressuscitar, com novo corpo, para a vida eterna todos os que nele creram; todos os que com ele viveram em sua
comunidade; todos os que se deixaram agraciar por ele e como agraciados praticaram o bem (Jo 5.24-29),
promovendo vida para todos, especialmente para os que dela mais necessitam. Então o veremos face a face (l Co
13.12). Então a última inimiga da vida, a morte, estará eliminada em definitivo (l Co 15.26). Dela e de todos os
promotores da não-vida e da morte não mais haverá lembrança. Deus enxugará toda lágrima dos olhos dos seus
(Ap 21.4). Haverá comunhão íntima com Deus. Nada e ninguém nos poderá separar dele. Então Deus será tudo
em todos (l Co 15.28).
A vida eterna será totalmente nova e diferente, incomparavelmente mais bela do que a vida passageira de agora.
Para descrever a vida eterna nos faltam palavras e parâmetros adequados (Mt 22.23-29). Podemos falar dela
somente por meio de figuras, assim como a Bíblia o faz. Nesse sentido também o nosso texto de Is 35 fala do
eterno que lança os seus raios para dentro do nosso tempo transitório.
As sepulturas nos falam diante da efemeridade e transitoriedade da vida. Elas nos falam de despedida definitiva.
Convidam-nos a agradecer a Deus por tudo de bom que ele nos fez através dos entes queridos. Fazem-nos
perceber o tarde demais para um gesto de carinho, amor e perdão. Elas nos perguntam pela nossa esperança diante
do nosso luto e diante da nossa própria última hora.
As tentativas de reagir ao confronto são multiformes. Existe o jeito de ignorar o questionamento e se afogar no
ativismo. Existe o jeito de resignar de maneira fatalista e viver enquanto se puder; mas nem isso a maioria do
povo pode, por falta de condições financeiras ou falta de saúde. Existem outros jeitos. Todos eles, de uma ou de
outra forma, espelham desesperança.
Deus vê o seu povo desalentado hoje, assim como ele o viu por volta dr 520 a.C. Deus viu o seu povo desanimado
diante de um novo início sem perspectiva e sem futuro, viu o seu povo cabisbaixo e de pernas bambas.
Deus reanima o seu povo, ergue-lhe a cabeça e fortalece-lhe os joelhos a fim de que possa caminhar com rumo e
futuro. Vejamos o texto.
Eis o vosso Deus! Lembrar daquilo que Deus fez: Egito, deserto, pacto, terra, libertação, ... cruz. Páscoa,
ascensão. Lembrar daquilo que Deus ainda vai fazer: ver algumas das figuras do texto de Is 35 e perceber como
transcendem a si mesmas, apontando para aquilo que Jesus Cristo vai fazer quando da sua volta (cf. item 3!).
Por tua mão me guia... (HPD 174)
Só nimm denn meine Hande... (EG 369)
A luz que vem do alto a nossa frente ilumina o nosso rosto e o nosso caminhar. Reconhecemos o braço forte que
nos quer guiar. Assim iluminados e guiados somos capacitados a dar passos firmes e confiantes. Podemos
emprestar um ombro par quem precisa encostar-se. Podemos ter dois ouvidos, dois olhos e o coração para quem
anseia por um lugar para chorar e desabafar. Assim, visitando os nossos enlutados e integrando-os em grupos de
enlutados. Deus estará fortalecendo mãos frouxas e firmando joelhos vacilantes, através de nós. Assim podemos
concretizar algo do ser comunidade solidária a caminho, no Caminho Santo.
5. Subsídios litúrgicos
Como texto de aclamação desrecomendo Ap 14.13b, visto que, sem explicação, pode ser mal entendido.
Recomendo, pois, Jo 16.22.
Como hinos recomendo: Hinos do povo de Deus (HPD) n° 74, 67, 174.
A leitura dos nomes daqueles que faleceram nos últimos 12 meses pode ser introduzida da seguinte maneira:
Confiantes na insondável misericórdia de Deus, queremos lembrar, agora, com coração grato, daqueles nossos
irmãos e irmãs que faleceram nos últimos 12 meses. Enquanto leio os nomes, queremos interceder
silenciosamente pelos respectivos familiares e parentes enlutados. Após determinado número de nomes convidarei
a vocês, por meio das palavras 'Oremos com o salmista' a orarem comigo a prece do Sl 90.12: 'Senhor, ensina-nos
a usar bem os dias de nossa vida, para que possamos nos tornar sábios.'
Bibliografia
DOBBERAHN, Friedrich E. Um manifesto de Advento. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1988.
vol. XIV, p. 115-123.
FISCHER, Joachim. Cultos em memória dos mortos? Estudos Teológicos, v. 25, n. 2. p. 198- 210, 1985.
KIRST, Nelson. 2° Domingo de Advento. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1984. vol. X, p. 158-
169.
LANGNER, Christl. 2. Sonntag im Advent. In: Meditative Zugänge zu Gottesdienst und Predigt. Göttingen :
Vandenhoeck & Ruprecht, 1994. p. 5-9. (Predigttexle — Reihe V).
SCHAPER, Valério. 16° Domingo após Pentescostes. In: Proclamar Libertação. São Leopoldo : Sinodal, 1993.
vol. XIX, p. 237-240.
Prédica: Isaías 35.1-10
Leituras: Mateus 22.23-33 e I Coríntios 15.50-58
Autor: Heinz Ehlert
Data Litúrgica: 21º Domingo após Pentecostes – Dia de Finados
Data da Pregação: 02/11/2003
Proclamar Libertação - Volume: XXVIII
1. Considerações exegéticas
Os comentaristas, em geral, consideram os cap. 34 e 35 de Isaías um poema posterior ao exílio babilônico, cujo
autor (desconhecido) conhecia os caps. 40ss. (Dêutero e Trito-Isaías). Isto, porém, não significa dependência. A
maioria também admite que se trata de uma compôsição que abrange esses dois capítulos e que, portanto, não
cabe fazei uma divisão entre os dois. O cap. 34 narra com termos e imagens fortes e radicais a punição de Edom,
caracterizado como inimigo de Israel e de Deus. O cap. 35, em contraste, narra em termos e imagens alegres e
radiantes a sorte dos remidos em seu meio ambiente. Muitos até falam em pequeno apocalipse. Nos dois capítulos,
pode ser percebido como a natureza participa tanto da punição como da redenção dos respectivos personagens.
a) As promessas quanto ao meio ambiente e às dádivas do Deus vindouro aos resgatados (35.1-6a)
V l e 2: o meio ambiente participa da libertação promovida por Deus na sua vinda. O criador restaura o que
pessoas e poderes adversos destruíram. Onde havia deserto e desolação haverá uma paisagem florescente. O texto
recorre a termos que relembram descrições de exuberância atribuída à paisagem do Líbano, do Carmelo e de
Sarom. A linguagem poética atribui à natureza a capacidade de jubilar e de exultar de alegria. Assim, dá-se-lhes a
possibilidade de ver a glória e o esplendor do próprio Deus.
V. 3 e 4: de repente, sem mais explicações, são introduzidos, de um lado, os que devem consolar, fortalecendo as
mãos frouxas e os joelhos vacilantes e animar os desalentados de coração e, de outro, os que devem receber essa
consolação. Quem seriam? De um lado, serão mensageiros e, de outro, os muitos que precisam desse estímulo
animador, ambos pertencentes aos resgatados (v. 10). O texto focaliza a situação de fraqueza tanto física como
emocional e espiritual. Quem imo se; lembraria, no contexto, de passagens do NT em que o próprio Jesus chama a
si os cansados e sobrecarregados (Ml 11.28) ou das exortações na Epístola aos Hebreus (Hb 12.12)? Isto mostra
que esta profecia manteve-se viva no povo de Deus .
A mensagem alentadora é esta: Eis o vosso Deus. O que parecia distante ou até inexistente está aí. Revela-se pela
própria palavra profética. Merece, sem dúvida, destaque a expressão vosso Deus. Pode ser lembrado aquele com
quem já tiveram uma história. Pode-se pensar, p. ex., na libertação e no êxodo do povo de Deus do Egito. Deus
está ligado aos seus fiéis de maneira especial.
A vingança, o castigo vem para os seus opressores (cap.34), o que representa para os resgatados salvação. O Deus
zeloso que cuida dos seus, também é o Deus da ira para aqueles que o desprezam e maltratam os seus
semelhantes.
V. 5 e 6a: citam detalhes concretos sobre o novo estado dos resgatados: os debilitados e deficientes físicos
experimentarão restauração. Ao mesmo tempo, porém, representam uma transformação no estado de ânimo: uma
nova visão das coisas, uma nova compreensão do seu destino, uma nova perspectiva para a sua vida. O futuro
existe! A escuridão tem que ceder à luz do Deus presente. O novo estado de ânimo desencadeia o louvor ao Deus
criador (que renova a natureza) e libertador (que resgata os oprimidos e desalentados).
A natureza transformada permitirá uma caminhada segura e alegre para o alvo traçado aos remidos ou resgatados.
V. 6b e 7: onde antes só havia deserto haverá tudo para brotar vegetação abundante. Onde antes havia só areia
esbraseada e lugar para animais silvestres ferozes haverá abundância de água e plantas com condições para
florescer e dar frutos.
V. 8 e 9: descrevem um Caminho Santo. Santo, porque é o caminho preparado por Deus. Por isso, é um bom
caminho, ainda que não um caminho fácil. Será para o seu povo. Quem quiser estar entre os peregrinos deve
santificar-se, ser purificado. Quem anda por ele sabe que está no único caminho certo, pois só ele conduz ao alvo
colocado por Deus. Nenhum obstáculo (p. ex. cita-se aqui leão, animal feroz) poderá impedir definitivamente a
caminhada.
V. 10: o Sião é o alvo dos resgatados . É para lá que conduz o Caminho Santo. Caminhando, entoarão cânticos de
júbilo, porque experimentam a presença de Deus. E o que é este Sião? No AT, trata-se do lugar de adoração em
Jerusalém. Mas, falando de alegria eterna, não pode ser apenas uma casa terrestre e temporal. Já no AT, mas muito
mais a partir do NT, é permitido pensar num Sião celestial, na casa de meu Pai (Jo 14.2), para onde Jesus é o único
caminho, no descanso ou repouso prometido ao povo de Deus (Hb 4.2-11), no tabernáculo de Deus (Ap 21.3 e 4),
onde não haverá mais luto, nem pranto, nem dor. Assim, o poema profético liga o passado e presente ao futuro do
povo de Deus.
Meditando sobre o texto como boa nova para nós hoje, podemos partir de Is 35.4: eis o vosso Deus! Deus existe, e
não é um Deus distante; ele acompanha-nos. Quer conduzir, tem um caminho, tem um alvo para nós, dando
sentido à nossa vida. Ele teve, tem e terá uma história conosco. A nossa vida inteira é levada a sério pelo nosso
Deus criador e libertador.
Mais do que isto: ele é senhor da história. Iluminados pela Pala vra de Deus, podemos reconhecer: Há sinais de
paz e de graça neste mundo que ainda é de Deus. Em meio aos poderes das trevas manifestam-se as forças dos
céus (Hinos do Povo de Deus, 165). As promessas do texto também afirmam isso. Não é difícil adivinhar o
passado e a situação presente dos destinatários. O seu desalento não era sem motivos. Para os israelitas daquele
tempo, foi a opressão no exílio babilônico, perseguição política e religiosa, mas também a miséria, doenças e
desorientação após o exílio. Ao lembrar a nossa situação aqui e nos países vizinhos, poderíamos citar muitíssimos
exemplos de sofrimento provocado pela exclusão de milhões de contemporâneos em virtude de estruturas e ordens
vigentes. As razões podem ser as mais diversas. Em época pré-eleitoral, são feitos análises e diagnósticos
inteligentes: corrupção no governo, na sociedade em geral, falta de investimento em educação e saúde. Mas quais
são as soluções?
Vários governos na América Latina foram derrubados no passado recente, sem que com isso se solucionasse o
problema da miséria. Acresce a confusão no campo religioso, a agressão ao meio ambiente, comprometendo o
futuro da humanidade, a desorientação nas pesquisas e ações científicas (p. ex., clonagem humana) para causar
desânimo à atual geração.
Mas tem mais. Mesmo que nem todos sejam atingidos por igual pelas aflições existentes, uma realidade atinge a
todos, sem distinção, ricos e pobres, jovens e velhos: a morte, qualquer que seja sua causa. Esperança? A Igreja
tem mensagem fidedigna? Tem!
O texto em estudo está previsto para ser pregado em finados (ou no domingo seguinte). Não podemos ignorar este
fato. A terminalidade da vida, a morte de entes queridos e o luto consequente devem ser abordados, ainda mais,
porque estão muito disseminadas, entre nós, ideias de religiões não-cristãs (p. ex., sobre a reencarnação) que
causam não pouca confusão e desorientação.
O texto quer levar a sério tudo isso. E a boa nova vem centrada no eis o vosso Deus (v. 4) e no bom caminho, por
onde andarão os resgatados do Senhor. Este mundo realmente ainda é de Deus. Como Senhor, ele tem cuidado de
seu povo. Lembremos como agiu na história, o que já realizou como história sagrada. Para Israel, tratava-se
especialmente da libertação do Egito e do êxodo para a terra prometida; para nós, é a lembrança da redenção em
Jesus Cristo, da libertação de todos os pecados, da morte e do poder do diabo. Somos nova criatura (2 Co 5.17).
Assim, podemos percorrer um novo caminho com coragem, pois o redentor está conosco até o fim, também até o
fim da vida. Estamos em condições de enfrentar as aflições deste mundo . Mas o fim da vida não é o alvo. A
esperança que resulta desta mensagem não é apenas para esta vida. Diante da morte, pode-se anunciar: haverá
ressurreição do corpo e vida eterna! Este é o nosso Sião. O descanso do povo de Deus, onde vale o que diz Ap
21.3 e 4.
Forte é o desafio nos v. 3 e 4: fortalecei as mãos frouxas (...), dizei aos desalentados de coração: Sede fortes, não
temais (...). A Igreja deve anunciar a mensagem da esperança, através de seus membros - por meio de palavras e
ações, especialmente em situação de luto e dor, quando as pessoas são seduzidas a buscar um consolo que não
vem do evangelho. A estas pessoas, quer membros da Igreja, quer não, somos enviados como cristãos. O
testemunho pessoal deve aliar-se à pregação pública.
4. Subsídios litúrgicos
Também a liturgia deverá levar em consideração a data (o dia dos finados ou proximidade). Se for na capela do
cemitério ou no templo, a cor e o símbolo dos paramentos - morte e luto, mas também ressurreição - serão
adequados ao momento. Serão escolhidos hinos que falam do senhorio de Deus e da sua presença, do termo desta
vida e da esperança dos cristãos.
A confissão de pecados poderá mencionar nossa falta de amor aos nossos familiares e co-membros da Igreja
durante a peregrinação
Em algum momento, p. ex., logo após os avisos, poderão ser enunciados os nomes dos falecidos durante o ano.
A oração final deverá interceder pelos enlutados, podendo mencionar também casos específicos de sofrimento
(coletados entre os pré sentes ao culto).
Bibliografia
GRAUPNER, A. [Meditação sobre Is 35.3-10 (para 2° Domingo de Advento)]. In: Pastoral-Theologie Göttinger
Predigtmeditationen. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1994.
KAISER, O. Der Prophet Jesaja. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1973.
LANGNER, C. [Auxílio para o culto e prédica sobre Is.35.3-10]. In: Meditative Zugänge zu Gottesdienst und
Predigt. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1994.
SCHÖKEL, L. A.; SICRE DIAS, J. L. Isaías e Jeremias. São Paulo: Paulinas, 1988.
25/12/1983
Série: Quer seja oportuno, quer não
Dezembro
Tema: Na estrebaria do mundo a criança é esperança
Explicação do tema:
Em meio a uma situação de total abandono e morte — Estado autoritário não há lugar, estrebaria,
pastores, matança de inocentes, fuga - é proclamado o nascimento do Salvador. Natal reflete pois a
esperança que -nasce da miséria. Apesar da ameaça que a cerca, a criança sobrevive. Não há como
espiritualizar essa situação. A estrebaria fede, o direito à hospedagem é negado, os marginais
recebem o anuncio, crianças são mortas, o Estado obriga uma mulher grávida a dar à luz em terra
estranha. Natal coloca o Evangelho numa criança fraca e pobre, em meio a fracos e pobres, e faz
nascer ali a esperança por um novo mundo. Ignorando a marginalização de Cristo e dos homens,
Natal perde o seu sentido.
Texto para a prédica: 1 Coríntios 1.26-31
Autor: Valdemar Lückemeyer
I — O texto e os coríntios
A nossa perícope faz parte de um bloco maior, com limites bem claros, 1.10 - 4.21 , que nos mostra
como o apóstolo Paulo combate a formação de grupos dentro da comunidade e como ele também
não admite infiltração de outras pregações na comunidade. A comunidade cristã de Corinto era o
espelho da cidade como um todo: crescia e florescia; e gente de toda parte, com toda sorte de
sistemas de vida, vinha a Corinto. A comunidade não ficava intacta a tudo isso. O gnosticismo, por
exemplo, achou terreno favorável para se alastrar, e infiltrou-se na comunidade cristã. Bultmann
afirma que o movimento gnóstico significou a concorrência mais séria e perigosa para a missão
cristã; e isto, devido a um parentesco muito próximo com o cristianismo: ele também apontava para
a necessidade de uma nova compreensão do mundo e da pessoa. O gnóstico, ciente de sua origem
celestial e possuidor de uma centelha divina, esperava a sua volta ao céu após ter-se libertado do
corpo e do mundo. Já agora ele se sentia livre de tudo e para tudo, e, por isso, superior aos demais
que não aceitavam esta pregação ou ainda não a conheciam e também não a entendiam. Além de
distorcer o Evangelho, essa pregação começou a dividir a comunidade em grupos.
Mas não foi apenas o movimento gnóstico que causou separações e divisões na comunidade de
Corinto. Alguns pregadores, ou por sua eloquência ou por suas ideias pessoais, também criaram
pequenos partidos e linhas dentro da comunidade, e isto levou-a a um enfraquecimento e
afastamento do centro do Evangelho. Por isso, Paulo contra-põe o Evangelho à sabedoria humana e
secular. (1.18-3.23)
Especialmente a nossa perícope deixa claro como Deus não valoriza a sabedoria secular. Ao invés
dos sábios, dos fortes, dos nobres ele chama os humildes, os fracos, os que nada são e nada têm,
para formar sua comunidade. Assim Deus iniciou a comunidade em Corinto; assim ele sempre agiu;
assim ele é! Na composição da comunidade de Corinto (reparai na vossa vocação) vê-se como Deus
age, a quem ele chama e o que ele valoriza. No inicio do cap. 2 (2.1-5) Paulo mostra mais uma vez,
agora apontando para si mesmo e para a sua forma de trabalho, que não é por meio de sabedoria e
força humanas que Deus vem a nós ou que Deus teria mais facilidade de vir a nós, fazendo uso da
sabedoria humana. É justamente o contrário!
O nosso texto é o desdobramento de 1.17ss, é a definição clara da Teologia da Cruz. Deus age de
forma incompreensível, inaceitável até, aos olhos da sabedoria humana. Como pode ele fazer uso de
fracos, de humildes, de pessoas insignificantes, deixando os entendidos, os fortes e os influentes de
lado? Esta é a loucura de Deus.
Os sábios, os fortes, os de destaque sempre correm o perigo de planejar e realizar por conta própria
e baseados em suas capacidades; e, depois de terem alcançado o alvo colocado por eles mesmos,
sentem-se realizados e satisfeitos (vanglória). Todo o sábio e todo o forte sonha e quer ir para cima,
para os altos, ao passo que Deus se esvazia, vai para baixo, manifesta-se na fraqueza. Só o fraco
sabe de sua real situação e, por isso, caso conseguir algo, sabe que não foi por sua causa. Apenas
quando se está lá embaixo, quando o homem se despe de toda força, autoconfiança e orgulho, é que
se pode ouvir o chamado (KLÈSIS) de Deus. É Deus quem chama, quem vem ao encontro, quem
faz tudo; mas é possível dizer que o homem precisa se encontrar no faixa em que Deus quer entrar.
A sintonia na qual Deus se comunica com a criatura humana é justamente a da fraqueza, do vazio,
do não ter e não ser nada. Se o homem não sintonizar nesta faixa, ouvirá outras mensagens, receberá
outras orientações (quem sabe até suas próprias), e jamais entenderá Deus. Barth falava da
composição proletária da comunidade; ou seja. a comunidade é composta por pessoas que nada têm
e que nada são (i Co 11.22 e 7.2lss). Estas ficam na sintonia correta. Ali Deus vai se comunicar. Os
humildes são considerados felizes ou bem-aventurados (Mt 5.3) e os pequeninos são ensinados por
Deus mesmo (Mt 11.25).
Uma vez clara a composição da comunidade, uma vez visto quem realmente forma a base e a
grande maioria da Igreja, não há motivo de exaltação e orgulho: todos estão de mãos vazias e sabem
que só Deus poderá enchê-las. Isto, aliás, também é de sua vontade, pois na comunidade as pessoas
estão em Cristo. Uma nova realidade está-se oferecendo a elas e quer determinar todas as suas ações
e seus planejamentos. Esta nova realidade, este estar em Cristo, este futuro imediato que se está
colocando em suas vidas, é a grandeza do Reino de Deus. Estando em Cristo é que eles conseguirão
ver que Deus os aceitou como seus filhos e que os uniu num só rebanho. Através de Cristo
entenderam que Deus está ao lado deles, e por isso Cristo é a sua sabedoria, a sua justiça, a sua
santificação e a sua redenção. (v.30)
A participação na comunidade (KLÈSIS) - ou também o estar em Cristo - possibilita ao humilde,
ignorante e fraco entender que ele mesmo nada precisa fazer para sua aceitação por Deus, pois
Deus, através de Cristo, já o aceitou. Por isso Cristo é sua sabedoria, sua redenção sua santificação.
Em Jesus Cristo, Deus deu ao homem o que ele, por si só, jamais alcançaria. Dessa forma, toda
glória pertence a Deus unicamente.
Assim Deus é e assim ele age.
II — O texto e nossa gente
Estudei a passagem com dois grupos da comunidade. Todos tinham o texto mimeografado em
mãos, na versão da Bíblia na Linguagem de Hoje (sugiro o uso desta versão para a leitura do texto à
comunidade), e partimos da pergunta: o que este texto nos quer ensinar?.
As respostas e manifestações que mais chamaram a atenção foram: Eu entendo assim: que a gente
não deve ser orgulhoso ou querer construir grande só para aparecer — isto Deus não quer. — Deus
nos colocou no mundo para ser simples e nós não devemos querer ser mais do que somos. Se Deus
quis a gente simples, então a gente deve continuar ser simples. — Que Deus escolhe os simples e os
humildes, isto dá para ver que ele escolheu os discípulos bem simples: não foram os que viviam na
igreja ou em casas boas; alguns eram pescadores. — Deus escolheu os que não tinham poder,
porque estes obedecem. — Deus quis mostrar que um pescador pode tão bem pregar como um
sábio. — Se eu vivesse naquela época, eu não teria acreditado na pregação de alguém que era
pescador, isso eu não ia conseguir. — Humilde e simples também foi tudo quando Jesus nasceu; loi
numa estrebaria que ele nasceu e não foi como príncipe. Mas ele tinha que nascer pobre para que os
pobres se sentissem na altura dele.
Surgiram também algumas dúvidas e perguntas. E na medida em que avançávamos, começaram a
surgir, de forma clara e bem expressa, manifestações de inconformidade com o texto e com algumas
colocações. Por exemplo: Eu não iria acreditar naquilo que um simples pescador iria pregar. —
Dizer que Deus só aceita os humildes e os pobres, isso eu acho absurdo, porque também tem ricos
bons. — Deus não chama só os humildes e pobres, porque a Bíblia também fala de um cristão que
era médico (Lucas?).
Avaliando os dois estudos, percebi mais uma vez o quanto nossos membros e, muitas vezes, nós
todos temos dificuldade em falar sobre humildade e pobreza em nossos círculos. Para a grande
maioria dos nossos membros, cristianismo nada tem a ver com pobreza e fraqueza, e quando esse
assunto entra em pauta, logo se levantam barreiras e muitos começam a se defender. Defendem-se
mesmo que não sejam atingidos — assim ao menos me parece (quem sabe, aprenderam a defender
automaticamente o sistema capitalista). Percebi, por outro lado, que a simples leitura do nosso texto
trazia logo a lembrança do nascimento de Jesus na maior simplicidade e pobreza. O texto realmente
fala de como Deus age. E Natal é uma ação concreta de Deus.
III — O texto e Lutero
Não tenho às mãos nenhuma prédica de Martim Lutero sobre a nossa perícope. O
devocionário Castelo Forte 1983 traz algumas palavras de Lutero sobre o texto e também sobre o
Natal. Vejo que estas palavras podem enriquecer a nossa reflexão:
Assim Cristo inicia seu reino através de leigos que não tinham instrução alguma e simples
pescadores que não tinham estudado as Escrituras Sagradas. Parece absurdo que a igreja cristã
começou com aqueles pobres coitados e com a escandalosa pregação de Jesus de Nazaré,
crucificado, ridicularizado, cuspido, caluniado, maltratado de modo mais vergonhoso e afinal
pregado na cruz e morto como agitador e blasfemo, como indica o letreiro no alto da cruz.
Que o bondoso Deus me livre da igreja cristã onde só existem santos. Eu quero ficar naquela igreja
e estar entre aquele pequeno grupo de gente desanimada, fraca e doente, que reconhece e sente seu
pecado, miséria e desgraça, e que também de coração e sem cessar anseia e clama a Deus por
consolo e ajuda, crê no perdão dos pecados e é perseguida por causa da palavra. O diabo é um
velhaco muito esperto. Ele usa os entusiastas para levar os ingénuos a acreditar que o importante
não é pregar o evangelho, e sim voltar-se para outras coisas, como levar uma vida santificada,
carregar a cruz e sofrer bastante perseguição. E através da falsa aparência desta santidade inventada
por eles mesmos, e que é contrária à palavra de Deus, muita gente é enganada. Mas nossa santidade
e justiça é Cristo, em quem, e não em nós mesmos, somos perfeitos.
Cristo somente pode dar-nos seu poder se formos fracos. Se pudéssemos fazer frente a nossos
adversários por meio de nossa própria força e poder, a glória seria nossa e não de Cristo. Agora a
experiência nos ensina que não podemos ajudar a nós mesmos, mas que Deus tem de fazer isso.
Assim ele é glorificado em nossa fraqueza. Cristo, o Senhor, nos consola com esse conhecimento de
que por vezes temos que ser fracos enquanto nossos inimigos se fortalecem e se gabam, mas, apesar
de tudo, Cristo sai vitorioso.
As palavras não temais indicam que esse Rei nasceu para aqueles que vivem em temor e tremor, e
que somente esses fazem parte de seu reino. A esses deve-se anunciar uma mensagem semelhante
àquela que o anjo anunciou aos pobres e atemorizados pastores: Eis aqui lhes trago boa nova de
grande alegria.' Essa alegria, na verdade, é oferecida a todo o povo; mas apenas aqueles que têm
consciências atribuladas e corações atemorizados podem sentir essa alegria. O mundo está contente
e se sente bem quando tem bens, dinheiro, glória e poder. Agora, um coração atribulado e miserável
não deseja outra coisa senão paz e consolo, certeza de que Deus lhe é gracioso.
Veja, que imensa honra Deus não concede àqueles que são desprezados pêlos homens e se alegram
nisso! Aqui percebemos para onde se dirige seu olhar! Apenas para baixo e para as profundezas,
como está escrito: Ele está entronizado acima dos querubins, contudo olha para as profundezas e
para os abismos. Os anjos também não foram ao encontro de príncipes ou poderosos, e sim de
leigos incultos e das pessoas mais humildes da face da terra. Não poderiam ter-se dirigido ao sumo
sacerdote, aos escribas de Jerusalém, pessoas que tinham muito a falar sobre Deus e os anjos? Não.
Os pobres pastores, que nada eram nesta terra, foram dignos dessa grande graça e honra no céu.
Veja corno Deus despreza o que é altaneiro.
IV — O texto e Natal
1. Ambiente festivo, de harmonia, de alegria, de fraternidade universal, de ternura, de enlevo, de
perdão, de paz. Os jingles, as músicas, a propaganda, os meios de comunicação em geral veiculam
uma imagem de Natal pretensamente celestial ou angelical. Desde a infância nós todos somos
influenciados e orientados para almejarmos esse Natal de aconchego e conforto material e afetivo
na assim chamada maior festa da Cristandade
Em contrapartida, o nascimento de Jesus Cristo ocorreu de fato, conforme os relatos evangélicos,
numa estrebaria que fede a esterco de animais. Esta criança que ali jaz, está cercada de ameaças que
atentam contra a sua sobrevivência. Ela nasce em terra estranha, porque um estado autoritário
obriga seus pais a se deslocarem de uma cidade a outra. Um dos direitos básicos entre os israelitas é
quebrado, quando Maria e José não encontram hospedagem.
A criança nasce e é deitada num cocho próprio para a alimentação de animais. Um rei ciumento e
prepotente ordena a matança de inocentes, por sentir-se ameaçado por um menino.
Mesmo assim, apesar da morte que a cerca, a criança sobrevive. É da miséria da estrebaria que
nasce a esperança para o mundo. Um menino indefeso é preservado por Deus em meio a todas as
condições adversas.
Neste contexto, não é de admirar que o anúncio do nascimento do Salvador tenha nos pastores os
seus primeiros destinatários. Marginais abandonados e esquecidos recebem o Evangelho. Estão na
mesma situação que o menino. Talvez justamente por isso eles tenham olhos para ver o anjo, ao
passo que pessoas ditas de bem não o enxergam até hoje.
Natal coloca, pois, o Evangelho numa criança fraca e pobre, cercada de ameaças, em meio a fracos
e pobres, e faz nascer ali a esperança por um novo mundo. Em vista disso, a pregação não pode
deixar de ter vistas para os fracos, pobres e marginalizados de nossa sociedade. Em outras palavras:
Natal não pode ser espiritualizado. É na estrebaria do mundo que a criança é esperança. Ignorando-
se a marginalização de Cristo e dos homens, Natal perde o seu sentido.
2. Eles queriam um grande rei, que fosse forte e dominador, e por Isso não creram nele e mataram o
Salvador, diz o estribilho de urna canção boa de se cantar. Esse estribilho mostra o que é sabedoria
humana, revela claramente como pensam e agem os poderosos. Deus, em Jesus Cristo, não coube
no esquema do mundo e consequentemente foi necessário eliminá-lo e afastá-lo. Desde que Deus
iniciou a im-plantação do seu Reino, os fortes e sábios deste mundo se sentem ameaçados e jamais
vão concordar com alterações e mudanças que não visam o seu bem-estar. Quando Deus se tornou
um de nós, na indefesa e paupérrima criança da estrebaria de Belém, o mais forte do pais, a saber, o
rei, logo se sentiu ameaçado e reagiu com perseguição e com morte. Os humildes, no entanto,
alegravam-se sem cessar.
3. Como nós nos sentimos quando festejamos Natal e como os poderosos e sábios deste mundo se
sentem festejando Natal? Os nossos cartões de Natal, impressos para serem comprados por muitos,
via de regra desejam um feliz Natal e um próspero Ano Novo. Preferimos pensar na prosperidade
do nosso próximo do que na humildade e fraqueza de Deus e da grande maioria de seus filhos. Em
nosso meio tudo deve caminhar para a prosperidade das pessoas, mas lamentavelmente não de
todas. Em todos os casos, a prosperidade é o alvo e, para alcançá-lo, todos os meios são válidos.
4. Natal é acontecimento de grande alegria e esperança. Vale, no entanto, a pergunta: alegria e
esperança para quem? O nosso texto bíblico nos ajuda na procura da resposta: Natal é mensagem de
alegria e esperança para os que não sabem mais como prosseguir, para os que não têm onde e em
que se apoiar para não afundar; é mensagem de ânimo para os desanimados; Natal é o convite vem,
para quem só ouviu sai!. E tudo isto aconteceu da forma rnais simples, mais fraca, mais humilde
possível.
Reparando na atuação de Deus através de toda a História, precisa ser dito que os humildes e os
fracos continuam esperando por este Evangelho que lhes transforma a vida. Que a Igreja possa
anunciá-lo clara e corajosamente também neste Natal!
V — O texto e a pregação
Nunca cheguei a pregar no Natal, partindo de 1 Co 1.26-31, mas pretendo fazê-lo neste ano. As
dificuldades serão muitas, especialmente pelo fato de que o nosso texto não é nenhum bálsamo para
os nossos ouvintes tradicionais — e que no Natal são muitos. Em sua grande maioria, eles — e
também nós, pregadores, que também somos membros! — têm dificuldade em aceitar um Deus tão
fraco e tão humilde como ele se nos apresenta.
Baseado nisso, sugiro uma prédica temática: 1 Co 1.26-31 nos fala deste Deus que escolhe as coisas
e as pessoas humildes, desprezadas e as que nada são para chamar a criatura humana para uma nova
realidade, a saber o Reino de Deus.
Quem sabe, isto pode ser desenvolvido em três partes:
1. Resumidamente mostrar com quem e de que maneira Deus agiu no AT (um punhado de escravos,
este povo eleito, o preferido por Deus; o clamor de alguns profetas, quando o povo se esquecia dos
seus fracos e marginalizados).
2. Mostrar detalhadamente os acontecimentos que envolveram o nascimento de Jesus (veja acima
IV/1), observar o grupo dos discípulos (ninguém letrado ou de destaque) e eventualmente ainda
observar a atuação de Jesus (veja Mt 5.3; 11.25; 1.28 e outros).
3. Descobrir onde estão e apontar para os humildes dentro da comunidade, e dizer a todos eles que
uma nova época iniciou: Deus quer que iniciemos uma nova jornada. Todos são convidados para
caminhar juntos e mesmo que alguns rejeitem o convite, a caminhada se realiza, e Deus vai na
frente!
Deve-se mostrar que a caminhada em direção ao Reino de Deus tem regras bem concretas,
estabelecidas por aquele, cujo nascimento hoje celebramos. Carlos Mesters as coloca assim:
Os fortes
— caminham sem Deus,
— promovem o ódio e matam,
— defendem-se peta vingança,
— abusam de Deus pela superstição,
— querem ser donos, oprimindo os outros.
Os convidados
— caminham com Deus,
— destroem as divisões que impedem o amor,
— sabem perdoar 70 vezes 7,
— têm a coragem de confiar no amor de Deus,
— lutam contra a opressão e procuram servir.
E vale o alerta final: o absurdo de tal mensagem é que este Deus humilde e fraco, nasce
marginalizado e depois é levado à cruz por causa de sua ação em favor de nós — este também é o
caminho da sua Igreja, um grupo pequeno e fraco, que nada tem para se gloriar.
VI — Subsídios litúrgicos
1. Intróito: Vocês todos que procuram a justiça e buscam a Deus! Olhem para a rocha de onde
foram talhados e para a pedreira de onde foram extraídos! Olhem para Abraão, seu Pai, e para Sara
que os deu à luz! Quando o chamei ele era um só, mas se multiplicou por causa da minha bênção.
(Is 51.1-2)
2. Confissão de pecados: Misericordioso Deus, nosso Pai. Tu te tornaste um de nós para nos
mostrar claramente qual o caminho que devemos seguir. Nestes últimos dias, e de forma especial
hoje estamos sentindo e vendo como seria bom, se todos pensassem e agissem de modo diferente.
Mas nos próximos dias vamos nos esquecer de tudo. Voltaremos a agir como nesta última semana.
E tudo porque a nossa vaidade e nosso orgulho não nos deixam buscar-te na humildade e na
simplicidade onde tu te revelas e estás. Continuamos não te vendo. Continuamos esperando que tu
mudes os outros, mas nós não queremos mudar. Esta é a nossa culpa. Perdoa-nos quando clamamos
a ti: Tem piedade de nós, Senhor!
3. Oração de coleta: Senhor, nosso Deus e Pai. Muito obrigado por tudo que tu fizeste para nós até
o dia de hoje, por teu esforço de querer o nosso bem, de querer nos ajudar. Muito obrigado também
por este culto no qual tu tens coisas muito importantes a nos dizer -— elas são tão importantes que
delas depende a nossa vida. Esteja conosco nesta hora e dá-nos a força do teu Espírito Santo para
que possamos ouvir e depois praticar a tua palavra. Por Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador.
Amém.
4. Leitura bíblica: Mt 2.13-18.
5. Oração final: Onipotente Deus, nosso Pai. Nós queremos te agradecer por este Natal —
queremos te agradecer que tu fizeste acontecer o primeiro Natal e que estás em todos, querendo
sempre a mesma coisa: que nós aceitemos esta vida oferecida na manjedoura. Queremos te
agradecer que tu vieste simples e humilde e que não excluis ninguém daqueles que querem chegar a
ti. Ajuda-nos para que nós não nos afastemos de ti nem da simplicidade que a manjedoura e a
estrebaria querem refletir em nossas vidas. Ajuda-nos para que levemos esta tua palavra, criadora de
nova vida, para todos os que vivem á margem da nossa comunidade, da nossa cidade. Para isso usa
a tua Igreja aqui e em todas as partes do mundo; fortalece-a e equipa-a com pregadores corajosos e
convictos da boa nova. Fortalece todos que não têm esperança por uma nova vida: pensamos
especialmente em todos os desempregados, nos viciados em drogas e no álcool, nos que carregam
uma doença difícil consigo, nos órfãos, nos velhos abandonados; pensamos também em todos que
estão sendo explorados. Pedimos-te também por nossa comunidade, por todos os setores de trabalho
que nela existem e por nossas famílias: abençoa a todos, Senhor. Sê também com a direção da nossa
Igreja e com todos os seus setores e órgãos de trabalho para que procurem cumprir com a tua
vontade. Guia-nos e guarda-nos hoje e nestes últimos dias deste ano. Abençoa todos nossos
familiares aqui e longe daqui. Por Jesus Cristo, nosso Senhor e Salvador. Amém.
VII — Bibliografia
— BULTMANN, R. Theologie des Neuen Testaments. 6a ed. Tübingen, 1968.
— DREHER, C.F.R. Meditação sobre 1 Coríntios 1.26-31. In: Proclamar Libertação. Vol. 5. São
Leopoldo, 1979.
— MESTERS, C. Abraão e Sara. 3a ed. Petrópolis, 1980.
— VOIGT, G. Meditação sobre 1 Corintios 1.26-31. In: —Die himmlische Berufung. Göttingen,
1981.
— WENDLAND, H.D. Die Briefe an die Korinther. In: Das Neue Testament Deutsch. Vol. 7.
Göttingen, 1968.