Aby Warburg e Os Arquivos Da Memória
Aby Warburg e Os Arquivos Da Memória
Aby Warburg e Os Arquivos Da Memória
António Guerreiro
* uma biblioteca que, muito embora erigida à custa de um investimento privado (de
acordo com o entendimento de que «o capitalismo pode também permitir a realização
de um trabalho de reflexão com o mais vasto alcance», como podemos ler numa carta,
datada de 30 de Junho de 1900 (1), a um irmão, a favor do qual tinha prescindido das
suas prerrogativas de filho mais velho) e reflectindo, na sua complexa organização, os
interesses, o método e os conhecimentos do seu criador, acabaria por se tornar, em
1921, uma instituição parcialmente pública, desempenhando ao mesmo tempo as
funções de instituto de investigação, cuja direcção foi assegurada por Fritz Saxl;
Esse núcleo, como gostaríamos aqui de mostrar e tentar compreender em todo o seu
alcance, implica uma determinada concepção da história e do trabalho historiográfico
que segue aquele preceito de «escovar a história a contra-pêlo», que Benjamin, alguns
anos depois, iria formular numa das suas teses «Sobre o Conceito de História»
Se o Renascimento italiano constituiu, para ele, um campo de eleição, não foi tanto
por um interesse pelo Renascimento em si, mas porque este lhe fornecia o mais
avançado exemplo histórico do funcionamento da memória cultural e das
sobrevivências primitivas. Tentando compreender, em Botticelli e em Ghirlandajo, as
leis que regem o regresso de formas outrora impressas e que a memória colectiva ao
mesmo tempo conserva e transforma, ou descobrindo que as figuras representadas nos
frescos do palácio Schifanoja, nas suas características clássicas, eram afinal os
«decanos indianos», emigrados da simbologia oriental e medieval, mas sob cujas
vestes «bate um coração grego», Warburg não estava a seguir os modelos canónicos
da história da arte, nem da história tout court, mas a construir um específico modelo
temporal para os factos da cultura à altura da sua Kulturwissenschaft unitária,
abrindo-a a muitos campos do saber, nomeadamente à antropologia. Desde logo,
porque encara o Renascimento (o Renascimento histórico mas também, por extensão,
o processo transistórico dos «renascimentos») não como um revivalismo através do
qual se procederia à recuperação de uma tradição perdida, mas como um mecanismo
inconsciente, próprio da memória colectiva, e portanto capaz de se manifestar através
de sintomas. E são muitas as vezes em que Warburg, nos seus escritos, fala de
sintomas. Por exemplo, quando num estudo de 1905 sobre «As Trocas da Cultura
Artística Entre o Norte e o Sul no Século XV» designa determinados elementos
«como sintomas de uma época de transição» (GS, I.1, pág. 179). É precisamente
como estruturas sintomáticas que Georges Didi-Huberman definiu e analisou, em
L’image survivante, as Nachleben.
Mas deixemos de lado esta questão para sublinhar como a Pathosformel está
associada a determinadas marcas (no sentido em que dá um cunho às formas, que as
torna geprägte Formen), que são as tensões energéticas que animam a história. É por
isso que, na concepção da história de Warburg, o passado nunca é um tempo
concluído, pois está constantemente a emergir no presente sem que este o possa
dominar, pensamento de que Walter Benjamin, por outras vias, se irá aproximar, ao
conceber que cada momento do passado nunca é definitivo, já que é dotado de um
«índice histórico» que o torna «citável» em cada momento. Daí que a tradição seja,
para Warburg, não uma corrente linear em que o que vem depois imita ou é
influenciado pelo que está antes (a ideia mais comum de influência perde, aliás, todo
o sentido), mas um mecanismo que implica conflito, discussão entre o presente e o
passado.
A memória anula o abismo entre o passado e o presente. Isto não significa que ela
impede a mudança, pois o que é transmitido não permanece igual. Desenvolvendo
uma teoria do símbolo que passa, desde logo, pela ideia de que as Nachlebem são
imagens simbólicas, Warburg mostra que o símbolo, materializando e condensando
esta tensão entre o passado e o presente, quebra o continuum da história. Como afirma
Dorothee Bauerle, «a história de Warburg salta, em certa medida, de símbolo para
símbolo» (10). Mas símbolo significa aqui também produção simbólica, num sentido
em que a cultura é vista como a tentativa de dominar, através do símbolo, o caos,
remetendo assim para uma tensão permanente - à escala da história da humanidade,
mas também à escala do indivíduo - entre a reflexão e a «exaltação orgiástica», entre
a sophrosyne e o êxtase. Como uma conquista nunca definitiva que a razão faz nas
regiões do caos, a cultura abre um espaço intermédio entre impulso e acção.
A história da humanidade é assim vista como a história da instituição de um
Denkraum,um espaço de pensamento que, gradualmente, inseriu um intervalo entre o
homem e a natureza, conduzindo-o das primeiras formas arcaicas de identificação
mimético-corpórea com o mundo, até ao estádio científico-racional da magia à lógica.
A totalidade dos símbolos é aquilo que determina a vida social, preservando aquela
energia que dá às imagens uma enorme espessura histórico-cultural.
O mote foi dado por Fritz Saxl, num texto que escreveu logo a seguir à morte de
Warburg, recordando a viagem que este tinha feito, em 1895, ao Novo México, onde
visitou a tribo dos Índios Pueblo, da qual viria a resultar, vinte e oito anos depois, uma
célebre conferência (a que nos referiremos mais à frente). Aí, Saxl falava de uma
«viagem aos arquétipos».
Gombrich, na sua biografia intelectual de Warburg, garante que este não se refere
jamais a Jung, mas deixa em aberto a possibilidade de haver uma correspondência
entre as concepções de Warburg e as ideias de Jung sobre os arquétipos. A verdade é
que parece ser difícil escapar à tentação de os comparar, nem que seja para recusar
logo a seguir qualquer proximidade. É o que faz Didi-Huberman, para o qual a
relação Warburg-Freud parece implicar uma expulsão sumária de Jung. Assim,
assinalando uma diferença nítida entre o sintoma como coisa deslocada, que não se
exprime como uma essência, e o arquétipo, que seria marcado por um
«essencialismo», Didi-Huberman afirma que «Warburg, en 1895, n’effectuait pas un
voyage vers les archétypes (a journey to the archetypes), comme l’a cru Fritz Saxl,
mas bien un voyage vers les survivances» (11). E, mais à frente, denunciando aquilo a
que chama «arquetipismo», assegura que «L’anamnèse symptomale n’a décidément
rien à voir avec la généralisation archétypale (12). Por seu lado, Giorgio Agamben,
numa nota inserida no seu ensaio sobre Warburg, afirma que «a concepção
warburguiana dos símbolos e da sua vida na memória social pode fazer recordar a
ideia junguiana de arquétipo» (13), acrescentando, no entanto, logo a seguir: «É
preciso não esquecer, por outro lado, que as imagens são para Warburg realidades
históricas, inseridas num processo de transmissão da cultura, e não entidades a-
históricas». Sem querer ser muito conclusivo nesta matéria, Agamben parece
distinguir a imagem de Warburg do arquétipo de Jung pelo elemento histórico que
caracterizaria a primeira. No entanto, esta suposta a-historicidade dos arquétipos
talvez se revele um pouco mais complicada ou, pelo menos, mais difícil de opor à
imagem de Warburg, na sua vida póstuma, se pensarmos que, para Jung, a estrutura
arquetípica historiciza-se na imagem, isto é, as imagens primordiais nascem do
arquétipo e são uma expressão fenoménica dele. E precisamente enquanto
fenoménicas, históricas, as imagens primordiais são susceptíveis de metamorfoses. Os
arquétipos são determinados não do ponto de vista do conteúdo, mas da forma (o que
faz obviamente pensar nos traços significantes que também não se definem por um
conteúdo a que Warburg chamou Pathosformel). O arquétipo, em si, é um elemento
vazio; não é uma imagem empírica, mas uma possibilidade dada a priori da forma de
representação. Ora, de um ponto de vista morfológico (e a relação de Warburg com
Goethe já foi várias vezes assinalada e até estudada demoradamente por Andrea
Pinotti), a vida póstuma das imagens consiste em variações fenoménicas de uma
invariante que é o Pathosformel. Neste sentido, Warburg também precisa de supor
uma condição de possibilidade da imagem, um núcleo originário numa estrutura
eidética - em relação ao qual as imagens, nas suas metamorfoses, são uma histórica
declinação. Simplesmente (e aqui já nos distanciamos de Jung e nos aproximamos de
Goethe), esse núcleo é certamente imanente, e não transcendental, aos fenómenos
particulares � é das variações que podemos extrair o universal.
Por outro lado, a relação com os processos inconscientes, que Freud descreveu como
não conhecendo a dimensão temporal, torna-se aqui muito evidente (Didi-Hubermann
consagra a esta questão um capítulo do seu livro). Isto poderia dar origem a uma
concepção do historiador como psico-historiador. E é verdade que no diário da
Biblioteca Warburg, numa nota datada de 3 de Abril de 1929, podemos ler o seguinte:
«Vejo-me, às vezes, como se fosse um psico-historiador que experimentou
diagnosticar a esquizofrenia da civilização ocidental num reflexo autobiográfico: a
ninfa extática (maníaca) de um lado, e do outro o triste deus fluvial (depressivo)»
(GS, VII, pág. 429). Esta referência à ninfa remete-nos para uma figura longamente
estudada por Warburg, presente, de maneira recorrente, em imagens do
Renascimento, mas que ele descobre que se trata da rapariga mítica que atravessa
séculos de cultura e emerge sempre actual, como uma criação da época (volta a
descobri-la e a apresentá-la no painel 77 do seu Atlas, nalguma representações
iconográficas da publicidade do seu tempo).
Mas a definição que mais convém a Warburg não é provavelmente a de psico-
historiador, porque isso seria limitá-lo. É a de sismógrafo. Foi, aliás, como um lugar
de captação e registo de ondas mnémicas colectivas que a sua biblioteca foi
concebida, como ele próprio sugeriu numa alocução perante o «Kuratorium», em
Hamburgo, dois meses antes de morrer, desta maneira interrogativa: «Pode-se
construir um aparelho de captação que seja como que um sismógrafo internacional
para o registo do trânsito patrimonial de Leste para Oeste, de Norte para Sul, que
possa mostrar através de que tendência selectiva se caracteriza a forma mnémica desta
herança nas diferentes épocas?» (AsuW, pág 307).
ANTÓNIO GUERREIRO
Rapprochements dissociatifs
Tel était bien, pour Warburg, l’atlas Mnemosyne : une façon d’avoir « sous la main »
toute une multiplicité d’images, un outil pratique pour « sauter » facilement de l’une à
l’autre. (…)
Il sait la folie de son projet initial : avoir voulu penser toutes les images ensemble
avec toutes leurs relations possibles. (…)