Textos Diversos
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Textos I e II
I
Até noite alta Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de que sempre, através
de toda a sua vida (quase desde o colégio de S. Fiel!), não cessara de padecer humilhações. E todas
lhe resultavam de intentos muito simples, tão seguros para qualquer homem como o voo para
qualquer ave — só para ele constantemente rematados por dor, vergonha ou perda! À entrada da
5 vida escolhe com entusiasmo um confidente, um irmão, que traz para a quieta intimidade da Torre —
e logo esse homem se apodera ligeiramente do coração de Gracinha e ultrajosamente a abandona!
Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na vida política — e logo o acaso o força a que se
renda e se acolha à influência desse mesmo homem, agora autoridade poderosa, por ele durante
todos esses anos de despeito tão detestada e chasqueada 1! Depois abre ao amigo, agora restabelecido
10 na sua convivência, a porta dos Cunhais, confiado na seriedade, no rígido orgulho da irmã — e logo a irmã
se abandona ao antigo enganador, sem luta, na primeira tarde em que se encontra com ele na sombra
favorável de um caramanchão 2! Agora pensa em casar com uma mulher que lhe oferecia com uma grande
beleza uma grande fortuna — e imediatamente um companheiro de Vila-Clara passa e segreda: «A
mulher que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia de amantes!» Decerto essa mulher não a
15 amava com um amor nobre e forte! Mas decidira acomodar nos formosos braços dela, muito
confortavelmente, a sua sorte insegura — e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a
humilhação costumada. Realmente o destino malhava sobre ele com rancor desmedido!
— E porquê? murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o casaco. — Em vida tão curta,
tanta deceção.... Porquê? Pobre de mim!
Eça de Queiroz, A Ilustre Casa de Ramires, edição de Helena Cidade Moura, 18.ª ed.,
Lisboa, Livros do Brasil, 2015, pp. 294-295.
II
Uma sombria tarde de dezembro, de grande chuva, Afonso da Maia estava no seu escritório
lendo, quando a porta se abriu violentamente, e, alçando os olhos do livro, viu Pedro diante de si.
Vinha todo enlameado, desalinhado, e na sua face lívida, sob os cabelos revoltos, luzia um olhar de
loucura. O velho ergueu-se aterrado. E Pedro sem uma palavra atirou-se aos braços do pai, rompeu
5 a chorar perdidamente.
— Pedro! Que sucedeu, filho?
Maria3 morrera, talvez! Uma alegria cruel invadiu-o, à ideia do filho livre para sempre dos
Monfortes, voltando-lhe, trazendo à sua solidão os dois netos, toda uma descendência para amar! E
repetia, trémulo também, desprendendo-o de si com grande amor:
10 — Sossega, filho, que foi?
Pedro então caiu para o canapé, como cai um corpo morto; e levantando para o pai um rosto
devastado, envelhecido, disse, palavra a palavra, numa voz surda:
— Estive fora de Lisboa dois dias.... Voltei esta manhã... A Maria tinha fugido de casa com a
pequena... Partiu com um homem, um italiano... E aqui estou!
1
15 Afonso da Maia ficou diante do filho, quedo, mudo, como uma figura de pedra; e a sua bela face,
onde todo o sangue subira, enchia-se, pouco a pouco, de uma grande cólera. Viu, num relance, o
escândalo, a cidade galhofando, as compaixões, o seu nome pela lama. E era aquele filho que,
desprezando a sua autoridade, ligando-se a essa criatura, estragara o sangue da raça, cobria agora
a sua casa de vexame. E ali estava, ali jazia sem um grito, sem um furor, um arranque brutal de
20 homem traído! Vinha atirar-se para um sofá, chorando miseravelmente! Isto indignou-o, e rompeu a
passear pela sala, rígido e áspero, cerrando os lábios para que não lhe escapassem as palavras de
ira e de injúria que lhe enchiam o peito em tumulto... — Mas era pai: ouvia, ali ao seu lado, aquele
soluçar de funda dor; via tremer aquele pobre corpo desgraçado que ele outrora embalara nos
braços… Parou junto de Pedro, tomou-lhe gravemente a cabeça entre as mãos, e beijou-o na testa,
25 uma vez, outra vez, como se ele fosse ainda criança, restituindo-lhe ali e para sempre a sua ternura
inteira.
Eça de Queiroz, Os Maias, edição de Helena Cidade Moura,
Lisboa, Livros do Brasil, 1998, pp. 44-45.
notas
1
chasqueada – ridicularizada.
2
caramanchão – construção de canas, ripas, estacas ou outros materiais, onde se entrelaçam trepadeiras, formando um
espaço de sombra e de frescura.
3
Maria – Maria Monforte, esposa de Pedro da Maia.
Texto III
Fernando Pessoa, Poesia 1902-1917, edição de Manuela Parreira da Silva, Ana Maria Freitas,
Madalena Dine, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005, p. 400.
2
Texto IV
É com uma cenografia deslumbrante, de José Manuel Castanheira, que nos deparamos ao
sentarmo-nos na plateia do Teatro Municipal Joaquim Benite, em Almada. Ficámos encantados,
naturalmente, pela beleza do artefacto em si, pela sua originalidade, mas também pelo interesse em
saber como se comporta quando habitada pelos atores. E, de facto, uma vez iniciado o espetáculo,
5 compreendemos que dialoga em absoluto com a encenação, induz movimentos pendulares de
instabilidade/estabilidade, promove o jogo e o prazer na representação dos atores, a comprovar a
importância essencial da cenografia como elemento fundamental na criação de soluções na cena. [...]
Falamos de Reinar depois de morrer (c. 1640), de Luis Vélez de Guevara (1579-1644), [...]
considerada, pela professora e hispanista Maria Fernanda Abreu, no prefácio à edição portuguesa,
10 «a mais importante tragédia desse magno período da dramaturgia ibérica», o século de ouro espanhol.
É uma estreia absoluta em Portugal, em belíssima tradução do poeta Nuno Júdice, publicada pela
Companhia de Teatro de Almada, na sua coleção de Teatro, com direção editorial de Rodrigo
Francisco. [...]
Nesta tragédia, segundo Nuno Júdice, o autor «desenvolve, num estilo já anunciador do Barroco,
15 uma complexidade de sentimentos e de conflitos (...) que elevam a peça a um grau elevado de
construção literária», o que reveste de coragem a escolha para a sua encenação. Porém, temos a
felicidade de assistir à versão de José Gabriel Antuñano, teatrólogo, professor, dramaturgista, crítico
que, com grande sabedoria e conhecimento, realizou uma partitura excecional, uma montagem pró-
cinematográfica a tornar possível que atores e público do século XXI se impressionem e partilhem
20 emoções universais, como o exacerbamento das paixões e a reflexão política sobre o conflito entre a
liberdade individual e o poder do estado, que esta tragédia tão poeticamente transmite.
O seu trabalho fica notabilizado na rica, inventiva e dinâmica encenação do jovem Ignácio García
(1977) — que também compõe a música —, especialista em direção de repertório espanhol que, em
diálogo com a cenografia, realça a «metáfora aquática na história de Inês de Castro e a sua fonte das
25 lágrimas», ou o fragmento de um leito de um rio através do qual a «corrente do destino arrasta as
personagens para a morte». Mas também o sonho de premonição de morte, presente no texto e no
tratamento azulejar do cenário, a que a encenação aduz camadas de significação poética e que, a par
dos inspirados e belos figurinos, vestiu os atores de graça e de rigor, a oferecer-nos este tesouro
barroco em perfeita harmonia com o horizonte de expetativa do público.
30 Por último, mas, com certeza, os primeiros, os atores surgem numa distribuição exemplar e bem
dirigidos, com conhecimento da forma de elocução de teatro barroco em verso, sem cesuras,
respirando nos tempos certos, com manifesto à-vontade com a linguagem e com o movimento,
evidenciando os matizes das personagens. [...]
Uma palavra de apreço para a iluminação que soube ampliar a simbologia e os cromatismos
35 presentes na cenografia e nos figurinos, clarificando a sua polissemia. Oportunidade única de assistir
a um sofisticado e feliz espetáculo sobre um dos mais belos mitos do nosso imaginário que a
Companhia de Teatro de Almada nos propõe.