4 SISCAR, M. (Poesia e Crise)
4 SISCAR, M. (Poesia e Crise)
4 SISCAR, M. (Poesia e Crise)
POESIA E CRISE
ENSAIOS SOBRE A "CRISE DA POESIA"
COMO TOPOS DA MODERNIDADE
UNIVERSIDADE
o
ESTADUAL DE CAMPINAS
Reito r
FERNANDO FERREIRA COSTA
Conselho Editorial
Presidente
PAUL O FRANCl •ll'.TTI
ESTRELAS llXTREMAS: SOBRE A POESIA DE HAROLDO DE CAMPOS ....... ..... ....... ..... 305
MICHEL DEGUY: DEFESA E ILUSTRAÇÃO DA POESIA ................. ... ....................... ... 319
A trajetória percorrida por este livro coloca em relevo autores e questões im-
BIBLIOGRAFIA.......................................................................................................... 353 portantes para a formulação daquilo que ainda hoje chamamos, de maneira
heterogênea e com sentidos contraditórios, "modernidade''. A noção, como se
sabe, notabilizada por seu uso em Baudelaire, está em jogo de maneira decisi-
va em autores franceses, mas também tem peso nos desdobramentos da poe-
sia brasileira, em especial a do século XX e a contemporânea, ainda que
suas questões sejam reelaboradas hoje - às vezes, com acréscimo de impre-
cisão - por meio da designação alternativ a de «pós-modernidade''.
De Baudelaire ao Concretismo brasileiro e mais além, a poesia experi-
menta uma notável e complexa metamorfose, rica em rupturas e desloca-
mentos, que não deixa de ter relação com as transformações históricas, in-
clusive com as transformações do discurso das ciências humanas. Tal como
o marxismo, a psicanálise ou a crítica filosófica, o discurso poético moder-
no coloca em questão aspectos fundantes de seu sentido, estabelecendo um
ponto de vista sobre os novos desafios da cultura e sobre os limites do pró-
prio humanismo. Considerada por alguns como declinante e crepuscular,
por meio de uma eventual comparação com a popularidade da lírica ro-
mântica, a poesia tem papel ativo na con stituição de nossa relação com a
linguagem e, sem dúvida alguma, de nossa relação com a realidade.
l'OIISIA 1( CIIISI'.
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l'l)l(SIA li CltlSH AIIUNNN1 'Al,!ÃO
dizer que a poesia vira as costaspara a realidade. A irritação ou o sufoca- moderna ou pós-vanguanlista, linnlmcntc desvinculada dos pontos de refe-
mento das idealidades do azur não são consequência de uma suposta abs- rência da tradição, os acontecimentos que reconhecemos no contemporâneo
tenção, como talvez pudesse ser dito da solução que, abusando da simplifi- não deixam de ser-~~ifestação dos i~passes qu e têm caracterizado his-
cação histórica, chamaríamos de "romântica"; ao contrário, tais irritações toricamente os movimentos teutôni cos da poesia. E que a fizeram desdo-
fazem parte do sentido que o poeta atribui à sua situação. A poesia carrega, brar-se, até ~ossos dias, com fÓrmâs, funções e públicos variados.
assim, uma capacidade de formalização do mal-estar, ou seja, uma peculia- Daí o interesse mas também a limitação das verificações históricas ou
ridade crítica. sociológicas da crise, que constituem um gênero antigo, mas brotam com
A filosofia política marxista habituou- se a discutir o conceito de crise grande força nos tempos que correm . Se o discurso apocalípticoaplicado à
vinculando-o às contradições do sistema produtivo. A crise seria inerente poesia pode ter mais de um sentido , parece que a tradição moderna, mes-
ao processo de desenvolvimento do sistema, sinalizando seus impasses e mo em momentos considerados os mais "conservadores" do ponto de vis-
revelando suas estratégias. E, de fato, é preciso lembrar que, se a evidencia- . ta social ( o chamado "esteticismo"), também carrega razões de ambivalên-
ção das crises é um modo de abalar a violência constitutiva de tal sistema, cia, sinalizando para um outro uso da noção de crise, que gostaria de des-
denunciando seu modo de individuação estatístico e concorrencial , tal dis- tacar aqui, no cruzamento entre o sentido da crise e o gesto de crise.Algo
positivo pôde muitas vezes exercer também a função oposta, de ajuste basea- dessa ambivalência, que frequentemente toma a forma angustiada ou eu-
do na destruição e na substituição contínuas de certas camadas da cultura. fórica da tensão ou da contradição performativa, está em jogo na poesia,
Identificar e compreender essa ambivalência nos permite ter maior clareza ------------ -- -,---,:,-----:-- - ··---···----- ·- --
nesse gesto artístico para o qual a herança deve ser, ininterruptamente,
sobre diferentes modos de tratar a crise histórica que atingiria a cultura e a conquistada, reconfigurada.
poesia, decisivamente . Entretanto, essa distinção higiênica não nos oferece - -·se as preocupações políticas da crítica literária do século passado se
todos os elementos para compreender o sentido poéticoda crise, que é tam- sustentam em distinções subjacentes, mas não menos decisivas, em relação
bém uma interpretação da história (uma "filosofia"da história, poderíamos ao modo mais ou menos atento com que a poesia se insere na história, ca-
dizer) , embora não deixe de ser histórica; e que não deixa de constituir um beria hoje, com urgência,entender os diferentes dispositivos pelos quais o
conflito (algo menos, ou algo mais, que um colapso), embora não seja de discurso poético tem compreendido sua capacidade de herdar a crise. Ou
natureza propriamente ou puramente factual, isto é, independente da for- seja, o modo como vem, desde muito cedo, nomeando o real e construindo
mnli7.açãode seu sentido. essa história.
~) ql1~poderíamos chamar de formalização poética da crise não se se-
--l'J, p,m1clune.:~~sidade e da dificuldade
da "herançà'. Justamente pelo fato de Campinas, abril de 2 0 10.
1u:olh"rli contradição como elemento estruturante do discurso, a crise em
. .". .
1
O DISCURSO DA CRISE E A
DEMOCRACIA POR VIR
Uma das questões mais decisivas dos estudo s literários, frequent emen te
deixada à margem de sua disciplinaridade, é o problema da "perda -de pres-
tígio" de seu objeto - a literatura -, que estaria, nos termos do debate
atual, definitivamente rendida ao mercado ou, conforme a orientação do
critico, em "decadência': isto é, definitivamente incapaz de inserir-se nele.
Essa situação (designad a como crise, exaustão, fracasso, pobreza, desvalori-
zação, perda das ilusões, perda de rumo, de centralidade ) é um toposlarga-
mente explorado pelo jornalismo, mas tamb ém pela universidade , que tem
multiplicado nos últim os anos seus sinais de alerta, quando não suas "des-
pedidas" à literatura 1• Trata-se de uma tese sobre o tempo presente que, se
por um lado pode ser assimilada paradoxalmente ao pr óprio funcionamen-
to das instituiçõe s no que elas têm de mais conservador, por outro lado
ajuda a prop agar um sentimento pelo qual a literatura é colocada em posi-
ção de desconfiança e, em certas situações, poder-se-ia dizer, na posição de
réu de um mal-estar cultural muit o mais abrangente. Apesar do caráter po-
lêmico , a questão é tratada de modo relativamente ligeiro, permanecendo
1. Na França, como argumenta Antoine Compagnon (2007), a cada ano alguém publica
um "adeus à literaturâ'. Ensaios sobre a crise da literatura já se tornaram quase um gênero à
parte, curiosamente integrado de maneira perfeita ao mercado literár io. Um dos sucessos
editoriais da rentrée2005/2006 foi, por exemplo, o livro L'Adieu à la littérature,de William
Marx.
r--, 17 ,-._J
l'IIHSli\ 1! l'.IIISI( 11 IIINl!IIIINII Ili\ C:IIINII
cm larga escala no campo _intuitivo da avaliação dos "ares da cpm:a" ou da 11111ll0 mnis rnmplcxos do lllll' Sl' pensa e não raro contraditórios : venda de
tendência crítica do analista. livros, produçfü> editorial ao longo <lahistória , fluxo de traduções, uso de
Em que consistiria esse mal-estar da literatura, no qual a teoria se apoia hihliolcca s, circulação de livros usados , variedade de suportes do text o (li-
ou que a teoria denuncia? Para entender a questão em toda a sua extensão, vros, revistas especializadas, imprensa escrita), tipos de uso da literatura (na
seria preciso deixar de tratá-la unicamente como pressuposto do discurs o, t•ducação, nas diversas artes), além, é claro, do fenômeno da Internet, essa
como um estado de Jato da cultura ou da literatura. Ou seja, seria preciso ~igantesca biblioteca, que tem sido considerada também como um labora-
negociar com outros tipos de avaliação, outros tipos de evidência muito tório da criação literária 2• Não há como não pensar que as atuais pesquisas
menos disfóricos, que fazem parte do cenário discursivo sobre o contempo- nessa área, pela sua inco mp letude e pelo segredo de polichinelo que afinal
râneo e que reinserem o tema em outro tipo de perspectiva, a da "interpre- acabam "revelando': valendo-se da legitimidade conferida pelos números,
tação''. Isso evitaria o engessamento do discurso intelectual nos limites da apenas inflacionam uma situação di scursiva na qual vários tipos de inte res-
evidência dos fatos, ou o obrigaria a justificar o crédito por vezes ilimitado se permanecem silenciados.
que concede a essa evidência. Por outro lado, é importante lembrar que a Apesar da relativa fragilidade dos argumentos, o espaço dado a eles não
extensão da questão da crise não é apenas da ordem dos acontecimentos deixa de fundamentar publicamente o movimento de mão única em curso
presentes, não é apenas um "estadó ' de coisas, mas inclui também um per- nas relações entre a circulação do livro e a política de publicação das edito-
curso histórico e um sentido cultural a serem levados em consideração. Por ras; entre a vida intelectual e os suplementos de jornais; entre o peso social
fim, a proposição da crise não depende apenas de uma verificação externa da literatura e as transformações sofridas pelas políticas educacionais (cur-
ao campo do discurso literário , que lhe conferiria valor e sentido, mas faz rículos, conteúdo de vestibulares). Como se as instituições que interagem
parte de sua própria constituição moderna, do modo corn9 dialoga com os com a literatura fossem apenas receptoras pa ssivas de um fenô meno supos-
outros discursos. tamente definido e quantitativo que - no fundo - elas mesmas ajudam a
O pathos da crise pode tornar-se uma questão relevante para a teoria criar, a reproduzir ou a aprofundar. Explicitando o que está em jogo nessa
literária? Dificilment e, se acredit amos que sua tarefa não é a de formular . passagem do sentimento de crise para a política das instituições, parece que,
avaliações quanto ao grau de penetração da literatura na cultura. Até por da visão algo paternalista que, no passado, pretendia educar o público igno-
isso, apesar da retórica bombástica do anúncio, tal avaliação tem discreto rante na obediência de valores elitistas, estamos passando hoje diretamente
detalhamento e raramente é evidenciada como tese crítica. Ao contrário, para o cinismo (também chamado "realismo ") da obediência ao gosto do
aparece normalmente em tom de cumplicidade, por meio de uma conjec- "público-alvo': público cuja natureza, abrangência e inte resses, a rigor, são
tura supostamente partilhada, como pano de fundo para outras operações
do discurso. A alternativa de que dispomos para esse tratamento aproxima-
2. A simplificação fica clara em pesqui sas como a do National Endowment for the Arts
tivo da qu estão apresenta-se menos como uma sociologia da cultura do (cf. Silva, 2008) , que limita a experiência de leitura à venda de livros (minimizando, explicita -
que, frequentemente, como uma estatística dos produtos culturais. Refiro- mente, a importância de dados contrad itóri os, corno o aumento do faturamento das livrari as,
me à insistente elaboraç ão de pesquisas baseadas em estatísticas e dirigidas e qu estões importa ntes da no ssa época, como o acesso ao texto p romovido pela Internet),
mais especificamente, à quant idade de dólares gastos em livrarias por famllias americanas.
uo grande público, as quais, frequentemente limitadas por precaução "meto- Pode-se perguntar , nesse caso, a quem intere ssa a confusão explícita entre a relevància social
dológku': a rigor dcixom <lcenfrentar a dificuldade dos dados objetivos, da obra artística e a circulação empresarial do dinheiro.
definidos por publicitários e gerentes invisíveis e, nesse sentido , irresponsá- prohahílid,1dc, da cstat[stku, du mall~lll.Hica,de um a certa tecnologia do nú-
veis, do ponto de vista das políticas culturais. llll'ro ) conferiria sentido ao prin dpio de troca que estrutura a vida social e
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Arriscaria dizer que o consentimento geral da crítica mais séria à relativa rullural moderna, a que a litera tu ra reage e o qual denuncia. Do mesmo
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falta de rigor, nesse campo, dando por perdida a época das "utopias': não ajuda modo, mas com estratég~~-~P.~!entemente _?.Posta , a literatura optaria ~r
a evitar a confusão entre discursos de natureza e valor bastan te heterogêneos. incorporar esses_elerne,nt°.s,_a_
fim ~e refor mular seu modo de inserção cul-
De modo geral, seu interesse pelo sentido do contemporâneo denota uma turnl, ao dar-~_!i
_e outr ~s--~~~ t!_g!~~·Apesar da s diferen ças de tática , em ne-
espécie de urgênciaem definir aquilo que está em jogo no destino da literatu - nhum dos casos as tr ansformaç ões do pr esente são experimen tadas pela
ra. Ou seja, a formulação apressada de panoramas do tempo presente indicia literatura como cômodas ou legíti mas. Por isso, histor icamente , faz parte do
a natureza imediatam ente estratégica, mas também interessada, compulsiva, discurso literário a atribuição a si me smo, como agente cultu ra l, da tarefa de
com que nos relacionamos com a ideia de "crise''.Se, como disse, colocada em denunciar o infortúnio , anunciar a decad ência, ou, ainda, a part ir dessa
termos habituais , a busca em determinar a falência da leitura e da literatura con statação , de redefinir positi vamente as destinações da cultur a.
pode gerar uma discussão estéril, dada sua imprecisão e os diversos tipos de A re.'.3-ç!?.A~
!.liloque se percebe como a ilegitimidade do presen te é ~
interferência que estão em jogo, por outro lado a urgência com a qual esse traç o disc~r ~!v_9
__q~e._c51~-~~_p_elomenos 15 0 anos, se deixar mo s à parte o
sentimento de crise se manifesta é extremamente relevante como indício de viés_do escapisn_i°._~: ..!!P;?_!..<?~ântic~. Em Baudelair e, a decr epitude da
um mod o de relação com o tempo presente e com a possibilidade de dizer experiênci a conte mpor ânea já está em prim eiro plano, e a ela se subor di-
esse present e. Nesse ponto, a questão me interessa especialmente, na medida nam até mesmo os eventuais efeito s art ificiais de paraísos e os frustrados
-~ _ __
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em que o sent......imento de crise é, a meu -~-
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11 01\SIA H CIUSll
entrevista publicada no dia 13 de agosto de 2007, após o lançamento do pre- DA POESIA COMO ANACRONISMO
miado docwnentário Santiago,o cineasta João Moreira Salles reafirma essa
l(mbora a questão se coloque também de modo enfático em revistas
ligação entre crise da arte e perda de centralidade, deslocada para a tecno-
L'spcdalizadas ou na produção acadêmica das universidades , coloco em pri-
logia e a ciência:
meiro plano um episódio recente, entre tantos , que se multiplicam no uni-
Vl'rso do texto impresso ou eletrônico, e que manifesta, a meu ver claramen-
Não estou dizendo que o Brasilé um país medíocre. [...] Estou dizendo que as k, o desejo de dar sentido ao tempo presente por meio da crise.
nossas ambições se tornaram mais medíocres. Disso não tenho dú vida.[ ...] O cine-
Se não é incomum que considerações sobre arte e cultura venham fun-
ma é importante dentro de determinado caldo cultural. Quando esse caldo desapa-
damentada s por opiniõe s extremamente pessimistas em relação à qualida-
rece, pode haver cineastas extraordinários, e eles existem, mas os filmes não têm
de e à abrangência da experiência da literatura contemporânea, o caso é
mais centralidade. O cinema teve o seu momento, e o momento passou. A centrali-
mais significativo pelo fato de o autor do texto ser um escritor de sucesso,
dade hoje está na tecnologia, na ciência.
muitíssimo requisitado no Brasil e também conhecido no exterior. Trata-se
do escritor Bernardo Carvalho, colunista do jornal Folha de S.Paulo, que
Ao mesmo tempo que confirma a concorrência entre o ponto de vista
publicou, em 14 de agosto de 2007, uma crônica intitulada "Moça num ves-
da arte e o da ciência, a afirmação desloca ligeiramente a nossa percepção tido velho''.Em que pese o caráter"ligeiro" do texto, sua impor tância relativa
da centralidade do número. Se a perspectiva critic!l, dirigida _ao_conteme:>- não deve ser depreciada, uma vez que jornais e revistas (em versão impressa
râneo pela via da desolação, da afirmação do fracasso, faz parte de wna
- - -·----- ---...-~- ----- ·----· -·--..-·•· --- -- - ·-- ou eletrônica) continuam sendo um espaço important e de circulação do
tradição, ela não Pª! ~_c_~_~s!.~!..~.?
-~~!cionada à ~-? pularidade da obra artística discurso intelectual, mesmo para aqueles que se latnentam pelo esvazia-
(o que a rigor distinguiria o cineasta do poeta, em certos casos). Mesmo o mento dos suplementos literários.
gênero ou a obra bem-sucedidos podem fazer da perda de "prestígio" (ou Basicamente, o texto tem como proposta comentar um vídeo sobre a
das "ambições': o que é um pouco diferente ) uma evidência da crise. A afir- Rússia exibido em mostra de fotografia re~da na Pinacoteca ~e São Pau-
mação desloca o problema, porém não desmente a tradição. Assim, uma lo. Para o autor, as imagens , reiterando uma realidade de fachada (a realida-
abordagem do problema da crise que considere de modo rigoroso a histori - de do aumento do consumo, que permitiria dizer que a vida "está melhor"),
cidade de nossas formações discursivas deveria não apenas atribuir conteú- "não veem" aquilo que é "mais terrível''. Esse invisível, a violência oculta,
dos contemporâneo s ao teloshistórico da degradação, mas tamb ém ser ca- seria justamente aquilo que o jornalismo vê e veicula. O articulista retoma
paz de descrever-lhe o percurso, as estrutu ras ou modalidades e, além disso, o exemplo de Politkovskaia, jornalista que, tendo denunciado esquemas de
o próprio sentido de sua urgência ou de sua necessidade. corrupção, de tortura, de assassinatos e de censura à mídia no governo Vla-
Isso provavelmente ajudaria a perceber o modo histórico de constitui- dimir Putin, foi assassinada quase na mesma época de realização do vídeo.
ção da comunidade literária ~orno comunidade críticae, de forma mais sen- Apesar da brutalidade da eliminação de wna jornalista perseguida pelo Es-
sível - do ponto de vista dos interesses do discurso teórico-, a reconhecer tado, como lembra Carvalho, a população não faz questão de enxergar esse
os diversos tipo s de apropriação e de usos que são feitos da ideia de crise, abuso de poder. Isso porque - como denuncia o texto - o consumo é a
diferenças que ajudam a situar o discurso teórico tanto quanto ele, de modo ordem que rege as relações no contemporâneo, um imediatismo que amor-
tão dramático, desejasituar-se. tece o senso de justiça.
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l'Ol\SI,\ H C IIISH O 111111'.llll~Cl Ili\ CICINII
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1
não está, como no passado, à altura de tal exigência. O que 111.iischama a lista e a poeta gera ruido 111111proxi11rni,:ilo.
Mas provavelmente a aproxima-
atenção e constitui sua tentativa de aprofundar o caráter polêmico do texto \fü> se quer apenas rctórirn e scrVl! para destacar, a partir do fato pitoresco,
é a aparição repentina, com valor de exemplo, da literatura no artigo, desig- u ordem cronológica dessas mortes , o que levariao _lei_tor _a_con~J.~i!.9.U..~
..CJ
nada especificamente pela via do gênero "poesia''. Distante, até ali, do debate jornalismo sucede à poesia em centralidad~ e _importânda _c~1!!.~ .A~8.~~rso
sobre o jornalismo e sobre o consumismo contemporâneo, sua situação sobre a cultura, considerado o frescor do
.. .. . .. ·-.. ~angue
. . . .......
de seus
. .. ... ..
, ,
heróis.
···-- -
acaba ocupando praticamente a terça parte do artigo, e a ela se refere a ex- Qualquer que seja o sentido textual da associação, é espantoso o modo
pressão destacada como título ("Moça num vestido velho"), formulaç ão abrupto e aparentemen te gratuito pelo qual a poesia é alçada à condição de
usada pela poeta russa Tsvetáieva, em correspondência pessoal, para desig - coadjuvante de uma demonstração sobre a importância do jornalismo hoje. A
nar-se a si mesma. .~ituaçãoda poesia constituiri~?_para Carvalh_CJ
_,_
_?ffi~ evidência da _mudança de
Na expectativa dos desdobramentos de um discurso tão enfático sobre priorídad~s no .Ill~~o - contem.e2râneo ("Uma mudança significativa desse
a situação da política mundial , o leitor se espanta com a entrada em ce.na de modo de pensar [segundo o qual "absoluto, só o lucro"] é que a poesia já não o
um ator inesperado e sem relação direta com o assunto. A surpresa é des- ameaçâ').A arbitrariedade do poder coincide com~ época em3,Ue a gratui-
feita apenas no final, quando compreendemos a lógica subjacente com que dade poética _fica em segunyo y)ano,em que a poesia não é mais (e acrescento:
o autor associa poesia, intriga s políticas e a lógica do consumo: o fato de a se é que foi algum dia) uma ameaça ou uma alternativa geral à centralidade dó
jornalista Politkovskaia ter escrito um trabalho de final de curso sobre Tsve- poder financeiro, à centralidade ou ao poder de seu discurso 6•
táieva, poeta hostil ao utilitarismo político em poesia. A postura do artigo de Carvalho em relação à poesia é ambígua, como
Assim termina o artigo de Carvalho (2007): ocorre em geral com os discurso s que se valem da constataçãoda crise: por
um lado, podemos imaginar a melancolia do ar ticuli sta pela perda de int e-
r É curioso que Anna Politkovskaia tenha escrito sua dissertação de final de curso resse da poesia (o que, a rigor, faria dela uma espécie de antepassado ilustre
de jornalismo sobre Marina Tsvetáieva, a poeta que não acreditava na poe sia com do jornalismo)7 e, por outro lado, uma tentativa de atualização da sensibili-
função utilitária, a serviço da política ou das causas cívicas. Numa carta da correspon- dade contemporâ~ea de modo mais afinado com seu s novos valores - nes-
dênci a que manteve com Boris Pasternak , autor de "Doutor Jivago'; Tsvetáieva se pro - se caso, com o heroí smo sacrificial do jornali smo -, dentro dos quais a
clama "moça num vestido velhd'. l:.uma imagem enfática da poesia hoje, num mundo
~oe~i~~ -ª-r~~'=--~~ .~~:~s-~ -~•.!s~º·-~' ~·º -~? .rn_iJ_?_ ~u!!llf~1~ _s_~!je pu :.~~o,
cada vez mais utilitário e consumista, esvaziado de tran scendência , onde ela já não eventualmente denunciado.
L precisa ser silenciada, pois não tem mais lugar nem importância .
6. Vista por wn outro ângulo, a associação frequente entre políti ca e poesia no mundo
contemporâneo é inclusive criticada , em texto publicado no mesmo jornal, por Nelson As-
O próprio nó da aproximação não deixa de enfatizar um certo estra - cher. No artigo de 23 de ju lho de 2007 ("A poes ia do século passado" ), o articulista lamenta
nhamento. Afinal, justamente por ter escrito um trabalho sobre uma poeta essa associação, uma vez que é justament e a unan imidade polític a que prejudica a poes ia e sua
avessa à política, o que se destaca na relação de Politkovskaia com Tsvetáie- escassa "biodiversidade" futura.
7. A associação da morte de poe tas do início do século XX com motivaçõe s políticas é
VII 6 Ht'll cnri\terinusitado, "curioso''. Embora ambas sejam figuras da intelli- um fato histó rico, mas a ligação genérica ent re suicídio e denúncia política é uma oper ação
1'"'''" cuju morte, em épocas distintas, tem relação direta com o
r111u111 extremamente pr oblemá tica. O caso de Maiakovski é parad igmático da complexida de do as-
Hft'tl~ln "livl11l~11d11t:Hlulnl,n diferença de postura política entre a jorna- sunto, tendo suscitado surpresa e interr ogações mesmo da parte dos amigos mais próximos,
como Roman Jakobson (2007).
l'lll!SI,\ 1\ C:IIISI\ O IIINt:lltl~II IIA CltlHII
Na associação inusitada em que comparece, a poesia atua como uma es- Formulundo de outro 111ml11
: o fato de a jornali sta ter escrito um traba-
pécie de figurante em um texto sobre o jornalismo, mas um figurante contra- lho universitúrio sobre a poeta expressaria um distanciamento algo excên -
ditoriamente essencial, uma vez que o próprio título a designa diretamente, trico -- irônico ou generoso - em relação a um anacronismo (lembrand o
faz dela o centro das atenções. Como se, ao revelar alguma coisa relativa às lllle 'l'svctáieva morreu em 1941, ou seja, mais de meio século antes)? Reme-
questões mais cruciais do nosso mundo, justamente por estar fora, incapaz de leria a um interesse pela força de um outro discurso, em relação de contras-
interagir com ele, ~oe sfa fosse tamb ém um fundo negativo eara a delinli!~- te com o seu? Ou, ainda, a uma fascinação da jornalista pelo heroísmo invo-
ção das positividades da cultura contemeorânea. A ausência da poesia no luntár io, ou eventualmente suicida? O leitor da crônica não tem condi ções
presente, sua central idade oca, está destacada em vários níveis, tanto no da de ir além das especulações. Mas nenhuma das pergunta s é absurda. S_e um
experiência que Politkovskaia tem da poesia como no da retórica do texto. dos antigos professores de Politkovskaia considera que, depois de termina-
O último parágrafo do artigo, citado acima, acumula vários deslizes de do seu curso, ela tenha trocado a "obsessão" da poesia pela obsessão do jor-
sentido, mas a associação entre Politkovskaia e Tsvetáieva é central para a 11alismo 8, poderíamos ter um início de resposta, um a das respostas possíveis
articulação da crônica. O fato de uma jornalista comprometida com a de- para um a questão falsament e simples. As razões que aproximam Politkovs-
núncia política ter escolhido como assunto de investigação uma poeta des- kaia do jornalismo poderiam n ão ser realmente diferent es das razões que a
comprometida literariamente com a política, mas afetada diretamente por aproxima m da poesia, o que complicaria, se não a distinção entre esses dis-
ela em nível pessoal, tem exatamente que motivação, ou que sentido? Algu- cursos, pelo menos a coerência intelectual da interessada. Aliás, não seria
mas hipóteses: 1) Significa que a jornalista se distancia, por um gesto de difícil imaginar que, p_~~aela, o jo_~nalismo e_apoesia têm. 11,~_i_ri!~!~s~~
3~-
excentricidade, de um tipo de vivência da cultura que já não encontra ecos 111u~:baseado quando não no exercício da {>?.lí~i
~~•.P..~
-~~--~~-º~~~ -P!_~t~~a
em sua época? 2) Significa, ao contrário, uma atração afetiva por um outro de um he~oísmo relacionado com a experiênciado mundo político, u~ h e- -.1/--
tipo de vivência do real, diferentemente relevante? 3) Sugere uma atração roísmo ~ventualment~ ;uicida que conc;b~~!~la~ -~ _co~ _o C.~~t~~<:>!.:~ .e_o
afetiva ou intelectual por uma figura pública que, a despeito de seu distan- pela via .de ~; ce-;t~~th~;, Qu~seja, e~~t;rnente _aquilo _que car~~~eriza-~.!!1
ciamento do poder, teria sido martirizada por ele, na esfera pessoal-familiar, grande .E~i~ -~!aietpri~.5!~ P.<?~~~~~ ~?...~é~~o._)C!:'(
e~ -~-~á. _
a ponto de se suicidar? Mas restrinjo-me aqui à retórica do texto de Carvalho e, especificamen-
O texto não se manifesta sobre isso, embora se trate de um ponto nevrál- te, ao termo "curioso: que aponta para um nó de sentido não nomeado: o
gico do raciocínio sobre as relações entre o heroísmo poéti co e o jornalístico. inter esse de Politkovskaia pela poesia é curioso,ou seja, sua compreens ão
Afinal, por que Politkovskaia se interessaria tanto por uma poeta descompro- não parece evidente, autom ática.
metida politicamente ? Bernardo Carvalho limita-se a considerar o fato como
"curioso''. Mas por que o fato é "curioso': por que exatamente merece atenção,
s."Anna Politkovskaia foi aluna de Zassou rski [Yassen Zassourski foi diretor da faculda-
destaque, focalização do discurso? Poderíamos, se quiséssemos, explicar a
de de jornalismo da Universidade Estatal de Moscovo]. 'Conheci -a desde muito cedo [diz
presença do adjetivo como um modo retórico de o texto fechar as pontas de Zassourski]. Até conhecia os pais dela. Era ótima estudante e interessava -se por literatur a. A
um raciocínio que faz a ligação entre coisas desconexas. Mas podemos tam- sua tese de admissão na faculdade foi sobre poetas ru ssas - Akhmatova , Tsvetáieva ... Mas a
vida dá as suas voltas e ela foi para a Chechênia. Essa tomou -se a sua nova obsessão:" Kathleen
bém atender ao movimento da atenção que o texto convoca (é um fato "curio-
Gomes, Perigosaobsessão,ser jornalista na Rússia, disponível em <comunicamos.wordpr ess.
t' lcntnr levar adiante o esclarecimento de suas razões implícitas.
1111") corn/2007 /12/16/e -perigoso-ser -jornalista >, consultad o em 15,fev., 2008.
l'lll!SII\ H ClllSI! 11 IIINt:llltNII Ili\ t:111111!
Esse elemento coesivo , que não chega a ser um argumento, quase que <:rdo qllc não estamos muilo longe disso , e que o tratamento da poesia
rica àquilo que a insinuação final ape na s sugere, resume ou silencia, e cuja 11ia)está cm jogo quando se insiste publicamente no anacronismo da poesia
análise cuidadosa complicaria uma situação que é colocada em termos qua- 1111 de determinada ~isã;;de ~~ tur a?9 Que tipo de política de gêneros está
se categóricos. Se, no mundo utilitá rio e consumista, a poesia "não precisa l'lll jogo quando o autor do,_teitÕ -éum romancista bem-sucedido? Que tipo
ser silenciada, pois não tem mais lugar nem importânciâ: qual seria especi- til-visão de literatura (e de jornalismo) está em jogo - ainda que sub-rep-
ficamente o interesse de referir-se a ela, de escrever sobre ela trabalhos de tlda - quando , na mesma página de jornal em que se assinala a senilidade
1
fim de curso, ou artigos em jornais de grande circulação? da poesia, a grande estrela literária do dia é Bruna Surfistinha? º
O que é curioso para Carvalho não deixa de sê-lo para seu leitor: por Naturalmente, esse flerte entre informação e censura não diz respeito
que, afinal , recorrer a uma longa digressão sobre poesia para alicerçar con- l'Katamente, ou especialmente, à posição intelectual do autor que escreve o
siderações sobre o lugar e a importân cia do jornalismo? Por que um cronis- artigo. Bernardo Carvalho , aliás, tem optado por publicar romances razoa-
ta, a propósito de uma exposição e da situação atual do capitalismo russo e velmente eruditos e não por desenvolver a carreira de repórter, à qual seu
mundial, considera necessário abordar o anacronismo da poesia? Se a poe- artigo expressa um certo reconhecimento.
sia perdeu sua distinção, qual é a razão que a levaria com tant a frequência à Entretanto,justarnente pelo fato de ser também um homem de liter atu -
tribuna dos debates culturais? A quem se dirige , de fato, o discurso sobre ra, a relação crítica com o discurso lhe diz respeito e tem, a meu ver, impacto
uma arte sem prestígio, sem poder? Com que finalidade? _Alçando à co~~!- dir eto e decisivo em seu artigo (salvo se o interpre tarmos conio uma opera-
ção de tí_tulo a ,c<>ntradição_vivj,~a por Tsv~táieva (de sentir-se moça num ção de distinção entre romance e poesia, hipótese que não deve ser descart a-
vestido velho; frase, aliás, cheia de possíveis interferências psicológicas, es- da, mas que não altera substancialmente a divisão entre dois tipos de espaço
téticas e histórica s não mencionadas), es!~n.:d,idaa_<;>
_g~nero lfri_c:9
! 9_~!ig~ -~~
envolve _numa esp}cie de contradição _performativa, revelador a_de um dese- 9. Uma hipótese cabível seria a de que a insistência sobre a perda de prestígio de uma
atividade artística tradicional funcione como uma maneira indireta de a indústria de cultura
j? ou -~e recal_q ~~: .?~e spe1_1~~~r.
. ~quilo _q~e_E!~_p,!~.ft~~
-~~-:i:_sile_11~
-~~~º-Co~o angariar um pou co do prestígio que ela pretende , explicitamente, sepultar, aquele prestígi o
se, no altar do título, a poesia fosse levad a a participar de um ritual no qual que ela justamente não poderia justificar por si só, dado o fato de que aceita de modo cabal
o estabelecimento de novas formas de prestígio se daria pela transformação sua condição de mercadoria. Se o interesse da mercadoria é fugaz, arbitrário, substituível, uma
das ambiguidades mais curiosa s da indústria cultu ral é sua obsessão regular e fascinada pela
l'm pnssndismo de outros tipos de dis curs o - a não ser que cheguemos à
crítica aos "velhos" valores, aqueles que reivindicam justamente um outro tipo de lugar dentro
rnnduNllode que a p_oesi~-~~o está prop~}-~~-~!~ s~~E~-~~2,_IE,_~S,g,_1:1;~
-~~~ da cultura. Um paralelo interessante com o que discuto aqui é, em termos mais amplos, o da
••r•t·lrn
i:onthmn rondando as exig~!,l_c:~asi~!~lectuais da ~?.~-!~_p_9~ític:a, relação da mldia ame"ricanacom a cultura francesa (cf. Morrison , 2 0 07).
10. Certamente, uma escritora entre outros(as) a fazer uma palestra na cidade de São
tumu •• 1u11 l'Vornçllo fosse necessária em determinados co ntextos para
Paulo naquele dia; mas, curicsamente, aquela que o jorna l destaca (e, destacando , designa)
lllltftttr
hl1tnrlnU11l't1lr
n 111ribuição de -~e~it_~ida<l.: .e _d~_r.-~estfgio. · como merecedora do interesse dos leitores .
.--,.J 31 r--.J
1'1ll<SII\ H CIIISI!
1
discursivo: o anacrônico e o contemporâneo). O escritor não é apenas vítima d11poesia e sua potênd11 11111\s
lirilhuntc l' dcdsiv~. Essa potência não se
do suposto envelhecimento da literatura. Não é aí que o paradoxo se apre- rl·uliza plena mente pelo si111plcsmovimento de oposição à tecnologia so-
senta de modo mais interessante. O que me parece relevante é o fato de que, dal dos números , mas pela amb ivalênc ia do discmso da crise, ou seja, por
exprimindo sua posição do modo como o faz, o escritor está no fundo se 11111certo modo de explicit~r o paradox~. â."e
'~~fundar um outro tipo de uso
negando a colocar-se na lata de lixo da história, cultivando a condição ativa da palavra, de experimentar a dupla condição (de artífice e vitima) do temj
de herdeiro de uma exigência de verdade incon4icional ~e ~~~a lite~~tura: po present e.
o--- Tal ambivalência é muito mais ampla do que sua manifestação no dis-
-.~"-~---
direito -~--•-
de ,--·-....
dizer ,,___...
tudo, .........
,____ ___
inclusive ~--
o-~~---····-· •·- p~
fim do mundo,- -- -- --- o fim
e especialmente do
•p____
t:urso da literatu ra. Entretanto, é possível que o modo pelo qual ela é drama-
próprio m~ a própria morte da lite~ é e~sa a exigência que a poesia
incessantemente conquista ou requisita como fundamento de seu discurso. tizada (ou seja, coloca da na forma de convocação à alteridade da leitura)
---- ------ ~ ·------ pc~~it~
determinar algum traço caract~ri~t~da literatura , uma espécie de
Estamos aqui diante de uma exigência de verdade distinta da do jornalismo,
e a qual efetivamente ele não almeja: a verdade do jornalismo é a verdade do ,;literariedade", se é 9..uepode~?, -~_pensar a palavra 1:ão como característica
"fato", a supressão das contradições em nome da clareza do acontecimento, origi~~~iamente intrínseca, mas como construção hi stórica _~cada à dis-
ainda que visto de perspectivas múltiplas. O que é oportuno lembrar é que posição de nossa experiência de mundo. Mas o que importa enfatizar, aqui ,
esse discurso não deixa de passar pela experiência contínua da contradição, é o mod.Ôcomo essa ambivalência ajuda a ente nder o jornalismo, a modali-
em sua necessi.dade de eleger e de excluir, a fim de poder constatar. dade do mecanismo sacrificial como aparece no jornali smo, dentro do qual
A meu ver, o sentimento de crise deve ser reconhec ido ~orno um traço a afirmação da crise (da poesia) não deixa de ser, ao mesmo tempo, uma
característico, de natur~~ ética, da constituição do discurso literário m o- informação e umperforma tivo 11
•
,orno modo de inst~tuir um lug<!-Eq_ !~ttQ!.9 ~ra a _Eoesia: um Iuaar crítico, presso, em face do crescimento da inform ação quase anôn ima veiculada em meio eletrônico
não altera substancia lment e o problema. Pelo contrár io, apenas toma 1nais significativo o
de pnrndoxnl resist~ncia.Não é difícil perceber que existe uma convivência
deslocamento da crise para outras esferas e ma is ur gente a análise das estratégias que o "gêne-
tl!lkll e prohlrmólku cnlrc a~1~1ilo
q~e se aponta como decadência cultural ro" jornalístico tem usado para enfrentar a concorrên cia.
li 11111:llkllll IIA t: IIIHI\
l•tll (NIA li ClllNH
ma sutil, indireta (mas não menos eficaz, isto é, performutiva) de censura, trnumátka), colaborou puni ull'lhuir dislinçi\o ao poeta me smo no caso dos
países socialistas, ela lhe 1cm valido c.:a<luvez mais razões de desconfianç a
~~ _n<i~~.!
~~-ª-~Q~
_<iiçãode fenôme.~C?J.eg!ttJP:
'?..~3:. f:~i~E-~!~coJJ.t~fEp<:>r!-
~~..P
nea, afinado com um tipo de sensibilidade e de__int~Hgênci<~q_ue
nã~i- dentro do campo de legitimidade que , na sociedade liberal contemporânea,
de com a grática de lazer ou com uma forma de conhecimento. É o crime da é conferido ao número, à força legisladora (e, portanto, à força de exclusão)
_., ..- ••--• • --_,.,,., , ,.,-•••..•••~•- ---, - •- ••,..,.._ .•.-•,-••• ••• ••••• •••~••- • , - •- ,,..,. •••••-••••• • •-- - •-r ,.,.,..,..,• .,,_,,
12
falta de "pop ularidade" ou, ainda, de relevância econômica. do gosto da maioria,ou melhor, da maioria do s consumidores • Não espanta
Bem considerada a necessidade de problematizar esse discurso ruidoso que a des confiança em relação à poesia ganhe o primeiro plano no momen-
(e sem negar a importância crítica de formular avaliações pontuais ou ge- to em que essa força regulador a atinge seu au ge e procura ocupar a hetero-
rais sobre épocas, poetas e poemas), poderíamos nos perguntar que espécie geneidade de espaços legados pela tradição. Uma das respostas ao "elitismo"
de demanda se dirige à poesia quando ela é colocada. como nicho artístico• poético já não estaria sendo empreendida concretamente na diminuição de
e cultural, na condição de omi ssa e, indiretamente, de ré. A cena se renova, seu espaço nos currículos, nos suplementos dos jornais, na abertura de car-
diga-se de passagem , a cada entrevista em que se pede que o poeta dê sua gos institucionais?
13
, • . , • 1.
própria explicação sobre a suposta perda de encanto da poe sia, nos dias de Tendo em vista que a quest ão e enunciada muita s vezes pelos propnos 'y
hoje, paradoxalmente a propósito de situaç ões em que seu encanto e sua poe tas (prontos a admitir que a poesia - ou seja, a instituiç ão literár ia -
necessidade mais se desta cam. É nes se ponto , em que o discurso da infor - "não int eressá ', que ela é "inadmissível "), pode-se perc eber que não é casual
mação coincide com o desejode constituir-se como exp ressão do número, 0
fato de tantos projetos literários do século XX, sobretudo aqueles ligado s
como porta-vo z da maioria, no fundo com a pretensão de falar em nome do às vanguardas, terem se sentido seduzidos, ou interpelados, a realizar tenta-
outro, que ocorre o curto-circuito _performativo da informação. Uma espé- tivas de "popularização" da poe sia, a tra zer a poe sia para o espaço totalizan-
cie de incriminação se insinua, pela qual a poesia frequentemente aparece te do "povo", para a tentação estatística da visibilidade do outdoor ou, ainda,
não apenas como acusada, mas igualmente, no mesmo gesto, na condição para O
espaço daquilo que, por oposição, às vezes se nomeia "a vida". A poe-
de vítima substitutiva. sia se tornaria, então, parte integrant e da experiência "comum". Entretanto,
Dada a natureza do proces so, pod e-se ima ginar que o crime pelo qual a para assimilar inteiramente esse racio cínio , seria preciso supor que a repre-
P.?~.s~~~~~-E~.S. !.do,_°._:~~:s c~so~, éjustament~a.que _le,que li;e-d~11_p_{t:~!!S.i?, sentação poética significa necessariamente um afastamento do cotid iano ,
isto é, o de uma visão
-- -- --- . .. . . . . ,..- - ~---~ sacr alizada
----· --~-.. ..e.--mitificada
·- - .
.,
da experiência
. .
artística,
. .. ....___
que
. ··-
uma renú ncia a participar do mund o, oposição baseada numa distinção
sep_:i:~a
decisivamente o poeta do "comum dos mortais': Sabe-se que os paí -
. Os partici pantes daquilo que se conhece corno "maioria" são, geralmente, aqu~le_s que
12
ses soviéticos tiveram seus poetas "oficiais",ou seja, transformaram a poesia têm algum tipo de pa rticipa ção na circulação de bens mater iais o~ culturais. Outr~ dis~~çã ~.
em um dos ofícios possíveis da atividade de produção social, acompanhan- importante a esse respeito é aquela que os profissionais da mídia fazem ent~e. aud1enc1a
do aí a solução burguesa para o romance, embora, de modo distinto, com (interesse do consumidor) e "faturam ento" (intere sse do patrocinador). Essas d1stmções, bas-
tante operantes, relativizam a prioridade do número no sentido republicano, e destacam a
uma concepção bastante fechada de representação artística; mas essa "pro -
interfer ência decisiva dos circuitos do capital.
fissionalização" do escritor não impediu que se transformassem em "heróis" 1
3- A alegação de que a poesia ocupa o espaço de outros objetos culturais digno s do conh~-
da poesia justamente aqueles que se inseriram aí de modo contraditório e cimento crítico é ocasionalmente motivada por uma aspiração "desmistificadora" e "democrát1-
cà', mas se confund e muito facilmente, dependendo do lado pelo qual se olha, com a reiteração
dramático. Se a visão mitificadora da poesia, paradigma aliás bem antigo
de um mecanismo de censura. No melhor dos casos, configura um tipo de reação reflexa à qual
(mnnclrn tnlvcz romfintica de responder a uma transformação cultu ral não resta, como alternativa cultural, senão a legitimidade das pesquisas de gosto ...
problemática entre vida (prática) e arte; e que essa experiência, por vezes St· assim for, po<lcrlnmos dcdu1.irqrn:,sem ajustes no modo de l~!tura,qu~-
arr edia, não contenha um p ensament o sobre a comunidade, o que é falso seja a competência comunicativa do poeta '.~ão há passageIIl ~?_'.'
qm·r t111c g~
em muitos dos casos considerados com o os mais paradigmático s, mais dis- til· público" daqui!~ qu~; na história re~:~1:.. da_~tura,<l.1amamos_poes~.
tantes da vida social. Uma espécie de moral da representaçãoestá inseri~a 'l'nmslcrências e traduções se efetuam, como é frequente acontecer, entre dife-
~esse raciocínio, e _precisaria ser analisada mais de perto 14• 1·t•ntcsextratos culturais, em mais de um sentid o, mas a tentati va de compreen-
5:mbora o de~~jo-~ -~- ~~i -~~o de ~<2.1!1.P~!_Ê
lh~Ç J~ _p_~rt ~ do~~o d~ los dentro de uma única ordem da exper iência sinaliza para uma preocu-
poético (a "beleza" pode ser entendida como aquilo que se deseja compar ti - pante incompr eensão do que está em jogo. Por motivo semelhante, a setoriza-
lhar), a tent ativa de popularizara poesia pela manipulação de seus meios,ou ~·i\o ou a circularidade da destinaç ão da poesia não chega a equacionar o pro -
16
seja, pela simplificação retórica e tem ática ou pelo uso da tecnologia da in- hlcma, que Antonio Cícero discute em crônica publi cada na Folha •
formação, desconsidera um traço artístico bastante peculiar que contraria, Assim entendida, a popularização da poesia não é e não poder ia ser
ju stamente, não digo a comunicaç ão em si, mas a ideia de comunicação npcnas uma questão de logística, nem de concessão estratégica aos interes -
como via de mão única e disp onível à intencionalidade do artista~produtor. ses da maioria. A grande que stão seria, talvez: por que fazê-lo? Por que a
\Teorias sobre a poesia e sobre a arte já destacaram o fato de que ~<:>~ª
se "transformação da vidà ', tão apregoada pela vanguarda hi stórica , pressupõe
comunica com seu público menos pela t~~..S.!E!~~ãode conteú4g_~_ÍJ!!Q.L.m~- rnmo neces sár ia a ideia de um destino coletivo comum? Por que esse desti-
cionais do que pela capacidade que tem de devolver a esse público a ima- no, se existisse, deveria prescindir da experiência artística? Se a "representa-
--- ·- .,.- ~~ .. r•- •---"-,.••• • •••• ••••••-- ••-•• --- -
gem daquilo que é (ou poderia ser) sua própria ex.e_eriência(vivida ou ima- i ividade" de um gênero está muito ligada à aceitação do tipo de leitura e de
-1>- ginada) do s des~qu ilíbri; do mundo . São as marcas do d~o e.da violê~ - tradição aos quais está associada, como negar a evidência de que nem tudo
cia, características da relação com o outro, estampadas como figura s legíveis pode ser generalizado, e de que nem todo s os modos de generalizar fazem
,.._, 37 ,.._,
l'OHSIA H C:lllSH O lllN!:111011 IIA 1:tllXl!
exatamente o direito à diver sidade (o que ele supostamente defende ), mas, 111l111rnl
e, por isso, não prcsdndu da formação de profissio_naise de ~straté-
o que é igualmente importante , o direito à contrariedade. Desse modo, no ,-ilusde div ulgação (que hoje chamamos "publicid ade",mas que incl~i i~~.al~
gesto homogen eizador que o cara cter iza, ele tende a excluir a possibilidade 111l·nlc a chamada "crítica liter ária"), é preciso não perder de vista o que ela
da experiência do outro. h-111dl· hctero gê~eo a essa lógica, não por estar fora dela, mas pelo f~t; ·de
Haveria esp aço, hoje, para um tip o de experiência que cont radiz a frui- ilrnmatiz ar as s~as ~~ntradi ções. Atérp~;~;~-~la ~~-b~;~ficia d~cÍ;i~;~;;; ~
ção consumist a, hed onista e destruid ora? Em outra s palavra s, haveria um dn ltu·mação -críÜcã de seus expÍi;;d7;~~-~. da.pr ~;~~ç~-~-~~stant e de umme-
lugar para a contrariedade da exp eriência artística? Será possível ensinar (e 1ndiswrso qu e seja ~p~ ele levar adia
nte;~ªpráti~de p;~~~~t~
~--.
dar lugar, nã-história contemporânea, para) aquilo que não tem espaço nos Se o discurso da "literariedade", entendido como delimitação sistemá-
padrões de veiculação ou de3~~Jbui ção de.P.~~~~~i
~~;u ltural ? P~ra o ceticis- 1irn de elementos "intrínse cos': já servi u para garantir para a literatura (m as
mo crítico ou para o cinismo mercadol ógico - ponto que não raro têm em também pa ra a teoria da liter atura) um lugar ao sol, entendido como fun ção
comum - o destin o está traçado: é o valor absolutizado do capital urdindo do mercado,o procedimento se repete, hoje, como ajuste aos mecanismo s
su as ramificaçõ es em nível mundial 17
• de troc a, pela transformação da literatu ra em "nicho de mercado': Garant ir
De fato, com as exceçõ es conhecidas , que não se redu zem ao "utilitaris- um "nicho" significa , literalment e, contentar -se em ser dissolvido dentro da
mo " político tradicional, mas se estendem também ao lazer ou ao "entrete- ideia de concorrê ncia, abdicando da busca de um a posição diferencial que
nimento': ~ -~-i~c-~_r.s_!>
_li!e~~r!o (não falo do uso das obra s, nem da postura permitiri a, também, compreendê-la. ~rei o que nã? há c~mo respo_~~er à
dos escritores) ~ã~ se _aCOill()<!~f~!~?:e~t~~~()nc:lJçã_<?
d~ .t~iy~9acies~~QI.c.!i
- injun ção que nos é dirig ida pela literatura sem levar em conta, como diss~
?..~~~-~--1?~!5.~_d!-~~ s,!.:?.!._V:~~.'l
~e se cons_!itl;liC?i:11'?
u~ 111ociod~ cpm- aquilo q~e -~~i~ hád~~et ~r..ºS.~!1-eo
à.set?!i:Z:~5!?~.~q~#.~..'L~~
-dramati za o
~~~~-J?Sâo
abrangente_9:e,~~~
-I'l_l
~SIE_aJóg
ica. A reflexãosobre a totalidade da ..;~t~;
LonfÍÍt~ -~~;
-~~p-;;;ificidade .e seu sentido geral, entre seu "lugar no
experiência (a "verdade") na literatur a não é apenas uma extensão das tro- mercado" e -~ -di;~~e tri a das t~~cas, entre a m ora l da eq uivalên cia geral
cas, mas é tamb ém, por definiç ão, um pensamento sobreas trocas, sobre o entre os indi víduos e a po ssibilida de de dizer tudo ( de dizer o impossível, de
desequilíbri o da s tr ocas , tanto naquilo que esse desequilíbri o tem de violên- adm itir o inadmissível). Respon der à injunção da literatura significa, por
cia e aniquilaç ão, quanto no que ele mob iliza como produç ão de desejo e isso, não exatamente contrapor -se ao "mercado", à interação e à troca , mas
criatividade (econômica, simbólica, cultural). De modo que a literatura inserir -se nessas trocas de modo a denunciar seus efeitos de censura, man -
abrange a lógica de mercado, ao interpr etá-la , tanto qu anto pode ser por ela - tendo no horizonte uma idei a de democracia por vir.
compreendid a. Em outras palavras, embo ra a literatura faça parte do mer- Se algo como um valor democrático está em jogo na literatura não é
cado (antes mesmo da concorrência capitalista), de uma certa concorrência pela supo sta necessidade de chegar ao grand e público, mas pelo fato de
mostrar que a sob_~rania do inter_esse dito comum ~ -~á sempre _a ser elabo -
17.Compreende•se que um discurso minoritário, como o do marxismo, a fim de justificar_ . rada ?.~~!
.~..semp re a ser c~J1gt1_~~t~-~~' e que terá lugar apena~_na medida em
sua necessidad e e sua relevância para a compr eensão do mundo contemp orâneo, seja levado a ·.
que for capaz de levar em consideração as exclusõesque o _disc~_r__so inevita -
exaltar seu "opon ente~ precise enfatizar sua extensão e relevânci a, generalizando ou absolutizan-
do a lógica do capital. Afinal, é "a barb árie capitalista [que] afirma a atualidade do marxism o'; ".'el~~~t~--~P!.~~: ~~próp~i ; ··g~~t9_9..u~
_pro~ura J~i~~stit~~-~-1 u.:~tiç~o-
rnmo confirmn Indir etamente um discurso empenhado (Abrantes, 2008). Trata-se, entretanto , cial': Outro modo de dizer que a tensão entre a ~~lidão do sujeito e_~ç_!Ee-
ill' um )0110pcrl110Hn,sobretudo quando aplicado à análise de objetos culturais como a poesia ,
;iê n~ia numéri ca da m ultid ão, esse conflito J.~..!/'..P.icO
1111" rnmlnhPm cm r11h1K a u1i1da~ mas não coincidentes, com a lógica econ ómica . ---
- ----- - - ~-· ~··---···
·-· -- - da l!~~~~_E_2_ética
11 Cll(SIA I'. C IHSll
Dando por perdida a suposta harmonia de sua rcla1rilomm o espaço ttnhnm cm comum um vulor fundamental, segundo Verlaine, no prefácio a
social, mostrando-se marginalizada culturalmente, lamentando a subordi- l.t .~ l'oclcs muudits (1972): o "ódio " por uma época sentida como hostil aos
nação do mistério poético à tecnocracia e à acumulação (ou "materialismo': pol'las e à poesia.
como prefere Baudelaire), à predominância de uma outra visão de lingua- Tomando como ponto de partida alguns textos de Baudelaire (1975), de
gem (a "universal reportagem': como dirá Mallarmé, 1945), articulando com l\s //oresdo mal e de Meu coraçãoa nu, poderíamos dizer que o discurso da
isso um 4isf.!!:
r~ ~ª Sf ise, a poesia dá forma a um certo modo de estar no nisc se realiza, na poesia _moderna,g!aças não apenas a um tema, mas a um
mundo, expresso geração após geração , independentemente da verdade so - dispositivo centr~, _noITle~~~'-~-~~a_<!_o _ e~~rimentado como sacrifici~l
.
ciológica dessa crise. Não se trata de questionar a dramaticidade dos trau- l :onsiste em entregar a própr ia cabeça , em reconhecer-se
- ._...~--
_. .. -- .-.. .... . .... __., ·-~ -
·-"- ·'- ----- •--... .,.,.,
como vfüma, trans-
mas e rupturas históricos que tiveram lugar desde Baudelaire. Pelo contrá-
.
/imnar-seem vítima
' ,. ... . .
e, assim , em termos de constituiç!o textual e discursi-
···· ··---- ....-·-
. . ..... ··-··· -~ .. ····~·---··
, -·-----
-.
rio, seria preciso compreender o sentido específico desses acontecimentos, va, cm fazer-se vítima. O "heroísmo" baudelairiano tem natureza social, co-
porém, simultaneamente, à luz de um traço forte do discurso poético que é 1110 assinala Pierre Pachet (1974) a propósito do sacrifício. Poderíamos dizer
o tema da crise. A energia de afirmação do heroísmo moderno está direta- (jllC, na sua força de negação, o dispositivo sacrificial é um dos traços que
mente ligada à ~a~~_<:~ dade _que a poe sia ~-~m __de _recon~!_C~~essa cri~~•ou
- - --- -~-·-
rnmpõem a chamada "épica" da modernidade,a
.... --- ·-
. .....
trajetória de sua inserção e
---------- -·--~- - -
seja, de reconhec er-se em crise, de reconhecer seu espaço como lugar esva-
-- --- - ---
~ -- -·-- -•- -~-
-··....... _ ., -• - -· -------- -- --- de sua interação com a história do último século e meio. Sem que a poesia
~"m~rginal': "maldito': eE.!D!Í!!ê;S,
A força dita utópica , profética, trans- abra mão de si mesma (como se abre mão da vida, pelo suicídio, que Ed-
formadora do poeta não está na confiança romântica em uma antecipação mund Wilson [2004) censurava em Villiers), a violência autossacrificial é
. . .-,.~-.··---~>
• !~"-"-~
futurologista, em sua condição de "antena da raça'' (Ezra Pound), mas na mais especificamente, a meu ver, a ~~P!~.s,.~o de um d~!:L?
de constituir
capacidade de revelar, em perspectiva histórica, eventualmente designada c.:omunidade,"d~ estabelecer um es~~~?. discursivo _p_róprio. É o tempo do o
como "fenômeno futuro': a crise, o f ~~~~au.fr.á~~ ~-~~~en~ Jim da p Ô~i; q~~~meça, se quisermos reformular uma conhecida expres- ....(J_
(J_
L eJCP~!i
~?.~~~! ~~ !~: são baudelairiana. Constatar o fim dos temposda poesia é um modo de esta '2
()
~--~ema do n.!-:1:
_~star, do presente como época de desolação, da falta de realizar a modernidade poética. <::i
condições de poesia, da falta de poesia ou da poesia que falta, em suma, é O sacrifício poético, tal como aparece em Baudelaire, não é uma imita - U)
mais (ou menos) do que uma informação ou uma constatação sociocultu- ção de Cristo, ou seja, não se baseia no modelo cristão do martírio como
ral: ela JJarece con~t!~ii:_~_J:E-?d~
~~lo ~~!!.~.F~e~ia ~~e~~~!~_modernat?~n- conquista da redenção; tamb ém não é uma tática classista e aristocrática
~e ~e~ "pr? _g~~~a,",_seu senfo:lo _d~~.!!<?
do c211j11.!1to
_de _':'.
OZes sociais. Dos visando à restauração da ordem da honra (como em Joseph de Maistre ); e
"palhaços trágico s" de Spleen de Paris,representantes, segundo Starobinski talvez não seja nem mesmo uma estratégia de res&ate por meio _da perda
(1967), da própria situação decaída do poeta, ao martirológio profano de As ("instituir (a) destituição" ["saisir(le) dessaisissement")),realizada
por amor tr, .
flores do mal; do suplício autoderrisório de Tristan Corbiere ao suicídio ou em defesa da poesia (como sugere Batail!e, 1~?2)-
Parece-me que está ~~íC11U-t
com fundo ético dos personagens de Villiers de l'Isle-Adam, o paradigma ~~is próximo de ~ gesto d~~ contraditório ou oximórico, pelo qual se
da crise prospera. Não por acaso, a geração que sucede à de Baudelaire foi constitui a subjetividade ou a consciência _poética moderna . Isso fica claro
. ·-·•·--- ·--
batizada com a etiqueta dos "malditos ': formulação que aproximava autores no modo como o próprio Baudelaire descreve a honra do condenado à
bastante distintos (de Rimbaud a Villiers, de Corbiere a Mallarmé), mas que morte. Se, por um lado, ele _deve entregar-se ao martírio _de modo incondi -
cional, por outro, para que este se efetive, ele deve poder assistir consciente- dl· 11111a
cerimónia interpret.llla como sacrificia! , na qual a vítiII1:~
_!!_Q_~oz
mente à sua própria _~~rté. Não basta p~ra a sa-~Í:ifi~açãodo culpad~- ,·sll\o cm relação de lealdad~ e gratidão ~ il_
t_?as. O me smo acontece em re-
trega voluntária da sua vida; é preci so que, de modo paradoxal, ele constate ·i\o ao sujeito lírico, uma vez que a ret órica do poema ganha uma inflexão
111\
e assista à sua anulação. Como assistir à própria mort e? Parece-me que o uli :I iva corre spondente ao tom tenebroso da cena que se acaba de descrever ,
heroí smo moderno está baseado nessa contradição ou nesse oxímoro da rn1gi11do à pre sença incontornável do cadáver, a quem o sujeito pede que
morte vivida.Se, por um lado, a poesia desdobra sua escrita sobre a sintaxe n ·sponda. A sintaxe dos versos que seguem pare ce identificar poeta e car-
da perda e da crise, por outro aspira ao lugar paradisíaco da autoafecção ou rnsco, como se fossem cúmplices exaltados diante da consumação do ritual ,
da autoconsciência cultural. A poesia não é apenas a vítima sintomática, kvantando a cabeça sem vida pelos cabel os, num gesto perturbado: "Res-
mas pretende ser também a responsável pela definição do sentido de sua ponda, cadáver impuro! E pelas tr anças enrijecidas / Erguendo-a com um
situação.~ em seu espelho que a vida moderna tem a oportunidade de ad- braço febril,/ Diga-me, cabeça horrenda [...]"4.A ambiguidade que os apro-
mirar-se como vítima e como carrasco, simultaneamente. xima se interrompe logo em seguida.m as estabelece o fato de que o gesto de
Em As flores do mal, o martírio assume diver sas formas, sobretudo na dirigir -se ao cadáver, de lhe atribuir beleza e dignidade , é o gesto típico de
proximidade com a questão do mal e da danaç ão. Na curta seção cujo título um amante; responda, cadáver: "sobr e seus dentes frios / Ele aplicou as ar-
dá nome ao livro, o demônio toma pr eferencialmente a forma da mais sedu- dentes despedidas?" 5
tora das mulheres (no poema "A destruição ") e, incorporando o paradigma A poes ia se apresenta, assim , como uma fonte de sangue (cf. "La Fontai-
feminino e artí stico do Belo, relança alegoricamente o gesto do martírio ne de sang "), cuja agonia inunda o espaç o da cidade. Baudelaire, retomando
poético . No poema "Uma mártir " - apre sentado como obra artística anô- um termo teológico adotado por Joseph de Maistre , a "rever sibilidade" (ver-
nima: "Desenho de um mestre desconhecido" - , descreve -se aquilo que são ari stocrática, digamos , da "respon sabilidade " republicana), estabelece
restou de uma cena de assassinato e decapitação, na qual a monstruosidade uma relação de cumplicidade entre o m érito individual e o coletivo, aproxi-
das feridas abertas, as marcas do "aparelho sangrento " da destruição, se avi- mando, em determinadas situações , as po sições do inocente e do culpado.
zinha da beleza mais aguda. A chave final do poema amplia o campo sim- "O justo, ao sofrer voluntariam ente, não en contra satisfação apenas para si,
bólico do martírio, referindo-se à relação entre vítima e assassino. Nel}_hui:n mas para o culpado pela via da reversibilidade. Essa é uma das maiores e
6
ajuste de _contas, vingança ou_be11efício:apenas o lugar do_ato consumado, mais importantes verdades da ordem espiritual" • O guerreiro, o padre e o
~-~s~_'.'~1!._mulo
mist~rios~(~-º~!9- O crime extrapola , aqui , a lógica da justiça poeta, como le~ :.,_rnMeu coraçãoa nu, são ..os_únicos "merecedores de
dos magistrados, o interesse do senso comum ou a simples satisfação dos honra , 110 J.::1
.~~,?.:..E~ !t ~ .! q;ui~~ p~la ~~~~ip.~
.~ ~~?- ~~ ~?.:s -~-?E~~
instintos. "Seu amado percorre o mundo e sua form a imortal / Faz vigília ao sacrifíci()__
e_~~~~rsibilidade. A forma imor tal e histórica (imortal porque
lado dele enquanto dorme ;/ Tanto quanto você sem dúvida ele lhe mostra - hi stórica , e vice-versa, segundo a conhecida associação de "O pintor da vida
rá fidelidade/ E constância até a morte" 3
• !, "forma imortal "_<;i~qual fala o
poeta,
·- lugar do con!ra~te
·- ~Il!!~_y_ - _____
__
i_o1~5!9.. e ~d ~ idade, é o resultado.... estético
. .
4. lbidern .
5. Ibidem .
6. Joseph de Maistre, Les Soiréesde Saint-Pétersbourg, ou Entretienssur le gouvernement
2. Idem , op. cit., p. 683. temporel de la pravidence;suivis d'un Traité sur les sacrifices(1821), disponí vel em <www.gal
3. Idem, op. cit., p.113. lica .bnf.fr >, consultado em 16 abr., 2007, p. 123.
11 ll l( HI,\ 1( CIUNI'.
poético como expressão do belo e do sagrado. O contlito do poeta se apre- Uma tal proposiçilo e umu lnl sinlaxc carregam cm si não ape nas a an-
senta mais trágico que o de Hamlet , após a visão do espectro, uma vez que 811stiada contradição , mas tamb ~m a força da impo stura. Talvez seja esse
envolve a própria posição do discurso poético que o sustenta . Se, como afir- 11111dos traços de sentido que qualificam a singularidade da obra de Baud e-
12
ma Derrida , a "paixão" está associ ada ao compromisso assumido no sofri- la irc, no âmbito de uma mimesissacrificial moderna, profanadora e revela-
mento, ligado ao martírio sacrificial, a paixão da literatura em seu "sentido tlora. Não seria essa a persp ectiva exp licitada pelos escritos pessoais conhe-
moderno" entende-se como articulação sui generis entre o desafio de dizer ridos como Escritosíntimos?
tudo e o direito de não dizer nada, de não responder.Ou seja, ainda que a As nota s de Meu coraçãoa nu, por exemplo - reunidas posteriormen-
indiferença drummondiana possa ser interpretada como profanação da te, em conjunto com as anotações de Projéteis (Fusées) e Higiene- , eram
resposta ou da responsabilidade, o pes o do acontecimento, para Baudelaire, dassificadas ironi cam ente pelo autor como suas "confissões': O projeto, se-
é o peso de não poder desviar o olhar, do dever de dizer tudo o que diz res- gundo afirma em correspondência, deveria "empalidecer" nada menos do
peito ao crime, em suma , de explicitar o conteúdo do conflito que se estabe- que as Confissõesde Jean-Jacque s Rousseau. Ao que tudo indica, com esse
lece a partir daí.A revelação seria, aqui, "Semelhante às visões pálidas gera- título, Baudelaire pretende traduzir My heart lead bare (meu coração a nu,
das pela sombra/ E que nos acorrentam os olhos,/ a cabeça [...]" 13, como ou desnudado) , título emprestado de Edgar Allan Poe, ele próprio, aliás, uma
lemos em "Uma mártir ': deixando o poeta na contradição não entre dois figura do mártir. Segundo uma de sua s correspondências (a Nad ar, 16 maio,
tipos de relação com a história (entre a ação e o destino , como em Hamlet), 1959), Baudelaire cultivava o projeto de fazer um retr ato de Poe "cercado de
mas entre duas visões da soberania preliminar a qualquer reflexão sobre o figuras alegóricas representando suas principais concepções - mai s ou
papel do homem dentro da história. O poeta não aspira à "extin ção do mal, menos como a cabeça de Jesus Cristo no centro do s instrumentos da pai-
até a morte da morte" (programa estabelecido por De Maistre 14), mas faz do xão"15.Para o mártir Poe,Meu coraçãoa nu é o título fantasioso do livro mais
poema _? altar ~qual ayoesia, vítima profan ada, se torna cúmplice do ri- ambicioso jamais escrito, embora muito simples , um pequeno livro que abri-
tualde sua próe~!~ profanação . -- - ---- - ria o caminho para o "renome imortal" 16
• Dar esse nome a suas notas pes-
,..~ Em outras palavras, o sacrifício não aspira à reconquista de uma supos- soais revela , naturalmente, da parte de Baudelaire , não apenas uma ambição ,
ta idade de ouro, de um paraíso da poesia, mas dramatiza a violência da mas uma vontade de provocação que não é negligen ciável.
exclusão, generalizando o inferno que, hi storicamente, ganha o senti do de Em suas Marginalia,Poe descreve Meu coraçãoa nu, o livro da sinceri-
razão de ser do gênero poético. A poesia vai acabar,parec e profetizar Bau- dade absoluta e insuportável, como um livro cuja força destruidora nem a
delai~r eferindo -se ironicamente ao presente. É o tempo do fim da poesia morte amenizaria. Se a sede de notoriedade de boa parte da humanidade
que começa,se qu isermos parafrasear de uma certa maneira a expressão de costuma justificar as piores confissões, sem qualquer tipo de censura, Meu
Paul Valéry ("o tempo do mundo finito começa"). Constatar o fim dos tem- coração a nu coloca um desafio infinitamente maior. :Écerto que ninguém
pos da poesia é um modo de a poesia realizar o espírito moderno. É a gene- teria moti vos para deixar de publicar tal livro, uma vez escrito, já que a mor-
Lralização da poesia como seu inferno da po esia. te esvaziaria qualquer consequ ência para seu autor. "Mas escrevê-lô: desta -
ll. Jacques Derrida, Passions.Paris, Galilée, 1993, ,5. Citado po r Peter Michael Wetherill, CharlesBaudelaireet la poésie d'EdgarAllan Poe.
13. Charles Baudelaire, CEuvrescompletes..., p. 112. Paris, Nizer, 1962, p. 23.
14. Joseph de Maistre, LesSoiréesde Saint-Pétersbourg
..., p. 35. 16. Citado em Charles Baudelaire, CEuvrescompletes..., p. 1490.
l'OHSIA H Cl(ISJ 1• 11 IIINl :lll l ijll IIA CIIISH
ca Poe, "eis a dificuldade. Nenhum homem poderia escrevt-lo, mesmo que ,ll-inkio (temática e estrulurulnu.•nlc), como um problema: "Posso começar
ousasse. O papel se encarquilharia e se consumiria ao menor contato com Mc•umraç<loa nu em qualquer ponto, de qualquer maneira, e continuá-lo
sua pena inflamada:• 17 11os poucos, de acordo com a inspiração da hora e da circunstância, desde
O que seria o fogo dessa escrita, mais forte que o providencial amorte- l[lll' a inspiração seja intensà ' 18. Diante dessa posiç~o problem.:a.tizadaqg_~ -
cimento da extinção, mais inexor ável que a natural passagem biológica do jt•ito,o discurso e~r.~!.imenta º-~
va._ria4~~ _modos da _'
'.irr,tP?~~i:'',
por meio
vivo para o morto? Se levarmos em consideração as primeiras notas do li- dl· raciocínios que, num primeiro momento, se oferecem como sofismas
vro, uma hip ótese provável seria a de que essa inevitável desagregação está nrl ill<:iosose violentos.
ligada à aceitação da cumplicidade paradoxal e intratável entre "vapori za- Imposturas de política literária, como as dirigid as contra a religiosidade
ção" e "centralização" do eu, que McGinnis (1994) mobiliza a propósito do sl'm inferno de Georges Sand, ou contra o ódio pelo mistério de Voltaire.
paradigm a da "prostituição sagrada''."Tudo está aí",diz Baudelaire. Escrever Imposturas filosóficas, como aquelas relativas à natu reza como entidade
~~<i~ .s~ -º-P.?!.q~~a escrita press~pi>_e ~esolvida a questão da sob;;~i;~ vingativa. Imposturas políticas, que identificam traços comuns entre teo-
~~:~~~-; ~la se nutre dos falsos paraísos da s~ce~i~i~i~~ -d-~ ;;co~vicção''. O nacia e comunismo, por exemplo. Imposturas estéticas, como no delicioso
f<>~<?
.d~-~S~?,ta. _q11:eimao papel n a-~ -«:dida em que esc;eve~, ~~cr~;;;::-;;·é~ "Minhas opiniões sobre o teatrô: que declara: "Aquilo que sempre me pare-
t~bf~! . :'l?__
fun~~!-~t:ixar-se consumir por ~ - ;~~ro; é reconhecer- ~~ c.:cumais belo em um teatro( ..] é o lustre"19,ou seja, a preciosidade que se
~i~erença_C~f!~ ig~ !.1.1~~1E?;_nãoexata~~nt~ ~p~ga_r-set_dilµir-.$~-n<>__
outro , d,\, em oposição à visão realista da arte, através das lentes do binóculo , por
?1-ªster reY,~laAg
_pc:>r_esseoutrn sua própria contrariedade. O fogo da escri- aumento ou diminuição - poderíamos dizer figurativos - do natural.~
ta envolve urna situação dupla, que é a de ser o ~arr~s~~do outro, por ser Haudelaire, a impostura - tanto no que ela envolve de engano quanto de
quem se é; mas também vítima do outro, ao reconhecê-lo na origem de sua afront a - é um mod~~ da postura. A retórica da verdade, reforçada pelos
própria constituição. A escrita se apresenta como palavra de fogo, que se traços afori~máticos, incide -~~b;; -~rmaçõe s de caráter altamente artificio_-
consome nas chamas do paradoxo, desintegrando-se à força de afirmar-se, so, e ganha, assim, um caráter de provocação, uma maneira de potenciali zar
e afirmando-se à força de consumir -se. A liberdade de dizer tudo e a impos- aquilo que Baudelaire chama de "mal-entendidô :
l sibilidade de responder se aproximam, num oxímoro fulminante. Tanto a conhecida "misoginià' baudelairiana quanto o desdém pelo
.,.... Isso é reforçado pelo caráter circunstancial e fragmentário, em forma progresso técnico ou pela ausência de mistério são articulados, de mod o
de aforismos, ou seja, por uma organização estilística que destaca imediata - contundente, como recusa da indiferença do pensamento convicto ou da
mente sua relação com a verdade, com aquilo que se dá como tal. Esse tipo natureza dominadora . Se "o amor é o gosto da prostituição",é na medida em
de escolha é essencial, pois evidencia uma preocupação em deslocar qual - que, pela paixão, a escrita se consome, ao entrar em contato com a alterida-
quer estraté gia sentimental implícita na narração romanesca da própria vi- de heteronômica do "baile" ou da "multidão': E a prostituição propriamente
da. Diferentem ente de Rousseau, que, na apresentação de suas Confissões,se "sagradâ' é, para Baudelaire, uma "contrarreligião", ou seja, uma espécie de
propõe a dizer toda a verdade sobre si, reparando o erro e a mentira das profanação. Contra o caráter "natural" das troca s (do "comércio"), que con-
versões alheias, Baudelaire retoma a relação entre o sujeito e sua verdade, já
18. Idem, op. cit., p. 676.
17. Citado em ibid em. 19.Ibidem.
,.._, 50 .-..,
l'OHSIA 1! CIUSH O IIIN!: IIMMCIIIA CIUHI!
siste em vencer o outro, a falsa moeda do "mal-entendido" é o motor do À paixão ou ao sofrimento de ssa alilude, as vanguardas do século XX
acontecimento e da relação problemática com o "semelhante" (aliás, "hipó- (frl'qucntemente em oposição à "tradição "), como se sabe, vão contrapor
crita': como bem sabe o leitor de Asflores do mal). O tratamento dado por 11ma postura considerada mais viril e propositiva, rea lizan do um gesto de
Baudelaire à que stão da violência, se está frequentemente ligad o a situações "ressurreição", segun do palavra usada no manifesto futurista. Mas, ainda ali,
marcadas do ponto de vista da organização econômica (valor monetário, a constatação da crise da poesia continua centra l, necessária, e se dá no
pobr eza, mendicância etc.), não desmente a explicitação da "dessemelhan- rnntexto de uma atitude destrutiva da tradição, ou seja , pela via de um sa-
ça''. Digamos que, se Baudelaire não está passi vame nte absorvido pela pre- aifício cego. "Mud ar a vida'', na tradi ção que vai de Rimbaud ao Futurismo
destinação e pela fatalidade do mal (no estilo de uma leitura jansenista), e ao Surrealismo, essa frase que atribuímos à energia transformadora da
tampouco faz uma denúncia da alienação em nome do nivelamento entre poesia, quantas vezes não significou lançar-se na direção da vida , da vid a
os homens (no estilo de sua leitura marxista). pura , por opo sição ao artifício ou ao erro da poesia, fazer o sacr ifício da poe -
A julgar por esses traços que aparecem no discurso poé tico baudelai- sia? Em outr as palavra s, "mudar a vidá ' muita s vezes significou opor vida e
riano , podemos imaginar que a poesia moderna não se estabelece baseada poesia, lançar -se na vida sem poesia, ou seja, sem seu "in ferno~ sem seu
em íntervenções capazes de produzir convicção e semelhança. O sentido uinadmi ssível': Co ntra a paixão do sacrifício, e denunciando a crise da po e-
ético da impostura , se é que existe, só pode ser inferido a posteriori, como sia, a vanguarda propõe a f esta da ressurreição, frequentemente destruidora .
dramati zação (ou impressão em um "sudário") da violência contida nos Em ambo s os casos, o discurso assume proto colos retór icos de cerimonial e
pro cessos sociais e culturais de exclusão . Se Baudel aire ironiza o desdém de tem como centro a consideração do qu e poderíamos chamar de o corpo
Théophile Gautier pela tradição da língua expressa em sua ortografia ("Co- morto de Deus.A cabeça do mártir não está distante das "cúpulas de cobre
locarei até mesmo a ortografia ao alcance do carrasco" 2º), ele não deixa de esburacadas" de Marinetti, das ruína s ou do deserto sobre os quais a poesia
imprim ir, no mesmo ato, de modo indireto , a imagem de um elemento sa- se instala fazendo ressoa r em seu corpo os movim entos tectônicos do t em -
crificial contido na post ura de uma época em relação à língu a. A frase de po compassado pela técnica.
Gautier torna-se o sudá rio de sua época. De certo modo, a poesia moderna nu nca deixou de estar em crise. Quer
O mal-entendido (presente, aliás, nos próprios comentários da edição esse discurso, ou essa política, da crise tenha uma função transformadora
Pléiade, que interpreta a frase de Gautier como expressão de um a preocu- (ou revoluci on ária , se qui ser mos), quer ele tenha um a função de conserva -
paç ão normativa) não serve para estabelecer posições, mas par a atribuir ção ou de "atualização", convém de stacar de início que a crise po ética tem
sentido dramático a determinadas questões. Creio qu e esta é uma definição uma ligação estreita com a focalização de um corpo morto. Entre os contí -
mais exata para aquilo que a prim eir a poesia moderna faz com o procedi- nuos lamento s pelo seu passamento e os atestados periódicos de boa saúde,
mento sacrificial e com a própria palavra "crise''. O 9ue _é _a impo stura para o que disputamos de fato é o cadáver daquilo que chamamos poesia . "Res-
~audelaire será a precio _~~~~~~ -o luxo pa~a Mallarmé, ou seja, maneira s ponda, cadáver impuro!" é, muitas vezes, a interpelação contradi tória da
r ~ ~~!ap_~9
~~~-~xatamente de co~~~atq c~!!!J_r.:al
_da_poesia, mas _de col~ a crítica, mas também do coluni smo jornalístico que, ao me smo tempo que
:~~~-~~_a P.~ét~~~-~.?IE~-~I?~riênda_e~~n,ipl<!_t_:Q2~ola)?SO. constata a morte do gênero, continua se dirigindo a ele, exercendo um a
demand a, expressando uma falta e, portanto, um desejo. A poesia talvez
20. Idem, op. cit., p. 700. seja um nome historicam en te relevante desse desejo ou dessa forma, "im or-
l'lll \ SIA 1( CIHSI!
tal" como diz Baudelaire, que nos acompanha e à qual somos fiéis, como 0
amante do poema. Talvez por isso a alimentação reciproca entre revelação e O GRANDE DESERTO DE HOMENS
profanação, a qual se refere Michel Deguy, é um dispositivo daquilo que já
Assim ele vai, corre, procura. O que pro cura? Certamente,
vem acontecendo ou que terá acontecido.
esse homem, tal como o descrevi, esse solitário dotado de
O "futuro" seria o de dar forma a esse acontecimento e de test ar a capa- uma ima ginação ativa , sempr e viajando através do grande
cidade que temos de compreender (de "julgar" ou de "discernir ': como que- _deserto de homens , tem uma finalidade mais elevada que a
rem alg~s) a atitud e mais ou menos crítica- mais ou menos consequente de um simples flâne ur, uma finalida de mais geral, distinta
com a crise-, a postura que diante dessa crise tiveram ou têm as diferentes do prazer fugitivo da circunstância. Ele procura esse algo
que nos permitirem os chamar a modernidade.
obras poéticas, ainda que em discordância com suas própria s propo stas ex-
plícitas. Como no texto "O fenômeno futuro'; de Mallarmé, a beleza predita (Charles Baudelaire, Le peintre de la vie moderne)
é a beleza pa ssada que será finalmente descober ta em um tempo que "se
acab a em de crepitud e'; em que os poetas têm "olhos apagados~ Estes, por
um momento, se reconhecerão na glória confusa da experiência dessa bele-
O INFERNO DA SOLIDÃO
za, "no esquecimento de existir em uma época que sobrevive à belezà'2•. Em
outras palavras, a beleza prom etida não é simplesmente a vinda daquilo que Em seu primeiro livro de poemas, tendo como epígrafe a famosa frase de
será, mas a descoberta do pre sente como esquecimento e sobrevivên cia, em Holderlin "... e para que poetas em tempo de pobreza?':Augusto de Cam-
suma , como sentimento de crise. pos (1986) cristaliza uma ideia presente em praticamente toda a sua traje-
tória, destacando a solidão do poeta, situado em um deserto, sem reino,
Este textofoi aprese_
ntado em_evento de comemoraçãoaos iso anos de publicaçãode Les mas ainda assim chamado de "rei''."O rei meno s o reino." A formulação do
Fleurs du Mal, no Rio de Janeiro,em 2007, epublicadona revistaAlea: Estudos Neo latinos
(n"9, 2007), da UFRJ. reinado no des erto não serve apenas para designar uma situação especí-
fica do início do s anos 1950, quando o livro foi publicado. Trata-se de uma
maneira característica com qu e a poesia dita "moderna" designa sua situa-
ção . Mallarmé, po r exemplo, usava imagem semelhante para evidenciar a
marginalidade da obra de Villier s de l'Isle-Adam, a quem, diante da po-
1
breza dos tempos , restav a apenas reinar como "grande escritor" • Por isso,
quem fala do desert o na liter atura fala, também, do _des ert o_da liter~ a,
.~meado ee[gJ~~
ali~s, 1.1: -~!:~~Eª·
Do Romanti smo, conhecem os o motiv o da viagem, do exílio, da busca
do "lugar ameno" ou, mais precisamente , do lugar isolado, m arcado pela
vertigem da int erio ridade: aquilo que está fora da cidade, no interior , na
,..._, 54 ~